LIVRO - Vamos Falar de Direitos Humanos.pdf

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Descrição do Produto

ORGANIZADOR Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

VAMOS FALAR DE DIREITOS HUMANOS?

Associação Refletindo o Direito Bento Gonçalves – RS 1ª Edição | 2016

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VAMOS FALAR DE DIREITOS HUMANOS?

Organizador: Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth 1ª Edição | 2016 Bento Gonçalves – RS Associação Refletindo o Direito - ARD

Design da Capa: Daniel Laucas [email protected] | (21) 99319-6990 Edição e Editoração: Associação Refletindo o Direito | Camila Paese Fedrigo - MEI Rua Assis Brasil, 780 | Bento Gonçalves | RS Contato: [email protected] | (54) 8413-5113

Todos os direitos reservados pela lei de direitos autorais. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Vamos falar de direitos humanos? / organização Maiquel Angelo Dezordi Wemuth. - Bento Gonçalves, RS: Associação Refletindo o Direito, 2016.

ISBN 978-85-67584-21-8 Apresenta bibliografia. Vários colaboradores.

1. Direitos humanos. I. Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi.

CDU 2.ed.: 342.7

Índice para o catálogo sistemático:

1. Direitos humanos

342.7

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SUMÁRIO

1 A VIOLAÇÃO SISTEMÁTICA DE DIREITOS HUMANOS DOS IMIGRANTES EM SITUAÇÃO IRREGULAR NA UNIÃO EUROPEIA............................................................06 Jeannine Tonetto de Aguiar 2 ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOS: A SAÚDE MENTAL COMO CAMPO E SUA (IM)POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO ATRAVÉS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS................................................................................................36 Diúlia Marceli Binelo 3 A ANISTIA BRASILEIRA E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS...............................................................................................................55 Carla Dóro de Oliveira 4 A GOVERNANÇA AMBIENTAL GLOBAL E A ECONOMIA VERDE COMO FORMAS DE CONCRETIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AMBIENTAL............................................................72 Danielli Zanini Vinicius Bindé Arbo de Araújo 5 A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA E SUA RELAÇÃO COM A SUSTENTABILIDADE E A BIOPOLÍTICA.......................................................................................................87 Nadja Regina Matte 6 A REPRESENTATIVIDADE DA ONU: DA QUESTÃO UNIVERSALISTA AO PROCESSO DE NÃO-EXCLUSÃO.....................................................................................................103 Fernando Camara Rieger 7 O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA A SUA HUMANIZAÇÃO E EFETIVAÇÃO DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA FRENTE A SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA......................119 Ana Paula Schmidt Favarin 8 A MICRORRESISTÊNCIA ANUSSITA DO SÉCULO XXI DENTRO DA COMUNIDADE JUDAICA BRASILEIRA..............................................................................................129 Albo Berro Rodrigues 9 SISTEMA REGIONAL ÁRABE: IMPLICAÇÕES DA MOBILIZAÇÃO DIGITAL DURANTE A PRIMAVERA ÁRABE E CONTROVÉRSIAS GARANTISTAS DE UM ESTADO DE EXCEÇÃO................................................................................................................142 Fernanda Licéli Lowe 10 SISTEMA REGIONAL EUROPEU DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E O “JUS STANDI” INDIVIDUAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS..................................................161 4

Jean Karlo Woiciechoski Mallmann 11 AS DOENÇAS OPORTUNISTAS NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO: COMO AS POLÍTICAS PÚBLICAS GARANTEM O ACESSO À SAÚDE NESTE SISTEMA?.................183 Juliana Oliveira Santos 12 A UTOPIA DO SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: OS REFLEXOS DE UM ESTADO DE EXCEÇÃO EM ÂMBITO INTERNACIONAL...................200 Aline Ferreira da Silva Diel 13 O TRÁFICO DE PESSOAS FRENTE AO SISTEMA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS EUROPEU...............................................................................................................220 Elisandra Benvegnú Efel 14 MIXOFOBIA E DIREITOS HUMANOS: DIREITO PENAL E IMIGRAÇÃO NA UNIÃO EUROPEIA..............................................................................................................240 Camila da Rocha Klarissa Lazzarin de Sá 15 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E OS LIMITES IMPOSTOS PELAS FRONTEIRAS ESTATAIS: UMA ANÁLISE A PARTIR DE HANNAH ARENDT E JUDITH BUTLER...................................................................................................................256 Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth Joice Graciele Nielsson 16 JUS STANDI INDIVIDUAL E O IDEAL DE JUSTIÇA INTERNACIONAL: A EMANCIPAÇÃO DO INDIVÍDUO ENQUANTO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL A PARTIR DA JURISDIÇÃO EM DIREITOS HUMANOS.....................................................................284 Tamires de Lima de Oliveira 17 DA SOCIEDADE INTERNACIONAL CLÁSSICA À CONTEMPORANEIDADE: O PAPEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NA TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS..........300 Aline Michele Pedron Leves Pâmela Copetti Ghisleni 18 A GUERRILHA DO ARAGUAIA E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.............................................................................................................317 Clarissa Mertz 19 O MODELO AGRÍCOLA NACIONAL E O DIREITO HUMANO AO DESENVOLVIMENTO: REFLEXÕES ACERCA DO PESTICIDA GLIFOSATO.......................................................332 Camila Paese Fedrigo Clovis Eduardo Malinverni da Silveira 20 DIREITOS HUMANOS E GÊNERO: EM BUSCA DA EFETIVAÇÃO DA IDEIA DE IGUALDADE EM RELAÇÃO AO TRANSEXUAL...........................................................344 Kaoanne Wolf Krawczak 5

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A VIOLAÇÃO SISTEMÁTICA DE DIREITOS HUMANOS DOS IMIGRANTES EM SITUAÇÃO IRREGULAR NA UNIÃO EUROPEIA

Jeannine Tonetto de Aguiar1

Considerações Iniciais

A contemporaneidade evidencia uma nova perspectiva social, que a partir do surgimento de novos riscos e da intensificação da sensação de medo e insegurança, manifesta o anseio social pela transformação dos mecanismos punitivos no sentido de dar maior proteção e eficácia das instâncias de controle social através da ampliação da intervenção do Direito Penal. Tal expansão do Direito Penal produz a segregação seletiva de grupos de riscos, que passam a ser temidos pela sociedade mundial em razão da criação de estereótipos, como é o caso dos imigrantes em situação irregular, que diante do atual ambiente de guerra vivenciado pela sociedade mundial, especialmente após os atentados terroristas ocorridos em grandes centros urbanos nos últimos anos, convertem a imigração irregular em uma situação de guerra, merecendo os imigrantes o mesmo tratamento direcionado ao terrorismo, ou ainda, relacionam a permanência do imigrante com o aprofundamento dos problemas estatais, fundamentando assim, sob a perspectiva de novos riscos, que os imigrantes são causadores de mal-estar, “inimigos” da sociedade, que ameaçam a ordem social. Criou-se uma situação de “combate” à imigração irregular que se tornou institucionalizada nos países em que o fenômeno migratório é mais intenso, como é o caso de alguns países centrais da União Europeia que, objetivando o controle externo das fronteiras tão somente, buscam inibir o deslocamento ou a permanência desses sujeitos em circunstâncias que o Estado não permita. Isso levou a adoção de políticas migratórias demasiadamente repressivas que objetivam a neutralização desses grupos considerados de risco em detrimento de sua inclusão e integração. 1

Graduada em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (IESA). Pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Mestranda em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Percebe-se que os instrumentos normativos adotados pelos países centrais europeus têm evidenciado, ainda, um discurso criminalizador direcionado aos imigrantes em situação irregular, de punição aos imigrantes irregulares, que têm resultando em nítidas afrontas aos postulados nas declarações de proteção aos Direitos Humanos ao acarretar, por consequência, em graves violações aos direitos e garantias fundamentais desses sujeitos imigrantes. Destarte, o presente trabalho tem como escopo analisar como essas medidas de controle e punição supõem um novo desafio no alcance de direitos e garantias já consagrados como o direito à livre circulação, ao asilo, à vida, à dignidade humana, à integridade física, enfim, medidas que ameaçam a manutenção dos direitos humanos e que não estão sendo consideradas por países de trânsito e de origem migratório com destino à Europa durante essas operações. A metodologia utilizada na presente pesquisa é a fenomenológica e hermenêutica de Martin Heidegger. A fenomenologia hermenêutica busca relacionar o sujeito (pesquisador) com o objeto (pesquisa), por entender que não há como o pesquisador situar-se para além do objeto pesquisado, não podendo elevar-se para fora dele, estando, dessa forma, o sujeito relacionado com o objeto. Assim, o presente trabalho utiliza-se de tal método de compreensão justamente por entender que a pesquisa ora realizada não se encontra afastada do pesquisador, visto que, este se encontra inserido em uma realidade social em que os fatos analisados na presente pesquisa (fenômenos migratórios) ocorrem. (GADAMER, 2014).

1. O IMIGRANTE IRREGULAR ENQUANTO “SUJEITO DE RISCO”

A busca por condições de vida mais favoráveis tem, desde muitos anos, impulsionado o ser humano a deixar o seu país de origem e imigrar para outros lugares. A era moderna, para Zygmunt Bauman (2005, p. 50), pode ser considerada desde o seu início como a era das grandes migrações, em que as “massas populacionais até agora não calculadas, e talvez incalculáveis, moveram-se pelo planeta, deixando seus países nativos, que não ofereciam condições de sobrevivência, por terras estrangeiras que lhes prometiam melhor sorte”.

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A modernidade ainda, segundo Bauman (1998, p. 14), criou uma ordem2 baseada na visão da “pureza” que caracteriza a localização correta e conveniente das coisas e das pessoas, “de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro”, definindo quem são as pessoas do lugar e quem são as pessoas estranhas, incompatíveis a este. Esta ideia de ordem excluí aqueles que são considerados “sujos”, “fora do lugar”, um obstáculo para a ordem desejada. Há, porém, coisas para os quais o “lugar certo” não foi reservado em qualquer fragmento da ordem preparada para o homem. Elas ficam “fora do lugar” em toda a parte, isto é, em todos os lugares para os quais o modelo de pureza tem sido destinado. O mundo dos que procuram a pureza é simplesmente pequeno demais para acomodá-las. Ele não será suficiente para mudá-las para outro lugar: será preciso livrar-se delas uma vez por todas – queimá-las, envenená-las, despedaçá-las, passá-las a fio de espada. Mais frequentemente, estas são coisas móveis, coisas que não se cravarão no lugar que lhes é designado, que trocam de lugar por sua livre vontade. A dificuldade com essas coisas é que elas cruzarão as fronteiras, convidados ou não a isso. Elas controlam a sua própria localização, zombam, assim, dos esforços dos que procuram a pureza “para colocarem as coisas em seu lugar” e, afinal revelam a incurável fraqueza e instabilidade de todas as acomodações. (BAUMAN, 1998, p. 14-15).

Através desse paradigma da pureza, busca-se então, “combater a sujeira”, combater os “estranhos”, os “estrangeiros”, assim considerados “sujeitos de risco”, que na atual sociedade pós-moderna são vistos como potenciais usurpadores, intrusos, “parasitas” do modelo social de Estado de bem-estar, que por não compartilharem das mesmas normas propostas pela sociedade são considerados uma ameaça à pureza criada pela organização. (BAUMAN, 1998). Paradoxalmente, quanto mais persistem – num determinado lugar – as proteções “do berço ao túmulo”, hoje ameaçadas em toda parte pela sensação compartilhada de um perigo iminente, mais parecem atraentes as válvulas de escape xenófobas. Os poucos países (sobretudo escandinavos) que relutam em abandonar as proteções institucionais transmitidas pela modernidade sólida – e voltadas para o combater múltiplas pressões, reduzi-las ou eliminá-las de todo - vêem-se como fortalezas assediadas por forças inimigas. Eles consideram os resquícios de Estado social um privilégio que é preciso defender com unhas e dentes de invasores que pretendem saqueá-los. A xenofobia – a suspeita crescente de um complô estrangeiro e o sentimento de rancor pelos “estranhos” – pode ser entendida como um reflexo perverso da tentativa desesperada de salvar o que resta da solidariedade local. (BAUMAN, 2009, p. 20-21).

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A palavra “ordem”, segundo Bauman (1998, p. 15), significa “um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas em uma hierarquia estrita – de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis, alguns virtualmente impossíveis”.

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O “parasitismo social”, de acordo com Alexis Spire (2013), possui papel fundamental na adoção de medidas de exclusão, uma vez que, o “combate” aos imigrantes não se daria mais em virtude de concepções xenofóbicas (de suspeitas e aversão aos estrangeiros), e sim numa tentativa de salvaguardar o Estado social aos cidadãos autóctones. A luta contra os que estariam abusando dos sistemas de proteção social preenche uma função ideológica de “fornecer legitimidade simbólica a políticas de exclusão que de outra forma teriam de enfrentar a desaprovação de parte da população”, associando-se assim, “a manutenção da proteção social à rejeição aos estrangeiros”. Para o autor “por muito tempo, o objetivo de controlar a imigração ganhava sentido pela necessidade de proteger do mercado de trabalho nacional de uma concorrência estrangeira desleal”, ocorre que, atualmente “isso se conjuga a uma cruzada moral que se busca caçar o “assistencialismo” e transformar o imigrante no coveiro do Estado de bem-estar social”. Além do parasitismo social, há ainda outro fator que tem contribuído para a construção dos imigrantes como “sujeitos de risco” que é a relação destes com questões relativas ao terrorismo, que, diante do atual ambiente de guerra vivenciado pela sociedade mundial, especialmente após os atentados ocorridos desde setembro de 2001 em Nova York até os mais recentes ocorridos em Paris em novembro de 2015, convertem a imigração irregular em uma situação de guerra, merecendo os imigrantes o mesmo tratamento direcionado ao terrorismo mundial, fazendo com que, como bem refere Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth (2011, p. 185), “recaia sobre todo e qualquer imigrante uma “fundada suspeita” de uma “potencialidade terrorista”. Bauman (2005) refere que, após os atentados terroristas ocorridos em 11 de setembro em Nova York, os refugiados passaram a ser vistos como uma ameaça à segurança, ainda que nenhum dos sujeitos relacionados ao atentado tenham solicitado refúgio ou sido refugiados. Criou-se um medo coletivo à serviço da política de segurança, em que o novo medo dos terroristas foi misturado e cimentado com o ódio aos “parasitas”, sentimento bem entrincheirado, mas que precisa de constante alimento, matando dois coelhos com uma só cajadada e dotando a atual cruzada contra os “parasitas da previdência” de uma nova e invencível arma de intimidação de massa. Enquanto a incerteza econômica não é mais preocupação de um Estado que preferiria deixar para seus súditos individuais a busca individual de remédios individuais para a insegurança existencial individual, o novo tipo de temor coletivo oficialmente inspirado e

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estimulado foi colocado a serviço da fórmula política. As preocupações dos cidadãos com seu bem-estar foram removidas do traiçoeiro terreno da precarité promovida pelo mercado, no qual os governos dos Estados não têm capacidade nem vontade de pisar, e levadas para uma área mais segura e muito mais fotogênica, em que o poder aterrorizante e a resolução férrea dos governantes podem ser de fato apresentados à admiração pública (BAUMAN, 2004, p.71).

Outro exemplo dessa relação entre imigração e terrorismo é mencionada por Judith Butler (FERREIRA, 2015), ao evidenciar, logo após os atentados terroristas ocorridos em Paris, em novembro de 2015, discursos midiáticos e políticos de “guerra ao terrorismo” a partir da intensificação do estado de segurança e do combate aos imigrantes (considerados inimigos), isto, porque, um dos assassinos do referido atentado havia entrado no país pela Grécia. Assim, ao se tornarem frequentes fenômenos como esses, perde-se a normalidade do Estado e criam-se situações extraordinárias de guerra e inimigos. Essa situação remete ao discurso utilizado por Günther Jakobs (2010, p. 51), de que “‘guerra’ e ‘luta’ implicam a existência de um inimigo que é preciso combater” O inimigo, representado por aquele grupo que constitui perigo ao Estado, é transformado segundo Butler (2006, p. 107), em objeto de política do Estado, e, assim sendo, ao se julgar uma pessoa como perigosa, deixa de ser um problema decidir se esta cometeu ou não alguma ação criminosa. Si una persona o un grupo son considerados peligrosos, y no es necesario probar ningún acto peligroso para establecer la verdad de este hecho, entonces el Estado convierte a esa población detenida en peligrosa, privándola unilateralmente de la protección legal que le corresponde a cualquier persona sujeta a leyes nacionales e internacionales. Se trata ciertamente de personas no consideradas como sujetos, de seres humanos no conceptualizados dentro del marco de una cultura política en la que la vida humana goza de derechos legales y está asegurada por leyes –seres humanos que por lo tanto no son humanos–. (BUTLER, 2006, p. 108).

Com isso, não se reconhece o destinatário da norma como pessoa de direitos e passa a considerá-lo um inimigo do sistema que deve ser combatido, que tem negada sua condição como pessoa. Nesse sentido, é de suma importância destacar os apontamentos feitos por Günther Jakobs (2010, p. 31-36), que entende que deve haver uma diferenciação entre aqueles sujeitos considerados “cidadãos” e aqueles que seriam considerados “inimigos” do Estado, de modo que, deve haver dois tipos de direitos: um deles direcionado ao cidadão (ainda que esse tenha praticado ato ilícito 11

será punido como cidadão por ser reconhecido pelo Direito); e o outro, direcionado ao Direito Penal do inimigo (direcionado àqueles que tenham se comportado ou praticado ações que se afastam de forma decidida pelo Direito, razão pela qual, não podem ser tratados como pessoas, por não respeitarem e constituírem ameaça à ordem social, não merecem os benefícios dos direitos que esta ordem garante). Como refere o autor (2010, p. 40), “o Estado pode proceder de dois modos com os delinquentes: pode vêlos como pessoas que delinquem, pessoas que tenham cometido um erro, ou indivíduos que devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico, mediante coação”, portanto, “quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas”. Percebe-se, através do Direito Penal do inimigo, a ocorrência de uma alteração estrutural de orientação na política criminal de controle penal, caracterizada pela extrema expansão do direito penal, em que a política criminal, como menciona José Francisco Dias da Costa Lyra (2013, p. 236-237), passa a ser guiada pelo “eficientismo penal”, que acompanha o moderno direito penal, orientado pelo risco e o medo, constitui uma nova forma de direito penal da emergência, estendendo a guerra aos conflitos sociais e políticos, permitindo, portanto, que o conflito bélico permaneça em aberto nas sociedades, despregando-se da conflituosidade social de forma violenta. O direito penal é pervertido em uma “panaceia” para a cura de todos os males sociais, deslizando a um modelo totalitário de política criminal”.

A expansão do direito penal na atual evolução modernizante da política criminal nas últimas décadas, segundo Manuel Cancio Meliá (2010, p. 82-83), inverteu o processo havido nos movimentos de reforma despenalizantes, somando-se ao discurso monopolizado pelo movimento de criminalização “lei e ordem” utilizado pela direita conservadora, ao passo que, a esquerda que antes defendia políticas de descriminalização, agora, passou a inserir em suas políticas o Direito Penal e novas infrações por meio do discurso “law of order”. A alteração do modelo despenalizador e ressocializador pelo modelo de neutralização do criminoso (punitivismo) se estabelece na expansão/modernização do “Direito Penal do risco”, que surge como uma nova forma por excelência no 12

tratamento e combate à criminalidade. Nesse sentido, José Luis Díez Ripollés (2005, p. 3-10), evidencia um novo modelo de Direito Penal surgido na sociedade do risco3 através do “paradigma da segurança cidadã”, em que: Las vías de acceso del discurso de la seguridad ciudadana al discurso de la sociedad del riesgo vienen constituidas en su mayor parte por una serie de equiparaciones conceptuales que, basándose en la equivocidad de ciertos términos, tratan como realidades idénticas unas que presentan caracteres muy distintos e incluso contrapuestos. En resumidas cuentas, se da lugar a que el discurso de ley y orden parasite conceptos elaborados en otro contexto.

Este novo modelo penal (de modernização do direito penal) que deve atender aos cidadãos, tem de controlar a insegurança e os perigos advindos pela moderna sociedade de risco, respondendo às novas formas de criminalidade originada pelos socialmente marginalizados. (DÍEZ RIPOLLÉS, 2005). Nesse contexto de sociedade de riscos, surgiram fatores que caracterizam esse novo modelo penal da segurança cidadã, como bem refere Ana Isabel Pérez Cepeda (2007, p. 5-6), un creciente interés por aspectos micro-securitarios, en un espacio local que se reclama para si el ámbito de lo asistencial, de la solución de problemas, de la mediación, etc., pero al mismo tiempo se consagra también como espacio de las inseguridades de la pequeña delincuencia, del riesgo y de los miedos de los ciudadanos. Estos últimos, se basan en la represión férrea aplicada a ciertos espacios ciudadanos, la dura de las sanciones, uma cierta permisividad a rudeza policial y un eficientismo a toda prueba, fundado en principios de represión/reactividad.

Assim, criou-se, a partir da constatação de “inimigos” (não cidadãos), medos e inseguranças que passam a se tornar os principais condicionantes da política criminal moderna. O delinquente, tido como inimigo, passa a ser considerado uma fonte de perigo e de riscos. Destarte, associações à figura do imigrante, como a “potencialidade terrorista” e o “parasitismo social”, de acordo com Bauman (2009, p. 43), permitem o surgimento de um ambiente social fundamentado pela “mixofobia”, pelo medo de misturar-se, que se trata de uma 3

A “sociedade de risco” para Ulrich Beck (2010, p. 26) tem origem a partir da ruptura da modernidade com a sociedade industrial clássica, e se caracteriza na atual sociedade em que os riscos contemporâneos tidos como “riscos da modernização” (sociais, econômicos, políticos e industriais) se tornam cada vez maiores em decorrência dos avanços tecnológicos da globalidade.

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difusa e muito previsível reação à impressionante e exasperadora variedade de tipos humanos e de estilos de vida que se podem encontrar nas ruas das cidades contemporâneas e mesmo na mais ‘comum’ (ou seja, não protegida por espaços vedados) das zonas residenciais. Uma vez que a multiforme e plurilingüística cultura do ambiente urbano na era da globalização se impõe – e, ao que tudo indica, tende a aumentar –, as tensões derivadas da ‘estrangeiridade’ incômoda e desorientadora desse cenário acabarão, provavelmente, por favorecer as tendências segregacionistas.

Na tentativa de garantir a própria segurança, busca-se a convivência com os semelhantes e afastam-se os estrangeiros. Dessa forma, “quanto mais as pessoas se isolam nessas comunidades muradas feitas de homens e mulheres semelhantes a eles mesmos, menos são capazes de lidar com os estrangeiros” e por tal razão, cada vez mais, “têm medo deles”. (BAUMAN, 2013, p. 85). A par da mixofobia, como bem refere Bauman (2009, p. 86-87): Você convive com estrangeiros e tem preconceitos em relação a eles, uma vez que o lixo global é descarregado nas ruas onde você vive; e você já ouviu falar muitas vezes dos perigos derivados da underclass; e ouviu dizer também que a maioria dos imigrantes é parasita de seu welfare e até terroristas em potencial, e que cedo ou tarde acabarão por matá-lo.

Tal lógica do risco e do medo do delito, em que a mixofobia alimenta a desconfiança em face do “diferente”, tende a proliferar, segundo José Ángel Brandariz García (2010, p. 4-5) principalmente pela influência dos discursos midiáticos e políticos referente as políticas migratórias, em que se projeta aos imigrantes todo e qualquer anseio e perigo, bem como, a responsabilidade por quaisquer problemas decorrentes. Os discursos midiáticos que ligam o fenômeno migratório à delinquência e inseguranças acabam por se tornar nos grandes responsáveis pelos efeitos negativos nas políticas migratórias, uma vez que, formam uma opinião pública baseada no medo e insegurança, que irá acreditar que somente através de um recrudescimento punitivo se irá afastar a ameaça visualizada na figura dos imigrantes. (BRANDARIZ GARCÍA, 2010). A população, ciente da necessidade da intervenção do sistema punitivo para afastar a criminalidade associada à imigração, pugna reformas penais aos poderes públicos, logo, os imigrantes se tornam um alvo fácil “para a descarga das ansiedades provocadas pelos temores generalizados de redundância social”, motivo pelo qual são utilizados “para auxiliar os esforços governamentais dos Estados que pretendem reafirmar sua autoridade, reduzida e enfraquecida”. (BAUMAN, 2005, p. 81). 14

A maioria dos poderes públicos, segundo Bauman (2005, p. 82), não possui “capacidade nem disposição para se engajar na luta contra as forças criminosas que, com frequência demasiada, controlam recursos que nenhum governo, sozinho e muitas vezes em conjunto, pode igualar”, por tal razão, “os governos preferem dirigir a animosidade popular contra os pequenos crimes a se engajar em batalhas que com toda probabilidade prosseguirão por um tempo interminável e decerto consumirão recursos incalculáveis, mas que tendem virtualmente a serem perdidas”. Assim, procurar o Inimigo Número 1 entre os infelizes imigrantes dos banlieus e nos acampamentos para pessoas em busca de asilo é bem mais oportuno e conveniente, mas acima de tudo menos incômodo. Com maior efeito e menores custos, os bairros de imigrantes, repletos de potenciais gatunos e batedores de carteira, podem ser usados como campos de batalha na grande guerra pela lei e a ordem que os governos travam com muito vigor e publicidade ainda maior. (BAUMAN, 2005, p. 82).

Nesse sentido, Bauman (2005, p. 73) menciona que esse processo de criação do “inimigo” serve a interesses escusos de governos e Estados, pois “se não houvesse imigrantes batendo às portas, eles teriam de ser inventados, uma vez que “eles fornecem aos governos um outro desviante ideal, um alvo muito bem-vindo para “temas de campanha selecionados com esmero”. Assim, os poderes de Estado, que não podem fazer quase nada para aplacar a incerteza, muito menos para eliminá-la. O máximo que podem fazer é mudar seu foco para objetos alcançáveis. Tirá-la dos objetos em relação aos quais nada podem fazer e colocá-la sobre aqueles que pelo menos lhes propiciam uma demonstração de sua capacidade de manejo e controle. Refugiados, pessoas em busca de asilo, imigrantes – os produtos rejeitados da globalização – se encaixam perfeitamente nesse papel. (BAUMAN, 2005, p. 84).

Dessa forma, alguns Estados europeus, têm edificado, a partir dessas práticas discursivas midiáticas e governamentais voltadas à segurança nacional somadas à retórica do perigo, a adoção de novas políticas criminais no tratamento à imigração irregular. Essas novas medidas, que criminalizam os imigrantes, ultrapassam a simples proteção/controle das fronteiras ao afrontar os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, bem como os postulados nas declarações de proteção aos direitos humanos, como se analisará no tópico a seguir. 2. AS POLÍTICAS MIGRATÓRIAS NA UNIÃO EUROPEIA

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Conforme salientado no decorrer do presente trabalho, os instrumentos normativos adotados pela União Europeia para garantir a livre circulação no território de seus Estados-membros estão direcionados ao controle de suas fronteiras nacionais e ao “combate” à imigração irregular. Tal afirmação é possível a partir da análise a seguir de algumas características adotadas por países europeus. O tratamento legal da questão da imigração irregular pelos países europeus é analisado por Margarita Martínez Escamilla (2009, p. 5), ao sintetizar a “luta” contemporânea contra a imigração irregular na União Europeia em três principais objetivos, quais sejam: “el primero impidiendo que salgan y que se nos aproximen. El segundo, impidiendo que entren, que traspasen nuestras fronteras. Para el caso de que consigan entrar em nuestro territorio, el tercer objetivo sería echarles de él, forzarles a salir”. No que se refere ao primeiro objetivo do controle dos fluxos migratórios pela Europa, de “evitar a saída dos imigrantes de seus países de origem”, se refere à tarefa dos países de trânsito e de origem migratório com destino à Europa em conter a imigração, como uma função de guardas das fronteiras. Essa medida foi ratificada pelo Pacto Europeu sobre a Imigração e o Asilo4, em 2008, que dispõe diretrizes básicas para as políticas migratórias implementadas pelos Estados-membros na União Europeia. A partir de tal objetivo observa-se que o controle das fronteiras tem início muito antes do acesso aos países de destino, conforme menciona Ana María López Sala (2007, p. 102-103): En los últimos años ha sido habitual la firma de acuerdos bilaterales y multilaterales de cooperación en el control y la lucha contra la inmigración irregular. Puede afirmarse que hemos asistido a una creciente transnacionalización de esta política y al incremento de su peso en la agenda internacional. Estas iniciativas han tenido un doble alcance, incluyendo tanto acuerdos con otros Estados receptores como con países de trânsito y de origen. La cooperación han sido especialmente intensa en Europa. En contra de la «renacionalización» de las políticas, los acuerdos de Schengen y, posteriormente, de Ámsterdan y Tampere han alentado la colaboración interestatal em materia de justicia, seguridad y fronteras, de lo que da muestra la reciente creación de la Agencia europea de control de las

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Pacto Europeu sobre a Imigração e o Asilo. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016.

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Fronteras Exteriores, Frontex5. Estos objetivos se han concretado no sólo em modificaciones normativas, sino en la vigilancia y la financiación conjunta y la colaboración policial. [...] La intensificación de la inmigración irregular en embarcaciones hacia Malta, el surde Italia, Las Islas Pelágicas y Canarias ha llevado a la firma de nuevos acuerdos com Libia y a la vigilancia marítima com Marruecos y Mauritania. El Plan África, elaborado por el Ministerio de Asuntos Exteriores, incorpora por ejemplo entre sus objetivos prioritarios la firma de acuerdos de cooperación migratória y readmisión con diversos países de origen y trânsito en las rutas que se dirigen hacia el archipiélago canario. En este último caso, a las operaciones Guanarteme I y II y los proyetos «Atlantis» y «Sea Horse», de patrullaje marítimo conjunto con Mauritania y otros países africanos se unieron en los últimos meses de 2006 las operaciones Hera I y Hera II realizadas por Frontex y la recentemente iniciada Hera III, dirigidas a la identificación de los inmigrantes irregulares y al control marítimo y aéreo de las costas africanas.

Campanhas informativas com o objetivo de dissuadir a saída dos imigrantes, ainda, políticas de restrições de concessão de vistos, de refúgio e de agrupamento familiar têm se transformado em mecanismos de controle para além das próprias fronteiras. (LÓPEZ SALA, 2007). Atores não estatais, segundo López Sala (2007, p. 104), também têm incorporado ao controle das fronteiras como as companhias de transporte de passageiros, “las legislaciones de Europa y Norteamérica han tipificado la responsabilidad de la devolución a las compañías aéreas em caso de transportar personas sin la documentación necesaria para entrar en los países de destino, transformando de forma indirecta a sus empleados en funcionarios de frontera”. A estratégia de limitar o acesso, segundo a autora, pode ocorrer de diversas formas, inclusive através de medidas que dificultem a entrada de solicitantes de asilo. A impossibilidade de sair de seu país de origem por vias formais pode acarretar em consequências terríveis ao sujeito que tenta transpor fronteiras, como a sua detenção, o aumento do tráfico de pessoas. Ainda, como se tem registrado nos últimos anos, tal medida de externalização do controle de fronteiras acaba por resultar em milhares de mortes de imigrantes em acidentes marítimos ou terrestres. O endurecimento nas medidas de controle de fronteiras para López Sala (2007, 5

A Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos EstadosMembros da União Europeia (Frontex) criada pelo Regulamento (CE) nº 2007, em outubro de 2004, coordena a cooperação operacional entre os Estados-Membros da União Europeia no controle das fronteiras externas. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016.

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p. 96), “ha terminado por afectar seriamente al derecho a la vida. El blindaje fronterizo há producido importantes modificaciones en las rutas de entrada y un aumento del riesgo que debe asumirse para llegar al território de los países de destino o para mejorar las oportunidades de cruzar sin ser apresado”. No que tange à perda de vida dos imigrantes, atenta-se também para outra situação, em que os países que se comprometeram em acordos com a União Europeia a conter a imigração têm praticado imensas crueldades contra os migrantes irregulares, como bem refere Martínez Escamilla (2009, p. 6): este encargo a países tan poco respetuosos con los derechos humanos como, por ejemplo, Libia, Marruecos o Mauritania, se viene traduciendo en la reiterada vulneración de derechos humanos por parte de la policía de estos países, que se concreta en palizas, desvalijamientos e incluso homicidios y todo ello con el silencio cómplice de Europa, que gasta ingentes cantidades de dinero en militarizar las fronteras de estos países para evitar la inmigración pero se desentiende de cuestiones de un humanitarismo básico como facilitar el retorno de los inmigrantes interceptados quienes tienen que volver a sus lugares de origen enfrentando las mismas penalidades, peligros y abusos que sufrieron en su intento de llegar a Europa y ello ahora en un estado físico muy deteriorado y con importantes traumas psicológicos.

A ineficácia de tal método de controle resta comprovada diante do significativo aumento da criminalidade organizada no tráfico de pessoas frente a, cada vez maior, dificuldade encontrada ao se tentar sair de seu país de origem, aumentando a imigração irregular e os riscos assumidos pelos imigrantes, levando, segundo Martínez Escamilla (2009, p. 7), a “una relación directa entre incremento de las dificultades y número de muertes en el intento, lo que hace especialmente patente en la frontera sur de Europa, donde la intensificación del control supuso la búsqueda de travesías alternativas, más largas y más peligrosas”. O segundo objetivo das políticas migratórias europeias é “evitar a entrada dos imigrantes na Europa”. Com isso, objetiva-se impermeabilizar as fronteiras de forma a impedir o ingresso dos imigrantes, principalmente daqueles que possam tentar entrar de maneira irregular. Percebe-se que, atualmente, os controles migratórios de saída em países de origem e trânsito somados às restrições de entrada na Europa, praticamente impedem, de qualquer maneira, que o sujeito exerça seu direito de livre circulação. Nessa política afirmada, a Europa fecha suas fronteiras, selecionando quem entra em 18

seu território. Neste contexto, no que tange à seleção dos imigrantes, a gestão da imigração nos países europeus passa a se desenvolver de maneira inspirada fundamentalmente nos interesses econômicos dos Estados-membros, como bem refere Martínez Escamilla (2009, p. 5) ao analisar a situação da Espanha: se admite a quien consideramos que puede ser útil para nuestra economía, una economía que há pasado de prospera a maltrecha. La inmigración que desde esta perspectiva económica no podemos o no queremos asumir, se concibe como una amenaza, como una – por definición indeseada – invasión. A partir de esa percepción, la política migratoria se concentra en el rechazo, poniéndose al acento en control de fronteras y en la persecución y hostigamiento de quienes consiguen esquivarlas, en el refuerzo de los instrumentos jurídicos y de los medios materiales para afrontar lo que se há denominado ‘lucha’ contra la inmigración irregular.

Ainda em relação à regulação da imigração na União Europeia, a dimensão laboral do imigrante ganha especial relevância. Segundo Martínez Escamilla (2007, p. 22-23), “cuántos y qué inmigrantes estamos dispuestos a aceptar es algo a determinar en atención fundamentalmente a las necesidades de nuestro mercado laboral”. Nessa linha de gestão migratória fundamentada a partir de questões relativas aos interesses econômicos e à proteção ao mercado de trabalho, López Sala (2007, 101) refere que: Los Estados han puesto en práctica mecanismos que han promocionado las llegadas de aquellos flujos considerados beneficiosos según intereses económicos o de la política exterior. El ejemplo más ilustrativo lo constituye quizás el caso de los trabajadores de alta cualificación, en donde las reservas del passado han sido sustituidas por los incentivos, no sólo en Canadá y Estados Unidos, sino también más recentemente en Europa, como ponen de manifiesto las iniciativas británicas y Alemanha y los borradores de las nuevas directivas europeas en matéria de admisión de investigadores y talentos. Esta excepcionalidade migratória somete a esta categoria de inmigrantes a restricciones mucha más levianas en los procesos de entrada y establecimiento y las las fronteras pierden vigor como piezas del juego migratório.

É a partir dessa influência no cenário econômico e das necessidades do mercado de trabalho que se têm, então, regulado as políticas de controle imigratório na Espanha, distinguindo-se, de acordo com Javier de Lucas (2003, p. 47), os “bons” dos “maus” imigrantes: Así, distinguen entre buenos y malos inmigrantes, es decir, entre los que se ajustan a lo que nosotros entendemos como inmigrantes necesarios (adecuados a la coyuntura oficial del mercado formal de trabajo, asimilables culturalmente, dóciles) y los demás, que son rechazables, bien por

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delincuentes (cometen actos delictivos, comenzando por entrar clandestinamente en nuestro país lo que evoca connivencia con las mafias), bien por imposibles de aceptar (porque desbordan nuestros nichos laborales o son inasimilables): por una u otra razón, constituyen el ejército de reserva de la delincuencia y, rizando el rizo de la argumentación, generan racismo y xenofobia contra los inmigrantes buenos.

Dessa forma, segundo De Lucas (2013, p. 46-47), há um processo que “extranjeriza al inmigrante” decorrente da negação da possibilidade de que este seja um imigrante de verdade, isto é, “libre en su proyecto migratório –el que sea-, basado simplemente en la libertad de circulación”, decorrente ainda, da estigmatização feita ao imigrante ao considerá-lo como “diferente” (estrangeiro), apenas um “trabajador útil en nuestro mercado formal de trabajo aquí y ahora”. Por fim, no que tange ao terceiro objetivo das políticas de controle de fluxos migratórios - e também o mais frequente pelos países integrantes da União Europeia -, que é “forçar os imigrantes a saírem do território europeu”, acaba por fazer com que aquele imigrante que conseguiu transpor a fronteira seja forçado, através de inúmeras medidas, a retornar ao seu país de origem, muitas vezes, inclusive, em condições perigosas e insalubres. Para López Sala (2007, p. 105), la práctica de disuasión más extrema ha sido la interceptación de embarcaciones en aguas internacionales, medidas que han producido un gran rechazo entre las organizaciones civiles y de derechos humanos. [...] En el caso europeo la interceptación en alta mar se está conviertendo, paulatinamente, en una prolongación de la vigilancia marítima de la frontera sur y de la ejecución de los acuerdos de devolución. La externalización del control también há planteado la búsqueda de alternativas como la iniciativa española, en estos momentos en discusión, de creación de centros de menores en território de Marruecos. Esta medida tiene ciertas similitudes con el acuerdo alcanzado en 2005 entre el gobierno italiano y el líbio dirigido al establecimiento de centros de recepción para inmigrantes irregulares y solicitantes de asilo en territorio de este último país, una estrategia de externalización que se aleja del sistema tradicional de protección del refugiado basado en la responsabilidad individual de cada país de asilo.

A Europa, então, demonstradamente a partir de tais objetivos, passa a reconhecer a imigração como um problema, atuando na forma de controle e expulsão desses fluxos migratórios justificando tais medidas a partir da lógica da garantia de segurança aos seus cidadãos. Ainda, passa-se a criminalizar as imigrações irregulares justificando o endurecimento das medidas de controle impostas aos imigrantes pela potencial 20

ameaça que representam. Nesse sentido, a União Europeia adotou um ato legislativo, a Diretiva nº 2008/115/CE, que demonstra a utilização de medidas punitivas no tratamento ao controle da imigração irregular. A denominada “Diretiva de Regresso” nº 2008/115/CE6, aprovada pelo Parlamento Europeu em 16 de dezembro de 2008, ao propor um maior controle aos fluxos migratórios delimita as normas e os procedimentos utilizados para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, concedendo autonomia procedimental e poder discricionário aos Estados-membros para o regresso, voluntário ou involuntário, de nacionais de países terceiros do território da União Europeia. A respectiva Diretiva, em seu artigo 15, confere autorização aos Estadosmembros para realizar a prisão dos imigrantes durante o procedimento de expulsão por um período de até seis meses, podendo, ainda, tal privação de liberdade ser prolongada pelos Estados-membros por até doze meses a mais. O referido artigo dispõe: Art. 15. Detenção 1. A menos que no caso concreto possam ser aplicadas com eficácia outras medidas suficientes mas menos coercivas, os Estados-Membros só podem manter detidos nacionais de países terceiros objecto de procedimento de regresso, a fim de preparar o regresso e/ou efectuar o processo de afastamento... [...] 2. A detenção é ordenada por autoridades administrativas ou judiciais. [...] 5. A detenção mantém-se enquanto se verificarem as condições enunciadas no nº 1 e na medida do necessário para garantir a execução da operação de afastamento. Cada Estado-Membro fixa um prazo limitado de detenção, que não pode exceder os seis meses. 6. Os Estados-Membros não podem prorrogar o prazo a que se refere o nº 5, excepto por um prazo limitado que não exceda os doze meses seguintes, de acordo com a lei nacional, nos casos em que, independentemente de todos os esforços razoáveis que tenham envidado, se preveja que a operação de afastamento dure mais tempo, por força de: a) Falta de cooperação do nacional de país terceiro em causa; ou b) Atrasos na obtenção da documentação necessária junto de países terceiros.7

Ainda em relação à criminalização da imigração irregular, importa referir a 6

Diretiva nº 2008/115/CE, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados-membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016. 7 Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016.

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política criminal adotada pelo governo Italiano que desde o ano de 2002, com o advento da Lei nº 139, conhecida como “Lei Bossi-Fini”, passou a combater a todo custo à imigração irregular na Itália. A Lei nº 1258, de 25 de julho de 2008, introduziu um novo parágrafo (11-bis) no artigo 61 do Código Penal italiano, que agrava a presença irregular de estrangeiro no território do país, buscando qualificar a pena do delito por parte de um imigrante irregular ao dispor que: Art. 1º. Alterações do Código Penal 1. O Código Penal é alterado da seguinte forma: [...] f) no artigo 61, parágrafo primeiro, após o número 11 é adicionado o seguinte: 11-bis. Tendo o agressor cometido o ato enquanto permanecendo ilegalmente no território nacional.9 [tradução da autora].

A Lei nº 94, de 15 de julho de 2009, que dispõe sobre matéria de segurança pública, alterou o Decreto Legislativo nº 286, de 25 de julho de 1998, testo unico delle disposizioni concernenti la disciplina dell’immigrazione e norme sulla condizione dello straniero10, ao inserir o artigo 10-bis que dispõe sobre o ingresso e a permanência irregular no território italiano e constitui crime punível com pena de multa no valor de 5 mil a 10 mil euros, podendo até ser expulso do país o estrangeiro irregular ingresso em território italiano. Veja-se: Art. 1º. [...] 16. No texto único que dispõe acerca da disciplina da imigração e à condição de estrangeiro, referente ao Decreto Legislativo nº 286, de 25 de julho de 1998, são alterados da seguinte forma: a) após o artigo 10, é inserido o seguinte: Art. 10-bis. - (Entrada e permanência ilegal no Estado). - Salvo se o fato constituir infração penal mais grave, o estrangeiro que ingressa ou permanece no território do Estado, em violação das disposições do presente texto único, além das previstas no art. 1º da Lei nº 68 de 28 de maio de 2007, é punido com multa de 5.000 a 10.000 euros. Ao presente parágrafo não se aplica o art. 162 do Código Penal.11 [grifo e tradução da autora]. 8

Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016. 9 Lei nº 125/2008. Texto original: Art. 1. Modifiche al codice penale. 1. Al codice penal sono apportate le seguenti modificazioni: [...] f) all’articolo 61, primo comma, dopo il numero 11 e’ aggiunto il seguinte: «11-bis. I’avere il colpevole commesso il fato mentre si trova ilegalmente sul território nazionale.» Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016. 10 Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016. 11 Lei nº 94/2009. Texto original: Art. 1. [...] 16. Al testo unico delle disposizioni concernenti la disciplina dell'immigrazione e norme sulla condizione dello straniero, di cui al decreto legislativo 25 luglio 1998, n.

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A Lei nº 94/2009, também modificou o parágrafo 5-ter do artigo 14 do texto único sobre a imigração, para criminalizar a violação de uma ordem de expulsão permanecendo ilegalmente em território italiano: Art. 14. [...] 22. No citado texto único consolidado pelo Decreto Legislativo nº 286, de 25 de julho de 1998, são feitas as seguintes alterações: [...] m) no artigo 14, os parágrafos 5-bis, 5-ter, 5-quater e 5-quinquies são substituídos pelo seguinte: 5-bis. Se não for possível a detenção do estrangeiro em um centro de deportação e identificação, ou se ainda não houver condições deste ser escoltado até a fronteira para fins de expulsão ou repulsão, o Comissário notificará o estrangeiro a deixar o território do Estado no prazo de cinco dias. A ordem é dada por escrito, mencionando expressamente as consequências sancionatórias de sua permanência ilegal, inclusive a sua reincidência, no território do Estado. A notificação do Comissário pode ser acompanhada da entrega da documentação necessária para envio à sede da missão diplomática de seu país na Itália, além dos honorários devidos, bem como para se obter os seus dados de qualificação, quando isto não for possível a partir do seu Estado de origem. 5-ter. O estrangeiro que sem justificação permanecer ilegalmente no território italiano, em descumprimento à ordem dada pelo Comissário, nos termos do parágrafo 5-bis, será punido com pena de prisão de um a quatro anos, se a expulsão ou repulsão tiver sido efetivada após a entrada ilegal no país, com fundamento no art. 13, parágrafo 2º, alíneas “a” e “c”, ou por não ter solicitado autorização de permanência ou não ter declarado a sua presença no Estado, no prazo fixado, não havendo motivo de força maior, ou se a permissão foi revogada ou cancelada. Aplica-se a pena de prisão de seis meses a um ano se a expulsão foi ordenada porque a autorização de residência expirou há mais de sessenta dias e não houve solicitação de sua renovação, ou se o pedido de autorização de residência foi negado, ou se o estrangeiro está detido no Estado em violação ao art. 1º, parágrafo 3º, da Lei nº 68 de 28 de maio de 2007. Em qualquer caso, a menos que o estrangeiro esteja detido na prisão, haverá uma nova ordem de expulsão, com acompanhamento policial até a fronteira, em razão de violação à ordem de expulsão emitida pelo Comissário referida no parágrafo 5-bis. Se não for possível o acompanhamento policial até a fronteira, aplicar-se-á o disposto nos parágrafos 1 e 5-bis do presente artigo, bem como, as condições estão satisfeitas, aplicar-se-á o disposto no art. 13, parágrafo 3º. 5-quater. O estrangeiro destinatário da ordem de expulsão prevista no parágrafo 5-ter e de uma nova ordem de remoção estatuída conforme o parágrafo 5-bis, que continue a permanecer ilegalmente no Estado, será punido com pena de prisão de um a cinco anos. Aplica-se, em qualquer caso, o disposto no parágrafo 5-ter, terceiro e último período. 286, sono apportate le seguenti modificazioni: a) dopo l'articolo 10 è inserito il seguente: «Art. 10-bis. (Ingresso e soggiorno illegale nel territorio dello Stato). - Salvo che il fatto costituisca più grave reato, lo straniero che fa ingresso ovvero si trattiene nel territorio dello Stato, in violazione delle disposizioni del presente testo unico nonché di quelle di cui all’articolo 1 della legge 28 maggio 2007, n. 68, è punito con l’ammenda da 5.000 a 10.000 euro. Al reato di cui al presente comma non si applica l’articolo 162 del codice penale.» Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016.

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5-quinquies. Para os delitos previstos nos parágrafos 5-ter, primeiro período, e 5-quater, serão processados e julgados em rito de urgência, sendo obrigatória a detenção do autor do fato.12 [grifo e tradução da autora].

Percebe-se, desse modo, que o Estado italiano pune a mera situação pessoal do estrangeiro – considerado aquele cidadão de países de fora da União Europeia e os apátridas –, tratando dos imigrantes irregulares apenas como objetos de suas políticas. Nessa linha, atenta-se para a recente alteração aos chamados “delitos de solidariedade” na Espanha, em que se alterou o artigo 318 bis do Código Penal espanhol através da Lei Orgânica nº 113, de 30 de março de 2015, ao dispor que: Art. 318 bis. 1. Aquele que intencionalmente auxilie uma pessoa que não seja nacional de um Estado-membro da União Europeia a entrar ou a transitar em território espanhol de uma forma que viole a legislação sobre a entrada ou trânsito de estrangeiros, será punido com uma pena de multa de três a 12 meses ou pena de prisão de três meses a um ano. Os atos não serão

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Lei nº 94/2009. Texto original: Art. 14. [...] 22. Al citato testo unico di cui al decreto legislativo 25 luglio 1998, n. 286, sono apportate le seguenti modificazioni: [...] m) all'articolo 14, i commi 5-bis, 5-ter, 5quater e 5-quinquies sono sostituiti dai seguenti: «5-bis. Quando non sia stato possibile trattenere lo straniero presso un centro di identificazione ed espulsione, ovvero la permanenza in tale struttura non abbia consentito l'esecuzione con l'accompagnamento alla frontiera dell'espulsione o del respingimento, il questore ordina allo straniero di lasciare il territorio dello Stato entro il termine di cinque giorni. L'ordine è dato con provvedimento scritto, recante l'indicazione delle conseguenze sanzionatorie della permanenza illegale, anche reiterata, nel territorio dello Stato. L'ordine del questore può essere accompagnato dalla consegna all'interessato della documentazione necessaria per raggiungere gli uffici della rappresentanza diplomatica del suo Paese in Italia, anche se onoraria, nonchè per rientrare nello Stato di appartenenza ovvero, quando ciò non sia possibile, nello Stato di provenienza. 5-ter. Lo straniero che senza giustificato motivo permane illegalmente nel territorio dello Stato, in violazione dell'ordine impartito dal questore ai sensi del comma 5- bis, è punito con la reclusione da uno a quattro anni se l'espulsione o il respingimento sono stati disposti per ingresso illegale nel territorio nazionale ai sensi dell'articolo 13, comma 2, lettere a) e c), ovvero per non aver richiesto il permesso di soggiorno o non aver dichiarato la propria presenza nel territorio dello Stato nel termine prescritto in assenza di cause di forza maggiore, ovvero per essere stato il permesso revocato o annullato. Si applica la pena della reclusione da sei mesi ad un anno se l'espulsione è stata disposta perchè il permesso di soggiorno è scaduto da più di sessanta giorni e non ne è stato richiesto il rinnovo, ovvero se la richiesta del titolo di soggiorno è stata rifiutata, ovvero se lo straniero si è trattenuto nel territorio dello Stato in violazione dell'articolo 1, comma 3, della legge 28 maggio 2007, n. 68. In ogni caso, salvo che lo straniero si trovi in stato di detenzione in carcere, si procede all'adozione di un nuovo provvedimento di espulsione con accompagnamento alla frontiera a mezzo della forza pubblica per violazione all'ordine di allontanamento adottato dal questore ai sensi del comma 5-bis. Qualora non sia possibile procedere all'accompagnamento alla frontiera, si applicano le disposizioni di cui ai commi 1 e 5-bis del presente articolo nonchè, ricorrendone i presupposti, quelle di cui all'articolo 13, comma 3. 5-quater. Lo straniero destinatario del provvedimento di espulsione di cui al comma 5-ter e di un nuovo ordine di allontanamento di cui al comma 5-bis, che continua a permanere illegalmente nel territorio dello Stato, è punito con la reclusione da uno a cinque anni. Si applicano, in ogni caso, le disposizioni di cui al comma 5-ter, terzo e ultimo periodo. 5-quinquies. Per i reati previsti ai commi 5-ter, primo periodo, e 5-quater si procede con rito direttissimo ed è obbligatorio l'arresto dell'autore del fato.» Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016. 13 Lei Orgânica nº 1/2015. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016.

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punidos quando o objetivo perseguido pelo autor for unicamente prestar ajuda humanitária a pessoa em causa. Se os atos forem cometidos com fins lucrativos a pena deve ser imposta na sua metade superior.14 [grifo e tradução da autora].

Apesar de a referida alteração ter excluído da pena aquele que, supostamente, ajudasse o imigrante por motivação humanitária, ainda se observa a intenção de impedir que se auxilie/colabore na entrada de imigrantes em território espanhol sob pena de prisão. Há, ainda, a existência de outros tipos de penas voltados a atingir o imigrante, de forma a dificultar o seu projeto migratório, como por exemplo, a criminalização da atividade dos “manteros” (vendedores ambulantes de reproduções ilícitas, como CD’s e DVD’s, que expõem suas mercadorias sobre mantas nas ruas) na Espanha, que está relacionado com o objetivo de impedir a permanência do imigrante. A atividade de “mantero” resta como uma saída aos imigrantes, uma vez que, são proibidos de trabalhar e é proibido dar-lhes emprego. (MARTÍNEZ ESCAMILLA, 2009). Tal dificuldade colocada aos imigrantes encontra-se prevista no artigo 270 do Código Penal espanhol, também modificado pela Lei Orgânica nº 1/201515, que dispõe: Art. 270. Será punido com pena de prisão de seis meses a quatro anos e multa de doze a vinte e quatro meses quem, com ânimo lucrativo direto ou indireto e em prejuízo de terceiro, reproduza, plagie, distribua ou comunique publicamente, no todo ou em parte, uma obra literária, artística, ou sua transformação, interpretação ou execução artística fixada em qualquer tipo de suporte ou comunicada através de qualquer meio, sem a autorização dos titulares dos correspondentes direitos de propriedade intelectual ou seus cessionários.16 [grifo e tradução da autora].

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Lei Orgânica nº 1/2015. Texto original: Artículo 318 bis. «1. El que intencionadamente ayude a una persona que no sea nacional de un Estado miembro de la Unión Europea a entrar en territorio español o a transitar a través del mismo de un modo que vulnere la legislación sobre entrada o tránsito de extranjeros, será castigado con una pena de multa de tres a doce meses o prisión de tres meses a un año. Los hechos no serán punibles cuando el objetivo perseguido por el autor fuere únicamente prestar ayuda humanitaria a la persona de que se trate. Si los hechos se hubieran cometido con ánimo de lucro se impondrá la pena en su mitad superior.» Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016. 15 Lei Orgânica nº 1/2015. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016. 16 Lei Orgânica nº 1/2015. Texto original: Artículo 270. «1. Será castigado con la pena de prisión de seis meses a cuatro años y multa de doce a veinticuatro meses el que, con ánimo de obtener un beneficio económico directo o indirecto y en perjuicio de tercero, reproduzca, plagie, distribuya, comunique públicamente o de cualquier otro modo explote económicamente, en todo o en parte, una obra o prestación literaria, artística o científica, o su transformación, interpretación o ejecución artística fijada en cualquier tipo de soporte o comunicada a través de cualquier medio, sin la autorización de los titulares de los correspondientes derechos de propiedad intelectual o de sus cesionarios.» Disponível em: < http://boe.es/boe/dias/2015/03/31/pdfs/BOE-A-2015-3439.pdf >. Acesso em: 09 jan. 2016.

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Nota-se assim, mais um exemplo do quão disposta está a Europa na luta contra a imigração irregular, bem como a situação de exclusão na qual se encontra o imigrante irregular, como menciona Martínez Escamilla (2009, p. 14): en primer lugar por inmigrante y por irregular, pero también por pobre y por excluido social. O quizá hubiera que invertir los términos, pues en último extremo no es la extranjería sino la pobreza el hecho diferencial. En cualquier caso, es justamente el inmigrante irregular el ejemplo más evidente de exclusión del individuo operada por las normas: sin papeles, sin derechos, sin ni siquiera posibilidad de ganarse un sustento. Estando prohibido trabajar y castigado el dar empleo a un inmigrante irregular, a éste le resulta muy difícil encontrar un trabajo, si quiera eventual, y si lo obtiene suele ser en condiciones de explotación.

O imigrante excluído se vê encurralado pelo Direito Penal. Segundo Martínez Escamilla (2009, p. 15), “el Código penal, en cuanto castiga la distribución con ánimo de lucro de una obra artística sin el consentimiento del titular o cesionario de los derechos, está tipificando y castigando con penas de multa y prisión de seis meses a dos anos la conducta de los manteros”. O Direito Penal, nesse sentido, de acordo com Martínez Escamilla (2008), é chamado para a proteção da população europeia em “defesa” dos imigrantes irregulares e não na defesa dos direitos dos imigrantes/estrangeiros, acarretando na não observação dos direitos humanos desses sujeitos, como se analisará no tópico a seguir. 3. A NÃO OBSERVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TRATAMENTO DA IMIGRAÇÃO IRREGULAR NA EUROPA

Destacam-se, no presente tópico, controvérsias encontradas, sob o ponto de vista dos direitos humanos, entre as aspirações da União Europeia e o que realmente ocorre na prática em relação às políticas de proteção e integração dos imigrantes irregulares. O artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos no âmbito da União preconiza o direito de liberdade de locomoção a qualquer pessoa em qualquer país, ao dispor que: Art. 13. 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o

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próprio, e a este regressar. 17 [grifo da autora].

Esse direito, que assiste a todo ser humano, entretanto, não é algo juridicamente absoluto. Nessa linha, importa destacar as modificações introduzidas pelo Protocolo nº 4 na Convenção Europeia para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 16 de novembro de 1963, em que se reconhecem certos direitos e liberdades além dos que já figuram na Convenção e no Protocolo adicional à Convenção, que dispõe: ARTIGO 2° Liberdade de circulação 1. Qualquer pessoa que se encontra em situação regular em território de um Estado tem direito a nele circular livremente e a escolher livremente a sua residência. 2. Toda a pessoa é livre de deixar um país qualquer, incluindo o seu próprio. 3. O exercício destes direitos não pode ser objecto de outras restrições senão as que, previstas pela lei, constituem providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a manutenção da ordem pública, a prevenção de infracções penais, a protecção da saúde ou da moral ou a salvaguarda dos direitos e liberdades de terceiros. 4. Os direitos reconhecidos no parágrafo 1 podem igualmente, em certas zonas determinadas, ser objecto de restrições que, previstas pela lei, se justifiquem pelo interesse público numa sociedade democrática. 18 [grifo da autora].

Nesse sentido, cumpre referir ainda, no que tange à liberdade de locomoção, o acordo de Schengen19, integrado pela União Europeia por meio do Tratado de Amsterdam, em 1997, e modificado posteriormente pelo Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em 2009, que permite, segundo Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes (2009, p. 347), a “livre circulação de pessoas, restringindo os controles de imigração às fronteiras externas”, buscando com isso, acabar com o controle nas fronteiras internas entre os países do acordo e a transferência do controle para as fronteiras externas. Do exposto, nota-se que, apesar do artigo 13 da Declaração Universal dos 17

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016. 18 Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016. 19 O acordo assinado em Schengen (Luxemburgo), em 14 de junho de 1985, por cinco países da União Europeia deu início a uma cooperação destinada a eliminar as fronteiras internas. Os cinco países signatários do acordo de Schengen, acordaram em 1990 a possibilidade de adesão de outros Estadosmembros e hoje quase todos os países membros da União Europeia estão integrados no acordo de Schengen. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2016.

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Direitos Humanos garantir o direito à liberdade de locomoção a todos os seres humanos sem distinção, a partir do acordo de Schengen e da Convenção Europeia, a liberdade de circulação é válida apenas para os cidadãos europeus e para quem esteja legalmente dentro do espaço Schengen, excluindo-se esses direitos aos sujeitos que se encontram em situação irregular, demonstrando a indiferença das políticas estatais europeias ao ignorar os direitos estabelecidos na Declaração. Tal situação resta demonstrada ainda no artigo 1º do Protocolo nº 7 da Convenção Europeia, que garante salvaguardas adicionais exclusivamente para os imigrantes em situação regular, ao prever: ARTIGO 1° Garantias processuais em caso de expulsão de estrangeiros 1. Um estrangeiro que resida legalmente no território de um Estado não pode ser expulso, a não ser em cumprimento de uma decisão tomada em conformidade com a lei, e deve ter a possibilidade de: a) Fazer valer as razões que militam contra a sua expulsão; b) Fazer examinar o seu caso; e c) Fazer - se representar, para esse fim, perante a autoridade competente ou perante uma ou várias pessoas designadas por essa autoridade. 2. Um estrangeiro pode ser expulso antes do exercício dos direitos enumerados no n° 1, alíneas a), b) e c), deste artigo, quando essa expulsão seja necessária no interesse da ordem pública ou se funde em razões de segurança nacional.20

Ainda referente ao posicionamento da Convenção Europeia no que tange ao tratamento dado à imigração, o artigo 5º, que dispõe acerca do direito à liberdade e à segurança, permite a detenção de imigrantes irregulares em razão da mera pretensão de deportação pelo Estado, veja-se: ARTIGO 5° Direito à liberdade e à segurança 1. Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal: [...] f) Se se tratar de prisão ou detenção legal de uma pessoa para lhe impedir a entrada ilegal no território ou contra a qual está em curso um processo de expulsão ou de extradição.21 [grifo da autora].

Aos estrangeiros em situação regular é conferido um maior grau de autonomia em relação aos imigrantes em situação irregular, sendo garantido alguns direitos como 20

Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Disponível . Acesso em: 09 jan. 2016. 21 Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Disponível . Acesso em: 09 jan. 2016.

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a livre circulação dentro do espaço Schengen e, em regra, a detenção não se dá pelo simples processo de deportação (a detenção e deportação ocorrem quando em resposta à prática de um delito pelo imigrante). Já os imigrantes irregulares, tidos como “sujeitos de risco”, menos aceitos pela sociedade em geral, encontram-se em evidente situação de desvantagem, uma vez que, lhes são negados inúmeros direitos como o direito à liberdade. Nesse contexto, destaca-se a recente afirmação do ministro de migração da Holanda, Klaas Dijkhoff, segundo o jornal britânico The Guardian22, acerca da vontade dos governos da União Europeia em solicitar à Comissão Europeia autorização para ampliar e prolongar os controles nas fronteiras a partir de maio de 2016. A matéria do jornal destaca o atual cenário político europeu de pânico diante do aumento significativo da imigração desde o início de 2016, que tem ameaçado de dissolução o espaço Schengen. Os governos da União Europeia vêm pressionando/ameaçando países como a Grécia, que têm recebido grande número de refugiados e migrantes provenientes da Turquia, de expulsão do sistema Schengen caso não travem o fluxo migratório em seus territórios. No entanto, a porta-voz da comissão em matéria de imigração, Natasha Bertaud, afirmou que não há nenhum plano para excluir a Grécia da União Europeia, apesar de reconhecer uma missão da União Europeia realizada recentemente na Macedônia a fim de reforçar a fronteira do país vulnerável com o norte da Grécia, através do encaminhamento de policiais e oficiais de imigração para a Macedônia apesar de a agência de fronteira da União Europeia (Frontex) não possuir mandato para operar neste território. Nessa linha, atenta-se para a situação paradoxal no tratamento da matéria em que se é reconhecido o direito de emigrar, no entanto é negado o direito de imigrar, como bem refere Lopes (2009, p. 239): Está formado o paradoxo: apesar de haver um direito humano à emigração não existe um direito humano à imigração. Como pode existir o direito de sair de um país, sem o correspondente direito de entrar em outro país? Se podem sair de seu país, mas não podem entrar em outro país, para que espaço dirigir-se-ão as pessoas? Por que a redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, debatida por todo o mundo, foi promulgada com essa contradição? Por que a contradição persistiu no Pacto sobre Direitos Civis e Políticos? Muitos dos estudiosos que se dedicam ao tema das 22

TRAYNOR, Ian; SMITH, Helena. Refugee crisis: Schengen scheme on the brink after Amsterdam talks. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2016.

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migrações questionam sobre o porquê de não estar reconhecida a liberdade individual de “buscar em outra parte do planeta o bem-estar que não se encontra em casa”.

Reconhece-se o direito formal de sair de um país - considerado amplamente uma questão de direitos humanos. No entanto, ao se implementar políticas que restringem ou proíbem diretamente a entrada de imigrantes em seu território, está se negando a existência de um direito de entrar em outro país – considerado uma questão de soberania nacional. Há, atualmente, um claro conflito entre o exercício discricionário da soberania estatal e os direitos dos migrantes, de forma que a ação soberana individual de cada país, tão somente, tem resultado no fracasso das políticas migratórias em todos os sentidos que ferem a dignidade humana. Percebe-se a nítida tensão existente entre o controle e a proteção do imigrante, uma vez que as políticas de controle e a luta contra a imigração irregular têm ignorado valores e direitos humanos fundamentais como o direito à vida, causando efeitos indiretos de extrema afronta à salvaguarda dos direitos humanos fundamentais e na vulnerabilidade dos imigrantes como sujeitos de tais direitos. Como bem refere López Sala (2007, p. 107): Aunque existe consenso en la administración y en la opinión pública acerca de la necesidad de controlar los flujos internacionales de personas, las asociaciones de inmigrantes, las comunidades de origen extranjero, ciertas formaciones políticas y las asociaciones de defesa de los derechos humanos abogan por fórmulas que permitan canales legales de entrada, así como medidas especiales que posibiliten la llegada de familiares y refugiados a partir del supuesto de la preeminência de derechos fundamentales como la vida familiar o la protección del menor. El elemento de discusión descansa, em definitiva, en la creencia, por parte de sectores sociales, de que el refuerzo de las fronteras se está realizando a expensas de los derechos.

Ainda, no que tange à regulamentação de questões migratórias capazes de criar tipos criminais, como nos casos da Itália e Espanha anteriormente analisados, que legislaram conforme a orientação da Convenção Europeia de Direitos Humanos ao criminalizar a imigração irregular, não resta dúvidas de que tais medidas suscitam graves violações aos direitos humanos internacionalmente consagrados, por desconsiderar, entre outros direitos e garantias, a dignidade da pessoa humana, ao criar uma norma penal em que o imigrante deixa de ser punido por cometer qualquer tipo de infração e passa a ser punido pela condição pessoal de estrangeiro, ou seja, 30

pelo simples fato de “ser” imigrante irregular. O tratamento penal direcionado à imigração irregular pelos países europeus, segundo Massimo Donini (2009, p. 187-188), apresenta “una política de la exclusión, penalmente armada”, em que se evidencia o abandono do modelo de Direito Penal do fato e a adoção, cada vez maior, de um modelo de Direito Penal da exclusão, em que se objetiva a adoção de medidas penais orientadas para o “combate” da imigração irregular, para a exclusão dos imigrantes e não a utilização das medidas penais para a ressocialização daqueles que delinquem, o que identifica, por sua vez, um modelo de Direito Penal do inimigo, que objetiva tão somente a inocuização do sujeito, que “convierte a los adversarios en “no personas” destinadas a ser neutralizadas o excluidas sin culpabilidad, o en todo caso sin una “culpa” correspondiente a la sanción que es aplicada, transformando la respuesta penal en la más típica de un derecho penal de autor”. A finalidade de tornar eficaz o controle dos fluxos migratórios em alguns países europeus têm levado então, a adoção dessas políticas criminais que tem orientado as medidas punitivas ao “combate” à imigração irregular, consistido no surgimento de novas formas de Direito Penal de autor mascaradas dentro dos regulamentos do Direito Penal do fato, em que “la razón de ser de la punición (o de una respuesta sancionatoria agravada) no consiste en el hecho cometido, sino en el tipo de autor”, isto pois, “falta el hecho que es sustituido por un sujeto “antijurídico”, o porque el ‘hecho’ existe pero es sintoma de un juicio sobre el autor: es verdad que no se quiere la comisión del ‘hecho’, pero porque en realidad es su autor quien resulta indeseable”. (DONINI, 2009, p. 192). Essa identificação de determinados grupos de infratores como “inimigos”, fonte de perigo, atribuindo-lhes uma perversidade que criminaliza uma determinada forma de “ser” do autor, no caso em comento a condição de “ser imigrante irregular”, consiste em um Direito Penal de autor e não do fato. Este modelo de Direito Penal de autor representa um retrocesso inadmissível, uma vez que, tal modelo de Direito Penal não respeita a dignidade da pessoa humana, bem como não reconhece os direitos humanos fundamentais. De todo o exposto, há que se questionar as atuais objeções defendidas pelos Estados-membros europeus à admissão de imigrantes dentro da lógica dos direitos 31

humanos, de forma que, através da divulgação e da reflexão, se possa debater os caminhos necessários para uma política uniforme na qual se consiga garantir a real e efetiva proteção dos direitos e das garantias fundamentais do sujeito imigrante - cada vez mais ameaçado, excluído e desumanizado.

Considerações finais

Visando ao controle das fronteiras, países da União Europeia assumem, na contemporaneidade, a institucionalização de políticas de imigração demasiadamente repressivas que objetivam a exclusão e expulsão daqueles imigrantes que ultrapassam fronteiras de forma irregular. A imigração irregular percebida como uma ameaça fundamentada a partir da construção de novos riscos transforma o medo na base de políticas de controle e exclusão. Tal demanda por mais segurança diante da crescente sensação de medo e pavor consequentes da visão “terrorista” e “parasita” direcionada ao sujeito imigrante, altera o foco dos Estados-membros que passam a criminalizar a imigração irregular, de forma que, o imigrante deixa de ser punido por cometer qualquer tipo de infração e passa a ser punido pela condição pessoal de estrangeiro, ou seja, pelo simples fato de “ser” imigrante irregular. Este processo de criminalização não identifica o fato cometido e sim um determinado “tipo de autor” que comete o fato, através de uma rotulação do sujeito criminoso, o que aumenta imensamente o grau de culpabilidade daquele considerado infrator, reforçando a necessidade e a justificação de medidas de proteção que garantam a segurança pública diante da ameaça personificada pelo sujeito estereotipado. Esse processo é, cada vez mais visível nas políticas migratórias dos países europeus. Ao se criminalizar a imigração irregular, países da União Europeia abandonaram os postulados nos direitos humanos consagrados internacionalmente, ignorando valores fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à dignidade humana, à igualdade, à solidariedade, entre tantos outros, ignorando princípios democráticos e humanistas do Direito Internacional Europeu, bem como os Tratados constitutivos da União Europeia. 32

Há, atualmente, um claro conflito entre o exercício discricionário da soberania estatal europeia e os direitos dos migrantes. A ação soberana individual de cada país, tão somente, tem resultado no fracasso das políticas migratórias europeias, devido ao surgimento de cada vez mais condições oportunas para a ação delitiva das redes de tráfico de pessoas e demais violações de direitos humanos que são efeitos contrários aos resultados esperados pela gestão internacional das migrações. Dentro deste contexto de controle e combate à imigração, em que se passa a criminalizar em termos hegemônicos a imigração irregular, favorece-se a vulnerabilidade conferida aos imigrantes e potencializa-se a ação de outros grupos delitivos, acarretando em imensas desigualdades e diferenças que levam à estratificação social. Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ________. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ________. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. ________. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010. BUTLER, Judith. Vida pracaria: el poder del duelo y la violência. Buenos Aires: Paidós, 2006. BRANDARIZ GARCÍA, José Ángel. La construcción de los migrantes como categoría de riesgo: fundamento, funcionalidad y consecuencias para el sistema penal español. 2010. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2016. DE LUCAS, Javier. Inmigración y globalización: acerca de los presupuestos de una política de inmigración. In: Revista Electrónica del Departamento de Derecho de la Universidad de La Rioja. Nº 1, 2003. Disponível em: Acesso em: 09 jan. 2016. DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. De la sociedad del riesgo a la seguridad ciudadana: un debate 33

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ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOS: A SAÚDE MENTAL COMO CAMPO E SUA (IM)POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO ATRAVÉS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Diúlia Marceli Binelo1

INTRODUÇÃO O paradigma manicomial tem orientado, hegemonicamente, as práticas nos hospitais psiquiátricos no país. Esse modelo funda-se na disciplina e na anátomopolítica² do corpo. Ao tempo de seu surgimento, o manicômio tinha como objetivo separar as camadas indesejáveis do restante da população. Esse isolamento e segregação contribuía, em verdade, para a difusão da concepção de que o doente mental consistia em ameaça e perigo à sociedade. O presente texto tem por escopo verificar a eficácia das mudanças na área da saúde mental estimuladas pelas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos relacionadas ao assunto. Assim, procura-se investigar inicialmente a estruturação do manicômio e de seu sistema de apoio conceitual, centrado fundamentalmente no controle político do corpo. Em seguida, constata-se a relação estreita entre a concepção do funcionamento do manicômio e dos campos de concentração. Manicômio e campo identificam-se, nesse contexto, como ilhas de exceção jurídica. O encontro entre manicômio e campo ocorre em diversos sentidos: o tratamento cruel aos internos, a desqualificação da vida e da morte, a fabricação de cadáveres, a produção do “muçulmano” e a interdição da comunicação. A partir da análise de julgados, verifica-se a tentativa de desconstrução do paradigma manicomial, no sentido da produção da saúde mental humanizada, empreendida pela Corte. Os casos de Sebastian Furlán, Victor Rosário Congo e Ximenes Lopes demonstram as determinações da Corte para que os países se adéquem aos padrões jurídicos interamericanos no tratamento aos portadores de transtornos mentais, pautados pela dignidade da pessoa humana. Ao final, investiga-se se se essas determinações têm gerado mudanças reais e tangíveis no que se relaciona à superação 1

Mestranda do curso de Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). E-mail: [email protected]

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do modelo anterior ou se há, ainda, uma perpetração do campo-manicômio.

1 A SAÚDE MENTAL COMO CAMPO: A VIDA NUA COMO NORMA 1.1 O paradigma manicomial como instrumento de controle político sobre o corpo Quando falamos em manicômio no Brasil, remetemo-nos a uma gama de conceitos históricos bastante antiga e que por muito tempo orientou a relação entre sociedade e doente mental, agregada sob o título de “paradigma manicomial”. O conjunto de conhecimentos que opera a legitimação do paradigma manicomial é motivado, segundo Foucault (1999), pelo controle social. Inicialmente, o objetivo do hospital consistia (não deixou de ser até o momento, como veremos) em segregar as camadas marginalizadas da população. Por meio da assistência caritativa, os líderes religiosos acolhiam nos hospitais os rejeitados: os indigentes, os doentes e os miseráveis (AMARANTE, 2011). O intuito assistencialista, então, passou a ser superado pela utilidade científica motivada pelo descobrimento do indivíduo, inscrita dentro de uma concepção voltada à docilidade dos corpos. A mudança de concepção política de mundo, ocorrida na Modernidade e orientada à individualização, não deixa de ser fabricada pelos mecanismos disciplinares. Nos hospitais, em nome da disciplina, o sujeito passa a ser vigiado pelo exame de forma contínua, operando uma inversão na hierarquia do poder, agora dominada pelo médico. O exame, como instrumento de afirmação do poder e constituição de saber, combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de saber e das de poder assumem no exame todo o seu brilho visível (FOUCAULT, 1999, p. 154).

A ciência positivista volta-se ao estudo biológico do indivíduo, o então “alienado”. O “alienismo” pretendia, por meio do isolamento do doente, alcançar um tratamento moral como imperativo terapêutico. Junto a este viés, a segregação 38

reforçava a ideia de que o doente representava uma ameaça, o que alimentava a estigmatização. Para Emil Kraepelin (apud Amarante, 2011, p. 31), esse aspecto violento da internação se justificava em razão de que “todo alienado constitui de algum modo um perigo para seus próximos, porém em especial para si mesmo.” A disciplina presente no hospital, associada ao panoptismo, responde a um triplo objetivo: diminuir ao máximo o custo do exercício do poder (economicamente e politicamente, esta última pela discrição e invisibilidade); maximizar e estender o quanto possível os efeitos desse poder social e, ao final, conectar o crescimento econômico do poder com o rendimento dentro dos aparelhos nos quais este se exerce, ou seja, ampliar a docilidade e a utilidade dos elementos sociais (FOUCAULT, 1999). Para João Paulo Ayub (2015, p. 65), o poder que exerce a disciplina sobre o corpo do indivíduo é parte do aparato de instrumentos de gestão da vida. Esse poder, refere-se aos mecanismos – dentre os quais a vigilância ininterrupta individualização dos sujeitos a um nível capilar – com os quais o poder domestica corpos e mentes, ao mesmo tempo em que produz um saber que intensifica o controle sobre os indivíduos. A domesticação dos corpos se realiza através de um exercício disciplinado, repetitivo, controlado. A domesticação da mente, por sua vez, depende de um processo no qual o sujeito disciplinado absorve (naturaliza) o controle, a vigilância e os saberes responsáveis pela sua inscrição num estado de constante submissão. Esse processo de introjeção é o que torna possível o controle moral dos sujeitos. Tal controle implica um condicionamento da relação consigo mesmo – base do processo de autoidentificação – referido a um corpus de saber normalizador. Saberes que vão dizer quem esse sujeito é e o lugar que ocupa dentro de um conjunto de tipos classificáveis em torno da normal social.

Uma instituição total, como o hospital, por meio do controle absoluto do indivíduo, opera a “mortificação do eu”, conforme o entendimento de Goffman (1974, p. 44). Para tanto, nesses espaços, há a presença de uma rede de autoridade escalonada, no sentido de que “qualquer pessoa da classe dirigente tem alguns direitos para impor disciplina a qualquer pessoa da classe de internados.” Além disso, esse poder dirige-se para inúmeros itens de conduta (como vestimenta, postura, entre outros) os quais ocorrem simultaneamente, e são, dessa forma, julgados constantemente. Portanto, considerando-se a autoridade escalonada e os regulamentos difusos, novos e rigorosamente impostos, podemos esperar que os internados, sobretudo os novos, vivam com angústia crônica quanto à desobediência às regras e suas consequências – maus-tratos físicos ou morte em um campo de concentração, (…) remoção para uma sala pior num hospital para doentes

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mentais. (GOFFMAN, 1974, p. 45)

O poder disciplinar, em verdade, é um dos eixos de articulação do desenvolvimento da tecnologia política da vida. De um lado, temos o surgimento, por influência da burguesia, das disciplinas que compõem a anátomo-política do corpo humano, orientadas aos corpos e o que eles fazem ou ao adestramento do corpo. Mais tarde, vê-se a construção do eixo da biopolítica da população, constituída de uma série de controles reguladores e intervenções centradas no corpo-espécie. Por essa razão, “a velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e gestão calculista da vida.” (FOUCAULT, 2012, p. 152). O hospital e o trato social aos doentes mentais acompanham e modificam-se de acordo com esses processos que transpassam a sociedade. A medicina, nesse sentido, ao passar da esfera privada para a esfera pública, é envolvida tanto pelo poder disciplinar quanto pela biopolítica. Em razão do interesse capitalista na força de trabalho, o Estado passa a interessar-se pelo modo como as pessoas adoecem, tratam-se e morrem. De acordo com Ayub (2015, p. 73), “o domínio em que se inscrevem as práticas médicas, mais propriamente o domínio representado pela medicina social, cobre todo o campo que se estende do orgânico ao biológico, ou seja, é capaz de intervir tanto no corpo dos indivíduos, realidade orgânica, quanto no corpo da população, dimensão biológica (…).” A institucionalização e a normalização do doente, de fato, operam uma dominação absoluta do sujeito. A disciplina, o controle e a segregação demonstram ser os principais escopos do tratamento hospitalar. Consequentemente, o paciente perde a condição de pessoa e a própria autonomia, passando a viver em um ambiente doentio, portanto incapaz de promover saúde ou bem-estar. 1.2 Os hospitais psiquiátricos: a produção da vida nua O paradigma manicomial no Brasil é marcado pela submissão do paciente a um triplo sofrimento: o doente psíquico sofre pela própria dor e angústia de sua doença, pelo tratamento discriminatório ou indiferente da sociedade e, ainda, pela crueldade

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do sistema hospitalar, concentrado na segregação e humilhação do paciente. Definitivamente, o manicômio caracteriza-se pela negação da cidadania, a qual se expressa pelas situações mais simples, como não poder abrir uma janela, bem como por violações de direitos humanos gravíssimas, como tortura, espancamento, eletrochoques, lobotomias e inúmeras mortes. O relato de Heloisa, ex-paciente do Hospital Psiquiátrico São Pedro, onde permaneceu por 20 anos, e que agora adquiriu sua casa própria, é elucidativo: “Quando cheguei a minha casa a primeira coisa que fiz foi abrir a janela do meu quarto. No hospital não tem janelas pra gente abrir.” Rabelo, portador de transtorno mental, lembra que “a internação desqualifica você como ser humano, nos tiram coisas básicas como olhar no espelho, vestir uma roupa que não seja coletiva. É como se doido não fosse cidadão” (AGÊNCIA... , 2011). O holocausto nazista exerceu uma influência bastante significativa sobre a atenção aos manicômios. De acordo com Paulo Amarante (2011, p. 40), as duas grandes Guerras Mundiais fizeram com que a sociedade passasse a refletir sobre a natureza humana, tanto sobre a crueldade quanto sobre a solidariedade existentes entre os homens e foram criando assim condições de possibilidade histórica para outro período das transformações psiquiátricas. Após a Segunda Guerra, a sociedade dirigiu seus olhares para os hospícios e descobriu que as condições de vida oferecidas aos pacientes psiquiátricos ali internados em nada se diferenciava daquelas dos campos de concentração: o que se podia constatar era a absoluta ausência de dignidade humana!

O vocábulo “holocausto” carrega consigo uma bagagem histórica enorme e por isso não deve ser difundido, sob pena de banalizar-se. Contudo, o uso do termo “holocausto brasileiro” em relação ao período pré-reforma manicomial no país é preciso. Somente em um hospital psiquiátrico do país, ao menos 60 mil pessoas perderam suas vidas. Este hospital, objeto do estudo de Daniela Arbex (2013) cujo título cunhou a expressão acima, foi conhecido como Colônia, o maior hospício do Brasil. Para chegar à instituição, homens e mulheres eram colocados à força, na sua maioria, dentro de um trem que os desembarcava em Barbacena, Minas Gerais. Os pacientes eram empilhados nos vagões de carga à semelhança dos judeus quando levados ao campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial (ARBEX, 2013). Contudo, as semelhanças entre os campos de concentração e os manicômios 41

brasileiros não se esgotam aí. Ao chegar ao manicômio de Barbacena, o paciente era despido da titularidade de direitos em qualquer esfera e adentrava uma ilha de exceção jurídica. O estado de exceção, enquanto situação de conflito extremo, implica a suspensão da própria ordem jurídica. (AGAMBEN, 2007) O tratamento cruel do cotidiano, na instituição, operava a objetificação do sujeito, que não possuía mais a condição de homem e por isso prescindia de qualquer direito humano, muitas vezes inclusive do direito à vida. Em Agamben (2010, p. 135), a concepção de vida nua designa um conceito central. Como elemento político originário, ela consiste, especificamente, na vida exposta à morte, sem qualquer sanção ou insacrificável. A desvinculação do corpo humano de seu estatuto político faz com que a morte não seja considerada um homicídio. Essa vida é considerada, de fato, uma vida sem valor ou indigna de ser vivida. Atualmente, “é como se toda valorização e toda “politização” da vida (...) implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, é então somente “vida sacra”, e, como tal, pode ser impunemente eliminada.” O campo de Auschwitz, do mesmo modo, consistiu no espaço em que situação extrema identificava-se com o parâmetro do cotidiano e em que o estado de exceção coincidia com a regra (AGAMBEN, 2008). Por essa razão, Agamben (2015, p. 42) entende que “o campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a se tornar regra.” A situação-limite ou situação de emergência torna-se, na modernidade, a forma de legitimação do poder político. O poder político, em verdade, funda-se em uma separação entre a forma de vida qualificada e a vida nua, entre natureza e cultura, zoé e bios. A vida nua, puramente biológica, sem nenhuma mediação, faz do campo o espaço biopolítico por excelência. A vida nua, como forma de vida dominante no campo, alcançou sua expressão mais radical em Auschwitz pela existência do homem “muçulmano”. O hospital psiquiátrico, ao criar um ambiente com condições sanitárias, nutricionais, habitacionais e morais sub-humanas, reproduziu, de certa forma, a invenção do “muçulmano”. Para ilustração, remetemo-nos ao relato de uma candidata à funcionária do hospital Colônia. Ela lembra que, logo ao entrar, avistou seres esquálidos juntos a montes de capim espalhados pelo assoalho. Duzentos e oitenta homens (misturados a alguns 42

cadáveres), a maioria nus, rastejavam pelo chão em meio à sordidez do esgoto aberto que percorria o pavilhão. A apatia e o enfraquecimento dos pacientes não condizia, em sua opinião, com a fama de loucos perigosos que possuíam. Outra moradora da cidade recorda que, quando criança, via diariamente os pacientes passando na porta de sua casa em direção ao cemitério, em silêncio, de cabeça raspada e de pés descalços. Para ela, aqueles seres sujos e macilentos não provocam medo em ninguém, nem na menina que, na época, os assistia (ARBEX, 2013). A descrição dos pacientes que povoavam o chão do pavilhão, que cruzavam a rua do hospital, não deixa de nos remeter aos deportados de Auschwitz conhecidos como “muçulmanos”, cadáveres ambulantes ou mortos-vivos. Esses presos padeciam de um estágio de subnutrição extremamente avançado. Por essa razão, tinham a aparência esquelética, postura prostrada (daí, dizem alguns, a origem do termo), moviam-se lentamente e não expressavam qualquer tipo de emoção ou vínculo com o mundo exterior. Sofriam de uma apatia gravíssima. Encontravam-se entre um estado de homem e de não-homem, no limiar entre a vida e a morte. O “muçulmano”, precisamente, era o “nervo do campo”, o qual delimitava a passagem do prisioneiro útil ao trabalho ao deportado adequado ao extermínio, e aquele que, consequentemente, todos evitavam ver, pois temiam assemelharem-se a ele (AGAMBEN, 2008, p. 59). Goffman (1974, p. 59) descreve a existência, em situações-limite, de uma tática de “afastamento”, a fim de evitar a degradação do ego e enfrentar a tensão entre o mundo da instituição e o mundo real. A abstenção total de interação era nomeada como “regressão” em doentes mentais e “despersonalização aguda” em deportados nos campos. Judith Butler (2006, p. 60) analisa a existência de indivíduos cuja perda não causa dor ou luto e vulnerabilidade se estende ao máximo pela violência naturalizada em relação a seus corpos: Son vidas para las que no cabe ningún duelo porque ya estaban perdidas para siempre o porque más bien nunca "fueron", y deben ser eliminadas desde el momento en que parecen vivir obstinadamente en ese estado moribundo. La violencia se renueva frente al carácter aparentemente inagotable de su objeto. La desrealización del "Otro" quiere decir que no está ni vivo ni muerto, sino en una interminable condición de espectro.(...)

A degradação da vida era trivial no hospício de Barbacena. Os eletrochoques eram utilizados de forma indiscriminada, levando muitos à morte. Durante um teste para a contratação de funcionárias, uma candidata lembra que, após iniciar o 43

procedimento em um jovem ao aplicar duas descargas elétricas, este sofreu uma parada cardíaca, morrendo ali mesmo. De acordo com a testemunha, imediatamente os funcionários enrolaram o jovem em um lençol, na forma de um pacote, e o colocaram no chão, como se aquele não fosse realmente um cadáver (ARBEX, 2013). Destaca-se o espanto da testemunha não somente em relação ao descaso com a vida ali perdida, mas principalmente com o tratamento em relação à própria morte. Agamben (2008) revela que, em Auschwitz, onde a morte não poderia mais ser chamada de morte (porque era tão trivial e cotidiana), a SS referia-se aos cadáveres como Figuren (figuras), negando a própria condição de cadáver ao corpo sem vida. Assim era a rotina em muitos manicômios. A maioria dos cadáveres sequer era reclamada. A maior parte era enterrada em uma vala comum, sem cerimônia. (ARBEX, 2013) Butler (2006, p. 61) enfatiza que as vidas que não merecem dor nem luto, são marcadas, então, pela falta de sentido de reconhecimento da morte. Assim, “(...) porque si el fin de una vida no produce dolor no se trata de una vida, no califica como vida y no tiene ningún valor. Constituye ya lo que no merece sepultura, si no lo insepultable mismo.” A partir da morte em massa, inaugurada no século XIX, viu-se surgir guerras nunca antes tão sangrentas, inclusive holocaustos e genocídios praticados por Estados contra seus próprios nacionais. Isso demonstrou a passagem do poder soberano de causar a morte ou deixar viver para um poder de causar a vida ou devolver à morte. O então surgido biopoder extingue, de certa forma, o cerimonial em torno do fim da existência material. Por essa razão, Foucault (2012, p. 150) entende que talvez seja assim que se explique essa desqualificação da morte, marcada pelo desuso dos rituais que a acompanhavam. A preocupação que se tem em esquivar a morte está menos ligada a uma nova angústia, que, por acaso, a torne insuportável para nossas sociedades, do que ao fato de os procedimentos do poder não cansarem de se afastar dela.

Nesse sentido, a negação da própria condição de morte é uma das funções únicas desempenhadas pelo campo. Para alguns, a ofensa específica de Auschwitz consistiria na degradação da morte. Para Péguy (apud AGAMBEN 2008, p. 79): “o mundo moderno consegue envilecer aquilo que talvez seja mais difícil de envilecer no mundo, porque é algo que traz em si, como na sua textura, um tipo especial de dignidade, como se fosse uma incapacidade singular para ser envilecido: ele envilece a 44

morte”. De fato, O campo seria o lugar em que é impossível fazer experiência da morte como possibilidade mais própria e insuperável, como possibilidade do impossível. Ou seja, o lugar em que não acontece apropriação do impróprio e o domínio fático do inautêntico não conhece nem inversões nem exceções. Por isso, nos campos, (…) o ser da morte está interditável e os homens não morrem, mas são produzidos como cadáveres (AGAMBEN, 2008, p. 81).

A fabricação de cadáveres é um dos horrores produzidos por Auschwitz, pois igualou a morte a uma linha de produção (AGAMBEN, 2008). Nesse sentido, o Colônia reproduziu fielmente esse papel. A rotina do hospital era programada ao extermínio. A comida era extremamente escassa e a água provinha do esgoto. Os pacientes eram colocados no pátio às 5 horas da manhã, independentemente do frio atroz que fazia na região serrana. Muitos deles, inclusive nus, para aguentar o frio, faziam uma roda para aquecer os que se encontravam no centro dela, fazendo um revezamento. Muitos não resistiam até o amanhecer. Calcula-se que, em momentos de maior lotação, 16 pessoas morriam por dia no hospício. Isso acabou gerando uma indústria de defuntos, sendo que mais de 1.853 cadáveres foram vendidos a faculdades de medicina de 1969 a 1980 (ARBEX, 2013). É oportuno destacar a falta de critério médico para a internação no hospital. Aproximadamente 70% dos pacientes não tinham diagnóstico de doença mental. Havia epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, pessoas que haviam se rebelado ou que simplesmente se tornaram incômodas. Ali encontravam-se, ainda, empregadas grávidas violadas por seus patrões e homens e mulheres que haviam perdido seus documentos. Segundo os registros, havia pessoas internadas por tristeza e timidez, o que suscita o questionamento sobre a própria definição de doença mental (ARBEX, 2013). A doença mental, para além do viés médico-científico, possui uma esfera de valores e significados profundamente enraizada na questão intrínseca à existência humana. Essa dimensão subjetiva é retratada com frequência, no cinema, a partir do viés da separação tênue e, não raro, de difícil sustentação, entre a definição de loucura e a definição de normalidade. Em “El ángel exterminador” (1962), Luis Buñuel cria uma situação peculiar: um grupo de burgueses não consegue deixar um salão após um jantar sem nenhuma explicação racional. Então, presos no local, sob a lente 45

microscópica, os convidados começam a revelar comportamentos contraditórios da aparente civilidade. Traços ocultos de perversidade e loucura tornam-se visíveis. Com o passar dos dias em confinamento, o grupo encontra-se em uma situação-limite. Esse tipo de situação corresponde, de certa forma, ao estado de exceção. (AGAMBEN, 2008) Dessa forma, na medida em que as condições de vida tornam-se cada vez mais extremas, Buñuel povoa a trama de acontecimentos inexplicáveis e explosões de irracionalidade. Então, para justificar as inúmeras loucuras que rompem a fina camada de civilização, a personagem Blanca explica: “todos, até os melhores começam a perder a cabeça.” Pode-se questionar quem seriam os “melhores” que são explicitamente afirmados. Além disso, e é o que nos interessa aqui, pode-se fazer uma analogia entre o começo referido pela personagem à passagem do “ponto sem retorno”, a qual ocorre no campo. O ponto sem retorno, mais precisamente, marca o momento de separação entre humano e não-humano, cuja superação é capaz de eliminar do indivíduo todo sentido de lucidez. Dentro do campo, aquele que ia além deste limite abria mão de todo sentimento íntimo de indignação, perdia toda ciência de suas ações e tornava-se um não-humano (AGAMBEN, 2008, p. 64). Portanto, além da questão clínica, o “muçulmano” representava a perda da condição humana, a qual neste contexto se relaciona intimamente com a fuga da lucidez. De certa forma, pode-se investigar a motivação ultrajante pela qual a morte desses deportados valia tão pouco, igualmente nos hospitais psiquiátricos: não se perde humanidade onde não há sanidade. Além disso, aos prisioneiros dos campos, a permissão de comunicação era suspensa. Consoante os sobreviventes, “(...) a tentativa de induzir um Kapo ou um membro das SS a comunicar provocava frequentemente apenas cacetadas, (…) em certos Lager, toda comunicação era substituída pelo bastão de borracha, que, por esse motivo, havia sido ironicamente rebatizado de Der Dolmetscher, “o intérprete” (…) (AGAMBEN, 2008, p. 72). Dentro do manicômio, de acordo com Goffman (1974), determinados pacientes nunca poderiam falar com o médico, devendo dirigir-se apenas ao mediador assistente, a não ser que o médico lhes perguntasse algo. Os mais insistentes, geralmente portadores de transtornos mentais delirantes, eram sumariamente rechaçados ao fazerem qualquer tentativa de comunicação com o médico. 46

Para Ayub (2015, p. 62), na analítica do poder de Foucault, destaca-se a compreensão aristotélica da essencialidade da expressão linguística na discussão e definição das direções políticas da sociedade. É a partir dessa relação entre homem e linguagem que Foucault indica, com o surgimento da biopolítica, “a captura do homem em sua dimensão de ser vivente (a mesma qualidade que define a espécie animal em geral) pelos cálculos e estratégias do poder.” Para Aristóteles, o homem se distingue dos animais e, portanto, do conjunto dos viventes, na medida em que é capaz de linguagem. É no domínio da linguagem que a vida em sociedade é possível e a política se organiza. Acontece que, o investimento político sobre o domínio do biológico não responde – ou é estranho – ao modo próprio de ser da política, fundada em torno de direitos e deveres num plano institucional (AYUB, 2015, p. 61).

A incomunicabilidade, em verdade, parece expressar a convicção de que, no campo ou no hospital, o indivíduo não possui ou não deve possuir capacidade de intervenção política em seu ambiente, evidenciando a relação antitética entre linguagem e biopolítica. Com a interdição da comunicação, reforçava-se a objetificação do indivíduo, o qual, sem voz, era submetido à dominação mais absoluta possível. 2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A SAÚDE MENTAL: UMA FRÁGIL TRAJETÓRIA

2.1 As principais jurisprudências sobre saúde mental da CIDH e a desconstrução do paradigma manicomial A Corte Interamericana de Direitos Humanos, à qual o Brasil está sob jurisdição, é guardiã da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), da qual este país faz parte. Nos casos submetidos ao sistema individual, a Corte tem aplicado sanções aos países que comprovadamente tenham praticado violações de direitos humanos ou tenham se omitido quando há obrigação de agir e proteger o indivíduo. A Corte tem utilizado, como substrato jurídico, disposições relativas ao Pacto de San José da Costa Rica, bem como à Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999), também ratificada pelo Brasil, nos casos que envolvem vítimas portadoras de doença mental, além da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985). 47

O primeiro caso relativo à pessoa portadora de doença mental foi proposto contra o Equador em defesa de Víctor Rosário Congo. O caso ensejou a manifestação da Corte por meio do Informe Nº 63/99. Por decretação de prisão temporária, a vítima foi recolhida a um presídio comum, onde apresentou desde já sintomas de transtorno mental, sendo, por essa razão, recolhido a uma cela de isolamento. Nesta cela, a vítima recebeu um forte golpe na cabeça, agravando seu estado emocional já crítico. No isolamento, ele permaneceu nu e incomunicável. Segundo o Diretor do Estabelecimento Prisional, a vítima estava em estado de demência, urinando e defecando, além de falar sozinho. Contudo, até o momento, não havia sido prestadolhe nenhum atendimento médico. Somente após mais de um mês da data da prisão, a vítima foi encaminhada a um hospital psiquiátrico adequado à sua frágil condição. Infelizmente, dois dias após a transferência, faleceu por desnutrição, desidratação e falência cardiorrespiratória (CIDH, 1999). No informe publicado, a Corte foi taxativa quanto à recomendação de que o Equador providenciasse atenção médica integral aos presos que pudessem sofrer de doença mental, inclusive dotando o serviço de saúde e o sistema prisional de profissionais médicos especializados a fim de identificar transtornos mentais que pudessem afetar a vida e a integridade moral, psíquica e física dos detentos. Foi afirmada a situação de vulnerabilidade especial em que se encontram os portadores de doença mental. Ao utilizar-se de um caso da Comissão Europeia como paradigma, a Corte enfatizou o fato de que a negação de atendimento médico psiquiátrico ao preso constitui tratamento cruel e degradante (CIDH, 1999). Dessa forma, a Corte atua, principalmente, na desconstrução do paradigma de campo que o tratamento ao doente mental ainda apresenta. Sua função concentra-se na humanização da realidade da saúde mental. Esse posicionamento fica evidente, ademais, no caso Sebastian Furlán (2012) contra Argentina. Neste caso, a vítima sofreu acidente que a deixou com incapacidade física, e, ainda, mental. A depressão decorreu do não atendimento adequado às suas necessidades médicas no sentido de sua reabilitação física. En este sentido, la Corte Interamericana reitera que toda persona que se encuentre en una situación de vulnerabilidad es titular de una protección especial, en razón de los deberes especiales cuyo cumplimiento por parte del Estado es necesario para satisfacer las obligaciones generales de respeto y garantía de los derechos humanos. El Tribunal recuerda que no basta con

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que los Estados se abstengan de violar los derechos, sino que es imperativa la adopción de medidas positivas, determinables en función de las particulares necesidades de protección del sujeto de derecho, ya sea por su condición personal o por la situación específica en que se encuentre, como la discapacidad. En este sentido, es obligación de los Estados propender por la inclusión de las personas con discapacidad por medio de la igualdad de condiciones, oportunidades y participación en todas las esferas de la sociedad, con el fin de garantizar que las limitaciones anteriormente descritas sean desmanteladas. Por tanto, es necesario que los Estados promuevan prácticas de inclusión social y adopten medidas de diferenciación positiva para remover dichas barreras (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012, p. 46-47).

O caso de Damião Ximenes Lopes é a primeira sentença condenatória do Brasil, proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Damião fora internado na Clínica de Repouso Guararapes, em Sobral, no Ceará, em razão da doença mental da qual sofria. A Clínica Guararapes era, ao tempo dos fatos, credenciada ao Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o relato da Corte Interamericana de Direitos Humanos (2006, p. 31-32), em 4 de outubro de 1999, aproximadamente às 9h, a mãe do senhor Damião Ximenes Lopes chegou à Casa de Repouso Guararapes para visitá-lo e o encontrou sangrando, com hematomas, com a roupa rasgada, sujo e cheirando a excremento, com as mãos amarradas para trás, com dificuldade para respirar, agonizante e gritando e pedindo socorro à polícia. Continuava submetido à contenção física que lhe havia sido aplicada desde a noite anterior, já apresentava escoriações e feridas e pôde caminhar sem a adequada supervisão. Posteriormente, um auxiliar de enfermagem o deitou em uma cama, da qual caiu. Então o deitaram num colchonete no chão. um auxiliar de enfermagem o deitou em uma cama, da qual caiu. Então o deitaram num colchonete no chão. A senhora Albertina Ximenes Lopes solicitou aos funcionários da Casa de Repouso Guararapes que banhassem seu filho e procurou um médico que o atendesse. Encontrou Francisco Ivo de Vasconcelos, Diretor Clínico e médico da Casa de Repouso Guararapes, que, sem realizar exames físicos em Damião Ximenes Lopes, receitou-lhe alguns remédios e em seguida se retirou do hospital. Nenhum médico ficou a cargo da instituição nesse momento. O senhor Damião Ximenes Lopes faleceu em 4 de outubro de 1999, às 11h30, na Casa de Repouso Guararapes, em circunstâncias violentas, aproximadamente duas horas depois de haver sido medicado pelo Diretor Clínico do hospital, sem ser assistido por médico algum no momento de sua morte, já que a unidade pública de saúde em que se encontrava internado para receber cuidados psiquiátricos não dispunha de nenhum médico naquele momento. Não se prestou ao senhor Damião Ximenes Lopes a assistência adequada e o paciente se encontrava, em virtude da falta de cuidados, à mercê de todo tipo de agressão e acidentes que poderiam colocar em risco sua vida.

São esclarecedores os apontamentos do perito do caso de Ximenes Lopes proposto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Eric Rosenthal, acerca 49

do tratamento dispensado às pessoas portadoras de transtornos mentais: as pessoas com deficiência mental estão sujeitas a discriminação e fortes estigmas, constituindo um grupo vulnerável a violações de direitos humanos a nível global. Quatro relatores das Nações Unidas constataram que as pessoas com deficiências mentais sofrem as mais perversas formas de discriminação, assim como difíceis condições de vida, se comparados a qualquer outro grupo vulnerável da sociedade. As práticas violatórias dos direitos de pessoas com deficiências mentais seguem padrões similares em todo o mundo. Essas pessoas são arbitraria e desnecessariamente segregadas da sociedade em instituições psiquiátricas, onde se encontram sujeitas a tratamento desumano e degradante ou a tortura (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, p. 11).

Especialmente a respeito da condição de deficiência mental da qual Damião Ximenes sofria, a Corte (2006, p. 30) enfatiza que não é suficiente “que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas que é imperativa a adoção de medidas positivas, determináveis em função das necessidades particulares de proteção do sujeito de direito, seja por sua condição pessoal, seja pela situação específica em que se encontre, como a deficiência. Na matéria da proteção ao doente mental, a Corte tem solidificado a tese da especial vulnerabilidade e consequente especial proteção. Isso significa que aquele que sofre de uma vulnerabilidade excessiva, é titular de uma proteção na mesma medida. Não é senão calcada na proporcionalidade, razoabilidade e dignidade da pessoa humana. Portanto, é evidente a influência dos julgados da Corte na evolução da reforma psiquiátrica ou antimanicomial, principalmente do caso Ximenes Lopes, no Brasil. Neste sentido, lembra José Jackson Coelho Sampaio, a Casa de Saúde Guararapes foi fechada em junho de 2001, o que delimita a transição do modelo de assistência centrado no manicômio e na atenção médico-hospitalar para um enfoque regionalizado, descentralizado e com a finalidade de reintegração e reabilitação social dos portadores de transtornos mentais. Além disso, destaca que o movimento de reforma psiquiátrica resultou na criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) na região e a promulgação da Lei Mário Mamede. Entre 2001 e 2005, a ampliação dos Centros de Atenção Psicossociais incluiu a cidade de Sobral. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006) O novo modelo de atendimento ao portador de transtornos mentais é 50

caracterizado pela integração do paciente com a família e a sociedade. Segundo Luís Fernando Farah de Tófoli, é inegável a influência na reestruturação da área da saúde mental do caso Ximenes Lopes no município de Sobral. O descredenciamento do Sistema Único de Saúde, ocorrido em 10 de julho de 2000, marca simbolicamente o início do funcionamento da Rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral. Essa rede compõe-se de uma residência terapêutica, um Centro de Atenção Psicossocial, uma unidade de internação psiquiátrica e por ações de educação e supervisão associadas ao programa de saúde familiar. Esse modelo acabou recebendo diversos prêmios em âmbito nacional pela experiência exitosa (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006). O Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem desempenhado uma função relevante por meio do julgamento de casos individuais, especialmente pelo transbordamento das consequências dos julgados da esfera privada para a esfera pública. É válido destacar que a mudança impulsionada na estruturação do programa de saúde mental vai além da humanização da abordagem do paciente: ela incluiu um novo modo de relacionamento e educação cívica com a sociedade e a política governamental em saúde mental. 2.2 Entre avanços e retrocessos: um novo paradigma da saúde mental? A reforma psiquiátrica, em escala global, direcionou-se, primeiramente, à psicoterapia institucional e às comunidades terapêuticas no âmbito institucional. Em seguida, voltou-se à psiquiatria de área e à psiquiatria preventiva, representando uma superação das reformas restritas ao ambiente hospitalar. Ao final, há o surgimento da antipsiquiatria e das reformas surgidas a partir das experiências de Franco Basaglia, as quais expressam uma ruptura com todas as práticas anteriores (AMARANTE, 2006). A primeira reforma insere-se no contexto pós-guerra e procura humanizar as condições existentes nos hospitais, ao mesmo tempo em que aposta na socialização do paciente. A psicoterapia institucional, por sua vez, em razão da orientação marxista, objetivava a reorganização das instituições no sentido de que elas próprias apresentavam características doentias e por isso deveriam ser tratadas. A segunda reforma, então, orientou-se ao tratamento do doente em seu próprio meio, definindo a estadia no hospital apenas como uma etapa transitória. Por fim, o último movimentou 51

objetivou uma crítica mais ampla ao saber médico-psiquiátrico, procurando romper com o modelo assistencial e subverter a hierarquia e a disciplina hospitalares (AMARANTE, 2006). Contudo, vê-se a prevalência do paradigma hospício-campo, o qual tem servido para a manutenção do tratamento cruel e degradante dispensado ao doente mental. Apesar dos esforços em torno da reforma manicomial, os dados sugerem que a luta não pode cessar. “Em 2004, uma inspeção nacional realizada nos hospitais psiquiátricos brasileiros pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil encontrou condições subumanas em vinte e oito unidades” (ARBEX, 2013, p. 229). A Inspeção aos manicômios realizada pelo Conselho Federal de Psicologia nas instituições onde havia cumprimento ou execução de Medida de Segurança de pacientes judiciários ou, ainda, portadores de sofrimento mental em conflito com a lei averiguou situações alarmantes. Em relação ao atendimento médico, “na unidade em que há a menor relação psicólogo/paciente, temos um profissional da psicologia para cada 21 presos/pacientes e, na maior relação temos, inacreditáveis 104 presos/pacientes por profissional da psicologia. Esse fato inviabiliza uma escuta e um cuidado minimamente decentes” (CFP, 2015, p. 16). Além disso, em 7 dos 17 manicômios pesquisados há superlotação, a qual varia de 110% da capacidade de vagas instaladas a 410%. De acordo com os inspetores, as condições estruturais são definidas pela expressão “precariedade.” As celas de isolamento possuem, em regra, uma “fossa turca” ou buraco no chão. Naquelas em que havia um vaso sanitário, não havia acesso à descarga, a qual era acionada por um funcionário da instituição apenas três vezes ao dia. O espaço para higienização possuía chuveiros insuficientes e somente com água fria. (CFP, 2015, p. 17). A inspeção, de fato, conseguiu evidenciar a indiferença aos direitos humanos, o tratamento médico inadequado ou inexistente, as condições de trabalho, técnicas e físicas péssimas que acabavam por criar uma instituição sui generis: “um híbrido do pior da prisão com o pior do hospital” (CFP, 2015, p. 14). Acima de tudo, destacou-se o intenso descompasso dos pressupostos humanizadores inaugurados pela Reforma Psiquiátrica e pela Luta Antimanicomial com a prática diária e real dessas instituições. Além disso, segundo a Avaliação dos Hospitais Psiquiátricos no Âmbito do 52

Sistema Único de Saúde Ação Nacional-PT GM/MS nº 2.398/2011, somente entre janeiro de 2010 e junho de 2011 ocorreram 1250 óbitos em 176 hospitais psiquiátricos e em 50,3% das certidões de óbitos constava a expressão “causas mal definidas.” A evolução do tratamento da doença mental para a promoção da saúde mental enfrenta, principalmente, a estigmatização do sujeito. Dessa forma, Judith Butler (2006) propõe a formação de uma comunidade humana onde, sem deixar de lado as lutas por necessidades específicas de cada minoria, se promova a humanidade centrada no que compartilhamos em comum. Butler (2006), entende que a violência revela a vulnerabilidade humana a que estamos sujeitos enquanto corpo social. Todos somos donos de nossos corpos e, ao mesmo tempo, estamos sujeitos à dor, à angústia que o outro possa nos provocar em razão de nossa natural interdependência. Essa vulnerabilidade é exacerbada sob certas condições sociais e políticas, especialmente quando os meios de autodefesa são limitados e a violência se torna uma forma de vida cotidiana. O reconhecimento do sentido dessa vulnerabilidade humana nos permite assumir uma responsabilidade coletiva pelas vidas físicas dos outros. Essa responsabilização coletiva torna-se mais que necessária em nossa realidade, pois os campos de concentração vão além de Barbacena. Estão de volta nos hospitais públicos lotados que continuam a funcionar precariamente em muitas outras cidades brasileiras. Multiplicam–se nas prisões, nos centros de socioeducação para adolescentes em conflito com a lei, nas comunidades à mercê do tráfico. O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos (ARBEX, 2013, p. 230).

Butler (2006) reflete sobre o fato de que há maneiras radicalmente diferentes de zelar por uma vida, resultando em diferentes distribuições de vulnerabilidade do homem em situações de vida diferentes. Algumas vidas, quando perdidas, invocam tamanha santidade que exigem a mobilização de guerras em seus nomes. Outras vidas, entretanto, não se qualificam sequer como vidas que “valham a pena”, como as vidas daqueles que vivem em manicômios, os campos de concentração do século XXI. A partir disso, propõe-se um encontro ético baseado no reconhecimento de nossa vulnerabilidade física comum, como comunidade humana.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O modelo manicomial teve seu surgimento relacionado ao objetivo de disciplinar e segregar as camadas marginalizadas da população. Com a evolução médica, progrediu-se para o estudo do indivíduo doente mental, e para o aproveitamento máximo do binômio disciplina/utilidade do poder. Dessa forma, a análise mostrou que há diversas semelhanças entre o modelo do hospital psiquiátrico tradicional e os campos de concentração, especialmente em relação ao tratamento da vida e seu fim, à produção do “muçulmano” e à interdição da comunicação como forma de sujeição absoluta. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem atuado, nesse sentido, na humanização do tratamento ao doente mental. Os avanços foram significativos a partir do julgado Ximenes Lopes no país, com a reestruturação da política nacional de proteção aos portadores de transtornos mentais e reorganização do sistema de atenção médica e hospitalar. Contudo, apesar dos esforços empreendidos pelos movimentos reformistas e das determinações das novas leis e sistemas antimanicomiais, verifica-se a persistência de situações sub-humanas em muitas instituições. A prevalência do paradigma manicomial deve-se, então, ao estigma perpetrado pela sociedade. Sugere-se, por isso, o reconhecimento da responsabilidade coletiva pela vulnerabilidade natural da sociabilidade. Dessa forma, pode-se construir um encontro ético a fim de formar uma comunidade política pautada pelo pertencimento comum. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008. ____. Meios sem fim: Notas sobre política. São Paulo: Autêntica, 2015. ____. Estado de exceção. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2007. ____. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua I. 2 ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010. Agência Brasil. Retratos da Loucura. Disponível em: . Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

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AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. 3 ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. ____. Locos por la vida: La trayectoria de la reforma psiquiátrica en Brasil. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Asoc. Madres de Plaza de Mayo, 2006. ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração, 2013. AYUB, João Paulo. Introdução à analítica do poder de Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2015. BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe nº 63/99. Disponível em: Acesso em: 20 de janeiro de 2016. Conselho Federal de Psicologia Inspeções aos manicômios Relatório Brasil 2015/Conselho Federal de Psicologia. Brasília: CFP, 2015. 172p CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil, 2006. Disponível em: Acesso em: 20 de janeiro de 2016. ____. Caso Furlán y Familiares vs. Argentina, 2012. Disponível em: Acesso em: 20 de janeiro de 2016. EL ÁNGEL exterminador. Direção: Luis Buñuel. Edição: Carlos Savage Jr. Produzido por Churubusco – Azteca S.A., 1962. DVD FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1999. ____. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ____. História da sexualidade I: A vontade de saber. 22 ed. São Paulo: Graal, 2012. GOFFMAN, Erving. Prisões, manicômios e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. Ministério da Saúde. Avaliação dos Hospitais Psiquiátricos no Âmbito do Sistema Único de Saúde Ação Nacional - PT GM/MS nº 2.398/2011. Disponível em: Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

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A ANISTIA BRASILEIRA E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Carla Dóro de Oliveira1

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objeto o estudo da Lei nº 6.683/1979, conhecida por Lei de Anistia, após o julgamento da do caso Gomes Lund e Outros Vs. República Federativa do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Nessa decisão, a Corte examinou a convencionalidade daquele diploma legal e o considerou inválido por agredir o disposto no Pacto de San José, razão pela qual não poderia continuar servindo como empecilho para o conhecimento da verdade acerca dos crimes cometidos durante o regime militar brasileiro. Procura-se, assim, entender de que forma o país está implementando a decisão da Corte IDH e quais os obstáculos que o Brasil ainda precisa superar para que os direitos humanos sejam finalmente respeitados e promovidos no país.

1 O DIREITO INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

O surgimento do que se pode chamar de um sistema global de proteção aos direitos humanos se deu com o fim da Segunda Guerra Mundial, no âmbito das Nações Unidas, quando os Estados vencedores se uniram visando à criação de um sistema que assegurasse a proteção dos indivíduos e dos povos em face dos crimes contra a humanidade. Valerio de Oliveira Mazzuoli (2011, p. 13) considera que o sistema global “teve início com a Carta da ONU, em 1945, desenvolvendo-se posteriormente com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948”. A partir de então ganhou força a ideia de uma justiça universal fundada na proteção do indivíduo mesmo contra o próprio Estado do qual é nacional, e que se 1

Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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lastreia em alguns pilares que lhe dão um caráter singular. A universalidade, primeiramente, significa que as normas protetivas tem o mesmo valor para todos os indivíduos, independentemente de ter o Estado firmado ou não tratados de proteção aos direitos humanos. Outra peculiaridade importante desse sistema global de proteção aos direitos humanos é ter dispensado a exigência de reciprocidade entre os Estados. Desse modo, a proteção é do Estado para com o indivíduo, sendo irrelevante o fato de o tratado ter sido assinado por outros países. Ao se tornar signatário, o Estado, mais do que se comprometer perante outras nações, se compromete perante seus próprios cidadãos. Além disso, André de Carvalho Ramos traz um terceiro elemento característico do direito internacional de proteção aos direitos humanos, destacando que, a partir de então “os indivíduos têm acesso a instâncias internacionais de supervisão e controle das obrigações dos Estados, sendo criado um conjunto de sofisticados processos internacionais de direitos humanos” (RAMOS, 2012, s/p). O nascimento de uma justiça universal, sem nacionalidade, com competência para o julgamento de violações aos direitos humanos, observa Antoine Garapon (2002, p. 35), “para além de assinalar a supremacia de certos direitos fundamentais sobre a soberania, manifesta a desterritorialização extrema da ideia de justiça penal internacional”, permitindo que a violação contra o direito de um indivíduo seja encarada como uma ofensa a todos. Pode-se dizer que o caso mais marcante de aplicação da competência universal foi o caso Pinochet, em 1999. De acordo com Kathryn Sikkink (2011), na época, o ex-presidente (e ditador) do Chile, Augusto Pinochet, foi preso na Inglaterra graças a um mandado expedido por um juiz espanhol, em virtude dos crimes praticados pelo ex-presidente durante a ditadura chilena. Isso só foi possível, frisa-se, porque o juiz espanhol que emitiu o mandado entendeu ser competente para o julgamento dos delitos em decorrência da competência universal para o julgamento das violações aos direitos humanos. Esse foi um momento crucial para o direito internacional de proteção aos direitos humanos, pois demonstrou a seriedade da questão, comprovando que o assunto não serviria apenas de espetáculo para atrair público. Conforme Gomes e Mazzuoli, o Tribunal Penal Internacional (TPI) foi o 57

principal propulsor da justiça penal universal. Com “competência para julgar os chamados crimes de lesa-humanidade, incluindo-se o genocídio, os crimes contra a paz, os crimes de guerra e a agressão” (GOMES; MAZZUOLI, 2013, p. 134-5), o Estatuto do TPI “foi aberto à assinatura em 1998; até 2010, 110 Estados o haviam ratificado” (SIKKINK, 2011, p. 68). Esses dois acontecimentos – a criação do TPI e o “caso Pinochet” – deram força ao que Sikkink chama de “justiça em cascata”, movimento de responsabilização individual penal dos envolvidos em graves violações aos direitos humanos. Segundo a autora, o fortalecimento do TPI indica o crescimento da ideia de responsabilização individual, uma vez que, a partir daí, e com o incentivo decorrente da prisão de “Pinochet”, os defensores dos direitos humanos passaram a perceber que a ideia de responsabilização penal individual por violações aos direitos humanos era uma possibilidade real e não apenas um discurso pomposo (SIKKINK, 2011). Paralelamente ao sistema global de proteção aos direitos humanos funcionam os sistemas regionais de direitos humanos, mais especificamente, o sistema europeu, o interamericano e o africano, cada qual estruturado de acordo com suas particularidades. No entanto, a característica mais importante desses sistemas é que “os sistemas global e regionais de proteção dos direitos humanos ‘dialogam’ para melhor proteger o ser humano sujeito de direitos” (GOMES; MAZUOLLI, 2013, p. 140). Deve-se frisar ainda que, relativamente aos três sistemas regionais acima referidos, Valerio de Oliveira Mazzuoli (2011, p. 16) argumenta que eles “visam a um mesmo objetivo comum: a salvaguarda dos direitos humanos de quaisquer pessoas sujeitas à jurisdição de um Estado-parte, independentemente de sua nacionalidade”. É esse também o entendimento de Flávia Piovesan, que apresenta os sistemas global e regionais não como dicotômicos, defendendo que “ao revés, são complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional” (PIOVESAN, 2013, s/p). Nesse sentido, segundo a autora, um indivíduo que tem seus direitos violados dispõe de mais caminhos para ver assegurada a efetivação de tais direitos. Percebe-se que, por todo o exposto, a preocupação com os direitos do homem vem crescendo nas últimas décadas, especialmente no âmbito do direito 58

internacional, no entanto, para que essa proteção não fique apenas na retórica, os Estados também devem fazer a sua parte. A mera ratificação dos tratados internacionais sobre direitos humanos não é suficiente para que se um Estado respeite e assegure tais direitos. É necessário que o avanço se dê também por um “diálogo e uma fertilização cruzada entre os tribunais internos e os tribunais internacionais” (RAMOS, 2011, p. 179). Ou seja, é imprescindível que os Tribunais de cada Estado – a iniciar pelas cortes superiores – passem a adotar a interpretação dos Tribunais Internacionais acerca dos dispositivos internacionais de proteção aos direitos humanos, para que, assim, a aplicação desses não se dê de forma desconectada dentro de uma nação, de modo diverso do que dispõe o sistema regional e global de proteção aos direitos humanos no qual o país se inclui.

2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Na América, o sistema regional de proteção de direitos humanos “foi desenvolvido no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos), depois da Segunda Guerra Mundial” (GOMES; MAZZUOLI, 2013, p. 138). No entanto, nem todos os Estados membros da OEA também integram o Sistema Interamericano, isso porque só os países que ratificaram a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, de 1969 (também chamado de Pacto de San José da Costa Rica), é que aderiram ao Sistema. Conforme explica Ramos (2013, s/p), “temos dois círculos concêntricos: um círculo amplo composto pelo sistema da Carta da OEA, com 35 Estados dessa Organização; um círculo menor, composto por 24 Estados, que ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos”. A Convenção Interamericana de Direitos Humanos é o principal instrumento desse Sistema. É ela quem institui e estabelece os procedimentos da Comissão (arts. 34 a 51) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (arts. 52 a 69), prevendo um rol extenso de direitos aos indivíduos e deveres a serem cumpridos pelos Estadosmembros. Peculiaridade que merece ênfase quanto ao Sistema Interamericano é o fato de que, em 1969, data em que foi adotada a Convenção, muitos países da América passavam por estados de exceção – no caso brasileiro, em 1969, vivia-se o auge da 59

repressão militar graças ao Ato Institucional nº 5 – no entanto, apesar disso, os Estados membros da OEA se reuniram para discutir e votar o Pacto de San José. Quanto ao tema, Ramos procede à interessante análise, sugerindo que, “a Convenção Americana nasceu do esforço de Ditaduras em demonstrar sua semelhança com Estados Democráticos” (RAMOS, 2012, s/p). De acordo com a própria Convenção, a competência contenciosa da Corte fica condicionada ao seu reconhecimento por parte dos Estados, que, ao fazê-lo, pode estabelecer o período a partir de quando a competência passa a ter validade – a competência consultiva, no entanto, é aceita automaticamente quando da ratificação da Convenção. No Brasil, por exemplo, a competência contenciosa da Corte só foi reconhecida com o Decreto Legislativo nº 89/1998. Se esse mecanismo, por um lado, possibilitou que os Estados-parte ratificassem a Convenção sem medo de serem postos diretamente sob o jugo da Corte, por outro, permitiu a eles que adiassem – e muito – o reconhecimento da competência contenciosa obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Quanto ao início do procedimento contencioso, tem-se que é somente perante a Comissão que uma denúncia individual pode ser feita, isso porque “a Corte Interamericana só pode ser acionada (jus standi) pelos Estados contratantes e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que exerce função similar à do Ministério Público brasileiro” (RAMOS, 2012, s/p). O que significa que as denúncias individuais só podem chegar à CIDH depois do trâmite perante a Comissão e apenas quando essa verificar que o Estado envolvido não cumpriu suas recomendações. As atribuições da Comissão são bastante amplas e sua atuação é fundamental na promoção dos direitos humanos dentro do Sistema Interamericano. Ao receber uma denúncia, a Comissão deve analisar algumas condições de admissibilidade descritas na Convenção, quais sejam: “o esgotamento dos recursos locais, ausência do decurso do prazo de seis meses para a representação, ausência de litispendência internacional e ausência de coisa julgada internacional” (RAMOS, 2012, s/p). Reconhecendo a admissibilidade da denúncia, a Comissão solicitará informações ao Estado denunciado. Ramos explica que o procedimento perante a Comissão pode ter até três fases: a fase da conciliação, a fase do primeiro informe e a do segundo informe. Não havendo conciliação, a Comissão expedirá um primeiro relatório, com 60

recomendações ao Estado denunciado. Esse informe, no entanto, não tem efeito vinculante. Somente em não sendo cumpridas as primeiras recomendações, a Comissão emitirá um segundo informe, esse sim com força vinculante, o qual, não sendo cumprido, permite à Comissão submeter o caso à CIDH (RAMOS, 2012). A Corte compõe-se de sete juízes, cidadãos dos Estados-membros da OEA (art. 52.1 da CADH), não sendo permitida a atuação de dois juízes da mesma nacionalidade, sendo que o mandato de cada juiz é de seis anos, permitindo-se apenas uma reeleição (art. 54.1). Ainda, segundo Valerio de Oliveira Mazzuoli (2011, p. 32), existe “a possibilidade de um Estado demandado oferecer um juiz ad hoc (oitavo juiz) à Corte”. Isso está previsto no art. 55.3 da CADH, e é permitido quando, dentre os juízes chamados a conhecer do caso, nenhum deles for nacional do Estado processado. Apesar de controversa, a figura do juiz ad hoc ainda vem sendo utilizada. Quanto aos números de atuação da Corte, sabe-se que “até junho de 2012, a Corte havia emitido 20 opiniões consultivas” (PIOVESAN, 2013, s/p) e, até 2012, “foram aproximadamente 200 casos sentenciados no mérito pela Corte, bem distante dos números atuais do sistema europeu de direitos humanos” (RAMOS, 2012, s/p). É interessante ainda enfatizar que “do México até a Argentina, a Corte IDH exerce jurisdição sobre 550 milhões de pessoas” (RAMOS, 2012, s/p). O art. 67 da Convenção estabelece que a sentença da Corte é definitiva e inapelável e que “em caso de divergência sobre o sentido ou alcance da sentença, a Corte interpretá-la-á, a pedido de qualquer das partes, desde que o pedido seja apresentado dentro de noventa dias a partir da data da notificação da sentença”. Segundo Piovesan (2013, s/p), “a decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento. Se a Corte fixar uma compensação à vítima, a decisão valerá como título executivo”, devendo ser executada de acordo com o procedimento interno de cada país. Apesar de todo o exposto, é fácil concluir que na prática ainda há muita resistência por parte dos países condenados pela CIDH na implementação das sentenças da Corte. Isso porque, apesar de o compromisso dos Estados em cumprir as decisões da CIDH estar previsto na Convenção, os casos concretos vem demonstrando que a Corte não dispõe de mecanismos para cobrar o efetivo cumprimento dessas. Diante disso, Ramos (2012, s/p) adverte que, “a implementação das decisões da Corte 61

e da Comissão exigem uma participação mais ativa da Assembleia Geral e do Conselho Permanente da OEA”. Nesse

sentido,

imperioso

que

se

realizem

reformas

no

Sistema

Interamericano, a fim de conferir maior efetividade às decisões da CIDH. Flávia Piovesan (2013) sugere alguns caminhos que poderiam trazer esse resultado. Segundo a autora, primeiramente poder-se-ia pensar na adoção, no âmbito interno dos países membros da Convenção, de uma legislação interna prevendo o modo como o cumprimento das decisões internacionais que versam sobre direitos humanos deve se dar; em segundo lugar, a autora defende a previsão de sanções, por parte da OEA, aos Estados que, de forma reiterada, descumprirem as decisões internacionais sobre direitos humanos; a terceira proposta, é que se permita o acesso à CIDH aos particulares e instituições privadas, de modo a popularizar o Sistema Interamericano; e, por fim, a autora advoga pela destinação de recursos financeiros, técnicos e administrativos suficientes para que se mantenha a Comissão e a Corte em funcionamento permanente. O papel que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem desempenhado, não há dúvidas, é fundamental para a valorização dos direitos do homem e, principalmente, para que esses direitos sejam respeitados e efetivados por parte dos Estados da América. Entretanto, ainda há muito que se fazer no sentido de ampliar a força da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, dandolhes suporte a fim de que suas recomendações e decisões sejam, de fato, cumpridas, para que, assim, alcancemos finalmente a efetiva proteção à dignidade da pessoa humana.

3 A DECISÃO DO STF NO JULGAMENTO DA ADPF Nº 153 E O CASO “GOMES LUND E OUTROS VS. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, interposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a 21 de outubro de 2008, questionava a interpretação conferida ao § 1º do art. 1º da Lei nº 6.683/1979, conhecida como Lei de Anistia. Brevemente, cumpre observar que no julgamento da ADPF o Supremo 62

Tribunal Federal (STF), por maioria, rejeitou as preliminares, vencido o Ministro Marco Aurélio, que extinguia o processo sem resolução de mérito por falta de interesse processual (alegou o magistrado que a discussão dos autos era “estritamente acadêmica”). Já quanto ao mérito, “sete Ministros declararam improcedente a arguição (Min. Eros Grau – relator, Carmen Lúcia, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Celso de Mello e Gilmar Mendes) e dois votaram pela procedência parcial (Min. Lewandowski e Carlos Britto)” (RAMOS, 2011, 181-182). Da análise da decisão proferida nos bojo da ADPF 153, resumidamente, verifica-se que, em sua maioria, os Ministros do STF sequer mencionaram o direito internacional para analisar a questão, quando o fazem, ou não admitem a sua aplicação, ou cometem profundos equívocos em sua análise e interpretação. O Ministro Eros Grau, relator da ação, nem ao menos citou a Convenção Americana de Direitos Humanos. O mesmo aconteceu com as Ministras Carmem Lúcia e Ellen Gracie e os Ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes. O Ministro Celso de Mello, embora tenha feito menção aos tratados internacionais, entendeu que os mesmos não seriam aplicáveis ao caso. De outra banda, o Ministro Cezar Peluso citou a jurisprudência de tribunais internacionais tão somente para afastar a sua aplicação. Mesmo o Ministro Ayres Britto, que votou pela parcial procedência da ação, o fez com fundamento na Constituição, tão somente, apesar de ter a seu dispor tratados e convenções internacionais, e farta jurisprudência de tribunais internacionais a respeito do tema. Quanto ao voto do Ministro Lewandowski, apesar de ser o que mais possibilita o diálogo com a doutrina e a jurisprudência internacional de proteção aos direitos humanos, ainda assim deixa a desejar nesse quesito. Quanto ao Caso “Guerrilha do Araguaia”, esse foi levado à Comissão IDH pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela Humans Right Watch/Americas a 07 de agosto de 1995. Conforme já se destacou, somente a Comissão Interamericana e os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) podem submeter casos à Corte IDH. Sendo assim, pessoas físicas e instituições somente podem peticionar perante a Comissão. Aliás, segundo André de Carvalho Ramos (2012, s/p), “todos os casos contenciosos até o momento (2011) foram

propostos

pela

Comissão”,

sendo

que,

“até

o

momento,

foram

aproximadamente 200 casos sentenciados no mérito pela Corte”. 63

Somente em 31 de outubro de 2008 (após treze anos de trâmite perante a Comissão), foi emitido o Relatório de Mérito nº 91/08. Nesse relatório a Comissão concluiu pela responsabilidade do Brasil pelas violações de direitos humanos perpetradas durante a ditadura. Diante disso, o Estado brasileiro, notificado em 21 de novembro daquele ano, dispunha de dois meses para implementar as recomendações veiculadas no mencionado documento. Contudo, mesmo após prorrogações de prazo, somente em 24 de março de 2009, passados quatro meses desde a notificação e dois dias após o fim do prazo concedido pela Comissão, o país apresentou um relatório parcial. A Comissão, por sua vez, submeteu o caso à CIDH em 26 de março de 2009, posto que, além da remessa de um relatório parcial, verificou que o Brasil não cumpriu de forma satisfatória as recomendações do Relatório de Mérito nº 91/08. Perante a Corte, preliminarmente, o Estado brasileiro alegou a incompetência ratione temporis da CIDH, em razão de o seu reconhecimento ter se dado somente em 10 de dezembro de 1998; a incompetência em razão do não esgotamento dos recursos internos; a falta de interesse processual dos representantes; e a regra da impossibilidade de quarta instância. No mérito, o Brasil pleiteou a improcedência da ação, conforme registrou a Corte em sua sentença, em razão de que estaria “sendo construída no país uma solução, compatível com suas particularidades” (CORTE..., 2014, p. 220). Quanto às questões preliminares a Corte manifestou-se pontualmente, rejeitando-as todas à exceção de uma. Passando à análise do mérito da questão, em relação ao crime de desaparecimento forçado, a Comissão enfatizou se tratar de um crime contra a humanidade com especial relevância, uma vez que é praticado pelo próprio Estado, com uso de seus agentes e recursos, contra sua própria população. Argumentou ainda que, “os familiares dos desaparecidos continuam sem informação mínima sobre o ocorrido e sobre o paradeiro de seus entes queridos, passados quase quarenta anos do início dos fatos” (CORTE..., 2014, p. 237). Por outro lado, reconheceu a importância dos atos de reconhecimento promovidos pelo Estado brasileiro e do pagamento de indenizações aos familiares das vítimas. O Brasil, por sua vez, apesar de reconhecer a relevância do momento para as vítimas do regime militar, sustentou a impossibilidade de utilização do costume internacional para a criação de tipos penais em razão dos princípios da legalidade e anterioridade da lei penal. 64

Ainda no que se refere ao delito de desaparecimento forçado de pessoas, a CIDH enfatizou que “não é recente a atenção da comunidade internacional ao fenômeno” (CORTE..., 2014, p. 242), observando que esse crime “constitui uma violação múltipla a vários direitos protegidos pela Convenção Americana, que coloca a vítima em estado de completa desproteção e acarreta outras violações conexas” (CORTE..., 2014, p. 242). Para além, aduziu que tais características vêm sendo reiteradamente confirmadas pela jurisprudência da Corte de San José, “desde o seu primeiro caso contencioso há mais de vinte anos” (CORTE..., 2014, p. 243), trata-se do Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras, julgado em 1988. Nesse sentido, ressaltou que constituem elementos característicos desse: “(a) a privação da liberdade; b) a intervenção direta de agentes estatais ou sua aquiescência, e c) a negativa em reconhecer a detenção e revelar a sorte ou o paradeiro da pessoa implicada” (CORTE...., 2014, p. 243). Por fim, destacou que a proibição desse crime alcançou o caráter de jus cogens. A Corte observou que “sempre que haja motivos razoáveis para suspeitar que uma pessoa foi submetida a desaparecimento forçado deve-se iniciar uma investigação” (CORTE..., 2014, p. 244) e que a tipificação do crime de desaparecimento forçado como delito autônomo na legislação interna de cada país é dever do Estado para otimizar a investigação desses delitos. Não obstante, Viviana Krsticevic e Beatriz Affonso (2011, p. 267) tecem relevante consideração ao alegarem que a tipificação do delito de desaparecimento forçado e a imediata investigação dos fatos, com a punição dos agentes fundamentada nesse delito não afeta o princípio da legalidade, posto que “já existia uma proibição clara da conduta (por meio de uma norma de jus cogens ou um Tratado vigente na época dos fatos, ou ainda por costume internacional)”. Esse também é o entendimento de Ramos, que defende que “como na época dos fatos já existia o costume internacional de imprescritibilidade dos crimes, não haveria ofensa aos direitos dos agentes da repressão política” (RAMOS, 2011, p. 201202). Pelo exposto, seja utilizando os tipos penais existentes à época, seja a partir da tipificação do delito de desaparecimento forçado, o essencial é que o Brasil dê início às investigações dos fatos ocorridos no regime militar. Considerando ainda que o crime de desaparecimento forçado constitui violação pluriofensiva, a Corte destacou que esse delito viola, simultaneamente, os 65

seguintes direitos previstos na CADH: direito à liberdade pessoal (art. 7), direito à integridade pessoal (art. 5), direito à vida (art. 4) e direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3), tudo isso combinado com o art. 1.1, que impõe aos Estados-membros a obrigação de respeitar os direitos previstos na Convenção, garantindo o seu livre e pleno exercício a toda pessoa sujeita à sua jurisdição. Em face do exposto, a CIDH concluiu que o Brasil foi responsável pelo desaparecimento forçado de sessenta e duas pessoas durante a Guerrilha do Araguaia, as quais foram nominalmente indicadas, gravame esse que configurou violação aos direitos previstos nos arts. 3, 4, 5 e 7, em relação ao art. 1.1, da Convenção Americana. No que se refere à incompatibilidade das anistias relativas a graves violações de direitos humanos com o direito internacional, a Corte reiterou sua ampla jurisprudência a respeito do assunto, declarando não encontrar motivos para, no caso em estudo, afastar a aplicação desse entendimento. Reportou-se, nesse contexto, às decisões proferidas nos Casos Barrios Altos e La Cantuta, contra Peru e, no Caso Almonacid Arellano e outros contra Chile. Na percepção de Max Pensky, o qual estuda acerca do status das anistias internas no direito penal internacional, embora o tema seja controvertido quando se considera os diversos tipos de anistia existentes e as variadas fontes para exame do assunto, “há certamente um sentido claro de que as anistias em branco são, e provavelmente vão continuar sendo, contrárias à norma de responsabilização crescente no Direito Internacional Penal” (PENSKY, 2011, p. 100). O que, no entendimento desse jurista, constitui grande avanço para o direito penal internacional. Em se tratando, aliás, do posicionamento de outros órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos, a CIDH indicou o Relatório do Conselho de Segurança das Nações Unidas, segundo o qual “os acordos de paz endossados pelas Nações Unidas jamais podem permitir a anistia para crimes de genocídio, crimes de guerra, crimes de lesa-humanidade ou graves violações dos direitos humanos” (NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. 325). Ainda fez menção à jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos e aos pareceres emitidos pela Comissão Africana de Direitos Humanos, os quais, em ambos os casos, negaram validade às leis que impediam o cumprimento das obrigações internacionais dos Estados, de modo a perpetuar a impunidade em face de graves violações aos direitos humanos. Por fim, fez referência 66

a decisões proferidas pelas supremas cortes de diversos países latino-americanos que, seguindo a orientação dos sistemas regional e universal de proteção aos direitos humanos, declararam a invalidade de leis que obstaculizavam o acesso à justiça e o direito à verdade por parte das vítimas de crimes de lesa-humanidade. A CIDH concluiu esse capítulo da sentença sustentando que “a forma na qual foi interpretada e aplicada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (arts. 87, 135 e 136 supra) afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos” (CORTE..., 2014, p. 260). Aliás, a Corte mencionou que, em razão dessa interpretação, o Brasil descumpriu o art. 8.1 da CADH, que garante o direito às vítimas de serem ouvidas por um juiz; o art. 25, que assegura o direito à proteção judicial, em razão da falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis; bem como o art. 1.1, ao aplicar a Lei de Anistia, impedindo a investigação dos fatos. Por fim, observou a violação ao art. 2 da CADH, pela não adequação do direito interno aos comandos do direito internacional de proteção aos direitos humanos. No que tange à decisão do STF proferida na ADPF 153, a CIDH enfatizou que [...] não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional (CORTE..., 2014, p. 261).

Além disso, a Corte IDH fez alusão ao princípio da pacta sunt servanda, previsto na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, a fim de destacar que os Estados devem seguir suas obrigações internacionais de boa-fé, salientando ainda que, conforme o art. 27 da referida Convenção, “os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais” (CORTE..., 2014, p. 261). Essa visão é compartilhada pelas juristas Krsticevic e Affonso (2011, p. 261)., para as quais esse princípio é “um dos princípios mais elementares do direito internacional (reconhecido na própria Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados)”. A Corte ainda se manifestou quanto ao direito de liberdade de pensamento e expressão; ao direito à integridade pessoal dos familiares das vítimas, estabelecendo medidas de reparação. Salienta-se que, de acordo com Ramos (2011, p. 203), quando se fala em reparação, está a se falar em “toda e qualquer conduta do Estado infrator 67

para eliminar as consequências do fato internacionalmente ilícito, o que compreende uma série de atos, inclusive as garantia de não repetição”. O autor prossegue defendendo que O termo “reparação” é considerado gênero, contando com várias espécies (restituição na íntegra, satisfação, cessação do ilícito, garantias de não repetição e outras). Essa diversidade consagra a preferência do direito internacional por fórmulas distintas de eliminação de todas as consequências geradas pelo fato internacionalmente ilícito (RAMOS, 2011, p. 204).

Assim sendo, a CIDH determinou a obrigação de investigar, processar e, se for o caso, punir os responsáveis pelos crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar brasileira; obrigação de determinar os paradeiros das vítimas; a implementação de medidas de reabilitação, como o fornecimento de atendimento médico e psicológico ou psiquiátrico às vítimas; bem como de medidas de satisfação, a citar, como exemplo, o pedido oficial de desculpas e a admissão de responsabilidade internacional do Estado. Em se tratando de garantias de não repetição, a Corte determinou que o Brasil tipifique o crime de desaparecimento forçado de pessoas, bem como permita o acesso público aos documentos e informações sigilosos a respeito da ditadura militar, especialmente quanto à Guerrilha do Araguaia, dentre outras medidas. Por fim, o Tribunal fixou indenizações. A Corte ainda reiterou a obrigação do Estado de investigar os fatos, a fim de esclarecê-los, “determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei disponha” (CORTE..., 2014, p. 281), observando que essa obrigação deveria ser cumprida em prazo razoável e que o Estado não poderia aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores dos crimes contra a humanidade aqui praticados. Outrossim, a Corte IDH ainda estabeleceu medidas de reabilitação (atendimento médico e psicológico ou psiquiátrico às vítimas); de satisfação (publicação da decisão da CIDH e ato público de reconhecimento da responsabilidade do Estado); de não-repetição (realização de programa permanente e obrigatório de capacitação das Forças Armadas com foco nos direitos humanos; tipificação do delito de desaparecimento forçado; ratificação da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas; acesso, sistematização e publicação de documentos em poder do Estado; criação de uma Comissão da Verdade). Para além, a 68

Corte fixou reparação pelos danos materiais sofridos pelos familiares das vítimas, desde 10 de dezembro de 1998 (data da ratificação da competência da Corte pelo Brasil), até a data da sentença. Nesse ínterim, a fim de dar cumprimento a tais recomendações, cumpre referir que, a partir do Decreto Legislativo nº 127, de 08 de abril de 2011, o Senado Federal finalmente aprovou o texto da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas. Contudo, a obrigação de tipificação do crime de desaparecimento forçado de pessoas na legislação interna do país – infelizmente – ainda não foi implementada. Igualmente, importante registrar que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada no país a partir da Lei nº 12.528/2011, em atenção ao disposto na decisão da Corte IDH. Apesar disso, os julgamentos pelos tribunais nacionais dos crimes cometidos durante a ditadura ainda têm sido obstaculizados pela Lei de Anistia, ainda vigente em nosso ordenamento graças à supracitada ADPF nº 153.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, nota-se que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos vem exercendo um papel indispensável à valorização dos direitos do homem na América Latina. Sem esse trabalho muitos dos avanços que hoje conhecemos não teriam sido sequer imagináveis. Não obstante, ainda há muito a ser feito no sentido de ampliar a força da Corte e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É preciso que tão relevantes órgãos sejam dotados de mecanismos hábeis a fazer cumprir suas recomendações e decisões, exigindo-se, nesse sentido, uma atuação mais marcante da Organização dos Estados da América (OEA). Espera-se que, desse modo, seja alcançada a efetiva proteção à dignidade da pessoa humana em todos os cantos desse continente. Relativamente à decisão do Supremo Tribunal Federal nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, causa aflição notar o evidente conservadorismo que assola a Suprema Corte do país. Nem mesmo o voto mais qualificado proferido pela Corte, o do Ministro Ricardo Lewandowski, ultrapassa a simples menção à jurisprudência internacional de proteção aos direitos humanos. 69

Por sua vez, a Corte IDH, reiterando o seu já consolidado entendimento de que leis de anistia e institutos como a prescrição e a coisa julgada não podem servir de obstáculo para o esclarecimento de graves crimes contra a humanidade, condenou o Brasil por violações às disposições do Pacto de San José da Costa Rica. Nem mesmo Roberto Caldas, juiz ad hoc indicado pelo Estado brasileiro, destoou do entendimento da CIDH, ressaltando que a Corte de San José promoveu um controle de convencionalidade da Lei de Anistia brasileira, não adentrando no mérito da decisão proferida pelo STF nos autos da ADPF 153. Nesse contexto, é preciso considerar que a simples ratificação dos tratados internacionais sobre direitos humanos não é – nem nunca foi – suficiente para que um Estado respeite e assegure tais direitos. É fundamental que o Poder Público como um todo – Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário – passe a adotar a interpretação dos tribunais internacionais acerca dos dispositivos internacionais de proteção aos direitos humanos. Somente assim a aplicação do direito internacional no país não se dará de forma “nacionalizada” e totalmente desconectada do que dispõem os sistemas regional e global de proteção dos direitos humanos. Certamente com a superação desse “positivismo exacerbado” seja possível adentrar numa nova era de respeito aos direitos da pessoa humana. Aceitar que graves violações de direitos humanos permaneçam impunes significa aceitar que a lei não vale para todos, pois não se aplica para aqueles que detêm o poder. Essa conduta configura uma ameaça constante a todos os demais componentes de uma sociedade. Nesse sentido, calar-se diante da impunidade é colocar em risco o futuro de nossa ainda incipiente democracia.

REFERÊNCIAS BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional n. 153. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, 29 de abril de 2010. Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2015. GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar: para uma justiça internacional. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. 70

GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE – ICTJ. Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de lesa-humanidade, a imprescritibilidade e a proibição de anistia. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, DF, 2009, n. 01, p. 352-94, jan./jun. 2009. Disponível em: . Acesso em: 07 jun. 2015. JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS / Secretaria Nacional de Justiça, Comissão de Anistia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tradução da Corte Interamericana de Direitos Humanos. vol. 7. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. Disponível em: < http://www.justica.gov.br/noticias/mj-lanca-colecaojurisprudencia-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos>. Acesso em: 24 ago. 2015. KRSTICEVIC, Viviana; AFFONSO, Beatriz. A importância de se fazer justiça: reflexões sobre os desafios para o cumprimento da obrigação de investigar e punir os responsáveis em observação à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Guerrilha do Araguaia. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos: uma análise comparativa dos sistemas interamericano, europeu e africano. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2011. NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Relatório S/2004/616: o estado de direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, DF, 2009, n. 01, p. 320-51, jan./jun. 2009. Disponível em: . Acesso em: 07 jun. 2015. PENSKY, Max. O status das anistias internas no direito penal internacional. In: PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford University, Latin American Centre, 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 maio. 2015. p. 76-101. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. 71

São Paulo: Saraiva, 2013. Versão digital. RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar: a ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. Versão digital. SIKKINK, Kathryn. A era da responsabilização: a ascensão da responsabilização penal individual. In: PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford University, Latin American Centre, 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 maio. 2015. p. 34-74.

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A GOVERNANÇA AMBIENTAL GLOBAL E A ECONOMIA VERDE COMO FORMAS DE CONCRETIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AMBIENTAL

Danielli Zanini1 Vinicius Bindé Arbo de Araújo2

INTRODUÇÃO

A proteção ambiental e o desenvolvimento econômico são questões importantes para o ambiente internacional. Mais do que importante, a proteção do meio ambiente é questão urgente, tendo em vista o alerta de colapso do planeta a partir do uso irresponsável dos recursos naturais não renováveis e de agressões ao ambiente do qual fazemos parte. Diante dessa realidade, cabe fazer uma análise da evolução do debate acerca da proteção ambiental no âmbito internacional a partir das Conferências das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Nesse sentido, a partir da noção de desenvolvimento sustentável, busca-se fazer uma avaliação das medidas adotadas em âmbito global para verificar se as metas estão sendo efetivadas de forma a resultar no comprometimento dos Estados com a questão da proteção ambiental e social, tendo em vista que a tendência dos países é ater-se a questões econômicas, relegando ao segundo plano o desenvolvimento sustentável. Constatada a falta de efetividade das medidas adotadas, os conceitos de Economia Verde e Governança Ambiental Global são apresentados como instrumentos capazes de resolver conflitos internacionais e possibilitar a transição de um modelo de desenvolvimento que segue prejudicando o meio ambiente para um desenvolvimento mais alinhado ao do desenvolvimento sustentável.

1

Bacharel em Direito pela UNIJUÍ; Pós-graduanda em Relações Internacionais pela Damásio Educacional; Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ; e-mail: [email protected] 2 Bacharel em Direito e Mestrando em Direito Humanos pela UNIJUÍ; e-mail: [email protected]

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1 GOVERNANÇA AMBIENTAL GLOBAL E ECONOMIA VERDE COMO POSSIBILIDADE DE CONCRETIZAR A PROTEÇÃO AMBIENTAL

Antes de adentrar nos temas Governança Ambiental Global e Economia Verde, cabe analisar historicamente os avanços e retrocessos na proteção ambiental. Para isso, toma-se como base as Conferências das Nações Unidas e, mais especificamente, o conceito de desenvolvimento sustentável.

1.1. Evolução do debate ambiental a partir das Conferências das Nações Unidas para o Meio Ambiente e do conceito de desenvolvimento sustentável Para começar, é preciso retornar à época da industrialização, por volta do século XIX. Foi nesse período e como uma resposta à crescente industrialização que o movimento ambiental iniciou. Prosseguindo, após a II Guerra Mundial, surgiram novas preocupações, agora em relação à era nuclear e ao uso de pesticidas químicos sintéticos na agricultura. Apesar da crescente preocupação com a proteção da saúde humana e do meio ambiente, foi somente em 1969 que a responsabilidade pelo ecossistema ganhou a consciência coletiva do mundo. Isso aconteceu porque foi nesse ano que a primeira foto da Terra vista do espaço foi feita (ONU, 2016). No pós-guerra, prevaleceu o modelo econômico desenvolvimentista. Para esse modelo, as questões ambientais representavam entraves ao progresso. Por isso, analisando uma perspectiva nacional, no Brasil, em vez de privilegiar a distribuição de renda, uma economia mais autônoma e a proteção ambiental, o que vingou foram incentivos públicos que levaram ao desmatamento do Cerrado, da Mata Atlântica e da Amazônia e a instalação do parque automobilístico em detrimento das ferrovias (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011).

Além da expansão do agronegócio, houve uma intensa e desordenada urbanização, resultando em favelas e poluição ambiental. Dessa forma, problemas sociais e econômicos (hiperinflação, endividamento externo e arrocho salarial) se aliaram a problemas ambientais, como “acidentes químicos e derramamento de petróleo, poluição do ar e dos recursos hídricos, desmatamento, devastação de mangues e áreas úmidas, contaminação por agrotóxicos e outras substâncias químicas e uma montanha de lixo” (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). 74

Nessa ordem de desenvolvimento econômico e com a preocupação sobre o uso dos recursos do planeta elevada ao nível de fenômeno global, a ONU convocou a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, que ocorreu em Estocolmo (Suécia) em 1972 e foi o primeiro grande evento a discutir questões ambientais em nível internacional. Dessa conferência, surgiu um documento contendo 19 princípios que “estabelecem as bases para a nova agenda ambiental do Sistema das Nações Unidas, bem como o Relatório Meadows, que assinala a necessidade de reduzir o crescimento econômico, tendo em vista o risco de colapso das sociedades modernas a partir da utilização dos recursos naturais não renováveis” (GOLDEMBERG; COELHO, 2015; ONU, 2016). No entanto, esse período ainda apresentava a questão ambiental de forma marginalizada, sendo maior a preocupação com o desenvolvimento. Assim, pode-se dizer que haviam duas linhas de pensamento sobre o desenvolvimento: uma conservadora e outra progressista. Para os conservadores, desenvolvimento significava crescimento econômico que solucionaria os problemas sociais e atraso econômico dos países subdesenvolvidos. Para os progressistas, desenvolvimento era a combinação de “crescimento econômico, distribuição de renda, investimentos sociais e relações justas no comércio internacional” (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). Uma forma de combinar o crescimento econômico com a proteção ambiental foi apresentada em 1987, no Relatório Brundtland, que é resultado dos debates da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento e que consagra a definição de desenvolvimento sustentável como “a conciliação entre promoção do desenvolvimento e proteção do meio ambiente”. Com o Relatório, surge o conceito de desenvolvimento sustentável, como o desenvolvimento capaz de “atender às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem as suas próprias necessidades” (LEUZINGER; MONT’ALVERNE; OLIVEIRA, 2015). Mais do que isso, a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento salientou que “muitas das atuais tendências do desenvolvimento resultam em número cada vez maior de pessoas pobres e vulneráveis, além de causarem dano ao meio ambiente”, razão pela qual “era necessário um novo tipo de desenvolvimento capaz de manter o progresso humano não apenas em alguns lugares 75

por alguns anos, mas em todo o Planeta até um futuro longínquo” (SILVA, 2002). Do conceito de desenvolvimento sustentável apresentado pelo Relatório Brundtland em 1987, cabe dizer que seu significado evoluiu ao longo dos anos, buscando conciliar aspectos relacionados ao meio ambiente com o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social. No entanto, o conceito e o caráter jurídico da expressão

desenvolvimento

sustentável

ainda

é

objeto

de

controvérsia.

(MONT’ALVERNE; OLIVEIRA, 2015). A segunda Conferência das Nações Unidas foi realizada em 1992, no Rio de Janeiro, ficando mais conhecida como Rio-92. Nessa Conferência houve a assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica e a Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima, bem como foi aprovado um plano de ação denominado Agenda 21. Vale ressaltar que as duas convenções, a Agenda 21 e o documento final da Conferência (Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento) trazem incorporados

em

seus

textos

a

expressão

desenvolvimento

sustentável

(MONT’ALVERNE; OLIVEIRA, 2015). Paralelamente ao surgimento do debate sobre o desenvolvimento sustentável, surge o conceito de interdependência que estendeu-se à ideia de que as nossas escolhas determinam o futuro de nossas crianças e o das próximas gerações. Uma abordagem que remete à sabedoria dos índios iroqueses, cuja tradição ensina ser a boa decisão aquela cujas consequências podem ser avaliadas até a sétima geração por vir (LAVILLE, 2009). A Rio-92 foi relevante devido a grande presença de chefes de Estado, da sociedade civil e de Organizações Não-Governamentais, que realizaram, de forma paralela, o Fórum Global. Cabe aqui apresentar alguns números: estiveram presentes “108 chefes de Estado, 172 países participantes, 2.400 representantes da sociedade civil e 17.000 ativistas no Fórum Global” (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). A terceira Conferência Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável foi realizada em 2002, em Joanesburgo, na África do Sul, e ficou mais conhecida como Rio+10. Apesar de não atingir os resultados esperados, devido à ausência de consenso entre os Estados participantes, foi nessa conferência que fica explicitamente disposta a existência dos três pilares do desenvolvimento sustentável: “os pilares do desenvolvimento

sustentável

que

são

o

desenvolvimento

econômico,

o 76

desenvolvimento social e a proteção ambiental” (MONT’ALVERNE; OLIVEIRA, 2015). A última conferência realizada foi a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, em 2012, no Rio de Janeiro, conhecida como Rio+20, sendo que foram dois temas que orientaram os debates, “a reestruturação institucional do meio ambiente, bem como a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza” (MONT’ALVERNE; OLIVEIRA, 2015). Vale ressaltar que o cenário mundial da época em que aconteceu a Rio+20 era o da crise econômica de 2008 e da degradação da maior parte dos ecossistemas do planeta, razão pela qual, para reverter os inúmeros problemas apresentados, era mais do que necessário buscar uma transição ao desenvolvimento sustentável, visando assegurar qualidade de vida para a população mundial e interromper a destruição dos ecossistemas (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). Diante desse cenário mundial, a governança internacional do meio ambiente foi levantada como alternativa para se vencer a fragilidade institucional que dificultava o debate internacional. Nesse viés, uma das sugestões foi a criação de uma Organização Mundial para o Meio Ambiente, que, enquanto instância política internacional, facilitaria a cooperação e a coordenação entre os países (MONT’ALVERNE; OLIVEIRA, 2015). Outra sugestão foi a da economia verde como uma forma de alcançar o desenvolvimento sustentável. Essa ideia foi interpretada como “uma resposta à crise econômica” por alguns países e, por outros, como “uma forma disfarçada de criar normas ambientais suscetíveis de dificultar o comércio entre os países do Norte e do Sul” (MONT’ALVERNE; OLIVEIRA, 2015). De uma análise geral das Conferências das Nações Unidas para o Meio Ambiente, observa-se que os países são resistentes em adotar metas concretas para a efetivação da proteção ambiental e desenvolvimento sustentável. Isso porque há vários interesses em jogo, como a forte influência de questões econômicas e a dicotomia Norte-Sul entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Percebe-se, assim, “falta de vontade política e, por consequência, a complexidade da problemática do desenvolvimento sustentável” (MONT’ALVERNE; OLIVEIRA, 2015). Dessa abordagem evolutiva feita a partir das Conferências das Nações Unidas 77

pode-se dizer que houve uma grande evolução quanto a preocupação em relação às questões ambientais e de desenvolvimento sustentável dos países em nível internacional. Apesar disso, ainda há pouca cooperação entre os atores internacionais, no sentido de se concretizar as medidas adotadas nas Declarações e demais documentos sobre o tema. Por isso, passa-se a abordar no tópico seguinte a Economia Verde e a Governança Ambiental Global como formas de mediar os conflitos internacionais existentes em relação a temática ambiental e concretizar as metas perseguidas.

1.2. Economia Verde: conceito e características

Neste tópico serão abordados o conceito e as características da Economia Verde com o objetivo de avaliar a sua instrumentalidade enquanto concretizadora do desenvolvimento sustentável. A Economia Verde está relacionada ao conceito de desenvolvimento sustentável e sua ideia central é a de que “o conjunto de processos produtivos da sociedade e as transações deles decorrentes contribuam cada vez mais para o Desenvolvimento Sustentável, tanto em seus aspectos sociais quanto ambientais” (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). Assim, para o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), Economia Verde é concebida “como aquela que resulta em melhoria do bem-estar humano e da igualdade social, ao mesmo tempo em que reduz significativamente os riscos ambientais e a escassez ecológica” (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). Entre os principais temas da Economia Verde pode-se destacar “energia e mudanças climáticas, construção civil, resíduos, químicos, transporte, florestas e uso da biodiversidade, agricultura e pesca, economia solidária e finanças sustentáveis”. Além disso, a transição para a Economia Verde pode ser entendida a partir de três grandes blocos temáticos, vejamos: O primeiro compreende assuntos relacionados à sociedade urbanoindustrial, cujo modelo econômico foi herdado da Revolução Industrial e exacerbado no pós-guerra. É um modelo que não sabe o que fazer com o lixo que gera, depende de substâncias químicas perigosas para a saúde humana e o meio ambiente, baseia-se em uma matriz energética dominada por combustíveis fósseis com grande impacto ambiental e articula-se a

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sistemas de transporte que priorizam os carros e poluem a atmosfera. O segundo bloco inclui questões mais relacionadas à utilização dos ativos naturais pelos agentes econômicos. São ativos estruturais para o bom funcionamento da economia a longo prazo, tais como florestas, biodiversidade, ecossistemas aquáticos e solo, que vêm sendo violentamente destruídos em detrimento do lucro fácil e imediato. O terceiro grupo refere-se a ações relacionadas à redução da pobreza e de desigualdades (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011).

Nesse sentido, diante da amplitude da Economia Verde, ao ser trazida ao debate da Rio+20, ela passou a ser vista como “um grande guarda-chuva”. Isso porque esperava-se que pudesse abrigar e articular várias propostas de alcance mais específico. Essa ideia surge porque a Economia Verde: inclui processos relacionados ao combate às mudanças climáticas de origem antrópica, mas também trata de reverter outras tendências insustentáveis, quer sociais – como o consumismo e a crescente desigualdade – quer ambientais – como a vasta contaminação dos ecossistemas e do próprio corpo humano por substâncias químicas. […] Como elemento do Desenvolvimento Sustentável, a Economia Verde também deve ser necessariamente inclusiva, demandando a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades e a promoção dos direitos humanos e sociais (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011).

No aspecto econômico, o Relatório de Economia Verde (REV) feito pela Iniciativa Economia Verde (IEV) do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), publicado em 2011, “indica que a transição para a Economia Verde redundaria em taxas superiores de crescimento global do Produto Interno Bruto (PIB) e do nível de emprego nos cenários de médio e longo prazos” (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). No entanto, muitos teóricos criticam aspectos do crescimento verde. Nessa linha, economistas mais ligados à economia ecológica destacam que o “crescimento econômico constante” pode ser neutralizado com “eficiência energética e uso de matérias-primas”; além disso, destacam o crescimento no consumo; pode-se citar também a crítica de Ricardo Abramovay, que lamenta a falta de um estudo mais aprofundado quanto aos “padrões de consumo e estilos de vida nas economias do mercado”; por sua vez, Alexandre D’Avignon e Luiz Antônio Cruz Caruso asseveram que além de uma economia verde “é necessário uma mudança estrutural da ‘administração da casa’ (…), referindo-se ao planeta como a casa de todos os seres vivos e, como tal, necessitando ser conservado e respeitado” (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). 79

A visão de que a produção de bens e serviços deve levar em conta não apenas o aspecto de geração de emprego e renda, mas sim o respeito aos ecossistemas, é recorrente nos estudos de teóricos que analisam a questão da Economia Verde, senão vejamos: O verdadeiro desafio de uma nova economia (voltada a reconstruir a relação entre sociedade e natureza, economia e ética) é diferente: trata-se de embutir em cada passo da produção e da distribuição a capacidade de criar bens úteis e relevantes para os indivíduos, as comunidades e os territórios com os quais as empresas responsáveis por essa criação se relacionam, expondo de maneira clara a contabilidade dos fluxos materiais e energéticos em que a produção se apoia. Nada menos que uma nova cultura econômica, ou seja, a mudança de referências e de valores nos quais se apoiam as oportunidades de negócios. Mas isso significa que os bens e os serviços que emergem do sistema econômicos devem ser julgados não apenas por seus efeitos indiretos: por sua capacidade de atender a uma demanda genérica, por embutirem a criação de postos de trabalho e por seu apoiarem em conhecimentos técnicos que não se desenvolveriam na ausência dos produtos aos quais se vinculam. Esse julgamento tem de levar em conta os impactos diretos do que ocorre na economia da vida das pessoas e no estado dos ecossistemas. E é com base nessas premissas que se pode discutir a real capacidade de a economia reduzir a pobreza e aumentar o bem-estar das pessoas. (ABRAMOVAY, 2012)

Além das críticas dos teóricos, países em desenvolvimento apontam alguns riscos da Economia Verde, bem como a sociedade civil também apresenta posicionamentos diversos. Nesse sentido, países em desenvolvimento alertam para uma Economia Verde que não considere as dimensões do desenvolvimento e da igualdade social; que funcione como condição para assistência financeira, empréstimos e renegociação da dívida externa de países em desenvolvimento; e que mantenha o Sul pobre e fornecedor de “serviços ambientais” e do Norte afluente e consumista pela Economia Verde. Por sua vez, a sociedade civil apresenta resistência ao “ambientalista de mercado” como um novo ciclo do capitalismo, caminhando para a lógica de mercado; apresenta ceticismo com relação ao termo e sua relevância, questionando-se sobre a necessidade de mais um termo relacionado ao Desenvolvimento Sustentável; mas também aponta a Economia Verde como ferramenta de mudança (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). Outra questão que precisa ser abordada diz respeito ao avanço no entendimento de sustentabilidade, para além do propósito da Economia Verde, muitas vezes restrito à criação de inovações que permitem produzir de forma ambientalmente correta, mas que não aprofunda o debate sobre a necessária e efetiva redução de 80

produção e do uso de energias não renováveis, a partir do enfrentamento do consumismo desenfreado e da reinterpretação de que esse mesmo alto nível de consumo é preponderante para o crescimento econômico e, consequentemente, para a redução da pobreza. Hoje, está claro, necessita-se de uma perspectiva que permita entender que o mundo precisa de limites, conforme análise extraída a seguir: [...] produzir – produzir cada vez mais – para quê? No mundo do século 19 e na primeira metade do século 20, em que os recursos materiais e energéticos pareciam infinitos (ou, ao menos, infinitamente substituíveis), essa questão beirava a irrelevância. Mas, em uma situação em que o aumento na oferta de bens e serviços representa ameaça cada vez de forma mais clara à existência da espécie humana por seus efeitos na biodiversidade, no clima e nos grandes equilíbrios geoquímicos dos quais depende a própria vida, o tema torna-se absolutamente central. (ABRAMOVAY, 2012)

Quanto a Economia Verde como ferramenta de mudança assevera-se que as críticas são entendidas como alertas importantes, mas que não eliminam a importância da proposta que visa articular práticas econômicas com questões sociais e ambientais. Assim, o desafio central da Economia Verde seria utilizar o poder da economia para dar centralidade e força às propostas de sustentabilidade com justiça social e ambiental, enquanto, ao mesmo tempo, evitam-se os riscos e “efeitos colaterais” da apropriação distorcida dessas propostas pelo sistema hegemônico. Para isso, o caminho seria construir um sistema de instituições e políticas, com eficaz controle social, voltado a direcionar a atividade econômica no rumo desejado (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011).

Dessa forma, o sucesso da implementação da Economia Verde dependerá da consistência das práticas e propostas, sendo que a firmeza e comprometimento na sua adoção é mais importante que a sua conceituação (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011).

1.3. Governança Ambiental Global: conceito e características

A Governança foi um dos temas discutidos na Rio+20 e possui relação com a institucionalização ambiental global visando a transição ao Desenvolvimento Sustentável. Em outras palavras, busca-se a concretização de convenções, declarações e protocolos. O conceito de governança surgiu no final dos anos 1980, com o Banco Mundial 81

e o Fundo Monetário Internacional a partir da expressão boa governança com o objetivo de permitir o adequado funcionamento do mercado ao mesmo tempo em que reduziria a pobreza. No entanto, após críticas de movimentos sociais e populares na década de 1990, o próprio Banco Mundial deixa a boa governança de lado e passa a se comprometer mais com o desenvolvimento sustentável. (GONÇALVES; COSTA, 2015). Assim, o conceito de governança passa por uma transformação, sendo apresentado pela Comissão sobre Governança Global, criada pela ONU, em 1994, como “a totalidade das diversas maneiras pelas quais os indivíduos e as instituições, públicas e privadas, administram seus problemas comuns”. Aqui surge a participação ampliada, ultrapassando as relações intergovernamentais de forma a abranger ONG’s, movimentos civis, mercados de capital global e empresas multinacionais (GONÇALVES; COSTA, 2015). Ainda, Gonçalves e Costa (2015, p. 95-96) destacam o caráter global da governança e sua relação com a globalização. Nessa esteira, é preciso compreender a globalização

como

“um

conjunto

de

processos

cumulativos,

de

âmbito

multidimensional, que engloba uma mudança significativa na organização da atividade humana e o deslocamento do poder da orientação local ou nacional para padrões globais, com interdependência e interconexão”. A partir desse contexto globalizado, são quatro as dimensões pelas quais a definição de governança global passa, sendo, a partir dessas dimensões, capaz de possibilitar a produção de resultados para problemas globais, a participação ampliada, o caráter de consenso e persuasão nas relações e ações, e a interação de atores e facilitar a cooperação, vejamos: a) seu caráter instrumental, o que significa que ela é um meio, instrumento, ferramenta e processo capaz de produzir resultados eficazes diante de problemas e desafios globais; b) nos processos de governança global há claramente uma participação ampliada nos processos decisórios, envolvendo tanto a dimensão estatal como organizações internacionais, atores não governamentais e empresas multinacionais; c) o traço marcante da governança global é seu caráter de consenso e persuasão nas relações e ações, muito mais do que a coerção e a obrigação de cumprir. Ela está presente quando é capaz de articular os diferentes atores – estatais e não estatais – para enfrentar desafios agindo e articulando a partir da construção de consensos e forjando a cooperação para resolver problemas; d) sua dimensão institucional, ou seja, sua relação com arranjos de natureza institucional. Governança refere-se também a princípios, normas, regras e procedimentos capazes de estabelecer papéis, guiar a interação dos atores e facilitar a cooperação e diminuir os problemas de ação coletiva num mundo

82

independente (GONÇALVES; COSTA, 2015, p.97).

No âmbito ambiental também é possível verificar as quatro dimensões que formam a estrutura da governança global, resultando, assim, em uma Governança Ambiental Global. Isso é possível na medida em que se percebe que: (a) as ações e procedimentos adotados, resultado da articulação dos diferentes atores envolvidos, constituem-se em poderoso instrumento, ou seja, meio e processo para a resolução das questões; (b) há a participação ampliada nos processos, coma presença dos Estados, organizações internacionais, atores não governamentais; (c) a dimensão do consenso e da cooperação voluntária está presente nas ações que envolvem a Governança Ambiental Global; (d) há crescente institucionalização de processos que dizem respeito a essa nova forma de tratamento das questões ambientais, com regras e normas, formais e informais, para organizar o desenvolvimento das ações e estabelecer metas para controle e limitação de ações predatórias ou que ameacem o meio ambiente (GONÇALVES; COSTA, 2015, p. 99).

É importante compreender, outrossim, que a Governança Ambiental Global exige uma paciente construção, a partir de várias etapas. Isso pode ser observado na evolução entre as Conferências das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Essas etapas são as seguintes: a) a percepção dos problemas ambientais, seja quanto à natureza e extensão, bem como a avaliação dos riscos, danos e prejuízos financeiros, econômico, sociais e humanos decorrentes do seu não enfrentamento. b) a elaboração de diagnósticos e estudos técnicos e científicos capazes de permitir o planejamento eficiente de soluções, a real avaliação dos custos envolvidos e das externalidades provocadas pelos problemas ambientais. c) o envolvimento de múltiplos atores – estatais e não estatais – tanto no processo de discussão dos problemas quanto na formulação de soluções. d) a articulação de diferentes interesses e construção de mecanismos de cooperação entre Estados nacionais, com a ativa participação da sociedade civil organizada. e) o desenho de instituições – regras, normas, procedimentos – capazes de organizar o processo no tempo e no espaço. f) a implementação efetiva dos mecanismos propostos, com o monitoramento e acompanhamento dos resultados, com correções e ajustes necessários (GONÇALVES; COSTA, 2015, p. 100).

Para GVces; ISA; Vitae Civilis, (2011), a governança compreende os seguintes ângulos: “instrumentos regulatórios; planos regionais e nacionais de execução de acordos; órgãos gestores; formas de penalizar o descumprimento de acordos; participação e controle social; transparência e acesso à informação; fundos para cumprimento de acordos”. A necessidade de institucionalização a partir da Governança Ambiental Global 83

fica evidente quando passa-se a considerar algumas questões. A primeira delas é a questão de que o Pnuma não é uma agência especializada e, portanto, “não possui autonomia, verba e poder similares aos desfrutados por organizações como OMC, OMS, OIT”. Além disso, os acordos multilaterais não possuem vínculo hierárquico com o Pnuma (GVces; ISA; VITAE CIVILIS, 2011). Esse quadro fica ainda mais preocupante se analisarmos que a complexa e grave política ambiental global é baseada em inúmeros tratados, convenções e declarações, fragmentação que, aliada à falta de cooperação, resulta no descumprimento das regras. Essa situação, combinada à ausência de vinculação jurídica gera a impunidade dos países e a impossibilidade de obrigá-los a cumprir os acordos internacionais de direito ambiental. Ainda que a necessidade de uma Governança Ambiental Global seja evidente, existem obstáculos à sua implementação. Especificamente quanto ao contexto brasileiro, a Governança Ambiental apresenta cinco problemas, quais sejam: Descontinuidade administrativa que retarda e altera programas nos ministérios a cada mudança de governo nas eleições e troca de ministros; Gestão confusa da informação, ilustrada, por exemplo, pela dificuldade de acessar documentos fundamentais da agenda ambiental do Desenvolvimento Sustentável; Ações desordenadas em alguns temas importantes, como o das mudanças climáticas (disputa entre os ministérios de Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente e Relações Exteriores) e o da segurança química (falta de sintonia entre os ministérios da Saúde, Meio Ambiente e Agricultura no controle de agrotóxicos); Escassez de indicadores de desempenho das políticas ambientais e dos programas interministeriais focados no Desenvolvimento Sustentável; Funcionamento precário do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), falho ao compartilhar informações e ações entre órgãos federais, estaduais e municipais (GVces;

ISA; VITAE CIVILIS, 2011). Em uma perspectiva global, pode-se citar ao menos quatro tipos de limitações à Governança Ambiental. A primeira delas diz respeito a dificuldade de legitimação dos atores, exemplificada pelas ONGs. A segunda possui relação com a necessidade de mecanismos de coerção mais efetivos, uma vez que, diante da busca de cooperação e persuasão pelo diálogo, pode-se chegar a uma perda de efetividade. A terceira limitação está ligada a necessidade de reformas, necessidade existente por não ser um produto acabado e estar em constante aprimoramento. A quarta limitação está relacionada a existência de problemas internos, externos e conjunturais, considerandose a dificuldade de difundir a governança entre governos, organizações internacionais, 84

empresas e sociedade civil, no aspecto interno; dificuldade de equilibrar o poder entre grandes potências, no aspecto externo; e, dificuldade de contornar crises econômicas, financeiras e/ou instabilidade política, no aspecto conjuntural (GONÇALVES; COSTA, 2015, p. 111-113). Dessa forma, pode-se afirmar que o caráter instrumental da governança global possibilita a sua atuação enquanto forma de resolução de conflitos também no âmbito ambiental, tendo em vista que os problemas ambientais não são questões regionais ou nacionais e, assim, implicam uma abordagem global. Apesar disso, é preciso atentar para algumas limitações de várias ordens que surgem diante de um tema tão complexo e de caráter global.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução da atenção internacional em relação à proteção ambiental pode ser percebida a partir de uma breve análise histórica. No entanto, ainda que muito já tenha sido realizado, sempre há mais por ser feito. Essa necessidade de constante aprimoramento da proteção ao meio ambiente é notória a cada notícia de agravamento do aquecimento global, de ampliação do desmatamento, de poluição dos mares, do ar e da terra, de acidentes ambientais, entre outros. Além disso, a partir da ideia de Desenvolvimento Sustentável que surgiu com o Relatório Brundtland e, considerando que a proteção do meio ambiente tem relação íntima com o desenvolvimento econômico, é importante que se pense um desenvolvimento mais atento ao bem-estar da população que vise reduzir as desigualdades sociais, por exemplo. Apesar do esforço feito durante as Conferências das Nações Unidas para o Meio Ambiente para estabelecer e concretizar metas de desenvolvimento sustentável e proteção ao meio ambiente, a cooperação e o diálogo entre os países e atores internacionais ainda são aspectos prejudicados em razão da pluralidade de interesses e da forte influência de questões econômicas, aliado ao agravante da ausência de mecanismos coercitivos que dificulta a efetividade da solução dos problemas ambientais globais. Diante desse cenário, a Economia Verde e a Governança Ambiental Global se 85

revelam importantes instrumentos na promoção do desenvolvimento sustentável e na resolução de conflitos ambientais globais a partir da institucionalização do direito ambiental internacional, da participação ampliada de países e sociedade civil, da promoção do diálogo e cooperação entre atores, e da regulação e coerção de normas, acordos e declarações. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, Ricardo. Muito Além da Economia Verde. São Paulo: Editora Abril, 2012. COELHO, Suani Teixeira; GOLDEMBERG, José. Energia – de Estocolmo à Rio+20. In: GRANZIERA; Maria Luiza Machado; REI, Fernando (Org.). Direito Ambiental Internacional: Avanços e Retrocessos: 40 anos de Conferências das Nações Unidas. São Paulo: Atlas. 2015. cap. 1. GONÇALVES, Alcindo; COSTA, José Augusto Fontoura. Governança Ambiental Global: possibilidades e limites. In: GRANZIERA; Maria Luiza Machado; REI, Fernando (Org.). Direito Ambiental Internacional: Avanços e Retrocessos: 40 anos de Conferências das Nações Unidas. São Paulo: Atlas. 2015. cap. 5. GRANZIERA; Maria Luiza Machado; REI, Fernando (Org.). Direito Ambiental Internacional: Avanços e Retrocessos: 40 anos de Conferências das Nações Unidas. São Paulo: Atlas. 2015. GVces, Centro de Estudos em Sustentabilidade; ISA, Instituto Socioambiental; VITAE CIVILIS. Radar Rio+20: Por dentro da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Creative Commons. 2011. Disponível em: . Acesso em: 02 de mai. 2016. LAVILLE, Élisabeth. A empresa verde. Tradução de Denise Machado. São Paulo : Ed. ÕTE, 2009. OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva; MONT'ALVERNE, Tarin Cristino Frota. A Evolução da Noção de Desenvolvimento Sustentável nas Conferências das Nações Unidas. In: GRANZIERA; Maria Luiza Machado; REI, Fernando (Org.). Direito Ambiental Internacional: Avanços e Retrocessos: 40 anos de Conferências das Nações Unidas. São Paulo: Atlas. 2015. cap. 6. ONU. A ONU e o Meio Ambiente. Disponível . Acesso em: 28 de abr. 2016.

em:

REI, Fernando; GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental Internacional: novos olhares para a ciência do direito. In: GRANZIERA; Maria Luiza Machado; REI, Fernando (Org.). Direito Ambiental Internacional: Avanços e Retrocessos: 40 anos de 86

Conferências das Nações Unidas. São Paulo: Atlas. 2015. cap. 8. SILVA, Alice Rocha. O Direito Administrativo Global como Ferramenta de Implementação do Direito Ambiental. In: GRANZIERA; Maria Luiza Machado; REI, Fernando (Org.). Direito Ambiental Internacional: Avanços e Retrocessos: 40 anos de Conferências das Nações Unidas. São Paulo: Atlas. 2015. cap. 7. SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. Direito Ambiental Internacional: meio ambiente, desenvolvimento sustentável e os desafios da nova ordem mundial. Rio de Janeiro: Thex Editora. 2002.

87

A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA E SUA RELAÇÃO COM A SUSTENTABILIDADE E A BIOPOLÍTICA

Nadja Regina Matte1

Meio ambiente não é meio, Não é sonho ou devaneio, Não é conto ou poesia. Meio ambiente é mais que meio, É a redoma, é o esteio: Bio-terra em harmonia. [...] Chora o solo acinzentado, Chora a mata o mal legado, Chora a fauna tal desdém; E o homem, indiferente, Na ganância persistente, Busca a morte, assim, também. Justo Chacon

INTRODUÇÃO

A proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento sustentável, aliados à biopolítica, representam uma nova ordem para a governança mundial e é objeto de intensas discussões, efetuadas pelas mais variadas esferas da sociedade civil. Isto porque, realizar uma breve discussão sobre a relação existente entre o desenvolvimento sustentável, a biopolítica e a proteção da dignidade da pessoa humana, nos dias atuais, é o objetivo do presente trabalho intitulado “A proteção da Dignidade Humana e sua relação com a sustentabilidade e a biopolítica”. O estudo é relevante porque todas as pessoas têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, visto que tal direito está intrinsicamente ligado à dignidade humana. Também, porque o meio ambiente está entrando em colapso e é urgente que ações sejam desenvolvidas para frear as consequências da degradação ambiental. Assim, o presente estudo foi dividido em dois tópicos, para melhor

1

Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ; Geógrafa, Professora da SEED Paraná. Email: [email protected]

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compreensão das peculiaridades que a proposição apresenta. No primeiro, analisamos a conquista e a legalização dos Direitos Fundamentais, em especial a Dignidade da Pessoa Humana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como direito essencial para o exercício da dignidade. No segundo, abordamos os movimentos ecológicos e o desenvolvimento sustentável nas cidades e a relação com a biopolítica. A pesquisa foi realizada utilizando material bibliográfico correlato ao tema apresentado e observando os diversos entendimentos de estudiosos da área, no intuito de compreender as singularidades que o referido tema apresenta.

1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: uma luta histórica

O espaço geográfico, os meios de produção, as formas de comunicação e o próprio homem passaram por um intenso processo de mudança ao longo da história da civilização humana. Se, nos primórdios, o homem buscava apenas a sua sobrevivência através da caça e da coleta de alimentos,

utilizando ferramentas

rudimentares e contando com a própria sorte, para remanescer diante das adversidades, hoje, a civilização globalizada convive com as mais modernas técnicas agrícolas e equipamentos eletrônicos que facilitam o desenvolvimento de todas as atividades diárias. Os acontecimentos são presenciados em todo mundo no momento em que acontecem. O mundo está conectado por meio de cabos e fibras e, não há como fugir da modernidade. As nações que dominam a tecnologia detém o poder e definem os rumos da humanidade. Num passado não muito remoto a propriedade das terras era sinônimo de poder. Hoje, o poder está nas mãos de quem detém a tecnologia. Contudo, para que a sociedade chegasse ao estado atual, estruturada e organizada, onde os direitos humanos, o direito ao livre exercício do trabalho, à propriedade, à segurança entre outros, são garantidos pelo Estado, houve a necessidade de travar batalhas, conquistar e construir um arcabouço de normas para tutelar as relações sociais. A sociedade passou do Estado de Natureza2, onde o homem 2

Estado de Natureza definido por John Locke como o “um estado de IGUALDADE, em que os homens tem a perfeita liberdade de regular suas ações e dispor seus bens, conforme acharem conveniente,

89

era absolutamente livre para determinar suas ações sem observar norma ou lei alguma, e, hoje, está estruturada obedecendo a um ordenamento jurídico consubstanciado em leis que tutelam uma infinidade de direitos. Leis estas que são necessárias para garantir a segurança e a ordem do grupo social. O caminho para chegar até aqui foi longo e tortuoso. Muitas vidas foram ceifadas durante o trajeto. Na Idade Medieval, por exemplo, a Igreja Católica trouxe as primeiras noções sobre direitos relacionados à dignidade humana, num plano puramente espiritual. Isto porque, a Igreja, colocava as leis divinas no centro da ordem social. E, em nome de Deus, a Igreja determinava as regras, julgava e aplicava as penas, que nem sempre eram justas. Criou o Tribunal da Inquisição que perseguia quem se opunha aos ditames eclesiásticos. Irvin e Sunquist tecem comentários neste sentido: A visão de uma sociedade cristã unificada e ordenada era um ideal para os líderes da Igreja. A cristandade era concebida como um todo integrado e hierárquico. Qualquer pessoa ou grupo que levasse uma vida religiosa fora da estrutura eclesiástica estabelecida era por definição um herege e sujeito à disciplina punitiva das autoridades seculares à qual a Igreja recorria. Falhas morais ou indiscrições pessoais não eram consideradas como problemas religiosos de vulto dentro dessa estrutura. A Igreja tinha um oportuno sistema de absolvição, que era capaz de cuidar desses assuntos por parte do clero e do laicato igualmente. O que era repreensível era a vida religiosa praticada fora das ordens e da disciplina da Igreja3.

O domínio da Igreja Católica, somente teve fim com a Revolução Francesa, cujos ideários de Igualdade, Liberdade e Fraternidade influenciaram a criação de declarações e documentos legais em todo o mundo. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789, na França, representou um marco histórico na Proteção dos Direitos Fundamentais. Foi baseada nas ideias de Locke, Rousseau e Montesquieu e era a expressão de uma visão de homem e das políticas em um terreno cultural. Os iluministas reformularam o contrato social e difundiram a ideia de direitos naturais, conferindolhes os mais amplos valores políticos e sociais. As conquistas dos direitos aboliram os privilégios de status que pesavam nos ombros da população e também passou a tutelar os indivíduos contra os abusos de poder e contra a superstições e os desvios de dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem”. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 35) 3

IRVIN, Dale T., SUNQUIST, Scott W. História do movimento cristão mundial. Trad. José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2004. Vol I. p. 506.

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razão. Os direitos, são os instrumentos para a construção de uma esfera de liberdade universal, entre elas o direito à liberdade religiosa e política. A ideia de tolerância, se forma na cultura iluminista, a partir do confronto entre as civilizações não europeias e se afirma com o Tratado sobre a Tolerância de Voltaire, testemunho do princípio de tolerância e convivência entre católicos e protestantes4. Mais a frente, Immanuel Kant defendeu que o homem é sujeito dotado de razão e, desta forma, é capaz de ser responsável pelos próprios atos. Assim, a autonomia e a liberdade de escolha são indispensáveis para o exercício da dignidade humana. “Qualquer ação é justa, se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima, a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos, de acordo com uma lei universal”.5 Os estudos de Kant embasaram e influenciaram a criação de diversas Constituições de Estados, cujo ordenamento jurídico está fundamentado no pleno exercício da dignidade humana O surgimento dos direitos, relativos à dignidade humana ou direitos naturais, são frutos da idade moderna e de uma concepção individualista da sociedade onde, para compreender a sociedade, é necessário observar o indivíduo, para depois analisar o coletivo.6 Nas democracias modernas, “o valor substantivo é o homem – cidadão – e sua dignidade; portanto, não existe Estado Democrático sem este respeito à liberdade”.7 Com efeito, a dignidade é um direito fundamental, inerente ao próprio homem, intrínseco e essencial a cada pessoa, além de ser uma conquista histórica como bem define Bobbio: Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. 8

4

FACCHI, Alessandra. Breve História dos Direitos Humanos. São Paulo: Loyola, 2011. KANT, I. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2003, p. 70. 6 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 08. 7 NETO, Candido Furtado Maia. In: Novas perspectivas na defesa da Dignidade Humana: Aspectos éticos, jurídicos e filosóficos. Francisco Beltrão Pr: Grafisul, 2010, p. 10. 8 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 96. 5

91

Para Belinati Martins, a Constituição de um Estado, que busca assentar seus princípios em ditames democráticos, deve ter como esteio a proteção da dignidade humana. [...] a unidade axiológica-normativa do sistema constitucional deve ser aferida, essencialmente, a partir da tábua axiológica, em cujo cerne se encontra a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, enquanto suas concreções históricas.9

Desta forma, a Dignidade Humana representa um direito fundamental do homem, enquanto ser humano e uma qualidade inerente a esta condição. O que faz com que a pessoa seja destinatária da proteção Estatal, impedindo que seja alvo de situações humanas degradantes. Além disso, tal fundamento garante condições mínimas de existência.10 Não somente proteção à vida frente à possibilidade da morte provocada, mas à vida com plenitude, com condições de sobrevivência dignas, como saúde, segurança, meio ambiente ecologicamente equilibrado, liberdade entre outros. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, foi a primeira constituição brasileira a considerar a dignidade da pessoa humana, como um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Assim, a referida carta procurou reconhecer, preservar e promover juridicamente a dignidade da pessoa humana. Também, elencou uma série de direitos fundamentais, considerados cláusulas pétreas e, portanto, imutáveis, além de dispositivos que não estão inseridos no rol do art. 5º que versa sobre os direitos fundamentais. Um deles é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado que por ser considerado requisito essencial para o exercício da dignidade humana, recebeu status de direito fundamental, apesar de estar contido no art. 225 da carta. 2 MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO E A DIGNIDADE HUMANA O Direito Ambiental Brasileiro, foi criado para salvaguardar o meio ambiente e tem por objetivo a proteção dos recursos naturais indispensáveis para a sobrevivência do ser humano. O meio-ambiente é um bem jurídico acautelado pelo Estado e constitui-se como um direito difuso e, é considerado de tal forma, porque pertence a todas as pessoas, e a ninguém em particular. Não é domínio particular de ninguém, ou seja, “é o interesse de todos e de cada um ou, por outras palavras, é o interesse que

9

MARTINS, Flademir J. Belinati. Dignidade da pessoa humana. Curitiba: Juruá, 2003, p. 123. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 10

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cada indivíduo possui pelo fato de pertencer à pluralidade de sujeitos a que se refere à norma em questão.” 11 Com efeito, o legislador Constitucional inseriu na Constituição Federal de 1988, o direito ao meio ambiente equilibrado, acautelado no art. 225 da Carta Política: Art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 12

Apesar de não estar inserido no art. 5º o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é considerado pela Doutrina como direito fundamental, essencial ao exercício da dignidade humana, porque o meio ambiente saudável está intimamente ligado à qualidade de vida, saúde e promoção de direitos civis, econômicos e sociais. Para Alves: Subjaz a tal percepção, que urge a recontextualização das normas ambientais, que primam pela tutela da vida humana, sob a égide de uma existência plena, resinificando o sentido do respeito devido à dignidade de todo o ente vivo. O direito ao ambiente equilibrado vinculado à efetividade do princípio constitucional da vida humana perpassa, portanto, pelo viés da consolidação da Política Nacional do Meio Ambiente adotada pelo Brasil; em especial, no que se refere ao paradigma do Estado Democrático de Direito, consubstanciado em duas características precípuas: tripartição dos poderes, calcado na teoria de Montesquieu, e a primazia dos direitos humanos fundamentais.13

Neste contexto, o amparo ao direito ao meio ambiente equilibrado, constitui-se como a concreção de um direito fundamental, e não apenas uma mera expectativa de direito, porque está disposto no texto constitucional de forma que, o respeito à dignidade, configura como condição de existência. O direito ao meio ambiente equilibrado, além de essencial, representa um direito de Terceira Geração,14 e tem a característica de direito-dever, ou seja, além do

11

ABELHA, Marcelo. Ação Civil Pública e Meio Ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 43 12 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Site da Presidência da República Federativa do Brasil. Brasília 5 out. 1988. Disponível em:. Acesso em: Jan 2016. 13 ALVES, Roseli Terezinha M. Política Nacional do Meio Ambiente e Proteção à Dignidade Humana. In: Novas perspectivas na defesa da Dignidade Humana: Aspectos éticos, jurídicos e filosóficos. Francisco Beltrão Pr: Grafisul, 2010, p. 18. 14

Direitos que consagram os princípios da solidariedade ou fraternidade e que protegem interesses coletivos ou difusos. “Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta

93

amparo legal do estado para a efetivação deste direito, é necessário uma participação objetiva da coletividade para que ele seja garantido. Eis que surge aqui uma questão paradoxal. O meio ambiente equilibrado é condicio sine qua non para o exercício da dignidade humana, no entanto, o próprio homem é o responsável pela degradação ambiental. Desta forma, há uma incongruência, no sentido de que o equilíbrio do meio ambiente é algo essencial para a existência do homem sobre o planeta, e o próprio homem agride seu bem mais precioso, em nome do progresso e do desejo capitalista. A humanidade assiste e colabora, cotidianamente, para a devastação do planeta em que vive, seja nas simples ações desenvolvidas em seu lar ou na exploração desordenada dos recursos naturais. Nesse contexto, o homem é o responsável pela extinção de várias espécies animais e vegetais e, também, pelas modificações climáticas que levam às catástrofes ambientais. Esta crise ambiental, não deriva da falta de leis ou normas ambientais, visto que existem inúmeras leis, princípios, tratados e convenções que norteiam toda atividade que envolve questões ambientais. Portanto, não é por falta delas que a natureza está em caos. É por falta de consciência humana, sobre a essencialidade da natureza para o desenvolvimento da vida no planeta e do modelo econômico, que sugere a exaustão dos recursos naturais, a fim de acumular capitais. O homem não tem consciência dos riscos que a exploração irracional dos recursos naturais traz para sua vida. Nosso modo de vida é tão corrido, competitivo e consumista que não há tempo para organização social. Desta forma, a proteção do meio ambiente no planeta, está condicionada a uma tomada de decisão e consciência sobre a necessidade de preservação ambiental para manutenção da vida para as gerações pósteras. Importante observar que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mas, vai além: ‘poder público’ e ‘coletividade’ têm o dever de protegê-lo e

historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Tem primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.” BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo : Editora Malheiros, 2006, p. 569.

94

preservá-lo”.15 Neste contexto, convém ressaltar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, exige uma prestação positiva do Estado, no sentido de promover o seu exercício, mas por outro lado, exige um esforço da sociedade em preservar e aproveitar os recursos naturais, de maneira sustentável, visto que o meio ambiente equilibrado é questão essencial para o exercício de uma vida digna.

3 SUSTENTABILIDADE E BIOPOLÍTICA

Importante ressaltar que, apesar da intensa degradação ambiental, pela qual o planeta terra foi submetido ao longo da história, o pensamento ecológico está mais evidente nos dias de hoje. A necessidade de preservar o meio ambiente, aliado aos movimentos ecológicos e a atenção dada pelos governos à questão ambiental, tem promovido algumas mudanças no sentido de orientar a sociedade sobre os riscos e impactos que a exploração desordenada dos recursos naturais, traz para a vida humana. Isto porque, segundo Schonardie, “diante da ameaça de extinção dos recursos naturais, das espécies vivas, dentre as quais a própria espécie humana, o homem começa a voltar-se para as questões que afetam de maneira negativa o meio em que vive”.16 Já na década de 60, eclodiram, em nível mundial, novos movimentos que buscavam a mudança na melhoria da qualidade de vida. Diferente dos anteriores, que apenas criticavam o modo de produção capitalista, o movimento ecológico passou a questionar a exploração ambiental. Tais movimentos constituíram-se como históricoculturais. Enrique Leff salienta que: Talvez nenhum outro movimento social tenha levado tão a fundo essa ideia, na verdade essa prática, de questionamento das condições presentes de vida. Sob a chancela do movimento ecológico, veremos o desenvolvimento de lutas em torno de questões as mais diversas: extinção de espécies, desmatamento, uso de agrotóxicos, urbanização desenfreada, explosão demográfica, poluição do ar e da água, contaminação de alimentos, erosão dos solos, diminuição das terras agricultáveis pela construção de grandes barragens, ameaça nuclear, guerra bacteriológica, corrida armamentista, tecnologias que afirmam a concentração do poder, entre outras. Não há, praticamente, setor do agir humano onde ocorram lutas e reivindicações

15

KAMPHORST, Marlon. O direito ao desenvolvimento sustentável em Amartya Sen como fundamento das decisões do STF nos anos de 2013 e 2014. Passo Fundo: IMED, 2015. 16 SCHONARDIE, Elenise Felzke. Dano ambiental: a omissão dos agentes públicos. 2. Ed. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005, p. 20.

95

que o movimento ecológico não seja capaz de incorporar. 17

No Brasil, a criação de uma consciência ambiental surgiu na década de 70, em meio a uma sociedade, cercada pela miséria e medo, diante de uma ditadura cruel. O Estado,

tentando

atrair

investimentos

estrangeiros

criou

instituições

para

“administrar” o meio ambiente, não pela questão ambiental, mas direcionada à atração de investimentos. No entanto, apesar de tais medidas terem o fito voltado à questão econômica, criou-se a consciência de preservação e cuidado com o meio ambiente, além das primeiras concepções sobre desenvolvimento sustentável18 cujo termo somente foi utilizado à partir da década de 80, conforme leciona Palsule: O termo “desenvolvimento sustentável” tornou-se proeminente após a publicação do agora bastante conhecido Relatório Brundlandt, em 1987. Esse relatório foi formulado pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento como uma “Agenda Global para a Mudança”. Desde então, o termo “sustentabilidade” tornou-se o bordão das duas últimas décadas. Entretanto, na nossa pressa para reconhecer o desenvolvimento sustentável como a panaceia necessária à nossa civilização, tendemos à ignorar o fato de que o fenômeno da sustentabilidade em sistemas naturais é tão antigo quanto a própria vida. 19

Impende ressaltar que, a definição de sustentável, está atrelada à ideia de conservação ao longo do tempo. Assim, a humanidade para chegar até onde chegou, ou seja, para continuar viva até os dias atuais, dependeu dos recursos naturais para conservar-se. Contudo, somente agora, o homem se deu conta de que necessita do meio ambiente equilibrado para preservar sua existência. E, não há como pensar em sobrevivência neste planeta sem pensar em sustentabilidade. Tal pensamento implica numa “ruptura fundamental da história da humanidade e um novo momento histórico

17

LEFF, Henrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, p. 13. 18 O conceito de desenvolvimento sustentável, incorporado pelo Direito Ambiental como um dos seus princípios diretores, e considerado como um direito humano fundamental, caracteriza-se, em resumo, como um processo de mudança que deve procurar compatibilizar a exploração de recursos naturais e seu gerenciamento com a consciência de que há de se guardar este legado ambiental que, num raciocínio inverso, nos foi emprestado pelas gerações futuras. O conteúdo de tal definição passa, portanto, por uma relação inter-temporal, na medida em que vincula a atividade presente aos resultados que dela podem retirar as futuras gerações. É, portanto, um princípio que traz ínsito tanto um direito como um dever: o direito de cada indivíduo de viver em um ambiente de qualidade corresponde ao dever de sua conservação contínua. CANEPA, Carla. Cidades sustentáveis: o município como locus da sustentabilidade. São Paulo: RCS, 2007, p. 274 19 PALSULE, S. O desenvolvimento sustentável e a cidade. In: MENEGAT, R.; ALMEIDA, G. (Orgs.) Desenvolvimento sustentável e gestão ambiental nas cidades: estratégias a partir de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 40.

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marcado pela diferença e pela autonomia”.20 A consciência sobre a necessidade do aproveitamento sustentável dos recursos naturais, neste contexto, é fruto da evolução humana. Do pensamento de uma sociedade que engatinha, rumo à consciência ecológica, mas que necessita de estímulos, de todas as partes, para promover a proteção ambiental e reduzir os impactos causados pela degradação. Desta forma, os governos precisam dar mais atenção a este problema, buscando ações para desacelerar a degradação e fomentar a sustentabilidade. Além disso, deve efetuar campanhas, para instruir a sociedade para o perigo camuflado, nas mais simples intervenções que faz ao meio ambiente. Simples ações, como a destinação correta dos resíduos domésticos pode fazer a diferença. Contudo, a população precisa conhecer, ser constantemente informada sobre as necessidades de práticas sustentáveis. A sociedade deve repensar suas práticas para viver a sustentabilidade. Nesse sentido, verifica-se a necessidade de renovação do compromisso global a favor da construção de cidades sustentáveis, principalmente compromisso político com o planejamento urbano, é elemento essencial para cidades mais inclusivas, levando em consideração a sociobiodiversidade. O problema ambiental, é em grande parte, político, e exige a reestruturação do papel do Estado junto à sociedade, além de ações que transcendam a visão fragmentada e regionalizada ou territorializada, uma vez que, o ambiente, não lê fronteiras, e exige ações intergovernamentais.21 A crise ambiental é, também, biopolítica22. Exige do Estado, principal órgão regulador da sociedade, uma atitude positiva na defesa do meio ambiente, contudo, o problema ultrapassa a esfera do poder estatal e alcança outras esferas sociais, como a

20

CENCI, Daniel R.; NASCIMENTO, Lizandra A.; MATTE, Nadja R. Educação ambiental para a sustentabilidade: a construção cultural de uma nova epistemologia. Ijuí: Unijuí, 2015. 21 CENCI, Daniel R; Schonardie, Elenise F. Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos.1. ed. Editora Unijuí, 2014. 22 Biopolítica foi um termo criado por Michel Foucault e utilizado pela primeira vez, numa conferência proferida no Rio de Janeiro em 1974 onde o autor busca uma forma de designar as modificações de poder ocorridas no final do século XIV e início do século XX onde o poder de organizar a sociedade deixa de ser exclusivamente do Estado e passa à outras esfera. Além disso, as atividades governamentais deixam de ser destinadas apenas ao indivíduo e passam a contemplar a coletividade. “Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e o delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violentos”. FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 182.

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escola, que tem o poder de racionalizar as massas. Importante reconhecer que, o século XX promoveu, além de significativas mudanças tecnológicas, que permitiram aos governos controlar a população e conhecer suas necessidades, através de dados estatísticos, uma mudança nas formas do Estado exercer seu poder. Se, na idade antiga, os Soberanos detinham o poder de vida ou morte de seus súditos, hoje, o poder governamental está ligado promoção da vida da população. Neste sentido, a população surge como um conceito que visa, dar sentido a uma coletividade de pessoas, que ainda não havia sido considerada pelos governos. “A biopolítica, nesse contexto, está relacionada às políticas, que tem como foco a gestão da vida da população”.23 Isto impõe ao Estado uma racionalidade ao governar, de acordo com Foucault: Quer dizer que a população vai ser o objeto do qual o governo deverá ter em conta em suas observações, em seu saber, para chegar efetivamente a governar de modo racional e refletido. A constituição de um saber de governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber de todos os processos que giram em torno da população em sentido amplo, o que chamamos precisamente de “economia”. 24

Estes conceitos de biopolítica criados por Foucault, servem para compreender as relações de poder que envolvem a governamentabilidade do meio ambiente. Isto porque, as ações governamentais ligadas à proteção do meio ambiente, são ações destinadas ao coletivo, ou seja, à população. Além disso, o meio ambiente é uma condição externa, cujo controle é necessário para o manejo populacional, visto que é uma condição que influencia na vida das pessoas. Nesse sentido Malette sustenta que: [...] o trabalho de Foucault sobre a governamentalidade - e mais precisamente seu conceito de biopolítica - pode ser reconstruído como o estudo da “ecopolítica” quando as condições sob as quais populações são administradas estão subordinadas a tentativas mais amplas de administrar toda a Vida com o desdobramento de racionalidades ecológicas de governo.

23

GOMES, Fraikson Cleiton F. "PROPRIEDADE, MEIO AMBIENTE E MICHEL FOUCAULT: as limitações socioambientais da propriedade como dispositivo de ecogovernamentabilidade. UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto: Ouro Preto/Minas Gerais, 2015. Disponível em: < http://www.sustentabilidade.ufop.br/images/F7Dissertau00E7u00E3o__Fraikson__12fev2015.compressed.pdf > Acesso em Jan. 2016. 24 FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 140.

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25

Também, porque o meio ambiente é uma questão nova para os governos, visto que a preocupação com a degradação ambiental, somente surgiu no final do século XX. Desta forma, como o Estado, analisado dentro da teoria da biopolítica, está mais ligado à governança política das populações, primando pelo seu bem-estar e, portanto, existe uma emergência em procurar ações para diminuir os impactos ambientais que a exploração, desordenada do meio ambiente, trouxe para o planeta. Importante observar que, surge neste contexto, três elementos de preocupação do governo: população, meio ambiente e a vida. Assim, o Estado deve proteger a vida das populações e o meio ambiente equilibrado constitui-se, nesta relação, como condição precípua para o exercício da dignidade humana e, portanto, elemento essencial para a vida. A apropriação do elemento vida, enquanto questão central da ação governamental, ocorreu quando o desenvolvimento das ciências permitiu a descoberta sobre a importância do meio ambiente para a manutenção da vida. Neste contexto Gomes salienta que: Através da percepção de interdependência entre a população e natureza possibilitada pelas das ciências naturais, como a biologia e a ecologia o meio ambiente foi trazido, cada vez mais, para o domínio do cálculo político consciente. Percebeu-se que a produção e extração de recursos naturais e a própria sobrevivência do homem estava ligada a um equilíbrio natural, ou seja, a manutenção de forma equilibrada dos fluxos entre todos os organismos do planeta.26

Como se pode notar, o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado em face da proteção da vida humana, foi uma conquista histórica. Primeiro, o homem precisou lutar pelo reconhecimento da Dignidade Humana como Direito Fundamental. Depois, pela compreensão do Estado, da necessidade de preservar o meio ambiente e promover ações sustentáveis, para reduzir os impactos da exploração dos recursos naturais e que, estas ações, são necessárias porque o alvo das políticas públicas deve ser a proteção da vida humana, em sua plenitude. Ainda há um grande caminho a 25

MALETTE, Sébastien. La gouvernementalité chez michel foucault. 2006. 115f. Dissertação (maîtrise en philosophie) - Faculté de Philosophie, Université Laval Québec, Québec, 2006, p. 11-12. Disponível em: . Acesso em: dez 2015. 26 GOMES, Fraikson Cleiton F. "PROPRIEDADE, MEIO AMBIENTE E MICHEL FOUCAULT: as limitações socioambientais da propriedade como dispositivo de ecogovernamentabilidade. UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto: Ouro Preto/Minas Gerais, 2015. Disponível em: < http://www.sustentabilidade.ufop.br/images/F7Dissertau00E7u00E3o_Fraikson__12fev2015.compressed.pdf > Acesso em Jan. 2016.

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percorrer para que o direito ao meio ambiente seja efetivado, de maneira que as gerações futuras possam usufruir deste direito, e para que estas gerações possam existir. No entanto, diversas atitudes positivas já estão acontecendo. Governo, entidades, escolas já estão realizando diversas ações para proteção do meio ambiente. Para Cenci e Schonardie: “[...] garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado requer: uma nova hermenêutica, inovadora, que repercuta para além do Direito, alcançando as políticas e práticas do Estado e para além, construam junto aos cidadãos saberes ambientais sustentáveis, como forma de um novo atuar social junto ao meio ambiente, de uma nova educação ambiental, ressignificada, coma desconstrução de conceitos edificados para novos paradigmas ambientais”. 27

É importante ressaltar que, a luta pelo meio ambiente equilibrado e pelo desenvolvimento sustentável, não se trata de uma luta final, mas de uma luta inicial. O homem enquanto ser humano, dotado de razão, necessita corresponsabilizar-se para que sua vivência, seu conhecimento, suas conquistas, seus projetos e ações, sejam as marcas que deixarão da sua passagem, curta, mas única, imediata, finita, e que possibilite uma marca tal que, suas gerações de descendentes, possam usufruir de todo esse empenho realizado por seus antecessores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo-se da análise das obras estudadas é possível delinear algumas conclusões que vão ao encontro ao objetivo inicial. De fato, a biopolítica e a sustentabilidade guardam relação com a proteção da dignidade humana. Isto porque, a biopolítica é uma forma de governamentabilidade voltada para atender as necessidades da população de forma coletiva. E, o direito ao meio ambiente equilibrado é direito difuso, ou seja, um direito que pertence ao indivíduo, mas que se caracteriza pelo fato deste fazer parte de uma coletividade. Também, porque o foco da biopolítica é a proteção da vida, de forma que o Estado deve buscar todas as formas de protegê-la e, ainda, promover uma existência sadia e digna para toda a população.

27

CENCI, Daniel R; Schonardie, Elenise F. Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos.1. ed. Editora Unijuí, 2014, p. 14.

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O fato do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ter status de direito fundamental, implica no reconhecimento deste, como direito essencial para a vida humana, portanto, deve ser protegido pelo Estado em face de qualquer ameaça. Neste sentido, as ações sustentáveis, são formas de proteção deste direito e necessitam ser amplamente divulgadas e propaladas para toda a sociedade, para que a consciência ecológica seja construída e para que a degradação ambiental seja controlada e, quiçá, seja assolada. É salutar que o Estado planifique políticas que tenham por objetivo a efetiva sustentabilidade dos espaços naturais. Também, que sejam criados mecanismos para proteção ambiental, para o melhoramento da qualidade de vida, para a manutenção do bem-estar, para a preservação de direitos e interesses das gerações pósteras. A sustentabilidade é questão de existência! A sociedade não pode e não deve observar o colapso da natureza de braços cruzados. Atitudes são necessárias. Mudanças no modo de agir e de pensar desta geração representam a condição de sobrevivência das gerações vindouras. REFERÊNCIAS

ABELHA, Marcelo. Ação Civil Pública e Meio Ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. ALVES, Roseli Terezinha M. Política Nacional do Meio Ambiente e Proteção à Dignidade Humana. In: Novas perspectivas na defesa da Dignidade Humana: Aspectos éticos, jurídicos e filosóficos. Francisco Beltrão Pr: Grafisul, 2010. BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Site da Presidência da República Federativa do Brasil. Brasília 5 out. 1988. Disponível em:. Acesso em: Jan 2016. CANEPA, Carla. Cidades sustentáveis: o município como locus da sustentabilidade. São Paulo: RCS, 2007. 101

CENCI, Daniel R.; NASCIMENTO, Lizandra A.; MATTE, Nadja R. Educação ambiental para a sustentabilidade: a construção cultural de uma nova epistemologia. Ijuí: Unijuí, 2015. CENCI, Daniel R; Schonardie, Elenise F. Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos.1. ed. Editora Unijuí, 2014. FACCHI, Alessandra. Breve História dos Direitos Humanos. São Paulo: Loyola, 2011. FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GOMES, Fraikson Cleiton F. "PROPRIEDADE, MEIO AMBIENTE E MICHEL FOUCAULT: as limitações socioambientais da propriedade como dispositivo de ecogovernamentabilidade. UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto: Ouro Preto/Minas Gerais, 2015. Disponível em: < http://www.sustentabilidade.ufop.br/images/F7Dissertau00E7u00E3o__Fraikson__12fev2015.compressed.pdf > Acesso em Jan. 2016. IRVIN, Dale T., SUNQUIST, Scott W. História do movimento cristão mundial. Trad. José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2004. Vol I. KAMPHORST, Marlon. O direito ao desenvolvimento sustentável em Amartya Sen como fundamento das decisões do STF nos anos de 2013 e 2014. Passo Fundo: IMED, 2015. KANT, I. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2003. LEFF, Henrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MALETTE, Sébastien. La gouvernementalité chez michel foucault. 2006. 115f. Dissertação (maîtrise en philosophie) - Faculté de Philosophie, Université Laval Québec, Québec, 2006, p. 11-12. Disponível em: Acesso em: dez 2015. MARTINS, Flademir J. Belinati. Dignidade da pessoa humana. Curitiba: Juruá, 2003. NETO, Candido Furtado Maia. In: Novas perspectivas na defesa da Dignidade Humana: Aspectos éticos, jurídicos e filosóficos. Francisco Beltrão Pr: Grafisul, 2010. PALSULE, S. O desenvolvimento sustentável e a cidade. In: MENEGAT, R.; ALMEIDA, G. 102

(Orgs.) Desenvolvimento sustentável e gestão ambiental nas cidades: estratégias a partir de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. SCHONARDIE, Elenise Felzke. Dano ambiental: a omissão dos agentes públicos. 2. Ed. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005.

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A REPRESENTATIVIDADE DA ONU: DA QUESTÃO UNIVERSALISTA AO PROCESSO DE NÃO-EXCLUSÃO

Fernando Camara Rieger1

INTRODUÇÃO A Organização das Nações Unidas (ONU) foi constituída em um momento de clamor internacional. O fim da Segunda Guerra Mundial deixou marcas na sociedade internacional e ascendeu novamente a necessidade de uma instituição garantidora da paz e da regulação das atividades estatais. A ONU nasce das cinzas do segundo pós-guerra, mas também do fracasso da Liga das Nações, cujas atividades ficaram restritas ao confronto político instaurado no âmbito interno e externo dos Estados. A falta de poder de ação – causada pelo descrédito internacional -

dificultou medidas isentas e efetivas da organização.

Embora a ideia tenha sucumbido ao contexto internacional de dificuldades, a Liga das Nações, edificada a partir do pensamento iluminista e universalista, dá lugar à uma nova organização com objetivos distintos, mas baseada em pressupostos antigos. As atividades da ONU durante o contexto bipolar do sistema internacional foi, sobretudo,

de

expectadora.

Embora

a

organização

tivesse

uma

maior

representatividade no cenário internacional do que sua antecessora, o duelo ideológico manteve as relações entre os Estados pautadas no realismo político, enquanto a ONU, por consequência, representava o idealismo universalista em que foi estruturada. Com a queda da URSS e, por consequência, a recondução paradigmática do sistema internacional, o cenário de incertezas pôs a organização em evidência, visto a relativa impressão de um mundo altamente cooperativo no que tange às relações entre Estados. No entanto, rapidamente este processo se viu ofuscado pela prevalência de interesses particulares e da unipolaridade existente nos anos 90. 1

Mestrando em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa, bolsista UNIJUÍ, e-mail: [email protected]

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No mundo multipolar, por sua vez, as dificuldades residem justamente na dissolução dos pólos de poder, ao passo que a sobrevivência no sistema internacional pauta-se pelo relativo domínio de zonas de influência. Nesse contexto, a problemática que se evidencia é saber como a ONU, em um mundo multipolar, pode ser referência internacional em um mundo com núcleos de poder tão diluídos? A hipótese provável, que se confirma ao final da análise como resposta adequada, é a de que a ONU pode exercer um papel fundamental nas tratativas internacionais sob a condição de árbitro. Para isso, no entanto, há a necessidade da instituição “vacinar-se” dos possíveis grupos de interesse, fomentando a oxigenação das secretarias e observando meios de ação que prezem pela não-exclusão de países e regiões. O objetivo deste artigo, que investiga a temática sob o uso do método hipotético-dedutivo com a técnica de pesquisa da revisão bibliográfica, é justamente percorrer o caminho desde a instituição da Organização das Nações Unidas até sua atuação no cenário contemporâneo, abordando a influência do conteúdo universalista de sua antecessora, a Liga das Nações e perpassando a atuação da Organização no âmbito da bipolaridade política da Guerra Fria e no atual cenário de multipolaridade e tensionamento político-normativo em face da proteção internacional dos Direitos Humanos.

1 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU): bases históricas e fundamentação ideológica

O cume do pensamento internacionalista, no fim da Segunda Guerra Mundial, foi balizado em premissas antigas, questionamentos humanitários que, mesmo estudados em outrora, a sua aplicação sempre se colocou tempestiva devido aos contextos internacionais não compatíveis às doutrinas vigentes. A gênese da sociabilidade humana ligada às relações nacionais provem, por consequência, dos 300 anos do modelo westphaliano que estruturou o conceito de Estado-nação (BEDIN, 2006, p.508). Nas relações internacionais, por outro lado, o que conduziu o modus operandi das agendas estatais foi a ideia de não-centralidade do poder e a prevalência do sistema internacional anárquico. Bedin (2006, p. 508) 105

relaciona este período à aplicação do “que se convencionou denominar de realismo político”. Os conflitos internacionais, sobretudo, eram enquadrados a partir da supremacia do mais forte, do Estado hegemon, e a adaptação dos mais fracos (ou não) ilustrava uma espécie de darwinismo nas relações entre Estados. Ou seja, o estado de beligerância e adaptação a ele era constante e naturalmente próprio do pensamento realista. A partir do início do século XX há a troca do poder hegemônico de Londres para Washington, mas a geografia dos conflitos internacionais, por outro lado, manteve-se na Europa. A Primeira Guerra Mundial, neste sentido, não atingiu diretamente o novo hegemon, o que garantiu, de outras tantas formas, certo crédito político para os EUA que, pela figura do presidente Woodrow Wilson (1913-1921), lançou as primeiras “teses” pacificadoras do pós-guerra (MIYAMOTO; SCHERMA, 2006, p. 677). A mais importante destas teses (ou pontos)2 foi a que balizou a formação da Liga das Nações (ou Sociedade das Nações), organismo internacional edificado em um momento de crises interestatais. A Liga das Nações não surtiu o efeito desejado em estancar a escalada de tensões internacionais. O crescimento da Alemanha Nazista foi observada de forma velada, e a função política da Liga foi testada. A organização foi a primeira tentativa de aglutinar interesses em prol de um desenvolvimento institucional para uma busca uniforme em torno do diálogo e arbitramento das beligerâncias internacionais. A instituição nascia sobre o pressuposto da busca pela paz entre os Estados, ao passo que também carregava paradoxos na sua legitimação devido a não entrada dos Estados Unidos. Além dos entraves internacionais, a Liga enfrentou internamente barreiras para a efetivação de suas políticas. O congresso estadunidense foi contra a entrada dos Estados Unidos na Liga, fato que causou certa estranheza e temor sobre como a organização pautaria políticas internacionais sem a efetiva participação das grandes potências – importante lembrar que a URSS também não participou como membro

2

O décimo quarto ponto fazia referência a necessidade de criar uma associação internacional com objetivo de fornecer garantias universais de independência e integridade de territórios, sejam eles grandes ou pequenos Estados.

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constituinte da Liga, e ainda foi expulsa em 1939. No “entre-guerras”, a necessidade de institucionalizar a busca pela paz através de uma organização internacional era uma retórica parcialmente aceita no âmbito acadêmico e político. A Primeira Guerra Mundial deixou as disputas geopolíticas mais confusas do que ajudou na contenção de beligerâncias futuras. A exclusão da Alemanha do processo constitutivo da Liga das Nações e as diversas restrições impostas pelos vencedores formaram parte do núcleo vexatório responsável pela retórica extremista do Terceiro Reich. Casella (2005) destaca as consequências deste ato da seguinte forma: [...] em ocasião na qual o revanchismo dos vencedores de uma guerra impôs pesadas compensações de guerra ao vencido da anterior, foi se não a causa maior, uma das causas centrais da seguinte: a sombria lição das esperadas compensações de guerra que deveria pagar a Alemanha, após o final da primeira guerra, nos termos da negociação de paz, no Tratado de Versalhes, foi impulsionada da inflação interna e descalabro da República de Weimar, que prepararia o caminho para a ascensão e tomada de poder pelo fanatismo do Terceiro Reich, que levou à segunda guerra, em 1939-1945. (CASELLA, 2005, p.43)

Após o advento da Alemanha Nazista, o sistema internacional volta-se, naquele momento, ao

descontínuo da inércia dos conflitos internacionais, que além de

introduzirem a cultura da guerra como algo próprio do ser humano, este pensamento projetava-se no risco da banalização de massacres e em fobias sociais fomentadas por regimes autoritários. Como bem se refere Delmas-Marty (2003, p.3) neste momento, “o sonho Kantiano de paz perpétua não desapareceu totalmente. Ele renasce sob a urgência e num ambiente trágico”. Nesse sentido, como o pensamento iluminista, tão presente na Declaração de 1789, e posteriormente reafirmado na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a ideia de institucionalização precisava, naquele momento, de novas formas de abordagem dentro do modelo westphaliano. Após a conferência de Teerã em 19433, compreende-se a necessidade de reafirmar o universalismo dos iluministas a partir de uma nova instituição – a ONU -, que veio a substituir a Liga das Nações em 1946. Mesmo que a ONU tenha entrado oficialmente em existência em 1945, a Liga

3

A declaração de Teerã de 1° de 1943 veio a reforçar os termos da Declaração de Moscou, de 30 de outubro de 1943, que tinha por finalidade, resumidamente, o “desejo de perpetuar as soberanias das comunidades estatais das grandes potências” (OLIVEIRA, 2005, p.219)

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funcionava concomitantemente ao processo, o que garantiu a continuidade de órgãos que comprovaram sua efetividade na Liga e que, posteriormente, passaram à tutela da ONU. Martins (1999, p.253) coloca que não há dúvidas de que foi o Estado moderno que, efetivamente, introduz no mundo a noção de direitos e deveres dos cidadãos. Neste sentido, as mudanças ocorridas dentro das instituições internacionais também seguem a pauta qualificada pelos Estados nacionais, ou seja, embora o movimento seja em prol da universalização do direito, o processo será longo e pedregoso. Nas palavras de Delmas-Marty (2003 p.1) “o processo de universalidade – ou de mundializar – era lento, mas inelutável”. A ONU e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), então, como sucessoras e mantenedoras do Iluminismo, fundamentavam-se não só a partir da edificação de um poder político regulador no meio internacional, mas do reconhecimento de direitos inalienáveis da família humana (ALVES, 1999, p.139). Alves reconhece que os direitos expostos na Declaração são amplamente violados, mas também pondera que eles são reconhecidos internacionalmente. Direito à [...] vida, à liberdade, à segurança pessoal; de não ser torturado nem escravizado; de não ser detido ou exilado arbitrariamente; à igualdade jurídica e à proteção contra discriminação; a julgamento justo; às liberdades de pensamento, expressão, religião, locomoção e reunião; à participação na política e na vida cultural da comunidade; à educação, ao trabalho e ao repouso; a um nível adequado de vida, e a uma série de outras necessidades naturais, sentidas por todos e intuídas como direitos próprios por qualquer cidadão consciente. (ALVES, 1999, p.142)

Neste sentido, a ONU nasce de um cenário catastrófico de cerceamento de boa parte dos direitos que a Declaração propõem para o reconhecimento do ser humano como uma unidade comum. O cenário de incertezas, no entanto, aumentou com o fim da Segunda Guerra Mundial. Embora a criação da ONU aportasse certa tranquilidade pelas vias do diálogo, efetivamente o rumo das políticas internacionais estava a mercê de duas ideologias distintas no âmbito econômico, político e social. Este conflito, como pondera Oliveira (2005) também era interno: A carta de São Francisco em vigor, em boa parte tendo adotado parâmetros do Pacto da Sociedade das Nações pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, introduziu em seu texto dois paradigmas excludentes entre si. De um lado, princípios norteadores da escola idealista e de seu legado

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humanista reunidos em torno de preceitos éticos, normas jurídicas e o preceito da boa fé direcionador dos tratados, objetivando a manutenção da paz pelo disciplinamento do Direito e das instituições. De outro, os princípios firmadores da escola realista e de seu legado de poder, força militarizada, hierarquia das potências, estadocentrismo da realpolitik e do equilibrio da força entre as nações possuidoras de mais recursos de poder militar, e da estrutura de anarquia internacional. (OLIVEIRA, 2005, p.222)

As particularidades estatais e o tabuleiro geopolítico lançado por políticas de fomento causaram a divisão do mundo entre capitalismo e socialismo. As ingerências em territórios estrangeiros se tornaram comuns, e áreas inteiras foram postas sob regimes de tutela. A situação extrema de securitização fez com que a ONU se tornasse mera espectadora diante do confronto entre os dois blocos. A Guerra Fria e a ONU, então, são atores diretos deste novo rompimento paradigmático nas relações internacionais. O primeiro renasce da perspectiva estadocêntrica e da segurança internacional. O segundo parte da premissa iluminista sepultada durante a Segunda Guerra Mundial, e que ganha força após a queda do III Reich. Sendo assim, estes dois fatores levaram a um momento singular na política internacional, uma espécie de coexistência pragmática entre “sistema bipolar estadocêntrico” e “idealismo universalista”.

2 O CONTEXTO DA GUERRA FRIA: a ONU em meio ao confronto de ideologias no mundo bipolar

A partir do Segundo Pós-Guerra, o humanismo político volta a ser pauta dos temas internacionais mesmo em um contexto de incertezas. Bedin (2006, p. 515) atribui a este momento “dois caminhos” dentro das relações internacionais, dissonantes entre si, mas que respondiam bem às estruturas políticas paralelas edificadas pelo mundo bipolar. O primeiro seria o caminho da Guerra Fria, que reacende o realismo político na política entre Estados. O segundo, então, seria o caminho construído a partir do reconhecimento das Organizações Internacionais (BEDIN, 2006). A Guerra Fria traz na sua conjuntura uma série de pressupostos securitários, próprios do pessimismo preventivo oriundo da matriz realista, que considera o Estado o ator central das relações internacionais. Miyamoto e Scherma pautam que 109

[...] basta relembrar o período da Guerra Fria, ou após o termino desta, em que dois grandes oponentes dominavam a cena global, atropelando outras soberanias, toda vez que consideravam sua segurança e interesses nacionais diretamente ameaçados, ainda que em paragens longínquas, a milhares de quilômetros de seus territórios. (MIYAMOTO; SCHERMA, 2006, p. 673)

Por outro lado, grande parte das organizações internacionais baseia-se no universalismo, na agenda comum entre nações, ao passo que também dá início ao processo de decadência do modelo westphaliano. O antagonismo teórico entre os caminhos não causou, necessariamente, uma ruptura imediata. Isto é, como já evidenciado, Delmas-Marty (2003) considera que o processo de universalização era lento, mas inelutável, sendo assim, os dois caminhos, na prática, não estavam dissociados. A criação da ONU estabelece um novo momento do sistema internacional. Não é temerário afirmar que a sua existência, aliada ao momento internacional, marca o início de uma reestrutura paradigmática do Estado como a única unidade legítima de poder. Por outro lado, este rompimento não é facilmente observado na segunda metade do século XX, visto que a ONU se torna muito mais um órgão consultivo do que deliberativo. O poder de gerência internacional do órgão é posto à prova num cenário internacional de dificuldades teóricas e práticas, palco ao qual a Guerra Fria ofusca parte dos problemas estruturais das nações. Miyamoto e Scherma, neste sentido, observam que Mesmo as instituições internacionais, com o porte da Liga das Nações ou a Organização das Nações Unidas, só para citar duas grandes tentativas para “ordenar o mundo”, pouco conseguiram realizar em um contexto no qual, prevalecendo políticas de poder, margem diminuta de manobra lhe era dedicada. Não por culpa sua, mas, principalmente, pelo fato de que sendo os próprios Estados-Nacionais os seus criadores, apenas aqueles menores acabaram se sujeitando às normas estabelecidas pelos acordos e tratados firmados visando dar nova feição ao mundo. (MIYAMOTO; SCHERMA, 2006, p. 675)

No que tange aos direitos humanos, Vieira (2015, p.108) observa que após a Segunda Guerra Mundial há o advento da transformação do Direito Positivo para abarcar novos temas internacionais ligados a questões de exclusão sistêmica, o que amplia a tutela jurídica para segmentos vulneráveis. Vieira (2015, p.108) conclui que, “os direitos humanos passam a ser amplamente positivados por tratados 110

internacionais, tanto por organizações de cunho regional (principalmente Europa, Américas, África) quanto no âmbito universal (ONU)”. A Guerra Fria, no entanto, tratou de securitizar atividades políticas e resguardar núcleos ideológicos por todo o globo. As tratativas ligadas aos direitos humanos não alcançaram a homogeneidade esperada, ao passo que também se criou ambiguidades na aplicação de normas e políticas que assegurassem a proteção de indivíduos e coletivos. A partir disso, pode-se levantar a problemática relação entre os paradoxos culturais causados pela visão unilateral dos direitos humanos. A divisão políticoideológica estabelecida naquele momento dificultou ações conjuntas. Por outro lado, a dialética produzida por meio do embate internacional provou importante mudança no que se pensava como “paradigma dos direitos humanos”, isto é, o pensamento comum do que poderia ser enquadrado como tal. A verificação dos direitos humanos de primeira geração, como explica Lafer (2003, p.126) era “fundamentada no contratualismo de inspiração individualista”. Por sua vez, os direitos humanos de segunda geração, de herança soviética, estavam “previstos no welfare state, são direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade” (LAFER, 2003, p.127). Devido à Guerra Fria, outras tratativas político-ideológicas agrediam o sistema internacional e, inclusive, o direito internacional. A integralidade dos Estados, ou seja, a soberania deu lugar a ingerências políticas (golpes de Estado) e, também, guerras em territórios avançados, as chamadas Proxy Wars4. O fomento de regimes ditatoriais e de Estados satélites em áreas de interesse modificou a geopolítica mundial. Neste contexto, residia, também, a desconfiança de que os organismos internacionais seguiriam pautas particulares de Estados sem o devido respeito à isenção ideológica. Embora a ONU tenha atuado de maneira significativa em sua retórica, principalmente nos conflitos em territórios avançados (por exemplo, Vietnã e Afeganistão), seria temerário estabelecer um juízo de valor na avaliação dos momentos em que o órgão se mostrou mais ativo do que reativo. Às vezes em que os conflitos estavam diretamente ligados às grandes potências, a ONU, mesmo que 4

Proxy Wars ou “Guerras por procuração” é um termo utilizado para guerras travadas em territórios avançados cuja participação dos atores se dá por meio de uma espécie de “delegação”. Ou seja, são guerras que um ou mais atores não utilizam de seus exércitos nacionais. Por exemplo, o uso de mercenários e fomento de grupos insurgentes são atividades características de Proxy Wars.

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contrária às beligerâncias, era costumeiramente ignorada. No que tange às guerras coloniais, envolvendo principalmente os países europeus na África, a ONU desempenhou um papel importante para que o estancamento da violência (TEIXEIRA, 2005). Particularmente, os movimentos anti-colonialistas eram considerados, na prática, quase que naturais se levar em conta o contexto mundial da época.

3 LIÇÕES PARA O MUNDO MULTIPOLAR

O fim da Guerra Fria traz, por consequência, uma série de incertezas no campo internacional. Com a queda da União Soviética, a política internacional, bem como os setores econômicos e sociais, sofreria com imediatas transformações paradigmáticas. A desconfiança pairava não só nos países socialista e antigos protetorados soviéticos, mas toda a retórica ideológica de partidos e movimentos pautados em ideais marxistas. O rompimento no mundo bipolar gera a ascensão quase imediata de novos regionalismos. No entanto, o poder hegemônico, neste momento, está na figura ocidental, promovida a partir da agenda estadunidense. Isto é, de um mundo bipolar, passa-se ao unipolar. Este processo, no entanto, denota certa cautela, pois será um período breve de supremacia que formará as bases estruturais das políticas internacionais durante boa parte dos anos 90. A ascensão do neoliberalismo é, talvez, o maior exemplo correspondente à supremacia ideológica do pós-Guerra Fria. O pensamento unilateral de fomento às políticas domésticas de estados nacionais uniu, por pouco tempo, o que antes se considerava o grande problema das beligerâncias internacionais. A retórica neoliberal de interdependência complexa5 parte do princípio de que países interdependentes, pautados numa política de ações recíprocas, são mais racionais no que tange a cooperação, deixando beligerâncias de lado. Logicamente, esta retórica parte da premissa de que um mundo unipolar é mais seguro do que um sistema internacional em que os pólos de poder estão divididos. 5

A interdependência complexa, segundo Sarfati (2005, p.165-166) possui três características: canais múltiplos, ausência de hierarquia entre os assuntos e papel menor da força militar. Neste sentido, o poder seria obtido por meio de estratégias conjuntas, agendas de cooperação, maior atividade nas relações transnacionais e transgovernamentais e grau de institucionalização internacional do Estado.

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Se no contexto das grandes potências houve um momento de paz e entendimento no pós-Guerra Fria, na África e nos Bálcãs questões antigas reacenderam conflitos internos antes congelados pelo mundo bipolar. Interessante observar que, concomitantemente a este processo, a Conferência de Viena (1993), ou Segunda Conferência Internacional de Direitos Humanos, tentava reafirmar a indivisibilidade dos direitos humanos como o caminho para a proteção da pessoa humana (ALVEZ, 1997). Neste sentido, havia a tentativa de passagem do regime jurídico-filosófico dos Direitos Humanos, para a efetivação do Direito Positivo. Na conclusão dos trabalhos da Conferência, questões culturais foram postas em evidência e se somaram às beligerâncias na África e nos Bálcãs. Samuel Huntington (1993), previa uma nova onda de conflitos calcadas no confronto cultural, o que coincide com às insurgências de guerras civis e levantes territoriais. Teixeira (2005) considera que a Nova Ordem Mundial estava essencialmente voltada para a cooperação, onde a ONU exercia o papel fundamental de “regular o uso da violência num mundo pós-Guerra Fria”. No entanto, Teixeira partilha do pensamento de que a ONU deixou de prezar pelo interesse mundial e passou a seguir agendas particulares, pois, [...] aos poucos, o papel de relevância da ONU passou a ser claramente usurpado por entidades ou grupos que escapavam à expressão da vontade da maioria dos povos do planeta. Assim, já nas administrações de George Bush (pai) e Bill Clinton, o chamado G-7 (o grupo de nações mais ricas do mundo) passou a formar um verdadeiro diretório mundial, tomando decisões e estabelecendo agenda para conjunto do planeta, inclusive para a maioria dos povos que não possuíam qualquer representação em seus conclaves. O FMI, a OMC, o Banco Mundial, o Clube de Paris (e mais tarde a reunião anual em Davos) também passaram a exercer uma pressão constante na definição dos rumos da chamada Nova Ordem Mundial. (TEIXEIRA, 2005, p.1)

O paralelo que Teixeira (2005) faz seria com a dominação de grupos e da imposição de uma agenda internacional voltada para benefícios particulares. Este pensamento pode ser evidenciado, também, pela centralização do poder por parte dos Estados Unidos (unipolaridade), gozando de certa hegemonia na política internacional, e pela nova ordem econômica (neoliberalismo) proposta aos países terceiromundistas. Canclini (1997) aborda diversas perspectiva iniciais do pós-Guerra Fria no que tange à cultura e ao consumo promovido pelo poder dominante. O autor traz em seu 113

livro a correlação entre esses conceitos e disserta sobre seus medos em uma análise sistemática dos padrões retroalimentados pela sociedade internacional. A abordagem de Canclini é particular aos fenômenos da cultura e do consumo, mas são essenciais para compreendermos os porquês de organismos internacionais adotarem agendas sustentadas pelo bloco hegemônico da época. A construção de agendas internacionais sempre esteve caracterizada pelas dificuldades impostas pelos objetivos particulares das nações. Como já observado, a Conferência de Viena (1993), embora tenha reunido um grande quorum, não esteve livre das dificuldades impostas por culturalismos. A ideia universalista, mesmo que ainda utópica, demonstrou grandes avanços neste momento - que era propício para este tipo de ação. Mesmo com a queda da União Soviética, questões securitárias ainda não estavam bem delineadas pelos países ocidentais. Embora o “inimigo vermelho” tenha sido derrotado, o que uniu as nações foi o encontro de um inimigo comum. Interessante observar que é justamente após a Guerra Fria que grupos extremistas começaram a ganhar notoriedade a partir células terroristas transnacionais. Sendo assim, o fomento de um ideal comum e de agendas de política externa (entre Estados ou organismos internacionais) não só sublevou a interesses particulares promovidos pelo núcleo neoliberal, mas também foram parcialmente responsáveis pela escanteamento da ONU e consequentes ingerências na instituição. O mundo multipolar, por consequência da não existência de um poder hegemônico, dificilmente poderá se enquadrar na dinâmica de promoção de interesses particulares. O modelo neoliberal no sentido econômico tem seus gaps teóricos, na medida em que insiste na proteção de determinadas políticas e até de Estados. Intrínseco a este processo está a relevância do papel da ONU, uma vez que pode atuar de maneira independente e proativa nas discussões. Ou seja, a instituição pode ser a referência necessária para o mundo multipolar, referência esta que lhe foi usurpada por organismos paralelos e monotemáticos. A ONU, vista como marco da refundação do idealismo político, não pode sofrer com a ingerência de grupos específicos. Questões altamente sensíveis e diretamente ligadas a instituição, como a proteção dos direitos humanos, não podem estar ligadas à prevalência de regiões, países ou culturas específicas. 114

Desse modo, talvez a maior dificuldade na confecção de políticas internacionais gregárias resida no ofuscamento da ONU. Por outro lado, a estrutura vigente ainda é caracterizada pelo alto poder dos Estados que, embora sofram pressões e penalidades impostas pela organização, pouco avançam nas tratativas em países considerados como “problemas mundiais”. Por muito tempo, considerava-se as penalizações e as sanções econômicas como as melhores medidas para forçar governos a se enquadrarem a interesses considerados universais. Por conseguinte, as sanções econômicas, usadas como forma de coerção, não são aceitas de forma universal, de modo que diversos grupos, hoje, criticam o modo de avaliação e uso das sanções, considerada por muitos como uma ferramenta política (FONSECA et al, 2009). Durante a Guerra Fria era evidente a forma como as sanções eram usadas de modo arbitrário e vinculado por interesses ideológicos e particulares. (Fonseca et al, 2009, p.99) recorda que “A União Soviética e seus aliados foram alvos de sanções ocidentais nove vezes nos anos 1970 e 1980”6. Por outro lado, após a queda da URSS, a Rússia, como principal herdeira do legado soviético, agiu da mesma forma com algumas das ex-repúblicas soviéticas. Segundo Fonseca Wallensteen e Staibano: Nos anos 1990, as sanções do ocidente contra as ex-repúblicas soviéticas (FSU) sofreram rápida baixa, mas os novos Estados oriundos da FSU foram sujeitos a seis sanções da Rússia tentando induzir termos políticos ou econômicos mais favoráveis dos seus novos vizinhos independentes.7( WALLENSTEEN; STAIBANO, 2005 apud Fonseca et al, 2009, p.99)

Neste sentido, fica claro que as sanções políticas não escolhem lado, mas são aplicadas a partir do Estado mais forte, seja de uma perspectiva pacífica (Soft Power8) ou belicista (Hard Power). Se considerarmos a lei de autopreservação de Hobbes (HOBBES, 2009) para a estrutura estatal, pode-se averiguar similitudes no modo como o Estado preserva sua existência a partir do exemplo do homem. Esta lei induz a supremacia e a imposição do indivíduo como a lógica da sobrevivência do homem (HOBBES, 2009). Isto é, portanto, uma condição natural, e o poder de subjugar pode 6

“The Soviet Union and its allies were targets of Western sanctions nine times in the 1970s and 1980s” “Western sanctions against the Former Soviet Union (FSU) sharply diminished, but the new FSU states were subject to six sanctions from Russia attempting to induce more favorable economic or political terms form its newly independent neighbors.” 8 Soft Power (ou Poder Brando) é um conceito formulado por Joseph Nye que, em seu livro “Soft Power: the means to sucess in world politics”, trabalha com a ideia de influencia estatal a partir de meios culturais ou ideológicos. Este conceito é contrastado, como meio de ação, pelo Hard Power. 7

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ser visto como necessidade estatal, um pensamento próprio do Realismo clássico. A autopreservação está associada às condições de sobrevivência, ao passo que também ingere nas relações de poder. As sanções econômicas, a partir desta visão, associam-se à prevalência do poder, inserida numa agenda pragmática de ações. Em uma perspectiva mais colateral, o problema mais sintomático nas sanções econômicas são justamente os efeitos dentro do país sancionado. O objetivo de causar estresse na economia local como forma de pressionar o governo supõe que os agentes e as vítimas sejam os próprios cidadãos, que com a economia debilitada forçaram o governo a acatar as medidas propostas. Desse modo, sanções econômicas e medidas “ostracistas” prejudicam as relações entre Estados e, por consequência, excluem os cidadãos que, uma vez postos em segundo plano, podem iniciar movimentos culturalistas, de modo a buscar na exclusão um bom fundamento para encerrar as comunicações com o estrangeiro. Outra questão seria a própria defesa dos direitos humanos nos países que sofrem diretamente com sanções econômicas. Por exemplo: seria uma medida interessante, do ponto de vista humanitário, privar uma população de materiais básicos de sobrevivência para angariar vitórias políticas? A pergunta remete à possível falta de “humanismo” nas relações entre Estados. O conceito de humanismo, segundo Santos Junior (2006, p.706) indica uma “concepção de vida e de mundo em que o homem é o centro de convergência de todos os empreendimentos”. Notavelmente, parte da centralização e da convergência da figura do homem passa pelo pragmatismo político inserido nas relações estatais, o meio em que padece parte das tratativas de direitos humanos. A ONU, então, tem papel fundante e fundamental no que se refere à proteção da pessoa humana. Miyamoto e Scherma (2006, p.689) indicam que o modo de observar as Relações Internacionais sob a ótica realista criou um pessimismo quase que inerente aos internacionalistas. Da mesma forma, os pacifistas, ainda que adotem certa dose de realismo, têm nas últimas décadas motivos para comemorar, visto os inúmeros acordos internacionais firmados. Ainda que a ONU possua limites operacionais, devido a constante pressão das grandes potências, a organização pode vir a ter a representatividade necessária em um mundo com pólos de poder tão diluídos. Assim, a proteção do indivíduo poderia passar 116

para um novo patamar em que, efetivamente, estaria acima das relações políticas entre Estados, ao passo que construímos condições para a não-exclusão de países, regiões e comunidades internacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A representatividade da ONU, como observado, sempre esteve limitada ao contexto político internacional, de modo que sempre houve problemas operacionais e ingerências criadas por questões externas a organização. Se a Guerra Fria polarizou o sistema e reativou o realismo político, a ONU também cumpriu um papel importante de garantir – mesmo que de forma utópica – margens para o idealismo neokantiano de paz perpétua. Apesar das dificuldades em cumprir o seu papel fundante, a ONU pode ser considerada por grande parte das comunidades epistêmicas como a instituição que resguardou parte do pensamento universalista tão marginalizado no mundo bipolar. Por outro lado, o pós-Guerra Fria e, por consequência, o rompimento paradigmático deste contexto não mudou muito a efetiva participação da organização. Rapidamente, a ONU se viu com as mesmas pressões de outrora, mesmo que os agentes tenham mudado de forma. Isto é, a unipolaridade emerge a partir de interesses bem delineados por particularidades estatais e/ou privadas, de modo que usurparam parte do efetivo da organização. Por outro lado, o mundo multipolar evidencia a não comunhão de valores universais, um caminho que desenvolve os confrontos culturais latentes, como bem apontava Samuel Huntington (1993). Neste sentido, a problematização contextual se dá justamente pela prevalência da diluição dos poderes estatais em um mundo com desdobramentos constitutivos heterogêneos. Isto é, se parte da comunidade internacional acredita na transição do poder estatal para a uma nova forma de instituição, ainda há países e populações que mal passaram pelo processo fundante do Estado-nação. Sendo assim, a ONU poderia assumir, neste processo, um papel fundamental no que se refere à arbitragem deste processo. Embora o sistema internacional seja caracterizado por certa incompatibilidade entre Estados, a ONU pode ser a 117

representação internacional pretendida para aglutinar interesses e formar programas de ação que não excluam ou enquadrem países a partir de agendas particulares, integração comunicativa que se mostra indispensável para a efetividade de ações que dizem respeito a objetivos comuns à humanidade. REFERÊNCIAS ALVES, J. A. Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 1994. ALVES, J. A. Lindgren. A declaração dos direitos humanos na pós-modernidade. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; ARAUJO, Nadia de (Org.). Os Direitos Humanos e o Direito Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 139-166. BEDIN, Gilmar Antonio. Humanismo, Direitos do Homem e Relações Internacionais. In: OLIVEIRA, Odete Maria de (Org.).Configuração dos Humanismos e Relações Internacionais. Ijuí: Unijuí, 2006. p. 481-528. BEDIN, Gilmar Antonio. Estado de Direito e relações internacionais: É possível o Direito substituir as relações de poder na sociedade internacional? In: BEDIN, Gilmar Antonio (org.) Estado de Direito, jurisdição universal e terrorismo. Ijuí: Editora Unijuí, 2009. BEDIN, Gilmar Antonio. A sociedade internacional clássica: aspectos históricos e teóricos. Ijuí: Editora Unijuí, 2011. BETTATI, Mario. O Direito de ingerência - mutação da ordem internacional. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. DELMAS-MARTY, Mireille. Três Desafios para um Direito Mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. Tradução de: Fauzi Hassan Choukr. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. FONSECA, Dhiego Feitosa et al. Economic sanctions as tools for political and economic coercion. In: MACHADO, Artur Andrade S.; IDE, Diogo Mamoru; ZAGO, Evandro Farid (Org.). Toward Global Intentity: Through Cultural Diversity. Brasilia: Onu, Unesco, Universidade de Brasilia, 2009. p. 95-112 HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2014. Tradução de: Rosina D'Angina.

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JUNIOR, Raimundo Batista dos Santos. Humanismo e administração da paz no mundo globalizado. In: OLIVEIRA, Odete Maria de (Org.).Configuração dos Humanismos e Relações Internacionais. Ijuí: Unijuí, 2006. p. 703-743 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 5. ed. São Paulo: Schwarcz, 2003 MARTINS, Daniele Comin. Direitos humanos: historicidade e contemporaneidade. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; ARAUJO, Nadia de (Org.). Os direitos humanos e o direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Cap. 11. p. 251-275. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito humanos e conflitos armados. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. MIYAMOTO, Shiguenoli e SCHERMA, Márcio Augusto. Humanismo e segurança: em busca de uma nova agenda. In: OLIVEIRA, Odete Maria de (Org.).Configuração dos Humanismos e Relações Internacionais. Ijuí: Unijuí, 2006. p. 665-702. SPIELER, Paula Bartolini. A indeterminação do conceito de intervenção humanitária – reflexo no caso Timor Leste. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PUC, 2007. Disponível em: < www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10564/10564_1.PDF>. Acesso em: set. 2014. TEIXEIRA, Francisco Carlos. O papel da ONU. 2005. Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2015. VIEIRA, Gustavo Oliveira. Constitucionalismo na mundialização: desafios e perspectivas da democracia e dos direitos humanos. Ijuí: Unijuí, 2015. 344 p

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O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA A SUA HUMANIZAÇÃO E EFETIVAÇÃO DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA FRENTE A SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA

Ana Paula Schmidt Favarin1

INTRODUÇÃO

O controle de convencionalidade é um instituto relativamente novo, sendo uma das formas encontradas, inicialmente pelos tribunais internacionais (Corte Interamericana de Direitos Humanos, Corte Europeia de Direitos Humanos, Tribunal de Justiça da União Europeia) e hoje, ainda timidamente, pelos tribunais internos para visualizar essa aproximação que se mostra extremamente necessária. Com isso, o Brasil deve se beneficiar dessa possível inter-relação entre fontes internas e internacionais. Os meios de comunicação constantemente divulgam imagens de presos, em quase todos os Estados brasileiros, que sofrem com a superlotação carcerária. Diante disso, surge a necessidade de adotar algumas alternativas que se proponham a, aliviar o sofrimento existentes nas prisões, a partir de um diálogo (inclusivo) dos Direitos Humanos. 1 CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE O instrumento normativo de maior importância no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos é a Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada de Pacto de San José da Costa Rica. A Convenção foi assinada em San José, Costa Rica, em 1969 e somente entrou em vigor em 1978. Do ponto de vista substancial, a Convenção Americana de Direitos Humanos, assim como a Convenção Europeia de Direitos Humanos, assegura um rol de direitos 1

Graduada em Direito pela Universidade Luterana do Brasil e Mestranda (Bolsista UNIJUÍ) em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Bolsista UNIJUÍ. Ijuí – Brasil. Advogada. OAB/RS. E-mail: [email protected].

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civis e políticos, inspirado no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Nesse rol, destacam-se, no entendimento de Piovesan (2007, p. 88): o direito à personalidade jurídica; direito à vida; o direito a não ser submetido à escravidão; o direito à liberdade; o direito a um julgamento justo; o direito à compensação em caso de erro judiciário; o direito à privacidade; o direito à liberdade de consciência e religião; o direito à liberdade de pensamento e expressão; o direito à resposta; o direito à liberdade de associação; o direito ao nome; o direito à nacionalidade; o direito à liberdade de movimento e residência; o direito de participar do governo; o direito de igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial.

Os Estados signatários do Pacto de São José da Costa Rica, como por exemplo, o Brasil, em sua produção legislativa, tem a obrigação de adequar-se às obrigações internacionais pertinentes à proteção dos direitos humanos das quais sejam signatários, sob pena de responsabilidade internacional. O Pacto de San José da Costa Rica entrou em vigor no Brasil em 25 de setembro de 1992. Contudo, a aceitação total da supervisão do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos só foi consolidada em 1998, com a aceitação da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Diversamente da Convenção Europeia de Direitos Humanos, na Convenção Americana a jurisdição da Corte não é obrigatória. As obrigações assumidas pelo Estado que ratifica a Convenção Americana (1969), consistem, segundo o artigo 1.1, em zelar pelo respeito aos direitos humanos reconhecidos e em garantir o exercício dos mesmos por parte de toda pessoa que é sujeita à sua jurisdição. Concernente à Ramos (2012, p. 205), salienta que “a obrigação de respeito aos direitos humanos fornece o primeiro elemento para a futura responsabilização internacional do Estado violador”. O Brasil, ao ratificar a CADH, assumiu a obrigação convencionalinternacional de cumpri-la, de fazer cumpri-la em todo o seu território e por todas as suas instituições, poderes, agentes públicos e cidadãos. A obrigação de respeitar os direitos emerge expressamente do artigo 1.1. O dever de adotar medidas de direito interno, suficientes à efetividade dos direitos e das liberdades, advém do artigo 2.1 da Convenção. Portanto, as decisões da autoridade de coisa julgada formal e material. Assim, devem ser cumpridas de forma eficaz e integral. A corte poderá supervisionar o cumprimento de suas decisões, convocando audiências publicas, bem como comunicando a assembleia da OEA o descumprimento, como ocorreu no caso Apitz Barbera e Outros vs. Venezuela (2008), onde a Corte informou, no final de 2012, o descumprimento, solicitando à assembleia que instasse a Venezuela a cumprir a decisão (Resolução de 23 de novembro de 2012) (GIACOMOLLI, 2015, p. 10).

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Portanto, quando o Estado falhar em obedecer aos comandos de respeitar ou garantir os direitos previstos na Convenção, surgirá a responsabilização estatal em reparar os danos. Neste sentido, controle de convencionalidade é uma espécie de controle de validade de normas, complementar ao controle de constitucionalidade. É espécie de controle de validade de normas, complementar ao controle de constitucionalidade. Adequação entre a legislação nacional e os compromissos internacionais assumidos pelo país perante a comunidade internacional para proteção dos direitos humanos. Este controle não se aplica quando a norma for incompatível com a Constituição, por si só, o que configuraria caso de inconstitucionalidade. De fato, uma lei somente será inconvencional quando, apesar de válida perante o texto da Constituição, incutir em vício de invalidade por ser incompatível com os compromissos internacionais do país no que diz respeito à proteção de direitos humanos. A temática do controle de convencionalidade ganhou relevo, a partir do julgamento do caso “Almonacid Arellano e Outros contra Governo do Chile” pela Corte Interamericana, em 26 de setembro de 2006. Da referida decisão, merece destaque a afirmação, constante do considerando 124, no sentido de que “o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de ‘controle de convencionalidade’ entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos”. Desta forma assegura Mazzuoli (2013, p. 95): Foi tão somente a partir de 2006 que a Corte Interamericana passou a entender ser obrigação dos juízes e tribunais internos proceder ao exame da compatibilidade das leis domésticas com a Convenção Americana, levando em conta não somente a convenção, mas também a interpretação que dela faz a Corte Interamericana, intérprete última e mais autorizada do Pacto de San Jose. Assim, a partir desse momento (2006) a Corte Interamericana transportou a obrigatoriedade de controle de convencionalidade dessas mesmas leis, de forma prioritária, para o Poder Judiciário dos Estados-partes (o que não havia feito expressamente até então).

Destaque-se que todo e qualquer tratado de direitos humanos é paradigma para o controle de convencionalidade, e não somente a Convenção Americana (o que a própria Corte também tem entendido, ao referir-se sempre a “um tratado internacional como a Convenção Americana”). Sabe-se que a liberdade individual, por decorrer necessariamente do direito à vida e da própria dignidade da pessoa humana, está amplamente consagrada no texto 122

constitucional e nos tratados internacionais, sendo mesmo um pressuposto para o Estado Democrático de Direito. Lopes Junior (2012, p. 71) confirma que o processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí porque somente se admite sua existência quando, ao longo desse caminho, forem observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas.

2 A PROTEÇÃO DA LIBERDADE E A PRISÃO COMO “EXTREMA RATIO” Para Foucault (2015, p. 223), a forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais. Segundo o filósofo, ela se constitui fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixa-los e distribui-los espacialmente, classifica-los, tirar deles o máximo de tempo e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo [...]. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e uteis, por meio de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência.

Uma nova legislação definiu o poder de punir como função geral a sociedade. Segundo Foucault (2015, p. 87), é exercida basicamente do mesmo modo sobre todos os seus membros, mas ao definir da detenção a pena principal, acabou por introduzir processos de dominação característicos de um tipo particular de poder. Uma justiça que se diz “igual”, um aparelho judiciário que se pretende “autônomo”, mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a conjunção do nascimento da prisão, “pena das sociedades civilizadas”.

Somente no século XVIII surge a privação de liberdade como pena, e apenas no século XIX a pena de prisão converte-se na principal das penas, substituindo progressivamente as demais. Conforme o Estado se fortalece, consciente dos perigos que encerra a autodefesa, assumirá o monopólio da justiça, proibindo os indivíduos de tomar a justiça por suas próprias mãos. Sabe-se que a liberdade individual, por decorrer necessariamente do direito à vida e da própria dignidade da pessoa humana, está amplamente consagrada no texto constitucional e nos tratados internacionais, sendo mesmo um pressuposto para o Estado Democrático de Direito. Lopes Junior (2012, p. 71) confirma que o processo 123

penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí porque somente se admite sua existência quando, ao longo desse caminho, forem observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas. Para Lopes Junior (2012, p. 71), a premissa básica que norteia toda a obra: questionar a legitimidade do poder de intervenção, por conceber a liberdade como primevo do processo penal. A Constituição de 1988 consagrou o status constitucional da prisão cautelar ao manter a possibilidade da sua existência, impondo, limites a esta prisão processual, na medida em que, ao aplicá-la de forma indiscriminada, violaria direitos e princípios constitucionais de alta importância no nosso ordenamento. Deste modo, a constitucionalização do processo penal permitiu a inserção de garantias individuais consubstanciando a efetiva proteção da liberdade em relação à necessidade da custódia acautelatória. Sabemos que o processo penal é o ramo do Direito que mais se beneficia da normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Atualmente, podermos alcançar um devido processo, o qual deve ser não apenas legal e constitucional, mas também convencional. Nesse sentido, Giacomolli (2015) defende que “uma leitura convencional e constitucional do processo penal, a partir da constitucionalização dos direitos humanos, é um dos pilares a sustentar o processo penal humanitário”. Para Mazzuoli (2013), a estruturação da república em um Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF), a fundamentação da ordem jurídica na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e o elenco dos direitos e garantias fundamentais situam, definitivamente, a prisão antes do trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória, como uma medida excepcional, ou seja, que deve ser usada como extrema ratio do processo penal, afastando a concepção medieval da obrigatoriedade da prisão e do recolhimento ao cárcere. Neste sentido, para Mazzuoli (2013, p. 41): A excepcionalidade da restrição da liberdade antes de uma sentença penal com trânsito em julgado advém do artigo 5º, LVIII, da Constituição Federal. A regra é o recolhimento ao cárcere após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória, nas hipóteses em que não for possível substituir a pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito ou suspender a execução da pena (susrsis).

No Brasil, a lei 12.403/2011, moldura a prisão processual como uma medida

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excepcional, cabível em casos nos quais não se é possível aplicar outras medidas cautelares. É importante destacar que decretar a prisão preventiva para depois serem buscadas alternativas, mantém a prisão preventiva, o recolhimento ao cárcere como prima ratio. É necessário verificar neste cenário que a implantação dessa medida adéqua o ordenamento jurídico interno para cumprimento de obrigações internacionais, pois, conforme exige o artigo 2º da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), segundo o qual é dever dos Estados-partes a adoção de disposições de direito interno compatíveis com as normas contidas no referido Tratado, conforme dispõe essa normativa: Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º (da CADH) ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

Neste diapasão, a obrigatoriedade da audiência de custódia corroboraria com a integração jurídica latino-americana. Com efeito, a audiência de custódia é, na atualidade, parte do ordenamento jurídico de diversos países da América Latina, a exemplo do Peru, México, Argentina, Chile e Equador. 3 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA A audiência de custódia tem por finalidade garantir o contato da pessoa presa com um juiz em 24 horas após sua prisão em flagrante. Hoje em dia, a lei apenas prevê o direcionamento do auto de prisão em flagrante para que o juiz analise a legalidade e a necessidade da manutenção da prisão cautelar. Por isso, segundo Masi (2015, p. 79), há quem estenda a necessidade deste ato a qualquer prisão da natureza cautelar, uma vez que os tratados internacionais que tratam da matéria não fariam esta distinção, devendo ser interpretados sempre de forma ampliativa (princípio da proteção suprema do ser humano, ou pro homine) em favor da máxima efetividade dos direitos humanos.

A realização de audiência de custódia imediatamente após a prisão em flagrante é iniciativa que encontra respaldo em normas internacionais, sendo mecanismo de prevenção e de combate à tortura, visando também à humanização e à garantia de efetivo controle judicial das prisões provisórias. Dispõe o artigo 7.5 da

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Convenção Americana de Direitos Humanos que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”. Com isto, podemos entender que a principal função da audiência de custódia é ajustar a processo criminal as leis internacionais sobre Direitos Humanos. O Pacto de San Jose da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos) é um dos Tratados internacionais mais importantes no que diz respeito à proteção dos direitos humanos e das garantias individuais do último século. Após ter sido ratificado pelo Brasil em 1992, era de se esperar que o país passasse a colocar em prática os direitos e garantias neles, estabelecidas, muitas das quais já previstas, expressamente, na Constituição Federal de 1988. Deste modo, Cruz (2002) afirma: A possibilidade de que o próprio acusado intervenha, direta e pessoalmente, na realização dos atos processuais, constitui, assim, a autodefesa (...). Saliente-se que a autodefesa não se resume à participação do acusado no interrogatório judicial, mas há de estender-se a todos os atos de que o imputado participe. (...) Na verdade, desdobra-se a autodefesa em direito de audiência e em direito de presença, é dizer, tem o acusado o direito de ser ouvido e falar durante os atos processuais (...).

Importante destacar que as normas internacionais que preveem a apresentação física do preso não estão em contradição com nenhuma norma do nosso ordenamento jurídico. Conforme Masi (2015), a relação entre elas é de complementariedade, uma vez que a Constituição admite a ampliação do rol de garantias fundamentais nela previsto por meio dos tratados internacionais. Importante destacar que a Constituição deixou de ser o único referencial de controle das leis ordinárias, dando espaço ao “controle de convencionalidade” (compatibilidade material), o qual segundo Ingo Sarlet, não faz distinção entre os tratados aprovados pelo pelo rito especial do artigo 5º, par. 3º, da CF/88 (que equivalem a emendas constitucionais) e aqueles aprovados por maioria simples do Congresso Nacional (que são normas supralegais), devendo ser observados até mesmo preventivamente pelo Legislativo, quando da apreciação de algum projeto de lei (MASI, 2015, p. 95).

Diante disso, é relevante a normatização interna da audiência de custódia, a fim de que o Estado brasileiro efetive o cumprimento dos compromissos internacionais firmados para que possa evitar a ocorrência de nulidades relacionadas a violação de direitos humanos. Longe de ser um procedimento meramente burocrático, a audiência de 126

custodia é um instrumento de humanização do processo penal, pois desta forma se reduzirão os índices da população carcerária. A audiência de custodia é o meio mais eficiente de possibilitar que o juiz analise os requisitos formais do auto de prisão em flagrante, relaxando eventual prisão ilegal; verifique pessoalmente se o preso foi vitima de maus tratos, tortura ou práticas extorsivas durante a abordagem policial ou logo após a prisão por agentes estatais (caso em que poderá encaminhar os autos ao MP e demais órgãos competentes, como as corregedorias) e promova um breve contraditório (um espaço democrático de discussão) acerca da possibilidade de concessão da liberdade provisória, com ou sem fiança, da aplicação de medidas cautelares diversas e, em último caso da necessidade ou não da conversão em flagrante (medida pré-cautelar) em prisão preventiva (MASI, 2015, p. 80).

Destarte, é uma forma de resguardo da dignidade e dos direitos fundamentais do imputado. Também, é, uma medida capaz a dar concretude ao contraditório prévio, instituído após a reforma do sistema de cautelaridade no processo penal brasileiro, referência constitucional e convencional humanitárias. A audiência de custódia, prevista no art. 7.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mesmo que esquecida e negligenciada por muitos anos, em que pese sua origem estar vinculada a uma norma que vigora no Brasil desde 1992, finalmente vem ganhando seu espaço na doutrina. Diante disso, alguns tribunais entenderam por bem regulamentar a aplicação dessa medida e, do mesmo modo, o Conselho Nacional de Justiça editou as Resoluções nº 213 e 214 dispondo sobre a audiência de custódia. Com a implantação da prática, haverá um potencial auxílio na redução do alto índice de presos provisórios no país, que é de 42% da população carcerária, segundo recentes dados do CNJ, amenizando a superpopulação carcerária e o déficit de vagas, de modo a propiciar melhorias nas condições de cumprimento de pena nos estabelecimentos prisionais, aliadas a redução de custos (MASI, 2015, p. 83).

Desta maneira, a prisão que surgiu como um instrumento substitutivo da pena de morte, das torturas cruéis e degradantes, atualmente está superlotada e não consegue realizar o fim o qual se destina a pena, ou seja, ressocializar o apenado. Os presídios brasileiros, atualmente são vistos como uma escola de aperfeiçoamento do crime pela sociedade, além de ter como característica um ambiente degradante e desumano, acometido dos mais variados vícios, sendo impossível a ressocialização de qualquer ser humano.

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Mas o pior, além disso tudo, é a violência rotineira das autoridades, indo desde as brutalidades cotidianas à tortura institucionalizada e às matanças em massa por ocasião das rebeliões que explodem periodicamente como reação às condições de detenção desumanas (cujo ponto máximo permanece o massacre do Carandiru, em 1992, quando a polícia militar matou 111 detentos em uma orgia selvagem estatal de uma outra era), e que se desdobra numa impunidade praticamente total (TELLES, 2004, p. 7).

A superlotação viola as normas e princípios constitucionais, trazendo como consequência para o preso, uma “sobrepena”, uma vez que a convivência no presídio trará uma angústia maior do que a própria sanção imposta. Violência pandêmica entre detentos, sob forma de maus-tratos, extorsões, sovas, estupros e assassinatos, em razão da superlotação superacentuada, da ausência de separação entre as diversas categorias de criminosos, da inatividade forçada (embora a lei estipule que todos os prisioneiros devam participar de programas de educação ou de formação) e das carências da supervisão (TELLES, 2004, p. 8).

A prisão é um instrumento ineficiente e que serve apenas para estigmatizar e rotular o condenado, que ao sair da cadeia, estará em uma situação muito pior do que quando entrou. A corrupção existente, no sistema carcerário, salienta Greco 2015 que, conjugada com o tratamento indigno dispensado aos detentos (aqui incluída, obviamente , a superlotação carcerária) tornou-se uma marca registrada do sistema penitenciário do século XX, bem como do início do século XXI.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A audiência de custódia foi um dos assuntos mais debatidos no ano de 2015. Todos os estados da federação já aderiram à audiência de custódia e estão reunindo esforços para torná-la realidade em todas as comarcas do Brasil. O importante é melhorar a realidade das prisões preventivas e o fato de existir a audiência de custódia, independente de como ela será feita, já representa um grande avanço. Destaca-se que o Direito Penal deve ser mínimo e a pena de prisão reservada para os crimes realmente graves. O que deve ser máximo é o Estado Social. São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custodia no Brasil, Choukr, 2014 menciona que a mais importante delas seria ajustar o processo penal brasileiro aos tratados internacionais de Direitos Humanos. Confia-se, também, a 128

audiência de custodia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove o encontro de juiz com o preso. Longe de ser um procedimento meramente burocrático, a audiência de custodia é um instrumento de humanização do processo penal, pois desta forma se reduzirá os índices da população carcerária.

REFERÊNCIAS CRUZ, Rogério Schietti. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas, 2002. CHOUKR, Fauzi Hassan. PL 554/2011 e a necessária (e lenta) adaptação do processo penal brasileiro à convenção americana de direitos do homem.In: IBCCrim, Boletin n. 254- janeiro de 2014. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Petrópolis: Ed. Vozes, 2014. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal. São Paulo: Atlas, 2015. GRECO, Rogério. Sistema Prisional. Colapso atual e soluções alternativas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Impetus, 2015. LOPES JUNIOR, A. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MASI, C. V. A audiência de custodia frente à cultura do encarceramento. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015. MAZZUOLI, V. O. O controle de jurisdicionalidade da convencionalidade das leis. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. MENDES, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. PIOVESAN, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997. RAMOS, A. C. Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. ______. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

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A MICRORRESISTÊNCIA ANUSSITA DO SÉCULO XXI DENTRO DA COMUNIDADE JUDAICA BRASILEIRA

Albo Berro Rodrigues1

INTRODUÇÃO Em pleno século XXI, a sociedade brasileira enfrenta sérios problemas de identidade e pertencimento por parte de seus cidadãos. Seja problema relativo a gênero, sexualidade, religião, ou até mesmo no tocante a expressão de culturalidade histórica. Neste ponto, analisaremos uma temática ainda pouco conhecida da nossa sociedade, mas que faz parte da própria construção do povo brasileiro, e que vem a séculos sendo marginalizado e relegado ao ostracismo. O problema a que nos referimos é conhecido pelo nome pejorativo de “Marrano”, termo que em castelhano significa leitão, filhote de porco, e que foi cunhado como forma de se referir a uma parcela da população ibérica ao final da idade média, ou seja, aos judeus ibéricos forçados a se converter ao catolicismo sob pena de morte, pois não tiveram tempo hábil de deixar a península após o édito de Allambra. Esta gente, então chamada de marrana, compuseram as primeiras levas de “colonizadores” das Américas, vindo a formar os primeiros pontos de civilidade europeia em solo brasileiro, como Recife, Olinda, Porto dos Casais (atual Porto Alegre), entre outros. Judeus impedidos de praticar a religião e cultura ancestral, acabaram adaptando-se à vida na colônia sob uma dualidade identitária: “Cristãos Novos” da porta para fora de suas casas, mas “Cripto Judeus” ao fechar a porta de seus lares, mantendo uma vida dupla e repassando esta forma peculiar de judaísmo às próximas gerações. Após o nascimento e desenvolvimento da república e da emancipação da liberdade de pensamento e religiosa em nosso país, levas de imigrantes do leste europeu, norte da África e regiões dos Balcãs e Mediterrâneo aportam em solo

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Licenciado em História pela Universidade Norte do Paraná; Pós-Graduado em Ensino de História pela Universidade Candido Mendes; Mestrando em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, Ijuí/RS. E-mail: [email protected].

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brasileiro. Judeus de várias partes do mundo rumando para o paraíso, buscando uma vida melhor, mas desconhecendo a dramática história de seus compatriotas ibéricos que aqui já estavam desde as primeiras povoações. O encontro de irmãos que se desconhecem e não se aceitam, dando origem a toda uma problemática de reconhecimento e pertencimento por parte dos marranos, que viam finalmente sua diáspora ter um fim com a chegada daqueles que continuaram sendo judeus de direito. Mas a história é que, após longos séculos separados, ambas as comunidades acabaram se estranhando, fazendo com que o povo marrano fosse jogado à marginalidade, pois não viam-se como cristãos e nem tão pouco eram aceitos como judeus. Baseado neste relato, o presente artigo mostra, de forma a ambientar o leitor, quem são estes “marranos” e sua trajetória até a situação atual, discutindo através da análise de grandes pensadores, como que o problema se alimenta e se mantém, levando em consideração o discurso de biopoder usado pelo establishment judaico brasileiro e, em contrapartida, analisando as formas de microrresistência usadas pelos sujeitos em questão a fim de se afirmarem como judeus plenos, baseados em sua história, cultura e tradição, mostrando as diversas facetas da pluralidade judaica e buscando os pontos em comum para que esta afirmação de pertencimento se sustente, e assim, buscar meios, através das discussões de Direitos Humanos para um possível caminho, conduzido pelo debate, para uma solução ao problema apresentado. 1 MARRANOS OU ANUSSIM: a origem da discussão A questão dos cristãos novos, outrora chamados de “marranos”, mas como relatado introdutoriamente é um termo pejorativo e ofensivo aos judeus, pois faz uma referência a porco, um animal religiosamente proibido, e que hoje se apresentam sob o nome de Bnei Anussim, ou seja, filhos dos convertidos a força no período inquisitorial ibérico (do hebraico Bnei = filhos; Anussim = plural de Anus, forçados), é um desdobramento dentro da história do povo judeu ou nação judaica, e possui uma significância para a compreensão da própria história da formação da nação brasileira, visto serem estes fugitivos dos tribunais inquisitoriais da igreja, no tempo do Brasil colônia que vieram para as terras “descobertas” em busca de liberdade, oriundos em grandes massas migratórias, ou de forma reduzida, em pequenas famílias apenas, 131

desbravando os sertões desconhecidos, habitados por nativos americanos. Assim, foram se integrando no processo de formação colonial, contribuindo de grande forma na construção dos diferentes sujeitos regionais, através da mescla de seus conhecimentos, vivências e experiências, bem como de suas tradições, ainda que de forma discreta, pois não poderiam se expor temendo as fogueiras do santo ofício, mas foram pouco a pouco as incorporando em todos os pontos de povoamento onde se inseriram. Estes indivíduos contribuíram para a formação dos elementos regionais como o gaúcho, o sertanejo, o bandeirante, estes mesmos cripto-judeus da época não podendo seguir sua cultura abertamente, e desgarrados de sua pátria onde viviam há muitos séculos, só puderam manter viva além dos nomes de família os costumes de sua gente. Por mais integrados que estivessem, sempre existiu a vontade de muitos em poder retornar a praticar de forma aberta e livre a crença de seus ancestrais. Assim, sempre temerosos dos tribunais eclesiásticos, estes homens e mulheres acabaram criando uma nova e peculiar forma de judaísmo, que aos olhos da Comunidade Judaica Brasileira não são vistos como de fato se intitulam ser, o que os obriga a viverem hoje em uma espécie de limbo cultural, que resulta na formação de um novo grupo judaico que se firma para ganhar reconhecimento, se agremiando em instituições, congregações sobre o titulo de sinagogas anussitas, pois como acrescenta Steinberg (Apud: SCLIAR, 1985), a comunidade étnica funciona como um refúgio contra a alienação da sociedade moderna, vindo neste caso a funcionar também como um meio de resgate cultural e de identificação pessoal que os sujeitos buscam a fim de se firmarem na sociedade e de construírem sua própria sociedade baseadas na oralidade e ancestralidade da comunidade na qual são formadores. Ainda, segundo o relato que traz a pesquisadora Anita Novinsky (1983,p.13): Um garoto, filho de Davi Meneses, retirou do armário a pequena e pobrezinha Tora e leu as escrituras em hebraico, cantando e cumprindo o ritual do shabat. Todos acompanhavam comovidos e compenetrados. Foi um shabat tipicamente brasileiro, mas marrano, naquela sala improvisada, com uma mezuzá na porta, que cada adulto e criança beijava ao entrar, foi um shabat em pleno sertão da Paraíba, onde centenas de pessoas ansiosas buscavam saber quem eram, encontrando nessa busca um novo sentido para a vida.

Com esta experiência e tantas outras relatadas pela pesquisadora e por tantos 132

outros historiadores e pesquisadores, torna-se inegável o fenômeno da existência e da sobrevivência do sujeito intitulado Marrano em pleno solo brasileiro. 2 O ASPECTO DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER NA SOCIEDADE JUDAICA BRASILEIRA A comunidade, ou sociedade, judaica brasileira atual, se constituiu a partir de várias levas de diversos grupos de judeus, oriundos da Europa, Ásia e norte da África, mas solidificada logo após as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, com a dizimação de comunidades judaicas inteiras, ocorreu uma união, de certa forma, sob o eixo de uma das duas grandes etnias explicadas anteriormente, os Judeus Ashkenazim do Leste Europeu. Independentemente de serem Sírios, Marroquinos, Egípcios, Gregos, Lituanos, os judeus brasileiros acabaram sendo guiados por líderes espirituais de regiões como Polônia, URSS, Alemanha. Uma unidade cultural veio a ser imposta e aceita, como forma de identidade judaicas brasileira, o que acabou por dizimar toda e qualquer chance dos descendentes de Judeus Sefaraditas serem aceitos neste processo hegemônico. Esta hegemonia politico-cultural, torna-se clara nas palavras de Agamben (2010, p.117): [...] o entrelaçamento de politica e vida tornou-se tão intimo que não se deixa analisar com facilidade. [...] Esta é a força e, ao mesmo tempo, a intima contradição da democracia moderna: ela não faz abolir a vida sacra, mas a despedaça e a dissemina em cada corpo individual, fazendo dela a aposta em jogo do conflito político. Aqui está a raiz de sua secreta vocação biopolítica: aquele que se apresentará mais tarde como o portador dos direitos e, com um curioso oximoro, como o novo sujeito soberano [...] pode constituir-se como tal somente repetindo a exceção soberana e isolando em si mesmo corpus, a vida nua.

Este grupo majoritário (ideologicamente) no Brasil, tendo tomado em suas mãos a liderança do judaísmo (esquecendo de que cada comunidade étnica judaica é autônoma, e que o Brasil é um pais laico e livre), acaba por negar o reconhecimento dos bnei anussim, afirmando até que o fenômeno é inexistente, ou se o mesmo existe é impossível provar, como fica claro na opinião de alguns rabinos entrevistados no documentário A Estrela Oculta do Sertão (EIGER, VALENTE. 2005). Com este pensamento, acaba-se criando uma série de empecilhos aos descendentes de judeus de origem ibérica de retornar a prática pública e ao reconhecimento em geral de sua judaicidade. Faltam-lhes as garantias constitucionais para tal, por mais que a República 133

em seu artigo 5º assim os conceda esta liberdade de pensar e agir religiosamente e ideologicamente. Diferenças existem entre estas duas grandes correntes (Sefaradim e Ashekanazim), devido à sua construção cultural ao longo dos séculos separados, como por exemplo: Na cultura Ashkenazi se observa um detalhe de cada vez, já na cultura Sefaradi se observa o conjunto todo. E por isso, dentre outras situações banais, é que o universo Ashkenazi busca uma hegemonia cultural judaica em solo brasileiro. Primeiro, por serem realmente a maioria a entrar no Brasil como imigrantes considerados judeus e, em segundo, por serem as suas yeshivot (instituições escolares e universitárias judaicas) a sobreviverem em sua maioria do que as Sefaraditas. E estes mesmos Ashkenazim, atrelados a sua cultura, e pegando o conceito de Madá (conhecimento científico em hebraico) desenvolveram o conceito de Madá com devoção, unindo (apenas ao seu ver) a religiosidade judaica com os avanços científicos, cativando assim judeus leigos, não religiosos, descendentes de judeus de várias etnias, inclusive judeus ateus. A lealdade coletiva, a coesão interna do grupo e os ideais compartilhados pelas lideranças laicas hirschianas provavelmente são decorrentes da política de Austritt de Hirsch do que de sua filosofia religiosa; mas eles são superiores aqueles alcançados por Torá Umadá que, por sua própria abertura cultural e social, perdem oportunidade para reforçar uma tal coletividade interior. (LAMM. 2006).

Apenas os que se submetem às normas propostas pela grande corrente em questão podem vir a buscar uma identidade judaica formal em sinagogas federadas e ligadas a CONIB (Confederação Israelita Brasileira), mas para isso o descendente destes anussim deve publicamente renegar seu passado e afirmar que nunca teve ligação com o judaísmo histórico ou cultural, ou familiares judeus, vindo assim, diante de um tribunal religioso judaico chamado de Bet Din, receber um documento de conversão (e não de retorno à fé dos ancestrais como seria o proposto pelo ex Rabino Chefe Sefaradi de Israel Mordechai Eliyahu). Tornam-se os anussim hoje em dia em verdadeiros apátridas, como nos explica Agamben (2015, p.25): “estamos habituados a distinguir apátridas de refugiados, mas nem naquela época, nem hoje, a distinção é simples como pode parecer a primeira vista.” Judeus que não podem ser reconhecidos pelos seus como tais, e se desejam ser 134

reconhecidos devem renegar quem são, tornando-se um não ser para enfim virem a ser. Mas como deixar de ser o que se é para vir a ser o que se deseja, que na verdade já se é o que se deseja? Pergunta retórica, mas com uma reposta curta e direta: supremacia e hegemonia cultural por parte de um grupo sobre os demais. Obviamente, nem todos os judeus Ashkenazim pensam desta forma. Muitos são extremamente favoráveis à aproximação e inserção nas comunidades existentes, outros ainda apoiam a criação de comunidades próprias, e até de comunidades mistas, com judeus de várias etnias rezando juntos. Este pensamento de respeito e até mesmo de admiração pela cultura anussim é expressa de certa forma no poema Zog Maran, de Avrom Reisen, como podemos ver a seguir: Zog Maran - Zog, maran, du bruder mayner, Vu iz greyt der seyder dayner? -In der heyl, in a kheyder, Dort hob ikh gegreyt mayn seyder. -Zog, maran, mir, vu, ba vemen Vestu vayse matses nemen? -In der heyl, oyf got’s barotn Hot nayb vayb dem teyg geknotn. -Zog, maran, vi vest zikh klign A hagode vu tsu krign? -In der heyl, in tife shpaltn Hob ikh zi shoyn lang bahaltn. -Zog, maran,vi vest zikh vern, Ven me vet dayn kol derhern? -Ven der soyne vet mir fangen Vel ikh shtarbn mit gezangen. (Avrom Reisen, 1938)2

O poema acima publicado, de autoria de um escritor judeu, nascido na Bielo Russia e que escreve em Yidishe, dialeto exclusivo dos judeus do leste europeu, enquanto que os judeus ibéricos falam (falavam) um dialeto do Espanhol chamado de Ladino, retrata toda a dificuldade que estes sujeitos possuem para poder preservar suas práticas religiosas, culturais e ideológicas. Mesmo com todas estas dificuldades, ainda persistem e lutam contra a assimilação, desejosos de alcançar o reconhecimento étnico, como tantos outros grupos étnicos existentes no Brasil conseguiram, como as comunidades Quilombolas, comunidades Guarani, Xavante, etc. Reisen ainda retrata os aspectos homogeneizadores da cultura judaica, que agrega seus membros como judeus, como por exemplo, o uso da Matza, o famoso pão 2

Tradução livre: "Diz-me Marrano, meu irmão, onde pões a mesa para o Seder? — Numa caverna escura e funda, o meu Pessach irei fazer. Diz-me Marrano, onde vais buscar as matzot brancas? - Na caverna, com a ajuda de Deus, a minha mulher lá, as amassa. Diz-me Marrano, como conseguiras encontrar uma Hagadá? - Na caverna, entre as fendas, há muito que escondi os livros lá. Diz-me Marrano, como te defenderás quando te ouvirem cantar? - Se me vierem prender, com uma canção nos lábios irei morrer.".

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sem fermento que os judeus até hoje consomem no período de Pessach, que é a festividade mais importante para a cultura judaica, pois marca o seu nascimento como povo, ou seja, a mítica libertação do Egito. O poema ainda relata o aspecto peculiar de esconder-se para praticar o judaísmo, como os anussim ou marranos faziam, e por isso nomeados de Cripto-Judeus, ao falar de que comemoraria o Pessach em uma caverna, e termina ressaltando a coragem e bravura deste povo que, caso fossem descobertos, seguiriam para a morte com uma canção nos lábios, o famoso cântico baseado nos salmos Mi chamocha baelim Adonai (Quem és como tu ó Deus). É como se, apesar das evidências históricas, antropológicas, culturais, sociais, ainda grupos que se intitularam como senhores da verdade, da vida e da morte, neguem-se a aceitar a presença daqueles que entendem como estranhos, esquecendose de que a diversidade é fundamental para a própria sobrevivência da cultura, e vindo a transformar em comércio de fato as coisas da fé, para que todo aquele que se diz marrano, conseguir uma enorme soma capital, seja em dinheiro ou em benefícios, consegue seu documento de inclusão no tão esperado grupo, mesmo que para isso tenha de negar quem diz ser. Mas, sobre esta capitalização da coisa e do ser, Pelbart nos fala (2003, p. 21): Pois nada do que foi evocado acima pode ser imposto unilateralmente de cima para baixo, já que essa subjetividade vampirizada, essas redes de sentido expropriadas, esses territórios de existência comercializados, essas formas de vida visadas não constituem uma massa inerte e passiva à mercê do capital, mas um conjunto vivo de estratégias. A partir daí, seria preciso perguntar-se de que maneira, no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade, surgem novas modalidades de se agregar, de trabalha, de criar sentido, de inventar dispositivos de valorização e de autovalorização. Num capitalismo conexionista, que funciona na base de projetos em rede, como se viabilizam outras redes que não as comandadas pelo capital, redes autônomas, que eventualmente cruzam, se descolam, infletem ou rivalizam com as redes dominantes?

Pelbart (2003) associa estes grupos ao sistema capitalista, em que os mesmos deliberam ordens de condutas, regras, etc., de cima para baixo, pois entendem que se encontram no topo do processo, como verdadeiros senhores, sacerdotes, intermediários entre o Criador e a Criação. Sem o seu aval nada se faz, nada se muda, tudo fica como está, ou como não está. Tornam-se os senhores da vida e da morte, não no sentido de realmente aplicar morte física, mas sim no sentido de decidir quem

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é quem não é (neste caso judeu), ou como Agamben (2010) bem nos coloca em sua obra Homo Sacer, estes grupos tornam-se os senhores da vida de outros, lhes impondo o total desnudamento da mesma. Morrem assim, diversas vezes estas pessoas, antes de terem seus corpos depositados a terra. Se na Segunda Grande Guerra o sofrimento dos judeus durou décadas, a contar das primeiras expulsos da península ibérica, do decreto de Allambra até o século XXI, os Judeus Sefaraditas sofrem a séculos este processo de vida nua. 3 A SOLUÇÃO BRASILEIRA, MAS NÃO “À MODA” BRASILEIRA Para o princípio de nossa discussão sobre uma possível solução a este impasse, que é mais um embate político do que qualquer outra coisa, podemos levar em consideração o exposto por Moacyr Scliar (1985): O judaismo pode ser visto como um grupo étnico, caracterizado por passado histórico, línguas e tradições em comum, por uma cultura com certas características próprias [...].

Tendo por base a história, pela qual as comunidades anussitas ou marranas da atualidade se conectam com o povo judeu, entendem-se a necessidade do pertencimento a uma comunidade étnica, para a própria preservação do ser como participe da própria comunidade, como um círculo que se auto alimenta: o ser depende da comunidade para ser e a comunidade depende do ser para continuar a existir. A “comunidade étnica funciona como um refúgio contra a alienação da sociedade moderna” como comenta Steinberg (1995), ou seja, o marrano naturalmente busca uma comunidade para fugir deste limbo cultural na qual seus antepassados foram condenados, e por mais que as comunidades judaicas atuais não os aceitem em sua plenitude, o primeiro caminho a seguir é a autoidentificação, ou seja, seguir o mesmo exemplo histórico acontecido em várias partes do mundo para onde os Judeus Sefaraditas (que conseguiram sair antes e depois do decreto) tomaram, como nos dois casos a seguir, relatados na Revista Eletrônica Morasha (2010). O primeiro caso relata a história de um grupo de sefaraditas saídos da Espanha e que foram para a Síria, pois lá os judeus eram considerados cidadãos do sultão e poderiam praticar sua religião em liberdade. Mas como os judeus sírios nunca 137

tinham sofrido o que acabara de acontecer os judeus da Espanha, entenderam que aqueles imigrantes não eram judeus e fecharam suas sinagogas e comunidades ao refugiados. Com isso os judeus sefaraditas ergueram suas próprias sinagogas, escolas, cemitérios, vindo a existir por dois longos anos duas comunidades judaicas na Síria, até que por fim, vendo que os não mais recém-chegados eram verdadeiramente seus irmãos na persistência, práticas, costumes, os sírios finalmente incorporaram-se a estes, vindo inclusive a absorver boa parte da cultura sefaradita como sua, como prova de que finalmente existia apenas um povo judeu em solo sírio. O segundo relato, poucas décadas após o desembarque de judeus espanhóis na Síria, levas de judeus portugueses, já tidos como cripto-judeus, sabedores da independência da região da atual Holanda do domínio espanhol, e vendo que lá, judeus e cristãos viviam com liberdade, resolveram rumar para estas novas terras. Chegando em Amsterdã o mesmo fato ocorreu, ou seja, os judeus autóctones não os reconheceram e não os aceitaram, fazendo com que a atitude fosse a mesma, ou seja, ergueram estas sua própria sinagoga, e com o passar do tempo o desenrolar se deu da mesma forma, ou seja, unificação das duas comunidades. Uma possível proposta inicial seria a criação de suas próprias comunidades, como é a opinião do rabino sefardita J. Oliveira que ressalta a inportancia da criação de comunidades anussim em terras brasileiras (da mesma forma que já foram criadas em outras partes das Américas e em Belmonte, Portugal) para que os marranos possam voltar a viver como judeus plenos e depois de assentada e solidificada esta comunidade entraria com pedido oficial junto ao rabinato de Israel a fim de oficializar a comunidade como uma comunidade judaica ortodoxa sefardita. Todo o que foi forçado a algo, e teve que viver assim, como se fosse um refém ou aprisionado entre os gentios, o julgamento é distinto para com ele, e longânimo.a estes não convém converter a algo que já o são. Não se converte água em água, da mesma forma não se converte judeus em judeus, apenas requer que eles retornem a ser o que deveriam ser se assim o quiserem. (OLIVEIRA, 2010).

Baseado neste posicionamento é que o rabino Oliveira vem criando comunidades pelo mundo, sempre que possível após uma longa pesquisa genealógica e de costumes familiares, prestando orientações para que os Anussim possam praticar uma vivência judaica plena em suas comunidades para que no futuro elas sejam oficializadas como comunidades judaicas, ou pelo menos aceitas como tal, como 138

acontecera outras vezes na história. Sendo assim, as chamadas comundiades oficiais, comunidades de outras religiões (que por vezes usurpam aspectos da cultura e da religiosidade, com o intuito de ridicularizar estes sujeitos), devem ter em mente que todos vivemos em uma nação pautada por uma carta normativa, a Constituição Federal, e que ela prevê direitos e deveres no tocante à liberdade de expressão e ideologia: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; [...] (BRASIL, 1988)

Esquecem justamente do inciso VI que fala sobre a liberdade religiosa, e tendem a disputar justamente o monopólio de uma causa que não é restrita de um pequeno grupo, mas de muitos brasileiros espalhados por este país continental, o que causa, um posicionamento tipicamente etnocentrista de acordo com a visão de Laraia (2004): Essa avaliação é, por definição, preconceituosa, feita a partir de um ponto de vista específico. Basicamente, encontramos em tal posicionamento um grupo étnico considerar-se como superior a outro. Do ponto de vista intelectual, etnocentrismo é a dificuldade de pensar a diferença, de ver o mundo com os olhos dos outros.

Deve-se então, buscar acima de tudo, a divulgação da história destas pessoas, através de dispositivos de valorização cultural e de direitos humanos, a fim de que a sociedade como um todo tenha conhecimento dos fatos e possa entender as manifestações dos militantes da causa marrana brasileira como legítima, e assim, a própria comunidade judaica nacional venha a entender quem de fato são, o que desejam e possam reconhecê-los como irmãos, mesmo que não dentro de suas sinagogas ainda, mas reconhecendo as deles, como fruto da diversidade cultural judaica. Por isso, ressalta-se a importância do estudo da história para que se entenda os motivos de reinvindicações, vejam a sua validade e desta forma abram-se os debates e discussões na atualidade. Sobre este aspecto e ainda enfocando a 139

importância do estudo da história sobre temas relacionados a conflitos étnicos e raciais, Ricardo Barros (2007) nos esclarece que: A História nos ajuda a identificar no passado os erros e acertos da humanidade. Sem ela, seríamos condenados a repetir infinitamente os equívocos de tempos anteriores.Hoje em dia um governante que ressuscitasse o ódio racial ou a idéia da superioridade de uma raça sobre outras seria imediatamente associado ao nazismo ou ao fascismo. O conhecimento que nos permite essa identificação é a História. Evidentemente que a História não deve servir como um livro de receitas, no qual você junta todos os ingredientes e submete a certas condições para obter determinado resultado. Não é esse o fim último da História. Mas, sem dúvida, a História está recheada de eventos que nos ajudam a refletir sobre o passado humano e a não repetir certos eventos que não nos levaram a bons tempos.

Sendo assim, o movimento Anussim ou Bnei Anussim, de acordo com a denominação que seus integrantes e como os atuais historiadores preferem nomeá-lo, surge neste começo de século como resposta a um longo período de marginalidade em que muitos indivíduos do mundo inteiro e mais precisamente no Brasil, unem forças para reivindicar direitos de cidadania, legalidade, liberdade religiosa e cultural, como sujeitos integrantes de um todo denominado “Nação Judaica”, pois segundo eles (bnei anussim), teriam os mesmos direitos de culto e até mesmo de cidadania israelense, pois seriam estes os descendentes diretos dos mesmos judeus ibéricos que foram obrigados a se converter a fé católica apostólica romana no período em que se instalaram os tribunais da santa inquisição na Espanha e Portugal, e que fugidos para as Américas teriam iniciado este desdobramento do povo judeu, de forma marginal, escondida, temerosos das fogueiras e castigos dos quais haviam fugido, e revivendo a lembrança de sua ancestralidade e repassando a esperança em tempos futuros de paz e liberdade. CONCLUSÃO De acordo com toda a análise realizada, alguns pontos devem ser ressaltados para que possa existir o entendimento para uma abertura as discussões sobre o tema, que por mais difícil e desconhecido que ainda seja para a sociedade brasileira, vimos que é um ponto peculiar da história mundial e que seu desdobramento tem muito a ver com a construção do povo brasileiro. 140

Em primeiro lugar, ressalta-se a existência de um judaísmo, ou povo judeu, da atualidade que é multicultural, complexo, plural, com várias línguas e etnias, e assim desfaz-se o estereótipo a muito propagado como sendo o judeu loiro de olhos azuis, cabelo cacheado, roupa preta e sovina. Em segundo lugar ressalta-se que assim como todo o povo, os judeus não possuem uma união no sentido de cultura, pois um povo é feito de várias culturas (exemplo do Brasil, com o samba, frevo, maracatu, vaneirão, etc., como expressões culturais), sendo assim, o conhecimento desta diversidade torna-se fundamental. Em terceiro, a presença judaica na formação do povo brasileiro, assim como as diversas nações indígenas das quais temos o legado tanto na alimentação, como na língua, usos e costumes; as nações africanas, tanto de origem politeísta, animista, panteísta, bem como os africanos islamizados que protagonizaram uma importante revolta no Brasil, a Revolta dos Malê. Baseado nestes pontos fundamentais, e levando em consideração as normativas, documentos de regulamentação de direitos humanos, a própria Constituição Federal e a Declaração universal dos direitos humanos, deve-se dar voz aos sujeitos denominados anussim, resgatar sua história e dar-lhes o direito a serem o que desejam ser, já que não querem nada mais do que um resgate de sua herança cultural, assim como comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil a fora, com a diferença de que estes anussim não desejam uma unificação cultural espacial, com a terra, mas sim apenas cultural e histórica. Uma longa caminhada, onde verificamos os entraves causados pela Biopolítica na mão de grupos que tentam definir quem é e quem não é judeu, e assim, normatizarem, formatarem estas pessoas, para que se adequem ao conceitos ideológicos desta pequena mas forte massa dominante. Ações de divulgação do conhecimento e principalmente a criação de ferramentas e dispositivos que possibilitem a valorização desta cultura, tanto para o exterior, mas como também no interior destas próprias personagens, se faz necessário, a fim de que possa-se estabelecer os parâmetros, ou até mesmo os não parâmetros para que finalmente estas pessoas tenham a devida paz que tanto buscam e possam finalmente responder sem medo que são judeus.

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REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Editora UFMG. Belo Horizonte. Ed. 2ª. 2010. ________________. Meios sem fim. Notas sobre a política. Editora Autêntica. Belo Horizonte. Ed. 1ª. 2015. BARROS, Ricardo. A importância do conhecimento histórico. Disponível em Acesso em 10 dez 2015. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> acesso em 20 dez 2015 EIGER, Elaine. VALENTE, Luize. A Estrela Oculta do Sertão. Editora Fototema. 2005. Disponível em: . Acesso em: 20 dez 2015 LAMM. Norman. TORÁ UMADÁ: Judaísmo e Conhecimento Secular. Tradução: Uri Lam. Ed Sefer. São Paulo. 2006. LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um Conceito Antropológico. Jorge Zahar Editor. 22ª edição. Rio de Janeiro. 2004. PELBART, Peter Pál. Vida Capital: Ensaios de biopolítica. São Paulo. Ed. Iluminuras, 2003 PORTAL ANUSSIM. Certificado de Retorno para os Anussim. Acesso em 15 dez 2015. Disponível em: < http://www.anussim.com.br/halacha/certificado-de-retorno-paraanussim.php>. REISEN. Avrom. ZOG MARAN. Acesso em 15 dez 2015. Disponível em: < http://yiddishmusic.jewniverse.info/reisenavrom/index.html>. REVISTA MORASHÁ. Judaismo Virtual. Disponível em < www.morasha.com.br>. SCLIAR, Moacyr. A condição judaica; das tábuas da lei à mesa da cozinha. Porto Alegre. L&Pm. 1985. 122 p. STEINBERG, Stephen. 1995. Turning back: the retreat from racial justice in american thought and policy. Boston: Beacon Press

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SISTEMA REGIONAL ÁRABE: IMPLICAÇÕES DA MOBILIZAÇÃO DIGITAL DURANTE A PRIMAVERA ÁRABE E CONTROVÉRSIAS GARANTISTAS DE UM ESTADO DE EXCEÇÃO

Fernanda Licéli Lowe1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo traz como tema principal o Sistema Regional Árabe e o movimento intitulado como Primavera Árabe. A busca da interpretação deste sistema é calcada nas primeiras Instituições normativas do Mundo Árabe, nas características e formação da Liga dos Estados Árabes e na origem da Primavera Árabe com seus pressupostos midiáticos. Após longos períodos de exploração, devido à localização territorial do petróleo no Oriente Médico, tida como estratégia marítima pelas potências estrangeiras, a Liga dos Estados Árabes buscou unificar os países do Mundo Árabe, mantendo o enriquecimento econômico destes e a soberania absolutista dos governos. Nas petromonarquias, não havia distinção entre o patrimônio público e privado. Os líderes governamentais não realizavam mudanças sociais, rejeitando qualquer ideal democrático e libertador. Além da repressão, a região sofria com a corrupção, com o enriquecimento ilícito de seus governantes, com a falta de sistema educacional e condições básicas, a maioria da população era mantida na ignorância e na pobreza. Todavia, a insatisfação popular tomou frente contra as barbáries repressivas do governo. O movimento intitulado como Primavera Árabe surgiu durante a primavera do ano de 2010. Sua característica era livre, cada região tinha suas próprias reinvindicações - o povo estava unido pelo descontentamento governamental, em busca de garantias sociais e novos ideais democráticos.

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Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Pós Graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER. Aluna especial do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ.

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Os protestos da Primavera Árabe incluíram pessoas de todas as classes sociais e etárias, assim como mulçumanos e cristãos. Dentre os motivos comuns entre todos os países participantes para a eclosão das revoltas estão: as evoluções políticas, sociais, econômicas e culturais ocorridas dentro do mundo árabe, associadas à fatores externos. Nesta perspectiva revolucionária, as plataformas digitais foram utilizadas para intensificar e divulgar os movimentos durante a Primavera Árabe – a mobilização digital organizou os protestos, através de redes sociais como Facebook, Twitter e YouTube, onde os cidadãos-jornalistas livremente compartilhavam os acontecimentos regionais. A partir das considerações apontadas, o presente estudo pontuará elementos sobre a formação do Sistema Regional Árabe, características do Estado de Exceção instaurado no Mundo Árabe e a influência das plataformas digitais durante a Primavera Árabe.

1 SISTEMA REGIONAL ÁRABE: DAS CARACTERÍSTICAS DA LIGA DAS NAÇÕES DOS ESTADOS ÁRABES E DA ORIGEM DO MOVIMENTO PRIMAVERA ÁRABE

Durante séculos o Oriente Médio foi liderado pelo Império, onde costumes e preceitos “jurídicos” eram baseados nas leis sagradas de Maomé (expostas na Suna ou na Sharia). Devido à estratégia marítima-territorial, os governos autoritários enriqueceram com a exploração do petróleo, permanecendo inertes quanto à prestação de garantias fundamentais mesmo após a “fortuna petrolífera”. O Oriente Médio foi o berço das primeiras civilizações, na região do Crescente Fértil, e representa a área de encontro entre os continentes europeu, africano e asiático. As terras que antes eram divididas entre várias tribos árabes e suas monarquias foram conquistadas, no século XV, pelo Império Turco Otomano. Já na segunda metade do século XIX, com a decadência do império Turco, os olhos das duas grandes potências da época foram atraídos para lá: Inglaterra e França, que se encontravam em plena segunda revolução industrial e miravam o petróleo da região. (SOI, 2013.p.23)

Com o passar dos anos, o controle dos países Árabes foi ameaçado pela França e pelos Estados Unidos, que possuíam (e possuem ainda hoje) grandes interesses nas áreas petrolíferas. Devido à percepção de que as economias árabes foram exploradas pelo Império Europeu, apontam-se novas ideias em prol da 144

formulação de uma unificação dos Estados Árabes. (...) durante o século XX, o surgimento de uma identidade entre os povos da região formada após a queda e o desmembramento do Império TurcoOtomano, o nacionalismo árabe, devido à semelhança linguística e cultural, que leva à independência vários países, como Arábia Saudita, Iraque, Síria, Líbano, Egito, Transjordânia, Iêmen, entre outros, antes dominados pela colonização neoimperialista dos países europeus. Ao poder ascenderam, então, governos ligados às elites árabes, em sua maioria, autoritários. Alguns deles eram, inclusive, aliados de potências ocidentais, como os Estados Unidos e a Inglaterra, a exemplo das petromonarquias como a Arábia Saudita, Bahrein, Qatar e Omã. Portanto, apesar de certos regimes se declararem antiocidentais, a intervenção do Ocidente sempre esteve presente na região, antes, durante e após a descolonização, devido à sua posição estratégica e à presença do petróleo. (SOI, 2013.p.45)

VISENTINI (2012.p.140) fundamenta que o anticolonialismo já se fazia presente e ganhava força, “graças à Arábia Saudita, que abriu as portas para a exploração de seu petróleo por empresas norteamericanas, outro sentimento se agregava a ele: um antagonismo anglo-americano movido pelo controle do petróleo na região”. Por meio de regimes monárquicos que governam sob a sua tutela militar - como os da Arábia Saudita, Kuwait e Emirados Árabes, uma boa parte das reservas petrolíferas está sob o controle político (e não domínio absoluto) dos EUA. FERABOLLI (2005.p.32) citando ALNASRAWI (1991) destaca que “a configuração das sociedades árabes havia mudado, enquanto as elites tradicionais já haviam se associado ao imperialismo europeu de maneira irreversível, as novas classes desafiavam o status quo na busca de uma nova ordem econômica social”. A formação e a consolidação dos Estados Árabes se deram sob a interseção de várias forças: a) a influência das potências europeias do século XIX, Inglaterra e França, explorando suas colônias para obter delas o máximo de retorno econômico possível; b) a perseguição e migração judaica para Israel e a consequente onda de refugiados palestinos; c) as petromonarquias e as revoltas sociais; d) a briga pelo controle do petróleo e o jogo de poderes do mundo dividido na Guerra Fria. Como alternativa, contrário ao modelo tradicional do sistema europeu (composto por decisões jurisprudenciais, leis positivadas e Cortes Internacionais), surge o Sistema Regional Árabe, em busca da unificação dos países da Nação Árabe – o que manteria o enriquecimento e poder entre os países membros, politicamente aliados. Inicialmente, a Liga Árabe foi criada com o objetivo de salvaguardar a 145

soberania e a independência dos países do Mundo Árabe. (...)esse mundo não se vê como uma parte isolada do sistema internacional, certamente se percebe como um sub-sistema, o qual se denomina, a partir da proposição de Korany (1999-p.37-38), “Sistema Árabe de Estados”. Esse sistema vê o mundo árabe como uma nação, que tem interesses comuns e prioridades de segurança distintas daqueles dos países capitalistas centrais. De acordo com a lógica do Sistema Árabe de Estados, os países do Oriente Médio e Norte da África que gozam de unidade linguística, religião, história e cultura poderiam criar e desenvolver seu próprio sistema – econômico, políticos e estratégico – para contrapor as ameaças que surgissem de fora desse sistema. (FERABOLLI, 2005.p.15-16)

Considerando a perda do território e o surgimento de conflitos ligados à interesses econômicos e comerciais, a Liga dos Estados Árabes (LEA) é concebida como uma organização política regional - com o objetivo de reforçar e coordenar os laços econômicos, sociais, políticos e culturais entre os seus membros e não membros, assim como mediar disputas entre estes. Anteriormente a LEA, os países dividiam-se em apoio uns aos outros (conforme o status econômico), onde os regimes tinham liberdade para proibir o pluripartidarismo, restringindo as liberdades políticas da população e também de expressão, expandindo a opressão social e destruindo qualquer oposição à administração existente. Nas petromonarquias não havia distinção entre o patrimônio público e privado. Os líderes destes países não realizavam mudanças sociais, rejeitando qualquer noção de democracia, a região sofria com a corrupção, e a maioria da população era mantida na ignorância e na pobreza. A Liga dos Estados Árabes unificou nações da Península Arábica e do norte da África, foi fundada em 1945 no Cairo por sete países, e, atualmente, compreende vinte e dois estados, que possuem no total uma população superior a 200 milhões de habitantes: Egito, Iraque, Jordânia, Líbano, Arábia Saudita, Síria, Iémen/Iêmen, Líbia, Sudão, Marrocos, Tunísia, Kuwait, Argélia, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Catar, Omã, Mauritânia, Somália, Palestina, Djibouti, Comores, Eritreia (como observador desde 2003). Foi a primeira Liga a ser criada após a II Guerra Mundial - baseada em princípios que dão suporte e promovem um nacionalismo árabe unificado (padronizando questões em relação aos mais diversos assuntos) – destaca a SOI (Simulação de Organizações Internacionais) que o objetivo principal da Liga dos 146

Estados Árabes é "aproximar as relações entre os estados membros, coordenar a colaboração entre eles para proteger sua independência e soberania, e considerar, de uma forma geral, os negócios e os interesses dos países árabes". A Carta da Liga Árabe foi elaborada em 1945 e assinada no mesmo ano, endossando o princípio de um lar árabe comum, ou seja, a unificação dos Estados (ao mesmo tempo em que respeita a soberania de seus países membros). A Organização instituiu para a administração da organização, o Secretariado Geral, o Conselho da Liga e o Conselho de Defesa Conjunta, entre outros órgãos internos afiliados. A administração da Liga Árabe tem se baseado na dualidade da instituição e na soberania dos Estados. A regulação interna do Conselho da Liga e de seus comitês foi acordada em outubro de 1951, enquanto a do Secretariado Geral apenas em maio de 1953. Desde então, a administração da Liga Árabe tem se baseado na dualidade da instituição supranacional e na soberania dos Estados. A preservação dessa soberania deveu-se, naturalmente, à preferência intrínseca das elites dirigentes em manter seu poder e independência na tomada de decisões internas. Assim, a Liga se consolidou como uma organização inócua, que pouco fazia para concretizar seus objetivos. No entanto, face à ameaça constante da intervenção estrangeira, especialmente militar, à Liga cabe demonstrar que o papel de liderança confiado a ela pelas nações do Mundo Árabe não é em vão. (SOI, 2013.p.09)

O Secretariado Geral da Liga Árabe é a instituição interna responsável pela implementação das decisões tomadas pelo Conselho da Liga, que é presidido pelo Secretário Geral com o auxílio de diversos Secretários Assistentes, contando ainda com uma equipe composta por membros permanentes e temporários. O papel do Secretário-Geral é tido como de extrema importância, pois é ele que representa o Mundo Árabe em nível internacional. A Liga também possui um Conselho de Defesa Conjunta (criado após a assinatura do Tratado para Defesa Mútua e Cooperação Econômica em 1950), composto pelos ministros de Relações Exteriores e de Defesa de todos os Estadosmembros. Diversos tratados e acordos foram assinados no âmbito da Liga no decorrer dos anos – sobre cultura, aviação, território, atividades postais, extradição de criminosos, economia e defesa conjunta. A Simulação de Organizações Internacionais (SOI) destaca que o mais importante deles foi o Tratado para Defesa Conjunta e Cooperação Econômica, que entrou em vigor em 1952 e acarretou a criação do 147

Conselho Econômico da Liga dos Estados Árabes, visando reassegurar e solidificar a segurança de seus Estados, tanto econômica como militar. No âmbito dos Direitos Humanos, atualmente há um Comitê formado por sete dos países membros, que recebem relatórios periódicos de todos os Estados da Liga (os direitos humanos são considerados impassíveis de revogação). Em tese, a liberdade é garantida sem distinção de sexo, raça, cor, idioma, crença religiosa, opinião, pensamento, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou deficiência física/mental. Todavia, cabe aos Estados signatários da Carta a criação de mecanismos que assegurem o cumprimento de tais preceitos, o que atualmente é ineficaz, devido aos conflitos armados entre os Estados acerca de domínio com os demais países participantes ou não da LEA. Ainda, na Carta é ressaltada a igualdade entre homens e mulheres quanto à dignidade, direitos e obrigações, entretanto, há a ressalva de que esta deve se dar dentro dos princípios estabelecidos pela Sharia2, que traz distinções nas funções sociais dos homens e das mulheres. Em síntese, a Carta Árabe dos Direitos Humanos afirma os princípios contidos na Carta das Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos Pactos Internacionais dos Direitos Humanos e na Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos no Islã. Consoante OLIVEIRA (2012.p.103), “há um incipiente sistema regional árabe. Em 1994, a Liga dos Estados Árabes adotaram a Carta Árabe de Direitos Humanos, que reflete a islâmica lei da Sharia e outras tradições religiosas”, ou seja, mesmo com o passar dos anos, a organização regional é permanentemente norteada pelas religiosidades. Ressalta-se ainda para o fato de que, ainda que haja inúmeros avanços em prol dos direitos humanos e possível reconhecimento democrático liberal, o fato das decisões da Liga Árabe serem vinculantes apenas para os membros que votaram a favor delas acarretam em discordâncias – o que têm contribuído para incapacitar o

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Sharia é um termo árabe que significa "caminho", mas, que historicamente, dentro da religião islâmica, tem sido continuamente empregado para se referir ao conjunto de leis da fé, compreendida pelo Alcorão, a Suna (obra que narra a vida do profeta Maomé), além de sistemas de direito árabe mais antigos, tradições paralelas, e trabalho de estudiosos muçulmanos ao longo dos primeiros séculos do Islã. Em outras palavras, a Sharia é um sistema detalhado de leis religiosas desenvolvido por estudiosos muçulmanos e ainda em vigor entre os fundamentalistas hoje. Disponível em: http://www.infoescola.com/islamismo/sharia. Acesso em 28/12/2015.

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funcionamento da organização, principalmente na esfera da “alta política” em conflito com a religiosidade extrema. Quanto à capacidade de interação, essa será avaliada apenas por meio da observação da qualidade absoluta das capacidades sociais, ou seja, pelo grau de institucionalização do Sistema Árabe de Estados. O Sistema Árabe de Estados, de acordo com Barnett (1993, 1995, 1998) é composto por duas instituições que se sobrepõem – o pan-arabismo e a soberania estatal. Essas atribuem papéis diferentes a cada um dos membros da Liga Árabe, pois enquanto a soberania proíbe a interferência nos assuntos domésticos dos Estados árabes, o pan-arabismo não só sanciona isso como também nega a distinção entre o doméstico e o internacional dentro do Sistema Árabe de Estados. Assim, a tensão existente e entre as instituições nacionalismo árabe e soberania estatal, bem como a falta de capacidade da Liga Árabe para lidar com essa questão, fornece os critérios para avaliação de como os baixos níveis de institucionalização do Sistema Árabe de Estados afetam a possibilidade de uma integração política no Mundo Árabe. (FERABOLLI, 2005.p.23)

A SOI aponta que nos últimos anos, a Liga vem apresentando uma força renovada: apoiando os esforços de reconhecimento internacional do Estado da Palestina, condenando o uso de violência no decorrer das manifestações na Primavera Árabe, suspendendo a Síria da permanência junto aos países membros da LEA. Contudo, apesar dos tratados e pactos realizados, nem a ONU, nem a LEA, conseguiram frear a onda de manifestações em prol de uma mudança governamental. Neste contexto de insatisfação, levanta-se a Primavera Árabe contra a administração política - um movimento liderado pelo povo de forma livre, tido como “revolucionário” em busca de democracia contra os governos teocráticos, autoritários e monarcas de seus países. A liberdade buscada pelos manifestantes desencadeou uma série de reinvindicações populares (determinadas particularmente em cada região) - o que unificou todos estes povos foi o descontentamento governamental e a falta de “garantias humanas”. Com esses movimentos revolucionários se alastrando pela região, foram depostos vários chefes de Estado, de governos monárquicos a repúblicas modernizadoras, todos regimes autoritários que estavam no poder há muitos anos. Nada mais é do que a luta de sociedades civis pela democracia e consequente liberdade e melhores condições de vida, que altera, de forma considerável, a geopolítica da região. Os protestos incluem pessoas de todas as classes sociais e etárias, assim como mulçumanos e cristãos, sendo, porém, jovens em sua maioria. Dentre os motivos comuns entre todos os países participantes para a eclosão das revoltas estão as evoluções políticas, sociais, econômicas e culturais ocorridas dentro do mundo árabe, associadas a fatores externos. Todavia, apesar das bases comuns, cada país revolucionário possui suas próprias peculiaridades(...).(SOI, 2013.p.44-45)

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Devido a globalização, os recursos digitais tiveram papel importante na abrangência e organização deste movimento – as plataformas digitais e redes sociais foram intensamente utilizadas para a divulgação das características do movimento, bem como para informar a população em massa, referente aos locais e datas, mas, principalmente, para convocar aqueles que estavam insatisfeitos com o seu governo.

2 PLATAFORMAS DIGITAIS E MOBILIZAÇÃO EM MASSA NA PRIMAVERA ÁRABE: INFLUÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS RECURSOS DIGITAIS

Primavera Árabe “é o termo utilizado para os protestos populares que ocorreram em países árabes do norte da África e do Oriente Médio, desde o Marrocos até o Golfo Árabe, a partir de dezembro de 2010”.3 O movimento tem início cronológico marcado pelo ato desesperado de um jovem de 26 anos que, enquanto vendia legumes na rua, foi humilhado e impedido de realizar sua atividade, ateou fogo ao próprio corpo no dia 17 de dezembro de 2010, falecendo em 4 de janeiro de 2011. Tal fato desencadeou uma onda de protestos e manifestações contrárias aos regimes autoritários existentes na região do Oriente Médio (...) a Primavera Árabe não consiste em uma reação a um ato isolado, mas sim, consequência de um processo histórico longo que envolve relações de poder, uma geopolítica norteada por estratégias de manutenção de áreas de influencia e o poder econômico gerado pela disponibilidade (ou não) de petróleo na cena internacional. (LEITE,2012,p.48)

VIEIRA (2013.p.09) ressalta que a Primavera Árabe é um fenômeno bastante controverso em sua natureza e nomenclatura: “diz-se da nomenclatura, pois o termo “primavera” foi cunhado por jornalistas ocidentais para descrever os diversos

levantes

que

ocorriam concomitantemente a diferentes países da

região árabe”. Segundo

FERABOLLI (2012.p.106) a denominação

“primavera”

é

historicamente derivada dos eventos ocorridos em 1968, chamados na ocasião de "Primavera de Praga". Quanto à natureza da Primavera Árabe afirma-se controversa por não ser apenas política, onde estaria restrita à luta pela democracia, mas por ela estar atrelada também a problemas econômicos e sociais.

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Definição dada pela Simulação de Organizações Internacionais no Guia de Estudos sobre a Liga dos Estados Árabes (LEA).

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(...)ao se denominar “primavera árabe” para o conjunto dos levantes sociais de diferentes países – Tunísia, Egito, Líbano, territórios palestinos, Jordânia, Iraque, Kuwait, Emirados, Omã, Arábia Saudita, Sudão (Norte), Argélia, Marrocos, Síria, Iêmen e Líbia – coloca-se no mesmo bojo realidades distintas, “com problemas econômicos e sociais diferentes oriundos dos diferentes legados deixados pelo colonialismo europeu e pelas diferentes formas de domínio de regimes únicos que governaram esses países por décadas. (FERABOLLI, 2012, p. 107).

Resumidamente: a onda de revoltas da Primavera Árabe começou com uma revolução na Tunisia; imitada com sucesso temporário no Egito; pouco impactou sobre o efeito de uma guerra civil em curso no Iemen; levou a um conflito militar generalizado na Libia - que só foi vencido pelos rebeldes por meio de intervenção militar externa maciça com ataques aéreos, o que significa o uso extremo da violência para “deter” a manifestação popular; permanece (ainda hoje) nos ataques na Síria. Esta onda de protestos é parte de um processo que repercutiu com a queda de governos em países como a Tunísia e Egito, caracterizando-se, sobretudo, como um movimento transnacional, na medida em que afetou não apenas regimes nacionais, mas também seus vizinhos. O descontentamento de grande parte da população frente à submissão ao regime autoritário desses países já era grande, mas as manifestações públicas intensificaram-se a partir da difusão de informações através de mensagens entre aparelhos móveis e de redes sociais, tais como facebook, twitter e blog, conduzidos por cidadãos comuns. (VIEIRA,2013.p.04)

Os países que fazem parte da Primavera Árabe são: Tunísia, Egito, Líbano, territórios palestinos, Jordânia, Iraque, Kuwait, Emirados, Omã, Arábia Saudita, Sudão (Norte), Argélia, Marrocos, Síria, Iêmen e Líbia. Como o movimento surgiu de forma livre, não haviam líderes ou partidos no comando da causa. O descontentamento dos povos em relação ao governo foi o cerne da questão, onde o objetivo principal era a mudança governamental – garantia de liberdades individuais e democracia, administração transparente dos recursos econômicos estatais e distribuição de riquezas. O descontentamento amplo, ainda que houvesse quem concordasse com o status quo, em combinação com um compartilhamento em tempo real dos acontecimentos para além de suas fronteiras possibilitou que os levantes da Primavera Árabe fossem resultados de um efeito cascata. Este efeito representa um amplo movimento de protesto que vai ao encontro de reformas econômicas e políticas, bastante sintetizada por liberais como sendo revoluções pela democracia que revelariam o despertar de um grupo de pessoas que têm sido esmagado por regimes despóticos durante décadas. (VIEIRA, 2013,p.11-12)

Os protestos compartilharam técnicas de resistência civil em campanhas 151

sustentadas através da mobilização digital, envolvendo greves, manifestações, passeatas e comícios. O uso das mídias sociais - como Facebook, Twitter e Youtube, foi a ferramenta utilizada para organizar, comunicar e sensibilizar a população e a comunidade internacional em face de tentativas de repressão e censura na internet por parte dos Estados. (...)o Facebook, o YouTube e o Twitter, além da mídia móvel (celulares), desempenharam papéis vitais, sobretudo nas mãos dos “jornalistascidadãos”. Esse termo compõe parte essencial do novo ecossistema das notícias, pelo fato das informações trazidas em tais plataformas digitais pelos cidadãos comuns serem consideradas fontes para o jornalismo realizado pela mídia tradicional, de modo que esse cidadão pode ou não ter histórico em ativismo,mas surge num mom0ento crucial para emitir informação crítica para o público. (VIEIRA, 2013, p.14)

VIERA (2013.p.22) ao citar MANOVICH refere que a

mobilização

digital

caracterizada está em um nível mediano de envolvimento online – no caso da Primavera Árabe, a organização foi realizada através das plataformas digitais, todavia, os protestos foram físicos. (...) a internet deve ser compreendida como parte de um fenômeno maior que tem alterado os processos de comunicação. Algo que pode ser sintetizado em torno de três dimensões fundamentais através das quais a informação passa a estar submetida: (1) digitalização, (2) convergência e (3) mobilidade. A digitalização se refere à transformação de dados, registros, documentos, sons, imagens e todo tipo de informação em linguagem binária (MANOVICH, 2001.p.22).

SILVA destaca a mobilidade “quando indivíduos aderem a uma determinada causa endossando-a, repercutindo-a, agindo como um elemento disseminador em sua rede de contatos”. Isso possibilita a compressão de grande volume de dados que podem ser armazenados e enviados para grande quantidade de receptores ao mesmo tempo e de modo descentralizado. A convergência diz respeito tanto à inter-operabilidade de equipamentos que passam a funcionar e se comunicar sob uma mesma base técnica (STIPP, 1998), como também repercute naquilo que Henry Jenkins (2009) chama de “cultura da convergência”, isto é, um crescimento expressivo de novas práticas culturais marcadas pela intensa troca de informações dentro de determinados grupos sociais ou entre estes, ainda que estejam fisicamente distanciados. Por fim, a mobilidade se refere ao uso crescente de aparelhos móveis de comunicação multimídia (celulares, tablets, netbooks, sensores, etc.) que possibilitam captar e disseminar informação sem um tradicional fixamento espacial, subvertendo determinados constrangimentos territoriais. (VIEIRA, 2013.p.10)

A mobilização difere da configuração no caso do ativismo, que trata “de um 152

nível superior de envolvimento online, quando o indivíduo concentra forças e age sistematicamente em prol de uma causa” – ainda que formulando, disseminando e criando estratégias para mobilização e aderência para que o

tema ganhe em

visibilidade e repercuta em efeitos concretos na realidade. VIEIRA (2013.p.10) expõe que em processos revolucionários contemporâneos como a Primavera Árabe, os três níveis de envolvimento online se alinham e se retroalimentam: da digitalização, da convergência e da mobilidade – onde é necessário haver especificidades no cenário cultural, “na conjuntura social e na realidade política capazes de gerar ligamentos entre indivíduos movimentando-os para um determinado fim”. PAVLIK (2011.p.15) explica que a tecnologia trouxe mudanças em níveis múltiplos - dentre as mudanças estão a transparência de informações e a participação civil através da internet, que são “apontados como fatores influentes no desdobramento da Primavera Árabe”. A transparência difundida ao final de 2010 e a participação civil através da mídia social desempenhou um papel central nestes movimentos sociais e protestos políticos. Esta história de sinergia entre as mídias sociais e a transparência online na Primavera Árabe continuou na Síria, na Líbia e em outros lugares na região. No Egito, as autoridades tentaram acabar com os distúrbios ao cortar o serviço da Internet. Ironicamente, esta ação poderá ter alimentado ainda mais a revolta, ao tornar os cidadãos mais raivosos. (PAVLIK, 2011, p. 15)

VIEIRA (2013.p.13) ao citar LYNCH (2011) destaca que o “espalhar das revoluções contra os regimes mostra a unidade árabe numa unificada narrativa de mudança, numa região que é conhecida por sua fragmentação ideológica”. Ao se mostrar na Tunísia que um tirano poderia ser derrubado, tal acontecimento tem o poder emblemático de influenciar os demais a acreditarem que era possível superar o medo e sair nas ruas, mesmo com a ameaça de serem presos, torturados e mortos. Estes atos de sair às ruas, difundir informações sobre os levantes, incitar as pessoas de seus círculos sociais a reclamarem do regime e contestarem a ordem que estavam obrigados a seguir foram em grande medida impulsionados por redes de contato através do uso de plataforma online. (VIEIRA, 2013,p.13)

Tendo em vista o processo de mobilização utilizado pelo movimento na referida região árabe, que se refere à capacidade de arregimentar simpatizantes, ativistas ou apoiadores através dos usos das mídias sociais, VIEIRA (2013.p.12) 153

observa que não se trata apenas do ato comunicacional em si, “mas de mecanismos que utilizam a plataforma digital para a criação de uma mobilização online”. VIEIRA (2013.p.14)) expõe ao citar GLADWELL (2010), que

“as

novas

ferramentas da mídia social reinventaram o ativismo social”. Para GLADWELL (2010.p.14), com o facebook e o twitter tornou-se mais fácil aos desempoderados colaborar, coordenar e dar voz às suas preocupações – por isso a característica do movimento em massa, a abrangência é mundial e online. Enquanto as táticas dos levantes foram inovadoras (uploading de vídeos através de câmeras de celulares para divulgação nas mídias sociais como o facebook e Twitter), eles não introduziram nenhuma ideia particularmente nova. Ainda, VIEIRA (2013.p.15) leciona que o desejo por mudança política, a ânsia por liberdades democráticas e críticas, e a identificação intensa de um mundo árabe, já eram partilhados no mundo árabe há pelo menos dez anos e, em geral, os levantes sempre “clamaram por independência, soberania nacional, e respeito pelo desejo do povo”. O Facebook foi a principal ferramente de mídia digital utilizada na pluralização do conteúdo político, de forma online, de modo que muitas campanhas de jornalistas-cidadãos4 puderam expor condições de abuso aos direitos humanos, tortura e pobreza. Por fim, é importante também mencionar a discussão relacionada ao ativismo digital quanto ao possível “modismo” que vem sofrendo. Muitos dos termos como‘‘Twitter Revolution’’ ou‘‘Facebook Revolution” são trazidos nas coberturas midiáticas ao falar sobre o acontecimento da Primavera Árabe. Em realidade, alguns autores, como é o caso do Hounshell (2011) citam “twitter revolution” ao mostrar como a ferramenta está transformando a forma do mundo ver o que acontece no oriente médio. (VIEIRA, 2013,p.20)

De acordo com VISENTINI (2012.p.141), a Primavera Árabe consistiu em um “movimento de protesto que vai para além dos anseios populares, assolados duramente pelo desemprego e pela falta de esperança no futuro”. Entretanto, destaca que possui “importante participação externa, pois os

4

Esse termo compõe parte essencial do novo ecossistema das notícias, pelo fato das informações trazidas em tais plataformas digitais pelos cidadãos comuns serem consideradas fontes para o jornalismo realizado pela mídia tradicional, de modo que esse cidadão pode ou não ter histórico em ativismo, mas surge num momento crucial para emitir informação crítica para o público - VIEIRA, 2013 citando HOUNSHELL, 2011; TUFEKCI e WILSON, 2012.

154

revoltosos foram previamente preparados e a forma e o momento em que a revolta ganhou densidade, foram monitorados e influenciados” – ou seja, sinalizam evidências de participação de países interessados nas revoltas e no redesenho da política na região. Contudo, ainda que o movimento possuísse característica livre, por trás do ideal libertador popular dos manifestantes haviam indivíduos orientados politicamente à agir consoante os interesses de seus países. Infelizmente, o que era para ser um movimento revolucionário, pacífico e em prol da liberdade, tornou-se uma longa batalha sangrenta: do povo contra as relações de poder. O ativismo político organizado já estava iniciado antes e não era apenas um modismo, apenas aproveitou-se das plataformas digitais para anunciar e coordenar os protestos. VIEIRA (2013.p.19) salienta que “ o acontecimento é muito mais amplo do que reduzido a uma plataforma digital - ainda que se reconheça que esta desempenhou um papel bastante significante para o desenvolvimento dos acontecimentos”, sobretudo, na disseminação para outros países da região, que compartilhavam semelhantes problemas, ainda que de naturezas distintas.

3 PARADIGMAS DA PRIMAVERA ÁRABE E CONTROVÉRSIAS GARANTISTAS DE UM ESTADO DE EXCEÇÃO

A Primavera Árabe é um movimento inconcluso e transcendente, formado pelos países do Oriente Médio e Norte da África. A característica principal idealizada pelos manifestantes e participantes da Primavera Árabe foi provocar reformas políticas, que deveriam estar associadas à melhorias de condições socioeconômicas dos países, bem como oferecer acesso e oportunidades econômicas para a população. Apesar dos vários levantes, a situação dos países participantes da Primavera Árabe ainda precisa ser resolvida – o Estado de Exceção permanece instaurado nestes países, onde o direito islâmico ou cristão é visto como norma jurídica, o direito posto é aquele ditado pelo Estado Soberano. No âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos consiste em nortear as novas normatividades acerca das garantias individuais e sociais, mas, infelizmente, pouca relevância possui nos direitos regionais do sistema. 155

A SOI destaca que Tunísia e Egito, ainda que tenham deposto seus presidentes, não conseguiram alcançar um governo estável; Líbano, Jordânia, Kuwait, Omã, Arábia Saudita, Argélia, Marrocos e Bahrein também não conseguiram mudanças significativas com suas revoltas. Síria e Iêmen sustentam uma guerra civil em seu território, e Líbia vivencia uma situação de grande instabilidade, calcada na intervenção militar internacional e restaurou um modelo social mais atrasado. Em decorrência da mobilidade digital, a Primavera Árabe ficou conhecida mundialmente pela intervenção militar dos governos do Mundo Árabe – as mídias sociais desempenharam um papel importante para o desdobramento dos acontecimentos, sobretudo quando à disseminação regional das manifestações. Relacionando o governo dos países árabes ao contexto do “Estado de Exceção”, de AGAMBEN (2003), o soberano é tido como aquele que decide sobre o Estado, e a resposta aos conflitos de guerra é o Estado de Exceção – aqui, nota-se que posteriormente ao processo revolucionário, o Estado ainda possui ideais soberanos e repressivos. Há um fenômeno político instaurado no estado de guerra, relacionando as manifestações populares da Primavera Árabe contra a admissibilidade da intervenção militar e o uso da força de seus Estados. AGAMBEN (2003.p.54) caracteriza como “uma suspensão da própria ordem jurídica”, o homo sacer volta à vida nua, está à mercê das decisões e dos meios utilizados pelo Estado, não há garantias individuais ou sociais. Ainda, fundamenta o autor que o fato e o direito, o status necessitatis, apresenta-se tanto sob forma do estado de exceção quanto sob a forma da revolução – procedimentos de fato jurídicos ou extrajurídicos transformam-se em direito, onde as normas jurídicas se determinam em meio fato há um limiar, onde o fato e o direito parecem indiscerníveis. Esta exceção é caracterizada principalmente pela hierarquização do poder e a religiosidade, considerando que o sistema árabe segue preceitos religiosos e pouco argumenta em relação aos direitos dos cidadãos. Tampouco os indivíduos são considerados como sujeitos cidadãos, a biopolítica é a natureza da soberania, o cidadão é a vida nua, o sujeito em si contra o Estado soberano. A intervenção da ONU, que busca instaurar a paz entre a região árabe, principalmente em áreas que compreendem conflitos armados ou guerra civil, até o 156

momento não teve sucesso em assinar um tratado de paz ou decreto de reciprocidade a nível internacional. ARENDT (1973.p.432) fundamenta que os líderes inspiram a confiança de seu governo, onde o conhecimento “nada tem a ver com a verdade, da mesma forma que o fato de se estar com a razão nada tem a ver com a veracidade objetiva das afirmações do Líder”, que não podem ser desmentidas pela realidade, mas somente pelos sucessos ou fracassos futuros. “O Líder sempre tem razão nos seus atos, e, como estes são planejados para os séculos vindouros, o exame final do que ele faz é inacessível aos seus contemporâneos”. Salienta a autora que “quando um movimento, internacional em sua organização, universal em seu alcance ideológico e global em sua aspiração política, toma o poder num único país, coloca-se obviamente em situação contraditória”. É a ditadura soberana que se opõe à ditadura constitucional – os governos pretendem exercer controles efetivos sobre a concentração dos poderes. AGAMBEN (2003) destaca o texto de Rossirer: “em tempos de crise, o governo constitucional deve ser alterado por meio de qualquer medida necessária para neutralizar o perigo e restaurar a situação ao normal. Essa alteração implica, inevitavelmente, num governo mais forte, ou seja, o governo terá mais poder e os cidadãos menos direitos”. Neste sentido, o ideal libertador e democrático não foi alcançado, tampouco a garantia do mínimo existencial. Se antes da Primavera Árabe os Estados não contavam com garantias individuais, direitos básicos aos cidadãos e liberdade democrática, após o movimento, a intervenção governamental não apresentou soluções políticas que garantam mudanças significativas. Na reflexão sobre as relações de poder, FOCAULT (2005.p.200) fundamenta o caráter relacional do poder, onde “o poder não é uma propriedade, é uma relação que só se pode e só se deve estudar de acordo com os termos entre os quais atua essa relação”. Diante do contexto, o poder está estritamente relacionado ao enriquecimento econômico e a exploração do território no Sistema Regional Árabe. Até o momento, a Liga dos Estados Árabes não emitiu pronunciamentos sobre a situação dos países que permanecem em conflito, não existe posicionamento quanto aos ataques armados que ainda ocorrem na Síria, bem como também não foi 157

mencionado o acordo de paz referido nos artigos da Carta da Liga. Em suma, podemos elencar os desafios que o “Novo Mundo Árabe” precisará enfrentar da seguinte maneira: estabelecer direitos básicos e liberdades civis; alcançar um consenso entre os diferentes grupos políticos para a elaboração de novas constituições; discutir o papel do Exército na nova forma de governo; garantir a participação das diversas camadas sociais nas discussões e resoluções tomadas, o que garante o processo democrático; encontrar formas de conter a violência desencadeada pelos protestos; fortalecer o poder do judiciário, para que sejam garantidos os direitos humanos a todos os cidadãos, inclusive as mulheres; restabelecer a economia e reduzir o desemprego; melhorar a infraestrutura dos serviços públicos; e estabelecer governos mais transparentes, que conquistem a confiança de sua população. (SOI, 2013,p.61)

Contudo, torna-se necessário que os problemas regionais sejam solucionados pelos próprios envolvidos. A SOI destaca, principalmente, que é preciso “que haja um debate pela consciência de que o Mundo Árabe precisa alcançar a sua independência por meio do fortalecimento político e econômico das suas nações frente às potencias globais”, bem como o “empoderamento da

população,

muitas vezes subjugada em situações de intervencionismo estrangeiro que desrespeitam

a

soberania

dos

Estados

e desconsideram aspectos culturais e

religiosos inerentes à região”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do estudo, percebe-se que o Sistema Regional Árabe foi criado de forma livre, oriundo ao receio dos governantes do Mundo Árabe em relação ao domínio da área petrolífera. É um sistema que está em constante mudança, de aspectos ambíguos - busca nomear as garantias individuais e sociais, ao mesmo tempo em que pretende firmar alianças políticas entre os países do Mundo Árabe. Até o momento, não há Constituição ou Tribunal Superior que possa fundamentar questionamentos

jurídicos

e dar embasamento teórico, com

entendimentos jurisprudenciais e decisões de Corte Internacional. A unificação criada a partir da Liga dos Estados Árabes não abarca as necessidades regionais de cada Estado. Mesmo após a nova configuração das sociedades árabes, o imperialismo permanece no comando estatal, onde as classes subalternas desafiavam o status quo 158

em busca de uma nova ordem econômica social e política. Como exposto, a ordem do Estado é a norma jurídica – os ideias democráticos e libertários buscados durante a Primavera Árabe não foram alcançados, e longe estão de tornarem-se passíveis de implementação - reformas políticas que deveriam estar associadas à melhorias de condições socioeconômicas dos países, bem como oferecer acesso e oportunidades econômicas para a população. Apesar dos vários levantes, a situação dos países participantes da Primavera Árabe ainda precisa ser resolvida – o Estado de Exceção permanece instaurado. Se por um lado os olhares do mundo voltaram-se para as problemáticas do Mundo Árabe, de outro, a mobilidade em massa apenas divulgou a proliferação das manifestações e o descontentamento popular, não atingindo as autoridades governamentais na esfera política em prol de verdadeiras mudanças regionais e internacionais. Contudo, por trás do ideal libertador popular dos manifestantes e descontentes com o gooverno, haviam indivíduos orientados politicamente à agir consoante os interesses de seus países. Infelizmente, a Primavera Árabe foi o início de intervenções militares violentas e guerras civis - tornou-se uma longa batalha sangrenta: do povo contra as relações de poder. O ativismo político já estava organizado antes, a onda de movimentos foi o estopim para anunciar o massacre sangrento. O movimento tido como revolucionário, permanece na Síria e no Iêmen, regiões em que ocorrem intensos ataques armados – o motivo: a detenção do território, enriquecimento do governo e a normatização baseada na religiosidade. Em síntese, destaca a SOI os desafios que o Mundo Árabe precisará enfrentar: estabelecer direitos básicos e liberdades civis; alcançar um

consenso

entre os

diferentes grupos políticos para a elaboração de novas constituições; discutir o papel do Exército na nova forma de governo; garantir a participação das diversas camadas sociais nas discussões e resoluções tomadas, o que garante o processo democrático; encontrar formas de conter a violência desencadeada pelos protestos; fortalecer o poder do judiciário, para que sejam garantidos os direitos humanos a todos os cidadãos, inclusive as mulheres; restabelecer a economia e reduzir o desemprego; melhorar a infraestrutura dos serviços públicos; e estabelecer

governos

mais transparentes, que conquistem a confiança de sua 159

população. Contudo, este rol de garantias individuais e sociais não elencam os objetivos políticos e econômicos a serem alcançados no permanente Estado de Exceção.

REFERÊNCIAS ARENDT, HANNAH. As origens do totalitarismo. Acesso em: 05/01/2016. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_arendt_origens_totalitarismo. pdf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo, 2004. FERABOLLI, Silvia. A (des)construção da Grande Nação Árabe: Condicionantes sistêmicos, regionais e estatais para a ausência de integração política no Mundo Árabe – dissertação do mestrado em Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS, 2005. FERABOLLI, Sílvia. Entre a revolução e o consenso: os rumos da Primavera Árabe. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 51, jan./jun. 2012. FOCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão, in 1975-6. São Paulo, Martins Fontes: 2005. GLADWELL, Malcolm. Small Change: The Revolution will not be televised. The New Yorker. October 4, 2010. Acesso em 04/01/2016. Disponível em: http://www.newyorker.com/reporting/2010/10/04/101004fa_fact_gladwell LEITE, Alexandre César Cunha. A Primavera Árabe: entre a democracia e a geopolítica do petróleo. Revista Boletim Meridiano - Resenha, Ed. 2012. MANOVICH, Lev. The language of New Media.Cambridge. MIT Press,2001 citado por VIEIRA, Vivian Patrícia Peron. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013. OLIVEIRA, Erival da Silva. Direito Constitucional: Direitos Humanos. 3ª Ed. Revista dos Tribunais: Porto Alegre, 2012. PAVLIK, John V. A tecnologia digital e o jornalismo: As implicações para a Democracia. Brazilian Journalism Research, Vol. 07, 2011. SILVA. Sivaldo Pinto da. Aderência, mobilização e ativismo online: níveis de envolvimento político na era da comunicação digital. Opinião Pública - UNICAMP, 2013(no Prelo). SIMULAÇÃO DE ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL – SOI. Guia de Estudos: Liga dos 160

Estados Árabes – LEA. Out/2013. Acesso em: 04/01/2016. Disponível em: www.soi.org.br VIEIRA, Vivian Patrícia Peron. O papel da comunicação digital na Primavera Árabe: Apropriação e mobilização social - Artigo apresentado ao V Congresso da Compolítica, realizado entre os dias 08 e 10 de maio de 2013 na Universidade Federal do Paraná, Curitiba/PR. VISENTINI, Paulo Fagundes. A Primavera Árabe: Entre a democracia e a geopolítica do petróleo. Porto Alegre: Leitura XXI, 2012.

161

SISTEMA REGIONAL EUROPEU DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E O “JUS STANDI” INDIVIDUAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Jean Karlo Woiciechoski Mallmann1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Dentre os sistemas regionais de direitos humanos existentes (europeu, interamericano e africano), apenas o sistema europeu é que permite, com plenitude, a legitimidade direta dos indivíduos ou aglomerado de indivíduos no âmbito de suas justiças internacionais. Conforme explica Antônio Augusto Cançado Trindade (2003), nos séculos XVI e XVII, os escritos dos chamados fundadores do Direito Internacional (especialmente os de Francisco Vitoria, Francisco Suárez e Hugo Grotius, além dos de Alberico Gentili e Samuel Pufendorf) já sustentavam o ideal da civitas maxima gentium, constituída de seres humanos organizados socialmente em estados e coexistência com a própria humanidade. Nenhum Estado pode considerar-se acima do Direito, cujas normas têm por destinatários últimos os seres humanos. A consciência humana alcança em nossos dias um grau de evolução que torna possível fazer justiça no plano internacional mediante a salvaguarda dos direitos dos marginalizados ou excluídos. A titularidade jurídica internacional dos indivíduos é hoje uma realidade irreversível. O ser humano irrompe, enfim, mesmo nas condições mais adversas, como sujeito último do Direito, tanto interno como internacional, dotado de plena capacidade jurídico-processual. Seguindo essa tendência, atualmente, na Europa, os particulares têm garantidos poderes bastantes para se valerem da via jurisdicional da Corte Europeia de 1

Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí (2012). Formado no curso de preparação à magistratura pela Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul – Ajuris (2013). Especialista em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Meridional IMED/CETRA (2014). Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera (2016). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes – UCAM (2016). Aluno regular do Mestrado em Direito das Relações Internacionais e da Integração da América Latina pela Universidad de la Empresa - UDE – Uruguai. Aluno especial do curso de Mestrado em Direitos Humanos pela Unijuí. Advogado. E-mail: [email protected].

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Direitos Humanos, por expressa previsão existente na Convenção Europeia de Direitos Humanos – CEDH (em razão das modificações ditadas pelos Protocolos nº 11, em vigor desde 1998), que lhes possibilita a capacidade de ser parte, de agir em juízo e de postular perante ela. É dizer, aos indivíduos é reconhecido amplo direito de ação na esfera protetiva europeia. Possuem a aptidão para figurar como parte no polo ativo da relação processual. Isto é, gozam de personalidade judiciária ou processual (capacidade de ser parte); bem como de exercitar seus direitos nesta relação, atuando processualmente (capacidade de agir em juízo, capacidade processual ou legitimatio ad processum) e; por fim, lhe é inerente também a capacidade de, por sponte propria, pedir ou responder dentro do processo, sem necessidade de representação por qualquer interveniente ou terceiro, detendo o atributo de poder, por si só, pleitear ou defenderse em juízo (capacidade postulatória). Não obstante, por óbvio, esse direito de ação perante a Corte Europeia não é irrestrito. Deve obedecer a subsidiariedade do sistema internacional. É dizer, a Corte só atuará quando o sistema judiciário interno não tiver sanado efetivamente as violações aos direitos humanos que ocorram em seu território. Essa cláusula de subsidiariedade, aliás, além de ser forma de respeito à soberania estatal está expressamente prevista na CEDH (art. 35), que traça os requisitos que devem ser demonstrados pelos indivíduos para que possam demandar na esfera internacional e, dentre eles, expressa a necessidade de, como regra, haver o esgotamento das vias recursais internas. Face ao reconhecimento deste importante direito, verifica-se hoje uma nova problemática dentro do sistema regional europeu: o grande crescimento de demandas que tem ameaçado a efetividade do Tribunal. Em que pese essa realidade, já se vislumbra resultados positivos, com a recente diminuição da demanda perante a Corte Europeia, por meio da criação de um sistema rígido de filtragem das ações judiciais distribuídas e um regime de ordem de exame das mesmas, o que tem acarretado uma redução gradual, verificada a partir do ano de 2014, das demandas propostas e julgadas na Corte. Em suma, por meio do presente artigo, pretendemos apontar a necessidade de dotar os seres humanos de garantias para defenderem seus direitos, notadamente 163

neste ponto tão caro, que são os direitos humanos. Ademais, demonstraremos a atual realidade quanto ao volume de demandas existentes na Corte Europeia, traçando um paralelo com a realidade dos demais sistemas regionais de proteção dos direitos humanos. E, por fim, buscaremos evidenciar o porquê de o contingente de processos perante a Corte Europeia ter diminuído diante de recentes adaptações que foram promovidas no trabalho do Tribunal.

1 SISTEMAS REGIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E A (IM)POSSIBILIDADE DE PETICIONAMENTO INDIVIDUAL: LOCUS STANDI E JUS STANDI

O acesso dos Estados à justiça internacional se dá sempre diretamente (em qualquer sistema de justiça). Daí podermos afirmar veementemente que os Estados, na condição de sujeitos de direito no âmbito internacional, gozam, sem exceção, do jus standi. Por outro lado, aos indivíduos é dado tratamento diferenciado, conforme o sistema internacional que estejamos tratando. Ora terá ele tão somente acesso à justiça internacional por um locus standi, ora gozará do jus standi, a depender, repisese, das normas que regulam cada sistema internacional. Há, dessarte, dois conceitos que precisamos compreender para avançarmos nesse estudo: o conceito de locus standi e o conceito de jus standi, mais especificamente sob o enfoque do que aqui chamaremos de “jus standi individual”. Cada sistema regional tem suas peculiaridades quanto à forma de acesso à justiça internacional por parte de seus indivíduos. Com efeito, a doutrina aponta dois modos de acesso à justiça. Em primeiro lugar, há o chamado locus standi, que é o direito de acesso do indivíduo à Justiça internacional intermediado por um órgão que detém o dominus litis, o qual faz juízo de admissibilidade da petição apresentada e, posteriormente, havendo um juízo positivo, ingressa com a demanda perante a Corte, permitindo-se, porém, “às vítimas, seus familiares ou representantes legais participarem do processo em todas as suas etapas” (MAZZUOLI, 2013, p. 40); de outra banda, esse acesso pode se dar por uma via direta, isto é, pelo jus standi, que é uma forma de acesso mais plena à justiça, permitindo o ajuizamento de uma demanda diretamente pelo indivíduo junto a Corte internacional, sem qualquer intermediação, 164

compondo o indivíduo, de fato, um dos polos da demanda. O primeiro modo de acesso à justiça (locus standi) é adotado pelo Sistema Interamericano de proteção dos direitos humanos e também, em parte, pelo Sistema Africano. O segundo modo de acesso dos indivíduos (jus standi) é, por sua vez, adotado parcialmente pelo Sistema Africano e, de modo pleno, pelo Sistema Europeu. Passemos a analisar, mais especificamente, o regime adotado nos respectivos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, a fim de, posteriormente estudarmos a atual sistemática europeia.

1.1. Sistema Interamericano

A Convenção Interamericana de Direitos Humanos foi obviamente influenciada por dois diplomas normativos internacionais que a antecederam: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), bem como a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950). A Convenção Americana prevê um procedimento bifásico, baseado no antigo regime do sistema europeu, havendo assim uma primeira etapa perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e uma segunda etapa perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Contudo, a influência da CEDH foi imperfeita, pois não há órgão no sistema interamericano que desempenhe o papel original de supervisão e julgamento anômalo das violações que realizava o Comitê de Ministros do Conselho da Europa” (RAMOS, 2012, p. 154). O procedimento do Sistema Interamericano de direitos humanos legitima o acesso à Corte Interamericana apenas pelos Estados-Parte ou pela Comissão Interamericana (jus standi).2 Com efeito, não se possibilita o peticionamento individual e direto à Corte por qualquer pessoa singular ou grupo de pessoas, ou seja, não podem as pessoas que tiveram seus direitos humanos violados acessarem diretamente a Corte Interamericana. As demandas individuais podem, pois, apenas serem propostas perante a Comissão, a qual faz uma primeira análise da admissibilidade do pedido

2

Segundo o art. 61 da CIDH, “somente os Estados Partes e a Comissão têm direito de submeter caso à decisão da Corte” (BRASIL, ...).

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formulado (art. 34, CIDH).3 Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental reconhecida legalmente em um ou mais Estados-membros da OEA pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação da Convenção Americana por um Estado-parte (art. 34, CIDH). Desse modo, a Comissão exerce uma função preliminar, como órgão não judicial4 e serve como filtro para o ajuizamento de demandas perante a Corte Interamericana. Em razão da existência deste procedimento bifásico, a doutrina internacional tem tecido grandes críticas ao regime adotado pelo sistema interamericano, aventando que este sistema deve evoluir para um sistema facilitador do acesso direto dos indivíduos perante a Corte, na linha que traçou o Sistema Europeu após o Protocolo nº 11, impingindo uma maior celeridade às demandas internacionais e uma potencialização do acesso à justiça internacional.

1.2. Sistema africano

O Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos foi constituído pela Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos - CADH (Carta de Banjul) e também pelo seu Protocolo Adicional, o qual criou o Tribunal Africano de Direitos Humanos. Trata-se do sistema regional de proteção dos direitos humanos mais novo e, assim como ocorre no atual regime do sistema interamericano e o antigo regime do sistema europeu, o Sistema Africano possui dois órgãos que visam promover e proteger os direitos humanos: A Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos e o Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos. Não obstante, diferentemente do que ocorre no Sistema Interamericano e no Sistema Europeu, a jurisdição do Tribunal Africano não é obrigatória a todos os Estados signatários da Carta Africana. O Tribunal Africano possui jurisdição apenas sobre aqueles Estados que aderiram também ao Protocolo Adicional e aceitaram

3

Consoante ensina André de Carvalho Ramos (2012, p. 155), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos exerce função similar ao Ministério Público brasileiro. 4 Para alguns autores a Comissão IDH e a extinta Comissão EDH teriam uma natureza “quase judicial” (RAMOS, 2012, p. 113), “pré judiciário” (SANTOS, [201-], p. 4) ou “semi-judicial” (MAZZUOLI, 2013, p. 37).

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expressamente se submeter a ela.5 Nesse sistema de proteção regional permite-se apenas de modo facultativo o acesso dos indivíduos perante o Tribunal, exigindo-se que haja ratificação expressa dessa cláusula por parte dos Estados que optem por dar esse direito aos seus cidadãos. Em outras palavras, Assim como ocorre no sistema regional europeu, os indivíduos podem, no sistema africano, levar suas demandas até a Corte. Entretanto, esta faculdade não lhes é concedida em sentido pleno, mas somente na medida em que os Estados dos quais sejam nacionais declarem, de maneira expressa, que aceitam a submissão de demandas individuais à Corte Africana. Esta declaração pode se dar no momento da ratificação do Protocolo ou, como versa o artigo 34, VI, em qualquer momento posterior. Pode ser feita não somente no tocante às demandas individuais, mas também em relação às ONG´s que possuam assento na Comissão (BRANDT, PEREIRA e BARROS, [200-], p. 9).

De tal modo, a ampliação dos espaços de participação da sociedade civil, conferindo acesso direto a indivíduos e ONGs à Corte Africana (disposição que é veiculada por meio de cláusula facultativa no Protocolo à Carta Africana) é, sem dúvida, um imponente desafio para a evolução do sistema africano (PIOVESAN, 2007).

1.3. Sistema europeu: o regime anterior ao Protocolo nº 11

O Sistema Regional Europeu atualmente é o mais avançado no que tange à possibilidade de se promover o acesso direto dos indivíduos perante a sua Corte (jus standi individual). Não obstante o atual estágio evolutivo desse sistema - que hoje permite o acesso direto dos indivíduos junto à Corte Europeia de Direitos Humanos -, até 1998 (ano em que entrou em vigor o Protocolo nº 11, que alterou a CEDH), para se ter acesso à Corte havia a necessidade de que se peticionasse perante a Comissão Europeia de Direitos Humanos, de modo muito parecido com o que ocorre atualmente com o Sistema Interamericano.6 5

Atualmente, dos 54 (cinquenta e quatro) países africanos que compõem a União Africana, apenas 27 (vinte e sete) membros ratificaram o Protocolo Adicional à Carta de Banjul (que criou o Tribunal Africano de Direitos Humanos). Destes, apenas 3 (três) Estados aceitaram a cláusula de jurisdição obrigatória. (Fonte: http://www.african-court.org/pt/images/documents/Court/Ratification_and_Deposit_of_the_ Declaration.pdf e http://www.achpr.org/pt/instruments/court-establishment/). 6 Em verdade, o Sistema Interamericano baseou-se no Sistema Europeu para formar suas diretrizes procedimentais. Assim, até 1998, quando entrou em vigor neste segundo sistema o Protocolo nº 11, o

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Conforme explica MAZZUOLI (2013, p. 37), para o monitoramento dos direitos consagrados na Convenção Europeia, em seu texto original, foram instituídos três órgãos distintos: “a) um “semi-judicial”, a Comissão Europeia de Direitos Humanos; b) um judicial, a Corte Europeia de Direitos Humanos, e; c) um “diplomático”, o Comitê de Ministros (do Conselho da Europa)”. Importante aqui é conhecer um pouco dos dois primeiros órgãos citados. A função da Comissão era analisar queixas e comunicações entre os Estadosmembros, bem como dos indivíduos, ONGs ou grupos de indivíduos, referente à violação da Convenção Europeia. Ademais, tinha, dentre outras, a função de analisar a admissibilidade das petições individuais. À Corte Europeia, por seu turno, competia julgar os casos de violação aos direitos humanos levados a seu conhecimento pela Comissão ou pelos Estadosmembros. A sua jurisdição se dava por meio de cláusula facultativa. Em síntese, portanto, levando a cabo o estudo proposto no presente trabalho, é possível verificar que, até o advento do Protocolo nº 11 (1998), apenas a Comissão ou os próprios Estados-parte podiam submeter casos de violação aos direitos humanos diretamente à Corte Europeia. A despeito disso, a maior parte dos casos era submetida pela Comissão à Corte, notadamente por intermédio da provocação de particulares. Conforme PIOVESAN (2007, p. 73-74), “ainda que indivíduos, por 40 anos, não tenham tido acesso direto à Corte, quase sempre eram eles que apresentavam denúncias à Comissão. Estas, eventualmente, chegavam à Corte”. Assim, originalmente, do mesmo modo que hoje se verifica no sistema interamericano, a CEDH previa um procedimento bifásico para o processamento das demandas perante a Corte Europeia. A antiga Comissão tinha a função de filtrar os processos a serem julgados. Isto é, somente seria processada e julgada pela Corte aquelas demandas cuja admissibilidade fosse verificada pela Comissão. Por isso: A natureza jurídica da Comissão foi considerada pela doutrina como sendo “quase judicial”. Muitos chegaram a compará-la com o papel exercido em vários países europeus pelo Ministério Público, já que a Comissão era a encarregada da investigação e era titular da ação de responsabilidade internacional do Estado perante a antiga Corte Europeia de Direitos procedimento adotado por ambos os sistemas eram muito semelhantes, exigindo-se o prévio peticionamento perante a respectiva Comissão, a qual tinha o dominus litis, isto é, tinha o poder de levar ou não a demanda a julgamento até a Corte. Atualmente, tal procedimento continua sendo adotado pelo Sistema Interamericano.

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Humanos (RAMOS, 2012, p. 113).

Essa função da Comissão acabava tornando o processo bastante moroso e burocrático, sem falar que servia como forma de “blindar” os Estados-partes de eventuais responsabilizações no âmbito internacional, uma vez que dificultava o processamento das demandas. Com efeito, baseado nos motivos acima relatados, em 1º de novembro de 1998 foi aprovado o Protocolo nº 11, que reformou substancialmente o processamento de demandas internacionais na Europa. Primeiramente, houve a extinção da Comissão Europeia de Direitos Humanos, fundindo-a com a antiga Corte Europeia (não permanente) em um único órgão: a nova Corte Europeia de Direitos Humanos (de caráter permanente). Entrementes, as anteriores cláusulas facultativas que conferiam aos indivíduos o direito de petição perante a antiga Comissão Europeia e que também atribuía competência à Corte para apreciar demandas submetidas pela Comissão foram extintas.7 Tais disposições, meramente facultativas, foram substituídas por cláusulas obrigatórias, as quais reconheceram o direito de petição perante a nova Corte Europeia de Direitos Humanos (Tribunal permanente) de qualquer pessoa singular, ONG ou grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer Estado-parte em relação aos direitos reconhecidos na Convenção Europeia, bem como tornou compulsória a jurisdição da Corte8 (PIOVESAN, 2007; RAMOS, 2012).

2 PROTOCOLO Nº 11: O NOVO REGIME DO SISTEMA EUROPEU

Como acima fora explicitado, o Protocolo nº 11 modificou profundamente a estrutura orgânica e o sistema processual que até então vigia no sistema europeu de proteção dos direitos humanos. O procedimento se tornou mais racional e célere, permitindo principalmente o acesso direto dos indivíduos, principais interessados na defesa de seus direitos, à Corte Europeia de Direitos Humanos. Em verdade, [...] a multiplicação de casos submetidos à Comissão e à Corte tornou 7 8

Extintos arts. 25 e 46, respectivamente, da CEDH. Atuais arts. 34 e 32, respectivamente, da CEDH (redação dada pelo Protocolo nº 11).

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também insustentável a manutenção de um procedimento bifásico: uma primeira fase perante a Comissão e uma segunda fase perante a Corte (ou perante o Comitê de Ministros [...]). Obviamente, a supressão do exame dos mesmos casos por dois órgãos distintos foi necessária para dar agilidade ao procedimento (RAMOS, 2012, p. 307).

Não existindo mais a Comissão Europeia e, por conseguinte, não mais havendo um prévio exame administrativo de admissibilidade para posterior análise do mérito pela Corte, esse exame de admissibilidade passou a ser feito pela própria Corte, no âmbito jurisdicional, como regra pelos Juízes singulares. Outra modificação da Convenção Europeia, extremamente importante para o estudo que estamos propondo, foi a possibilidade do jus standi em relação aos particulares (“jus standi individual”). O indivíduo, vítima de violação aos direitos humanos, passou a gozar de legitimidade, ao lado dos Estados, para apresentar sua petição diretamente à Corte Europeia de Direitos Humanos. Desse modo, racionalizou-se a tramitação de demandas perante a Corte Europeia, possibilitando o peticionamento direto pelo indivíduo. Em outras palavras, além dos próprios Estados, os indivíduos também passaram a figuram como sujeitos ativos dos processos internacionais que versassem sobre direitos humanos. Segundo sintetiza Braulio de Magalhães Santos (2011, p. 7, grifo do autor): Alguns argumentos para a mudança fundamental que efetivou o jus standi aos indivíduos no sistema europeu originaram de avaliações de limitações das instituições e do funcionamento dos órgãos europeus, especialmente a Comissão Europeia. Partindo de uma competência facultativa sobre os Estados em 1950, a Comissão expandiu suas atividades nos anos 1990, sobretudo pelo aumento do número de países que integraram o grupo de países componentes do sistema e, em especial, pelo grau de consciência alcançado pelos indivíduos quanto aos seus direitos. Isso passou a exigir maior dinamismo da Comissão que, pelos formalismos e excessos no controle das petições individuais encaminhadas já não mais se adequava às exigências da sociedade europeia.

De fato, houve uma verdadeira evolução no sistema europeu, trazendo a verdadeira importância que têm os indivíduos no direito internacional, ou melhor, tendo “resgatado a posição dos indivíduos como verdadeiros sujeitos do direito internacional dos direitos humanos, assim como do direito internacional público (e não como simples objetos de proteção)” (TRINDADE, p. 25-26).

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3 O JUS STANDI INDIVIDUAL E O CONTINGENTE DE DEMANDAS PROPOSTAS PERANTE A CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

O jus standi individual, isto é, o direito de acesso direto e pleno dos indivíduos, grupo de indivíduos e entidades particulares perante o sistema processual internacional, é defendido há muito pela doutrina e, como visto, desde 1998 é realidade no sistema europeu. O próprio direito internacional tem sua origem no chamado “direito das gentes”, que tem o indivíduo como centro da proteção e sujeito das relações que regula. De tal modo, não haveria como se pensar em destituir o próprio sujeito de direito, protegido pelas normas internacionais, das garantias necessárias para exercer os seus direitos. Logo, nessa linha de pensamento, o direito de petição tem de ser, inclusive, inerente aos próprios indivíduos, os quais tenham os seus direitos “humanos” (na qualidade de ser humano, portanto) violados ou em vias de o sê-lo. A despeito da importante preocupação e da necessidade de possibilitar aos indivíduos a garantia do jus standi, o direito de acesso individual à justiça perante a Corte Europeia possibilita que um número maior que 800.000.000 (oitocentos milhões) de pessoas possam acessar seu sistema judiciário. Número esse significativamente maior em relação àqueles que seriam legitimados a peticionarem perante a Corte se levássemos em conta o regramento vigente antes da alteração realizada na CEDH pelo Protocolo nº 11. Isso porque, como explicamos anteriormente, o antigo sistema de acesso permitia o peticionamento direto junto à Corte Europeia tão somente dos Estados contratantes - que atualmente são apenas 47 (quarenta e sete)9 – mais a extinta Comissão. Esses números podem nos levar à singela percepção de que a extinção da Comissão associada à abertura significativa do rol de legitimados a ingressarem com demandas perante a Corte Europeia pode acarretar um colapso no sistema de processamento das ações judiciais. Isso porque o antigo procedimento bifásico (Comissão e Corte) era lento e por isso desestimulante, o que fazia com que muitas demandas sequer chegassem a ser apreciadas pela Corte, seja pelo não ingresso de 9

Dados coletados no web-site oficial da União Europeia, no seguinte endereço eletrônico: http://www.echr.coe.int/Pages/home.aspx?p=press/factsheets&c=#n1347951547702_pointer.

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petições por parte dos indivíduos, que não viam no sistema europeu uma forma célere e efetiva de resolução de conflitos; seja pelo filtro moroso e exigente exercido pela extinta Comissão ao analisar a admissibilidade das demandas. Isso, aliás, se verifica objetivamente com a análise dos números de demandas apresentadas pela Comissão e julgadas pela Corte antes e depois da mudança procedimental. Desde 14 de novembro de 1960 (primeiro julgamento da Corte, Caso Lawless versus Irlanda) até 1998 (data da extinção da Comissão), a Comissão havia recebido aproximadamente 45 mil petições, mas a Corte havia julgado somente 837 casos, mostrando o grande filtro que era o procedimento bifásico. De 1998 em diante, os julgamentos da Corte cresceram exponencialmente: em 18 de setembro de 2008 (menos de 10 anos depois da extinção da Comissão) a Corte comemorou seu julgamento de n. 10.000. No final do ano de 2010, os problemas do sistema europeu são outros: há quase 140 mil casos pendentes e, somente em 2010, mais 61 mil petições de vítimas foram protocoladas na Corte. A taxa de congestionamento (diferença entre entradas e saídas) foi alta, com acréscimo de 20 mil casos no já abarrotado contingente de casos pendentes (de cerca 119 mil em 2009 para quase 140 mil no final de 2010) (RAMOS, 2012, p. 118, grifos nossos).

Conforme analisa RAMOS (2012), de um lado, o sistema europeu ganhou relevância e cada vez mais os indivíduos o procuram, gerando conflitos entre jurisdições justapostas (os conflitos entre os Tribunais Supremos de cada Estado e a Corte Europeia são cada vez mais evidentes) e reclamos por implementação efetiva das decisões de Estrasburgo. Por outro lado, um número de demandas muito grande gera um preocupante congestionamento, tendo em vista que a Corte Europeia, com apenas 47 Juízes, analisa atualmente violações de direitos humanos em uma esfera de mais de 800.000.000 (oitocentos milhões) de pessoas. Essa preocupação é muito bem sintetizada por PIOVESAN (2007, p. 74), que pondera que: Ao mesmo tempo em que a inovação significou extraordinário avanço, também constituiu um desafio em face do aumento significativo de demandas submetidas à Corte. Se apenas 10 decisões foram proferidas pela Corte Europeia na década de 60, 26 na década de 70 e 169 na década de 80, mais de 600 decisões foram proferidas nos anos 90. Acentua Alastair Mowbray: “A Corte recém-criada havia, até dezembro de 2000, proferido mais decisões (838) em seus dois anos de funcionamento que a Corte predecessora em 39 anos de existência (837 decisões)”.

O grande número de demandas que são levadas a conhecimento da Corte Europeia se mostra ainda mais preocupante e extravagante se comparado com os 172

demais sistemas regionais de direitos humanos, que possuem um número de demandas distribuídas, processadas e julgadas significativamente menores. No sistema africano, por exemplo, uma média de apenas 10 casos por ano têm sido decididos pela Comissão desde 1988; 13 (treze) casos em 2000; 4 (quatro) em 2001; 3 (três) em 2002; 13 (treze) em 2003 e 11 (onze) em 2004. De outro giro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, até 2003 decidiu em média de 4 (quatro) a 7 (sete) casos por ano; em 2004 a Corte expediu 15 (quinze) julgamentos; por volta de outubro de 2005, 11 (onze) julgamentos haviam sido notificados; além disso, a Corte Interamericana também emite em média 1 (um) parecer consultivo por ano e na Comissão cerca de somente 100 (cem) casos por ano são decididos. O número total de casos pendentes no momento beira aproximadamente 1.000 (mil) (HEYNS, PADILLA, ZWAAK, 2005). Com o sistema europeu, os números têm sido bem diferentes. A Corte Europeia decide milhares de casos por ano, e o volume de casos até o ano de 2013 esteve em constante crescimento. Em 2004 a Corte deliberou 21.191 (vinte e uma mil, cento e noventa e uma) decisões e 718 (setecentos e dezoito) julgamentos - incluindo 15 (quinze) julgamentos da Grande Câmara. No final de 2004, 78.000 (setenta e oito mil) pedidos estavam pendentes na Corte (HEYNS, PADILLA, ZWAAK, 2005). Em que pese o grande número de demandas, a Corte Europeia tem tido bons resultados recentemente, conseguindo reduzir o número de demandas que ingressam em seus escaninhos. A partir do ano de 2014, as estatísticas têm sido positivas, havendo um menor volume de casos distribuídos e, de fato, processados e julgados pela Corte. Senão vejamos: no ano de 2014, foram distribuídas 56.250 (cinquenta e seis mil, duzentos e cinquenta) novas petições. Isto é, houve, em relação ao ano anterior, uma diminuição global de 15% neste quesito (em 2013 foram distribuídas 65.800 petições iniciais). Esta foi a primeira vez, desde 2003, que o número de petições distribuídas diminuiu (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 2015).10 Por seu turno, em 2015, 40.650 (quarenta mil, seiscentos e cinquenta) petições iniciais foram distribuídas, havendo, pois, uma diminuição global de 28% em 10

Dados coletados no Relatório Anual da Corte Europeia de Direitos Humanos, expedido em 2014 (http: //www.echr.coe.int/Documents/Stats_analysis_2014_ENG.pdf).

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comparação com 2014. Desse número, 27.050 (vinte e sete mil e cinquenta) petições foram identificadas como casos a serem julgados – quanto à sua admissibilidade e ao mérito – por Juízes singulares, sendo suscetíveis, portanto, de serem declaradas inadmissíveis (uma diminuição de 40% em relação a 2014). As demais petições, 13.600 (treze mil e seiscentas), foram identificadas como casos a serem apreciados pela Câmara ou por um Comitê (uma diminuição de 19%). Em consequência, 2015 já é o segundo ano consecutivo em que o número de casos distribuídos perante a Corte diminui (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 2016).11 É importante ter em vista todos os números de demandas propostas acima referidas, tendo em vista que, no tocante aos dois últimos anos (2014 e 2015), tais números se mostram muito positivos, conquanto o volume de demandas ainda continue bastante alto. Mas qual será o motivo para tal diminuição de demandas distribuídas na Corte Europeia? E como a Corte tem conseguido filtrar com maior celeridade e efetividade as demandas a serem levadas a um julgamento de mérito e as demandas “descartadas”? Pois bem, quanto à primeira pergunta não há como responder de forma objetiva e simples. Todavia, é possível aventar, por hora, algumas suposições com base na realidade da Corte e na própria realidade europeia. É necessário salientar que o maior amadurecimento da comunidade europeia e de seus governos no que tange a transferência de poderes e competências decorrentes da soberania de cada Estado a um órgão dotado de supranacionalidade (ou supraestatalidade) é um ponto de destaque que se observa, até o presente momento da história do planeta, tão somente na Europa. A experiência bem sucedida da criação da União Europeia, como forma de, por um lado, fortalecer o conjunto de países membros como unidade econômica e política e, por outro, possibilitar que órgãos que não integrem a estrutura interna desses Estados possam criar normas comuns e vinculantes a todos eles de forma a ter efetividade direta – sem que haja qualquer procedimento de “internalização” de tais normas – e com primazia dessas normas internacionais sobre as emanadas do âmbito interno, certamente possibilita o afastamento da desconfiança quanto a um modelo de Tribunal cuja jurisdição seja 11

Dados coletados no Relatório Anual da Corte Europeia de Direitos Humanos, expedido em 2015 (http: //www.echr.coe.int/Documents/Stats_analysis_2015_ENG.pdf).

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obrigatória perante as partes contratantes e suas decisões tenham também efeito vinculante e direto.12 Além disso, possui a Corte Europeia um importante aliado na fiscalização da execução das sentenças proferidas: o Comitê de Ministros (art. 46, CEDH), o que indubitavelmente aumenta a potencialidade e o prestígio das decisões proferidas. Nesse prisma, importa frisar que as decisões da Corte têm tido experiências bem sucedidas e que os Estados têm tido, como regra geral, certa maturidade para aceitá-las e respeitá-las. A Corte Europeia possui, em verdade, uma positiva vantagem em relação a outras Cortes regionais. Há uma sólida e consistente integração de Estados Europeus. Estes compartilham os mesmos valores atinentes aos direitos humanos, democracia e Estado de Direito. Apresentam, no âmbito de cada Estado, elevado grau de proteção a esses princípios e valores. Com efeito, há cada vez mais o fortalecimento do sistema, sua credibilidade e sua justicialização (PIOVESAN, 2007). Não há, portanto, uma resposta pronta que vá dizer qual o motivo da redução gradual de processos ocorrida recentemente, a partir do ano de 2014. No entanto, ousamos opinar que isso se deve muito a uma maior maturidade dos governos dos Estados Europeus que têm levado em conta as decisões da Corte e aplicado em seus territórios para outras situações semelhantes a fim de não serem condenados e, assim, evitarem o desgaste político e de imagem de seus países e de seus governantes. Além do mais, os “cidadãos europeus” veem na Corte uma forma de terem os seus direitos essenciais respeitados e parece que, diante das boas experiências da Corte em relação a decisões bem sucedidas e, por outro lado, a verificação de que não são todas as demandas propostas que têm potencialidade para terem sua análise de fundo, estão alcançando um maior amadurecimento em saber como utilizar os direitos de que são detentores, inclusive o acesso à justiça. Não obstante, não há como se ter uma explicação indene de dúvidas neste momento, ainda mais por serem tão recentes os progressos da Corte no que tange ao contingente de demandas. A resposta virá com o tempo, contudo, cremos que as 12

Vale observar que a base territorial da União Europeia (UE) não se confunde com base territorial sob jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos. Atualmente, a UE possuí 27 Estados-membros, enquanto a Corte Europeia tem jurisdição sobre 47 Estados contratantes, que aderiram à CEDH, dentre eles todos os Estados que compõem a UE inclusive.

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considerações expostas nos parágrafos acima, quanto aos motivos de tal evolução, vão ao encontro daquilo que se perceberá futuramente. De outra banda, cabe ainda tecer considerações acerca do segundo questionamento formulado acima: como a Corte tem conseguido filtrar com maior celeridade e efetividade as demandas a serem levadas a um julgamento de mérito e as demandas “descartadas”? A resposta a este segundo questionamento parece mais tangível e objetiva. Senão vejamos: tendo sido extinta a antiga Comissão Europeia de Direitos Humanos, a qual funcionava como filtro, órgão de libação das demandas individuais propostas, a alteração da CEDH, notadamente pelos Protocolos nº 11 e 14, criou mecanismos internos para fazer a filtragem dessas demandas. O art. 27 da CEDH e o art. 52-A do Regulamento da Corte prescrevem a possibilidade de que a ponderação quanto à admissibilidade das demandas individuais seja feita pelos Juízes singulares. A única ressalva é de que o Juiz não pode julgar as causas que tenham como parte o Estado contratante que o tenha indicado13. E são muitos os motivos de inadmissibilidade por questões processuais. Os motivos da inadmissibilidade são os seguintes: 1) ausência de esgotamento dos recursos internos; 2) perda do prazo de seis meses a contar da data da decisão interna definitiva para peticionar à Corte EDH; 3) anonimato da petição; 4) coisa julgada, caso a petição seja essencial, idêntica a uma petição anteriormente examinada pela Corte ou já submetida a outra instância internacional de direitos humanos sem qualquer fato novo; 5) teor incompatível com o disposto na Convenção ou manifestamente mal fundada ou com caráter abusivo; e, finalmente, 6) não ocorrência de qualquer prejuízo significativo ou matéria de grave indagação, salvo se o respeito pelos direitos exigir uma apreciação da petição (RAMOS, 2012, p. 119).

Com efeito, há aqui a incidência de duas inovações decorrentes das alterações provocadas pelo Protocolo nº 14 para dar maior eficiência ao mecanismo europeu. A primeira inovação é a já aludida introdução da figura do Juiz singular, com poder de indeferir demandas. A segunda inovação são os novos fundamentos do indeferimento sumário, que pode ser adotado se a demanda for manifestamente infundada ou ainda não ter sido provado “prejuízo” ou “desvantagem” significante, sem que haja necessidade de discussão maior dos direitos previstos na CEDH (de minimis non curat 13

Todavia, esse mesmo Juiz deverá obrigatoriamente atuar na Seção ou no Tribunal Pleno que venha a julgar um litígio contra tal Estado. Não podendo participar do processo, o Estado-réu poderá nomear Juiz ad hoc (art. 28, § 3º, CEDH).

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praetor). Esses dois fundamentos novos para o indeferimento das petições permite concentração de esforços em casos nos quais há violação grave de direitos (RAMOS, 2012, grifo nosso). Entrementes, pode o Juiz singular não declarar a inadmissibilidade processual do pedido formulado, caso em que o processo será enviado ou a um Comitê ou a uma Seção para ser apreciado (art. 27, CEDH). Como regra, as demandas que versem sobre casos que já tenham um posicionamento jurisprudencial consolidado são decididos por um Comitê (composto de 3 Juízes)14. Pode esse colegiado decidir: a) pela inadmissibilidade da petição (de forma contrária a que fora anteriormente decidido pelo Juiz singular) ou; b) pela admissibilidade e decisão sobre o mérito. Se a decisão se der de modo unânime será definitiva e, por conseguinte, não caberá recurso. Dessa forma, valoriza-se a jurisprudência consolidada, dá-se celeridade no processamento e pune-se o Estado faltoso que insista em agir de modo contrário ao que já fora decidido pela Corte (art. 28 e 29, CEDH). Assim, é forçoso convir que o Juiz singular e o Comitê se apresentam como verdadeiros órgãos de filtragem (substituindo, de forma melhorada, a antiga Comissão). Servindo, pois, “para amenizar a preocupação com uma explosão de causas que paralisasse a Corte. Os números são eloquentes: noventa por cento das petições individuais analisadas em 2010 foram declaradas inadmissíveis” (RAMOS, 2012, p. 122). Só para termos uma noção da rigidez desses órgãos quanto ao juízo de admissibilidade, vale anotar que “das 61 mil petições recebidas em 2010, aproximadamente 41 mil foram analisadas. Dessas, 38 mil foram consideradas inadmissíveis” (RAMOS, 2012, p. 367). Outro importante fato que, de modo geral, tem contribuído muito para a maior efetividade do funcionamento da Corte Europeia foi a alteração do sistema de ordem de julgamentos dos casos levados a ela. Em 2009, a Corte alterou o seu regulamento relativamente à ordem de tratamento das demandas propostas. Até então, os casos eram processados e julgados como regra com base na ordem cronológica em que estavam maduros para tal. É dizer, as demandas eram examinadas na ordem em que

14

Se a demanda versar sobre questão controvertida, o Juiz singular deverá enviar a petição para ser apreciada por uma Seção (Chamber), composta de 7 Juízes, a qual poderá, a depender da relevância do tema e do grau de complexidade, submeter a decisão ao Tribunal Pleno (Grand Chamber).

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elas ficavam prontas para decisão. Malgrado fosse possível dar prioridade aos casos particulares urgentes (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, [201-]). Com o aumento do contingente de processos na Corte Europeia essa sistemática demonstrou que certas alegações gravíssimas de violações dos direitos humanos acabavam demorando muito para serem examinadas. Em certos casos, vários anos. Essa situação gerava insatisfação por parte dos requerentes e significava, ademais, que certas causas acabavam passando despercebidas levando mais e mais vítimas de violações idênticas a recorrer à Corte, o que além de gerar descrédito e não fazer com que se cumpra com o desiderato da CEDH, gerava mais processos para serem julgados. Com efeito, a Corte resolveu adotar uma nova política. Alterou-se, dentre outros dispositivos, o art. 41 de seu Regimento Interno. De acordo com o novo regramento, a Corte teria de levar em conta a importância e urgência das questões levadas até o seu conhecimento para estabelecer a ordem de exame das demandas propostas. Para implementar essa política, a Corte elaborou uma série de diferentes categorias de casos, estabelecendo as categorias prioritárias e as menos prioritárias. Assim, estabeleceram-se em grau decrescente de prioridade: a) na “Categoria I” as petições urgentes (aquelas em que haja grave risco para a vida, a integridade ou a saúde do requerente ou que diga respeito a outras circunstâncias ligadas à situação pessoal ou familiar do requerente, em especial quando diga respeito ao bem-estar de uma criança, por exemplo); b) na “Categoria II” as petições que tragam questões capazes de ter um impacto sobre a eficácia do sistema da CEDH (por exemplo, uma questão nunca antes examinada/pilot-judgment procedure) ou petições que aventem importantes questões de interesse geral (como, por exemplo, uma questão séria capaz de ter grandes implicações para os sistemas jurídicos nacionais ou para o sistema regional europeu) ou, ainda, os casos interestatais; c) na “Categoria III” alocam-se as petições que tratem, como questão principal, de violações específicas a certos direitos fundamentais que dão origem a ameaça direta à integridade física e/ou à dignidade dos seres humanos, nomeadamente as que transgridam os direitos enumerados nos arts. 2º, 3º, 4º ou 5º, § 1º da CEDH (neste caso, independentemente de serem ou não casos repetitivos, cuja jurisprudência já esteja pacificada pela Corte); d) na “Categoria IV”, por sua vez, estão as petições potencialmente bem fundamentadas baseadas em 178

violações a outros artigos da CEDH; e) na “Categoria V”, de seu turno, compreendemse as petições que ventilem questões já tratadas e apreciadas anteriormente pela Corte (casos repetitivos) e que não se situem em qualquer outra das categorias acima; f) na “Categoria VI” se verifica as petições identificadas como dando origem a um problema de admissibilidade e, por fim; g) na “Categoria VII”, último grau de prioridade,

encontram-se

as

petições

identificadas

como

manifestamente

inadmissíveis (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, [201-]; CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 2015). Ao abrigo deste regime, em princípio, um caso alocado em uma categoria superior será examinado antes de um caso em uma categoria inferior, embora permaneça aberta para uma Seção (Chamber) ou o seu Presidente decidir que um caso específico deve ser tratado de forma diferente. Na prática, isto significa, por exemplo, que uma alegação plausível de uma violação aos direitos humanos em razão de tortura, maus-tratos ou outros meios de tratamento desumanos ou degradantes (art. 3º da CEDH Categoria III) será, como regra geral, examinada antes em relação a uma alegação de violação do direito à liberdade de expressão (art. 10 - Categoria IV - petições potencialmente bem fundamentadas baseadas em violações a outros artigos da CEDH) a respeito do mesmo país. O objetivo é claramente garantir que os casos mais graves e os processos que permitem estabelecer a existência de problemas generalizados capazes de gerar um grande número de casos adicionais sejam tratados mais rapidamente. Por sua vez, é dada baixa prioridade aos “casos repetitivos”, ou seja, casos que seguem um “julgamento piloto” [em que haja, pois, um caso similar já julgado anteriormente pela Corte, existindo precedentes a serem seguidos ou até mesmo uma jurisprudência consolidada]. As menores categorias de prioridade, portanto, decorrem de casos em que não é identificada tão claramente a existência das condições de admissibilidade (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, [201-], p. 2, tradução livre).15

Nesse ínterim, é de se ressaltar que, embora a preocupação latente quanto ao volumoso número de demandas que são levadas a apreciação da Corte Europeia de

15

No original: “Under this scheme in principle a case in a higher category will be examined before a case in a lower category, although it remains open to a Chamber or its President to decide that an individual case should be treated differently. In practice this means for instance that a plausible allegation of torture or inhuman or degrading ill-treatment (Article 3 of the Convention – category III) will normally be dealt with before an allegation of a violation of the right to freedom of speech (Article 10 – category IV – potentially well-founded applications based on other Articles) concerning the same country. The aim is clearly to ensure that the most serious cases and the cases which disclose the existence of widespread problems capable of generating large numbers of additional cases are dealt with more rapidly. Low priority is given to repetitive cases, that is cases which follow a pilot judgment establishing a structural problem. The lowest categories of priority are cases which are identified as clearly failing to satisfy the admissibility conditions. The Court will keep this policy and its effects under review. A special Working Party has been set up to follow its implementation. One possible impact is on the Court’s statistics. As it concentrates its resources on the more complex, time-consuming cases, the total number of cases disposed of is likely to decrease”. (http://www.echr.coe.int/Documents/Priority_policy_ENG. pdf).

179

Direitos Humanos - inigualavelmente maior do que aquele que se verifica nos demais sistemas regionais de proteção de direitos humanos -, no sistema europeu tem-se criado mecanismos que geraram avanços significativos no tocante a este mote. Repisando, podemos citar, especialmente, o fato de a CEDH ter, de modo bastante arguto, dotado seus órgãos menores (Juízes singulares e Comitês) de competência e maior autonomia para decidir sumariamente questões acerca da admissibilidade processual ou mesmo de mérito. Ademais, outro expediente perspicaz, dessa vez manobrado pela própria Corte, decorre da constituição de um procedimento mais justo e eficiente para a racionalização do processamento e julgamento das petições distribuídas, como é o regime de divisão das petições em categorias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os diversos sistemas regionais de direitos humanos existentes têm tratado de modo diferente a questão do jus standi individual. Na Corte Interamericana não há como se ingressar com ação de modo direto. O sistema africano, por sua vez, vislumbra a faculdade de os Estados aderirem à cláusula que permite a atuação dos indivíduos de modo direto perante a Corte Africana. E, por fim, o regime adotado nos últimos anos pelo sistema europeu tem permitido um amplo acesso à justiça aos cidadãos europeus, havendo aplicação plena do “jus standi individual”. Tal formatação dos sistemas regionais nos permite perceber que, ao menos no ponto sob análise, o sistema europeu tem dado um salto evolutivo e se mostrado bastante avançado. Com o avanço, todavia, não há a possibilidade de se manter os mesmos meios de julgamento e racionalização das demandas propostas que se aplicavam antes da abertura ao jus standi individual. Se pelo regime anterior ao Protocolo nº 11 teríamos 47 (quarenta e sete) Estados aptos a demandar, atualmente temos mais de 800.000.000 (oitocentos milhões) de legitimados. A necessidade de se preocupar com o grande número de demandas potencialmente ajuizadas fica manifesta. Além disso, tal preocupação se comprova pelo aumento vertiginoso de demandas ocorrido desde 1998, o que certamente poderia levar o sistema europeu ao colapso. Ademais, outra preocupação que não se pode deixar de lado é a verdadeira 180

possibilidade de que o sistema europeu de direitos humanos entrasse numa verdadeira contradição. Isso porquanto, consoante o Relatório Anual de 2014, 25,06% dos julgamentos da Corte Europeia foram sobre a temática “direito a um julgamento justo” (art. 6º, CEDH), sendo que boa parte destas demandas são relativas a reclamações pela não observância da razoável duração do processo no sistema judiciário dos países signatários (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 2015). Conquanto as dificuldades encontradas com a aplicação do novo regime, de modo recente, a Corte Europeia tem mudado a sua forma de trabalho e se utilizado melhor das ferramentas que têm em mãos por disposição expressa da CEDH. Primeiramente, a Corte passou a utilizar-se de um sistema de filtragem de demandas mais racionalizado, não permitindo que tantas demandas chegassem ao julgamento das Câmaras. Na prática, os Juízes singulares substituíram o extinto Conselho Europeu, fazendo a tarefa de afastar as demandas não admissíveis. Além disso, os Juízes singulares têm poderes para apreciar questões de fundo, decidindo o mérito das questões, notadamente quando versar sobre litígios em que hajam precedentes já julgados pela Corte. A par dessa atribuição exercida pelos Juízes singulares, a Corte criou um sistema de julgamento baseado em critérios de preferência entre as demandas distribuídas, o que permitiu um mais célere julgamento das ações propostas e uma resposta mais efetiva às violações de direitos humanos mais graves. As estatísticas do Tribunal referente ao ano de 2014 e seguintes revelam algumas diferenças significativas quando comparado com as estatísticas dos anos anteriores. Há, notadamente, um menor número de novos casos distribuídos. Isto decorre, parcialmente, do resultado de uma nova abordagem do art. 47 do Regulamento da Corte, que dispõe sobre as regras para peticionamento e distribuição de demandas individuais. No entanto, as estatísticas também revelam uma diminuição da procura com a indicação de uma queda no número de casos que entram no sistema. Isto permitiu que o Tribunal reduzisse o contingente de casos pendentes com um maior número de casos decididos em relação ao volume de novos processos que foram distribuídos (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 2015; CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 2016). À medida que o acúmulo de casos não admissíveis é progressivamente 181

eliminado, o aumento exacerbado de novos casos, vislumbrados nos últimos anos (mais especificamente desde 1998), já não ocorre mais. Assim, conforme o Tribunal se concentra nas categorias de casos consideradas prioritárias, o número de demandas tenderá a permanecer mais estável. A experiência vivenciada pela Corte Europeia nos últimos anos, principalmente desde o ano de 2014, demonstra, pois, que há a possibilidade de se criar métodos para superar o obstáculo do grande número de demandas propostas. Também se percebe que a escolha correta das demandas a serem julgadas, categorizando as mesmas, consolida uma maior efetividade aos julgados proferidos pelo Tribunal e permitem que as decisões tomem uma maior ressonância, inibindo os infratores de que continuem violando os direitos humanos, haja vista o receio de sofrer novas punições pelas decisões da Corte, o que, por conseguinte, acaba também por reduzir o número de demandas.

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________________. Analysis of statistics 2015. Estrasburgo, jan. 2016. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2016. ________________. The court’s priority policy. Estrasburgo, [201-]. Disponível em: < http://www.echr.coe.int/Documents/Stats_understanding_ENG .pdf>. Acesso em: 17 jan. 2016. ________________. Understanding the court’s statistics. Estrasburgo, jun. 2015. Disponível em: < http://www.echr.coe.int/Documents/Stats_understanding _ENG.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2016. HEYNS, Christof; DAVID, Padilla; ZWAAK, Leo. Comparação esquemática dos sistemas regionais de direitos humanos: uma atualização. African Human Rights Law Journal, v. 5, p. 308-320, 2005. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O sistema regional europeu de direitos humanos. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais, Curitiba, v. 1, 2013, p. 32-58. Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2015. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo entre os sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. RAMOS, Andre de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos: análise dos mecanismos de apuração de direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. SANTOS, Braulio de Magalhães. Tópicos processuais avançados sobre o jus standi nos mecanismos de proteção dos direitos humanos: o indivíduo e a legitimatio ad processum na Corte Intermericana. In: Âmbito Jurídico. Rio Grande, XIV, n. 86, mar 2011. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2016.

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AS DOENÇAS OPORTUNISTAS NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO: COMO AS POLÍTICAS PÚBLICAS GARANTEM O ACESSO À SAÚDE NESTE SISTEMA?

Juliana Oliveira Santos 1

INTRODUÇÃO

A preservação da dignidade humana, a integridade física e mental, são valores universais e que necessitam ser garantidos, sendo que o acesso à saúde é indispensável para a preservação desses valores. O Direito à Saúde deve ser observado pelo Estado e seus governos, os quais têm influência nas decisões sobre as políticas públicas e na sua aplicação. O tema em questão tem ganhado destaque, considerando-se a preocupação pelos crescentes problemas de segurança e de direitos consolidados na própria Constituição, os quais ocorrem tanto em quantidade como em potencialidade, colocando em risco a coletividade quanto à efetividade deste direito constitucional, ou seja, o acesso a saúde pela população intra-muros. Ao estabelecer a saúde como direito de todos e dever do Estado (art.196), a Constituição Federal de 1988 inovou, indicando como deve ser a saúde possibilitada aos cidadãos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. Esse é o sentido das expressões “redução do risco de doenças”, “promoção”, “proteção” e “recuperação”, contidas no dispositivo constitucional. Quando se fala em “recuperação”, a CF/88 está conectada ao que se convencionou chamar de saúde “curativa”; os termos “redução do risco de doença” e “proteção” estão intimamente ligados à saúde “preventiva”; e a “promoção” é a qualidade de vida, posteriormente explicada pelo art. 225 da Constituição brasileira (DALLARI, 1995 apud SCHWARTZ, 2001, p. 27). A negação da saúde como um direito dos presos e a restrição de sua 1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos pela UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí-RS. Pós-Graduanda em Didática e Metodologias de Ensino para a Educação Profissional e Ensino Superior pelo CENSUPEG - Centro Sul Brasileiro de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação, Joinville-SC. Bacharel em Direito pela UNICRUZ - Universidade de Cruz Alta-RS. E-mail: [email protected].

184

autonomia contribuem para ações de saúde prescritivas, ou seja, muitas vezes é necessário recorrer ao Poder Judiciário para garantir o direito à saúde do recluso, levando à judicialização de um direito. Além disso, a melhoria das condições de saúde dos detentos implica também mudanças nas condições de encarceramento. Diante disso, o acesso à saúde da população intra-muros tem se tornado tarefa inevitável para o Estado contemporâneo, considerando sua garantia como direito fundamental. Com isso, os problemas deixam de ser locais ou nacionais, para ocupar a dimensão global. O acesso à saúde é condição indispensável de vida digna, e de desenvolvimento social, necessitando de um olhar mais atento por parte dos Estados e de toda população, almejando a concretização dos direitos humanos. Por isso, é preciso uma compreensão e uma abordagem interdisciplinar do direito, indicando caminhos possíveis para dar resposta à sociedade e buscar soluções para o enfrentamento dos problemas. O acesso à saúde pela população encarcerada é essencial, pois da mesma forma que os presos devem respeitar as regras e normas do presídio, a instituição carcerária tem o dever de garantir todos os direitos fundamentais dos reclusos que não forem alcançados pela sentença ou pela lei. Além disso, a dignidade da pessoa humana

é

princípio

norteador

que

o

Poder

Público

deve

respeitar,

independentemente de merecimento pessoal ou social, já que é um direito inerente da pessoa, da vida, e não é necessário juízo de valor. O direito à saúde, que está previsto no artigo 6.° da Constituição Federal, merece destaque, ao pensar que a população em geral já não recebe um tratamento adequado por parte da saúde pública, passando por diversos entraves devido a um sistema precário e sem soluções efetivas para todos os males, é importante referir como é o acesso à saúde do presidiário, principalmente diante das doenças oportunistas que muitas vezes os acometem. Segundo a Lei de Execução Penal em seus artigos 12 e 14, o preso ou internado, terá assistência material, no tocante à higiene, ás boas instalações e ao acesso a atendimento médico, farmacêutico e odontológico. Porém a realidade não é esta, pois muitos presos estão submetidos a péssimas condições de higiene, além do que o acompanhamento médico, em alguns presídios nem existe. Diante da sabida problemática com relação ao acesso à saúde por parte da 185

população intra-muros e as doenças oportunistas neste sistema, este artigo tem por objetivo ressaltar estas questões e como o Estado, através de políticas públicas, pode garantir o direito à saúde dos encarcerados. Schwartz (2001, p. 43) ao mencionar que para efeitos de aplicação do art. 196 da CF/88, a saúde pode ser conceituada como: “um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças”, ao mesmo tempo em que tem por objetivo a melhor qualidade de vida possível, a partir da “aferição da realidade de cada indivíduo”, tendo como “pressuposto de efetivação a possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar”. Nesse sentido, é necessário construir e estruturar o Estado, a partir de uma esfera pública global visando à interação da sociedade para reconhecer e proteger os direitos quanto ao acesso à saúde pelos presidiários: enfim, essa é uma tarefa complexa e muito se tem ainda que avançar diante do mundo globalizado, com políticas fundamentadas na responsabilidade social. Em se tratando de acesso à saúde, a implementação de políticas públicas se apresenta como um desafio a ser enfrentado pela sociedade atual e pelo Estado. Dessa forma, a crescente preocupação da sociedade com os efeitos provocados pelos problemas de saúde tem levado a busca por soluções, necessitando a criação de um novo modelo de política pública capaz de atender e conciliar o desenvolvimento econômico e sustentabilidade. Assim, diante da realidade social existente quanto às doenças oportunistas no sistema prisional, entende-se relevante abordar o direito de acesso à saúde pela população carcerária, direito este que se insere no contexto dos direitos fundamentais, pois está intimamente ligado ao direito à vida, sendo urgente este olhar para a saúde no contexto prisional.

1 A SAÚDE COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

A Constituição não trata a saúde apenas como a ausência de doenças nos seres humanos, mas sim na ótica da proteção, prevenção e promoção, preocupandose não só em tratar os males que podem acometer a população, deixando clara a intenção do Estado em proporcionar digna qualidade de vida aos seus cidadãos, sem 186

distinção. De acordo com Sarlet (2009, p. 325), o direito à saúde é uma “exigência inarredável de qualquer Estado que inclua nos seus valores essenciais a humanidade e a justiça”, ainda que estes valores sejam limitados ao estritamente necessário para a proteção humana. A saúde faz parte do “sistema social sobre o qual nos encontramos, e, se quisermos ir mais adiante, faz parte do sistema da vida – que também é um sistema social. Ela (a saúde) é um sistema dentro de um sistema maior (a vida), e com tal sistema interage” (SCHWARTZ, 2001, p. 37). Conforme Schwartz (2001, p.160): [...] não resta dúvida que o objetivo maior de nossa sociedade é o respeito à dignidade humana, em que a saúde ocupa lugar de destaque, já que é um princípio fundamental, topograficamente – não por acaso – localizado em posição de privilégio no texto constitucional (art. 1.º, III).

O reconhecimento dos direitos fundamentais do homem em enunciados explícitos nas declarações de direitos é recente, e está longe de se esgotarem suas possibilidades, já que cada passo na etapa da evolução da humanidade importa na conquista de novos direitos. “Mais que conquista, o reconhecimento desses direitos caracteriza-se como reconquista de algo que, se perdeu, quando a sociedade se dividira em proprietários e não proprietários” (SILVA, 2008). O art. 5.º da Constituição Federal de 1988, em seu parágrafo 2.º, diz que: “Os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte”. De acordo com Sarlet (2010, p. 70), pode-se entender por dignidade da pessoa humana a qualidade que lhe é própria e “distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor de respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade”. Neste sentido, passa a implicar um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a

187

rede da vida. A Constituição Federal do Brasil (1988), no art. 6.º, destaca a saúde como um dos direitos fundamentais, ao definir que ‘São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, na forma desta constituição’. Assim, o Direito à Saúde, como um direito subjetivo público, não pode ser negado a nenhuma pessoa sob justificativa alguma, apesar de, na maioria das situações da vida diária, ele estar sendo constantemente violado, necessitando ser assegurado pelo judiciário e não pelo sistema de saúde. Este direito é orientado pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços, indicando a relevância pública e por isso, sujeitos à regulamentação, à fiscalização e ao controle do Poder Público (SILVA, 2008). Com base no pressuposto de que o Direito à Saúde está intimamente ligado ao direito à vida, significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento digno, de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter valor sua consignação em normas constitucionais (BONAVIDES, 2009). Para Santos (2010), “com a Constituição de 1988, o direito à saúde foi elevado à categoria de direito subjetivo público, no reconhecimento de que o sujeito é detentor do direito que o Estado está obrigado a garantir”. De acordo com Thurler (2007), o Sistema Único de Saúde, garantido pela Constituição e regulado pela Lei Orgânica da Saúde (LOS), prevê um sistema com princípios doutrinários e organizativos que dizem respeito às ideias filosóficas que permeiam a implementação do sistema e personificam o conceito ampliado de saúde e o princípio deste direito. Em relação ao SUS e à gestão da saúde, a Constituição (1988) estabelece que: Art. 198 - As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade.

188

De acordo com Sarlet et al. (2012), num segundo momento, a Constituição remete a regulamentação das ações e serviços de saúde ao legislador (art. 197), além de criar e fixar as diretrizes do Sistema Único de Saúde (art. 198), oportunizando a participação (em nível complementar) da iniciativa privada na prestação da assistência à saúde (art. 199), bem como estabelecendo, conforme o art. 200, em caráter exemplificativo, as atribuições (nos termos da lei) que competem ao Sistema Único de Saúde. Sarlet (2010) ressalta que os artigos 196 a 200 garantem a forma de positivação quanto a uma norma definidora do direito à saúde como direito subjetivo, que é de titularidade universal. Além disso, o direito à saúde também é previsto em diplomas internacionais, ratificados pelo Brasil: Declaração Universal da ONU, de 1948, no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Convenção de Direitos da Criança e na Convenção Americana de Direitos Humanos. Assim, ainda que não constasse no texto constitucional brasileiro, em razão da abertura do catálogo dos direitos fundamentais, por força do artigo 5.º, § 2.º do texto constitucional, este direito já estaria protegido. Quanto à obrigatoriedade do Estado em garantir o acesso à saúde, Sarlet et al. (2012, p. 77) explica que: Consagrado no art.6.º de nossa Constituição, é no art. 196 e ss. que o direito à saúde encontrou sua maior concretização ao nível normativoconstitucional, para além de uma significativa e abrangente regulamentação normativa na esfera infraconstitucional, com destaque para as leis que dispõe sobre a organização e benefícios do SUS e o fornecimento de medicamentos.

Também existem as questões das normas de característica impositiva de deveres e tarefas, já que o art. 196 enuncia que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, além de impor aos poderes públicos uma série de tarefas, tais como a de promover políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, além de estabelecer o acesso universal e igualitário às ações e prestações neste campo (SARLET et al., 2012). Como define a Constituição Federal de 1988 e demais leis relacionadas, o acesso à saúde dentro das penitenciárias brasileiras é de responsabilidade do Estado, considerando que a saúde é entendida como direito de todos, sem distinção, e dever 189

do Estado a sua promoção. O direito à vida e à saúde são reconhecidos como direitos humanos básicos. Sem eles nenhum outro direito humano pode ser usufruído. Na saúde percebe-se que a realidade tem mostrado a ausência de efetivação quanto à garantia e acesso aos serviços pertinentes a essa política. Nesse sentido, o quadro de exclusão social, na medida que reafirma a ausência dos direitos sociais, amplia as desigualdades sociais. Os profissionais que atuam na política de saúde, bem como os gestores, tem como desafio constante a busca pela implementação e consolidação de políticas públicas que garantam os direitos sociais edificados ao longo da história, sendo firmadas a partir da Constituição Federal de 1988.

1.1 O acesso à saúde no sistema prisional brasileiro

Ao verificar o modelo de Direito Penal proposto no Brasil, constata-se que não se busca a proteção dos cidadãos e dos seus direitos fundamentais, pela atuação punitiva do Estado, nem a prevenção à prática de crimes – conforme recomendam os discursos clássicos de legitimação do jus puniendi do Estado. O que se busca é a “dominação

e

a

opressão

exercidas

precipuamente

contra

as

camadas

economicamente desfavorecidas da sociedade, inclusive por meio de medidas de inocuização daqueles que são escolhidos para representarem a personificação do mal” (WERMUTH, 2011, p. 89). Conforme determina o art. 14 da LEP, a assistência à saúde compreende atendimento médico, farmacêutico e odontológico, em caráter preventivo e curativo. Esse aspecto é enfatizado por Mirabete e Fabrini (2013), descrevendo que o primeiro – preventivo – relaciona-se com as medidas profiláticas, que se traduzem no exame médico a ser efetuado em todo aquele que ingressa no estabelecimento, na inspeção de higiene dos locais, na inspeção da dieta alimentícia e no controle de presos submetidos a medidas disciplinares. O segundo aspecto refere-se à assistência médica diária para diagnóstico e tratamento dos enfermos da prisão ou hospital psiquiátrico. Para estes autores, “a prisão não deve impor restrições que não sejam inerentes à própria natureza da pena privativa de liberdade”. (MIRABETE; FABRINI, 2013, p. 259). 190

Como explica Nunes Júnior (2004, p. 78) o “direito à saúde é pressuposto básico para que haja dignidade humana” [...] e “o princípio da universalidade aponta que todo ser humano, só por sê-lo, tem direito de acesso ao sistema público de saúde”. Só o acesso igualitário assegura a correta distribuição dos recursos públicos na área da saúde, promovendo, portanto, a equidade no sistema” (NUNES JÚNIOR, 2004, p. 79). Portanto, é fundamental indicar as regras mínimas que possam ser prestadas e os convenientes cuidados aos presos doentes. Quando o estabelecimento não possui aparelhagem necessária para o tratamento ambulatorial do condenado, o tratamento poderá ser prestado em lugar diverso, mediante autorização da direção do estabelecimento, conforme preceitua o § 2.° do art. 14 da LEP (BRASIL, 1984). Contudo, o que se observa é o caráter seletivo com que se dá a atuação do sistema penal, sendo que o seu exercício de poder tem como objetivo, antes do combate à criminalidade, “a contenção de determinados grupos econômicos”, que são traduzidos como inconvenientes sociais. No Brasil se pune, não para defender a sociedade da criminalidade, mas pune-se para conformar a cada estrato social, os quais instituem seus próprios códigos sociais (WERMUTH, 2011). Sarlet (2010, p. 92) ressalta que, ao Estado se impõe: [...] a realização de políticas públicas que busquem a efetivação deste direito para a população, tornando o particular credor de prestações materiais que dizem com a saúde, tais como atendimento médico e hospitalar, fornecimento de medicamentos, realização de exames, enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a realização concreta deste direito à saúde. É essencial evidenciar o fato de o Estado não poder deixar de estender as políticas públicas para cumprimento do dispositivo constitucional à população privada de liberdade, já que não se lhe exclui o direito à saúde.

No Brasil existem legislações que garantem o acesso à saúde da população intra-muros, como por exemplo, a Portaria Interministerial n.º 1.777 de 09 de Setembro de 2003 que aprovou o Plano Nacional de Saúde no Sistema Prisional (PNSSP), constatando-se através dessa portaria, a preocupação do Estado em definir as ações e diretrizes do SUS, no que se refere à necessidade de promover a saúde junto ao sistema prisional brasileiro. A Portaria Interministerial n.º 1.777/03 (BRASIL, 2014) no art. 1.º, caput, assim estabelece: “Art. 1.º- Aprovar o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário [...] 191

destinado a prover a atenção integral à saúde da população prisional confinada em unidades masculinas e femininas, bem como nas psiquiátricas”. Nos parágrafos deste artigo 1.o, a Portaria n.º 1.777/03 define que: § 1.º As ações e serviços decorrentes desse Plano terão por finalidade promover a saúde dessa população e contribuir para o controle e/ou redução dos agravos mais frequentes que a acometem. § 2.º Estabelecer como prioridades para o alcance dessa finalidade [...];

Como destaca Barroso (2007), do investimento político da saúde pelo poder se forma um determinado discurso sobre a saúde como direito humano de todos e dever do Estado, a partir do que ocorre a prática da judicialização da saúde. Essa prática pode ser vista, não exatamente como um princípio ético ou uma exigência democrática que pressionam, de fora, o poder, mas como técnica de poder, um dispositivo de segurança, na medida em que gerencia um elemento específico, isto é, a saúde em função da omissão do executivo como um acontecimento provável, visando prevenir um risco ainda não concretizado, que é a violação a direitos fundamentais. Relevante para a discussão aqui iniciada, a decisão do Quarto Grupo de Câmaras Criminais, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: EXECUÇÃO. CONDENADO COM GRAVE ENFERMIDADE. PRISÃO DOMICILIAR. REGIME FECHADO. POSSIBILIDADE. Com preciosidade, já se afirmou que o Direito deve-se prolongar para fora de nós mesmos, para que o façamos coincidir com a realidade, aplicá-lo de acordo com as necessidades do caso concreto. Muitas vezes será necessário abandoná-lo diante dos princípios e dos sentimentos de eqüidade que todos os homens se orgulham de possuir. É que ocorre na hipótese em tela, como destacou o Desembargador prolator do voto vencido: "O grave estado de saúde do recorrente está comprovado nos autos. As providências que se recomenda ao administrado só têm cabimento em situações que não recomendem tratamento e cuidados especiais. Não é preciso ser médico para se constatar que a obstrução pulmonar crônica e infecção respiratória exigem local apropriado e isento de insalubridade. Sem dúvida, não é essa a realidade de nenhum dos nossos presídios. Por outro lado, o estado de desnutrição severa se atesta pelo peso atual do recorrente. Um homem adulto com peso de uma criança de 10 anos. Some-se a isso sua idade - 67 anos... Ainda, não se pode ter como satisfatória a informação de que o recorrente está sendo cuidados pelos demais presos. Essa informação passada pelo administrador revela exatamente o contrário do que se pretende concluir. Revela a gravidade do estado de saúde do recorrente (isso é dito pelo administrador) e a gravidade da situação em que se encontra. Precisando de cuidados especiais, é ele cuidado por outros presos! O que se revela aí é a ausência do Estado, que não tem condições de prestar-lhe a devida assistência." DECISÃO: Embargos infringentes acolhidos. Por maioria. (Embargos Infringentes e de Nulidade Nº 70040658338, Quarto Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista Neto, Julgado em 25/03/2011). Grifo nosso.

192

Diante da decisão acima trazida, é possível observar com clareza as deficiências do acesso à saúde aos encarcerados, bem como é possível analisar a falta de estrutura física das casas prisionais, as quais se apresentam superlotadas e insalubres, predispondo a contaminação e a proliferação de doenças. As casas prisionais demonstram de forma real e palpável o descaso do Estado e a violação diária dos direitos da população intra-muros. Nesse viés, a partir da análise dos dispositivos da Constituição Federal de 1988, bem como da legislação infraconstitucional, compreende-se que o acesso à saúde é conferido à população prisional, como forma de implementar e buscar a consolidação dos direitos das pessoas privadas de liberdade, as quais são seres humanos (AMORIM et al., 2013).

1.2 As doenças oportunistas

A Organização Mundial de Saúde (OMS) informa que, em 2010, foram registrados cerca de 8,8 milhões de casos novos de tuberculose (TB) no mundo, dos quais 57% apresentavam baciloscopia de escarro positiva e 800.000, de forma extrapulmonar. O Brasil, com incidência de 37,6 casos por 100.000 habitantes, ocupa atualmente o 22.º lugar no ranking dos 22 países com a maior carga de TB do mundo (WHO, 2011). De acordo com os dados lançados pelo Ministério da Justiça em 26 de abril de 2016, a população carcerária do Brasil chegou a 622.202 pessoas no ano de 2014, demonstrando além deste dado à manutenção do perfil socioeconômico dos encarcerados, 61,6% são negros e 75,08% têm até o ensino fundamental completo. Neste sentido, ainda segundo dados do Ministério da Saúde, os indivíduos privados de liberdade têm, em média, vinte e oito vezes maior chance do que a população extramuros em contrair tuberculose. Outro dado mencionado pelo mesmo órgão, e que merece destaque é o fato de a taxa de prevalência de HIV/Aids entre a população prisional (1,3% em 2014), ser significativamente superior a população geral (0,4%). Deixando claro os entraves e a necessidade urgente na aplicação/efetivação de políticas públicas voltadas á saúde do presidiário. Nesta senda, ressalta Amorim (2013), que a questão da saúde da população 193

carcerária não pode ser percebida sob uma ótica limitada a ações no âmbito de algumas poucas doenças (hoje, a tuberculose e as DSTs/AIDS: a questão é muito mais complexa). Assim, apesar das garantias da legislação, o direito de acesso à saúde por aqueles privados de liberdade, é constantemente violado. A realidade mostra que os institutos prisionais são espaço de desumanidade e disseminação de doenças. Apesar de o Estado ter o dever de estabelecer políticas públicas garantindo acesso à saúde do cidadão e da população carcerária, isso não ocorre. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define “saúde” como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consistindo apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Mas esta ideia como explica (Amorim et al., 2013). representa ideal impossível, pois é inimaginável uma pessoa em “completo bem-estar físico, mental e social”. Adaptar tal concepção para a pessoa privada de liberdade seria ainda mais inviável, pois em qualquer prisão, por mais “perfeita” que seja, existem fatores que impedem um “completo bem-estar físico, mental e social”. Mesmo que se resolvessem questões relativas à superpopulação carcerária e às condições insalubres das instituições, restaria o estresse devido ao encarceramento.

2 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ACESSO À SAÚDE DO PRESIDIÁRIO

A evolução das políticas públicas de saúde com relação às doenças oportunistas, no Brasil caracterizou-se por fases distintas, considerando-se o desenvolvimento dos conhecimentos científicos com relação à doença, a participação de diferentes segmentos sociais e institucionais na elaboração das respostas à epidemia e as articulações que permearam o espaço de organização dessas ações oficiais. A partir de 1993, os acordos internacionais até então firmados com o Banco Mundial, passaram a ser os grandes mantenedores de ações programáticas, dentre as quais destacam-se aquelas referentes aos Programas Assistenciais às pessoas com HIV/AIDS (VILLARINHO et al., 2013). Pinto (2007) descreve que hoje o Programa Nacional de DST e AIDS juntamente com seus parceiros atua nos 27 estados da Federação, no Distrito Federal e em 390 municípios, que apresentam 80% do número de casos de AIDS no país. Os objetivos do Programa Nacional de DST e AIDS são: reduzir a incidência da infecção 194

pelo HIV/AIDS e outras DSTs; ampliar o acesso e melhorar a qualidade do diagnóstico, tratamento e assistência aos portadores do HIV/AIDS e outras DSTs; e fortalecer as instituições públicas e privadas responsáveis pelo controle das DST/HIV/AIDS. A sociedade, através das ONGs, Igreja, mídia e outros grupos organizados, passou a exercer importante função na formulação das políticas públicas com relação ao HIV e a AIDS no Brasil, mas a sociedade tem de se mobilizar e acreditar no seu poder de mudança (PINTO et al., 2007). A gestão de um Programa Nacional impõe desafios em todos os graus de complexidade. Estes desafios no nível estadual e local ocorrem pela instabilidade política das equipes de coordenação, pelas estruturas de gestão incipientes, pela falta de priorização das ações, pelas dificuldades de adequação aos cumprimentos de acordos efetuados com o Governo Federal, pela escassez de recursos humanos capacitados no gerenciamento, planejamento, monitoramento e avaliação das ações, e principalmente pela pouca integração que ainda existe das ações no Sistema Único de Saúde. A atuação da sociedade civil é marcada por uma atuação propositiva e reivindicativa. As principais características são: centralidade no portador; intervenção nos significados das pesquisas médicas; denúncias públicas; manifestações de rua; estruturação de serviços e judicialização de demandas. Desse modo ocorre um novo cenário a partir das demandas dos portadores de HIV/AIDS (CAMARA, 2002, p. 66). A Organização das Nações Unidas no Brasil (ONU) estabeleceu no ano de 2015, “As Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros revisadas”, as quais foram apelidadas de “Regras de Mandela” em homenagem ao ex-presidente da África do Sul e também ex-presidiário, Nelson Mandela. Nesse contexto há de se destacar que estas regras visam garantir que os presos tenham as mesmas condições de atendimento à saúde do que as pessoas livres, isso porque nos presídios, a transmissão de doenças é maior do que na população em geral, como por exemplo, a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Assim, os cuidados médicos são imprescindíveis para a manutenção da dignidade e proteção dos seus direitos humanos dos presidiários. As Regras Mínimas para o cuidado com a saúde do apenado no Brasil determinam assistência médica, farmacêutica, odontológica e psicológica aos 195

detentos. No âmbito nacional, além da CF e da LEP, em 02 de abril de 2002, com a Portaria n.o 628 (BRASIL, 2002), os ministros de Estado da Saúde e da Justiça estabeleceram um Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), visando melhorias nas condições de saúde da população carcerária feminina e masculina do Brasil. Esse Plano foi alterado por meio da Portaria 1.777, de 09 de setembro de 2003, que prevê a inclusão da população carcerária no atendimento oferecido pelo Sistema Único de Saúde. Outras duas resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária têm foco na preservação da saúde dos internos em estabelecimentos prisionais. A primeira é a n.o 7, de 25 de março de 2003, alterada pela Resolução n.o 6, de 09 de maio de 2006, que estabelece Diretrizes Básicas para as Ações de Saúde nos Sistemas Penitenciários, propondo adoção de medidas para prevenção e controle de doenças (tuberculose, DSTs/ HIV/AIDS, hanseníase, hipertensão arterial e diabetes, saúde mental e bucal). A de n.o 2, de 08 de maio de 2008, propõe diretrizes básicas para a condução de presos durante o atendimento à saúde e condições mínimas de segurança para sua realização (AMORIM et al., 2013). Amorim et al. (2013) menciona como principais doenças encontradas nas casas prisionais brasileiras: as respiratórias, as dermatológicas e as mentais (dentre elas depressão, bipolaridade, esquizofrenia, crise de ansiedade e síndrome do pânico). E, dentro das possibilidades, a higiene dos ambulatórios é mantida e as condições de trabalho são favoráveis, mas durante a noite, é reduzido o número de funcionários, não há médicos à noite e nos finais de semana e, quando necessário, o detento é encaminhado a um hospital. Ao ressaltar as frustrações no sistema jurídico, Germano Schwartz assim descreve: “ora, o Direito vigente produz frustrações. Todavia, elas devem ser continuamente reprocessadas no seio das decisões jurídicas e então serem absorvidas para servirem de base à mudança do Direito” (SCHWARTZ, 2008, p. 488). A fim de alcançar a plenitude proposta pela OMS, e com a quebra de paradigma do Estado Liberal, onde cada um era responsável por sua saúde, o Estado interventor deveria, pois, proporcionar a saúde aos seus cidadãos mediante serviços básicos de atividade sanitária. Essa mudança da forma de interação do Estado baseou-se na ineficácia do tratamento da saúde, uma vez que a pessoa não contava com o suporte necessário para manter-se saudável. [...] como resultou ineficaz a ideia de que cada um deveria cuidar de sua saúde, o Estado começou a avocar para si o tratamento das doenças

196

e, a partir daí o Estado começa a chamar para si o papel que era do indivíduo: tratar da saúde. E aí a saúde passa a ser pública, e não individual (SCHWARTZ, 2001. p. 47).

Portanto, mesmo uma população fechada, que aparentemente parece controlada, são inúmeras as dificuldades para o desenvolvimento de ações de saúde nas prisões, como já fora fortemente argumentado. Isso porque se trata de um grupo de indivíduos sujeitados a muitas formas de violações, dentre elas, ambientes insalubres, falta ou insuficiência de recursos médicos, bem como de medicamentos, além dos equipamentos médicos sucateados e sem manutenção, e primordialmente a má gestão/estruturação dos programas de saúde ofertados pelo Estado, necessitando a saúde prisional, de um olhar urgente por parte dos entes Públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito à saúde é assegurado pela Constituição de 1988, sendo direito fundamental, haja vista sua íntima ligação com o direito à vida dos seres humanos. Sendo assim, é possível verificar avanços inegáveis no sentido de garantir a universalidade

deste

direito

no

contexto

brasileiro.

Pensar

a

saúde

contemporaneamente exige um olhar diferenciado, para além da doença e do adoecimento, alcançando o contexto mais amplo de convivência dos indivíduos e sua própria interação com o mundo. Os indicadores de saúde e os instrumentos para se garantir a saúde, devem necessariamente considerar esses elementos, na busca da qualidade de vida, conceito atualmente ligado de forma intrínseca com a promoção da saúde de qualquer indivíduo, seja ele pertencente ou não à população intra-muros . Contudo, ainda permanece a inaplicabilidade, ou ainda, a falta de efetividade desse direito, seja para a população encarcerada ou não, sendo que para ver o direito à saúde garantido, inúmeras vezes é preciso recorrer às ações judiciais para o seu cumprimento. Além disso, quando se analisa a situação do acesso à saúde no sistema prisional, é importante considerar sua integração ao Sistema Único de Saúde; e é impossível não fazer relações com o sistema oferecido à população em geral, levando em consideração duas premissas: 1ª) todos têm direito à saúde e, 2ª) não pode haver 197

distinção entre ninguém. O atendimento às pessoas privadas de liberdade não deve ser nem pior, nem melhor, do que o da população livre. Assim, é possível perceber que houve progressos, conforme foi observado na comparação entre relatos sobre a saúde no sistema prisional. Com a confecção deste artigo foi possível notar que há no Brasil inúmeros esforços garantidos em lei e diversos incentivos por parte do Governo Federal para que, efetivamente, as políticas públicas rompam barreiras de diversas ordens e garantam o propósito legal, promovendo, na prática, a melhoria das condições de assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade. Apesar disso, no cotidiano da assistência existem muitos entraves para a efetivação de um cuidado individualizado e integral, que vise à promoção da saúde, seja pelas diversidades regionais, seja pela falta de diálogo nas diferentes esferas governamentais. Diante disso, cabe ao Estado exercer as ações e serviços de saúde viabilizando a construção de uma ordem social inovadora, que almeje o bem-estar e a justiça social, buscando a devida concretização dos direitos e garantias fundamentais à saúde da sociedade brasileira, necessária ao desenvolvimento da nação. O Estado deve buscar, seja através da reestruturação dos programas e investimentos na área da saúde, inclusive, a promoção da saúde prisional, seja através da participação da população na busca da criação deste olhar de cuidado para com todos, através da reformulação de ideias (no âmbito prisional), ou ainda, no apontamento dos entraves principais, ou seja, aqueles que impedem o bom funcionamento e efetivação das políticas relacionadas à saúde em geral, bem como no sistema prisional brasileiro. Ao concluir, ressalta-se que, apesar dos reconhecidos avanços conquistados em termos de políticas públicas de saúde no Brasil, há um longo e difícil caminho em busca da qualidade da assistência à população que vive nas casas prisionais brasileiras, nas quais a superação das iniquidades e das desigualdades apresenta-se como desafio para todos os que defendem o direito à vida e a dignidade humana.

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200

A UTOPIA DO SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: OS REFLEXOS DE UM ESTADO DE EXCEÇÃO EM ÂMBITO INTERNACIONAL

Aline Ferreira da Silva Diel1

INTRODUÇÃO

Os resultados deixados pela política nazista no segundo pós-guerra inauguram uma nova concepção de direitos humanos, pautada pela síntese de reconstrução, que impulsionou uma nova arquitetura normativa, apta a abranger um contingente de nações e indivíduos. Nasce, como estandarte desta construção, o Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos, sendo caracterizado como o mecanismo garantidor do construto normativo de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Apto a interferir em políticas estatais ineficientes ou coniventes em relação a violações aos direitos humanos, o Sistema Global de Proteção constitui-se a partir de diversos institutos normativos – tratados internacionais que se destinam a proteger direitos fundamentais dos indivíduos – vinculando os Estados na proteção e promoção destes direitos, formando, assim, uma Comunidade Internacional de Nações responsável pela “construção e preservação daqueles direitos inerentes aos seres humanos.” (WEIS, 2010, p. 80). No entanto, apesar de ampla e contínua inserção deste sistema nos diversos estatutos jurídicos estatais, as violações aos direitos humanos continuam a ocorrer, sem que se possa, de forma efetiva, combatê-las jurídica e legalmente. A prisão de Guantánamo, situada na Baía de Guantánamo, em Cuba, e administrada pelo governo norte americano é o exemplo corrente de violação aos diversos estatutos jurídicos de proteção aos direitos humanos. Baseada na política de guerra ao terrorismo, os

1

Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, URI, campus Santo Ângelo/RS (2014). Mestranda em Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ, Ijuí/RS. Bolsista Capes. E-mail: [email protected].

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“combatentes ilegais”

2

presos em Guantánamo, não possuem acusações formais e

não recebem nenhum tipo de assistência jurídica, permanecendo detidos por tempo indeterminado. A justificativa de tal irregularidade vem centrada na indeterminação jurídica dos indivíduos detidos, os quais não podem, segundo o governo norte americano, receber a denominação de prisioneiros de guerra por não estarem vinculados formalmente a um Estado como soldados. Como resultado desta indeterminação, estes sujeitos permanecem sem a tutela de um devido processo legal, resultando em um destino jurídico incerto. A partir desta síntese, o problema a frente desta pesquisa concentra-se no questionamento do alcance dos mecanismos do Sistema Global na proteção dos prisioneiros de Guantánamo e como a política antiterrorismo norte americana reflete os moldes de um estado de exceção no direito internacional, impedindo que os órgãos internacionais atuem de forma efetiva no combate às violações aos direitos humanos, perpetradas por esta política. A hipótese que se vislumbra, inicialmente, coaduna-se a uma impotência do Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos em interferir na política antiterrorismo, não oferecendo meio legal para que os prisioneiros de Guantánamo recebam o status adequado para serem processados e julgados – se este for o caso – de forma legal, e nem recebam a tutela jurídica do Direito Internacional. Nesta senda, o ordenamento do Sistema Global, conforme enfatizado por Ferrajoli (2002, p. 43), acaba por ser “ineficaz pelo fato de que seus órgãos não mais equivalem a um ‘terceiro ausente’, mas sim a um ‘terceiro impotente’.” Outrossim, a política contra o terror instaurada pelo governo norte americano, apresenta-se como uma política de um estado de exceção, pois a sujeição dos prisioneiros de Guantánamo a uma detenção indeterminada, mostra a dominação de fato exercida pelo poder soberano (AGAMBEN, 2004), que transpõe as lacunas das garantias trazidas pela Organização das Nações Unidas e pelos Estados que ratificam 2

Em 22 de janeiro [de 2002] o secretário da Defesa Donald Rumsfeld justificou por que esses prisioneiros não deveriam ser denominados “prisioneiros de guerra” e por que prefere chamá-los de “detentos em campo de batalha” ou “combatentes ilegais”. Em sua visão, eles não são PGs porque essa não é uma guerra comum: não se trata primordialmente de um embate entre Estados-nação reconhecíveis ou, no jargão das Convenções de Genebra, entre “altas partes contratantes” (BUTLER, 2007).

202

os respectivos tratados e convenções. Para analisar a problemática arguida, este trabalho adota o método fenomenológico, pautado pela “interpretação ou hermenêutica universal”, isto é, como revisão crítica dos temas centrais transmitidos pela tradição filosófica através da linguagem, como destruição e revolvimento do chão linguístico da metafísica ocidental. Por meio dele, é possível descobrir um indisfarçável projeto de analítica da linguagem, numa imediata proximidade com a práxis humana, como existência e faticidade, em que a linguagem – o sentido, a denotação – não é analisada a partir de um sistema fechado de referências, mas, sim, no plano da historicidade. Com efeito, o método de abordagem visa a aproximar o sujeito (pesquisador) e o objeto a ser pesquisado. O trabalho divide-se em três partes, abordando-se, respectivamente, os aspectos concernentes à criação do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos, os fundamentos de criação da prisão de Guantánamo, a partir da análise da política antiterrorismo e a consequente utopia do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos frente ao paradigma do estado de exceção em âmbito internacional.

1 A ASCENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO SEGUNDO PÓS-GUERRA: O CAMPO COMO PARADIGMA DE CRIAÇÃO DO SISTEMA GLOBAL

3

O nazismo

mostrou ao mundo o quão ínfima pode ser a dignidade de um

indivíduo. Marcada pela descartabilidade humana, a era Hitler encontrou nos campos de concentração

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o instrumento adequado “[...] de matar pessoas da forma mais

eficiente possível [...]” (WEIS, 2010, p. 80). Auschwitz, conforme sustenta Agamben, é o ícone do fim e da ruína da dignidade e do respeito e adequação a uma norma. “A 3

A Segunda Guerra Mundial, segundo Alessandra Facchi (2011), marca um divisor de águas na história dos direitos humanos. O regime nazista mostrou claramente a possibilidade de apagar séculos de lutas políticas e conquistas jurídicas. Não só os direitos individuais haviam sido suprimidos, mas a própria ideia de humanidade tinha sido negada, programando a anulação de uma parte sua. Em nome do poder e da pretensa superioridade de um povo, parecia que toda civilização jurídica fora apagada; em nome da obediência à ordem, também a responsabilidade e a autonomia individual. A democracia e os direitos do homem revelaram-se frágeis construções 4 Conforme descreve Agamben (2002), o campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a torna-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente que, como tal, permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento normal.

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vida nua, a que o homem foi reduzido, não exige e nem se adapta a nada: ela própria é a única norma, é absolutamente imanente. E o sentimento último de pertencimento à espécie não pode ser, em nenhum caso, uma dignidade.” (AGAMBEN, 2008, p. 76). A vida nua encontrada nos campos corresponde àquela vida desprovida de direitos, onde o humanus é reduzido a um simples corpo manejado pelo poder soberano, o qual o disporá conforme for deliberado em sua ‘política de manejo’. A dignidade humana, incipientemente conceituada até a Segunda Guerra, passa, simplesmente, despercebida frente aos conflitos soberanos, e o que realmente importa é a eliminação de todas as características do indivíduo, seja ele social, ou individual. Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo estatuto jurídico e reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação (AGAMBEN, 2002, p. 178).

Conforme sustenta Hannah Arendt (1989, p. 488-489), os campos de concentração nazistas não serviram apenas para exterminar e degradar seres humanos, mas também serviram ao propósito da eliminação, “[...] em condições cientificamente controladas, da própria espontaneidade como expressão da conduta humana, e da transformação da personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo os animais são [...].” A transfiguração do sujeito dotado de direitos e garantias, ao indivíduo portador, simplesmente, de uma vida, demarca o limiar de subjetivação da dignidade humana nos campos. O corpo abandonado pelo Estado deve ser consequentemente eliminado, pois sua utilidade já desvaneceu e também deixou de representar um perigo.5 Os campos de concentração tornam-se, desta maneira, a representação de um poder soberano absoluto, o qual sustenta sua política acima de qualquer dignidade humana. O campo torna-se o exemplo do que um poder sem limites pode realizar. “O campo é apenas o local onde se realizou a mais absoluta conditio unhumana que se

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Hannah Arendt (1999, p. 105), em seu livro Eichmann em Jerusalém, ao descrever as atividades presenciadas por Adolf Eichmann em Auschwitz, relata como funcionava a ‘máquina de destruição’ que eliminava os indivíduos que perderam sua utilidade: “havia dois métodos diferentes de matança, o fuzilamento e a câmara de gás; o fuzilamento era feito pelos Einsatzgruppen e a execução por gás nos campos, em câmaras ou em caminhões; viu também as complexas precauções que se tomavam no campo para enganar as vítimas até o final.

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tenha dado sobre a terra.” (AGAMBEN, 2002, p. 173, grifo do autor). Os resultados desta política compôs um dos fatores da deliberação sobre uma norma que fosse efetiva e protegesse o contexto desta dignidade humana, passando a figurar na agenda global de discussão. Compreende-se, a partir deste período, um processo de reconstrução dos direitos humanos. Esta intensa e massiva discussão no âmbito internacional resultou em uma atuação conjunta entre os Estados na criação de uma comunidade internacional de nações, com o objetivo de construir um sistema apto a intervir, de forma eficiente, em conflitos internos – sobrepujando o conceito de soberania absoluta – e na responsabilização dos Estados que violassem as normas de direitos humanos. Batizada como Organização das Nações Unidas, essa comunidade internacional passou a ser responsável pela arquitetura normativa e estruturação de organismos “[...] voltados à construção e preservação daqueles direitos inerentes aos seres humanos.” (WEIS, 2010, p. 80). Logo, o tema dos direitos humanos e sua efetiva promoção e proteção, “[...] tornou-se preocupação de interesse comum dos Estados, bem como um dos principais objetivos da sociedade internacional [...].” (MAZZUOLI, 2015, p. 907). Começa a desenvolver-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos. A discussão internacional acerca da proteção e promoção aos direitos humanos surge, assim, como resposta às atrocidades ocorridas no período nazista, tendo seus resultados servidos como paradigma de criação de um sistema global, o qual passou a ser responsável por fiscalizar os Estados que violassem os respectivos direitos, responsabilizando-os no plano externo. Surge, então, no âmbito da Organização das Nações Unidas, um sistema global de proteção dos direitos humanos6, tanto de caráter geral (a exemplo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) como de caráter específico (as convenções internacionais de combate à tortura, à discriminação racial, à discriminação contra as mulheres, à violação dos direitos das crianças etc.). Revolucionou-se, a partir desse momento, o tratamento da questão relativa ao tema dos direitos humanos. Colocou-se o ser humano, de maneira inédita, num dos pilares até então reservados aos Estados, alçando-o à categoria de sujeito do Direito Internacional Público. Paradoxalmente, o Direito Internacional, feito pelos Estados e para os Estados, começou a tratar da proteção internacional dos direitos humanos contra o próprio Estado, único responsável reconhecido juridicamente, 6

Este sistema, também conhecido como Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, ou ainda Onusiano, constitui o legado maior da chamada “Era dos Direitos”, que tem permitido a internacionalização dos direitos humanos e a humanização do Direito Internacional contemporâneo (PIOVESAN, 2014, p. 45).

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querendo significar esse novo elemento uma mudança qualitativa para a sociedade internacional, uma vez que o direito das gentes não mais se cingiria aos interesses nacionais particulares (MAZZUOLI, 2015, p. 908-909).

Como resultado e consolidação desta organização, foi promulgada, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos7, documento que sistematizou os direitos humanos e, conforme salienta Carlos Weis (2010, p. 84), “[...] foi o primeiro documento internacional a tratar dos direitos humanos, tanto civis e políticos quanto econômicos, sociais e culturais, de maneira indivisível, ainda que reconhecendo sua distinta natureza jurídica.” Este documento, conforme sustenta Bobbio (1992, p. 30), é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado.

Em momento posterior à criação da Organização das Nações Unidas e da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1966, foram aprovados dois Pactos Internacionais: o dos Direitos Civis e Políticos e o dos Direitos Sociais Econômicos e Culturais, documentos que compõem a “Carta Internacional de Direitos Humanos” (International Bill of Rights) (RAMOS, 2011, p. 138). Por conseguinte, o Direito Internacional dos Direitos Humanos dá início à produção de inúmeros tratados internacionais destinados a proteger os direitos básicos dos indivíduos (MAZZUOLI, 2015, p. 908). Cançado Trindade (1997, p. 45) argumenta que é este o sentido próprio do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que tem se desenvolvido [...] a partir de premissas básicas de que os direitos humanos são inerentes ao ser humano, e como tais antecedem a todas as formas de organização política, e de que sua proteção não se esgota – não pode se esgotar – na ação do Estado. No presente domínio deste direito de proteção, as normas jurídicas são interpretadas e aplicadas tendo sempre presentes as necessidades prementes de proteção das supostas vítimas. Trata-se de uma interpretação pro homine, orientada à condição das vítimas, e que reclama a humanização dos postulados tanto do direito internacional como do direito público interno.

Assim, é promulgada a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as 7

Conforme descreve Antonio Augusto Cançado Trindade (1997, p. 57), o trabalho de redação propriamente dita da Declaração Universal de Direitos Humanos desenrolou-se no seio da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. A Declaração Universal resultou de uma série de decisões tomadas no biênio 1947-1948, a partir da primeira sessão regular da mencionada Comissão de Direitos Humanos, em fevereiro de 1947.

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Formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias (RAMOS, 2011, p. 138). Como forma de gerir e fiscalizar os Estados na atuação frente aos direitos humanos, o Sistema Global de Proteção recebe o apoio do Conselho de Direitos Humanos; Relatores Especiais de Direitos Humanos e Alto Comissariado de Direitos Humanos, sendo estes órgãos internos da ONU, e também de órgãos e entes externos, criados por tratados diversos – elaborados com incentivo explícito da ONU e que recebem o seu apoio – , que são os Comitês criados por tratados internacionais de âmbito universal e o Tribunal Penal Internacional. (RAMOS, 2011, p. 270). O Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos desempenha papel fundamental no Direito Internacional dos Direitos Humanos, possuindo em seus mecanismos o veículo necessário na promoção e efetivação dos referidos direitos. Apesar de sua ineficiente atuação no plano prático – como será mostrado adiante – este sistema surge para retirar o monopólio do Estado soberano, com poderes ilimitados, e trabalhar em busca do primado da proteção da dignidade humana. Como defende Hannah Arendt (1989, p. 330), se consegue perceber a existência de um direito a ter direitos e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam recuperá-los devido à nova situação política e global. Importante analisar, desta forma, o alcance dos mecanismos do Sistema Global face às violações aos direitos humanos ocorridas na prisão de Guantánamo e seus respectivos instrumentos normativos que dão legitimidade às referidas violações. 2 DOS CAMPOS A GUANTÁNAMO: A MUDANÇA DO PARADIGMA PUNITIVO

O paradigma do campo era, em primeiro lugar, retirar a cidadania dos indivíduos detidos, reduzindo-os a uma série numérica, sem nacionalidade, sem cidadania e, por fim, sem a dignidade humana. Ao retirar do indivíduo condições intrínsecas, restava apenas a vida nua, aquela vida desprovida de qualquer qualidade 207

humana, restando apenas um corpo (AGAMBEN, 2002). Sob esta ótica, os campos não serviram apenas de paradigma para a construção de um mecanismo que protegesse as qualidades intrínsecas dos seres humanos, mas também como um ato que se assemelha, em muitos aspectos, com novas políticas do século XXI, como a guerra ao terror do governo estadunidense. Proclamada após os atentados de 11 de setembro de 2001, a guerra ao terrorismo resultou na prisão de Guantánamo, situada na Baía de Guantánamo, em Cuba, território arrendado pelo Governo dos Estados Unidos8 e destinado a aprisionar indivíduos declarados como inimigos suspeitos de terrorismo e de atividades que colocassem em perigo a segurança nacional daquele país. O paradigma punitivo de Guantánamo, neste sentido, é afastar os indivíduos proclamados inimigos da pátria e subjugá-los a um patamar de indistinção jurídica, retirando todas as defesas inerentes de um processo adequado de julgamento. Conforme descreve Butler (2006, p. 79), “lo que sorprendió desde un principio y continúa siendo alarmante es que a la mayoría de los detenidos no se les ha garantizado el derecho de defensa legal, ni siquiera el derecho a juicio. A ilegalidade de Guantánamo começa em 26 de outubro de 2001, após os atentados terroristas ao World Trade Center, em Nova York, EUA, quando o presidente Bush aprovou o USA Patriot Act, que suspendia restrições às ações do governo relacionadas com os direitos civis, permitindo que o procurador-geral mantivesse presos estrangeiros suspeitos de atividades terroristas ou que colocasse em risco a segurança nacional, tendo o prazo de sete dias para deportá-los ou acusá-los de algum delito cometido. (GÓMEZ, 2008). “A novidade da “ordem” do presidente Bush está em

8

A Baía de Guantánamo é uma possessão militar dos EUA em território cubano (GÓMEZ, 2008). Tal se deu em 1903, quando os Estados Unidos da América, por meio de convenção para as Estações Carvoeiras e Navais celebrada com Cuba (então presidida por Tomás Estrada Palma), arrendaram temporariamente deste último país o Porto de Guantánamo e a Baía Honda. A base naval norteamericana de Guantánamo é uma instalação localizada em uma área de 117,6 km² quilômetros quadrados do território de Cuba. A instalação decorreu de emenda aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos e assinada pelo Presidente McKinley, em março de 1901 conhecida como Emenda Platt. Em maio de 1934, em novo acordo entre os dois países, celebrado em Washington, excluiu-se definitivamente a Baía Honda como possível base norte-americana, mas mantendo o arrendamento da base naval de Guantánamo. O pagamento estipulado pelo arrendamento dos 11.760 hectares, que incluem grande parte de uma das melhores baías de Cuba seria a soma de tão somente dois mil dólares anuais, que atualmente chegam a 4.085 dólares por ano (ou seja, 34,7 centavos de dólar por hectare) pagos em chegues anuais. Os governos cubanos a partir de Fidel Castro negam-se a cobrar tal valor por afrontar a dignidade do país (MAZZUOLI, 2015, p. 568).

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anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável.” (AGAMBEN, 2004, p. 14). No entanto, conforme descreve Gómez (2008, p. 271), a peça-chave foi a ordem executiva assinada pelo presidente Bush em 13 de novembro de 2001 sobre “Detenção, tratamento e julgamento de certos estrangeiros na guerra contra o terrorismo”. Com tal ordem, a partir de então, o Pentágono fica autorizado a manter cidadãos não nacionais sob custódia indefinida e sem encargos; proíbe-se que os detentos interponham qualquer recurso perante tribunais estadunidenses, estrangeiros ou internacionais; e afirma-se que, em caso de serem julgados, o julgamento realizar-se-á no âmbito das comissões militares nomeadas pelo Executivo (e não por tribunais independentes e imparciais), o que não se utilizava desde a Segunda Guerra Mundial. A partir dessa ordem, várias regulamentações administrativas do Departamento de Defesa são autorizadas com o propósito de esclarecê-la e torná-la mais efetiva.

No ano seguinte, janeiro de 2002, começam a chegar os primeiros prisioneiros a Guantánamo, provenientes do Afeganistão “[...] detidos em jaulas metálicas na zona conhecida como Campo Raios X e, em seguida, transferidos para o Campo Delta.” (GÓMEZ, 2008, p. 271). Frente às incipientes ilegalidades das medidas praticadas e dos consequentes questionamentos, o então assessor da Casa Branca, Alberto Gonzáles, aconselhou o presidente a não aplicar as Convenções de Genebra para os indivíduos capturados no Afeganistão, visando a “impedir futuros processos das tropas e dos agentes de inteligência, em virtude da aplicação da Lei de Crimes de Guerra dos EUA, que incorpora e penaliza violações ao art. 3º comum das Convenções.” (GÓMEZ, 2008, p. 271-272). Muito além de impedir o processo das tropas e agentes, o governo estadunidense posiciona-se no sentido de retirar dos prisioneiros de Guantánamo o status de prisioneiros de guerra, que devem pertencer, segundo as Convenções de Genebra “a uma ‘alta parte contratante’ e ter operado a serviço de ‘forças armadas regulares’ em uma guerra convencional.” (BUTLER, 2007, p. 224). Conforme a Convenção n. 3 de Genebra, são prisioneiros de guerra: 1) os membros das forças armadas de uma Parte no conflito, assim como os membros das milícias e dos corpos de voluntários que façam parte destas forças armadas; 2) os membros das outras milícias e dos outros corpos de voluntários, incluindo os dos outros corpos de voluntários, incluindo os dos movimentos de resistência organizados, pertencentes a uma Parte no conflito operando fora ou no interior do seu próprio

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território, mesmo se este território estiver ocupado, desde que estas milícias ou corpos voluntários, incluindo os dos movimentos de resistência organizados, satisfaçam as seguintes condições: a) ter à sua frente uma pessoa responsável pelos seus subordinados; b) ter um sinal distinto fixo que se reconheça à distância; c) usarem as armas à vista; d) respeitarem, nas suas operações, as leis e usos de guerra. 3) os membros das forças armadas regulares que obedeçam a um Governo ou a uma autoridade não reconhecida pela Potência detentora; 4) as pessoas que acompanham as forças armadas sem fazerem parte delas, tais como os membros civis das tripulações dos aviões militares, correspondentes de guerra, fornecedores, membros das unidades de trabalho ou dos serviços encarregados do bem-estar das forças armadas, desde que tenham recebido autorização das forças armadas que acompanham, as quais lhes deverão fornecer um bilhete de identidade semelhante ao modelo anexo; 5) membros das tripulações, incluindo os comandantes, pilotos e praticantes da marinha mercante e as tripulações da aviação civil das Partes no conflito que não beneficiem de um tratamento mais favorável em virtude de outras disposições do direito internacional; 6) a população de um território não ocupado que, à aproximação do inimigo, pegue espontaneamente em armas, para combater as tropas de invasão, sem ter tido tempo de se organizar em força armada regular, desde que transporte as armas à vista e respeite as leis e costumes da guerra. 9 10 Conforme esclarece Celso Mello (2002, p. 1493-1494), a Convenção de Genebra é aplicada não apenas em caso de guerra11, mas em qualquer outro conflito armado.12 9

A Convenção também beneficia com o tratamento reservado aos prisioneiros de guerra indivíduos que pertençam ou tenham pertencido às forças armadas do país ocupado se, em virtude disto, a Potência ocupante, mesmo que as tenha inicialmente libertado enquanto as hostilidades prosseguem fora do território por ela ocupado, julgar necessário proceder ao seu ao seu internamento, em especial depois de uma tentativa não coroada de êxito daquelas pessoas para se juntarem às forças armadas a que pertenciam e que continuam a combater, ou quando não obedeçam a uma imitação que lhes tenha sido feita com o fim de internamento e as pessoas pertencendo a uma das categorias enumeradas neste artigo que as Potências neutras ou não beligerantes tenham recebido no seu território e que tenham de internar em virtude do direito internacional, sem prejuízo de qualquer tratamento mais favorável que estas Potências julgarem preferível dar-lhes, e com execução das disposições dos artigos 8, 10, 15, 30, 5 parágrafo, 58 a 67, inclusive, 92, 126 e, quando existam relações diplomáticas entre as Partes no conflito e a Potência neutra ou não beligerante interessada, das disposições que dizem respeito à Potência protetora. 10 O texto integral das Convenções de Genebra pode ser acessado em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/normativa_internacional/Sistema_ONU/DH.pdf. 11 Conforme orientação de Mazzuoli (2015, p. 1189), para servir ao Direito Internacional Público a expressão guerra deve ser definida em termos essencialmente jurídicos. Assim entendida, a guerra pode ser conceituada como todo conflito armado entre dois ou mais Estados, durante certo período de

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Esta regulamentação se estende, além das forças armadas, às milícias, movimentos de resistência, e desde que preencham certas condições, dentre estas, ter como chefe pessoa responsável pelos seus subordinados, ter um emblema distintivo fixo e reconhecível a distância, portar armas abertamente e conformar-se, em suas operações, às leis e costumes de guerra. No entanto, o governo norte americano se recusa a conceder o status de prisioneiros de guerra aos detentos de Guantánamo, argumentando que não se trata de uma guerra comum, entre “altas partes contratantes” – conforme a definição da Convenção n. III de Genebra –, dando a estes prisioneiros definição de “detentos em campo de batalha”, o que designa um lugar que ainda não está sob a lei ou que, com efeito, está à margem da lei de modo relativamente permanente. (BUTLER, 2007, p. 224). Outrossim, os prisioneiros capturados também não gozam do status de acusados segundo as leis norte-americanas. Conforme estabelece Agamben (2004, p. 14), eles não são “nem prisioneiros nem acusados, mas apenas detainees, são objeto de uma pura definição de fato, de uma detenção indeterminada não só no sentido temporal mas também quanto a sua própria natureza, porque totalmente fora da lei e do controle judiciário.” A ninguno de los detenidos en Guantánamo se le ha garantizado el derecho de defensa legal, de apelación y de repatriación estipulado por la Convención de Ginebra, y aunque los Estados Unidos hayan anunciado que los talibanes quedaban "cubiertos" por el Acuerdo de Ginebra, han dejado claro que aun así no tienen el estatus de prisioneros de guerra; como de hecho ningún prisionero de Guantánamo lo tiene. (BUTLER, 2006, p. 79-80).

O governo norte-americano, ao recusar as denominações concernentes aos tempo e sob a direção dos seus respectivos governos, com a finalidade de forçar um dos adversários a satisfazer a(s) vontade(s) do(s) outro(s) . Ela normalmente se inicia com uma declaração formal de guerra e termina com a conclusão de um Tratado de Paz, ou outro ato capaz de pôr termo às hostilidades e findá-la por completo. 12 Conforme definição dada pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV, 2008), o conceito de conflito armado reconhecido pelo Direito Internacional Humanitário (DIH) é distinguido entre duas categorias, a saber: a) Conflitos armados internacionais, em que dois ou mais Estados se enfrentam; e b) Conflitos armados não internacionais, entre forças governamentais e grupos armados não governamentais, ou somente entre estes grupos. O DIH com base nos tratados também estabelece uma distinção entre os conflitos armados não internacionais, na acepção do artigo 3º comum às Convenções de Genebra de 1949, e os que se encaixam na definição prevista pelo art.1º do Protocolo Adicional II. Sob o ponto de vista jurídico, não há nenhum outro tipo de conflito armado. Contudo, deve-se ressaltar que uma situação pode evolucionar de uma categoria a outra, dependo dos fatos vigentes no momento.

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prisioneiros de guerra dispostos nas Convenções de Genebra e respectivos protocolos adicionais aos detidos em Guantánamo, viola gravemente as normas do Direito Internacional relacionadas à proteção dos direitos humanos dispostos nos referidos acordos, deixando-os em um patamar de indistinção jurídica, o que, em resumo, dificulta a aplicação dos mecanismos do Sistema Global de Proteção aos direitos humanos. Outrossim, Hannah Arendt (1999), quando aborda a questão dos apátridas oriundos dos campos de concentração nazistas, deixa claro que o status jurídico deste é o limiar do confronto aos direitos humanos, pois os judeus que chegavam aos campos eram retirados, de forma imediata, de suas raízes nacionais, o que incluía religião, profissão, cidadania, culminando apenas em um emaranhado de corpos à disposição do regime político. Assim, o limiar de contato entre os campos e Guantánamo reside no exemplo de violação aos direitos humanos, convenções e tratados e internacionais, além da discrepante manobra política que objetiva encobrir a tendenciosa ilegalidade das prisões e as denúncias de tortura. Importante analisar, nesta senda, como os mecanismos do Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos agem frente às ilegalidades de Guantánamo e como a política norte-america reflete um estado de exceção em âmbito internacional, a partir da análise das normas internacionais que protegem os direitos humanos e os prisioneiros de guerra.

3 A UTOPIA DO SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E OS REFLEXOS DE UM ESTADO DE EXCEÇÃO NO DIREITO INTERNACIONAL As manobras tensionadas pelo governo norte-americano impedem, de forma clara, a aplicação dos mecanismos de proteção aos direitos humanos normatizados no sistema global, resultando sua proteção em uma utopia. Em conjunto, percebem-se espaços de exceção resultantes do conjunto de atuação do governo norte-americano, na medida em que encontra subterfúgios legais para impedir o correto tratamento jurídico dos prisioneiros de Guantánamo. Importante analisar, neste sentido, as características da Convenção de Genebra e dos protocolos adicionais relacionadas à proteção dos prisioneiros de guerra. O 212

artigo 2º da Convenção de Genebra n. 3, que trata sobre os prisioneiros de guerra, estabelece o alcance da Convenção, a qual será aplicada em caso de guerra declarada ou de qualquer outro conflito armado que surja entre duas ou várias das Altas Partes Contratantes, mesmo que o estado de guerra não seja reconhecido por uma delas. Em complemento, dispõe que se uma das Potências em conflito não for Parte na presente Convenção, as Potências que nela são partes manter-se-ão, no entanto, ligadas pela referida Convenção nas suas relações recíprocas. O artigo 45 dos Protocolos I e II de 1977 adicionais às Convenções de Genebra de 1949, adotados em 10 de junho de 1977 pela Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados, destaca que: 1. Uma pessoa que tome parte nas hostilidades e caia em poder de uma Parte adversa será presumida prisioneira de guerra e, consequentemente estará protegida pela Terceira Convenção se ela reivindica o estatuto de prisioneiro de guerra, ou se aparentemente é intitulada a ter direito ao mesmo, ou quando a Parte de que dependa reivindica essa condição em seu favor através de uma notificação à Potência detentora ou a Potência Protetora. Havendo alguma dúvida a respeito do seu direito ao estatuto do prisioneiro de guerra, tal pessoa continuará protegida pela Terceira Convenção e pelo presente Protocolo, até que um tribunal competente tenha decidido a esse respeito (grifou-se).

O referido protocolo deixa claro que, mesmo a potência detentora não reconhecendo o status de prisioneiro de guerra, o indivíduo detido poderá usufruir de seus benefícios até que seja regulada, judicialmente, sua condição jurídica. Em conjunto, “os direitos concedidos aos prisioneiros de guerra não são passíveis de renúncia. A convenção é aplicada sob a fiscalização de potência protetora.” (MELLO, 2002, p. 1994). Conforme prenuncia Butler (2007, p. 227-228), o acordo estabelecido pela Convenção de Genebra sobre prisioneiros de guerra pode ser analisado sob duas maneiras: Os princípios da Convenção de Genebra, redigidos em agosto de 1949, deixam claro que PGs não precisam ser membros de forças armadas regulares — compreendidas como forças armadas de um Estado — desde que pertençam a uma “parte” do conflito — compreendida como “alta” e “contratante”. É possível então interpretar a relação da Al Qaeda com o Afeganistão precisamente como uma relação com uma tal parte. Além disso, as Convenções determinam que um tribunal competente intervenha e decida sobre a questão da condição dos detentos como PGs; antes dessa decisão, seu status como PGs deve ser pressuposto. Ademais, enquanto sua condição está sendo determinada, a potência detentora é estritamente

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obrigada a tratar os detentos humanamente — o que inclui,pela definição do acordo, acesso a suporte jurídico.

Ao negar esse suporte jurídico aos prisioneiros de Guantánamo fica evidenciado que o governo norte americano atua sob os moldes de um estado de exceção13

deliberado.

Esta

manobra

configura-se

como

uma

violência

institucionalizada na qual “direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão [...].” (AGAMBEN, 2004, p. 14). Em nome da defesa e interesses nacionais, as políticas antiterrorismo do governo estadunidense torna-se um óbice à aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ainda, como destaca Agamben (2004, p. 27-28), “a declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo.” O tempo e espaço que deveria vigorar o estado de exceção ganha contornos permanentes e torna-se paradigma de governo. Sua tendência gradual, além de abolir direitos e liberdades fundamentais, acaba por violar direitos humanos amplamente convencionados. E, como definido por Agamben (2004, p. 63), o estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde a lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.

A política contra o terror, que nega o status de prisioneiros de guerra aos detentos de Guantánamo e lhes retira toda a assistência jurídica para que possam exercer, não apenas seu direito de defesa, mas a tutela de um devido processo legal, visando a evitar uma prisão indeterminada, consiste em um modo claro de operar sob o viés de um estado de exceção. Como argumenta Butler (2006, p. 68), quando o governo norte-americano afirma atuar de acordo com a doutrina em relação ao

13

O estado de exceção para Agamben (2004, p. 61 e 80) é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei. [...] A força de lei separada da lei, o imperium flutuante, a vigência sem aplicação e, de modo mais geral, a ideia de uma espécie de “grau zero” da lei, são algumas das tantas ficções por meio das quais o direito tenta incluir em si sua própria ausência e apropriar-se do estado de exceção ou, no mínimo, assegurar-se uma relação com ele.

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tratamento “humanitário” dos prisioneiros de Guantánamo, decidem unilateralmente o que é “humanitário”, o que desafia, abertamente, a definição de tratamento humanitário estabelecido pela Convenção de Genebra. Conforme destaca Butler (2007, p. 228), quando Rumsfeld afirma que essa não é uma situação regular, já que os Estados Unidos estão combatendo uma organização terrorista e não um país, infere que o caráter extraordinário do terror justifica a suspensão da lei no próprio ato de reagir ao terror. Em sua visão, o aprisionamento desses soldados violentos se justificaria na medida em que eles estão combatendo permanentemente e não representam nenhum país — irrefreáveis poços de violência incivilizada. Eles estão à margem da lei,fora do quadro de referência de países em guerra concebido pela lei, e portanto à margem dos protocolos que regulam o conflito civilizado. (BUTLER,

Nesse sentido, os detidos em Guantánamo são partes ilegítimas que, conforme estabelece a política antiterrorista, não teriam o direito de gozar da proteção das Convenções de Genebra, o que, em conjunto, obsta também a exigência do cumprimento aos direitos humanos normatizados pelo Sistema Global de proteção aos Direitos Humanos. A doutrina acerca do alcance dos mecanismos do Sistema Global de Proteção, através da ONU e de seus respectivos órgãos, advoga de forma favorável a uma efetiva atuação deste no sistema interno dos Estados. Conforme ressalta Cançado Trindade (1997, p. 41), o cumprimento das obrigações internacionais de proteção requer o concurso dos órgãos internos dos Estados, que são efetivamente chamados a aplicar as normas internacionais. Estas últimas de aplicam sobretudo no âmbito do ordenamento jurídico interno dos Estados, não mais portanto se justificando que, no presente domínio de proteção, o direito internacional e o direito interno continuem sendo abordados de forma estática e compartimentalizada como foram outrora.

A Carta das Nações Unidas, por sua vez, explicita nos artigos 103 e 104 uma cláusula de supremacia em relação ao construto normativo de proteção aos direitos humanos face ao direito interno dos Estados, ressaltando que, no caso de conflito entre as obrigações dos Membros das Nações Unidas e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta das Nações Unidas. Ainda, dispõe que a Organização gozará no território de cada um de seus Membros, da capacidade jurídica necessária ao exercício de suas funções e à realização de seus propósitos.

215

No entanto, conforme se constata na valiosa lição de Luigi Ferrajoli (2002, p. 42), mesmo a ONU, diante de sua inspiração e aspiração universalista, “continua, não só no plano factual, mas também no plano jurídico, a ser condicionada pelo princípio da soberania dos Estados.” Ou seja, - sem ater-se à discussão acerca da soberania dos Estados em face ao Direito Internacional, como ressalta Ferrajoli (2002, p. 43), - e já citado anteriormente – “o ordenamento internacional hodierno é ineficaz pelo fato de os seus órgãos não mais equivalem a um ‘terceiro ausente’, mas sim a um ‘terceiro impotente’.” Além da sustentação de Ferrajoli, o Sistema Global de Proteção poderia, ainda, ser colocado como um terceiro onipresente, haja vista que, apesar de seu sustentáculo normativo figurar de forma efetiva no direito interno dos Estados cooperativos, não possui coerção suficiente para aplicá-los nos casos de violação aos direitos humanos. Como destaca Bobbio (1992, p. 37-38, “[...] o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los [...].” E, “para protegê-los, não basta proclamálos. [...] O problema real que temos que enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos.” 14 A única medida plausível, no momento, é o exercício de uma pressão em relação a uma tomada de atitude por parte do governo norte-americano pela ONU no 14

Bobbio (1992, p. 37-38, grifo do autor) destaca duas ordens de dificuldades na efetivação dos direitos humanos, a saber: uma de natureza mais propriamente jurídico-política, outra substancial, ou seja, inerente ao conteúdo dos direitos em pauta. A primeira dificuldade dependem da própria natureza da comunidade internacional, ou, mais precisamente, do tipo de relações existentes entre os Estados singulares, e entre cada um dos Estados singulares e a comunidade internacional tomada em seu conjunto. Para retomar uma velha distinção, empregada outrora para descrever as relações entre Estado e Igreja, poder-se-ia dizer – com o grau de aproximação que é inevitável nas distinções muito nítidas – que os organismos internacionais possuem, em relação aos Estados que os compõem, uma vis directiva e não coativa. Ora, quando falamos de proteção jurídica e queremos distingui-la de outras formas de controle social, pensamos na proteção que tem o cidadão (quando a tem no interior do Estado, ou seja, numa proteção que fundada na vis directiva e da vis coativa quanto à eficácia, é um problema complexo, que não pode ser abordado aqui. Limito-me à seguinte observação: para que a vis directiva alcance seu próprio fim, são necessárias, em geral, uma ou outra destas duas condições, melhor sendo quando as duas ocorrem em conjunto: a) o que a exerce deve ter muita autoridade, ou seja, deve incutir, se não temor reverencial, pelo menos respeito; b) aquele sobre o qual ela se exerce deve ser muito razoável, ou seja, deve ter uma disposição genérica a considerar válidos não só os argumentos da força, mas também os da razão. Ainda que toda generalização seja indébita e as relações entre os Estados e os organismos internacionais possam ser de natureza muito diversa, é preciso admitir que existam casos nos quais faltam uma ou outra das duas condições, quando não faltam ambas. E é precisamente nesses casos que se pode verificar mais facilmente a situação insuficiente, e até mesmo de inexistente, proteção dos direitos do homem, situação que deveria ser remediada pela comunidade internacional. O desprezo pelos direitos do homem no plano interno e o escasso respeito à autoridade internacional no plano externo marcham juntos. Quanto mais um governo for autoritário em relação à liberdade dos seus cidadãos, tanto mais será libertário [...] em face da autoridade internacional.

216

sentido de fechar Guantánamo

15.

Constata-se, desta forma, que os mecanismos do

Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos não possuem coercibilidade para interferir na política antiterrorista norte-americana, imperando, em todos os sentidos, um estado de exceção que reflete no âmbito internacional, na medida em que o poder soberano dispõe sobre a vida e morte dos indivíduos sob sua tutela. Como destaca Hannah Arendt (1989, p. 335), o grande perigo que advém da existência de pessoas forçadas a viver fora do mundo comum é que são devolvidas, em plena civilização, à sua elementariedade natural, à sua mera diferenciação. Falta-lhes aquela tremenda equalização de diferenças que advém do fato de serem cidadãos de alguma comunidade, e no entanto, como já não lhes permite participar do artifício humano, passam a pertencer à raça humana da forma como animais pertencem a uma dada espécie de animais.

Tal fundamentação explicita os resultados das prisões irregulares exercidas em Guantánamo, ou seja, uma clara e evidente violação a todos os preceitos internacionais que fundamentam a proteção aos direitos humanos. Logo, para que a arquitetura normativa do Sistema Global possa ser efetivamente estabelecida como essencial na proteção dos direitos humanos, é imprescindível que sejam reconhecidas “pela cultura jurídica e política como uma lacuna, cujo preenchimento é obrigação da ONU e, portanto, dos Estados que as estas aderem” (FERRAJOLI, 2002, p. 54), sendo necessário a ampla e irrestrita cooperação dos Estados-partes, o que não se vislumbra no caso apresentado.

CONCLUSÃO

Os campos de concentração nazistas ofereceram para a humanidade um exemplo concreto acerca dos resultados de um poder soberano sem limites. Os resultados oriundos destas ações promoveram, como observado, um amplo leque de direitos e garantias fundamentais, os quais labutam pelo primado da paz e também 15

No dia 05 de abril de 2013, Navi Pillay, Alto Comissária da ONU para os Direitos Humanos, pediu o fechamento da prisão de Guantánamo por ‘clara violação do direito internacional’ (ONU, 2013). No dia 11 de janeiro de 2016, Especialistas de Direitos Humanos da ONU e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) pediram ao governo dos Estados Unidos para fechar imediatamente o centro de detenção na Baía de Guantánamo e acabar com a impunidade para os abusos realizados em nome da “guerra global do terror”, que incluíram “técnicas de interrogatório aprimoradas” e “rendição extraordinária”. (ONU, 2016).

217

pelo respeito, efetivação e promoção dos direitos humanos em âmbito global. Como base dessa sistemática, deve se ressaltar os órgãos internacionais de atuação, como a Organização das Nações Unidas, suas ramificações e seu papel frente aos objetivos estabelecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Neste sentido, cabe destacar que a arquitetura normativa deste direito pósguerra, de fato, tem-se mostrado efetiva em sua inserção no plano interno dos Estados que a ela aderiram. No entanto, a lacuna referente à efetivação dos fins a que se destina – ou seja, no âmbito prático de atuação, nas atividades relacionadas, principalmente às violações aos direitos humanos –, ainda corre no sentido inverso, tornando-se, por hora, apenas preocupações internacionais. Esta afirmação pode ser observada a partir da posição tomada pela ONU frente às ilegalidades ocorridas na prisão da Baía de Guantánamo, que se resume a uma tomada defensiva, apenas cobrando as mudanças do poder violador. Observa-se que as declarações, pactos e convenções resumem-se a meros instrumentos normativos; “proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos” (AGAMBEN, 2002, p. 134), que apenas tencionam o poder soberano a atuar de determinada forma sem, efetivamente, obrigá-los a cumprir com o estabelecido. Temse, de um modo geral, tal construto normativo como uma ficção jurídica. No entanto, não se pode negar o fato de que o sistema global foi um avanço no que concerne à proteção dos direitos humanos – sem parecer contraditório – pois trouxe à lume a discussão acerca da importância de se estabelecer uma proteção à dignidade humana, mundialmente reconhecida e aceita pelos Estados, a partir dos resultados dos dois maiores conflitos mundiais. Seu papel, em síntese, ainda é incipiente dentro de uma vasta engrenagem movida pelo poder absoluto e irrestrito, a partir do conceito de soberania interna ilimitada. À título de conclusão, a hipótese que sustenta a pesquisa mostra-se verdadeira. Falta ao Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos preencher a lacuna que resulta em sua inoperosidade, ou seja, mecanismos coercitivos que lhe possibilitem agir de forma concreta frente aos Estados violadores do contingente protetivo dos direitos fundamentais. Outrossim, a política contra o terror, reproduz, com reflexos no âmbito internacional, os pressupostos de um estado de exceção, pois ao transpor e violar as 218

garantias tuteladas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, o governo norteamericano mostra que o poder absoluto e ilimitado, que constrói o seu corpo a partir do corpo de seus súditos, mantém aquele temido poder de inscrever em seu direito o direito de dispor da vida e da morte de seus cidadãos. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. ________. Estado de Exceção. Tradução Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. ________. Profanações. Tradução Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. ________. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. _______. Eichmann em Jerusalém. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRASIL. Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993. Promulga os Protocolos I e II de 1977 adicionais às Convenções de Genebra de 1949, adotados em 10 de junho de 1977 pela Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0849.htm. Acesso em 04 jan. 2016. BRASIL. Convenções de Genebra. Disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/normativa_internacional/Siste ma_ONU/DH.pdf. Acesso 04 jan. 2016. BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. ________. O limbo de Guantánamo. Tradução Alexandre Morales. Novos estudos. CEBRAP n. 77. São Paulo. Mar. 2007. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002007000100011&script=sci_arttext. Acesso em 27 dez. 2015.

219

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220

O TRÁFICO DE PESSOAS FRENTE AO SISTEMA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS EUROPEU

Elisandra Benvegnú Efel1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Compreender o tema relacionado ao tráfico de pessoas é uma tarefa complexa, pois o assunto está relacionado a uma série de fatores, dentre os quais estão às oportunidades de trabalho, os fluxos migratórios, à busca por melhores condições de vida, à discriminação e às desigualdades sociais, de gênero, de classe e racial. Ocorre que, o tráfico de pessoas é uma forma de escravidão moderna, com dimensões alarmantes, sendo que diariamente, milhares de seres humanos são comprados e vendidos como mercadoria para fins de exploração sexual, de trabalho escravo, de servidão por dívida, doméstica, serviços forçados, casamento servil, adoção ilegal e extração de órgãos, entre outras. Assim, o tráfico de pessoas é considerado uma grave violação dos direitos humanos, tendo em vista que fere os direitos fundamentais do indivíduo: dignidade, liberdade de ir e vir, integridade física e psicológica, liberdade sexual e de trabalho. Este artigo tem por objetivo examinar o tráfico de seres humanos, fenômeno que se destaca na atualidade por sua complexidade, pelas grandes proporções que tem tomado hodiernamente e pelo estreito vínculo que possui com os fluxos migratórios das últimas décadas, bem como examinar de que maneira o direito à liberdade e a dignidade da pessoa humana, reconhecido na Convenção Europeia de Direitos Humanos, é tratado pela Corte Europeia de Direitos Humanos..

1

A autora é aluna especial do Curso de Mestrado em Direitos Humanos, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, especialista em Direito Processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2009) e em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2010), , graduada em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (2005). Advogada

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1 TRÁFICO DE PESSOAS

O tráfico de pessoas tem assumido grandes proporções nas últimas décadas, faz parte da realidade mundial contemporânea, em que pessoas são negociadas como objetos de comércio, tendo desrespeitada a sua liberdade e dignidade, valores essenciais da pessoa humana. A história do tráfico de pessoas, remete ao tráfico de negros, comumente referido como forma moderna de escravidão, sendo impulsionado pelas desigualdades socioeconômicas das diferentes regiões do mundo, pelos intensos fluxos migratórios, pelo fechamento das fronteiras e pelo enrigecimento da legislação migratória dos países considerados receptores. Com relação ao conceito de tráfico de pessoas não se encontra definição uniforme na doutrina e jurisprudência. No entanto, conforme (JESUS 2003, p. 8) o conceito universalmente aceito do tráfico de pessoas está disposto no Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, promulgado pelo Brasil em março de 2004. Nos termos do artigo 3º do Protocolo: a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos; b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a); c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados "tráfico de pessoas" mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo; d) O termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.

Assim, o Protocolo manifesta que o tráfico de pessoas consiste na coação de pessoas com o fim de exploração sexual, trabalho forçado ou em condições análogas à escravidão, remoção de órgãos ou outros. A pratica do crime de tráfico de pessoas, pode ocorrer de várias maneiras 222

sempre usando a violência física ou moral para tal finalidade, por meio de ameaças à família das vítimas ou até mesmo à própria pessoa. A vítima, ao se ver desamparada e angustiada tende a ser afetada pelo crime. O tráfico de pessoas fere completamente os direitos humanos, tais como os direitos de dignidade, liberdade de ir e vir, integridade física e psicológica, liberdade sexual e de trabalho. A liberdade de ir e vir, sexual, de trabalho, são características dos seres humanos. Como leciona Eduardo Bittar (2008, p.536), “a liberdade, enquanto escolha de valores, é o que dá especificidade à pessoa humana; é só ela em todo o universo que é capaz de criar um mundo contraposto ao da natureza, o mundo ético.”

2 VULNERABILIDADE SOCIAL AO TRÁFICO DE PESSOAS

A vulnerabilidade social ao tráfico de pessoas está associada à violação de direitos humanos, em especial à violação de direitos econômicos, sociais e culturais, previstos na Constituição Federal de 1988, no capítulo sobre direitos fundamentais, nos seguintes termos: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- -se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profi ssionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

223

Ocorre que, a violação a esses direitos se materializa na falta de acesso a serviços de saúde e educação de qualidade, na grande desigualdade social e econômica, na discriminação contra as mulheres e negros, nos índices elevados de desemprego que atingem mais fortemente esses grupos da população, condições inadequadas de moradia e alimentaçã, esses elementos contribuem para o aprofundamento da situação de pobreza e para uma maior vulnerabilidade ao tráfico de pessoas. No entanto, a pobreza é um fator importante para o tráfico de pessoas, mas não é o único, as discriminações enfrentadas por mulheres, negros e outros grupos da população, como os transexuais para realizarem seus projetos de vida, como ter um trabalho reconhecido e um nível de renda satisfatório, também são elementos que colocam essas pessoas em situação de vulnerabilidade ao tráfico. As violações aos direitos humanos ocorrem em desfavor das pessoas que se encontram vulneráveis, assim manifesta Frans Nederstigt: “Uma pessoa vulnerável é um pobre coitado, uma vítima, alguém que precisa de uma esmola e pode (ou não) receber ajuda de uma pessoa de uma casta mais alta. Uma pessoa em uma situação de vulnerabilidade é, em princípio, capaz de sair dela, está nela por razões externas e pode, suficientemente empoderada, exigir um reconhecimento dos direitos dela, mas não é vulnerável como se fosse uma característica da sua própria pessoa. Resumindo: a pessoa (ou um grupo de pessoas) em si mesmo não é vulnerável, mas pode se encontrar em uma situação de exploração, de negação da sua dignidade, de violações de direitos humanos (econômicos, sociais e culturais)”. Assim, um conjunto de violações de direitos pode contribuir para que as pessoas entrem em situações em que estas violações se aprofundam e se agravam. Nos casos de tráfico de pessoas, as vítimas são submetidas a diferentes tipos de violações de seus direitos fundamentais que reforçam sua situação de vulnerabilidade. As violações de direitos humanos, fragiliza a percepção das vítimas sobre a condição de exploração e violência em que se encontram, danificando qualquer ação, iniciativa ou desejo de romper do ciclo da violência., o que pode ser definido como abuso da situação de vullnerabilidade. O Protocolo de Palermo, art. 3º, alínea “a”, define o abuso da situação de 224

vulnerabilidade como: “qualquer situação em que a pessoa em causa não tem alternativa real e aceitável senão submeter-se ao abuso em questão”. No entanto, as pessoas vítimas de tráfico, de alguma forma constante ou temporária, sofre de violação de seus direitos humanos, sociais, culturais e econômicos, o que converge para a conformação de grupos ou pessoas em situações de vulnerabilidade ao tráfico de pessoas. Desta forma, enfrentar o tráfico de pessoas exige, uma reflexão sobre as situações de vulnerabilidade, que segundo a OIT, são 1) reconhecer toda a dimensão da situação de vulnerabilidade, uma vez que não há indivíduos vulneráveis, mas situações de violação de direitos humanos; 2) reconhecer as desigualdades sociais, de gênero e raça ainda existentes no Brasil e a necessidade de desenvolver políticas públicas para seu enfrentamento, principalmente políticas de promoção do trabalho e emprego; e 3) na esfera internacional, reconhecer a necessidade de realizar um amplo debate sobre as migrações, principalmente as migrações em busca de melhores oportunidades de trabalho, encarando-a como um direito e desenvolvendo medidas de gerenciamento, com vistas a soluções de longo prazo.

Além do mais, todos os seres humanos, independentemente das diferenças biológicas e culturais que os diferenciam, merecem o mesmo respeito, tendo em vista que nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação pode considerar-se, de forma alguma, superior aos demais.

3 DIREITOS HUMANOS E A QUESTÃO DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS

A concretização dos direitos humanos, do direito a liberdade e a dignidade da pessoa humana, é a maior busca da humanidade, como forma de proteger e garantir a sadia qualidade de vida. Com relação aos direitos humanos, vale citar os ensinamentos de FLAVIA PIOVESAN, p. 171 : ... os direitos humanos nascem quando devem e podem. Como realça Noberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nemem face dos bsolutismos, advenham do Estado, do setor privado ou mesmo da esfera doméstica de uma vez por todas. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Simbolizam os direitos humanos, para parfrasear Luigi Ferrajoli, a lei do mais fraco contra a lei do mais forte, na expresão de um contrapoder , conforme

225

manifesta BOBBIO, os direitos humanos

A concepção contemporenea de direitos humanos, foi introduzida pela Declaração Universal de 1948, que foi marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos, conforme ensina Flávia Piovesan, p. 171, 172. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e digndade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também são. Os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. Sob esta perspectiva integral identificam-se dois impactos: A) a inter-relação e interdependência das diversas categorias de direitos humanos; e b) a paridade em grau de relevância de direitos sociais, econômicos e culturais e de direitos civis e políticos.

O tráfico de seres humanos representa uma violação dos Direitos Humanos, sendo um problema global que requer respostas, que permitam a prevenção e o controle desse crime, conforme o representante do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime(UNODC) Giovanni Quaglia na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2007, p.39) “No mundo todo, especialmente em países em desenvolvimento, centenas de homens, mulheres e crianças são traficadas ilegalmente. São atraídos pela expectativa de um trabalho bem remunerado em outros países, geralmente aqueles mais ricos”. Os direitos humanos são violados através do tráfico de pessoas, que decorre das vulnerabilidades econômicas, de gênero, sociais, falta de oportunidades. A rede do tráfico de pessoas atua também na fragilização da vítima, seja pela coação de si ou de seus familiares, separando a vítima de sua comunidade, impedindo possibilidades de ajuda; imposição de condições de endividamento; isolamento de qualquer forma de comunicação. Leal (2006, p.183), afirma que “as vítimas são muitas vezes forçadas, através de violência física, a dedicar-se a atos sexuais ou realizar trabalhos similares à escravidão. Essa força inclui o estupro e outras formas de abusos sexuais, tortura, fome, prisão, ameaças, abusos psicológicos e coerção”. Também, os aliciadores do tráfico de pessoas agem no convencimento das vítimas de serem as principais culpadas por estarem em tal situação, fazendo com que 226

a maioria das pessoas traficadas desconheça sua condição de vítima e os direitos de que é detentora.

4 O SISTEMA EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS E SUA INTERPRETAÇÃO QUANTO AO TRÁFICO DE PESSOAS

Considerando que, após o fim da Segunda Guerra Mundial ficou evidente a necessidade de criação de mecanismos que garantissem os direitos humanos. Assim, em 1945 foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1948, foi criada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é o principal documento, em termos de direitos humanos,

e defende a universalidade, a indivisibilidade e a

interdependência dos direitos. Esse documento surgiu como uma resposta a todas as atrocidades vividas pelo mundo. Com relação, a esse período da história mundial, Piovesan, refere que: No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que é cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável (2014a, p. 43).

Assim, nasce a necessidade de proteger o ser humano como tal e o conjunto dos seres, e não mais apenas as minorias ou aqueles em situação de necessidade, mas todos, garantindo-lhes a salvaguarda dos seus direitos e de suas garantias (CANÇADO TRINDADE, 2000). A proteção aos direitos humanos em termos internacionais, buscando proteger os direitos fundamentais e limitando o poder do Estado – até então senhor supremo das decisões e proteções. Esse processo de universalização desencadeado pela Declaração fez com que vários tratados internacionais fossem assinados entre os países, demonstrando interesse conjunto na busca da paz social e do consenso internacional (PIOVESAN, 2014a). Neste sentido, importa citar as palavras de Cançado Trindade: Longe de operarem de modo estanque ou compartimentalizado, o Direito Internacional e o direito interno passaram efetivamente a interagir, por força das disposições de tratados de direitos humanos atribuindo expressamente funções de proteção aos órgãos do Estado, assim como da abertura do Direito Constitucional contemporâneo aos direitos humanos internacionalmente consagrados. Desvencilhando-se das amarras da

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doutrina clássica, o primado passou a ser da norma – de origem internacional ou interna – que melhor protegesse os direitos humanos (2000, p. 26).

Os Sistemas Regionais de proteção, surgiram com finalidade de buscar a internacionalização dos direitos humanos de forma regionalizada. Sobre eles necessário mencionar o entendimento de PIOVESAN. Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos no plano internacional. Nessa ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, tais sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Essa é, aliás, a lógica e a principiologia próprias do Direito dos Direitos Humanos (PIOVESAN, 2014a, p. 48).

Desta forma, os Sistemas Regionais auxiliam a promoção dos direitos humanos, uma vez que, envolvendo um número menor de Estados, a possibilidade de encontrar o consenso é maior; além disso, a aceitação é geralmente mais espontânea, já que reflete, nos textos e nas normas regionais, as peculiaridades e as necessidades da região envolvida (PIOVESAN, 2014a). Com relação, ao sistema europeu, este conta com a Convenção Européia de Direitos Humanos assinada em 1950, a qual estabeleceu a Comissão e a Corte Européias de Direitos Humanos. Depois que entrou em vigor, foram adicionados vários protocolos à Convenção. Entre eles está nº 11, que entrou em vigor em 1998, tornando-se importante ao modificar o mecanismo de controle, estabelecendo a fusão da Comissão com a Corte de Direitos Humanos e também que qualquer pessoa física ou ONG pode se submeter à Corte Européia quando da violação de direitos estabelecidos na Convenção. É evidente que como decorrência desse avanço do sistema regional europeu de direitos humanos alguns problemas também aparecem. O mais significativo deles é o aumento extraordinário de demandas apresentadas (agora, diretamente, pelos indivíduos) à nova Corte Europeia, a qual decidiu apenas em seus dois primeiros anos de funcionamento (838 decisões) mais do que a sua predecessora em 39 anos de existência (837 decisões). A Corte é hoje vítima de seu próprio sucesso, com estrutura e recursos insuficientes para enfrentar o volume diário de demandas. 228

È neste contexto que houve a adoção do Protocolo nº 14, que entrou em vigor em 1º de junho de 2010, concernente a novos critérios de admissibilidade assegurando à Corte mecanismos de maior seletividade dos casos com vistas à maior eficiência decisória. O mais importante a ser ressaltado é que a atuação da Corte Européia de Direitos Humanos está sendo cada dia mais eficiente, posto que os Estados participantes estão cumprindo suas medidas, modificando procedimentos e instituições.

5 A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS

A Corte Europeia de Direitos Humanos tem se manifestado sobre diversos temas, tendo julgado casos que envolvem o trafico de pessoa. Assim optou-se por se fazer a análise de dois casos, que são: Rantsev versus Chipre e Rússia e o Caso Siliadin versus França . No caso Rantsev versus Chipre e Rússia, julgado em 2010, o Tribunal foi levado a analisar a questão do tráfico pessoas para fins sexuais na Europa, onde foi alegada violações da Convenção Européia de Direitos Humanos (Artigo 2, Artigo 3, Artigo 4 e Artigo 5). O julgamento é centrado na violação do Artigo 4, que diz respeito a trabalho escravo, servidão e trabalho forçado. Em última instância, a Corte considerou ao Chipre o pagamento de 43.150 euros em custos e danos morais, e 2.000 euros em danos para a Rússia. Já o caso Siliadin v. França, julgado em 2005, no qual o Tribunal, analisou a questão do tráfico de pessoas para fins de servidão e trabalho forçado, onde foi constada a violação do Artigo 4 da Convenção Européia de Direitos Humanos no que diz respeito à proibição da servidão e de trabalhos forçados.

5.1 Caso Rantsev versus Chipre e Rússia

No caso Rantsev versus Chipre e Rússia, a Corte Europeia analisou o pedido do

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pai de uma jovem que morreu no Chipre, onde ela tinha ido trabalhar em março de 2001, ele ingressou perante a Corte EDH, a fim de responsabilizar os Estados envolvidos, ou seja, Chipre e 585 Rússia. Ele afirmou que a polícia daquele país não tinha feito todo o possível para proteger sua filha de tráfico pessoas para punir os responsáveis por sua morte. Ele também achava que as autoridades russas não tinham investigado o fato de a mulher ter sido traficada e, posteriormente, morta. Ademais, o requerente alegou que as autoridades do Chipre não tomaram as medidas de prevenção do tráfico de pessoas. A Corte Europeia de Direitos Humanos (Corte EDH) observou que, assim como a escravidão, o tráfico de pessoas, dada a sua natureza e fins de exploração, envolve o exercício de poderes comparáveis à posse. Os traficantes tratam o ser humano como um bem que é comercializado e o submetem ao trabalho forçado. Eles devem acompanhar de perto as atividades das vítimas, que na maioria das vezes têm a liberdade cerceada, utilizando vários tipos de violência e ameaça. Assim, a Corte EDH considerou que o artigo 4º, que dispõe sobre a proibição da escravidão e do trabalho forçado da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), proíbe este tipo de tráfico. A) AS CIRCUNSTÂNCIAS O peticionário, Sr. Nikolay Mikhaylovich Rantsev, é um nacional russo que nasceu em 1938 e vivia em Svetlogorsk, Rússia. Ele é o pai de Oxana Rantseva, também de nacionalidade russa, nascida em 1980. Oxana Rantseva chegou ao Chipre em 5 de março de 2001. Em 13 de fevereiro de 2001, XA (iniciais fictícias utilizadas na decisão), o dono de uma casa de prostituição situada em Limassol, havia solicitado uma licença para a jovem trabalhar como "artista". O pedido foi acompanhado de uma cópia do passaporte da Sra. Rantseva, um atestado médico, uma cópia do contrato de trabalho (não assinado pela Sra. Rantseva) e uma carta, assinada por XA agências, nos seguintes termos: KNOW ALL MEN BY THESE PRESENTS that I [X.A.] of L/SSOL Am bound to the Minister of the Interior of the Republic of Cyprus in the sum of £150 to be paid to the said Minister of the Interior or other the [sic] Minister of Interior for the time being or his attorney or attorneys. Sealed with my seal. Dated the 13th day of February 2001 WHEREAS Ms. Oxana RANTSEVA of RUSSIA Hereinafter called the immigrant, (which expression shall where the context so admits be deemed to include his heirs, executors, administrators and assigns) is entering Cyprus and I have undertaken that the immigrant shall not become in need of relief in Cyprus during a period of five years from the date hereof and I have undertaken to replay [sic] to the Republic of Cyprus any sum which the Republic of Cyprus may pay for the relief or support of the immigrant (the necessity for which relief and support the Minister shall be the sole judge) or for the axpenses [sic] of repatriating the immigrant from Cyprus within a period of five years from the date hereof. NOW THE CONDITION OF THE ABOVE WRITTEN BOND is such that if the immigrant or myself, my heirs, executors, administrators and assigns shall repay to the Republic of Cyprus on demand any sum which the Republic of Cyprus may have paid as aforesaid for the relief or Support of the immigrant or for the expenses of repatriation of the immigrant from Cyprus then the

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above written bond shall be void but otherwise shall remain in full force. (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2010, on line) À Sra. Rantseva foi concedida uma autorização de residência temporária como visitante até 09 de março de 2001. Ela ficou em um apartamento com outras mulheres jovens que trabalham na casa noturna de XA. Em 12 de março 2001 foi concedida uma autorização de trabalho até 08 de junho de 2001 como uma “artista” em uma casa noturna de propriedade de XA e gerenciada por seu irmão, MA. A Sra. Rantseva começou a trabalhar em 16 de março de 2001. Em 19 de março de 2001, por volta das 11h e 00min, MA foi informada pelas outras mulheres que viviam com Sra. Rantseva que essa tinha deixado o apartamento e levado todos os seus pertences. As mulheres disseram ao gerente MA que a jovem havia deixado um bilhete em língua russa de que estava cansada e queria voltar para a Rússia. Na mesma data, MA informou ao Escritório de Imigração em Limassol que a Sra. Rantseva tinha abandonado seu local de trabalho e de residência. De acordo com o posterior depoimento de MA, esse queria que a Sra. Rantseva fosse presa e expulsa do Chipre, a fim de que ele pudesse trazer uma outra jovem para trabalhar na sua casa de prostituição. No entanto, o nome da Sra. Rantseva não foi inscrito na lista de pessoas procuradas pela polícia. B) OS ACONTECIMENTOS DE 28 DE MARÇO DE 2001 Em 28 de março de 2001, por volta das 04h e 00min, a Sra. Rantseva foi vista em uma discoteca em Limassol por um outro artista da casa noturna. Ao ser informado pelo artista que a Sra. Rantseva estava na discoteca, MA chamou os policiais e pediu-lhes para prendê-la. Ele foi para a discoteca junto com um segurança de sua casa noturna. Um funcionário da discoteca trouxe a Sra. Rantseva até a presença de MA. MA levou a Sra. Rantseva à delegacia Limassol, onde dois policiais estavam no plantão. Ele fez uma breve declaração sobre as circunstâncias da chegada da Sra. Rantseva no Chipre, seu emprego e seu posterior desaparecimento do apartamento, ocorrido em 19 de março de 2001. Os policiais foram solicitados a investigar se a Sra. Rantseva era imigrante “ilegal”. Após a consulta, os policiais declararam que o seu nome não constava no banco de dados de pessoas procuradas. Informaram, ainda, que não havia registro de reclamação de 19 de março de 2001. Ademais, falaram que em qualquer caso, a pessoa não se tornou ilegal até 15 dias após a realização da denúncia. Os policiais solicitaram que MA levasse a Sra. Rantseva. MA recusou-se. Mas, depois, mudou de ideia e conduziu a jovem para o apartamento do MP, um trabalhador (sexo masculino) de sua boate. MP afirmou que deixou seu trabalho na boate "Zygos" em Limassol em cerca de 3h e 30min e foi para a boate "Titanic" para beber (bebida alcoólica). Após a sua chegada, ele foi informado de que a garota que eles estavam procurando, de origem russa, estava no interior da casa noturna. Então, MA chegou, acompanhado por um guarda de segurança de sua boate, e pediu aos funcionários de "Titanic" para trazerem a jovem para a entrada. MA, Sra. Rantseva e o segurança, em seguida, seguiram no veículo para o apartamento de MP. Por volta das 04h e 30min, MP voltou para casa e foi dormir. Por volta das 06h e 00min sua esposa o acordou e informou que MA chegou com a Sra. Rantseva e que eles iriam ficar até que o Escritório de Imigração abrisse. Em seguida, ele adormeceu. DP afirmou que MA trouxe a Sra. Rantseva ao apartamento por volta das 05h e 45min. Ela preparou o café e MA falou com o marido na sala de estar. MA, então, pediu DP para fornecer à Sra. Rantseva um quarto para que pudesse descansar um pouco. DP afirmou que a jovem parecia bêbada e não queria beber ou comer qualquer coisa. De acordo com a DP, ela e seu marido foram dormir por volta das 06h e 00min, enquanto MA ficou na sala de estar. Tendo feito sua declaração, DP mudou sua descrição inicial dos

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acontecimentos, afirmando que seu marido estava dormindo quando MA chegou ao seu apartamento com a Sra. Rantseva. Ela afirmou que havia ficado com medo de admitir que tinha aberto a porta do apartamento sozinha. Por volta das 06h e 30min de 28 de março de 2001, a Sra. Rantseva foi encontrada morta na rua. Sua bolsa estava por cima do ombro. MA alegou que acordou às 7h e 00min, a fim de levar a Sra. Rantseva para o Escritório de Imigração. Ele chamou DP e MP e ouviu DP dizendo que a polícia estava na rua em frente ao prédio. Eles olharam no quarto, mas Sra. Rantseva não se encontrava. Eles olharam para fora da varanda e viram um corpo na rua. Mais tarde, ele descobriu que era a Sra. Rantseva. DP alegou que ela foi acordada por MA, que estava batendo à sua porta para lhe dizer que a Sra. Rantseva não estava em seu quarto e que eles deveriam observá-la. Ela examinou todo o apartamento para e, em seguida, percebeu que a porta da varanda do quarto estava aberta. Ela saiu para a varanda e viu a colcha e, assim, percebeu o que a Sra. Rantseva tinha feito. Ela foi para outra varanda e viu um corpo deitado na rua, coberto por um lençol branco e cercado por policiais. MP afirmou que foi acordado pelo barulho em torno de 07h e 00min e viu sua esposa em estado de choque; ela lhe disse que a Sra. Rantseva tinha caído da varanda. Ele entrou na sala, onde viu MA e alguns policiais. C. OS DIREITOS VIOLADOS O caso teve origem no procedimento n. 25965/04, de 26 de maio de 2004, em que o cidadão russo Nikolay Mikhaylovich Rantsev ingressou contra as Repúblicas de Chipre e da Rússia na Corte EDH, nos termos do artigo 34 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Convenção Europeia de Direitos Humanos – CEDH). O pedido foi apresentado pelo advogado Sr. L. Churkina. O Governo do Chipre foi representado pelo Sr. P. Clerides, Procurador-Geral da República de Chipre. O Governo da Rússia foi representado por seu agente, o Sr. G. Matyushkin. A petição reclamou a violação nos termos dos artigos 2º, 3º, 4º, 5º e 8º da CEDH (a falta de investigações necessárias sobre as circunstâncias da morte da filha do peticionário; a falta de proteção adequada da filha pela polícia do Chipre, enquanto ela estava com vida; o insucesso das autoridades do Chipre a tomar medidas para punir os responsáveis pela morte de sua filha e maus-tratos) e nos termos dos artigos 2º e 4º (a falha dos autoridades russas para investigar as alegações de morte da filha do peticionário; o tráfico de pessoa; a adoção de medidas para protegê-la do risco de tráfico). Ademais, o peticionário alegou, sob a tutela do artigo 6.º da CEDH sobre os procedimentos inquérito e a falta de acesso à justiça no Chipre. D) A DECISÃO DA CEDH O artigo 2º da CEDH dispõe sobre o direito à vida. O artigo 4º da CEDH dispõe sobre a proibição da escravatura e do trabalho forçado. Esse artigo impõe aos Estados a obrigação negativa de modo que não haja violação dos direitos nele garantidos, e uma obrigação positiva de adotar as disposições em matéria penal que sancionem essas práticas violadoras de direitos humanos. Embora a CEDH não apresente o conceito de escravidão, a Corte EDH interpretou o instrumento à luz da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados (1969), da harmonia com as legislações dos Estados e dos princípios de direito internacional. Assim, a Corte EDH acolhe (Caso Siliadin versus França, n. 73316/01) a definição constante no artigo 7º, alínea “a”, da Convenção Suplementar para a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura (1956). A definição para a escravidão é: estado ou condição de um indivíduo sobre o

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qual se exercem atributos do direito de propriedade ou alguns destes”; e de escravo é: “o indivíduo que tem este estatuto ou esta condição” (de propriedade). Lamentavelmente, a CEDH não menciona a expressão “tráfico de pessoas”, porém foi elaborada inspirada na Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), que proíbe em seu artigo 4º “a escravidão e o tráfico de escravos em todas as suas formas”. A Corte EDH considera que o tráfico de pessoas, por sua própria natureza e finalidade de exploração, baseia-se no exercício dos poderes relativos ao direito de propriedade. Esse crime trata as pessoas como mercadorias que podem ser vendidas e submetidas a trabalhos forçados, muitas vezes, por quantias ínfimas ou sem nenhum pagamento, geralmente, na indústria do sexo, mas também com outras formas de exploração. Esse flagelo implica uma estreita vigilância das atividades das vítimas, cujos movimentos são monitorados pelos algozes. O crime envolve o uso de violência, ameaças contra as vítimas, etc. O Caso Rantsev versus Chipre e Rússia enquadra-se de modo perfeito sobre a matéria. A Corte EDH entendeu que o tráfico de pessoas deve ser compreendido como uma forma de escravidão, dada a evolução do assunto com o passar dos séculos, bem como à luz da definição contida no artigo 3º do Protocolo de Palermo (2000) e na Convenção Anti- Tráfico do Conselho da Europa (2005). Ademais, conforme decidido pela Corte EDH, o tráfico de pessoas viola a dignidade humana, sendo uma ofensa às liberdades fundamentais de suas vítimas. 282. Il ne peut y avoir aucun doute quant au fait que la traite porte atteinte à la dignité humaine et aux libertés fondamentales de ses victimes et qu’elle ne peut être considérée comme compatible avec une société démocratique ni avec les valeurs consacrées dans la Convention. Eu égard à l’obligation qui est la sienne d’interpréter la Convention à la lumière des conditions de vie actuelles, la Cour estime qu’il n’est pas nécessaire de déterminer si les traitements qui font l’objet dês griefs du requérant constituent de l’«esclavage», de la «servitude» ou un «travail forcé ou obligatoire». Elle conclut purement et simplement qu’en elle-même, la traite d’êtres humains, au sens de l’article 3 a) du Protocole de Palerme et de l’article 4 a) de la convention anti-traite du Conseil de l’Europe, relève de la portée de l’article 4 de la Convention. En conséquence, elle rejette l’exception pour incompatibilité ratione materiae soulevée par le gouvernement russe. (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2013, p. 203) No tocante ao dever de o Estado investigar potenciais situações de tráfico de pessoas, a Corte EDH afirmou ser uma obrigação de resultado, vez que, assim que a autoridade estatal tomar conhecimento do risco iminente do crime, deverá adotar as medidas para investigar esses casos que possivelmente envolvam o tráfico. Ademais, destacou que essa investigação deve ser independente e imparcial, identificando os culpados e punindo-os. 288. De même que les articles 2 et 3, l’article 4 impose une obligation procédurale d’enquêter sur les situations de traite potentielle. L’obligation d’enquête ne dépend pas d’une plainte de la victime ou d’un proche: une fois que la question a été portée à leur attention, les autorités doivent agir (voir, mutatis mutandis, Paul et Audrey Edwards, précité, § 69,). Pour être effective, l’enquête doit être indépendante dês personnes impliquées dans les faits. Elle doit également permettre d’identifier et de sanctionner les responsables. Il s’agit là d’une obligation non de résultat, mais de moyens. Une exigence de célérité et de diligence raisonnable est implicite dans tous les cas mais lorsqu’il est possible de soustraire l’individu concerné à une situation dommageable, l’enquête doit être menée d’urgence. La victime ou le proche doivent être associés à la procédure dans toute la mesure nécessaire à la protection de leurs intérêts légitimes (voir, mutatis mutandis, ibidem, §§ 70-73). (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2013, p. 205)

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A Corte EDH, tendo por base os documentos internacionais, da União Europeia, bem como todos os argumentos acima comentados, analisou o Caso ora estudado do seguinte modo: a) CHIPRE I. Obrigação positiva para colocar em prática um quadro legislativo e administrativo adequado A Corte EDH observa que a legislação do Chipre proíbe o tráfico de pessoas e a exploração sexual, conforme ratificação do Protocolo de Palermo (2000). A lei prevê o dever de proteger as vítimas. A Corte EDH considera esse flagelo humano uma preocupação. Outrossim, o quadro administrativo, jurídico e a política imigratória do Chipre possuem várias deficiências. Esses problemas têm ocasionado um impulso ao tráfico de mulheres. Por exemplo, a maneira fácil de concessão de um visto de “dançarina” ou “artista”, tem ocasionado muitos problemas, incluindo a não proteção das possíveis vítimas de tráfico para exploração sexual. Esse foi o caso da Sra. Rantseva, que a Corte EDH compreendeu que houve a violação ao artigo 4º da CEDH. II. Obrigação positiva para tomar medidas de proteção Em seu relatório de 2006, o Comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa observou que as autoridades tinham conhecimento de que muitas das mulheres que entraram no Chipre com o visto de “artistas” iriam trabalhar na prostituição. A Corte EDH entendeu que não restam dúvidas de que as autoridades cipriotas estavam cientes de que um número significativo de mulheres estrangeiras, notadamente da Rússia, estariam sendo traficadas para o Chipre, portando o visto de “artistas” e, na chegada, estavam sendo exploradas sexualmente por proprietários e gerentes de casas noturnas (boates). A Corte EDH destacou que a Sra. Rantseva foi conduzida pelo seu empregador a uma delegacia de Limassol. Ao chegarem, MA declarou à polícia que a Sra. Rantseva era uma cidadã de nacionalidade russa e que foi contratada como artista de casa noturna. Ademais, MA explicou que ela tinha chegado recentemente no Chipre, abandonado o emprego sem avisar e saído do alojamento. MA entregou o seu passaporte da jovem aos policiais. O Tribunal entendeu que existiam indicadores suficientes para as autoridades policiais, no contexto geral das questões de tráfico em Chipre, vez que tiveram conhecimento das circunstâncias que dão origem a uma suspeita dotada de credibilidade de que a Sra. Rantseva era uma vítima iminente de tráfico ou exploração sexual. Desse modo, uma obrigação positiva surgiu para investigar imediatamente e tomar as medidas operacionais necessárias para proteger a Sra. Rantseva, o que não ocorreu, na medida em que, durante a chegada da Sra. Rantseva e MA à delegacia, os policiais nada questionaram. As falhas das autoridades policiais, neste caso, foram várias: a) os policiais não conseguiram fazer investigações imediatas para saber se a Sra. Rantseva tinha sido traficada; b) os policiais não colocaram a jovem em liberdade, mas decidiram entregá-la, como se fosse um objeto, ao MA; c) nenhuma tentativa foi feita para dar cumprimento às disposições do Protocolo de Palermo (2000), de tomar qualquer das medidas previstas para protegê-la. A Corte entendeu que houve uma violação do artigo 4º. III. Obrigação processual de investigar o tráfico A Corte, considerando as circunstâncias da morte da Sra. Rantseva, entendeu que a obrigação de investigar o crime incumbe às autoridades cipriotas, que deveriam ter conduzido uma investigação eficaz sobre as denúncias de tráfico e, consequentemente, sobre a morte da Sra. Rantseva. B) RÚSSIA I. Obrigação positiva para colocar em prática um quadro legislativo e

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administrativo adequado A Corte observou que a responsabilidade da Rússia é restrita aos atos que envolviam sua jurisdição. Apesar de o direito penal não prever especificamente o delito de tráfico na altura dos fatos, o Governo russo argumentou que a conduta sobre a qual o requerente argumentou estava inserida nas definições de outros delitos. O requerente não apontou para qualquer deficiência nas disposições penais da Rússia. Ademais, os quadros administrativo e jurídico são amplos. A Corte destacou que a Rússia deveria orientar as suas autoridades para divulgarem os riscos do tráfico de pessoas por meio de uma campanha de informação (mídia). A Corte EDH não considerou o quadro jurídico e administrativo deficientes na Rússia e que em nada influenciou a proteção da Sra. Rantseva. II. Obrigação de tomar medidas de proteção O Tribunal não considerou que as circunstâncias do caso seriam motivo de dar origem a uma obrigação positiva por parte das autoridades russas para tomarem medidas para a proteção da Sra. Rantseva. Assim, a Corte compreendeu que não houve violação do artigo 4º por parte da Rússia. III. Obrigação processual de investigar o tráfico de pessoas A Corte destacou que as autoridades russas não deram início a uma investigação sobre “como e onde” a Sra. Rantseva fora recrutada. As autoridades não tomaram nenhuma medida para identificar os envolvidos na fase inicial do tráfico da Sra. Rantseva ou os métodos utilizados para levála ao Chipre. O recrutamento ocorreu em território russo. Dessa maneira, as autoridades russas estavam em melhor posição para investigar de modo efetiva acerca do recrutamento da Sra. Rantseva. Desse modo, a Corte EDH entendeu que houve uma violação, por parte das autoridades russas, no tocante à obrigação processual de investigar as circunstâncias em que se deu o tráfico (artigo 4º). Diante disso, em 07 de janeiro de 2010 a Corte EDH assim decidiu (unanimidade): Rússia: não violou o artigo 2º (direito à vida), o artigo 4º – obrigações positivas (dever de tomar medidas operacionais para proteger a pessoa contra o tráfico); violou o artigo 4º (obrigações processuais para investigar o suposto tráfico); Chipre: violou os artigos 4º (dever de proteger a pessoa do crime de tráfico e exploração) e 5º (direito à liberdade e à segurança); Ademais, a Corte decidiu que não seria necessário o exame separadamente da violação do artigo 4º relativo ao constante fracasso das autoridades do Chipre para conduzir uma investigação eficaz. A Corte decidiu que o Governo do Chipre deveria pagar ao requerente, no prazo de três meses, a contar da data em que a decisão se tornasse definitiva, em conformidade com o artigo 44, § 2º da CEDH, EUR 40.000 (quarenta mil euros), relativo ao danos e EUR 3.150 (três mil e cento e cinquenta euros) em relação aos custos e despesas processuais, além de qualquer imposto que pode ser exigível ao requerente em tais valores; (B) que o governo da Rússia deveria pagar ao requerente, no prazo de três meses, a contar da data em que a decisão se tornasse definitiva, em conformidade com o artigo 44, § 2º da Convenção, EUR 2.000 (dois mil euros), a título de danos morais, para ser convertido em moeda russa à taxa em vigor na data de liquidação, além de qualquer imposto que pode ser cobrado ao requerente sobre esse valor.

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5.2 Caso Siliadin v. França (2005)

No caso Siliadin v. França, a Corte Europeia analisou o caso de uma adolescente que sua família tinha dificuldade financeira e lhe foi ofertado melhores condições de vida, o que fora uma armadilha, pois era obrigada a trabalhar por longo período de tempo sem remuneração, insurgindo assim o tráfico de pessoas para fins de servidão e trabalho forçado. Iwa Akofa Siliadin nasceu no Togo, na África Ocidental. Tinha 15 anos em 1994, quando a irmã de uma amiga da família ofereceu-se para levá-la para Paris, prometendo matriculá-la na escola e ajuda para a obtenção do visto de residência. Iwa Akofa era uma adolescente e sua família tinha dificuldades; a perspectiva de ir para Paris era interessante. Ela acompanhou a mulher e entrou na França com um visto de turista, para uma estadia curta. Logo ficou claro, entretanto, que a oferta de matrícula na escola tinha sido uma artimanha. A mulher colocou Iwa Akofa, agora chamada de Henriette, para trabalhar como babá e para limpar a casa. As coisas pioraram quando essa conhecida “emprestou” Henriette para outra família, para realizar os mesmos afazeres. A nova família a mantinha sob restrições ainda maiores e sob rígida vigilância no apartamento em que moravam em Paris. Confiscou seu passaporte e ameaçou-a dizendo que a polícia a prenderia se ela tentasse fugir. De acordo com os registros dos processos judiciais feitos posteriormente, Henriette era obrigada a trabalhar das sete e meia da manhã até dez e meia da noite, todos os dias da semana, sem folga. Eles lhe davam pouca comida — ela acabou ficando anêmica — e proibiam-na de falar com qualquer pessoa fora da família. Ela dormia em um colchão no chão, no quarto do bebê, e nunca recebeu pagamento. Ameaças e documentos No início, Henriette não tinha ideia da possibilidade de questionar as circunstâncias em que vivia, ou como poderia fazê-lo. Ela era intimidada pelo casal que a controlava e não conseguiu obter ajuda de um tio, a quem recorreu uma vez. A família francesa lhe dizia sempre que, por não ter papéis, por não possuir documentos, a polícia poderia prendê-la se tentasse reclamar de sua situação. Depois de quase quatro anos vivendo nessas condições, ela aproveitou o encontro com uma vizinha para pedir ajuda. A vizinha não tinha certeza do que poderia ser feito. Naquele ano de 1998, porém, a França celebrava 150 anos da abolição definitiva da escravidão no império francês (ocorrida em 1848) e a vizinha viu nos jornais a referência ao Comitê Contra a Escravidão Moderna. Ela contatou, então, o comitê, e a polícia apareceu na porta da família para investigar. Em 1999 iniciou-se uma sequência de processos que duraram quase tanto quanto os de Adélaïde, dois séculos antes. O julgamento da acusação contra o casal parisiense baseou-se em dois artigos do Código Penal francês (225-13 e 225-14), um que tornava ilegal extrair trabalho não remunerado ou mal remunerado de uma pessoa vulnerável ou dependente; e outro que tornava um crime sujeitar uma pessoa a condições de vida ou trabalho incompatíveis com a dignidade humana. O juiz rejeitou a acusação de imposição de condições contrárias à dignidade humana, argumentando a insuficiência dos testemunhos para provar tal

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ponto. Mas condenou o casal por explorar uma pessoa vulnerável — nesse caso, menor de idade, estrangeira, cujo passaporte havia sido confiscado. O casal parisiense, senhor e senhora Bardet, foi condenado à prisão. Eles recorreram da sentença e conseguiram que ela fosse reformada, pois os juízes consideraram que Henriette não era assim tão vulnerável — eles argumentaram que, como ela falava francês, poderia ter usado um telefone público para pedir ajuda. Eles tomaram cada indício de mobilidade como evidência contra a acusação de exploração. Corte Europeia de Direitos Humanos Restou apenas uma ação civil por salários atrasados, por meio da qual Henriette recebeu o valor equivalente em salários pelo tempo que trabalhou, com um complemento para recompensar seu trabalho nos dias de folga. Foi nesse ponto que o Comitê Contra a Escravidão Moderna levou o caso a julgamento na Corte Europeia de Direitos Humanos, acusando a França de falta de cumprimento do artigo quarto da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que obriga as nações-membro a proteger as pessoas sob sua jurisdição contra a escravidão e a servidão. É interessante observar que pareceu difícil à Corte Europeia decidir como avaliar a situação. Eles não duvidaram dos registros de trabalho não remunerado, das ameaças e do confisco dos documentos de Henriette. Mas os juízes rejeitaram o argumento de que as condições em que a moça trabalhava eram equivalentes à escravidão. Eles acharam que, para chamar isso de escravidão, teria de ter havido “um verdadeiro direito de propriedade” sobre ela, com a redução da pessoa ao estatuto de objeto. Mas a servidão, tanto quanto a escravidão, é proibida sob o artigo quarto da Convenção Europeia, e a corte julgou o caso como sendo de servidão. A decisão final repreendeu a França por deixar de estabelecer um mecanismo, em sua legislação criminal, que estabelecesse penalidades efetivas para a ação de manter uma pessoa em servidão.

Nos julgados apresentados, e em outros julgados que envolvem o tráfico de pessoas, a Corte Europeia teve a oportunidade de analisar a violação ao direito à liberdade em uma sociedade democrática, onde os traficantes tratam o ser humano como um bem que é comercializado e o submetem ao trabalho forçado e as vítimas, pessoas vulneráveis na maioria das vezes têm a liberdade cerceada, utilizando vários tipos de violência e ameaça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho objetivou ressaltar a problemática enfrentada decorrente do crescente aumento do crime tráfico de pessoas, que dissemina a escravidão, a prostituição, a venda de mulheres e crianças e as condições de trabalho degradantes onde as pessoas são tratadas como instrumento de lucro em vez de pessoas livres e responsáveis, são infâmias que envenenam a sociedade humana e constituem uma suprema desonra ao criador. 237

Infere-se desse breve texto que o tráfico de pessoas para qualquer tipo de exploração é um problema atual e ocorre em todos os países, quer sejam abastados ou em desenvolvimento. O tráfico é um flagelo humano, vez que é uma forma de escravidão e, portanto, constitui-se em uma violação de direitos humanos. Cabe salientar que, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu variados casos envolvendo o tráfico de pessoas, bem como interpretou o que não consta na Convenção Européia de Direitos Humanos à luz da Convenção de Direitos dos Tratados e de outras normas internacionais e regionais. Em vista disso, o Sistema Europeu de Direitos Humanos é um relevante passo para a reivindicação dos deveres de proteção e promoção dos direitos humanos de pessoas em situação de tráfico. No entanto, o crime de tráfico de pessoas somente pode ser minimizado por meio de uma cooperação internacional, que envolva todos os Estados de maneira efetiva, notadamente no tocante à prevenção, assim não podemos cruzar os braços para esse tipo de problema que é o tráfico humano. Por todo o exposto, é essencial se estabelecer um diálogo maior entre as diferentes culturas, reconhecendo-as e respeitando-as, mas também agindo para que mais pessoas não sejam traficadas e tenham violados os seus direitos humanos, garantindo-se a dignidade da pessoa humana, com respeito primordial à vida.

REFERÊNCIAS BITTAR, Eduardo Democracia e Educacao em Direitos Humanos Numa Epoca de Inseguranca. São Paulo: Unesco, 2008, p.536. BOBBIO, Norberto. Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1988. BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2004/Decreto/D5017.htm>.Acesso em: 14 jan. 2016. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 2008 b. BRASIL, Emenda Constitucional 45 de 08 de jan. 2016. BRASIL. Ministério da Justiça. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília, 2016. 238

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http://www.ebah.com.br/content/ABAAAfoFMAA/cidadania-direitos-humanos-2aedicao?part=3

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MIXOFOBIA E DIREITOS HUMANOS: DIREITO PENAL E IMIGRAÇÃO NA UNIÃO EUROPEIA

Camila da Rocha¹ Klarissa Lazzarin de Sá²

INTRODUÇÃO A partir da perspectiva histórica, os movimentos migratórios sempre existiram 1. A migração, individual ou coletiva, é uma forma de comportamento natural que caracteriza as sociedades humanas. O continente europeu, particularmente, foi o cenário de numerosos movimentos migratórios. Tanto que, em território europeu, “no existe un pueblo o una nación que no sea heredero o resultante de una gran migración, pacífica o producto de la dominación bélica.”2 Em um salto histórico relativamente “curto”, pode-se verificar que entre os anos de 1820 até o fim da Segunda Guerra Mundial, como consequência das profundas mudanças provocadas pela transição demográfica, das transformações na agricultura e na propriedade rural e, principalmente, em decorrência dos efeitos sociais da Revolução Industrial, aproximadamente cem milhões de pessoas mudaram de país, sendo que mais da metade migrou para a América em um movimento migratório conhecido pelos europeus como “fazer a América”. Nesse período, o mundo vivenciou aquilo que se pode denominar de “idade da migração em massa”, dirigida a países com baixa população e abundantes recursos naturais3. A era moderna pode ser considerada como a era das grandes migrações, na qual “massas populacionais até agora não calculadas, e talvez incalculáveis, moveramse pelo planeta, deixando seus países nativos, que não ofereciam condições de sobrevivência, por terras estrangeiras que lhes prometiam melhor sorte.”4

1

Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ, Bolsista PIBIC/UNIJUÍ. E-mail: [email protected]. 2 Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ, Bolsista PIBIC/CNPq. E-mail: [email protected]. 3 MARTÍNEZ ESCAMILLA, 2007; MALGESINI; GIMÉNEZ, 2000; LACOMBA, 2008. 4 BAUMAN, 2005, p. 50.

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Considerando, diante desse quadro, que os países nos quais esse “excedente” populacional “disfuncional” se acumulava eram os países que detinham superioridade tecnológica e militar em relação àqueles que ainda não estavam sofrendo os processos modernizantes, a estratégia buscada foi justamente transformar as áreas subdesenvolvidas em áreas “vazias” – notadamente por meio do extermínio massivo dos povos autóctones – que pudessem “acondicionar” esses excedentes. Logo, o processo de extermínio massivo de aborígenes tinha a finalidade de preparar os lugares por eles habitados para desempenhar o papel de “depósitos” do “refugo humano” que o progresso econômico produzia na Europa, em quantidades crescentes5. O fato é que, hoje, com a “vitória da modernidade”, quando o mundo celebra o triunfo do estilo de vida contemporâneo, baseado no livre mercado, na economia e no consumo livres, não se produz gente supérflua apenas na Europa, para depois descarregá-la no resto do mundo: a superfluidade humana é produzida em toda parte, visto que o modelo produtivo moderno se firma em praticamente todos os países6. Com isso, verifica-se um movimento de “retorno”, ou seja, os descendentes das pessoas que outrora foram “despejadas” nos depósitos de refugo humano constituídos pelos países subdesenvolvidos hoje deixam suas cidades superpovoadas na direção oposta, buscando nas grandes cidades dos países europeus a mesma coisa que seus progenitores procuravam ao emigrarem. Dados oriundos de informativo da Oficina de Estatística da Comissão Europeia (Eurostat) apontam que a imigração é o componente principal do crescimento populacional europeu desde 19927. E esses países de destino deparam-se, então, na contemporaneidade, com o dilema de encontrar um jeito de “alojar” os imigrantes, administrando seus interesses com os interesses das suas superpopulações, afinal, estão repletos de gente supérflua também, e já não podem mais enviá-las para outros lugares, pelo simples fato de que “o planeta está cheio, não há mais espaços vazios, e portanto nossos supérfluos ainda estão entre nós.”8 Dos cerca de 500 milhões de pessoas que vivem na União Europeia, 5

BAUMAN, 2005, p. 51 BAUMAN, 2009, p. 81 7 LACOMBA, 2008. 8 BAUMAN, 2009, p. 82. 6

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aproximadamente 20 milhões são cidadãos de países que não pertencem à UE 9. Como consequência, nos últimos vinte anos nos países centrais europeus, a imigração deixou o lugar minúsculo que ocupava no ranking de importância social atribuída às distintas políticas públicas para praticamente encabeçar esta lista hipotética10. A extensão do controle migratório tem se materializado de forma mais saliente na prática política na fronteira marítima do sudoeste da Europa comunitária, uma vez que a intensificação da imigração irregular por meio de embarcações desde meados da década de 1990 até a Espanha, Itália e Malta tem convertido esses países em objetivo excepcional das análises que sobre esta dimensão se realizam no campo das políticas públicas comparadas11. Nesse rumo, “la vigilancia fronteriza y su externalización han sido los dos elementos que mayor desarrollo han experimentado en los últimos años.” 12 Cada vez mais se distinguem os espaços “europeus” dos “não-europeus” e a abertura criada pelo “Espaço Schengen” ad intra constrasta com as restrições que tem sido criadas ad extra13. 1 A União Europeia e sua política migratória: entre o utilitarismo e o repressivismo Em face do contexto delineado nas considerações introdutórias objeta-se: qual a diferença dos atuais movimentos migratórios em relação a movimentos anteriores? A resposta pode ser encontrada na forma por meio da qual os atores institucionais estão tratando a questão na contemporaneidade: enquanto que na “idade da migração em massa” os países de destino, antes de reprimir, fomentavam, por meio de políticas públicas, a imigração, na atualidade verifica-se exatamente o oposto. A imigração é vista como uma “ameaça”, razão pela qual sua gestão se dá em nível de “segurança”, com destaque para o controle das fronteiras e para o reforço dos instrumentos jurídicos e meios materiais que possam potencializar a “luta” contra os imigrantes irregulares. Com isso, “dos pilares fundamentales de cualquier política inteligente de inmigración, cuales son el desarollo de los países emisores y la 9

COMISSÃO EUROPEIA, 2013a, p. 3. LLINARES, 2008, p. 2. 11 LÓPEZ SALA; SÁNCHEZ, 2010. 12 LÓPEZ SALA; SÁNCHEZ, 2010, p. 77. 13 SANTIAGO, 2010, p. 138. 10

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integración, parecen haber sido pasado a un segundo plano incluso en la retórica de política europea de inmigración.”14 Particularmente após os atentados de 11 de Setembro, não se cogita mais o codesenvolvimento, tampouco a integração dos imigrantes. A partir do Conselho Europeu de Sevilha, celebrado em junho de 200215, a imigração passou a ser interpretada e gestada a partir da ideia de segurança: o norte dos debates passou a ser a “‘lucha’ contra la inmigración ilegal mediante el refuerzo del control de fronteras, una estratégia única de asilo y la inclusión de la política de inmigración como parte de la política exterior.”16 Essa mudança no tratamento legal da questão da imigração irregular pelos países integrantes da União Europeia pode ser analisada a partir do discurso proferido por José Luis Rodríguez Zapatero durante a campanha eleitoral para as eleições gerais na Espanha de 9 de março de 2008. Dito discurso serve para sintetizar a política europeia de controle da imigração, que deve buscar alcançar três objetivos principais: “el primero impidiendo que salgan y que se nos aproximen. El segundo, impidiendo que entren, que traspasen nuestras fronteras. Para el caso de que consigan entrar em nuestro territorio, el tercer objetivo sería echarles de él, forzarles a salir.”17 O primeiro objetivo (evitar a saída dos imigrantes de seus países de origem) é buscado por meio do controle dos fluxos migratórios pela Europa fora das suas fronteiras, encarregando a outros países de trânsito a tarefa de contenção da imigração em troca de pressões e ajudas econômicas. A cúpula dos chefes de Estado em Sevilha (Conselho Europeu de Sevilha, celebrado em junho de 2002), conforme já salientado acima, consagrou a luta contra a imigração ilegal como prioridade absoluta da União Europeia em suas negociações com os Estados vizinhos. Isso implica a construção de uma espécie de “cinturão de segurança” frente à imigração, que inclui vários países do sul e do leste18. As ações de controle na origem tem por objetivo, em primeiro lugar, dissuadir

14

MARTÍNEZ ESCAMILLA, 2007, p. 16. O texto integral do Conselho Europeu de Sevilha encontra-se disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2014. 16 MARTÍNEZ ESCAMILLA, 2007, p. 16. 17 MARTÍNEZ ESCAMILLA, 2008, p. 5. 18 BAGGIO, 2010. 15

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os imigrantes e, em segundo lugar, selecioná-los19. Esse controle remoto se dá por meio da política de vistos e dos programas de recrutamento de trabalhadores, combinados com acordos bilaterais de vigilância e readmissão que tem transformado os países de origem e de trânsito em guardiões fronteiriços de territórios alheios. Além disso, as medidas dissuasórias ocorrem por meio de campanhas informativas que tem por objetivo mostrar aos migrantes os perigos das travessias, a exemplo do trabalho desenvolvido a partir do projeto Infomigra20. Somam-se a estas medidas de controle remoto ações de dissuasão coercitiva no trânsito das travessias, as quais pretendem impedir ou dificultar a saída ou o desenvolvimento de uma parte da viagem. Destacam-se, aqui, medidas como a vigilância conjunta das costas africanas por parte da Guarda Civil espanhola e da polícia da Mauriânia e do Senegal, bem como as operações conjuntas coordenadas pela Frontex21 no Mediterrâneo e no Atlântico22. Ademais, os constantes “acidentes” que resultam em morte de imigrantes em áreas de trânsito, marítimas ou terrestres – dos quais o recente caso da Ilha de Lampedusa23, na Itália, é apenas um dentre tantos exemplos mais lamentáveis – não 19

LÓPEZ SALA; SÁNCHEZ, 2010. O projeto Infomigra é financiado pela União Europeia por meio das ações preparatórias do programa “Solidariedade e gestão dos fluxos migratórios”, que é desenvolvido pela Direção Geral de Justiça, Liberdade e Segurança da Comissão Europeia. O projeto foi criado na intenção de desenhar campanhas de conscientização acerca dos perigos da imigração irregular. As campanhas informativas são desenvolvidas junto aos meios de comuniação e às escolas senegalesas e marroquinas e têm por intuito tanto a informação quanto a prevenção da imigração irregular. Além disso, a campanha centra esforços em evitar que os migrantes sejam alvos de redes de tráfico humano. Maiores informações sobre o projeto podem ser obtidas junto ao site: . Acesso em: 22 mar. 2014. 21 A Frontex (Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia) é um organismo da União Europeia tem por objetivo prestar assistência aos países da UE na correta aplicação das normas comunitárias em matéria de controles nas fronteiras externas e de reenvio de imigrantes ilegais para os seus países de origem. Foi criada pelo Conselho (CE) nº 2007, de 26 de outubro de 2004, cujo texto integral encontra-se disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2014. 22 LÓPEZ SALA; SÁNCHEZ, 2010. 23 Em 03 de outubro de 2013, mais de 360 imigrantes – em sua maioria eritreus e somalis – morreram em um naufrágio do barco de pesca que os transportava nas proximidades de Lampedusa, no sul da Itália. O barco transportava cerca de 500 imigrantes. De acordo com dados divulgados no site da BBC Brasil, em investigações posteriores ao naufrágio, a polícia italiana constatou que esse imigrantes pagaram milhares de dólares para a quadrilha de atravessadores para poder realizar a travessia. Esse grupo criminoso levava os migrantes através do Deserto do Saara para a Líbia, onde eles ficavam detidos em um acampamento até pagarem ao menos US$ 3 mil, de acordo com a investigação. Além disso, os imigrantes que sobreviveram à tragédia disseram à polícia que tortura e estupros ocorreram nesse acampamento. Informações disponíveis em: . Acesso em 14 fev. 2014. 20

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tem servido para frear e tampouco criar uma atmosfera de desalento entre aqueles que ainda pretendem migrar. Eles apenas colocam em evidência, para além do descaso absoluto para com a tutela dos direitos humanos dos migrantes, a ineficácia das técnicas de mera proibição que tem orientado as políticas migratórias comunitárias. O segundo objetivo a ser alcançado pela política migratória europeias (evitar a entrada dos imigrantes) traduz-se na tentativa de impermeabilização das fronteiras comunitárias de forma a evitar o ingresso dos imigrantes. Essas ações se fazem mais intensas na fronteira, “donde se ha implantado tecnología eficaz para la identificación y la detección de documentación fraudulenta con el fin de permitir o prohibir la entrada y frenar el número de inmigrantes irregulares que llegan de forma inadvertida.” Além disso, “en el interior de los estados receptores, el control interno há incorporado la creación de bases de datos biométricas, el aumento de las acciones policiales de identificación y ‘la investigación’ de los matrimonios mixtos.”24 Com efeito, desde o ano 2000 os fluxos se intensificaram: entre 2000 e 2003 se produziu a grande imigração equatoriana e colombiana e, a partir de 2003, houve o incremento da imigração marroquina e da silenciosa imigração romena. Houve anos em que o número de imigrantes superava o de 500 mil. Mesmo assim, o controle remoto nesses períodos mostrou-se relativamente débil, o que permite a afirmação de que o modelo de imigração irregular que impera na Espanha – a exemplo do que também ocorre nos demais países comunitários – e que supõe que a irregularidade é uma condição habitual nas trajetórias migratórias tem sido consequência da ação, ou melhor, da falta de ação política. Com efeito, as dificuldades e a escassez de vias para o ingresso legal, apesar da demanda e da criação de uma política de quotas, forçaram a entrada de muitos migrantes com visto de turista através das fronteiras aéreas e terrestres, com a indiferença – ou até mesmo com a cumplicidade – do Estado25. Em boa parte, esse quadro pode ser explicado a partir da arguta observação de que existem duas espécies de imigração, quais sejam, a “boa” e a “má”: existe una buena inmigración, los países de la Unión deben poder beneficiarse de ella, esta inmigración ‘elegida’ debe responder a las necesidades económicas de Europa y no tiene vocación a ser permanente; existe una mala inmigración, esta inmigración ‘sufrida’, no corresponde a las necesidades de la Unión Europea, es portadora de inseguridade y 24 25

LÓPEZ SALA; SÁNCHEZ, 2010, p. 83. LÓPEZ SALA; SÁNCHEZ, 2010.

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criminalidad, debe ser combatida. De ahí la obsesión de limitar la inmigración en dirección de Europa, al tiempo de querer atraer una inmigración de la que se tendría necesidad26.

Essa “boa imigração” deve-se ao fato de que os imigrantes sujeitam-se à realização de trabalhos que no geral ninguém, nos países de destino, quer assumir. Além disso, a “boa imigração” também abrange os “sem papéis”, visto que, em relação a eles, a exploração laboral é ainda maior em virtude do fato de que têm de trabalhar às escondidas, ganhando, em troca, uma pequena quantidade de dinheiro. Assim, esses indivíduos acabam se tornando objeto de chantagem e exploração e é isso que se encontra por detrás dos “sem papéis”: ao passo que não possuem nenhum tipo de direito, suas atividades e prestações são funcionalmente indispensáveis, não só para a sobrevivência deles próprios e de suas famílias que vivem no outro lado da fronteira, mas também “ante todo, para la supervivencia de las sociedades del bienestar occidentales y de los países emergentes.”27 Menciona-se, a propósito, a existência de uma espécie de “exército de reserva” de mão de obra constituído pelos imigrantes irregulares, que seria perfeitamente desejável em virtude da ausência de direitos trabalhistas28. Essa exploração, no caso dos imigrantes em situação irregular, é maior, pois o labirinto de medo e desconfiança em que vivem aumenta sobremaneira a sua vulnerabilidade. Logo, o componente mais relevante do modelo de regulação da imigração – tanto no caso europeu em geral quanto particularmente no caso espanhol – é a sua dimensão laboral, sendo o imigrante contemplado como mão-de-obra: “cuántos y qué inmigrantes estamos dispuestos a aceptar es algo a determinar em atención fundamentalmente a las necesidades de nuestro mercado laboral.” 29 Com isso, cada vez mais se assiste a um processo de estrangeirização do imigrante: ao se negar as possibilidades de que ele seja um migrante “de verdade”, livre em seu projeto migratório, acaba-se por estigmatizá-lo como “diferente” e a considerá-lo apenas como um trabalhador (in)útil para o mercado de trabalho30. Recentemente, em virtude das sucessivas crises econômicas pelas quais tem 26

BARGE, 2008, p. 7. BECK, 2010. 28 CALAVITA, 2004. 29 MARTÍNEZ ESCAMILLA, 2007, p. 22-23. 30 DE LUCAS, 2003. 27

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passado a União Europeia, a influência da economia sobre as políticas de controle dos fluxos migratórios tem se mostrado ainda mais evidente. Analisando-se a questão a partir do momento em que começa a se verificar nos países da então Comunidade Europeia, em meados da década de 1970, a crise do modo de regulação fordista, os migrantes passam paulatinamente a perder a centralidade produtiva e, em tal medida, também a centralidade social e política, “de modo que la inmigración deja de ser contemplada primordialmente como un factor de desarollo, y pasa ser vista ante todo como un problema, como un hecho antitético al actual modelo de evolución social, que debe ser gestionado fundamentalmente desde la perspectiva del control.”31 Com efeito, os empregos precários, mal-remunerados, em condições ambientais nocivas ou perigosas, etc, não encontram entre os habitantes nativos muitos candidatos – até mesmo porque eles aspiram a condições de trabalho superiores e as defendem por meio de organizações sindicais sabendo que, caso desempregados, irão dispor de subsídios de desemprego estatais –, mas despertam o interesse dos trabalhadores estrangeiros, particularmente aqueles que podem ser expulsos facilmente por meio de simples denúncias.

2 A visão estereotipada do imigrante: parasita social ou terrorista potencial? Neste ponto, revela-se um outro aspecto que tem contribuído para a construção de uma imagem negativa dos imigrantes: a questão do “parasitismo social”, ou seja, da sua consideração enquanto “parasitas” de um Welfare State cada vez mais cauíla no cumprimento de seu desiderato para com os cidadãos autóctones. Pode-se sintetizar o câmbio de perspectiva de análise do problema pelos líderes políticos europeus a partir da passagem de um modelo de “imigração econômica” para um modelo de “turismo de benefícios sociais”32. A condição de “estrangeiro”, por si só, traduz a idéia de uma pessoa que está ocupando ou usurpando um posto ou lugar que não lhe corresponde33. E esse estranhamento é potenciado na medida em que a figura do migrante é construída a partir da lógica da “ameaça”. E isso, no contexto de desmantelamento do Estado de 31

BRANDARIZ GARCÍA, 2011, p. 17. SPIRE, 2013. 33 ARNAIZ, 1998. 32

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Bem-Estar Social, é cada vez mais frequente, conduzindo a uma situação paradoxal: “quanto mais persistem – num determinado lugar – as proteções ‘do berço ao túmulo’, hoje ameaçadas em toda parte pela sensação compartilhada de um perigo iminente, mais parecem atraentes as válvulas de escape xenófobas”, o que decorre do fato de que os poucos países “que relutam em abandonar as proteções institucionais transmitidas pela modernidade sólida [...] vêem-se como fortalezas assediadas por forças inimigas”, considerando “os resquícios de Estado social um privilégio que é preciso defender com unhas e dentes de invasores que pretendem saqueá-los”. Em função disso, “a xenofobia – a suspeita crescente de um complô estrangeiro e o sentimento de rancor pelos ‘estranhos’ – pode ser entendida como um reflexo perverso da tentativa desesperada de salvar o que resta da solidariedade local.” 34 Diante deste quadro, pode-se afirmar que, se por muito tempo, o objetivo orientador das políticas de controle dos fluxos migratórios era a necessidade de proteção do mercado de trabalho nacional da concorrência estrangeira desleal, atualmente há a conjugação a este objetivo de uma espécie de “cruzada moral” cujas finalidades são “caçar o ‘assistencialismo’ e transformar o imigrante no coveiro do Estado de bem-estar social”35. Mas ainda há um terceiro fator que é decisivo para a demonização dos imigrantes na contemporaneidade e que está diretamente relacionado à questão do “parasitismo social”: o “inimigo” representando pelo terrorista, por meio de equiparações conceituais equivocadas, faz com que recaia sobre todo e qualquer imigrante uma “fundada suspeita” de uma “potencialidade terrorista”: o novo medo dos terroristas foi misturado e cimentado com o ódio aos ‘parasitas’, sentimento bem entrincheirado, mas que precisa de constante alimento, matando dois coelhos com uma só cajadada e dotando a atual cruzada contra os ‘parasitas da previdência’ de uma nova e invencível arma de intimidação de massa. Enquanto a incerteza econômica não é mais preocupação de um Estado que preferiria deixar para seus súditos individuais a busca individual de remédios individuais para a insegurança existencial individual, o novo tipo de temor coletivo oficialmente inspirado e estimulado foi colocado a serviço da fórmula política. As preocupações dos cidadãos com seu bem-estar foram removidas do traiçoeiro terreno da précarité promovida pelo mercado, no qual os governos dos Estados não têm capacidade nem vontade de pisar, e levadas para uma área mais segura e muito mais telefotogênica, em que o poder aterrorizante e a resolução férrea dos governantes podem ser de fato apresentados à admiração 34 35

BAUMAN, 2009, p. 20-21. SPIRE, 2013.

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pública36.

O fato de vivermos em uma sociedade de risco na qual a sensação de insegurança é cada vez maior não influi nos caracteres do fenômeno migratório, mas faz com que as fontes dessa insegurança sejam centrados em determinados focos, em âmbitos concretos ou em grupos que, independentemente do fato de serem precursores de mais delinquência ou não, são temidos pela sociedade, sendo que na atualidade, “tanto a nivel popular, como en los médios de comunicación, es frecuente considerar que el crecimiento de la delincuencia es um fenómeno debido en gran parte al aumento de la inmigración.”37 O que se observa, nesse contexto, é que a migração se transforma em “bode expiatório da profunda crise econômica em curso e grande trunfo dos partidos de direita”. Por meio dessa estratégia de se analisar a questão da imigração a partir da lógica do conflito e da violência, viabiliza-se, funcionalmente, culpar um coletivo alheio pelas deficiências próprias de uma determinada sociedade: si el sueño de una nación homogénea y harmoniosa no se ve realizado no es porque se trate de un sueño infantil y simplista, sino, en cierto modo, porque elementos extraños lo están impidiendo. Si nuestra vida cotidiana nos parece más insegura, más precaria, menos solidaria y más solitaria, nos abruma pensar que todo ello pueda tener que ver con las dinámicas fundamentales de las sociedad modernas, post-fordistas, consumistas, globalizadas e individualistas. Frente a la sensación de aprehensión, de cambios que no logramos comprender e inseguridad, imaginamos y añoramos un mundo idílico, que fue feliz en un pasado y que continuaría siéndolo si no fuera por los elementos externos que lo perturban. Em la actualidad, el inmigrante es el candidato perfecto para jugar esse papel38.

Mesmo contrariando os estudos realizados a respeito do tema, procura-se difundir a ideia de que “o estrangeiro rouba os empregos dos nacionais, abusa dos serviços do Estado e eleva os índices de criminalidade, o que faz dele uma ótima desculpa para os perenizados déficits públicos.” Além disso, “a pluralidade de cores e de expressões culturais gera grande mal-estar em sociedades nostálgicas, homogêneas, individualistas e pautadas pelo consumo.” Como resultado, verifica-se “a reversão brutal do direito humanista que se instalava paulatinamente após o trauma

36

BAUMAN, 2005, p. 71.

37

LLINARES, 2008, p. 7. WAGMAN, 2006, p. 210.

38

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da Segunda Guerra Mundial.”39 Efetivamente, a partir do momento em que os processos migratórios são abordados como “problema”, a imagem social do imigrante é construída enquanto “outro”, ou seja, enquanto indivíduo “socialmente perigoso”, ao ponto de se falar em uma “emergência” relacionada à imigração. Isso é preocupante quando se recorda “que a experiência histórica nos enseña que, cuando los fenómenos sociales son contruidos como emergências, todo el sistema de derechos y garantias que caracteriza al Estado de derecho retrocede.”40 A soma de todos esses medos permite falar, então, no surgimento de um ambiente social pautado pela “mixofobia”, ou seja, pelo medo de misturar-se, ou, ainda, como um “impulso em direção a ilhas de identidade e de semelhança espalhadas no grande mar da variedade e da diferença.”41 A mixofobia não passa de uma difusa e muito previsível reação à impressionante e exasperadora variedade de tipos humanos e de estilos de vida que se podem encontrar nas ruas das cidades contemporâneas e mesmo na mais ‘comum’ (ou seja, não protegida por espaços vedados) das zonas residenciais. Uma vez que a multiforme e plurilingüística cultura do ambiente urbano na era da globalização se impõe – e, ao que tudo indica, tende a aumentar –, as tensões derivadas da ‘estrangeiridade’ incômoda e desorientadora desse cenário acabarão, provavelmente, por favorecer as tendências segregacionistas 42.

Para além dos tipos penais voltados expressamente à questão da imigração, existem também aqueles delitos que, ainda que não façam referência direta aos imigrantes e/ou às pessoas que são com eles solidárias, buscam, reflexamente, atingilos. Um exemplo típico, no Direito Penal espanhol, é a criminalização da atividade dos “manteros” ou “top manta” – como são chamados, na Espanha, os vendedores ambulantes de reproduções ilícitas de CD´s, DVD´s ou produtos similares (que expõem suas mercadorias sobre mantas nas ruas). Com efeito, os imigrantes ilegais são o exemplo mais evidente de exclusão do indivíduo operada pelas normas: “sin papeles, sin derechos, si ni siquiera posibilidad de ganarse un sustento.”43 Restam poucas opções a estas pessoas, uma vez que são 39

VENTURA; ILLES, 2012. MONCLÚS MASÓ, 2002, p. 174. 41 BAUMAN, 2009, p. 44. 42 BAUMAN, 2009, p. 43. 43 MARTÍNEZ ESCAMILLA, 2009, p. 14. 40

251

proibidas de trabalhar e que é proibido dar-lhes emprego. A atividade de “mantero”, nesse caso, aparece como uma das poucas alternativas que lhes restam. Nesse sentido, o Direito Punitivo se expande e se rearma como resposta aos medos e inseguranças da população diante da imigração irregular, de modo que “no parece hiperbólico afirmar que la consolidación de la centralidad del migrante es un hecho de primera magnitud para el Derecho penal.”44 Isso significa dizer, em outras palavras, que a política criminal que tem orientado as medidas punitivas voltadas ao combate à imigração irregular tem ocasionado um retrocesso rumo à conformação de um modelo de Direito Penal de autor, no qual “la razón de ser de la punición (o de una respuesta sancionatoria agravada) no consiste en el hecho cometido, sino en el tipo de autor”, seja porque “falta el hecho que es sustituido por un sujeto ‘antijurídico’, o porque el ‘hecho’ existe pero es sintoma de un juicio sobre el autor: es verdad que no se quiere la comisión del ‘hecho’, pero porque en realidad es su autor quien resulta indeseable.”45 O funcionamento seletivo e mais severo do sistema punitivo em relação aos imigrantes em situação irregular demonstra, efetivamente, que, agregado ao ilícito cometido, evidencia-se “una suerte de infracción originaria que se deriva de su propia condición de alien.”46 Desse modo, pode-se afirmar que, além da norma penal concreta, o migrante em situação irregular infringe a norma materialmente subjacente que exige dele um plus de obediência e um comportamento neutro em razão de sua peculiar condição em face da sociedade que o controla e sanciona.

Considerações finais

Como se procurou demonstrar no presente trabalho, as políticas migratórias dos países centrais europeus assumem na contemporaneidade traços altamente repressivistas e excludentes, uma vez que assentadas em práticas que priorizam o controle das fronteiras no sentido de sua “impermeabilização”, bem como na perseguição e expulsão dos imigrantes que eventualmente conseguem transpô-las de

44

BRANDARIZ GARCÍA, 2011, p. 3. DONINI, 2009, p. 62. 46 BRANDARIZ GARCÍA, 2011, p. 105. 45

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forma irregular. Dito recrudescimento punitivo voltado ao controle dos fluxos migratórios decorre do fato de que a imigração é vista como uma “ameaça” diante do enxugamento do Estado de Bem-Estar Social e do consequente “parasitismo social” representado pelos imigrantes. Com efeito, o enxugamento do Welfare State é acompanhado pelo sentimento de que os seus resquícios são privilégios que os cidadãos autóctones precisam defender e, nesse intuito, os discursos xenofóbicos novamente entram em cena. No entanto, a partir disso, reforça-se o ambiente social pautado pela “mixofobia” ou, em outras palavras, pelo “medo de misturar-se” com os imigrantes, razão pela qual a sua gestão cada vez mais se dá em nível de “segurança”, com destaque para o controle das fronteiras e para o reforço dos instrumentos jurídicos e meios materiais que possam potencializar a “luta” contra a imigração irregular, em detrimento da integração dessa população. Como consequência, verifica-se um franco processo de expansão do Direito Penal, que é chamado a intervir nas questões atinentes à imigração, mais especificamente no que se refere ao controle dos fluxos migratórios. Isso permite afirmar que se assiste à construção de um modelo de Direito Penal de autor, visto que em muitos casos a condição pessoal de “ser” imigrante ilegal vem sendo, por si só, convertida em delito, ou então considerada enquanto causa de justificação de medidas punitivas mais drásticas que priorizam a inocuização do indivíduo, propiciando assim uma atuação do direito punitivo em clara afronta aos direitos fundamentais da pessoa humana.

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A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E OS LIMITES IMPOSTOS PELAS FRONTEIRAS ESTATAIS: UMA ANÁLISE A PARTIR DE HANNAH ARENDT E JUDITH BUTLER

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth1 Joice Graciele Nielsson2

INTRODUÇÃO

Deslocamentos humanos, embora tenham sido constantes na história da humanidade, tem se intensificado cada vez mais no cenário geopolítico mundial atual, desafiando as fronteiras que dividem o mundo em Estados-nação desde a Modernidade. Neste mundo cindido – física, simbólica ou culturalmente –, o avanço de um cada vez maior contingente de pessoas que não sabem ao certo de onde vem nem para onde vão, se chegarão ou se ficarão pelo caminho, o que encontrarão, o que não – e, fundamentalmente, o que são (seres abjetos?) e o que não são (humanos?) –, tem desafiado a capacidade das categorias da filosofia política tradicional de dar conta desta realidade complexa. Este artigo analisa tal fenômeno a partir das propostas críticas de duas grandes filósofas, cujas obras encontram-se separadas por um considerável lapso temporal: Hannah Arendt e Judith Butler. Arendt, há setenta anos atrás, alertava o mundo de que a vinculação entre humanidade, ou seja, a proteção dada ao ser humano contida no conceito de cidadania, e seu pertencimento a determinado Estado-nação, deixava à margem de tal proteção justamente o humano que dela mais necessitava. Tal paradoxo, representado na figura do refugiado, apontava, segundo a autora, para uma ruptura e a necessária reconfiguração de categorias fundamentais como Estado-nação, cidadania e direitos humanos. Novamente, no cenário (bio)político atual, em que a produção da vida nua, da vida abjeta, da cisão entre vidas que valem a pena ser vividas e vidas descartáveis, se

1

Doutor em Direito Público pela UNISINOS. Professor do Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ e dos Cursos de Graduação em Direito da UNISINOS e UNIJUÍ. E-mail: [email protected] 2 Doutoranda em Direito Público pela UNISINOS. Professora do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. E-mail: [email protected]

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intensifica, a categoria do refugiado (que pode ser tanto o que é expulso, como o que está preso na própria armadilha da fronteira nacional) se coloca diante deste complexo e o faz ruir. O que aprendemos com o legado de Hannah Arendt? Muito pouco, parece nos dizer Judith Butler. Seus estudos, no século seguinte ao de Arendt, apontam para o mesmo caminho, para a mesma necessidade pulsante de des-re-construção das categorias que continuam a aprisionar (ou a expulsar) os seres humanos que mais precisam da condição de humanidade necessária ao alcance da proteção jurídicopolítica no mundo atual. Tal mundo, paradoxalmente, cada vez mais interconectado, cada vez mais próximo (uma communitas) e por isso mesmo, cada vez mais dividido por uma série de fronteiras que dividem a vida humana, representa o avanço da biopolítica e do paradigma imunizatório, segundo o filósofo italiano Roberto Esposito. E, neste cenário complexo, paradoxal, biopolítico, a proposta de Butler, de desconstrução performativa de categorias que busquem identificar a priori o que seria o humano, e aprisionar a humanidade dentro de tais fronteiras físicas, simbólicas ou culturais, conduziria à profanação, no sentido proposto pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, do próprio conceito de Estado, mas também da nação e, porque não, do próprio conceito de humanidade. Eis o problema que conduz a presente investigação. Parte-se da hipótese de que retomar esta tarefa e contribuir na sua construção (ou desconstrução) afigura-se como condição de possibilidade para a viabilização de estratégias de resistência às investidas do biopoder contemporâneo que significam o estabelecimento de cesuras entre as vidas que merecem e as que não merecem ser vividas e, em últimos casos, até mesmo lamentadas. Em relação aos refugiados, isso significa o pensar de uma forma de considerá-los “tal qual são”, sem esperar que cumpram com esta ou aquela função no contexto de uma determinada sociedade. Em outras palavras: significa viabilizar que eles sejam “potencialidades”, que sejam reconhecidos pela sua própria humanidade, em detrimento de qualquer “rotulação” jurídica. Em síntese, busca-se realização uma reflexão sobre alternativas que signifiquem a resolução do nexo entre lei e vida. Utiliza-se,

na

investigação,

o

método

fenomenológico-hermenêutico,

notadamente a partir das contribuições de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, a partir da constatação de que os sujeitos (autores do artigo) estão inseridos no mundo 258

no qual os movimentos migratórios contemporâneos ocorrem, sendo direta e indiretamente afetados por eles. Aqui reside o significado do fenômeno. A opção metodológica está assentada sobre a importância da linguagem: “como todo entendimento que se realiza em palavras, um tal ‘diálogo’ não precisa apenas se ajustar ao campo de domínio da respectiva língua e de suas regulações. As coisas dãose muito mais de tal modo que a própria resposta impele para a palavra.” (GADAMER, 2007, p. 88). Não se busca um estudo a partir do qual sujeito esteja “afastado” ou “cindido” do seu objeto. Pelo contrário, o objeto e o sujeito são constituídos pela palavra e por meio dela recebem a atribuição de sentido – daí o aspecto hermenêutico. Em linhas gerais, portanto, pode-se dizer que a contribuição da hermenêutica filosófica para a elaboração do presente artigo foi demonstrar que as condições que tornam o pensamento possível não são autogeradas, mas são estabelecidas bem antes de nos engajarmos em atos de introspecção, ou seja, que nós já estamos envolvidos no mundo bem antes de nos separarmos dele teoricamente para procurar entendê-lo filosoficamente. Não há, portanto, terminantemente, qualquer possibilidade de cisão entre sujeito e objeto.

1 AS FRONTEIRAS DO ESTADO-NAÇÃO: IMMUNITAS À VIOLÊNCIA DA COMUNIDADE COMUM

Desde a Modernidade, fronteiras e limites fazem parte da organização geopolítica do mundo. Sua necessidade remete, segundo Esposito (2013, p. 18), à falta de limites externos e internos característicos da comunidade originária, cujos habitantes, “os pecadores de Dante, os gigantes de Vico, os lobos de Hobbes” não estavam separados por nada capaz de os proteger reciprocamente. Portanto, expostos à condição comum de ser “nada mais-que-comunidade, comunidade nua, despojada/despida de toda forma”, a violência poderia comunicar-se livremente, associando, desde cedo, comunidade original e violência. Deste modo, a representação mítica da origem da violência não abala a comunidade desde o exterior, mas de seu interior, do coração do que lhe é “comum”, levando Esposito (2013, p. 20) a concluir que é a excessiva igualdade, a carência de 259

diferença e não seu excesso, que gera a violência recíproca fundante do contrato social. Em Hobbes (apud ESPOSITO, 2013, p. 20), por exemplo, “o que produz uma violência insuportável não é um acidente externo qualquer, mas a própria comunidade enquanto tal”, vinculada à possiblidade comum de autodestruição, na qual se funda nossa igualdade primária. Em um contexto tal, “todos podem ser, indistintamente, carrascos e vítimas”, e é esta igualdade que une a todos numa mesma condição. Não se trata, portanto, da diferença, mas da indiferença, o que coloca os homens literalmente nas mãos uns dos outros, gerando uma multidão indiferenciada destinada à autodestruição, tomada como justificativa à implantação das fronteiras. Esta é a hipótese prévia dos grandes mitos fundacionais assumidos pela filosofia política moderna. Dominado pelo desejo ilimitado de tudo e pelo medo de ser morto, o homem original não pode senão destruir-se, afinal, segundo Sartre (apud ESPOSITO, 2013, p. 12), “o inferno são os outros”, isto é, os outros, a própria comunidade, são o inferno de cada “eu”, numa espécie de “ausência de confins que torna impossível, mais do que a distinção entre seus membros, sua própria determinação” (ESPOSITO, 2013, p. 18). Ao cobrir todo o espaço da vida, esta não é determinável, definível, segundo um princípio de identidade, nem para o exterior, nem em seu interior, distinção que, na verdade não existe. No discurso filosófico da Modernidade, enfim, nesta comunidade originária, sem limites, sem confins, “a violência assume a forma fluída da contaminação” (ESPOSITO, 2013, P. 19), que se dá pelo sangue da primeira vítima que infecta a comunidade, arrastando-a para a violência recíproca. Pela falta de identidade, de individualidade, de diferença, é que o munus que nela circula livremente se transforma em veneno que transmite a morte. “Tanto fora do logos, do discurso, como do nomos, da lei, essa comunidade, precisamente antinômica, constitui uma ameaça insuportável para todos os seus membros” (ESPOSITO, 2013, p. 19). Segundo Esposito (2013, p. 19), é precisamente contra a ameaça do contágio mortal da comunidade indiferenciada que a Modernidade criou, em suas dinâmicas reais e em sua autointerpretação, um enorme aparato de imunização. Para o autor, immunitas está em contraste direto com communitas: se a communitas se caracteriza pela livre circulação do munus, como dom e como veneno, ou como contato e contágio, a immunitas é aquilo que o desativa, reconstruindo novos confins protetores 260

ao exterior do grupo e entre seus próprios membros. E se a communitas é inevitavelmente violência, seu immunitas é, a partir da Modernidade, precisamente a sua limitação: a fronteira. Como bem explicou Carl Schmitt (2006), nomos tem como significado inicial a separação. Instaura-se, gravando na terra a distinção, e inclusive a oposição, entre o “meu” e o “seu”, entre o “nosso” e o “vosso”. Desde a sua origem pode-se dizer que a civilização humana praticou o traçado de limites, termos, confins; em síntese: o levantamento de muros entre um território e outro. E essa separação representada pelo nomos pode ser tanto física quanto simbólica ou jurídica (lei, nomos). Segundo Hannah Arendt (2006, p. 444), na polis grega, a lei – nomos – era concebida como um “muro”, fronteira que delimitava o espaço em que os cidadãos estavam abrigados e podiam vivenciar a política. A lei instituía um “espaço” entre os homens, pois concedia a eles um “estatuto jurídico” que os habilitava a fazer parte de um espaço público ou comum, na qualidade de cidadãos. Esse espaço era regido pela igualdade derivada não de uma “natureza humana”, mas de uma convenção artificial, ou seja, um predicado “do mundo feito pelos homens” (ARENDT, 2011, p. 59). Deste modo surge o que Schmitt (2006) denomina de antagonismo fundamental da política: a distinção entre o amigo e o inimigo, que dá aos atos e aos motivos humanos sentido político, antecedente ao antagonismo moral (bem e mal), o antagonismo estético (belo e feio) e o antagonismo econômico (útil e danoso). Nesse rumo, o inimigo (hostis) não precisa ser feio ou mal; pelo contrário, ele pode ser belo e moralmente bom, mas seguirá sempre sendo outro, um estrangeiro com o qual cabem, em caso extremo, conflitos existenciais. Nas palavras de Kristeva (1994, p. 14), “com a construção dos Estados nação [...] estrangeiro é aquele que não tem a mesma nacionalidade”, portanto, o “outro” que vem de fora e não pertence à comunidade. Guarda relação com “estranho”, designação que só faz sentido dentro de um quadro relacional: o estranho, afinal, só o é em comparação a alguém que é familiar. O estrangeiro carrega consigo a marca da estranheza, que o torna diferente daqueles que são familiares. No mesmo sentido, Arnaiz (1998) assevera que a condição de “estrangeiro”, por si só, traduz a ideia de uma pessoa que está ocupando ou usurpando um posto ou lugar que não lhe corresponde. O autor (1998, p. 121) destaca que, 261

en términos filosóficos, puede decirse con razón que la figura del extranjero es uno de los referentes de lo extraño o, si se quiere, de la radical extrañeza manifestada em la falta de un suelo (territorio) desde el que identifícarse y en la dificultad de una lengua en la que decirse y ser reconocido. Así, no es de extrañar la generación de toda una gama de sentimientos y posturas que van desde el rechazo pasando por el distanciamiento hasta, talvez, llegar en el mejor de los casos a la compasión.

Embora esta atividade de delimitação e de confinamento caracterize a civilização humana desde os tempos mais remotos, o dispositivo imunitário posto em funcionamento pela Modernidade tem uma potência distinta, de acordo com Esposito (2013). A soberania estatal e o direito individual, juntamente com todas as categorias políticas da Modernidade, de Hobbes a Locke, representam um passo nítido entre o “comum” e o “próprio”, gênese da imunização e prevenção do risco comum, no qual convergem a ideia de direito natural e a de contrato social. Frente à ausência de fronteiras da comunidade original, o indivíduo e o Estado nascem sob o signo da separação e da autonomia no interior dos próprios confins, cobrindo o mundo de fronteiras impermeáveis, separando os Estados e, dentro deles, os indivíduos que os habitam. Só esta cesura poderia garantir a segurança ausente na comunidade originária, mas o faz cobrando um alto preço, ao gerar, segundo Foucault (2000), um nexo estrutural entre a constituição da subjetividade e a sujeição: no mundo moderno nos tornamos sujeitos somente sujeitando-nos a algo que, por sua vez, nos torna objetos. Somo objetos/cidadãos do Estado, um custo que, segundo Esposito (2013), torna-se, contraditório: ativado para afrontar a ameaça da comunidade originária, o paradigma imunitário não faz desaparecer a violência da communitas, mas se incorpora ao dispositivo que deveria abolir. O poder soberano desempenha seu papel de conservação da vida mantendo-a sempre à margem da morte. Em comparação à comunidade original sem lei, “a sociedade moderna está salva do risco imediato de extinção, mas exposta a uma violência potencial ainda mais notável, na medida em que é interna a seu próprio mecanismo de proteção” (2010, p. 167). Nesse sentido, a imunização é uma analogia utilizada por Esposito (2006, p. 11) para explicitar que, “así como para defenderse preventivamente del contagio se inyecta una porción de mal en el cuerpo que se quiere salvaguardar, también en la inmunización social la vida es custodiada en uma forma que le niega su sentido más intensamente común.” 262

Em um contexto tal, pelo menos potencialmente, a vida humana é convertida em um terreno de decisões que dizem respeito não somente a seus umbrais externos (como, por exemplo, o que distingue a vida animal da vegetal), mas também a partir de seus umbrais internos, o que significa dizer que “será concedido o, más bien, exigido a la política el decidir cuál es la vida biologicamente mejor y también como potenciarla a través del uso, la explotación, o si hiciera la muerte de la vida menos valiosa biologicamente.” (ESPOSITO, 2006, p. 11). A partir da teoria de Esposito, fronteiras – immunitas - são estabelecidas em contraponto à violência – communitas, originando o Estado-nação e a filosofia política da Modernidade. Entre seus frutos estão as Declarações de Direitos do século XVIII e a cidadania, realizadoras do objetivo imunizatório máximo, inscrevendo e legitimando a proteção jurídica dos amigos, dos nacionais, nos instrumentos legais e na construção do que seriam os direitos humanos. A cidadania se subordinou à nacionalidade e os direitos garantidos por ela, foram destinados aos nacionais, excluindo-se os “inimigos”, ou seja, os de fora, os que pertencem à indiferenciação da communitas. A vida nua (a criatura humana) que, no Antigo Regime, pertencia a Deus e que, no mundo clássico, era classificada como zoé e distinguia-se da vida política (bios), passa agora ao controle do Estado e se torna o seu fundamento terreno. “Estadonação significa: Estado que faz da natividade, do nascimento (isto é, da vida nua humana) o fundamento da própria soberania”. Nos primeiros três artigos da Declaração de 1789 foi inscrito o elemento nativo no coração de toda associação política, possibilitando a união do princípio da soberania à nação: “conforme ao étimo, natio significa, na origem, simplesmente nascimento” (AGAMBEN, 2015, p. 28). Constitui-se, assim, a primeira etapa da immunitas moderna, voltada à garantia da ordem frente ao caos da comunidade originária. No entanto, sua função e intensidade começam a mudar a partir da virada biopolítica (FOUCAULT, 2000), quando a política toma como objeto das próprias dinâmicas a vida biológica, a vida humana: os corpos dos indivíduos e das populações, devidamente inscritos nos textos das Declarações, é que passam a estar em jogo nos conflitos políticos decisivos. Uma vez encarnado nos dispositivos excludentes do nacionalismo, o paradigma imunitário, nascido para proteger a vida da comunidade, passa a destruir o que deveria preservar. O marco catastrófico desta inversão, segundo Espósito (2010) está no nazismo, ao 263

conceber como valor absoluto a ser defendido, a vida de um único povo, o que justificaria inclusive o sacrifício de qualquer outro povo, ou raça, que a contaminasse de seu interior. Nascido para limitar a violência da comunidade originária, de acordo com Esposito (2013, p. 26), o paradigma imunitário termina por produzir uma violência muito superior. As fronteiras, instituídas para circunscrever o território soberano dos Estados e proteger o corpo individual de cada cidadão, se fixam em determinado momento “no interior da própria vida humana, como umbrais excludentes, para separar uma parte da vida que se declara superior de outra considerada inferior”. Tão inferior a ponto de não ser digna de ser vivida. Os cinquenta milhões de mortos com os quais se conclui a Segunda Guerra Mundial testemunham o ápice catastrófico deste processo. Entre a atitude terapêutica e a tanatopolítica, portanto, não há apenas contradição, mas também conexão/complementação. As mortes em massa, no regime nazista, decorreram diretamente da preocupação obsessiva com a saúde do povo alemão. Segundo Esposito (2010, p. 166), os médicos nazistas identificavam como “doente” o povo alemão no seu conjunto e “era precisamente a sua cura que requeria a morte de todos aqueles que pela sua simples existência lhe ameaçavam a saúde.” O paradigma imunitário proposto por Esposito (2010, p. 166) é, segundo ele, o que melhor se presta a explicar o que levou o nazismo a inverter a proporção entre e vida e morte a favor da segunda até o extremo da autodestruição. Para o autor, o que os nazistas queriam evitar era uma “doença infecciosa”, representada pelo “contágio de seres superiores por seres inferiores”, ou seja, “a luta contra os judeus era propagandeada pelo regime como sendo a que opunha o corpo e o sangue originariamente saudáveis da nação alemã aos germes invasores que se tinham infiltrado no seu interior com o intuito de minar a sua unidade e mesmo a sua vida.” Em virtude disso, o termo mais adequado para designar a biopolítica nazista é o temo zoopolítica, dado que os judeus passaram a ser tratados enquanto animais, meros parasitas que deveriam ser exterminados.

264

2 OS PARADOXOS DA CIDADANIA MODERNA E A PROPOSTA DE EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA HISTÓRICO EM HANNAH ARENDT

O projeto de destruição implementado pelo nazismo e seus campos de concentração é justamente o ponto de partida das principais análises de Hannah Arendt. Sob tal marco, a autora (2006) refaz o percurso histórico e teórico da constituição de um vínculo inexorável entre os direitos do homem e o Estado nação. Seu alerta é que, tomado em sentido contrário, uma vez que a cidadania e a “proteção” representada pela construção histórica dos direitos do homem estejam restritas à immunitas das fronteiras do Estado nação, o declínio de um representaria o declínio de outro. Nesse marco, a concepção inicial da Declaração dos Direitos do Homem, que os definia como inalienáveis e independentes de governos, acabou sendo desvirtuada. De acordo com a crítica de Arendt (2013, p. 397): “no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegêlos e nenhuma instituição disposta a garanti-los”. É assim que Arendt explica a vulnerabilidade das pessoas desprovidas de ligação política com um Estado nação: “os Direitos do Homem, supostamente inalienáveis, mostraram-se inexequíveis — mesmo nos países cujas constituições se baseavam neles — sempre que surgiam pessoas que não eram cidadãos de algum Estado soberano” (2013, p. 399). Esta é, segundo Giorgio Agamben (2015), uma formulação que precisa ser levada a sério, uma vez que, ao vincularmos indissoluvelmente os destinos do direito do homem ao destino do Estado nacional moderno, o declínio de um implicará, necessariamente o devir obsoleto do outro. Nesse marco, o fato de alguns indivíduos apresentarem-se absolutamente desprovidos de direitos apresenta-se vinculado à circunstância de que eles já não pertencem a qualquer comunidade: sua situação “não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los” (ARENDT, 2013, p. 410). A convergência denunciada pela autora baseava-se no pressuposto implícito de que o padrão de normalidade era a divisão, em escala mundial, dos seres humanos em Estados nacionais, segundo o paradigma imunizatório (ESPOSITO, 2010). Na 265

perspectiva de Arendt, em sentido oposto, a crise dos direitos humanos está diretamente relacionada à crise do Estado, na medida em que este, sedimentado na cidadania nacional, deixou de alcançar as pessoas desprovidas de nacionalidade. E foi justamente a emergência histórica dos displaced people, refugiados, apátridas, e todos os demais “expulsos da trindade Povo-Estado-Território” (LAFER, 1997, p. 58), a partir da Primeira Guerra Mundial, que assinalou, em Arendt, o ponto de ruptura cujo cerne foi a dissociação entre os direitos humanos e os direitos dos povos e a emergência de um novo paradigma histórico a partir de então. No mesmo sentido, observa Guimarães (2013, p. 26), a problemática de um sistema de Estados-Nação na Europa reside no “aparecimento” de um conjunto de minorias que não eram passíveis de “acomodação” nessa lógica. Uma vez configurada a inseparabilidade dos direitos humanos da soberania estatal, “as dezenas de milhões de pessoas sem nação na Europa eram também, em princípio, sem-direitos, porque o princípio do Estado-Nação os deixara sem um garante político efectivo dos seus direitos”. A partir de tal fenômeno histórico, Hannah Arendt conclui que a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado, mas um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. A igualdade “não nos é dada, mas resulta da organização humana, porquanto é orientada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais: tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais” (ARENDT, 2006, p. 335). É, portanto, o acesso ao espaço público, o direito de pertencer a uma comunidade política, que permite ao cidadão assegurar seus direitos de humanidade, e a perda deste “lugar no mundo” é também o que o expulsa da humanidade, a despeito da proteção abstrata e universalista dos direitos humanos: O grande perigo que advém de pessoas forçadas a viver fora do mundo comum é que são devolvidas, em plena civilização, à sua elementaridade natural, à sua mera diferenciação. Falta-lhes aquela tremenda equalização de diferenças que advém do fato de serem cidadãos de alguma comunidade, e no entanto, como já não se lhes permite participar do artifício humano, passam a pertencer à raça humana da mesma forma como os animais pertencem a uma dada espécie de animais (ARENDT, 2006, p. 335).

A negação do direito à cidadania colocou os homens em sua condição natural, 266

em estado de natureza; e, como tal, apenas vidas “descartáveis”. A humanidade, “concebida durante tanto tempo à imagem de uma família de nações, havia alcançado o estágio em que a pessoa expulsa de uma dessas comunidades rigidamente organizadas e fechadas, via-se expulsa de toda família de nações”. Não havia mais nenhum país no qual pudessem ser assimilados, nenhum lugar onde pudessem formar uma nova comunidade e, não por falta de espaço, mas por falta de vontade política (ARENDT, 2006, p. 327). De fato, corrobora Lafer (1997, p. 46) que, “à medida que os refugiados e apátridas se viram destituídos, com a perda da cidadania, dos benefícios do princípio da legalidade, não puderam se valer dos direitos humanos, não encontrando lugar no mundo do século XX”, inteiramente organizado e ocupado politicamente a partir das fronteiras estatais. Agamben (2015, p. 27) revisitando Arendt, sustenta que houve a criação de um paradoxo em torno da figura do refugiado, pois aquele que deveria “encarnar por excelência os direitos do homem assinala, ao contrário, a crise radical desse conceito”. Arendt percebe que, a despeito da longa trajetória, as evocações solenes dos direitos inalienáveis do homem, demonstraram-se absolutamente incapazes não só de resolver o problema, mas simplesmente, de enfrentá-lo, conforme Agamben (2015). Impotência que residiria não só no egoísmo e na cegueira dos aparatos burocráticos, mas na ambiguidade das noções fundamentais que regulam a inscrição do nativo (da vida) no ordenamento jurídico do Estado, plenamente evidenciada, segundo o filosofo italiano, no paradoxo representado pelo refugiado, e já implícito na própria ambiguidade do título da Declaração de 1789: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no qual não está claro se os dois termos “nomeiam duas realidades distintas ou se fornecem, ao contrário, uma hendíadis, na qual o primeiro termo já está, na verdade, sempre contido no segundo” (2015, p. 27). De acordo com Agamben (2015, p. 27), “no sistema do Estado-nação, os assim chamados direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de qualquer tutela no próprio momento em que não é mais possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um Estado”. Logo, de acordo com a análise de Arendt, o conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência de um ser humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas as outras qualidades e relações específicas — exceto que ainda eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na

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abstrata nudez de ser unicamente humano (2013, p. 408).

Como observa Giacoia Junior (2008, p. 284), “ao lado da função emancipatória das declarações de direitos fundamentais, seria também indispensável perceber que elas integram o dispositivo de abandono da vida nua à violência dos mecanismos de poder”. Com efeito, sem a fronteira estatal e sua nacionalidade, o que restava era uma condição de completa privação de direitos antes mesmo que o direito à vida fosse ameaçado. A ausência de lei para os “sem lugar” deu-se inicialmente pela privação total dos direitos, depois pela ameaça à vida e, por fim, o internamento no campo (ARENDT, 2006, p. 321). Esta sequência foi observada rigidamente pelo estado nazista, que mesmo ao longo de sua “solução final”, garantia a completa desnacionalização de judeus e ciganos antes de seu envio aos campos. Quando seus direitos não são mais direitos do cidadão, “então o homem é realmente sagrado, no sentido que esse termo tem no direito romano arcaico: voltado à morte” (AGAMBEN, 2015, p. 30). Estes sem cidadania, apesar de muitos, não eram perseguidos por algo que tivessem feito ou pensado, “e sim em virtude daquilo que imutavelmente eram – nascidos na raça errada, ou na classe errada” (ARENDT, 2006, p. 328), elevando a fronteira nacional (física ou simbólica) a elemento responsável pela condição de humanidade ou inumanidade de um ser. A partir desta experiência de redução da humanidade, jurídica e faticamente, à condição de descarte, contrariando, segundo Celso Lafer (1997), frontalmente os valores formalmente consagrados no Direito, é que Arendt identifica o que deveria ser uma profunda ruptura na filosofia política tida até então, e a partir daí, a emergência de um novo paradigma histórico. Deste fenômeno resultou o esfacelamento dos padrões e categorias que constituíram o conjunto da tradição ocidental, que havia historicamente feito da pessoa humana (o amigo) um valor-fonte da experiência ético jurídica. Consequentemente, disso adveio também um “hiato entre o passado e o futuro”, uma vez que a tradição, segundo Lafer (1997, p. 56), inclusive a jurídica, passa a não nos oferecer “critérios para a ação futura, nem conceitos para o entendimento dos acontecimentos passados”. Fica claro a partir da elaboração de Hannah Arendt, que “um estatuto estável do homem em si mesmo é inconcebível no direito do Estadonação”, corrobora Agamben (2015, p. 28). 268

A construção de um mundo comum, baseado no direito de todo ser humano à hospitalidade universal apontada por Kant e contestada na prática pelos refugiados, só começaria a se tornar viável, como aponta Hannah Arendt (2006), se o direito a ter direitos fosse universalmente tutelado a partir do ponto de vista da humanidade. Para tanto, a autora busca na moral universalista e cosmopolita kantiana o conceito de humanidade e o atribui à dimensão política necessária para se compreender o espaço público internacional, em que o direito a ter direitos decorra do mero pertencimento a ela, não se dissolvendo nos limites de cada nação. E está aí o grande chamado que Hannah Arendt deixou ao mundo pós 1950: resgatar a humanidade perdida nos confins do Estado-nação.

2.1 O mundo pós Hannah Arendt: o avanço das fronteiras imunizatórias nos marcos biopolítica

Passados mais de 70 anos do fenômeno original dos campos de concentração e da formulação arendtiana, será que levamos a sério a tarefa de desvincular a cidadania e a proteção da humanidade das fronteiras do Estado-nação? Que lugar ocupam os refugiados, imigrantes, apátridas, na sociedade política do século XXI? A doutrina dos direitos humanos efusivamente tem reiterado que a partir da “ruptura” evidenciada por Arendt, o mundo inaugurou a chamada concepção contemporânea dos direitos humanos, introduzida com a Declaração Universal de 1948, conforme aduz Flavia Piovesan (1997). Tal concepção estaria vinculada ao processo de internacionalização e universalização e o consequente desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, segundo Cançado Trindade (2002), que representaria a criação de uma sistemática internacional de proteção capaz de permitir a responsabilização do Estado. Permitiria, portanto, conforme Piovesan (1997), a revisão da noção tradicional de soberania do Estado, e a cristalização da ideia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional. Teve início a partir de então a progressiva construção de um arcabouço internacional formado por um conjunto de declarações, pactos, convenções e órgãos especializados da Organização das Nações Unidas (ONU), e inclusive, Cortes Internacionais, em um movimento crescente sem precedentes na história. Segundo 269

Celso Lafer (1999), as consequências e a atualidade da conclusão arendtiana foram reconhecidas pelo Direito Internacional Público contemporâneo, o qual passou a considerar a nacionalidade como um direito humano fundamental, além de buscar substituir as insuficiências do mecanismo de proteção diplomática pelas garantias coletivas, confiadas a todos os Estados-parte nas Convenções Internacionais dos Direitos Humanos. Todo este aparato jurídico-político impressiona pela grandiosidade e pretensões sob as quais se apresenta. Seu teste de validade, no entanto, sob a perspectiva arendtiana pode ser feito a partir de seu confronto com o refugiado3, aquele tido por Hannah Arendt como o grande precursor de um novo paradigma da filosofia política, aquele que, caçado de país em país representava, segundo a autora, a vanguarda de seu povo: qual é a condição jurídico política do refugiado na geopolítica contemporânea? Há, para ele proteção sob o longo braço do Direito Internacional dos Direitos Humanos? Ou, ao contrário, sua condição de humanidade vem ruindo tão ou mais depressa que sua relação com o Estado que lhe deveria conceder reconhecimento e proteção? Em suma, a construção do Direito Internacional dos Direitos Humanos levou a sério a formulação de Hannah Arendt? Obviamente um olhar atento aos fatos que marcam o cenário internacional em meados desta segunda década do século XXI nos leva a afirmar que não. Não só não aprendemos a lição de Hannah Arendt, como o fenômeno dos campos, ao contrário de impor um limite, aprofundou o processo tanatopolítico da immunitas, iniciado com o estabelecimento das fronteiras, aprofundando a cesura entre a vida que merece ser vivida e a vida descartável. A derrota do nazismo, ao contrário de debilitar os dispositivos imunitários, os potencializou ainda mais e o processo de imunização se estendeu por todas as partes. O nó entre política e vida, segundo Esposito (2013), cuja variação tanatopolítica deu lugar ao nazismo, aparece hoje mais forte que no passado, embora enormemente alterado em suas modalidades e em seus fins. A demanda por segurança se converteu 3

Para fins deste estudo não serão estabelecidas diferenciações formais entre refugiados, imigrantes, migrantes, apátridas, asilados, uma vez que, a despeito da definição formal atribuída pelas legislações internacionais e pelas burocracias estatais, tratam-se de pessoas que se encontram fora das fronteiras estatais, sejam elas físicas, simbólicas ou culturais, e portanto, desabrigadas da proteção formal da cidadania e do acesso aos direitos humanos globalmente consagrados. Para tanto, utilizaremos a expressão refugiados e um modo amplo, a abarcar todos aqueles que se encontram em tal condição.

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numa síndrome obsessiva, invertendo a relação normal entre perigo e proteção. Já não é a presença do perigo que cria a demanda por proteção, mas a demanda por proteção o que gera artificialmente a sensação de perigo, segundo o filósofo italiano. Naturalmente, o fenômeno da globalização em muito influenciou o aumento do paradigma imunizatório no mundo contemporâneo. A globalização e suas consequências catastróficas4, tornaram-se, a partir de sua afinidade estrutural e simbólica com a comunidade originária, o mito de um mundo caótico e ingovernável, inferno, selva, estado de natureza, um paradigma a ser combatido. Ambas são ilimitadas, não tem confins nem termos, fluídas e invertebradas, destinadas a empurrar o mundo a uma mobilização constante que transgride fronteiras por meio de migrações, embora, ao mesmo tempo, fluxos de informações e de capital circulem livremente em tempo real. “Se a Hobbes, Locke e Vico lhes parecia que a comunidade originária não tinha freio algum [...], nada parece hoje mais desenfreado que o processo de globalização” (ESPOSITO, 2013, p. 27). Naturalmente não há que se confundir realidade e imagem difundida, uma vez que, segundo Esposito (2013, p. 27), “no modelo atual de globalização, o mundo se unificou por sua própria divisão: está ao mesmo tempo mais unido e mais dividido como nunca estivera”. À medida que seu efeito principal é gerar comunicação, a globalização promove uma contaminação infinita entre homens, povos e linguagens, até o ponto de não haver espaço para qualquer diferença. É contra este contágio que opera o dispositivo imunitário, naquilo que Esposito (2013, p. 28) denomina de rechaço: “quanto mais contato têm entre si grupos étnicos, religiosos ou linguísticos, invadindo os espaços recíprocos, maior é o impulso oposto que conduz a um novo localismo, uma nova obstinação identitária” que, por sua vez, conduz à maior epidemia de construção de muros da história humana. Junto com os muros, são traçadas novas linhas de bloqueio, novas redes de ‘proteção’ capazes de deter, ou retardar a invasão dos outros, a confusão entre dentro e fora, interior e exterior, nós e eles. O efeito potencialmente catastrófico desta perversa estrutura entre o global e o local, é visível nos acontecimentos recentes que demonstram que o excesso de imunidade produz mais violência do que é capaz de evitar. Os direitos universais 4

Denominação que, segundo Judith Butler (2009, p. 24), nada mais é do que um “eufemismo medíocre e enganoso para o que se poderia chamar de mundialização da lei estatal do valor do capital”.

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figuraram em proclamações privadas de realidade e o direito à vida, é traído e desmentido a cada dia por milhões de mortos de fome, enfermidades e guerras (ESPOSITO, 2010). Quanto mais “frutos envenenados produz a globalização, mais parecem fechar-se as fronteiras para aqueles que buscam amparo e subsistência fora de seus países de origem”, ou seja, para os refugiados, aos quais já se referia Hannah Arendt5. Cabe questionar então, como esta situação pode ser explicada à luz da proliferação tida como vitoriosa do Direito Internacional dos Direitos Humanos? Agamben reflete sobre esta aparente contradição evidenciando que no pós-guerra, a ênfase instrumental nos direitos do homem e o multiplicar-se de Declarações e Convenções no âmbito das Organizações Supranacionais acabaram por “impedir uma compreensão autêntica do significado histórico do fenômeno”. No entanto, para o autor (2015, p. 38), é hora de “deixar de ver as Declarações como proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, que vinculam a princípios éticos eternos, para considerá-las a partir de quais sejam suas reais funções históricas na formação do moderno Estado-nação”. Estas representam, para o autor, “a figura original da inscrição da vida natural no ordenamento jurídico-político do Estado-nação”. Vida que “entra agora, a partir da biopolítica, em primeiro plano na estrutura do Estado e até se converte no fundamento de sua legitimidade e soberania”. É à luz desta compreensão proposta por Agamben (2015) que se pode retomar a análise do refugiado, enquanto figura capaz de romper a continuidade entre homem e cidadão, nascimento e nacionalidade, destruindo a ficção originária da cidadania moderna. Por um momento o refugiado faz com que apareça na cena política aquela vida nua que constitui sua premissa secreta, representando, como já bem afirmou Hannah Arendt, a primeira e única aparição real do homem sem a máscara de cidadão que constantemente o encobre. Por representar a própria subversão à ordem, é que a 5

De acordo com o Relatório Viagens Letais, produzido pela Organização Internacional de Migrações (OIM) e considerado o mais abrangente estudo global sobre mortes de imigrantes na terra e no mar, somente em 2014, quatro mil imigrantes perderam suas vidas no trajeto para escapar da violência e da pobreza dos países de origem. Destes, mais de três mil perderam as vidas ao cruzar o Mediterrâneo para chegar ao continente europeu e outros 230 morreram na fronteira entre México e Estados Unidos. Essa média vem se mantendo há pelo menos 14 anos. Embora sejam estimativas alarmantes, o documento da OIM acredita que o número deva ser superior, pois não são todas as mortes que são registradas. Segundo analistas, para cada corpo de imigrante encontrado, há dois que permanecem desaparecidos. Disponível em:< http://operamundi.uol.com.br/>. Acesso em 30 jul. 2015.

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sua figura resta tão difícil de definir em termos modernos, como afirma Bourdieu (1998, p. 11): “nem cidadão nem estrangeiro, nem totalmente do lado do Mesmo, nem totalmente do lado do Outro, o “imigrante” situa-se nesse lugar “bastardo” [...] a fronteira entre o ser e o não-ser social”. Deslocado, suscita o embaraço, refletido na dificuldade que se experimenta em pensá-lo a partir dos pressupostos e omissões da visão oficial. O imigrante/refugiado constitui-se em um conceito-limite que expõe a crise radical dos princípios do Estado-nação e, ao mesmo tempo, permite liberar o campo para uma renovação categorial necessária. Considerado ilegal na maioria dos países, esse contingente está assumindo proporções cada vez maiores e exige uma mudança de postura dos Estados, que tem diante de si uma “massa estavelmente residente de não-cidadãos” (BOURDIEU, 1998) que não podem nem querem ser naturalizados nem repatriados. Esses não-cidadãos têm frequentemente uma nacionalidade de origem, mas enquanto preferem não usufruir da proteção de seu Estado, encontram-se na condição de “apátridas de fato”. Paralelamente, sua presença, e a assimilação substancial das diferenças que representam, exaspera o ódio e a intolerância, e faz crescer as reações xenofóbicas e as mobilizações defensivas da immunitas. Como destaca Ferreira (2011, p. 264), os imigrantes, pela sua própria existência – e não necessariamente por meio de manifestações políticas conscientes – acabam por subverter o lugar comum (topoi) e obrigam a coletividade “a questionar a validade de conceitos e identidades estanques, fixas, imutáveis (conceitos e identidades emuralhadas).” Isso porque os migrantes “promovem o pensamento e a prática do kosmopolites, fazendo com que a Soberania territorial, dogmática e exclusiva, seja contestada.” A par de tudo isso, convém refletir sobre o sentido da análise de Hannah Arendt que hoje, mais de setenta anos depois ainda se mostra atual. Não só o problema se apresenta no mundo com idêntica urgência, mas, no declínio agora irrefreável do Estado-nação e na corrosão geral das categorias jurídico-políticas tradicionais, o refugiado é, segundo Agamben (2015, p. 24), talvez, “a única figura pensável do povo no nosso tempo e, ao menos até quando não for realizado o processo de dissolução do Estado-nação e da sua soberania, a única categoria na qual é hoje permitido entrever as formas e os limites de uma comunidade política por vir”. E se quisermos, como aduz 273

Agamben, “estar a altura das tarefas absolutamente novas que estão diante de nós”, devemos levar a sério as teses de Hannah Arendt que vinculavam o do destino dos direitos ao Estado, de modo que o ocaso deste não suponha o fim daquele. Para tanto, devemos estar dispostos a desconstruir os conceitos fundamentais com os quais temos aprisionado a humanidade às fronteiras, sejam elas físicas, simbólicas ou culturais do mundo dos Estados-nação.

3 UM ESTADO, VÁRIAS NAÇÕES E A MESMA HUMANIDADE: A PROPOSTA DE JUDITH BUTLER

Levar a sério a proposição de Hannah Arendt e o aviso dado por Agamben e reformular as categorias básicas da filosofia política moderna parece ser uma tentativa constante na teoria da filósofa americana Judith Butler. A autora, em uma entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, em 20 de setembro de 2015, durante sua recente visita ao Brasil, ao analisar o cenário mundial atual afirmou: em dado momento, todos teremos de saber que pertencemos uns aos outros e que há formas de pertencimento com claras implicações éticas e políticas que transcendem o Estado-nação. [...] Se perguntarmos porque devemos nos preocupar com refugiados em busca de abrigo e segurança em outro canto do mundo, talvez sejamos obrigados a questionar o que nos une a outras pessoas, inclusive as que não conhecemos e não conheceremos. [...] Acredito que estejamos unidos aos que não conhecemos e não conheceremos, e eles a nós sem saber nossos nomes. Esta ligação anônima é crucial para a ideia de responsabilidade global6.

Os estudos de Judith Butler partem de questões de gênero, a partir das quais ela propõe a desconstrução das configurações de identidade, deslocando o pensamento do binarismo homem/mulher, e voltando sua atenção para a inclusão dos indivíduos inadequados ao ideal normativo dominante. Sua proposta é, portanto, a desconstrução da identidade de gênero a partir da constatação de que não há uma essência ou substância que o defina. Na verdade, “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado”, defende Butler (1998, p. 13) , mas “tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos.”. Este aparato se 6

Inteiro teor disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/09/1683172-sem-medode-fazer-genero-entrevista-com-a-filosofa-americana-judith-butler.shtml. Acesso em 18 de novembro de 2015.

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constitui pela repetição de atos, gestos e signos, do âmbito cultural, que reforçariam a construção dos corpos, tratando-se, portanto, de uma questão de performatividade. Butler analisa grupos como transsexuais, intersexos, homossexuais e transgêneros, abordando o problema da sua (in)adequação a um ideal normativo, que os torna “patológicos”. Reflete, a partir de então, sobre a definição do que é humano e de como se dá seu reconhecimento. Para a autora (1998, p. 36), a tentativa de estipular conceitos universais a partir de identidades pré-definidas soa excludente e contraditória: “as categorias de identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e como tal, exclusivistas”. Desse modo, a tentativa tradicional de constituir a identidade dos sujeitos a partir da descrição revela-se um ato de normatização, controlando, pela

exclusão e

pré-definição, comportamentos

linguísticos e sociais em geral. O perigo na definição de critérios a priori de humanidade está no seu oposto, ou seja, na produção do menos “humano”, do inumano, do abjeto, justamente aqueles a quem a autora (2010) quer dar conta, concedendo humanidade ao inabitável, ao “invivível”, ao Outro que virou “merda”. Falando de corpos que importam, e ao contrário, dos que não importam, considerados abjetos pela norma, desconstituídos de humanidade, e invisíveis, seu engajamento começa a ultrapassar o enquadramento filosófico feminista. Volta-se, desse modo, à tentativa ética de desvincular do caráter patológico aqueles que apresentam complexidades não absorvidas pelo ideal normativo para, a partir da desmistificação das configurações sociais excludentes, devolver-lhes o direito básico a uma existência legítima (1993). Segundo Butler (2002, p. 162), “o abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’ e cuja materialidade é entendida como não importante”. A produção da vida abjeta, ou seja, da vida que não merece ser lamentada, passa a ser analisada a partir de situações como a guerra no Iraque e o campo de Guantánamo (2009). Ao refletir sobre a diferença de tratamento dispensado às mortes provocadas pelos atentados terroristas nos EUA e as mortes perpetradas pelos EUA na luta contra o terrorismo, a autora busca discutir o que conta como humano, ou seja, as vidas que efetivamente contam como vidas e, ao contrário, aquelas que não valem a pena, que não merecem ser lamentadas. Há, como denuncia Butler (2009), uma nítida 275

separação, uma fronteira simbólica entre ambas, de modo que um atentado contra a santidade de uma bastaria para mobilizar a guerra, e de outra seria mero efeito colateral. A produção desta separação é determinada ainda pelas fronteiras estatais, embora agora, com Butler, estejamos falando também das fronteiras simbólicas e culturais que estabelecem cesuras entre as várias nações existentes no Estado. Esta “desrealização do outro” o torna um ser nem vivo nem morto, mas em uma interminável condição de “espectro”, determinada pela alteridade, ou seja, pela nossa capacidade de nos importarmos, ou não, com a humanidade do outro. O que nos vincula eticamente à alteridade, ao outro, compreendido como as pessoas marcadas por vidas precárias, é um questionamento que a autora busca responder. Para Butler (2011, p. 27), este vínculo “não é um a priori, antes emerge apenas quando reconhecemos a humanidade deste Outro sob ameaça”. Infelizmente, em tempos globalizados, quando a comunicação massiva e distorcida, ao contrário de nos aproximar, gera a “contaminação” à qual se refere Esposito (2010). Com isso, aumentam os dispositivos imunizadores e, consequentemente, o mundo encontra grandes dificuldades em reconhecer a alteridade do outro e produzir a sua identificação com ela. A representação da alteridade constitui-se em um meio de humanizar e deshumanizar, de reconhecer o vínculo ético-moral com o outro ou de justificar sua eliminação (2011). Este esvaziamento do humano questiona os esquemas normativos capazes que estabelecem o que será uma vida habitável, ou uma morte a ser lamentada. Tais esquemas produzem ideais de humanidade e do que seja o “menos humano”, e também “funcionan sem fornecer nenhuma imagem, nenhum nome, nenhuma narrativa, de forma a concluir que ali nunca houve morte tampouco vida” (2011, p. 28). Produz-se, assim, uma identificação simbólica do rosto com o inumano, ou um apagamento radical da própria humanidade, tornando “o desfazer da percepção de perda, a insensibilidade à dor e ao sofrimento como mecanismo por meio do qual a desumanização se consuma” (2011, p. 28-29). No livro intitulado “¿Quién le canta ao Estado-Nación?” (2009), no qual dialoga com Gayatri Spivak, Butler parte do momento atual de crise do Estado-nação e reflete sobre a possibilidade de um pertencimento ao Estado cujas bases não sejam nacionais. Tomando como referência os questionamentos de Hannah Arendt acerca da exclusão 276

dos não nacionais do pertencimento ao Estado, Butler acredita que a única forma de pensar um novo tipo de pertencimento, capaz de incluir a humanidade descartada – abrindo mão do léxico tradicional Estado-Nação. A partir daí, deveria partir-se de um novo vocabulário, que se não existe, deve ser criado, para que seja capaz de descrever e desconstruir a privação de direitos advinda do pertencimento excludente às fronteiras estatais. Diferentemente de Arendt, Butler não se refere especificamente ao refugiado e ao imigrante enquanto pessoas que foram privadas da cidadania pela expulsão de seu Estado originário. Em termos biopolíticos, e levando em consideração o avanço do processo imunizatório identificado por Esposito (2010), sua análise se refere também àquelas vidas que, mesmo sob a fronteira do Estado-nação e sob o espectro das legislações protetoras de direitos e da cidadania se tornaram descartáveis, matáveis, ou seja, às diversas nações sem Estado que se encontram dentro do Estado-nação. Segundo Butler (2009, p. 55) a divisão dentro/fora da fronteira física de um estado “es la que ordena la discusión de Arendt [...] tal vez porque su análisis del refugiado está acotado al del exiliado, alguien que ha dejado un lugar y llega a otro”. No entanto, a ideia de cruzar um território a outro requer uma linha narrativa entre lugar de partida e lugar de chegada, que constitui “el "antes" y el "ahora" tanto como el "allá" y el "acá" de una trama, una topología y un desarrollo narrativo”. A autora questiona a estabilidade destes lugares de partida e chegada, cujo trajeto não daria conta da complexidade dos deslocamentos atuais. Lugares de chegada e de partida são conceitos que devem ser des-re-construídos a partir da consideração da saída que ocorre a partir de dentro, “a la desposesión que tiene como condición la inmovilidad. Tal parece ser el caso de alguien que acaba de quedarse, a la vez, confinado y desposeído en el mismo territorio del que sale y entra” (2009, p. 55). Não basta, nesse caso, considerar a definição de refugiado como a população que se desloca entre estados juridicamente autônomos (2009). Se o Estado é uma estrutura legal que dá proteção aos seus cidadãos, quando se chega a ele sem estar incluído no conjunto de direitos e obrigações jurídicas desta cidadania, pode-se dizer que se chegou a um Estado? “Precisamente, no como ciudadano; es recibido, bajo la condición de no estar incluido en el conjunto de los derechos y obligaciones jurídicos que definen la ciudadanía” (2009, p. 46). Ainda que exista um lugar de chegada, este 277

não necessariamente será outro Estado que produza modos de inclusão; poderia ser Guantánamo, por exemplo, onde não há Estado (2009, p. 47). Afinal, embora Estados sejam lugares de poder, estes nem sempre são “o” Estado-nação, existindo, por exemplo, estados não nacionais ou estados de segurança, que destroem constantemente as bases nacionais do Estado. “Así, el término "estado" puede ser dissociado del término "nación"” (2009, p. 45) O Estado tem o condão de definir a estrutura legal e institucional que serve de matriz para os direitos e obrigações do cidadão, ao estabelecer as condições pelas quais se tornam juridicamente vinculados. Embora seja esperado que o Estado defina modos de pertencimentos jurídicos, pode, ao contrário, negar ou suspender a proteção legal, tornando-se fonte do não pertencimento. “Si el estado es lo que vincula [...] en nombre de la nación, conjurando forzosa si es que no poderosamente cierta versión de la nación, entonces también desvincula, suelta, expulsa, destierra” (2009, p. 45). O que nem sempre se dá de modo emancipatório, ou seja, “deixando ir” ou “liberando”; mas pressupõe a prisão, através de um poder que imuniza, impondo cesuras, fronteiras, barreiras e prisões. Deste modo, o Estado supõe uma nação que expresse certa identidade nacional, fundada no consenso coletivo vinculante. Nação que deve ser pretensamente singular e homogênea, produzindo, para tanto, modos de pertencimento nacional classificatórios e excludentes. “El estado deriva su legitimidad de la nación, lo que significa que las minorías nacionales que no califican para "pertenecer a la nación" son consideradas como habitantes "ilegítimos"” (2009, p. 65). Nesse contexto, “el estatus que confiere la condición de sin-estado a un grupo de personas se vuelve el medio por el cual los sin-estado son producidos discursivamente dentro de un campo de poder, vez que son privados de derechos”. A separação, portanto, pode assumir a forma de prisão, fazendo com que as minorias descartadas sejam confinadas no interior do território. Ela também pode se dar mediante a forma clássica de expulsão a um espaço exterior, que pode ou não ser outro Estado-nação. O que distingue a prisão da expulsão depende de como se consideram os limites entre estar dentro e estar fora, embora ambos sejam mecanismos utilizados para traçar dito limite, física ou simbolicamente. “El límite comienza a existir políticamente desde el momento en que alguien pasa o es privado 278

del derecho de passo” (2009, p. 67). Para analisar o tipo de situação complexa que deriva do processo de imigração internacional na atualidade, baseados tanto na expulsão quanto na exclusão, Butler faz referência ao que chama de episódio do hino, a partir do qual propõe a criação de um novo modelo para pensar o pertencimento ao Estado. Trata-se de um episódio acontecido na primavera de 2006, nas ruas de Los Angeles, na Califórnia, quando imigrantes irregulares fizeram uma marcha na qual cantaram o hino nacional americano em espanhol. Chamado de “nuestro himno”, o episódio introduziu, segundo Butler (2009, p. 83), o problema da pluralidade “de la nación, del "nosotros" y del "nuestro". ¿A quién pertenece este himno?”, e a quem pertence o Estado? Há um “nós” que canta e que se afirma em espanhol reivindicando um modo de pertencimento à nação. “Un modo de pertenencia, porque ¿quién está incluido en ese "nosotrós"? El "nosotros" que canta y que se afirma en español tiene, sin duda, efectos sobre nuestra concepción de la nación y de la igualdad.” (2009, p. 84). O então presidente Bush responde ao ato dizendo que o hino nacional só pode ser cantado em inglês, expressando um requisito monolinguístico da nação. Em termos arendtianos, este seria, “el momento en el que una mayoría nacional trata de definir la nación en sus propios términos, estableciendo o reforzando normas de exclusión que deciden quién puede ejercer la libertad, puesto que dicho ejercicio depende de actos de lenguaje” (2009, p. 84). A contrario sensu, se determinado grupo define a nação por seus próprios termos, é também mediante a ação, nos termos arendtianos, que Butler encontra um forte aporte à sua noção de política como performatividade. No exercício de cantar o hino, os imigrantes em situação irregular reivindicam o pertencimento ao Estado pela via da nação. Não se trata de um mero pedido de acesso à nacionalidade, mas uma contradição performativa, cantada na rua, local cujo uso para tal fim é proibido pela lei americana. O ilegal reivindica tornar-se legal, desafiando a mesma lei da qual exige reconhecimento (2009, p. 87). É uma contradição porque o direito exercido não existia de jure, e é performativo porque exercido através de enunciados, ou seja, atos de fala. Os imigrantes que dele participam exerciam direitos, embora não os tivessem, reivindicando, através do exercício, o próprio direito a ter direitos. “Fuera de toda legalidad, reclama garantías y protección legal”, “los derechos tienen una doble existencia, ya que en la calle y en el 279

canto hay un ejercicio del derecho al derecho, y el primero de esos derechos no está garantizado por ninguna ley sino que pertenece a la naturaleza de la igualdad en tanto condición social antes que natural” (2009, p. 86). De seu meio, “lo que se escucha son las palabras somos iguales", afirmação da qual brotam inúmeros questionamentos, afinal, “un acto de habla como este, que no solo declara abiertamente la igualdad del "nosotros", sino que también exige una traducción” não impõe a tarefa de tradução/reconstrução da própria ideia de nação? Seria portanto, uma reprodução não autorizada da nação, ou expressaria sua falência total? (2009, p. 86). Para essas perguntas não há uma resposta clara, dada sua própria contradição. Porém, na visão de Butler, são exatamente essas contradições que, quando tornadas públicas, permitem reelaborar a linguagem dominante e repensar as formas de distribuição de poder, atitudes necessárias caso se pretenda promover mudanças radicais em uma sociedade. Repensar o (não)pertencimento ao Estado de forma a torná-lo não nacionalista é considerada uma mudança radical, e é nesse sentido que Butler, ainda que não esteja segura de quais serão os efeitos concretos de ditos atos, se posiciona favoravelmente às reivindicações políticas fundamentadas em contradições performativas. Afinal, “no pude haber una política de cambio radical sin contradicción performativa”. Exercer liberdade e afirmar igualdade em uma relação de autoridade que as exclui é mostrar como ambas podem e devem ir além das articulações e conceitos existentes. “La contradicción debe ser tomada en cuenta, expuesta y elaborada para convertirse en algo nuevo” (2009, p. 87). Neste sentido, a contradição performativa de Butler, poderia conduzir à profanação (AGAMBEN, 2007), como condição de possibilidade para o rompimento da separação promovida pela sacralização, devolvendo à esfera dos homens aquilo que foi consagrado aos deuses. Afinal de contas, etimologicamente, “puro, profano, livre dos nomes sagrados, é o que é restituído ao uso comum dos homens” (AGAMBEN, 2007, p. 65), de modo que a profanação seria o ato de restituir ao livre uso dos homens o que havia sido separado, interditado, impossibilitado, desativando “os dispositivos do poder e devolvendo ao uso comum os espaços que ele havia confiscado.” (AGAMBEN, 2007, p. 67). Quanto ao hino, afirma Butler (2009, p. 91), o que se coloca “no es si el himno nacional debe ser cantado en español”, afinal, as pessoas deveriam poder cantá-lo na 280

língua que quisessem, se é que quisessem cantá-lo. A questão é: “¿todavía es el himno de la nación? ¿Puede ayudar a desmontar el nacionalismo? Creo que es una pregunta abierta para la que no tengo respuesta”. O cantar do hino, como uma atitude de contradição performativa poderia profanar a própria nação, tirando-a da sacralidade à qual foi remetida pelas fronteiras imunizatórias da Modernidade, e devolvendo-a ao uso do povo, para que este, a partir de sua pluralidade, se aproprie do termo e o ressignifique, ressignificando também todas as cesuras representadas pelas fronteiras que hoje aprisionam o sentido da humanidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso tempo é inegavelmente marcado por travessias e deslocamentos. Seja de corpos ou de almas obrigados a desterritorializarem-se, e re-territorializarem-se, em um mundo marcado por fronteiras que definem Estados ao mesmo tempo em que os cindem a partir das diversas nações que se constituem dentro deles. Enquanto vidas abjetas, contidas ou expulsas, são como restos, como lixo: desde os milhões conduzidos por trens aos campos de concentração nazistas aos contingentes de refugiados, banidos, imigrantes forçados pelas guerras pós-modernas e suas limpezas étnicas, passando pelos “sem papéis” que povoam as metrópoles, se é que não tenham terminado antes no fundo do mar, o mundo parece ter se tornado um turbilhão in fluxo, comportando multidões à deriva que margeiam as fronteiras que dividem o espaço territorial mundial, sejam elas territoriais, simbólico-culturais ou subjetivas. A partir destas figuras, simbolizadas no refugiado, sejam aqueles banidos para além das fronteiras, ou os aprisionados dentro delas, sem direitos nem garantias, enquanto vidas que não merecem serem vividas, é que urge a necessidade de revisão das categorias centrais da filosofia política moderna. Há mais de setenta anos, Hannah Arendt já fazia esta advertência, provocando uma verdadeira ruptura na filosofia política e na teoria dos direitos humanos. Era necessário desvincular os direitos da humanidade das fronteiras do Estado-nação, ou, o declínio de um (evidente em um mundo globalizado) irá necessariamente significar o declínio de outro. Quem irá proteger e garantir os direitos de cada ser humano? Há direitos para a humidade, ou melhor, há humanidade para além das fronteiras (físicas 281

ou simbólicas) do Estado-nação? Tais questionamentos ecoam em nossos ouvidos até hoje, e apesar de terem fundamentado a construção de um arcabouço “global” de proteção dos direitos humanos, como afirma a doutrina tradicional, os fatos atuais tem demonstrado nosso total fracasso e incapacidade de sequer encarar tal problema nos termos necessários. Agamben nos faz este alerta, e clama a que, se quisermos estar à altura das tarefas absolutamente novas que estão diante de nós, temos que nos decidir a abandonar sem reservas os conceitos fundamentais com os quais até o momento representamos os sujeitos do político (o homem, o cidadão, os direitos, o Estado, as fronteiras) e a reconstruir nossa filosofia política a partir de então. A este chamado de cunho arendtiano feito por Agamben, Judith Butler parece procurar responder. A partir de sua filosofia pós-estruturalista e dos estudos em gênero, coloca em cena as vidas abjetas, aquelas que não se adaptam aos padrões normativos vigentes e, portanto, estão excluídas da condição de cidadania e de humanidade tanto fora como dentro das próprias fronteiras do Estado-nação. A tentativa apresentada por Butler é a de pensar vínculos de humanidade e reconhecimento que estejam para além das fronteiras do Estado, levando este Estado a se libertar do grilhão que o vincula à nação (supostamente heterogênea). Libertar o Estado da nação, des-re-construir, deslocar suas fronteiras (físicas, simbólicas ou culturais) de modo a abarcar a humanidade presente nas mais diversas nações (enquanto vínculos de identidade e pertencimento) que existem dentro dele é seu objetivo. Se sua tentativa é bem sucedida ou não, não nos cabe julgar. O que nos cabe aqui é de forma singela contribuir com esta tarefa. Seja profanando, seja des-reconstruindo performaticamente, precisamos com urgência nos desacomodar e buscar novas formas de reencontrar os vínculos de humanidade perdidos nas fronteiras do Estado-nação.

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JUS STANDI INDIVIDUAL E O IDEAL DE JUSTIÇA INTERNACIONAL: A EMANCIPAÇÃO DO INDIVÍDUO ENQUANTO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL A PARTIR DA JURISDIÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Tamires de Lima de Oliveira1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS “É chegado o tempo para que o homem se dê a sua meta. É chegado o tempo para que o homem plante o germe de sua mais alta esperança” Friedrich Nietzsche.

A proteção internacional dos Direitos Humanos afirmada e reconhecida após anos de relutância e “fechar de olhos” da comunidade internacional marca, sem dúvidas, um (re)nascer do humano e o desenvolvimento de um novo paradigma ético e jurídico mundial. O Direito Internacional dos Direitos Humanos tem se mostrado nas últimas décadas bastante voltado à primazia do indivíduo em relação ao Estado, no sentido de reconhecer a vulnerabilidade do ser humano enquanto agende passivo dos direitos humanos, e ao mesmo tempo destacar seu potencial papel enquanto sujeito ativo, verdadeiro agente decisivo nas principais agendas da sociedade internacional. A manutenção da paz internacional e a promoção de valores de dignidade e justiça à humanidade são dois ideais que se mostram, cada vez mais, indissociáveis. De fato, no período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial e término da Guerra Fria o indivíduo parece ter surgido no cenário internacional tal qual a retratação surrealista de Salvador Dali na obra Criança Geopolítica Assistindo ao Nascimento do Novo Homem (1943): em meio a um cenário quase desértico de descaso à humanidade, rasgando em sangue a casca de um mundo enrijecido pela lógica do poder e dominação. 1

Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ - Brasil). Graduada em Direito pela mesma instituição. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Linha de Pesquisa: Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade. E-mail: [email protected].

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O problema sobre o qual versa este artigo, qual seja, a questão acerca das possibilidades de emancipação do indivíduo enquanto ator de importância e agora potencial sujeito de direitos na sociedade internacional, surge em um cenário não menos caótico que o ilustrado, em um contexto de constantes violações de direitos humanos, perpetradas, em grande maioria, ainda, por parte dos Estados nacionais, mas também por indivíduos particulares. Essa realidade constitui a subjetividade do ser humano em uma dicotômica identidade tanto de vítima, quanto de autor de violações de direitos humanos, criando uma potencialidade jurídica ativa e passiva. Isso, para além da valoração negativa ou positiva, faz com o que o ser humano passe a existir novamente enquanto sujeito cognoscitivo detentor do poder de, lado a lado ao Estado, agir em prol dos ideais da humanidade. O processo de legitimação dos indivíduos frente aos Tribunais e Cortes de Direitos Humanos representa um avanço nesse sentido, contribuindo o para a sofisticação dos sistemas internacionais de proteção e ao desenvolvimento do próprio Direito Internacional. O reconhecimento da legitimidade do humano, não apenas como vítima tutelada, mas como promotor ativo da defesa de seus direitos, contribui, ademais, para a formação de uma consciência jurídica internacional verdadeiramente humana, uma responsabilização deveras necessária para o alcance daqueles objetivos de manutenção de um mínimo de paz e justiça de forma universal. É sob esta ótica que este artigo objetiva analisar, através do método hipotéticodedutivo e com a técnica de pesquisa da revisão bibliográfica, a urgência do reconhecimento de um jus standi internacional do indivíduo perante as Cortes de Direitos Humanos, verificando a potencialidade de tal fenômeno em (re)ssignificar as bases tradicionais, positivistas e estatalistas do Direito Internacional, no sentido de humanização de princípios basilares, tais como a justiça internacional.

1 O indivíduo no Direito Internacional e o papel dos Tribunais Internacionais

Em âmbito filosófico e doutrinário, a discussão acerca da subjetividade internacional dos indivíduos vem se construindo ao longo de vários séculos. Ainda no estágio embrionário de desenvolvimento do Direito Internacional geral que conhece-se 286

hoje, a figura do indivíduo enquanto sujeito do então direitos das gentes permeou a filosofia jusinternacionalista de outrora. Entre os autores de destaque, considerados fundadores do direito internacional e que compõem a filosofia de base do Direito Internacional e da sociedade internacional Moderna, destacam-se Francisco de Vitória, Francisco Suárez, Emmerich de Vattel e Hugo Grotius, pensadores que vivenciaram um complexo período de transição entre o paradigma medieval teocêntrico e o nascimento da modernidade secularizada, fundada nas razões de Estado e na consolidação das soberanias estatais. Iniciando por Francisco de Vitória, que compõe em grande parte o pensamento da Segunda Escolástica espanhola, no que concerne ao tema dos sujeitos de direito internacional, a contribuição vitoriana reside na substituição realizada pelo autor do termo hominis por gentes, designando nações (ainda que nações cristãs e não políticas) ao tratar da transição do jus gentium para um jus inter gentes. Dessa forma, segundo Paulo E. V. Borges de Macedo (2010), o autor contribuiu para a visão positivista-estatalista que viria a se consolidar mais tarde, principalmente por considerar o direito das gentes como parte do direito positivo. Ademais, ao reconhecer também aos povos não-cristãos a possibilidade de exercer autoridade soberana e domínio sobre seus territórios – mesmo que em um domínio “precário” –, Vitória estabeleceu as bases para que releituras de sua obra pudessem identificar em sua communitas orbis um direito entre os povos, de natureza positivista, inserto numa sociedade internacional sobreposta à soberania estatal. A noção de comunidade humana, como destinatária do direito internacional, encontra-se também na doutrina de Francisco Suárez, que ao conceituar o direito das gentes, afirma que a razão de ser desse direito é o gênero humano, de modo que cada Estado é também um membro dessa comunidade humana universal apenas na medida em que é constituído por esta humanidade (MACEDO, 2014). Pouco mais tarde, Emmerich de Vattel (MANCUSO, 2014) inova transmutando essa compreensão para a teoria da soberania estatal, transferindo a titularidade do poder soberano do Estado para a Nação, que passaria a ser o real sujeito de direito internacional. Na abordagem de Hugo Grotius sobre a questão dos sujeitos de direito internacional, de acordo com Arno Dal Ri Jr. (2004) verifica-se o abandono da visão realista predominante e a adoção de uma base humanista. Grotius considera os 287

indivíduos como sujeitos do direito natural e do jus gentium, no sentido de que o código moral aplicado aos Estados deveria ser o mesmo que o aplicado aos indivíduos, sugerindo um direito criador de obrigações e deveres tanto para Estado, quanto para indivíduos. O centro da consolidação do Estado como detentor de todo o poder tem seu marco após a Paz de Vestfália. O paradigma das relações internacionais passa a pautarse exclusivamente nas relações de poder entre os Estados soberanos (BEDIN, 2011), logo, a conduta dos indivíduos significa a própria conduta do Estado, ou seja, inexiste a figura da responsabilidade individual, mas tão somente a responsabilidade estatal. O direito internacional tradicional, vigente até a segunda metade do século passado, foi marcado pelo voluntarismo estatal, sob o manto do paradigma de uma soberania absoluta e, consequentemente, excludente e individualista. O modelo vestfaliano induzia a atomização e fragmentação (no sentido de exclusão e diferenciação) da comunidade internacional. Com o advento do positivismo jurídico e a consolidação dos Estados-nação – e a ilusão da soberania absoluta –, o papel do indivíduo relegou-se a um status de coadjuvante quase não-existente ante o direito internacional. Diz-se isso tanto no plano teórico quanto no plano pragmático da realidade internacional. Não se olvida, contudo, que a questão da subjetividade do indivíduo não passou despercebida da doutrina juspositivista moderna, principalmente pelo viés da responsabilização internacional individual. Hans Kelsen, em obra intitulada A paz pelo Direito (2011) argumenta que a manutenção da paz internacional necessitaria de dois pilares básicos: a instituição de tribunais internacionais de jurisdição compulsória e a adoção de responsabilização individual por atos contrários ao direito internacional público. A preocupação do momento direcionava-se à efetivação de um Direito Internacional nos moldes do direito estatal, que pudesse ser hard em seu poder vinculante, com instituições fortes, capazes de estabilizar conflitos e regular condutas. As pautas da agenda internacional de então voltavam-se para questões de guerra, comércio, conquista territorial, expansão tecnológica. O indivíduo estava ali, mas não estava. Foi, novamente, no âmbito do direito de guerra que as preocupações com a pessoa humana do indivíduo na sociedade internacional voltaram a ter importância, 288

através do chamado direito humanitário. O Direito Internacional Humanitário teve sua origem com a Convenção de Genebra de 1864, que objetivava “melhorar a sorte dos militares nos exércitos em campanha”, sendo responsável pela criação da organização internacional Cruz Vermelha (referida no artigo 7º). A este texto seguiram-se a Segunda (1906), a Terceira (1929) e a Quarta Convenção de Genebra (1949), que ao lado das Convenções de Haia contribuíram para a codificação de normas costumeiras de proteção humanitária em tempos de conflitos (MELLO, 1997). O papel do indivíduo, nesse contexto, era tangencial e vitimado. Uma consequência da guerra, cujo cuidado ficava muito mais a cargo das organizações internacionais humanitárias, que dos Estados diretamente. Especialmente no decorrer das 1ª e 2ª Guerras Mundiais esse papel se destacou. Ações de organizações como Médicos Sem Fronteiras marcam episódios importantes no processo de conscientização política, da necessidade de proteção internacional do ser humano e relativização do paradigma absoluto da soberania estatal. Relata Mario Bettati (1996) que anos que se seguiram após a elaboração da Carta da ONU, iniciou-se um acirrado debate jurídico e político a fim de definir quais os assuntos seriam essencialmente decorrentes da competência nacional, ou seja, assuntos estritamente internos. Isso tinha especial relevância porque envolvia saber até que ponto estaria relativizado o princípio da não-intervenção (corolário da soberania estatal) subscrito no artigo 2º, §7 da Carta, pois havia enorme resistência entre os Estados em reconhecer que a defesa dos Direitos Humanos pudesse ultrapassar suas fronteiras domésticas. Assim, inúmeros países adotavam uma lista tão vasta quanto possível do que seriam tais “assuntos” e consideravam qualquer hipótese de intervenção internacional como a mínima interferência em seus atos internos. A África do Sul, por exemplo, um dos primeiros países a dar interpretação restritiva à Carta, se opunha a qualquer olhar exterior sobre suas políticas racistas, notadamente com relação ao Apartheid. Outrossim, a realidade das grandes guerras do século XX, trouxe à tona a figura do indivíduo também em outro contexto, não apenas como destinatário de proteção humanitária, mas como potencial responsável por ilícitos internacionais. O término das guerras e a necessidade de punição dos “culpados”, acelerou a especialização de um 289

direito internacional penal, principalmente em matéria jurisdicional. Dos eventos que marcam essa especialização, destaca-se o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, responsável pela criação do chamado “Direito de Nuremberg”, um conjunto de resoluções da Assembleia Geral da ONU e tratados internacionais objetivando a punição dos autores de crimes contra a humanidade. Na prática isso implicava um reconhecimento da possibilidade de afastar a imunidade dos agentes públicos para puni-los individualmente por ilícitos internacionais graves (RAMOS, 2012). Posteriormente, já no final do século XX, o Conselho de Segurança da ONU instituiu tribunais penais internacionais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para Ruanda, destacando novamente a preocupação em punir crimes bárbaros contra a humanidade, marcando a estabilidade da preocupação internacional com a penalização em matéria de proteção humanitária. Recentemente, essa questão foi cristalizada com a criação do Tribunal Penal Internacional, primeiro tribunal com jurisdição compulsória e legitimidade para julgar diretamente indivíduos responsáveis por crimes internacionais (TRINDADE, 2013). Perceba-se que, nesses casos, indivíduos foram pessoalmente responsabilizados por violações do Direito Internacional, ou seja, foi-lhes atribuída uma espécie de jus standi indireto e subjetividade passiva internacionais. No entanto, é possível também perceber que, até aqui, o indivíduo adquiriu a forma de, pelo menos, três personagens ante o Direito Internacional moderno: a) mero elemento da concepção de Estado, inserido no elemento “povo”; b) membro vitimado da comunidade internacional, destinatário de ajuda humanitária; c) indivíduo responsável e responsabilizável em determinados casos por crimes internacionais. Todos esses personagens encerram um caráter passivo ao indivíduo (apenas ativo enquanto autor de ilícito), que deve ser protegido, pode ser demandado e encontra-se sob a soberania de um ente internacional. É no contexto de internacionalização dos direitos humanos que processo de atribuição de um caráter propriamente ativo e o reconhecimento do protagonismo do indivíduo enquanto sujeito de direito internacional, passa a tomar forma concreta. Destaca-se, no quesito normativo, a adoção da Carta da ONU em 1945, sob a qual os Estados signatários comprometeram-se a “reafirmar a fé nos direitos 290

fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano”, bem como o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, à qual seguiram-se às convenções regionais. Entretanto, pouca significatividade teriam tais normas não fosse a ação efetiva das Cortes Regionais, que compõem o chamado Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, integrado pela Declaração de 1948 e pelos Sistemas Regionais de Proteção, quais sejam, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Africana de Direitos do Homem e dos Povos (CADHeP), bem como suas respectivas Declarações Regionais e os Estatutos.

2 A legitimidade do indivíduo nos Sistemas Regionais de Proteção Internacional dos Direitos Humanos

A construção da personalidade jurídica internacional, através do acesso individual aos sistemas de proteção de direitos humanos – no sentido da humanização do Direito e dos meios de acesso à jurisdição –, desafia a ressignificação dos conceitos mais tradicionais do Direito Internacional. Noções há muito arraigadas – tais quais competência nacional exclusiva, domínio reservado do Estado e soberania – se não ultrapassadas, estão, ao menos, bastante relativizadas. Realmente, a própria concepção de identidade nacional já não mais se sustenta em moldes absolutos, em face do multiculturalismo e da globalização cultural e mercadológica. Em especial no que se refere ao reconhecimento de subjetividade internacional aos indivíduos, as cortes internacionais de Direitos Humanos, assumem papel preponderante, compondo o processo maior chamado humanização do direito internacional. Tal processo se manifesta nos tribunais internacionais contemporâneos, através da ação destes em assegurar a centralidade das vítimas no processo internacional, buscando atender às reais necessidades da comunidade internacional (TRINDADE, 2013). A questão acerca da capacidade processual dos indivíduos teve suas primeiras discussões no âmbito da Corte Internacional de Justiça (CIJ) e sua antecessora, a Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI). Um comitê da então Liga das Nações foi designado, em 1920, para discorrer sobre o tema. Dos dez membros do comitê apenas 291

dois pronunciaram-se a favor do jus standi aos indivíduos. A maioria dos juristas presentes argumentaram que os indivíduos não são sujeito de direito internacional e que somente os Estados, na condição de pessoas jurídicas internacionais, poderiam ser partes perante a Corte (TRINDADE, 2002). Ainda na década de XX, Nicolas Politis em sua monografia Les Nouvelles Tendances du Droit International, criticou o pensamento estatalista, afirmando que os Estados nada mais são que ficções, uma vez que compostos de indivíduos, de modo que o real fim de todo Direito é o Ser humano. Uma verdade obscurecida pela ideia da soberania. De acordo com Politis, o acesso direto do indivíduo à Corte além de promover o direito de fazer valer seus interesses legítimos, traria ainda a vantagem de despolitizar o procedimento judicial (pautado na proteção diplomática discricionária do contencioso interestatal). No mesmo sentido, destacava-se a necessária evolução da organização internacional a fim de garantir ao indivíduo o direito de defender, ele próprio, seus direitos internacionalmente, independentemente da tutela de seu Estado e mesmo em desfavor deste (TRINDADE, 2002). Apesar de tais críticas, o pensamento pela não subjetividade dos indivíduos prevaleceu e foi mantido no texto legal do Estatuto da CIJ (artigo 34 (1)). A evolução para um regime de defesa geral de direitos humanos ocorreu apenas após os horrores do pós-Segunda Guerra Mundial. Na segunda metade do século XX é que firmou-se uma progressiva aceitação da capacidade processual do indivíduo. Capacidade esta expressamente conferida pelos Estados. A jurisprudência começou a mover-se nesse sentido, como, por exemplo, no caso da “Jurisdição dos Tribunais de Dantzig”, no qual opinou-se no parecer consultivo que tratados internacionais podem outorgar legitimidade diretamente a indivíduos (RAMOS, 2012). Com efeito, foi com a adoção do sistema internacional de proteção dos direitos humanos que alguns tratados passaram a prever a possibilidade de peticionamento individual perante tribunais internacionais – notadamente as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. As condições para a caracterização do indivíduo como sujeito do Direito Internacional, atualmente são duas: 1) o indivíduo deve possuir direitos/deveres regulados diretamente pelo Direito Internacional; 2) o indivíduo deve possuir capacidade processual tanto ativa quanto passiva para agir em juízo, caso cometa ilícitos internacionais ou para o pleito de direitos. Nesse contexto, a questão da 292

personalidade jurídica internacional do indivíduo, direciona a atenção principalmente para a responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos e para os limites da ação individual nestes casos (RAMOS, 2012). Observe-se que na processualística internacional dos direitos humanos o indivíduo já logra do chamado direito de comunicação, que consiste no requerimento aos tribunais internacionais de uma resposta acerca da denúncia de uma violação de direito humano, conforme prevê o artigo 24 da Declaração Universal de Direitos Humanos (RAMOS, 2012). O que usualmente se chama direito de petição, previsto nos estatutos das três cortes regionais de direitos humanos, por muito tempo consistiu na possibilidade de o indivíduo realizar diretamente uma espécie de denúncia de violação de direitos humanos, acionando os órgãos responsáveis pela instauração do processo – mormente, as Comissões de Direitos Humanos das Cortes – contra o Estado agressor. O peticionamento, como verdadeiro jus standi, no sentido de o indivíduo inaugurar o processo enquanto parte ativa e direta, foi inaugurado pela Corte Europeia de Direitos Humanos. De acordo com o Regimento da CEDH, que regulamenta o artigo 34 da Convenção (com as alterações dos protocolos nº 11 e 14), tanto indivíduos, quanto ONGs e grupos de indivíduos podem apresentar petições, agindo por iniciativa própria ou por meio de um representante, sendo vedado aos Estados criar quaisquer entraves ao exercício efetivo desse direito. Os critérios de admissibilidade das petições estão dispostos no artigo 35 da Convenção e envolvem: a) o esgotamento das vias jurisdicionais nacionais; b) que o pedido à Corte seja feito dentro do prazo de seis meses após a decisão final do tribunal nacional; c) a petição não pode ser anônima; d) não pode haver coisa julgada internacional, ou seja, a questão já ter sido examinada pela Corte ou submetida a outra instância judicial internacional, bem como não contenha nova informação relevante; e) a petição deve ser bem fundada, compatível com as disposições da Convenção e dos protocolos, não podendo caracterizar abuso do direitos de petição; f) o requerente necessita ter sofrido desvantagem significativa, com exceção do caso em que o respeito pelos direitos humanos exija a análise do pedido sobre o mérito, especialmente nos casos em que o caso não tenha sido devidamente considerado pelo tribunal nacional.. Importante mencionar que, antes da entrada em vigor do protocolo n. 14 à 293

Convenção, o procedimento judicial europeu seguia um modelo processualístico chamado modelo bifásico. Tanto as vítimas quanto os Estados-partes apresentavam suas petições à Comissão e não à Corte diretamente, cabendo à primeira analisar as alegações e decidir pela propositura da ação ou não. O procedimento era lento e o filtro bifásico, por vezes, constituía um dificultador da proteção dos direitos humanos. De acordo com Ramos (2012), desde o primeiro julgamento da CEDH, o Caso Lawless versus Irlanda (14 de novembro de 1960), até a data da extinção da Comissão (1998), haviam sido recebidas aproximadamente 45 mil petições, a Corte, no entanto, havia julgado somente 837 casos. Desde a modificação do procedimento, que permite agora o direito de ação direto das partes demandantes, os julgamentos cresceram exponencialmente, tendo-se chegado, apenas dez anos depois (2008) ao número de dez mil julgamentos. Embora isso caracterize uma maior abertura ao princípio do acesso à justiça, não se pode olvidar o problema orgânico que o sistema europeu enfrenta no que diz respeito à taxa de congestionamento (diferença entre entrada de petições e casos julgados). Essa é, atualmente, um dos maiores desafios e constante alvo de críticas à defesa da instituição do jus standi dos indivíduos perante tribunais internacionais. Apesar disso, o mencionado modelo bifásico é ainda o procedimento em vigor na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A CIDH ainda não prevê o peticionamento direto das partes, que devem submeter suas petições à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ademais, o indivíduo, neste sistema, não possui o direito de ação direta à Corte, tal qual no sistema europeu. Permanece apenas o direito de petição no sentido restrito, ou seja, de provocar a Comissão para análise do mérito e então acionamento ou não da Corte. Esta é a regra do artigo 61 da Convenção, segundo o qual somente a Comissão ou os Estados-partes podem demandar Estados perante a Corte. O indivíduo depende assim do intermédio da Comissão Interamericana ou do Estado para acessar a jurisdição regional. Casos concretos, no entanto, tem progressivamente destacado o valor da participação do indivíduo no contencioso internacional e, aos poucos, a ideia de abertura ao jus standi individual consolida-se nas opiniões da Corte e a tendência que se vislumbra é de que a CIDH siga o molde europeu atual (TRINDADE, 2002). Interessante observar que a mais recente Corte a compor os sistemas regionais 294

de direitos humanos, a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos, já deu passos nesse sentido, ainda que de forma meramente formal. Em relação ao direito de ação à Corte, esta prevê o que se tem chamado de acesso condicionado do indivíduo, sob a qual o indivíduo e organizações não-governamentais podem acessar diretamente as Cortes, mas dependem da adesão facultativa dos Estados-partes (RAMOS, 2012). Quanto a esse modelo, Ramos (2012), chama atenção para as dificuldades que o indivíduo ou ONG enfrentam para ter acesso à Corte, pois além da declaração estatal de anuência mencionada, existe a discricionariedade da própria Corte em aceitar ou não a ação individual. O que se percebe, não apenas na Corte Africana e Interamericana, mas também na Europeia, é que a proteção internacional dos direitos humanos é subsidiária e que a visão estatalista ainda predomina, apesar de suas diferenças quanto a uma maior ou menor abertura de legitimidade ao indivíduo. O sistema regional e global de proteção dos direitos humanos é um sistema que, nas palavras de Ramos (2012, p. 53), age “na falha do Estado”. Falha esta que, em regimes democráticos, não é reparada principalmente por conta do engendramento dos mecanismos de ação por parte das maiorias que capacitam o poder estatal. É nesse sentido, refere o autor, que a interpretação internacional dos direitos humanos tem a importante característica de ser contramajoritária, “porque as violações que chegaram ao crivo internacional não foram reparadas mesmo após o esgotamento dos recursos internos (a visão majoritária)”. É por conta disso, também, que a afirmação e o reconhecimento da personalidade e capacidade jurídicas internacionais do homem perante os tribunais internacionais de direitos humanos, inclusive em litígio contra o próprio Estado, constitui um dos avanços mais importantes na realização do ideal de justiça internacional. Juntamente ao elemento de obrigatoriedade dessas jurisdições, o direito de ação forma os pilares básicos da emancipação do ser humano enquanto sujeito de direito internacional e contribui para a realização do ideal de justiça internacional (TRINDADE, 2010). A busca da justiça internacional se materializa, portanto, na própria expansão da função jurisdicional internacional. E, embora a eficácia normativa desta justiça continue a ser um problema dos Estados, no plano mundial este fenômeno de jurisdicionabilidade dos Direitos Humanos demonstra que os mecanismos processuais 295

da contemporaneidade são perfeitamente mutáveis para adequar-se às necessidades emergentes da comunidade internacional. Evidencia-se isso, por exemplo, quando se constata que mesmo quando determinados direitos humanos não estão positivados, permanecem vinculados a uma expectativa de eficácia por parte da sociedade, sendo potencialmente capazes de legitimarem-se pela atuação de um organismo judicial.

3 Justiça Internacional e Direito Internacional dos Direitos Humanos: O (re)nascimento jurídico do ser humano em nível global

Ao observar o caminhar do direito na sociedade internacional contemporânea, marcada pela lógica de proteção e efetivação de direitos humanos, constata-se que, como bem articula Cançado Trindade (2013, p. 12), “no âmbito do novo jus gentium de nossos dias, a pessoa humana tem logrado emancipar-se de seu próprio Estado, e acudir à justiça internacional, sempre que este se afasta de seus fins humanos e se transforma em mecanismo de opressão”. A noção de justiça internacional da atualidade liberou-se das amarras da mera prática dos Estados, e agora efetivamente vindica para si a sua função legítima de dizer o direito, tarefa vinculada à responsabilidade maior e inevitável de proteção e afirmação de direitos básicos de dignidade à humanidade. É preciso demonstrar e comprovar que o direito internacional não se reduz a um instrumento de poder, mas que “su destinatário final es el ser humano, debiendo atender a sus necessidades e aspiraciones básicas, entre las quales se destaca la de la realización de la justicia” (TRINDADE, 2013, p. 24). Conforme afirmam Arruda Junior e Gonçalves (2002, p. 125) hoje “a busca de uma ordem na desordem é absolutamente uma questão de vida ou morte para a humanidade”. Encontramo-nos em meio a um esforço para “relacionar diagnósticos da promessa moderna, receituário das modernizações experimentadas nos séculos XIX e XX, e prognósticos para este século”. Veja-se que em uma perspectiva positivista, a justiça representaria um péssimo critério a seguir devido à sua incerteza e relatividade. No entanto, quando a questão entre direito e justiça é dialogada não mais apenas do ângulo jurídico interno, mas através de um mínimo ético internacional, há uma modificação interessante. Isso, 296

porque esse mínimo ético não representa uma concepção específica de justiça, mas uma espécie de fundamento ou estrutura que permite a eficácia normativa do direito (ARRUDA JUNIOR; GONÇALVEZ, 2002). Nesse sentido, em meio às perspectivas atuais, os direitos humanos representam o que de mais próximos temos semelhante a um “consenso axiológico vigorante em meio ao politeísmo de valores das sociedade mundiais, mesmo com todas as armadilhas que possam daí surgir” (ARRUDA JUNIOR; GONÇALVEZ, 2002,p. 128). Esse consenso tem se formado não somente através de acordos internacionais, mas especialmente pela atuação das Cortes internacionais de direitos humanos. Os tribunais internacionais contemporâneos contribuem de forma progressiva para a expansão da jurisdição internacional, que está vinculada à própria afirmação e consolidação da personalidade jurídica internacional do ser humano, como sujeito tanto ativo, como passivo do Direito Internacional, em face dos tribunais internacionais de direitos humanos (legitimidade ativa) e dos tribunais penais internacionais (legitimidade passiva). A busca da justiça se materializa, portanto, na própria expansão da função judicial internacional. Em que pese a eficácia normativa desta justiça de que tratamos continue a ser um problema dos Estados, no plano mundial este fenômeno de jurisdicionabilidade dos direitos humanos demonstra que os mecanismos processuais positivos da contemporaneidade não são estáticos, mas mutáveis. Mesmo quando direitos humanos não estão positivados, permanecem vinculados a uma expectativa de eficácia por parte da sociedade, sendo potencialmente capazes de constituir-se em “direito forte” pela atuação de um organismo judicial. Sob o prisma dos Direitos Humanos, a concepção de justiça parece perpassar a noção de Rawls (2002, p. 694), que a aproxima de uma ideia de equidade, segundo a qual “a sociedade não está subdividida no que diz respeito ao reconhecimento mútuo de seus princípios primeiros”. Isso contribui para a ação unificadora da concepção de justiça. Antes de ser instrumento de legitimação genérica de queixas, como aduz Rawls, serve de instrumento de reconciliação no coque de visões e reivindicações diversas, reconciliando através da razão, ou seja, partindo daquilo que todas as partes envolvidas têm em comum. Daí a importância da noção de que a justiça deve partir de algum consenso, 297

como se pode resgatar das teorias dos pais fundadores do Direito Internacional, notadamente da obra grotiana. Essa ideia hoje se encontra na noção de consciência jurídica universal (TRINDADE, 2013), como resultado da evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos e da ascensão da pessoa humana como sujeito do Direito Internacional, que cria uma espécie de nova ethos a ser seguida e traduz a justiça internacional tanto como uma busca por um ideal ético comum de dignidade humana, quanto a efetivação desse ideal através de mecanismos jurisdicionais adequados e eficientes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dois principais marcos jurídicos em matéria de direitos humanos da sociedade internacional, quais sejam o advento da Carta da ONU de 1945 e da subsequente Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, aos quais seguiramse as Cartas regionais, ocasionaram o que pode ser chamado de (re)nascimento do indivíduo enquanto ator de acentuada importância em âmbito internacional, cuja própria subjetividade já começa a ser ventilada. Em que pese esta seja uma discussão bastante contemporânea, muito antes, juristas e filósofos que hoje reconhecemos como fundadores do direito internacional depararam-se com questões de impressionante atualidade, entre elas a existência de um direito comum a toda a humanidade e a possibilidade de sua afirmação, um direito das gentes verdadeiramente no sentido ético da palavra, destinado aos indivíduos e aos povos como um todo e não somente originário desta inter-relação. Nestes tempos, em que a aproximação entre direito e justiça retorna à reflexividade intelectual autores, como Hugo Grotius (2005, p. 981), que escreveu há mais de cinco séculos, relembra o que a Modernidade apenas recentemente e após terríveis eventos reconheceu: que “cada indivíduo não é somente vingador de seu próprio Direito, mas [...] é também daquele de outrem”. Neste cenário, a questão a respeito da necessidade de afirmação de um direito internacional válido e efetivo reveste-se de um novo viés. Antigos princípios de raiz humanista retornam ao debate internacionalista, dentre eles, a busca pela efetivação de um ideal de justiça internacional e o reconhecimento da subjetividade humana 298

perante o direito internacional, hoje relacionados a um mínimo ético e dignitário sob a égide dos direitos humanos. Dessa forma, é que a questão da necessidade de reconceituação das bases do ordenamento jurídico internacional, e dos conceitos outrora cristalizados pela lógica estatalista e positivista, toma espaço definitivo na prática e na teoria do direito internacional. O reconhecimento do jus standi internacional dos indivíduos, enquanto seres humanos igualmente dotados de uma prerrogativa inata e cosmopolita de ver defendidos e efetivados seus próprios direitos, é um passo decisivo para o reestabelecimento do “elo perdido” entre a humanidade e o direito.

REFERÊNCIAS

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DA SOCIEDADE INTERNACIONAL CLÁSSICA À CONTEMPORANEIDADE: O PAPEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NA TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS

Aline Michele Pedron Leves1 Pâmela Copetti Ghisleni2 Se alguém me perguntar quais são, na minha opinião, os problemas fundamentais do nosso tempo, não tenho qualquer hesitação em responder: o problema dos direitos do homem e o problema da paz. Norberto Bobbio

INTRODUÇÃO

Os problemas da paz e do respeito aos direitos humanos há muito permeiam o panorama da sociedade internacional, território significativamente distinto das sociedades domésticas e dotado de uma complexidade em ascensão nunca antes vista. As inúmeras transformações pelas quais passa a comunidade internacional alteram, também, as demandas de cada período histórico. Contudo, a paz e os direitos do homem parecem uma constante, de modo que não surpreende que ambos sejam temas recorrentes nas teorias de filósofos e cientistas políticos, inclusive no Segundo Pós-Guerra. De fato, a contemporaneidade nos espanta com verdadeiros paradoxos e esquizofrenias quanto à construção de uma sociedade pacífica e de respeito aos direitos humanos. Isto porque, apesar dos significativos avanços rumo à proteção de direitos a duras penas conquistados, violações brutais ocorrem todos os dias nos inúmeros cantos do planeta. Portanto, mais do que necessária, a progressiva (re)construção da ideia de direitos humanos e, por consequência, de uma sociedade de paz, deve ser nutrida incessantemente, efetivando-se uma sociedade mais justa e igualitária. ¹ Acadêmica do Curso de Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ e Bolsista PIBIC/CNPq do Grupo de Pesquisa: Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade. [email protected]; 2 Mestranda e Bolsista CAPES do Curso de Mestrado em Direitos Humanos do Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. [email protected].

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A iniciativa de compreensão dos desafios preordenados pelo atual panorama internacional implica, necessariamente, na apreciação da sociedade internacional clássica (mais estável, rígida em sua estrutura e com baixos vínculos institucionais), do declínio da soberania dos Estados modernos e da crescente interdependência global. Tal relação multicêntrica e interdependente tem respaldo no fenômeno da globalização, na relativização da soberania e, por conseguinte, no surgimento dos novos atores políticos internacionais com participação cada vez mais significativa na sociedade contemporânea do Segundo Pós-Guerra, mais dinâmica e integrada. Com a emergência dos novos atores internacionais, novos pressupostos foram estabelecidos como sendo relevantes para a manutenção da paz mundial e da proteção aos direitos inerentes a toda a humanidade. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU), ao lado de outras importantes instituições, apresenta-se como um organismo tendente a amenizar as violações de direitos humanos ocorridas na contemporaneidade e ao resgate de valores como a alteridade e a empatia. Assim, são evidentes os dinâmicos processos de construção e reconstrução da sociedade internacional, o que justifica estudos como o presente, a fim de que a temática se mostre cada vez mais relevantes frente à crescente complexidade do cenário global contemporâneo. Nesse ínterim, objetiva-se, por meio do método hipotético-dedutivo, trazer análises acerca das transformações que delinearam o palco da sociedade internacional, da clássica à contemporânea, bem como considerações sobre a atuação da ONU na tutela dos direitos humanos universais e no estabelecimento de uma comunidade de paz.

1 A SOCIEDADE INTERNACIONAL CLÁSSICA: O DECLÍNIO DO CONCEITO DE SOBERANIA E A RUPTURA DOS PARADIGMAS MODERNOS

Houve um momento na história da civilização em que o Estado tinha o privilégio de ser, praticamente, a única entidade política reconhecida. Esse processo de centralização e concentração política culminou, lenta e gradativamente, no delineamento do Estado moderno soberano, o qual foi consequência da convergência de uma série de acontecimentos históricos significativos que marcaram a Idade

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Média3, dentre os quais se destacam a desagregação e o colapso do regime feudal, o declínio do papado, o florescimento do comércio, o Renascimento e a emergência da reforma protestante. Nesse sentido, tais eventos contribuíram para o nascimento do Estado moderno, o qual venceu uma série de obstáculos que foram lhe delineando. Internamente superou o poder dos senhores feudais e externamente afastou a supremacia que até então tinha o Sacro Império Romano-Germânico, assim como fez com as pretensões da Igreja Católica. Desse modo, afirmou-se como um ente político independente e dotado de soberania. Em resumo, o elemento central que demarca o surgimento da sociedade internacional clássica (ou moderna) é o Estado moderno soberano, principal unidade política – senão a única – dessa etapa da trajetória humana e da sociedade, cuja duração histórica é de aproximadamente 300 anos (1648-1948). A soberania estatal típica da sociedade internacional clássica fez do conflito um elemento praticamente constante, tendo predominado a maior parte desse período histórico. Martin Wight (2002, p. 82) chega a afirmar que a sociedade internacional clássica caracteriza-se “como uma anarquia – uma multiplicidade de potências sem governo”. Entretanto, embora em menor escala, tréguas de paz também existiram, situações nas quais vigeu o chamado sistema de equilíbrio de poderes, a exemplo da Paz de Westfália (1648) que encerrou a Guerra dos Trinta Anos 4 e, mais do que isso, marcou os primórdios da atual sociedade internacional, consolidando o Estado soberano, afirmando a igualdade jurídica entre as nações e os princípios da soberania e da igualdade estatal. Portanto, verifica-se que a Paz de Westfália surge como a primeira tentativa de estabelecimento de uma nova ordem na sociedade interestatal, uma vez que os Estados integrantes da sociedade internacional clássica passaram a aceitar a 3

Por Idade Média entende-se o período histórico compreendido entre a queda do Império Romano, no século V, e o surgimento do Renascimento, no século XV. Trata-se de um período demasiadamente longo e de transição entre o mundo antigo e o mundo moderno, marcado por formas de sociabilidade predominantemente rurais ou agrárias. Nesse período de descentralização ou de fragmentação do poder, a Igreja exercia um papel fundamental. 4 A Guerra dos Trinta Anos teve início em 1618 e foi concluída anos mais tarde, com a assinatura dos tratados que constituíram a Paz de Westfália, em 1648. O conflito dinástico-religioso envolveu praticamente toda a Europa e em princípio esteve localizada na parte central europeia, especificamente nos Estados alemães.

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coexistência de várias unidades políticas e, consequentemente, compreenderam a necessidade de que todas deveriam ser tratadas em igualdade de condições. Deste modo, Bedin (2001, pp. 185-186) elenca as seguintes características ou princípios nucleares que garantiram especificidade à sociedade internacional clássica: a) é uma sociedade universal, porque abrange todas as entidades políticas soberanas do globo terrestre; b) é uma sociedade aberta, pois toda a nova entidade política reconhecida como soberana passa a fazer parte, imediata e automaticamente, de sua organização; c) é uma sociedade igualitária, ou seja, todos os seus membros possuem os mesmos direitos e as mesmas obrigações, uma vez que todos os seus membros constituem entidades políticas soberanas; d) é uma sociedade sem um poder supranacional, isto é, cada membro da sociedade é árbitro legítimo de suas próprias convicções; e) é uma sociedade descentralizada, pois o poder é exercido de forma dispersa pelos vários participantes da sociedade; f) é uma sociedade que não estabeleceu o monopólio da coação física legítima e nem órgãos centralizados para exercer as funções derivadas desse eventual monopólio; g) é uma sociedade que possui uma moral e um direito muito específicos, diferentes de todas as disposições éticas e jurídicas de cada uma das entidades políticas que participam da sociedade.

Relativamente aos aspectos teóricos envolvidos na sociedade internacional clássica, o paradigma do realismo político predominou de forma praticamente absoluta5. Importante anotar que tal paradigma tem forte fundamento em Nicolau Maquiavel (2010), com sua tese de que os fins justificam os meios, e em Thomas Hobbes (2012), no sentido de que a relação entre os Estados consiste na guerra de todos contra todos (estado de natureza). Por conseguinte, a soberania externa dos Estados equivale, na sociedade internacional clássica, a uma liberdade selvagem que reproduz o estado de natural desregramento (FERRAJOLI, 2002). Isto gera o que Thomas Hobbes (2012) chamou de bellum omnium (guerra de todos), fazendo com que os Estados, na busca incessante pelo poder, constituam-se como “leviatãs”, permanentemente dispostos à guerra. Essa soberania dos Estados modernos, aliada ao incremento massivo do poderio e da capacidade bélica das nações, culminou – e nem poderia ser diferente – nas duas grandes guerras mundiais. Daí, pode-se afirmar que o modelo dos Estados soberanos permaneceu intacto até meados do século XX, quando então ocorreram profundas alterações nas relações internacionais. Nesse sentido, merece especial atenção o megaconflito bélico da Segunda 5

Importante anotar que no período compreendido entre 1919 e 1939, o realismo cedeu espaço ao paradigma do idealismo que, inclusive culminou na Sociedade ou Liga das Nações (BEDIN, 2011).

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Guerra Mundial, o qual perdurou de 1939 a 1945, envolvendo a maior parte das nações do mundo, as quais estavam organizadas em duas alianças militares opostas: os Aliados (comandados pelos Estados Unidos, Grã Bretanha e União Soviética) e as Potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Os principais envolvidos empreenderam toda sua capacidade econômica, científica e industrial na guerra, de modo que foi o confronto armado mais abrangente e letal da história da humanidade, muito lembrado, inclusive, pelas trágicas violações aos direitos humanos (TOTA, 2011). Foi, de fato, um conflito sangrento que ocasionou danos irreparáveis à humanidade. O racismo esteve presente e deixou uma ferida grave, principalmente na Alemanha, país onde os nazistas cometeram o holocausto – matando milhares de judeus, homossexuais, negros, ciganos e prisioneiros de guerra, nos campos de concentração –, com o objetivo de garantir a superioridade da raça ariana. Assim, a Segunda Guerra Mundial deixou um rastro de morte, destruição, diversas cidades em ruínas e dívidas incalculáveis, além dos indivíduos que restaram feridos, mutilados, sem moradia e família. Nesse sentido, para Gilbert (2009, p. 11): A Segunda Guerra Mundial conta-se entre os conflitos mais devastadores da história da humanidade: mais de quarenta e seis milhões de militares e civis pereceram, muitos deles em circunstâncias de uma crueldade prolongada e terrível. Nos 2.174 dias de guerra, que decorreram entre o ataque da Alemanha à Polônia em Setembro de 1939 e a rendição do Japão em Agosto de 1945 [...] não foram apenas quarenta e seis milhões de vidas que foram aniquiladas, mas a vida e a vitalidade vibrantes que elas tinham [...].

Tal conflito terminou tão somente em 1945, com a rendição da Alemanha e da Itália. O Japão foi o último país a se render, sofrendo um intenso ataque por parte dos Estados Unidos. Por isso, Tota (2011) assevera que a Segunda Guerra foi um confronto total no sentido lato da expressão, tendo em vista os sofisticados mecanismos empregados, a exemplo das bombas atômicas utilizadas pelos Estados Unidos para atingir o território japonês de Hiroshima e Nagasaki. O alcance de tais armas provocou – e ainda provoca – um intenso e constante medo, ameaçando o mundo com uma nova tecnologia de morte e destruição em massa. Posteriormente à guerra, a humanidade clamava por reconstrução. O fim do conflito internacional marcou o encerramento da hegemonia europeia e deflagrou a disputa entre o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, liderado pela União Soviética (URSS), anunciando os primeiros indícios da Guerra Fria. 305

Nesse contexto, foi fundada a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e promulgada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, com o objetivo de manter a paz, a segurança internacional entre as nações e garantir a proteção dos direitos inerentes a todos os seres humanos. Além disso, pode também ser evidenciado, o claro objetivo de limitar a soberania dos Estados e de romper com os paradigmas da sociedade internacional clássica (BEDIN, 2001). Diante disso, na sociedade internacional “a soberania do Estado deixa de ser uma liberdade absoluta e selvagem e, se subordina, juridicamente, a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos” (FERRAJOLI, 2002, p. 39). No que concerne a essa soberania dos Estados, o jurisfilósofo Hans Kelsen (2011, p. 33) já entendia que, no âmbito internacional, ela é relativa e não absoluta, conforme preceitua [...] A soberania dos Estados, como sujeitos de direito internacional, é a autoridade jurídica dos Estados sob a autoridade do direito internacional. Se soberania significa autoridade “suprema”, a soberania dos Estados como sujeitos de direito internacional não pode significar autoridade suprema absoluta, mas tão somente uma autoridade suprema relativa [...].

Deste modo, pode-se dizer que a configuração tradicional das relações internacionais da sociedade moderna, encontra-se, neste momento, em uma fase de esgotamento histórico, o que produz, consequentemente, uma grande crise construtiva. “É que se vive, na verdade, um momento de declínio da sociedade típica do mundo moderno – centrada no Estado soberano e no sistema de equilíbrio de poder” (BEDIN, 2001, p. 264). Isto significa que a atual sociedade internacional adquiriu, no Segundo Pós-Guerra, aspectos de uma comunidade institucional, menos anárquica e conflituosa. Nesse panorama de modificações, se desenvolve um mundo multicêntrico e interdependente, composto por várias coletividades dispostas à integração e à cooperação num sistema internacional mais integrado e institucionalmente regulamentado. Em virtude dessas transformações: [...] o conceito de soberania externa começa a entrar em declínio e, em consequência, novas relações se estabelecem entre os Estados. Desta forma, o velho mundo de Westfália (centrado na soberania absoluta do Estado) vai sendo deixado para trás, passando a ser valorizados novos temas e novos atores (principalmente de organizações internacionais e organizações não-governamentais). Com isto, passa a se conformar também

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uma nova fase do Direito Internacional (BEDIN, 2011, p. 10).

Por conseguinte, enquanto a sociedade internacional foi evoluindo para o estabelecimento gradativo de uma comunidade de direitos, o cenário começa, lentamente, a ser modificado a partir das relevantes transformações sociais pós Segunda Guerra Mundial. Neste momento os direitos humanos tornaram-se um tema global à maneira kantiana. Isto é, tais direitos passaram a representar o “reconhecimento axiológico do ser humano como fim e não meio, tendo direito a um lugar no mundo” (LAFER, 2006, pp. 148-149). Deste modo, passou a ser necessária a proteção de direitos humanos em caráter universal, independentemente de quaisquer circunstâncias, tutelando-se a dimensão humana presente em todos os homens.

2 A SOCIEDADE INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA: A EMERGÊNCIA DE NOVOS ATORES INTERNACIONAIS

Diante do novo desenho emprestado à sociedade internacional a partir da segunda metade do século XX e do início do século XXI, que agora toma a forma de uma verdadeira aldeia global, as relações internacionais contraíram relevante complexidade, polaridade incerta e um evidente vínculo de interdependência e cooperação entre os principais atores internacionais. Tais mudanças acarretaram na fragilização e no declínio da sociedade internacional clássica, alicerçando novas possibilidades e alternativas mundiais integradas, corroborando a construção de uma nova ordem mundial mais justa e solidária: a sociedade internacional contemporânea, delineada brevemente por Bedin (2001, p. 352) nos seguintes termos: De uma certa maneira, com as transformações das últimas décadas, ruíram todos os pilares de referência da sociedade internacional moderna, pois as relações que ainda se chamam de internacionais – mas que deveriam ser chamadas de transnacionais – adquiriram crescente complexidade em seus diversos aspectos, polaridade incerta entre os seus principais atores e o estabelecimento de vínculos de interdependência e de cooperação nunca antes imaginados. Por isso, pode-se afirmar que a sociedade internacional moderna entrou em declínio e que em seu lugar surgiu uma nova sociedade internacional [...] que se encontra, ainda, em profunda transformação.

Foi, sobretudo, a emergência de novos atores internacionais que determinou o declínio da sociedade internacional clássica. Destarte, assiste-se no momento atual à 307

conformação de uma nova ordem mundial, protagonizada pela coexistência dos Estados e de tais atores, bem como pelo delineamento e formulação das novas possibilidades e modelos teóricos paradigmáticos. Dentre esses novos atores internacionais, merecem destaque as organizações internacionais, as organizações não governamentais e as empresas transnacionais. As

organizações

internacionais,

também

chamadas

de

organizações

intergovernamentais, podem ser entendidas como sendo instituições internacionais criadas consensualmente pelos Estados soberanos e, que têm por objetivo a cooperação e melhoria das condições dos seus integrantes de um modo geral. As organizações não governamentais são aquelas criadas pela sociedade civil, mediante a associação voluntária dos indivíduos. Isto é, não são estruturas alicerçadas nos Estados, como ocorre com as organizações internacionais. Surgem, portanto, na falha da estrutura estatal justamente a fim de suprir as deficiências não sanadas pelo governo. Por fim, as empresas transnacionais possuem matriz em um dado país, tendo atuação em outros mediante instalação de filiais. Diante desse quadro, é fundamental destacar que o surgimento desses novos atores, na medida em que gerou um vínculo de interdependência entre as nações, possibilitou a emergência do paradigma de mesmo nome, sobre o qual Santos Júnior (2011, p. 209) discorre da seguinte forma: A teoria da interdependência emerge então como um instrumento teórico que procura encontrar respostas mais convincentes para a política mundial em um cenário de rápidas transformações. Não é uma teoria que surge para descartar as demais explicações sobre política mundial, mas tenta combinar aspectos que podem contribuir no desvelamento de processos econômicos e das instituições internacionais.

Em suma, a interdependência significa dependência mútua e colaboração recíproca entre todos os membros da sociedade internacional. Se é certo dizer que muitos benefícios decorreram dessa circunstância, do mesmo modo, também é certo afirmar que há riscos daí oriundos que podem culminar no surgimento de mais conflitos internacionais. Ademais, não se pode falar em interdependência sem mencionar o fenômeno da globalização, porque ele é causa e efeito, simultaneamente, dessa nova conformação de sociedade cujas fronteiras são mais facilmente permeáveis e 308

transponíveis. Nesse sentido, Renato Ortiz (1996, pp. 15-16) adverte que a globalização é um “fenômeno emergente, um processo ainda em construção. Mesmo a ciência econômica que melhor trabalhou o paradigma, reconhece a novidade do tema”. Embora os dizeres do autor datam do ano de 1996, é certo que esses apontamentos envolvendo o fenômeno da globalização persistem, restando somente a certeza de que as conexões entre os Estados se estreitarão cada vez mais. Conceitualmente falando, a globalização pode ser analisada a partir de vários pontos de vista diferentes, ou seja, econômico, financeiro, tecnológico, político, sociológico, cultural, jurídico etc. Em linhas gerais, para um melhor entendimento dos efeitos práticos que a globalização desencadeia, é possível resumi-la como sendo um processo responsável por alterar toda a configuração do cenário mundial, fazendo dele uma verdadeira aldeia global. Nesse sentido, Carlos Alberto Adi Vieira (1999, pp. 152153) aborda a globalização dos pontos de vista marxista e ultraliberal: Sob a ótica marxista, a globalização seria um estágio mais avançado da seleção natural, a partir de mecanismos opressores cada vez mais sofisticados, sustentados pelo uso de tecnologias complexas empregadas na produção de bens materiais e culturais [...] Sob a ótica ultraliberal, a globalização é um estágio superior no processo de desenvolvimento da humanidade. Neste caso, há um estado de euforia em torno das enormes perspectivas advindas das potencialidades contidas nas novas tecnologias (satélites, fibra ótica, automação, informática e engenharia genética).

Assim, não se está afirmando que com o processo de globalização há uma aniquilação da soberania dos Estados, tampouco que o princípio da soberania se acaba. Mas é preciso entender que há um sério comprometimento do instituto da soberania e das suas prerrogativas, vale dizer, o Estado recebe atribuições outras. Otfried Höffe (2005, p. 17) chega a afirmar, com toda razão, que “[...] surge um emaranhado de relações, em virtude das quais nenhum Estado pode viver sua própria história sem ser influenciado por todos os outros”. Nesse contexto, com o impacto direto da era da globalização, a soberania e a autonomia dos Estados são relativizadas e fragilizadas pelo extraordinário aumento das interconexões globais, sendo essa uma característica estruturante da sociedade internacional contemporânea. Por tais razões, discorrendo sobre a pluralidade de conflitos oriundos desse fenômeno, Ferrajoli (2002, p. 49-50) preceitua que: De fato, paradoxalmente, são justamente a rapidez e a multiplicidade das comunicações que acentuaram o anseio de identidade dos povos, das

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etnias, das minorias e, ao mesmo tempo, o valor associado às diferenças, acendendo conflitos étnicos desagregadores dentro das fronteiras dos Estados e processos inversos de integração nacional fora delas [...]

Fica claro, então, que se anteriormente os confrontos eram marcadas pelo caráter estritamente local, na contemporaneidade, esses embates dizem respeito não somente à região na qual ocorre a disputa, mas a todas as demais nações que compõem a aldeia global, atingindo um número indeterminado de pessoas. Assim, com a globalização dos conflitos e da violência, torna-se necessária a proteção universal dos direitos humanos na comunidade internacional da maneira mais abrangente possível. Fato é que, mesmo diante da globalização, o Estado moderno não chegou a desparecer e provavelmente não desaparecerá abruptamente. Todavia, Bedin (2001) entende que é prudente reconhecer que a autonomia e a soberania estatal cedem poder a outros órgãos, instituições e entidades menos soberanos e mais integrados num projeto comum, cujo fundamento basilar reside no fato de que os problemas são interdependentes e globalizados, de modo que interessam a todos os homens e não apenas a grupos isoladamente considerados da humanidade.

3 A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E O IDEAL DOS DIREITOS HUMANOS UNIVERSAIS

Os antagonismos, paradoxos e incoerências da sociedade internacional exigiam uma solução pacífica eficaz. Surge, então, a proposta da constituição de organismos internacionais capazes de estabelecer uma paz duradoura para reparar, na medida do possível, todo o sofrimento e o horror a que foi submetida à humanidade nos 2.194 dias de guerra. Deste modo “o organismo pensado para coordenar as diretrizes para a manutenção da paz foi a ONU” (TOTA, 2011, p. 387). Fica evidente, portanto, que com o fim da Segunda Guerra Mundial, tornou-se evidente a necessidade de proteger direitos humanos e buscar uma comunidade de paz não somente em esfera local, mas em todo âmbito universal. Nesse sentido, Bobbio (2009, p. 11) já afirmava que “se alguém me perguntar quais são, na minha opinião, os problemas fundamentais do nosso tempo, não tenho 310

qualquer hesitação em responder: o problema dos direitos do homem e o problema da paz”. Por conseguinte, fica evidente que ao passo que a sociedade internacional se tornou cada vez mais universal até chegar a abraçar todos os povos da terra, universalizou-se a falta de segurança, a necessidade da pacificação mundial e a proteção internacional dos direitos humanos. Com vistas à cooperação dos Estados para a manutenção da paz mundial, da segurança internacional e do respeito aos direitos humanos, a ONU foi criada em 24 de outubro de 1945. Há mais de setenta anos, essa organização de caráter universal, da qual participam 193 Estados-membros, coloca-se como pilar sustentador das relações internacionais (NAÇÕES UNIDAS DO BRASIL, 2016). Tal fato possibilita que a ONU exerça um papel imprescindível e insubstituível, atuando como único fórum de diálogo entre as nações, com o objetivo de tornar o mundo mais seguro e permitir a coexistência pacífica dos povos. Além disso, possibilita um sentimento de esperança em relação à concretização dos direitos humanos pelos quais clama a humanidade. É incontestável que a missão da ONU ficou clara desde o primeiro momento: construir um cenário de paz duradouro na sociedade internacional, função que ficou ainda mais fortalecida diante do fenômeno da globalização universal. Assim, exige-se da instituição medidas tendentes à administração dos problemas relativos à violação dos direitos humanos. Neste ínterim, Bobbio (2004, p. 16) causou alvoroço – e nem poderia ser diferente – entre diversos estudiosos ao afirmar que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegêlos. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”. Herrera Flores (2009, pp. 44-45), por exemplo, critica essa colocação na medida em que ela evidencia uma certa “[...] desconfiança e desprezo por todo tipo de argumentações críticas e de enfoques de novas problemáticas que aproximem os direitos dos contextos cambiantes que atravessam em cada época histórica”. De fato, proteger direitos humanos e viabilizar a sua concretização parece ser um dos grandes problemas do século XXI. Entretanto, a questão da fundamentação universal ou relativista diz muito sobre o contexto concreto de aplicabilidade de direitos e, portanto, sobre a proteção ou a violação dos mesmos. Os relativistas costumam condenar a linguagem e o processo de formação dos direitos humanos sob 311

o argumento de que eles restaram reduzidos à experiência ocidental, negligenciando, via de consequência, o pluralismo cultural. Os adeptos do universalismo, por sua vez, criticam a postura arrogante e imperialista de alguns Estados que se utilizam do respeito às identidades culturais a fim de legitimar violações de direitos fundamentais. Nesse sentido, para Amartya Sen (2011, p. 390): Há algo muito atraente na ideia de que qualquer pessoa, em qualquer lugar no mundo, independentemente de nacionalidade, local de domicílio, cor, classe, casta ou comunidade, possui alguns direitos básicos que os outros devem respeitar. O grande apelo moral dos direitos humanos tem sido usado para várias finalidades, desde a resistência à tortura, à prisão arbitrária e à discriminação racial até a exigência de eliminar a fome, a miséria e a falta de assistência médica em todo o planeta.

Bobbio (2004, p. 17), na mesma linha, curiosamente assevera mais adiante em sua obra, no que diz respeito à fundamentação dos direitos do homem: Com efeito, pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1848. A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade. Os jusnaturalistas teriam falado de consensus omnium gentium ou humani generis (BOBBIO, 2004, p. 17).

Nesse panorama, é evidente que uma maior cooperação entre os Estados do globo em relação às Nações Unidas, significa mais êxito na proteção internacional dos direitos e na consequente manutenção da paz na sociedade internacional. Portanto, no que diz respeito à atuação dos Estados, é “inútil e pouco sério continuar a lamentar a ineficiência da instituição e depois contribuir com o próprio comportamento para o crescimento dessa ineficiência” (BOBBIO, 2009, p. 291) na medida em que descumprem as disposições estabelecidas pela ONU. Nesse quadro de complexidades, é paradoxal ter de reconhecer que os Estados, presos as suas soberanias territorialmente definidas e erodidos em sua capacidade política, são, ainda hoje, os únicos agentes institucionais capazes de dar respostas materiais efetivas sobre os direitos humanos, ao mesmo tempo em que são isoladamente inabilitados para tomar medidas substanciais por si mesmos (LUCAS, 2009, p. 71).

Todas essas circunstâncias desafiaram a estrutura atual da ONU, despindo alguns dos seus limites, fato que tornou ainda mais evidente a necessidade de uma

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maior cooperação interestatal na aldeia global. Isso significa que não basta, para o estabelecimento da paz e da proteção dos direitos, armar a ONU sem desarmar os Estados, tendo em vista que “as forças atualmente em poder destes são, sozinhas, suficientes para destruir várias vezes o planeta, e nenhuma força supranacional é suficiente para refreá-las” (FERRAJOLI, 2002, p. 56). É em virtude dessas peculiaridades que alguns estudiosos como Alexandre Almeida e Jefferson Ubiratan (2012) vêm se posicionando no seguinte sentido: Se por um lado a sua instituição pode ser considerada como um avanço no que diz respeito à integração das Nações, por outro ela não passa de um "tigre de papel", designação dada pelo teórico alemão [...] Jürgen Habermas para a atuação da ONU no plano global. O que tem sido observado é que as Nações Unidas não possuem meios eficazes para impedir que um membro permanente do Conselho recorra à força armada, contando apenas com a sua boa vontade em relação à paz.

Na mesma senda, o jornal britânico The Guardian, em recente reportagem especial intitulada “70 years and half a trillion dollars later: what has the UN achieved?”, questionou a forças ocultas por trás da organização – especialmente no que diz respeito às grandes potências – comparando inclusive o poder de veto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança6 a mãos com um chicote (MCGREAL, 2015). Esse posicionamento vai ao encontro do de Celso Lafer (2006, p. 175): De qualquer modo, as iniciativas da ONU capazes de repercutir em grau relevante e de maneira mais direta na ordem internacional devem contar com o respaldo dos países poderosos. Na falta desse apoio, as iniciativas da ONU não têm condições de prosperar, ao menos de modo mais imediato. Daí a percepção popular de que a ONU ou é um instrumento dos países mais poderosos ou é um organismo ineficaz, que produz quantidades de documentos que caem no vazio. Embora seja esta uma visão simplista, podemos dizer que há algo de verdadeiro nela, no sentido de que a ONU não é melhor ou mais poderosa do que os Estados que a compõem.

É importante, ainda, mencionar que o sistema tradicional da sociedade internacional de luta pelo poder, semelhante ao estado de natureza hobbesiano, convive lado a lado com o novo sistema inaugurado pela democratização internacional. Nesse sentido, Bobbio (2009, pp. 293-294) nos conduz a uma conclusão paradoxal quase que claustrofóbica e, todavia, extremamente lúcida: O novo é legítimo tendo por base o consenso tácito ou expresso da quase totalidade dos membros da comunidade internacional, que criaram e 6

Estados Unidos, França, Inglaterra, Rússia e China.

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mantém viva a Organização das Nações Unidas, mas não é eficaz. O antigo continua a ser efetivo, embora tenha perdido, em relação à letra e ao espírito do Estatuto das Nações Unidas, qualquer legitimidade.

Não se pode negar, contudo, que “em face dessa realidade, uma instituição como a ONU [...] tem alguma capacidade de dar rumo à correção dos desequilíbrios mais graves e relativos à paz, ao desenvolvimento e aos direitos humanos” (LAFER, 2006, p. 173). Isso significa que embora existam algumas ineficiências, a ONU, sem dúvida, é um ente essencial na disseminação de ideais éticos e de respeito aos direitos humanos. Com efeito, apesar de todas as críticas e denúncias negativas dirigidas à ONU, a sua criação representa um importante marco no cenário mundial e denota uma tentativa de democratizar o cenário conflituoso da sociedade internacional, transferindo para as relações entre os Estados os princípios típicos da sociedade doméstica e, especialmente, do Estado democrático de direito. Assim, ao lado da Liga das Nações, a ONU se constitui em uma das primeiras organizações internacionais cujo foco esteve em buscar os interesses comuns a todos os Estados, sendo a protagonista na luta pelo reconhecimento da universalidade dos direitos humanos e da legitimidade da preocupação internacional quanto a sua observância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve como preocupação central a análise, ainda que breve, de alguns aspectos atinentes à sociedade internacional clássica e contemporânea. Abordou-se, também, o objetivo da ONU no estabelecimento gradativo de uma comunidade de paz e respeito aos direitos humanos. Essa temática, conforme já assinalado, é tema recorrente e o debate está longe de uma conclusão definitiva, de modo que nos resta, tão somente, a certeza de que a história vivida jamais se apagará, encarregando-se o presente da construção de um futuro melhor. Daí a colocação de Bedin (2013, p. 09) no sentido de que “não há nada mais vivo na atualidade do que o passado, seus pressupostos, seus desdobramentos, suas experiências e suas crises”. É possível afirmar que apesar de as experiências típicas da sociedade internacional clássica ainda estarem presentes na pós-modernidade, muitos aspectos 314

próprios daquela conjuntura ficaram a ela restritos, pois o Estado centralizava todo o poder, constituindo-se no único ator efetivamente relevante nas relações internacionais. Atualmente, contudo, a soberania estatal vem sendo significativamente relativizada em virtude do fenômeno da globalização, fazendo das fronteiras institutos cada vez menos rígidos. Isto é, delineia-se um novo cenário de extrema interdependência entre todas as nações do globo. Nesse sentido, portanto, as relações de poder não são mais um privilégio dos Estados, orbitando também entre os chamados novos atores internacionais, os quais emergem com considerável grau de influência na contemporaneidade, dentre os quais citam-se organizações internacionais, empresas transnacionais e organizações não governamentais. Neste estudo, optou-se por emprestar especial atenção à ONU, na medida em que, apesar das críticas contra ela desferidas, tal organização ainda apresenta-se com relativa efetividade no que diz respeito à difícil – senão impossível – tarefa de proteção de direitos humanos em caráter universal e de instauração de uma situação de paz em esfera global. Certo é que por mais impossível que possa parecer a instauração de uma comunidade internacional enquanto lugar comum de respeito aos direitos humanos, a civilização somente pode alcançar o verdadeiro progresso quando um ser humano, considerado em sua singularidade, sentir-se efetivamente responsável pela humanidade do Outro, enquanto igual e diferente, onde quer que ele esteja. Trata-se, então, de executar efetivamente o imperativo categórico da Kant (2003), no sentido de que é preciso agir baseado em princípios cuja aplicabilidade universal se deseja.

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317

A GUERRILHA DO ARAGUAIA E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Clarissa Mertz1

“[...] estamos amestrados para ouvir e repetir a voz do vencedor.” Eduardo Galeano2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A resistência ao regime ditatorial promovida na região do Araguaia, principalmente no sul do estado do Pará, teve seu auge no final da década de 1960 e início da década de 1970. Surpreendentemente, até 2011 nenhum arquivo do governo relativo às diversas e prolongadas operações de guerra realizadas na região havia sido revelado, situação que ainda hoje permanece praticamente inalterada, não obstante os esforços da Comissão Nacional da Verdade e dos efeitos decorrentes do trâmite, há vários anos, da ação referente ao caso na Justiça Federal. Com isso, a pertinência das palavras iniciais, de Galeano, e a escolha do tema em questão, cujo texto, aliás, manterá conexão e outras transcrições ao longo do artigo. O período ditatorial brasileiro, ao longo de seus 21 anos, não pode ser devidamente elucidado sem a abordagem através da micro-história. Seja pelas extensões continentais do país, ou pelo longo período em que os militares usurparam o poder político, inúmeros foram os grupos e as localidades que apresentaram resistência e oposição ao regime e que, em virtude disso, merecem ser destacados. Junto ao lapso temporal e à geografia, deve ser ressaltado o fato de a opressão ter calado suas vítimas e manipulado a verdade sobre os acontecimentos do período sob a mira do canhão. Através de sequestros, mortes, desaparecimentos forçados e milhares de pessoas torturadas sob inúmeros métodos, restou facilitada a perpetuação da voz do vencedor, aliada sempre ao controle dos meios de comunicação e da manipulação 1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). 2 Texto A palavra e a história, 1999, cuja íntegra segue em anexo.

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por estes promovida. Assim, justifica-se a importância da micro-história para o presente estudo como importante forma de resgate ao direito à memória e à verdade no país e como meio hábil a influenciar a busca, e até os resultados, pela aplicação das normas jurídicas através da ação promovida perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sob o caso Gomes Lund versus Brasil. Parte-se dessas considerações para apresentar este trabalho como uma tentativa de discussão sobre a importância e o alcance de casos de escala reduzida na jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, tendo como referência a sentença e os desdobramentos do caso Gomes Lund. O percurso inicia discorrendo sobre a micro-história italiana como forma de abordagem, e do método indiciário desenvolvido a partir da revista Quaderni Storici. Logo, passa-se a narrar a principal denominação da Guerrilha do Araguaia, constante do relatório da Corte e acrescenta-se a ela, a ressaltar a importância do contexto micro, a declaração de anistia promovida pela 24ª Caravana de Anistia, contextualizando a ideia de que existiram inúmeros casos de microrresistência, de importante relevância na história política do país, para então, de forma breve e sob outro viés, ser relatada uma pequena biografia pertencente à mesma temática. Por fim, analisa-se a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, através da sentença propriamente dita, ressaltando o conteúdo do dispositivo em relação às violações aos direitos humanos praticadas no país e a abrangência deste documento legal ao determinar esforços na busca e divulgação da verdade e ao ordenar que a Lei de Anistia e de sigilo não continuem a representar um obstáculo para a persecução penal contra graves violações de direitos humanos. Na conclusão, outra vez é transcrita parte do texto de Eduardo Galeano, reiterando sua pertinência e trazendo-o para o contexto geral das arbitrariedades cometidas pela ditadura militar no Brasil. Entenda-se que o texto não pretende esgotar as possibilidades de leitura da Guerrilha do Araguaia ou do caso Gomes Lund vs Brasil, mas apenas ressaltar formas de abordagem possíveis e que representam um reforço na busca pela memória do período nefasto do país, e assim busca contribuir para a não repetição da barbárie.

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1 A MICRO-HISTÓRIA ITALIANA E O MÉTODO INDICIÁRIO

Para melhor compreensão da forma através da qual irá se desenvolver o presente estudo se faz necessária, primeiramente, a abordagem acerca da microhistória. Assim, importante salientar que as bases metodológicas a serem seguidas serão as originariamente desenvolvidas por um grupo de historiadores italianos, em especial Carlo Ginzburg. Através da revista Quaderni Storici pesquisadores puderam, no final da década de 1970, início da década de 1980, escrever, sob a direção de Ginzburg, uma coleção denominada de Microstorie (LIMA, 2006). Até então, conforme Eder Silveira (2010, p.2), “o pesquisador deveria buscar o repetitivo e suas variações, bem como aquilo que fosse regular e observável a partir do qual seria possível induzir leis.” A coleção Microstorie se dá na terceira fase da revista que teve origem em 1965 e primeira edição em 1966, então com o título Quaderni Storici delle Marche, mantido até 1969. Nesse período, a principal vocação dos textos publicados era para “o diálogo com as ciências sociais, ainda tão estranho ao contexto italiano.” Em 1970, buscando aproximação com as questões econômicas e também oferecer resposta às críticas quanto à falta de cientificidade, a revista excluiu de sua denominação o delle Marche. Assim, “em seu 13º numero, os Quaderni Storici dele Marche perdem o indicativo regional e ganham um novo conjunto de colaboradores” (LIMA, 2006, p.2650). A primeira edição dos novos Quaderni Storici compreende, inclusive, uma carta ao leitor, que ressalta os objetivos da revista: dessas considerações derivam algumas características de trabalho, as quais os Quaderni Storici – uma vez fixado seu interesse proeminente pela história das estruturas e da realidade sociais próprias da passagem para o mundo moderno – pretendem informar: análise e comparação de situações diversas dentro da Itália e fora dela; arco temporal longo que, ainda que centrado sobre a clássica “idade moderna”, não desdenhe nem a historia contemporânea nem as referencias ao medievo; insistindo nas ligações interdisciplinares em direção aos economistas, sociólogos, juristas, demógrafos, geógrafos, etc (LIMA, 2006, p.50-51).

As definições quanto à micro-história e seu método de observação advêm principalmente do estudo de diversos autores em relação às obras de Carlo Ginzburg, 320

uma vez que este não se limitou em uma simples descrição, mas o fez no contexto de suas obras, as quais se revelaram de enorme riqueza histórica e social, retratando de forma abrangente elementos da arte, cultura, religião, política, entre outros aspectos relevantes percebidos através dos indícios pesquisados. Silveira (2010, p.5), faz importante denominação ao fazer a distinção entre micro-história e estudo de caso: [...] diferentemente do Estudo de Caso, um trabalho de Micro-história prima por um esforço de quantificação das fontes não por um numero que poderá conferir certo grau de exaustividade ao trabalho, mas, sim, pela diversidade dos dados e das escalas de análise que permitirão, de certo modo, reconstituir contextos que aos dados poderão ser aplicados para a análise de um objeto ou problema de pesquisa.

O trabalho com esta característica prima, portanto, pela diversidade de dados, pelo contexto, diferentemente da contemplação isolada, através de uma abordagem que

“privilegia

os

fenômenos

aparentemente

marginais,

intemporais

ou

negligenciáveis” (TINEM; BORGES, [s.d.], p.1). Quanto ao contexto, o historiador francês Jacques Revel (apud SILVEIRA, 2010, p.7) informa que o pesquisador pode fazer dele dois usos: [...] uso argumentativo, quando “o contexto apresenta as condições gerais nas quais uma realidade particular encontra seu lugar, mesmo que nem sempre se vá além de uma simples exposição dos dois níveis de observação”; e o uso interpretativo, “mais raro: extraem-se às vezes do contexto as razões gerais que permitiriam explicar situações particulares”.

Carlo Ginzburg (1989, p. 177 – 178), em O Nome e o Como, traça uma breve narrativa sobre o método: A análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula. O modelo implícito é o da relação entre langue e parole formulado por Saussure. As estruturas que regulam as relações sociais são, como as da langue, inconscientes. Entre a forma e a substancia há um hiato, que compete à ciência preencher. (Se a realidade fosse transparente, e portanto imediatamente cognoscível, dizia Marx, a análise crítica seria supérflua.) Por isto propomos definir a micro-história, e a história em geral, ciência do vivido: uma definição que procura compreender as razoes tanto dos adeptos como dos adversários da integração da história nas ciências sociais – e assim irá desagradar a ambos.

Por fim, importante salientar que conforme José D’Assunção Barros (2007, 321

p.184), “Micro-História é abordagem e não campo teórico ou corrente historiográfica.” Esta última observação amplia a compreensão acerca da micro-história e permite prosseguir com a análise de seu método. O método indiciário, característico de Carlo Ginzburg, é fortemente influenciado por sua dedicação à história da arte, e os consequentes estudos relativos ao anonimato, às possíveis fraudes e cópias de obras famosas em renomados museus. Trata, conforme o autor, “da análise dos pormenores mais negligenciáveis.” No texto “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” ressalta o “método morelliano” e o famoso ensaio de Freud, “O Moisés de Michelangelo” (RESTA, p.144). Morelli, que além de crítico de arte era médico, teria criado o método e inclusive influenciado, segundo o autor, a obra de Freud. Eligio Resta (2014, p. 26), em capítulo sobre indícios, mais voltado não para a história, mas sim para questões de identidade e psicanálise, discorre também sobre a obra de Freud acima citada e infere que: [...] o procedimento indiciário é metafórico, capaz de reestabelecer a união de fragmentos; mas é também arrogante porque classifica e controla, coloca em espaços definidos, infere. Por outro lado, é uma metáfora venatória que conhece os caçadores que seguem os passos de sua presa e os passos indicam os sinais de uma passagem, e a passagem uma presença: indícios que permitem reconstruir uma história.

Do brevemente exposto sobre a micro-história e o método indiciário de Carlo Ginzburg vislumbra-se a possibilidade de abordar aspectos relevantes da ditadura militar brasileira a partir desta perspectiva. O presente estudo segue ilustrando essa possibilidade sem, no entanto, pesquisar indícios, nem pormenores, apenas ressaltando a adequação mencionada.

2 FRAGMENTOS DA RESISTÊNCIA À DITADURA MILITAR NO BRASIL: A GUERRILHA DO ARAGUAIA PERANTE À CIDH, A 24ª CARAVANA DE ANISTIA, SEGUIDA DE UMA HISTÓRIA INDIVIDUAL

Após discorrer sobre micro-história, a intenção é relatar como é possível abordar a Guerrilha do Araguaia desta forma. Para tanto, as narrativas que seguem serão dispostas da maior para a menor escala de abordagem, mas sendo possível 322

considerar todas elas como de micro-história dentro do contexto da ditadura militar brasileira. Não se pretende de forma alguma esgotar um assunto tão vasto como a Guerrilha do Araguaia, tema de várias obras, reportagens, sessões públicas de memória, entre outros, nem abordar ou discorrer sobre o tema escrevendo uma micro-história. Intenta-se, somente, mostrar exemplos de diversas abordagens possíveis ao tema e o quanto ainda é possível explorá-lo.

2.1 O caso Gomes Lund versus Brasil: a Guerrilha do Araguaia perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos

A versão mais conhecida da Guerrilha do Araguaia diz respeito a um grupo de pessoas, cerca de setenta, comprometidas ideologicamente com o Partido Comunista do Brasil, que deixam os centros urbanos para promover a resistência em área rural, na floresta amazônica, ao sul do Estado do Pará. Esta a versão que integra inclusive o relatório da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme segue: Denominou-se Guerrilha do Araguaia ao movimento de resistência ao regime militar integrado por alguns membros do novo Partido Comunista do Brasil. Esse movimento propôs-se a lutar contra o regime, “mediante a construção de um exército popular de libertação”78. No início de 1972, às vésperas da primeira expedição do Exército à região do Araguaia, a Guerrilha contava com cerca de 70 pessoas, em sua maioria jovens. Entre abril de 1972 e janeiro de 1975, um contingente de entre três mil e dez mil integrantes do Exército, da Marinha, da Força Aérea e das Polícias Federal e Militar empreendeu repetidas campanhas de informação e repressão contra os membros da Guerrilha do Araguaia. Nas primeiras campanhas, os guerrilheiros detidos não foram privados da vida, nem desapareceram. Os integrantes do Exército receberam ordem de deter os prisioneiros e de “sepultar os mortos inimigos na selva, depois de sua identificação”; para isso, eram “fotografados e identificados por oficiais de informação e depois enterrados em lugares diferentes na selva”. No entanto, após uma “ampla e profunda operação de inteligência, planejada como preparativo da terceira e última investida de contra-insurgência”, houve uma mudança de estratégia das forças armadas. Em 1973, a “Presidência da República, encabeçada pelo general Médici, assumiu diretamente o controle sobre as operações repressivas e a ordem oficial passou a ser de eliminação” dos capturados. No final de 1974, não havia mais guerrilheiros no Araguaia, e há informação de que seus corpos foram desenterrados e queimados ou atirados nos rios da região. Por outro lado, “o governo militar impôs silêncio absoluto sobre os acontecimentos do Araguaia e proibiu a imprensa de divulgar notícias sobre o tema, enquanto o Exército negava a existência do movimento” (CorteIDH, 2010, p.32-33).

323

Da leitura do último parágrafo, novamente, comprovada perante a Corte Interamericana, a voz do vencedor de Eduardo Galeano, perpetuando a violência cometida, através da imposição do silêncio absoluto. Importante ressaltar que o silêncio em relação ao Araguaia se dá sob múltiplos aspectos, que vão desde a morte de seus membros, ao ocultamento, sonegação e destruição de documentos relativos às operações desenvolvidas na região. Nunca esquecendo o sempre presente, vastamente aplicado e duradouro, silêncio obtido através das práticas de tortura. Assim, as vítimas, conforme a ação perante a Corte, são Maria Lúcia Petit da Silva, executada, e tendo sido declarado o Estado responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, em prejuízo das seguintes pessoas: Adriano Fonseca Fernandes Filho, André Grabois, Antônio Alfredo de Lima (ou Antônio Alfredo Campos), Antônio Carlos Monteiro Teixeira, Antônio de Pádua Costa, Antônio Ferreira Pinto, Antônio Guilherme Ribeiro Ribas, Antônio Teodoro de Castro, Arildo Aírton Valadão, Áurea Elisa Pereira Valadão, Bérgson Gurjão Farias, Cilon Cunha Brum, Ciro Flávio Salazar de Oliveira, Custódio Saraiva Neto, Daniel Ribeiro Callado, Dermeval da Silva Pereira, Dinaelza Santana Coqueiro, Dinalva Oliveira Teixeira, Divino Ferreira de Souza, Elmo Corrêa, Francisco Manoel Chaves, Gilberto Olímpio Maria, Guilherme Gomes Lund, Helenira Resende de Souza Nazareth, Hélio Luiz Navarro de Magalhães, Idalísio Soares Aranha Filho, Jaime Petit da Silva, Jana Moroni Barroso, João Carlos Haas Sobrinho, João Gualberto Calatrone, José Huberto Bronca, José Lima Piauhy Dourado, José Maurílio Patrício, José Toledo de Oliveira, Kleber Lemos da Silva, Líbero Giancarlo Castiglia, Lourival de Moura Paulino, Lúcia Maria de Souza, Lúcio Petit da Silva, Luiz René Silveira e Silva, Luiz Vieira de Almeida, Luíza Augusta Garlippe, Manuel José Nurchis, Marcos José de Lima, Maria Célia Corrêa, Maurício Grabois, Miguel Pereira dos Santos, Nelson Lima Piauhy Dourado, Orlando Momente, Osvaldo Orlando da Costa, Paulo Mendes Rodrigues, Paulo Roberto Pereira Marques, Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, Pedro Matias de Oliveira (“Pedro Carretel”), Rodolfo de Carvalho Troiano, Rosalindo Souza, Suely Yumiko Kanayama, Telma Regina Cordeiro Corrêa, Tobias Pereira Júnior, Uirassú de Assis Batista, Vandick Reidner Pereira Coqueiro e Walkíria Afonso Costa (CorteIDH, 2010, p.46).

A relação de desaparecidos, conforme comprovado perante a Corte Internacional, perfaz um total de 69 pessoas, e representa dezenas de famílias impossibilitadas de enterrar seus mortos, sonegadas, entre outros direitos, da verdade e memória de seus familiares. Esta a principal representação dos acontecimentos do 324

Araguaia perante o Organismo Internacional, um viés dos fatos os quais se pretende mostrar.

2.2 A Guerrilha do Araguaia perante a 24ª Caravana de Anistia

As Caravanas de Anistia, solenidades promovidas pelo Ministério da Justiça, através da Comissão de Anistia, são audiências realizadas a partir de 2007 nos locais onde ocorreram violações aos direitos humanos e correspondem ao pedido oficial de desculpas do Estado. Além do pedido de perdão e da tentativa de reconciliação com cidadãos violados, o intuito da realização das audiências de forma itinerante é permitir a toda sociedade conhecer, compreender e, então repudiar tais erros. A atividade é integrante do projeto Marcas da Memória, segundo o qual a afronta aos direitos fundamentais de qualquer cidadão singular igualmente ofende a toda humanidade que temos em comum, e é por isso que tais violações jamais podem ser esquecidas. Esquecer a barbárie equivaleria a nos desumanizarmos (COMISSÃO DE ANISTIA, 2012, s.p).

Integrante desse escopo foi a realização da 24ª Caravana, em São Domingos do Araguaia, Pará, no dia 17 de junho de 2009. Dela advém a narrativa a seguir. Embora o caso Guerrilha do Araguaia muitas vezes se restrinja a 69 vítimas fatais da guerra havida entre as Forças Armadas e os integrantes do Partido Comunista, certamente há, nas palavras de Ginzburg (1989), muitos pormenores negligenciáveis numa história de resistência que se estendeu durante vários anos e ocupou extensa área geográfica. Tudo indica que os integrantes do PCdoB movimentavam-se em uma região de aproximadamente 6,5 mil quilômetros quadrados, e estavam organizados em três áreas, numa extensão de 130 quilômetros (GASPARI, 2002, p.400). Certamente, os abusos e arbitrariedades cometidos pelas centenas de militares enviados à região ao longo das diversas operações, não se resumem à tortura, morte e ocultação do cadáver dos guerrilheiros. Até atingir este objetivo muitos moradores da região foram vitimados na caçada aos “terroristas subversivos”. Eis o que indicam relatos da solenidade de São Domingos do Araguaia, dentre os quais o seguinte: Uma dessas pessoas é Adalgisa Moraes da Silva. Ela morou na região no período da Guerrilha do Araguaia, quando o seu marido, Frederico Lopes,

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que foi torturado de uma maneira tão brutal pelos militares, que o acusavam de terrorista, “que acabou perdendo o juízo”, segundo explicou Adalgisa. “depois de tudo, foi largado por um ano e oito meses em uma casa de apoio para loucos”, relembra ela. Os militares queimaram a casa e os mantimentos.?”Fiquei sozinha com nove meninos, fui obrigada a dar um deles por não ter condições de criá-los” (COMISSÃO DE ANISTIA, 2012, p.147).

Por ocasião da referida Caravana de Anistia foi realizada sessão pública de julgamento de processos, na qual 44 pedidos foram deferidos, e seus autores considerados anistiados. Portanto, assim como o depoimento acima, outros tantos há, com histórias passíveis de revelar os pormenores ocorridos durante o período ditatorial, além do acontecido aos integrantes do PCdoB. Inúmeros foram os mateiros e camponeses vítimas das atrocidades do exército, que em toda sua humildade foram mortos e torturados muito provavelmente apenas por estarem naquele local, sem nem mesmo ter qualquer ligação com o grupo perseguido.

2.3 A Guerrilha do Araguaia perante uma história individual: Dinalva Oliveira Teixeira

Outra forma de abordagem através da micro-história pode se dar através das histórias individuais, e assim contribuir para o campo historiográfico brasileiro. Conforme Ana Paula da Silva e Aline Pereira (2013, p.289), estes estudos “oferecem janelas de reflexão para diferentes temas como relações de alteridade, construção de identidades, expectativas individuais presentes e futuras” e, no interesse do presente trabalho, importante ressaltar a possível análise de “problemas evidentemente relacionados aos contextos históricos e sociais, problematizando-se questões macropolíticas por meio de um enfoque particular.” Neste item, nos valemos da amizade com Aluízio Palmar, outrora militante do Partido Comunista, qualificação que ora nos importa dentre tantas outras deste ilustre opositor ao regime militar. Em suas publicações eletrônicas, há menção a Dinalva de Oliveira Teixeira, que juntamente com sua breve trajetória constante do livro “Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura” inspiraram a escolha desta protagonista para esta abordagem. Assim, a Guerrilha do Araguaia pode ser vista – também – através da trajetória de Dinalva, que muitas vezes consta como sendo a última vítima da Guerrilha a ser 326

executada naquele duradouro confronto. Seu nascimento foi em 1945, em Castro Alves, Bahia. Ainda jovem mudou-se para a capital Salvador, onde estudou no Colégio Estadual da Bahia e cursou geologia na Universidade Federal, período em que foi presa ao participar do movimento estudantil. Em 1969 casou-se com Antonio Carlos Monteiro Teixeira, mesmo ano em que passou a viver no Rio de Janeiro, onde ambos trabalharam no Departamento Nacional de Produção Mineral e integraram a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (MERLINO; OJEDA, 2010, p.136). A ida para o Araguaia deu-se em 1970: foram deslocados para a região do Araguaia, onde Dinalva atuou como professora e parteira. Chegou a ser vice-comandante do Destacamento C, única mulher da guerrilha a alcançar um posto de comando. Quando tiveram início os choques armados, em abril de 1972, o casal já estava separado e tinha nascido um novo relacionamento entre ela e Gilberto Olímpio Maria, morto no Natal de 1973. Dina destacou-se por sua habilidade militar para escapar de ataques inimigos e por participar de vários choques armados, sendo ferida em um deles. Era tida como exímia atiradora. Sobreviveu ao ataque do Natal de 1973, mesmo enfrentando grave surto de malária (MERLINO; OJEDA, 2010, p.137).

Outra relevante informação constante do livro “Luta, substantivo feminino” (2010, p.137-138) referente à Dinalva diz respeito à seguinte informação da Marinha, que traz inclusive informações sobre sua morte: O relatório da Marinha, apresentado em 1993 ao ministro da Justiça Maurício Corrêa, assim descreve a atuação de Dina no início de 1973: “entre os dias 30 JAN e 02 FEV/73, acompanhada por outros elementos, percorreu várias casas de caboclos da região de Pau Preto, onde foi comprado arroz e distribuído um manifesto do PCdoB, prometendo aos elementos da região que, após a derrubada do governo, seriam instalados na mata escolas e hospitais. Na ocasião, foi notado que o grupo de Dina portava armas semelhantes às usadas pelo Exército, e que a mesma portava uma atravessada no peito que aparentava ser automática. A Dina comentou que o grupo estava preparado para vingar os companheiros mortos durante as operações militares ocorridas em SET 72”. E o relatório conclui informando a data de sua morte: “JUL/74, teria sido morta em Xambioá”.

Xambioá, porém, não seria o local de sua morte conforme pesquisado e noticiado através de depoimentos contraditórios de moradores da região. Da mesma forma, em depoimento perante a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o coronel-aviador Pedro Corrêa Cabral, teria, sem certeza, afirmado que sua prisão se dera na Serra das Andorinhas (MERLINO; OJEDA, 2010, p.138). Outra fonte de informação sobre a trajetória de Dinalva, é o livro “A lei da 327

selva”, fonte na qual Hugo Studart apresenta um relato bastante detalhado do local onde ela teria sido apreendida, “numa localidade chamada Pau Preto, entre o rio Gameleira e o igarapé Saranzal. Estava em companhia da guerrilheira Luiza Augusta Garlippe, codinome Tuca, integrante do Destacamento B.” (MERLINO; OJEDA, 2010, p.138) e também do local e autor de sua execução, conforme segue: o relato de Studart sobre a morte de Dina acrescenta: “Levada para interrogatório em Marabá, permaneceu por cerca de duas semanas nas mãos de uma equipe de inteligência militar. Estava fraca, desnutrida, havia quase um ano sem comer sal ou açúcar. Por causa da tensão, fazia seis meses que não menstruava. No início de julho, o capitão Sebastião de Moura, codinome dr. Luchini (dr. Curió), retirou Dina. Levaram-na de helicóptero para algum ponto da mata espessa, perto de Xambioá. Um sargento do Exército, Joaquim Artur Lopes de Souza, codinome Ivan, chefiava a pequena equipe, três homens. [...] – Vou morrer agora? – perguntou a guerrilheira. – Vai, agora você vai ter que ir – respondeu Ivan. – Eu quero morrer de frente – pediu. – Então vira pra cá. Ela virou e encarou o executor nos olhos. Transmitia mais orgulho que medo – relataria mais tarde o militar aos colegas de farda. Ele se aproximou da guerrilheira, parou a dois metros de distância e lhe estourou o peito com uma bala de pistola calibre 45. O tiro pegou um pouco acima do coração. O impacto jogou Dina para trás. Levou um segundo tiro na cabeça. Foi enterrada ali mesmo”. Hugo Studart complementa, em novo pé de página: “Seu corpo foi inicialmente enterrado no local da execução. Em 1975 teria sido exumado e levado para a cremação em outro local”( Merlino, Tatiana; Ojeda, Igor, 2010, p.138-139).

Dinalva fez parte de um contexto, de jovens estudantes, a maioria recém formados, das mais diversas áreas, como medicina, enfermagem e ciências sociais, alguns deles presos já por ocasião do congresso da UNE em Ibiúna, que, sufocados nos grandes centros, partem para o interior no ideal de resistência e oposição. Certamente pormenores de extrema relevância não faltam a serem explorados e revelados em casos como este.

3 PROJEÇÕES DE AMPLITUDE DE UM JULGAMENTO

Embora o caso levado à CIDH pareça relatado sob um estreito viés ante a amplitude que pode alcançar a Guerrilha do Araguaia, a sentença, além de responsabilizar o Estado brasileiro pela morte e desaparecimento forçado dos 69 328

integrantes da Guerrilha representados na ação, tem efeitos muito mais amplos. Assim, dentre os pontos resolutivos da decisão que abrangem não somente as partes da ação, mas sim que têm efeitos perante todos os acontecimentos envolvendo o período ditatorial, importante destacar as disposições relativas: a) à lei de anistia; b) à educação e capacitação em direitos humanos; c) à tipificação do delito de desaparecimentos forçado; d) à busca, sistematização e publicações de informações sobre o Araguaia e da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar. Desta forma, as disposições da sentença neste sentido foram declarar, por unanimidade que: As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. (CorteIDH, 2010, p113)

E ainda, dispôs que: O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 283 da presente Sentença. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno. O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma nos termos do parágrafo 292 da presente Sentença (CorteIDH, 2010, p115).

Importante destacar que o caso Gomes Lund vs. Brasil ingressou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos ainda em 1995, tendo sido admitido em 2001. Após os procedimentos necessários, foi submetido à Corte em 2009 e julgado em 2010. Muitas diligências foram determinadas ao longo deste período, várias foram as manifestações das partes também. No entanto, o decurso do tempo aliado ao fato de estarmos submetidos à voz do vencedor, que oculta, sonega e distorce informações, 329

faz com que o resgate da memória e da verdade fique cada vez mais distante. Outro dado a ressaltar essa distância diz respeito ao descumprimento da decisão por parte do Estado brasileiro. Após o recebimento de informes protocolados pelas partes, e a consequente realização de audiência privada, em 21 de maio de 2014, em outubro do mesmo ano, a Corte emitiu resolução em sede de Supervisão de Cumprimento de Sentença. A partir do documento é possível aferir que o Brasil cumpriu totalmente apenas dois dispositivos da sentença. E, conforme Aguiar e Wermuth (2015, p.51), nesse sentido, as declarações do Estado brasileiro “demonstram que os direitos humanos efetivados em um Estado Democrático de Direito só estão formalmente inscritos na ordem jurídica ou são apenas parte de uma burocracia constituída num transformismo democrático”. Em concordância com essas palavras finais, novamente surge a pertinência do texto de Galeano: “promessas quebradas, pactos descumpridos, documentos assinados e esquecidos”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde antes, desde quando as primeiras caravelas apontaram no horizonte, até os nossos dias, a história das Américas é uma historia de traição à palavra: promessas quebradas, pactos descumpridos, documentos assinados e esquecidos. (Eduardo Galeano)

O texto “A palavra e a história”, de Eduardo Galeano, que permeia o presente estudo, fala de um contexto macro – “Américas” –, mas é perfeitamente “encaixável” ao presente. Primeiro, pela literalidade em relação à palavra, voz do vencedor, pacto descumprido, características que se tentou demonstrar nas abordagens feitas. Segundo, pois a realidade da ditadura militar não se restringiu ao Brasil, mas infelizmente repetiu-se em outros países da mesma América, com as mesmas características de bárbaras violações aos direitos e influência e financiamento por parte de agentes internacionais. Ressaltar a importância da micro-história que se origina através da abordagem desde aspectos relativos a obras de arte famosas, relacionada também ao surgimento da psicanálise, para então demonstrá-la como forma de abordagem pertinente ao estudo interdisciplinar do período ditatorial brasileiro, é uma necessidade para a 330

consolidação da democracia brasileira. No presente caso, uma história de escala reduzida, da Guerrilha do Araguaia, produziu efeitos perante a Corte Interamericana de Justiça envolvendo todo o Estado brasileiro e seus jurisdicionados. A falta de transparência dos órgãos oficiais e a proteção jurídica conferida aos agentes que cometeram atrocidades fazem com que o direito fundamental à verdade e à memória seja sonegado. Alie-se a isso um Estado que tem no Supremo Tribunal Federal o órgão responsável pelo cumprimento das normas pactuadas em âmbito internacional, mas que surpreendentemente não acata a decisão da Corte Interamericana de Justiça em relação à lei de Anistia. São necessárias outras revelações de histórias como a ocorrida no Araguaia, talvez não dos familiares que deram voz aos seus parentes desaparecidos, mas a de tantos outros lutadores cuja voz foi roubada através da tortura sofrida, para insistir em mudar essa realidade. Há milhares de pormenores passíveis de contextualizar uma situação socialmente relevante. Através da abordagem de microrresistências pode-se tentar ouvir e repetir a voz das vítimas e não somente a do vencedor.

REFERÊNCIAS AGUIAR, Daiane de Moura; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Teoria Habermasiana do agir comunicativo e o descompasso entre o julgamento do caso Gomes Lund versus Brasil pela corte interamericana de direitos humanos e da ação de descumprimento de preceito fundamental nº 153 pelo supremo tribunal federal. In. WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi (org.). Sistemas regionais de direitos humanos: perspectivas diversas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2015. BARROS, José D’Assunção. Sobre a feitura da micro-história. Opsis, vol.7, n.9, jul-dez 2007. COELHO, Maria José H., ROTTA, Vera (org.). Caravanas de Anistia: o Brasil pede perdão. Brasília: Ministério da Justiça, 2012. CORTEIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. Disponível em: . Acesso em 10 de setembro de 2016. ESPADA LIMA, Henrique. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2006.

331

GALEANO, Eduardo. O teatro do bem e do mal. Tradução de Sergio Faraco. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2014. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Tradução de António Narino. Ed. Bertrand Brasil, S.A., 1989 a. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 b.

MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (orgs.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010. RESTA, Eligio. Percursos da identidade: uma abordagem jusfilosófica. Tradução Doglas Cesar Lucas. Ijui: Coleção direito, politica e cidadania. Ed. Unijuí, 2014. SILVA, Ana Paula Barcelos; PEREIRA, Aline Pinto. Tensões, escolhas e expectativas: ideias políticas e contexto histórico e social a partir de trajetórias individuais. Passagens. Revista internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro: vol.5, n. 2, maio-agosto 2013. p. 286-306 SILVEIRA, Eder da Silva. Estudo de caso: distanciamentos, características e aproximações. Revista História em Reflexão: Vol.4 n.8, UFGD, Dourados jul/dez 2010. TINEM,

Nelci;

BORGES,

Lucia.

Ginzburg

e

o

paradigma

indiciário.

S/d.

332

O MODELO AGRÍCOLA NACIONAL E O DIREITO HUMANO AO DESENVOLVIMENTO: REFLEXÕES ACERCA DO PESTICIDA GLIFOSATO

Camila Paese Fedrigo1 Clovis Eduardo Malinverni da Silveira2

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo situar o tema do uso excessivo de agrotóxicos no Brasil, particularmente do biocida glifosato e os riscos ecológicos e sanitários dele decorrentes, em face do assim chamado direito ao desenvolvimento, tal como enunciado por diversos tratados internacionais, e recepcionado pela ordem constitucional brasileira. O volume de agrotóxicos utilizados nas lavouras destinadas ao consumo humano vem aumentando de forma alarmante, como resultado da expansão do modelo de agronegócio praticado no Brasil, em consonância com o papel que se atribui ao gigante tropical nos mercados internacionais; condição esta que, alegadamente, tem contribuído para a degradação da qualidade ambiental, bem como para o comprometimento da saúde humana, seja dos trabalhadores agrícolas, no plano toxicológico, seja dos consumidores, no plano da segurança alimentar. Assim sendo, será traçado um perfil sumaríssimo das características do modelo agrícola brasileiro, bem como dos riscos ecológicos e sanitários envolvendo os pesticidas, particularmente o glifosato. Serão também recuperados alguns dos aspectos do direito humano ao desenvolvimento, tal como enunciado em diplomas internacionais. O objetivo não é apresentar quaisquer dados ou análises inovadoras, nem mesmo fornecer uma síntese ou panorama abrangente, e sim, tão somente, recuperar alguns aspectos importantes desses temas de modo a cotejá-los. Pode-se,

1

2

Advogada. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Constitucional pela Escola Paulista de Direito Pós-graduanda em Direito pela Escola Paulista de Direito Bacharela em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Pesquisadora. E-mail: [email protected] Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor adjunto no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade de Caxias do Sul (PPGDir/UCS). Pesquisador.

333

nesta medida, ensaiar uma discussão acerca do esvaziamento do direito humano ao desenvolvimento por intermédio da supervalorização do agronegócio exportador, na sua feroz versão contemporânea, que se considera descolada de diversos direitos e princípios fundamentais, tanto da ordem constitucional brasileira quanto das declarações de direitos humanos, no plano internacional. A articulação ora proposta é bastante promissora do ponto de vista teórico, e apresenta grande relevância social, por motivos óbvios. Contudo, o texto apresenta caráter ensaístico, uma vez que não pretende apresentar resultados sistematizados, sob qualquer ponto de vista, e sim esboçar um questionamento sobre a legitimidade da política agrícola brasileira em face de um suposto direito humano ao desenvolvimento, tema a ser desenvolvido por meio de programas de pesquisa de maior duração, metodologicamente mais rigosos.

1 ANOTAÇÕES SOBRE A DANOSIDADE DO GLIFOSATO NO CONTEXTO DO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO

Como já restava claro do Relatório de 2010 do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA, 2010), tem havido, nas últimas décadas, uma elevação tanto da demanda quanto da produção de alimentos no Brasil, o que se deve parcialmente ao aumento da renda familiar, mas também ao ciclo de valorização das commodities agrícolas, associado às políticas públicas de incentivo ao agronegócio. O desenvolvimento rural no Brasil é fortemente marcado pelo foco no modelo agrícola empresarial mecanizado, de monoculturas para exportação, com uso de alta tecnologia e, paradoxalmente, quase sem domínio tecnológico nacional – sem desconsiderar a importância da agricultura familiar na produção de alimentos para o mercado interno. O segmento do agronegócio – produto histórico da articulação entre o capital financeiro, o capital industrial e a grande propriedade territorial – baseia-se em um modelo de grande escala, que poupa mão-de-obra e usa intensamente a mecanização, irrigação e insumos industriais como agrotóxicos e organismos transgênicos. Nessa toada, o ritmo de crescimento da produção agrícola, em grande medida destinada à exportação, é muito superior ao da produção de alimentos destinados ao consumo 334

interno. Consoante o Relatório do CONSEA, o número de hectares ocupados por monoculturas aumentou mais de 50% entre 1990 e 2009, enquanto a área ocupada por culturas diversas diminuiu aproximadamente na mesma proporção. Esses dados expressam de maneira significativa a realidade da agricultura brasileira: Apenas quatro culturas de larga escala (milho, soja, cana e algodão) já ocupavam, em 1990, quase o dobro da área total ocupada por outros 21 cultivos. Entre 1990 e 2009, a distância entre a área plantada com os monocultivos e estas mesmas 21 culturas aumentou 125% (CONSEA, 2010, p. 40-41)

A tecnologia aplicada às monoculturas em expansão levou o Brasil a ser o maior mercado de agrotóxicos do mundo, destacando-se o país em algumas das culturas que mais utilizam pesticidas, como a soja, o milho, a cana, o algodão e os citros. Apenas entre 2000 e 2007, a importação de agrotóxicos aumentou impressionantes 207%; o Brasil concentra 84% das vendas de agrotóxicos da América Latina, e possui 107 empresas com permissão para utilizar insumos banidos em diversos países (CONSEA, 2010, p. 40). Além do uso legal de pesticidas que são banidos em outros países, há que se fazer referência à disseminação do uso de agrotóxicos não autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), ou em teores irregulares, dentre outras distorções. Os resultados, referentes ao período de 2011 a 2013, do Relatório do Programa de análise de resíduos de agrotóxicos em alimentos (PARA), que realiza esse monitoramento, revela situação preocupante. No total, consoante o “método multirresíduo” (MRM), 36% das 1.628 amostras coletadas em todas as unidades da federação foram consideradas insatisfatórias, além de outras 42% de amostras consideradas satisfatórias, porém com resíduos. O total de amostras insatisfatórias nesse período chega a 43% das amostras de alface; 44% das amostras de pepino, 67% das amostras de cenoura e 90% das amostras de pimentão (ANVISA, 2013, p. 15-19). Ponto relevante a destacar, é que o referido Relatório não traz dados acerca do glifosato, que é sabidamente o agrotóxico mais utilizado no Brasil, o país que mais consome pesticidas no mundo. Apenas alguns dos agrotóxicos utilizados no Brasil compõem o relatório, e já compõem, apenas eles um quadro preocupante, mesmo considerando apenas os produtos e os quantitativos considerados irregulares – pois no uso regular de pesticidas, o país representa a liberalidade extrema. A postura do 335

Estado brasileiro e dos agricultores no Brasil é a própria antítese do princípio de precaução, uma vez que quase todos os riscos são minimizados, o benefício da dúvida em desfavor da saúde e da qualidade ambiental, como regra. Segundo o CONSEA, os registros das intoxicações aumentaram na mesma proporção em que cresceram as vendas dos pesticidas no período ente 1992 e 2000. Mais de 50% dos produtores rurais que manuseiam estes produtos apresentam algum sinal de intoxicação (CONSEA, 2010, p. 9). Não há argumento que afaste a conclusão de que o modelo agrícola é, em grande medida, pernicioso, uma vez que crescem simultaneamente: o número de pesticidas regularizados; o volume de agrotóxicos utilizado/consumido; o uso de pesticidas irregulares e o uso irregular de pesticidas; e, por fim, o índice de intoxicação de agricultores. Diversos processos ideológicos valem-se da complexidade que concerne a essa temática –

da

vulnerabilidade

aos

riscos toxicológicos



para

mascarar

responsabilidades e, ao mesmo tempo, socializar os riscos ecológicos e sanitários, lesando as partes mais frágeis do processo, que são o produtor rural, o consumidor e o coletivo titular do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Parte desse processo de ideologização reside na culpabilização das populações rurais, vítimas diretas do modelo agrícola brasileiro. Para Peres (2005, p. 8) O objeto da contaminação humana e ambiental por agrotóxicos é, em sua natureza, complexo, e demanda um entendimento mais amplo do problema, dissociado da corrente que acredita (ou leva as pessoas a crer) que o problema é resultante da ignorância do homem do campo – que deliberadamente se exporia aos riscos oriundos do processo de trabalho (visão esta que só interessa à indústria produtora destes agentes que, anualmente, fatura em cima de um mercado estimado na casa dos bilhões de dólares).

A utilização de imensos volumes de pesticidas também é causa de insegurança alimentar, com a produção de riscos ecológicos e sanitários. Dentre os agrotóxicos, os compostos organofosforados são químicos derivados do ácido fosfórico e tiofosfórico, sendo reconhecidos por sua ampla utilização, destacando-se o herbicida glifosato, por ser não-seletivo e apresentar meia-vida curta (GIESY; DOBSON; SOLOMON, 2000, p. 35-120). Sua fácil aquisição e rápida manipulação contribuíram significativamente para o aumento exponencial de sua utilização, e às críticas sobre seu impacto à saúde e aos ecossistemas. 336

Em 1970, a transnacional Monsanto, recentemente adquirida pela Bayer, confirmou a atividade herbicida do glifosato, e a primeira formulação comercial foi lançada nos EUA em 1974, com o nome comercial de Roundup, por vários anos o herbicida mais comercializado no mundo para o controle de ervas daninhas (WILLIAMS, KROES; MUNRO, 2000, p. 117-165). A ação do glifosato já foi demonstrada em ensaios experimentais, tendo sido caracterizado o processo de morte celular por apoptose e necrose em células de cordão umbilical, linhagem celular de placenta e células embrionárias renais em humanos (BENACHOUR, N.; SÉRALINI, 2009, p. 97-105). Estudos relatam que a exposição a herbicidas à base de glifosato, em concentrações consideradas não-tóxicas, induziram a danos ao DNA (GASNIER et. al., 2009, p. 184191). O potencial tóxico do glifosato também foi avaliado em mitocôndrias hepáticas (PEIXOTO, 2005, p. 1115-1122). O Roundup induziu alterações na bioenergética mitocondrial e estes efeitos não puderam ser atribuídos exclusivamente ao ingrediente ativo, mas a uma possível sinergia entre o glifosato e os demais componentes da formulação, como seu surfactante, aumentando a dispersão e absorção do herbicida. O glifosato também pode interferir diretamente na função reprodutiva, sendo classificado como disruptor endócrino, interferindo na regulação hormonal do corpo humano (SONNENSCHEIN, 1998, p. 143-150). De outra banda, a Monsanto, em seu sítio oficial alega que o “histórico de uso seguro e a literatura científica demonstram que o uso do glifosato é seguro para a saúde humana e animal e para o meio ambiente” (MONSANTO, 2016). Exara que é um dos herbicidas mais utilizados no mundo, com um histórico de quarenta anos de “uso seguro” em 160 países. Plasma ainda que existem mais de oitocentos estudos realizados sobre a segurança do glifosato. Ainda, assegura que o Roundup e seus similares, conhecidos popularmente como mata-mato, fabricados por mais de oitenta empresas no Brasil, são de grande eficiência e baixo risco. Suas características e seu amplo espectro de ação o tornariam o principal herbicida utilizado no mundo, permitindo à agricultura brasileira desenvolver uma prática que elimina a necessidade de movimentação dos solos. O fato dos maiores estudos sobre os efeitos do glifosato e seus derivados sobre a saúde e o meio ambiente são realizados pela própria Monsanto, fabricante do 337

original Roundup. Entretanto, pode-se alegar conflito de interesses nessas informações, uma vez que a companhia é a maior interessada em aprovar seu uso e impulsionar as vendas. Some-se a isso, some-se a dificuldade de realizar estudos independentes acerca do produto, na medida em que há poucos laboratórios do mundo que possuem os recursos financeiros, humanos e laboratoriais necessários a uma efetiva avaliação dos seus riscos. Esses aspectos devem ser considerados a fim de enfrentar a questão sob o ponto de vista jurídico, tanto no que se refere à formulação de políticas públicas, como na jurisdição civil, penal e administrativa.

2 O DIREITO HUMANO AO DESENVOLVIMENTO FACE AOS PESTICIDAS E AO ATUAL AGRONEGÓCIO

A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 3º, II, constitui como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil o de “garantir o desenvolvimento nacional”. Tal garantia do desenvolvimento nacional possui relação estreita com os demais objetivos fundamentais, quais sejam: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Aponta a doutrina que tais dispositivos possuem natureza de normas-objetivas (GRAU, 1991); o que significa dizer que não apenas limitam a liberdade conformadora do legislador, como também a vinculam juridicamente (SILVA, 2004, p. 62). Dessa maneira, tais dispositivos não podem ser compreendidos como meras normas programáticas, a depender exclusivamente da atuação do Legislativo, pois sua normatividade vincula, em tese, todo o agir estatal. O direito ao desenvolvimento foi positivado, no sistema internacional, mediante a Declaração sobre o Progresso Social e Desenvolvimento, de 1969. Aparece também na Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos de 1981, mas ganha grande repercussão com a Declaração das Nações Unidas de 1986 (COMPARATO, 2001), que associa o desenvolvimento, no artigo 2º, § 3º, ao “constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos” (?), com participação livre e ativa de todos e distribuição justa dos benefícios resultantes do desenvolvimento. 338

A Declaração Sobre Progresso e Desenvolvimento Social, proclamada pela Resolução 2.542 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 11 de dezembro de 1969, objetiva, de maneira geral, a cooperação e a promoção no progresso do desenvolvimento social e econômico (ONU, 2016a). Especificamente acerca do desenvolvimento social, diversos artigos fixam diretrizes básicas para a efetivação de direitos civis, políticos, culturais, sociais e econômicos de maneira não discriminatória e desigual (colonialismo versus racismo, nazismo e apartheid), em prol do respeito à dignidade humana e da justiça social (ONU, 2016a). A Declaração reafirma a necessidade do respeito à soberania dos Estados, bem como a “coexistência pacífica” e a paz (ONU, 2016a). Ponto importante a ser ressaltado é a menção à soberania permanente sobre os recursos naturais de cada Estado, conforme art. 3ª, d (ONU, 2016a). O artigo 12º é especialmente significativo para os propósitos do presente ensaio, prescrevendo que o progresso e o desenvolvimento social vise os seguintes objetivos: Artigo 12.º a) Criação de condições para um desenvolvimento social e económico rápido e sustentado, particularmente nos países em vias de desenvolvimento; modificação das relações económicas internacionais; métodos novos e eficazes de cooperação internacional em que a igualdade de oportunidades seja tanto uma prerrogativa das nações como dos indivíduos dentro de cada nação; [...] c) Eliminação de todas as formas de exploração económica estrangeira, particularmente a praticada pelos monopólios internacionais, a fim de permitir que os povos de todos os países gozem em pleno os benefícios dos seus recursos nacionais [grifou-se].

Para o artigo 13º, o progresso e desenvolvimento social visarão a realização dos seguintes objetivos principais: Artigo 13.º a) Partilha equitativa dos progressos científicos e tecnológicos entre os países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, e aumento constante da utilização da ciência e tecnologia em benefício do desenvolvimento social das comunidades; b) Estabelecimento de um equilíbrio harmonioso entre o progresso científico, tecnológico e material e o desenvolvimento intelectual, espiritual, cultural e moral da Humanidade; c) Protecção e melhoria do ambiente humano [grifou-se].

Por sua vez, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento foi adotada pela Resolução nº 41/128 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986 e possui diretrizes para o desenvolvimento humano pleno (ONU, 2016b). A 339

Declaração afirma que o desenvolvimento deve considerar a pessoa humana enquanto “sujeito central”, participando de maneira ativa e usufruindo dos benefícios do direito ao desenvolvimento (art. 2º, §1). Ressalta a incumbência dos Estados na elaboração de políticas nacionais de desenvolvimento, baseada na distribuição equitativa, que propiciem o bem-estar de toda a população (art. 2º, § 3º) [ONU, 2016b]. Por fim, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (ou Carta de Banjul) em vigor desde 1986, foi elaborada na Organiza da Unidade Africana (OUA), com objetivo de promoção e proteção das liberdades fundamentais e direitos humanos no âmbito do continente africano (OUA, 2016). Reforça as duas Declaração supracitadas, especialmente ao afirmar, no art. 22, que “todos os povos têm direito ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural, no estrito respeito da sua liberdade e da sua identidade, e ao gozo igual do patrimônio comum da humanidade” (OUA, 2016). A Carta de Banjul salienta que o desenvolvimento necessita do “direito a um ambiente geral satisfatório”, direito esse de todos os povos – art. 24 (OUA, 2016). Ora, desnecessário justificar que um direito humano ao desenvolvimento minimamente factível tem nas políticas agrícolas um de seus aspectos centrais. A questão do uso de pesticidas, particularmente o glifosato, revela dificuldades para a concepção de tal direito, tanto em uma perspectiva econômica, como ecológica e sanitária. Embora possua peculiaridades, o modelo agrícola brasileiro deve ser compreendido à luz do surgimento da chamada “nova economia alimentar” (ROBERTS, 2008), marcada pela emergência do agronegócio global, complexa rede de relações humanas (econômicas e sociopolíticas) e de interação ente homem e ambiente natural, na qual o país ocupa um lugar muito específico. Apesar de seus inegáveis benefícios em termos de aumento da produtividade, a “revolução verde” da agroindústria trouxe segurança para os importadores e exportadores ricos, expandindo as monoculturas dos países pobres, com todas as mazelas associadas, para o benefício de consumidores abastados em torno do mundo, particularmente nos países ricos. Roberts (2008, p. 25-79) reflete sobre como a atividade agrícola, nesse modelo, se torna inviável para a grande maioria, em razão da diminuição dos custos e concentração de recursos, desde maquinário até a própria terra. O Estado subsidia e protege direta e indiretamente as grandes operações agrícolas, enquanto e os pequenos agricultores e a sociedade arcam com todos os 340

riscos econômicos, ambientais e sanitários. As “superculturas” demandam aplicação maciça e crescente de pesticidas e fertilizantes, que causam impactos à saúde e esgotam os solos. Pequenos fornecedores são “escravizados” pelos varejistas; a produção é transferida progressivamente para países com menor proteção do trabalho e do ambiente, de fiscalização deficiente. Vale ressaltar que, à parte os riscos ecológicos e sanitários decorrentes do uso do glifosato (e do uso maciço de agrotóxicos em geral), também os riscos econômicos colocam em xeque a ideia de um direito humano ao desenvolvimento. Para refletir sobre um dos aspectos do problema, a tendência à formação de oligopólios entre as empresas produtoras de agrotóxicos tem relação com o alto custo dos investimentos em novos princípios ativos, que nesse modelo estão fora do alcance e do controle da vasta maioria da população. Uma vez que o Brasil é um dos maiores plantadores de sementes geneticamente modificadas do mundo, natural que seja o maior pagador de royalties, sobretudo em razão da soja transgênica, mas também de outras sementes (CONSEA, 2010, p. 44). Tal cenário traz consequências graves em termos de balança comercial; produz dependência econômica e aprofundamento de uma condição extrativista

primária,

desestimulando

o

desenvolvimento

tecnológico

e,

simultaneamente, contribuindo com a degradação dos ecossistemas e as consequências sanitárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aumento da pressão sobre os recursos naturais e sobre o trabalho no campo, bem como da insegurança alimentar – decorrente, no presente tempo histórico, não mais da escassez da produção, a qual vem aumentando em volume, e sim da má distribuição de recursos e dos riscos sanitários – tem sido quase indissociável da lógica financeira da superprodução, em matéria agrícola. Trata-se de um modelo amplamente questionável do ponto de vista da proteção dos direitos sociais e ambientais em geral, questão esta que não pode ser negligenciada. Se é certo que a produção agrícola mundial aumentou consistentemente, os benefícios disso não justificam automaticamente as mazelas resultantes, tornando-se necessário questionar

341

o sistema agrícola sob a ótica dos direitos, clamando pela equalização do quadro de valores que informa uma sociedade pretendida democrática. Não se trata aqui de “demonizar” o agronegócio, que desenvolveu amplamente o volume da produção agrícola mundial, e que responde por fatia crucial da balança comercial brasileira. Trata-se, antes, de explorar as mazelas associadas a esta realidade, e a ilegitimidade em face dos direitos e princípios consagrados – no papel – pela Constituição brasileira e pelos tratados internacionais, com a finalidade última de alimentar um desejável debate sobre um modelo verdadeiramente sustentável, que concilie os novos recursos tecnológicos com a proteção dos recursos naturais, da saúde e do ambiente, e dos direitos humanos e difusos correlatos. Se não forem balizados juridicamente, a sede de patenteamento de organismos geneticamente modificados (OGMs), vinculados à venda de pesticidas, orientada para a formação de oligopólios e o ganho financeiro concentrado e de curto prazo, produzirá uma espiral de dependência econômica, social e ambiental cada vez mais acentuada, com o inevitável aniquilamento dos direitos que se colocarem à frente do processo. Breve exemplo disso é uma das afirmações conclusivas do PARA, segundo a qual “a presença de agrotóxicos não autorizados, em parte, pode ser explicada pelo fato de haver poucos pleitos de registro pelas empresas de agrotóxicos para culturas consideradas de baixo retorno econômico” (ANVISA, 2013, p. 41). Enquanto a responsabilidade é usualmente atribuída ao agricultor, às grandes companhias cabem apenas os lucros, mas não os riscos, nem quaisquer responsabilidades pelo empreendimento, situação que tende a ser “naturalizada”, seja pelo discurso científico ou institucional. Ao jurista, ciente de que as instituições jurídico-políticas compõem um quadro de relações sociais mais amplo, e de que o direito não reside apenas na ordem normativa, cabe investigar os critérios pelos quais as atividades agroindustriais e o uso de

pesticidas

podem

ser

compatibilizados

com

o

cultivo

de

direitos

humanos/fundamentais ao meio ambiente, à saúde e ao desenvolvimento, num horizonte transgeracional. O tema aqui esboçado permite diversos desdobramentos, que podem ser explorados em programas de pesquisa convergentes, tais como: a responsabilidade dos fabricantes pelos impactos ambientais e sanitários decorrentes do uso do 342

glifosato, tal como se apresenta na situação concreta do país; a inconstitucionalidade da mercantilização dos bens comuns – recursos naturais, patrimônio genético, biodiversidade – por abuso do poder privado do agrobusiness; a sociologia do esvaziamento dos direitos difusos, humanos e fundamentais, como o direito à saúde, ao ambiente e ao desenvolvimento; a insuficiência dos espaços decisórios, judiciais e administrativos, face às novas tecnologias, e a necessidade de repensar as instituições político-jurídicas, para que deem conta dos desafios contemporâneos; e a emergência de novos direitos, particularmente de ordem coletiva, em decorrência das tensões produzidas pela contemporaneidade.

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DIREITOS HUMANOS E GÊNERO: EM BUSCA DA EFETIVAÇÃO DA IDEIA DE IGUALDADE EM RELAÇÃO AO TRANSEXUAL

Kaoanne Wolf Krawczak1

INTRODUÇÃO O presente trabalho apresenta um estudo sobre os direitos dos transexuais, que diariamente são violados e desrespeitados pelos sujeitos que seguem fielmente os padrões de conduta considerados “normais” em um determinado contexto social. Diante disso, busca-se, em especial, o papel dos direitos humanos em relação à efetivação imediata e a integração dos transexuais, que a todo o momento são vulgarizados/vulnerabilizados simplesmente porque são diferentes. Pretende-se buscar uma resposta eficiente e adequada para este problema de gênero enfrentado diariamente pelos transexuais que se encontram “inseridos” em uma sociedade marcada por preconceitos. Assim, compreende-se que é necessário refletir sobre o real sentimento que estas pessoas, que nasceram no gênero errado (se é que existe mesmo um gênero certo?) e que não tiveram o direito de escolher pelo gênero que melhor se adapta às suas reais necessidades. Dentro desse contexto de conflitos identitários e de tensionamentos nas questões do gênero, buscou-se entender como esse processo todo ocorre e como os direitos humanos podem desempenhar um papel relevante na efetivação dos direitos dos transexuais. Assim, em um primeiro momento, serão focados os conceitos de direitos humanos, gênero e igualdade, de forma a facilitar a compreensão acerca do tema. Dando seguimento, no último tópico será tratado do tema principal deste trabalho: os direitos humanos e os tensionamentos na questão do gênero, focando exclusivamente as problemáticas indenitárias dos transexuais e, consequentemente, o papel que os direitos humanos assumem na busca pela efetivação do direito à igualdade.

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Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). E-mail: [email protected]

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Como hipótese provisória, tem-se que os direitos humanos desempenham um papel muito importante na integração dos transexuais, viabilizando uma oportunidade para estes se sentirem iguais, tendo em vista que em um Estado de Direito preza-se por um tratamento isonômico para todos os seres humanos, independentemente de qualquer consideração de gênero e que nossa Carta Magna coloca a dignidade da pessoa humana como um preceito a ser seguido em toda e qualquer relação, pois esta é uma condição intrínseca inerente a qualquer sujeito de direito. Entretanto, efetivar este direito fundamental à igualdade ainda é uma questão a ser enfrentada, inclusive em sociedades nas quais o preconceito em face dos transexuais ainda impera, como é o caso do Brasil (e de vários outros países do mundo). Assim, busca-se por uma solução efetiva com a finalidade de compreender o real sentimento dos sujeitos que nasceram em um gênero que não lhes pertence.

1 DIREITOS HUMANOS, GÊNERO E IGUALDADE: ESTABELECENDO ALGUNS CONCEITOS

A relação entre os sujeitos e o poder político é uma referência quando falamos em proteção dos direitos do homem (da parte do Estado). De modo que o processo de positivação do Estado é responsável por dar abrangência e limites aos direitos humanos, ou seja, só há direitos humanos nos limites do Direito positivo e da racionalidade estatal nacionalista “pois tudo aquilo que não for jurídico não importa para a definição do que sejam os direitos do homem e todo aquele que não é cidadão nacional é [...] um diferente para o Estado e [...] diferente para os demais” (LUCAS, 2010, p. 102). Entretanto, Agambem (2015, p. 27), citando Arendt, critica essa concepção sobre os direitos do homem. Nesse sentido, tem-se que “a concepção dos direitos do homem”, escreve Arendt, “baseada na existência suposta de um ser humano como tal, arruína-se não só frente àqueles que a professavam e que se encontraram pela primeira vez diante de homens que perderam verdadeiramente qualquer outra qualidade e relação específica – exceto o puro fato de serem humanos”. No sistema do Estado-nação, os assim chamados direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de toda tutela no próprio momento em que não é mais possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um Estado. Isso está implícito, se refletirmos bem, na ambiguidade do próprio título da Declaração de 1789: Déclaration des droits de l’homme et du

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citoyen, no qual não está claro se os dois termos nomeiam duas realidades distintas ou se fornecem, ao contrário, uma hendíadis, na qual o primeiro termo já está, na verdade, sempre contido no segundo (grifo do autor).

Assim, temos que “a expressão direitos humanos é uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e participar” (DALLARI, 2008, p. 12) de forma plena da vida. De modo que a totalidade dos seres humanos necessita e deve ter asseguradas condições mínimas e necessárias para que possam se tornar úteis à humanidade, recebendo também os benefícios que podem ser proporcionados pela sociedade. A “esse conjunto de condições e de possibilidades [...] associada as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural de cada pessoa e os meios de que a pessoa pode valer-se como resultado da organização social” (DALLARI, 2008, ps. 12 e 13), é que damos o nome de direitos humanos. Por sua vez, o Estado-nação se constituiu num modelo de modernização social, de tal forma eficiente, pois conseguiu unir burocracia e capitalismo no mesmo “barco”. Toda esta burocracia, somada à industrialização crescente e ao movimento social, obrigou os indivíduos a se comunicarem “para além de suas localidades e de suas heranças culturais específicas” (LUCAS, 2010, p. 102). De modo que este crescimento econômico resultou na desintegração da população e no reconhecimento jurídico do indivíduo, com direitos e deveres perante o Estado, levando a inclusão destes ao status de cidadãos. Dando origem, assim, a uma comunidade democrática baseada num direito comum. Dito de outra forma, a expansão da modernidade fez com que a comunidade política se aproximasse da comunidade de cultura, permitindo a “convergência entre Estado e nação e a constituição das identidades nacionais” (LUCAS, 2010, p. 103). Diante de tantas mudanças nos padrões existenciais, muitos conceitos precisam ser reconstruídos, assim também deve ocorrer com os direitos humanos que, nas palavras de Piovesan (2006, p. 8), nesse cenário contemporâneo, devem ser conceituados como “uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.”.

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Esta fase de transição para a modernidade modificou as tradicionais formas de comunidade e identidade, as quais sofreram uma profunda homogeneização social e cultural. Nessa sociedade de grande escala, o nacionalismo se faz necessário para “estabelecer laços sociais entre anônimos” (LUCAS, 2010, p. 103), pois aqui surge uma identidade categórica e objetiva, que busca seu direito de autodeterminação e proteger sua autonomia cultural. Assim, o Estado nacional se torna o local de encontro político e identitário, “capaz de agrupar, sob um mesmo signo de cidadania, os nacionais e suas demandas comuns” (LUCAS, 2010, p. 104). Como consequência deste Estado-nação nada homogêneo, foram adotadas políticas de purificação étnica, negando reconhecimento as minorias, e por óbvio, as reprimindo, chegando-se, inclusive, a chamá-las de ‘povos inferiores’. Entretanto devese salientar que ao referir-se ao termo minorias, está se falando das minorias como um todo, mas que o objetivo central deste trabalho é as minorias dos movimentos sociais. Em razão disso, é importante realçar que há diversos tipos de minorias e compreender seus conceitos. Nesse sentido, Kymlicka (apud SANTOS, A.; LUCAS, 2015, p. 102) explica que Há vários tipos de minorias: nacionais, étnicas e movimentos sociais. As primeiras são distintas e autogovernadas potencialmente, incorporadas a um Estado mais amplo. As segundas se formam por migrantes que buscam sua incorporação num sociedade diferente de sua comunidade nacional de origem. Os movimentos sociais dizem respeito a associações, grupos definidos por gênero, sexualidade, condição física ou social, marginalizados dentro de sua própria sociedade nacional ou grupo étnico.

Nas palavras de Gellner, citado por Lucas (2010, p. 105), à medida que a missão nacionalista afirma uma cultura popular, ela cria uma cultura dominante, que apesar de defender as tradições da antiga sociedade e da diversidade cultural, acaba por impulsionar a geração de uma cultura de massa uniformizadora, onde os diferentes não tem vez. Nessas novas sociedades nada homogêneas a igualdade acaba por ficar só na teoria, ou seja, não é efetivada realmente no dia-a-dia, em razão de atos e circunstâncias de discriminação e desigualdade contra alguns setores da população. Diante disso surge a necessidade de empregar o conceito de Direitos Humanos como tema principal no contexto internacional, chamando a atenção dos governantes para

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“que cada nação implemente práticas que respeitem a dignidade humana” (GRIESSE, p. 125). Em razão disso, a conceituação dos Direitos Humanos foi sendo empregada para justificar políticas públicas direcionadas a beneficiar grupos que não desfrutam de condições básicas para o pleno desenvolvimento de suas potencialidades humanas, que se consideram oprimidos, ou que [...] experimentam situações de alguma forma não qualificadas no âmbito dos direitos universais. O clamor pelos Direitos Humanos [...] levantado por movimentos sociais, vem transformando a forma de se entender seu escopo, indo da reivindicação de direitos gerais e universais da população [...] para se chegar a direitos específicos de grupos minoritários que sofrem discriminações ou abusos que as diferenciam do resto da população (GRIESSE, p. 126).

Entretanto, não há porque não reconhecer direitos para as minorias se autoafirmarem, desde que esse processo de particularização identitária não afronte nem a autonomia individual nem “os direitos humanos universais de cada um dos sujeitos que compõem essa minoria ou dela se diferenciam” (LUCAS, 2010, p. 113). Pois o direito de participar de forma livre de uma cultura e de se identificar com ela é também um direito universal, pois ele protege a diversidade cultural. De modo que, nas sociedades democráticas [...] tende-se a valorizar os direitos humanos e as tradições constitucionais como elementos centrais da integração política, como geradores de lealdades e obrigações que extrapolam os limites de qualquer tradição cultural específica [...] interpretam os direitos humanos num dado contexto histórico e numa realidade concreta [...] podem ser reclamados pelos sujeitos excluídos que não partilham de um conceito comunitário do que é bom socialmente e para quem a permanência particular significa exclusão, desigualdade, opressão e marginalização (LUCAS, 2010, p. 115).

Assim, com o fortalecimento dessa aliança entre identidade e local, juntamente com o particular, passou-se a questionar sobre a posição que o sujeito ocupa no mundo, em especial, enquanto “homem integrado a um grupo, como homem adjetivado” (LUCAS, 2010, p. 119). Entretanto, as identidades não nascem com nós, elas “são formadas e transformadas no interior da representação” (HALL, 2006, p. 48 e 49). Assim também Taylor (apud SANTOS, A.; LUCAS, 2015, ps. 108 e 109) conceitua a identidade como “sendo a maneira como uma pessoa se define e pela qual as suas características fundamentais fazem dela um ser humano [...] sendo quem somos, de onde viemos”. Ainda, que “nossa identidade depende, de forma crucial, de nossas relações dialógicas com os demais” (SANTOS, A.; LUCAS, 2015, p. 109). Por conseguinte, conforme Lucas (2010, ps. 121 e 122), 349

a luta pela autonomia e pelo reconhecimento não pode ser aprisionada nos estreitos limites do procedimento jurídico e dos dogmas positivistas cartesianos. A procura responsável pelo direito à dignidade de cada homem é uma atitude que exige, simbolicamente, a conquista de muitos espaços [...] Uma cidadania que se basta na soberania nacional é uma cidadania que não alcança a racionalidade das demandas materiais globais, bem como usurpa da humanidade a possibilidade de enfrentar democraticamente os problemas que afligem o homem em sua condição de exercer de forma livre a sua autonomia por meio da liberdade de decidir.

As mudanças estruturais estão transformando as sociedades, fragmentando as paisagens culturais – de gênero, sexualidade, raça, classe, nacionalidade e etnia; e, mudando as identidades pessoais, com a perda de um ‘sentido de si’, deslocando o sujeito, gerando uma ‘crise de identidade’. Pois como nos diz o estudioso Mercer, citado por Hall (2006, p. 9) “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza.”. Assim, quando a comunidade entra em caos, surge a questão da identidade. Esta está interligada a provocantes e calorosos debates ligados à perspectiva do Estado-nação moderno. Segundo Bauman, diante das inseguranças e incertezas da “modernidade líquida” recoloca-se o problema da identidade em uma esfera de dimensões que exige a renovação dos parâmetros de entendimento até então utilizados, assim, “‘identidade’ é um retrato da vida na contemporaneidade” (BAUMAN, 2005). Contemporaneidade esta, marcada por uma sociedade complexa, como nos diz L. Araújo (2000, p.78), com uma multiplicidade de situações, valores característicos, que não podem ser desprezados sob a verdade de um consenso majoritário. A maioria, ou os valores da maioria, devem servir de base para a elaboração do regramento jurídico de qualquer meio social. No entanto, tais valores não podem ser suficientes para eliminar as formas de vivência das minorias [...] Seja qual foi o prisma sob o qual se enfoque a questão, encontraremos uma minoria com opinião preponderante e uma minoria, que deve ser reconhecida, e, desde que não atente contra a ordem ou contra os valores escolhidos pela sociedade, deve ser ouvida como forma de alternatividade dos valores escolhidos. A democracia é confirmada na valorização da maioria, sem o desprezo da minoria. Quando falamos em Estado Democrático, falamos da vontade majoritária, mas não da ditadura da minoria .

Esta modernidade líquida encoraja os sujeitos a buscar mudanças, para que estes encontrem seus próprios níveis, e depois busquem alcançar um nível mais alto e/ou mais adequado para viver. Neste período de transformações, de vida líquida, os direitos humanos são tidos como medida, regra e até padrão para guiar e regular as 350

condutas. Assim, quer-se resgatar antigas reivindicações não atendidas, formular outras demandas, reconhecer e garantir direitos a todos. Entretanto, todo esse apelo aos direitos humanos tem reforçado as linhas divisórias e acumulando diferenças entre os indivíduos. De forma que, as sociedades, da chamada modernidade tardia, são caracterizadas pela ‘diferença’, com variadas posições de sujeito, ou seja, diferentes identidades para os indivíduos. Entretanto, elas não se desintegram porque os diferentes elementos e identidades podem ser conjuntamente articulados, porém, apenas de forma parcial, pois a “estrutura da identidade permanece aberta” (HALL, 2006, p. 17). Deve-se ter em mente que todo esse deslocamento é positivo, porque desarticula identidades, tidas no passado como estáveis, e abre a possibilidade de se criarem novas articulações. Assim, tem-se que todas essas transformações, juntamente com a modernidade, libertaram os indivíduos das amarras da tradição e das estruturas. Esta mudança na modernidade tardia tem um caráter específico, pois esse processo de mudança é conhecido como ‘globalização’, causando impactos sobre a identidade cultural. Dessa forma, é possível definir as sociedades modernas como sociedades de mudança rápida, constante e permanente, e, é justamente isso que as diferenciam das sociedades tradicionais, nas quais o passado e os símbolos perpetuam a experiência de gerações, através de práticas recorrentes. Esta modernidade em contraste é uma forma reflexiva de vida, onde as práticas sociais são recorrentemente examinadas e reformadas, alterando seu caráter, através das informações recebidas (decorrentes das próprias práticas). Quanto ao impacto que a globalização tem sobre a identidade, o tempo e o espaço são as coordenadas básicas dos sistemas de representações. “Estes meios de representação devem traduzir seu objeto tanto em dimensões espaciais como em dimensões temporais. Diferentes épocas culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas espaço tempo” (HALL, 2006, p. 70). Assim, a moldagem e a remoldagem de relações no espaço-tempo causam profundos efeitos sobre a forma como as identidades são representadas e localizadas. Sendo elas, todas, localizadas no espaço e tempo simbólicos, com “geografias imaginárias”, como diz Said, citado por Hal (2006, p. 71). 351

Os teóricos culturais argumentam que a maior interdependência global tem levado as identidades culturais fortes ao colapso, produzindo uma fragmentação de códigos culturais, multiplicidade de estilos, a “ênfase no efêmero, no flutuante e na diferença e no pluralismo cultural [...] em escala global” (HALL, 2006, p. 74) que se chama de pós-moderno global. “Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de ‘identidades partilhadas’ [...] entre pessoas que estão bastante distantes umas da outras no espaço e no tempo” (HALL, 2006, p. 74). Pois quanto mais expostas a influências externas, mais as culturas nacionais tornam-se enfraquecidas, sendo difícil conservar as identidades culturais intactas diante de tanto bombardeamento cultural. Em contraponto, há uma sociedade na qual problemas de ordem global proliferam-se levando a uma invasão sobre os limites territoriais do Estado-nação, afetando “o homem independentemente de seus vínculos de pertença” (LUCAS, 2010, p. 21), ou seja, o distanciamento entre culturas e entre as nações forçará e/ou impedirá a formação de diálogos, tais quais são de suma importância para a constituição de uma política comum de responsabilidades, também dificultando a definição que respeite a universalidade dos direitos humanos. Tais direitos, são tidos “como patrimônio comum da humanidade, como limite ético para se promover o diálogo intercultual” (LUCAS, 2010, p. 23). Os direitos humanos são defendidos “como referência para o diálogo entre as diferentes culturas, como forma de superação das fissuras interindividuais e intercomunitárias, por meio da eleição de valores comuns e universalmente aceitáveis” (LUCAS, 2010, p. 24). Todavia, não se deve ignorar a importância do Estado-nação na formação de uma identidade cultural e no desenvolvimento do homem – portador de direitos. Desta forma, o ente político estatal necessita se adequar as questões universais. Assim, é preciso “fortalecer a ideia de uma cidadania pós-nacional, qualificada [...] que seja vasta o suficiente para abranger assuntos mais amplos de interesse supranacional” (LUCAS, 2010, p. 26). Entretanto, ainda hoje, ela não passa de um projeto em andamento. E “as pessoas em busca de identidade se vêem invariavelmente diante da tarefa intimadora de ‘alcançar o impossível’” (BAUMAN, 2005, p. 16). Pois a ‘identidade’ é algo a ser inventado, como uma coisa a ser construída do zero – mesmo que para isso devamos esconder a verdade sobre a 352

condição precária e inconclusa da identidade. Mas esconder essa verdade está cada dia mais difícil, é preciso revelar a fragilidade e a condição provisória dela. De modo que a cultura nacional é constituída por “uma ‘comunidade imaginada’: as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança” (HALL, 2006, p. 58). As identidades nacionais oferecem “a condição de membro do estado-nação político” e “uma identificação com a cultura nacional”, tornando “a cultura e a esfera política congruentes e fazer com que ‘culturas razoavelmente homogêneas, tenham, cada uma, seu próprio teto político’”. Esse é o tal impulso por unificação de Gellner, citado por Hall (2006, ps. 58 e 59), que existe nas culturas nacionais. Assim, Bauman (2003, p. 21) explica que “‘identidade’ significa aparecer: ser diferente e, por essa diferença, singular”, mas esta identidade vem sendo construída de forma tão precária e vulnerável que os sujeitos estão escondendo-se em comunidades-cabide, que proporcionam-lhes uma segurança coletiva contra os males do individualismo. Assim, erguem-se fronteiras a cada esquina, para proteger estas identidades contra intrusos. Porém, “não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional” (HALL, 2006, p. 59). De forma que as culturas nacionais são compostas de símbolos e de representações, sendo ela um discurso onde construímos sentidos que influenciam e organizam tanto nossas ações como nossa concepção de nós mesmos. As culturas nacionais constroem identidades, a partir de sentidos com os quais nos identificamos. Assim, “a identidade nacional é uma ‘comunidade imaginada’” (HALL, 2006, p. 51), que, [...] não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas. Assim, quando vamos discutir se as identidades nacionais estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para ‘costurar’ as diferenças numa única identidade (HALL, 2006, p. 65).

Quando a questão é a problemática identitária, impossível não relacioná-la à questão do gênero. Nas palavras de Connel (apud SENKEVICS, 2012), o gênero pode ser conceituado como “a estrutura das relações sociais que se centra na arena 353

reprodutiva [...] e [...] configuração de práticas que trazem as distinções reprodutivas entre os corpos para os processos sociais”. Assim, “definindo gênero, pode-se que se refere às relações sociais desiguais de poder entre homens e mulheres que são o resultado de uma construção social do papel do homem e da mulher a partir das diferenças sexuais” (SANTANA e BENEVENTO, 2013). Mas, a problemática de gênero ganhou destaque através dos estudos realizados por teóricas do feminismo, que buscam, através de parâmetros científicos, tanto compreender como responder, como esta situação desigual entre os sexos se opera na nossa realidade, de modo a interferir no conjunto das relações sociais. Nesse sentido, Bauman assevera que “segundo as teóricas mulheres que hoje marcam o ritmo do discurso sobre os gêneros, tanto o sexo como o gênero estão inteiramente determinados pela cultura, carecem de toda natureza natural e são, portanto, alteráveis, transitórios e suscetíveis de serem subvertidos” (RODRIGUES, C., 2005).

Assim, analisando o conceito de gênero, pode-se compreendê-lo como “a desnaturalização do sexo, principalmente em relação às características biológicas de cada indivíduo, o que vem a delimitar o poder entre os sexos” (SANTANA; BENEVENTO, 2013). Nesse sentido, buscar um conceito para o gênero é importante para que se possa distinguir e descrever as categorias sociais e as relações estabelecidas entre elas. Nas palavras de Butler (2003), o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado […] tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos [...] é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.

Dando seguimento, no estudo sobre a era das desigualdades, Fitoussi e Rosanvallon (apud BAUMAN, 2003, p. 26) debatem sobre o individualismo moderno, capaz de emancipar os indivíduos através do estímulo a autonomia, e de transformálos em portadores de direitos. A individualização gera muita insegurança, pois ela deixa de lado os valores humanos, e derrama sobre os sujeitos a responsabilidade pelo futuro. Assim, para se ter liberdade, é preciso abrir mão da segurança. Porém, aos grandes e poderosos, essa troca não parece necessária, pois para eles a liberdade é a melhor forma de se garantir segurança, porque enquanto as coisas seguirem de forma 354

obediente o caminho que escolherem a liberdade não oferecerá riscos. “Afinal, a liberdade é a capacidade de fazer com que as coisas sejam realizadas como queremos, sem que ninguém seja capaz de resistir ao resultado, e muito menos desfazê-lo” (BAUMAN, 2003, p. 26). Entretanto, os direitos humanos, destinados ao gozo em separado, só podem ser obtidos e garantidos através de uma luta coletiva. Por isso é preciso cautela ao traçar as fronteiras, pois, para se tornar um direito, a diferença deste grupo de indivíduos precisa ser determinada e numerosa, para que receba a consideração e atenção necessárias. Na prática, apenas alguns indivíduos vem sendo considerados portadores destas diferenças reivindicadas, o que significa que os direitos humanos não se alcançam a todos. Assim, são quase que direitos individuais, se é que não o são. Bem, a luta por estes direitos, como já foi dito, só pode ser construída em comunidade, uma comunidade de diferentes, na qual ser e permanecer diferente é um ‘direito’ que deve ser preservado e protegido, pois o princípio dos direitos humanos é “um catalisador que estimula a produção e perpetuação da diferença, e os esforços para construir uma comunidade em torno dela” (BAUMAN, 2003, p. 71). Pode-se enfatizar que os direitos humanos, enquanto mínimo ético universal, atuam como limite para as diferenças que compõem o cenário da diversidade cultural. “No lugar da diferença denegatória e da universalidade homogeneizadora, é defendida uma universalidade moderada, centrada no diálogo intercultural com base nos direitos humanos.” (LUCAS, 2010, p. 28). Desta forma, Fraser, citada por Bauman (2003, p. 71), afirma que, a justiça hoje, tem que buscar a redistribuição e o reconhecimento de direitos. Assim, as demandas por redistribuição feitas em nome da igualdade são veículos de integração, enquanto que as demandas por reconhecimento em meros termos de distinção cultural promovem a divisão, a separação e acabam na interrupção do diálogo (BAUMAN, 2003, p. 72).

Por conseguinte, fica clara a importância dos direitos humanos nas questões relacionadas ao gênero, de modo a buscar uma igualdade para as minorias vítimas do tensionamento das questões identitárias. Ao passo que, o surgimento destas novas identidades culturais precisa de uma atenção especial para que não surjam novos conflitos baseados em preconceitos mal concebidos. Neste viés acautelatório é que se faz muito importante a noção sobre os reais conceitos dos direitos humanos, de 355

gênero e de igualdade, ou seja, é preciso primeiro compreende-los, para que em um segundo momento seja possível fazer uso destes para proteger as minorias vitimadas pelos preconceitos. E um exemplo claro dessas situações ocorre com os transexuais, que diariamente são ridicularizados, e até mesmo agredidos, em razão de suas “escolhas” de gênero (assunto este, que será abordado com mais precisão no próximo tópico).

2 O TRANSEXUAL E O TENSIONAMENTO DA QUESTÃO DE GÊNERO

A era moderna teve como resultado o surgimento de um individualismo novo e decisivo, no qual o sujeito – enquanto indivíduo, e sua identidade foram colocados no centro das principais discussões, conforme nos explica Hall (2006, p. 25). Ao passo que nos tempos pré-modernos a individualidade era tida de forma diferenciada, tanto na sua vivência como na sua concepção. Assim, temos que as transformações e a modernidade libertaram os indivíduos das amarras da tradição e das estruturas. Porque antes a posição, além do status e da classificação, da pessoa no mundo do ‘ser’ era predominante, em relação ao sentimento de ser o ‘indivíduo soberano’. Porque é justamente o nascimento desse ‘indivíduo soberano’ que marcou a ruptura com o passado, ou melhor, como dizem os estudiosos, “ele foi o motor que colocou todo o sistema social ‘da modernidade’ em movimento” (HALL, 2006, p. 25). Nesta perspectiva, o sujeito individual, na visão de Raymond Williams, apud Hall (2006, p. 25), possui dois significados: de um lado, ele é indivisível, unificado em seu interior; de outro lado, ele é singular, distintivo e único. E sendo ele um ser racional, na visão de Locke, citado por Hall (2006, p. 26), ele possui uma única identidade contínua, que sempre permaneceria, de modo que a identidade da pessoa alcança a exata extensão em que sua consciência pode ir para trás, para qualquer ação ou pensamento passado [...] o ‘indivíduo soberano’ [...] era o ‘sujeito’ da modernidade em dois sentidos: a origem ou ‘sujeito’ da razão, do conhecimento e da prática; e aquele [...] que estava sujeitado a elas (a essas práticas) (HALL, 2006, p. 27 e 28).

Com o surgimento deste Estado moderno, o poder político passou a ser limitado pela soberania popular, manifestada através da legislação. De forma que, os vínculos do cidadão para com o poder estatal são de natureza jurídica, ou seja, um 356

vínculo de cidadania, o qual garanta direitos aos indivíduos. Assim, essa relação entre os sujeitos e poder político é uma referência quando falamos em proteção dos direitos do homem (da parte do Estado). Sendo o processo de positivação do Estado, responsável dar abrangência e limites aos direitos humanos, ou seja, só há direitos humanos nos limites do Direito positivo e da racionalidade estatal nacionalista “pois tudo aquilo que não for jurídico não importa para a definição do que sejam os direitos do homem e todo aquele que não é cidadão nacional é [...] um diferente para o Estado e [...] diferente para os demais” (LUCAS, 2010, p. 102). Neste viés, a modernidade líquida e suas promessas de justiça social acarretaram em uma conjugação da justiça distributiva com a política do reconhecimento, mas, como sabemos na prática isso não funcionou, portanto, hoje já não se pode mais erradicar de todo a miséria humana, nem garantir aos indivíduos uma vida sem conflitos ou sofrimentos. Contudo, para se construir uma sociedade boa, nessa era diluída, é preciso que todos os sujeitos tenham as mesmas oportunidades, portanto, é preciso que todo e qualquer impedimento para alcançar essa equidade social seja removido. Permitindo a criação de uma sociedade justa, onde, “nenhuma injustiça ou privação será esquecida, posta de lado ou de qualquer forma impedida de assumir sua correta posição na longa linha de ‘problemas’ que clamam por solução” (BAUMAN, 2003, p. 74). Portanto, não pode-se mais aceitar a tese nacionalista, que sugeriu “uma comunidade étnica natural, que exalta determinados traços identitários como ideologia única.” (LUCAS, 2010, p. 105). Pelo contrário, é preciso erradicar qualquer forma de discriminação, inclusive e principalmente, no campo do gênero, tido por Butler (2015), como “a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos, no interior de um quadro regulatório altamente rígido, que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência de uma substância, a aparência de uma maneira natural de ser”. De modo que, a nossa identidade de gênero não é definida por algo que somos, mas por aquilo que fazemos, pois o “gênero é efeito de discursos [...] é performativo” (BUTLER, 2015). Nesta perspectiva, toda vez que for levantado o debate sobre reconhecimento de direitos, significa que um grupo de pessoas está sendo privado deles, e não entende o porquê desta privação. E é justamente o que vem ocorrendo com os transexuais, que 357

a todo instante vivenciam situações de desrespeito a seus direitos fundamentais, simplesmente porque sua condição natural os faz buscar e pertencer a um gênero que melhor se adapte às suas reais necessidades. Nesse sentido tem-se que, conforme dados registrados em um relatório de 2012 pela Secretaria Federal de Direitos Humanos sobre a violência contra as pessoas LGBT no Brasil (GLOBAL RIGHTS, 2011, p. 9), apesar de as mulheres trans representarem cerca de 10% da população total de LGBTs no Brasil, elas foram responsáveis por uma desproporcional 50,5% dos cerca de 300 assassinatos de pessoas LGBT. Outro dado relevante é o fato de que 52% das vítimas eram de pele negra ou marrom. Assim também, um relatório anual do Grupo Gay da Bahia (Grupo Gay da Bahia-GGB), uma organização nacional dedicada a combater a violência contra LGBT brasileiros, afirmou que houve um aumento de 21% em assassinatos de pessoas LGBTs entre 2011 e 2012, elevando o número total de vítimas de 266 para 338. Outro dado que choca é o fato de que, quando os transexuais são mulheres e negras, a violência só piora, fato este que pode ser comprovado a partir de um trecho retirado do Report on the Human Rights Situation of Afro-Brazilian Trans Women. Assim segue. And when she is black, it’s worse! It is worse when she is black. She gets really badly beaten up, and they hit her silicone implants, to puncture them. One time there were some thugs that would put nails in sticks, to hit them, with the nails, which was to puncture, to drain the silicone implants. They were from the military. Yeah, it affects the black trans women more, it affects the blacks more. And they ban them from the streets more than they do the white trans women. They hit them more because they are black. In addition to being transvestites—they are still—in addition to being black, they are faggots. Beyond just being black, they are faggots (GLOBAL RIGHTS, 2013, p. 11).

Ao passo que, conforme dados da ONG internacional Transgender Europe (BENTO, 2015, p. 31), “o Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos de [...] transexuais [...] De janeiro de 2008 a abril de 2013, foram 486 mortes [...] Em 2013, foram 121 casos de [...] transexuais assassinados em todo o Brasil. Esses dados estão subestimados”. Ainda, segundo relatórios desta mesma ONG, 1731 pessoas trans foram mortas entre 2008 e 2015, destes 1350 assassinatos aconteceram na América Latina, dos quais 689 foram no Brasil, assim, com base nas palavras de Loureiro e Vieira (2015, p. 49), concluí-se que “o Brasil é o país mais violento para pessoas trans”.

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Além disso, para melhor exemplificar como ocorre a discriminação dos transexuais, seguem dados da Fundação Americana para Prevenção de Suicídio e do Instituo Williams (Ucla) de “como é a discriminação das pessoas trans nos EUA, onde há pesquisa sobre o tema” (LOUREIRO; VIEIRA, 2015, p. 49). Assim, temos que: 70% sofreram violência física ou sexual da polícia; 57% foram rejeitados ou abandonados pela família; 69% já ficaram desabrigados; 45% das pessoas trans tentaram o suicídio antes de completar 24 anos; entre 0,25% e 1% da população norte-americana se declara transgênera; e que, 3 (três) em cada 4 (quatro) transgêneros sofrem abuso sexual na escola. Quanto a um conceito sobre transexualismo, não há divergências doutrinárias. De modo que, Diniz, citada por, L. Araújo (2000, p.28), define o transexual como 1. Aquele que não aceita o seu sexo, identificando-se psicologicamente com o sexo oposto [...] sendo, portanto, um hermafrodita psíquico [...] 2. Aquele que, apesar de apresentar ter um sexo, apresenta constituição cromossômica do sexo oposto e mediante cirurgia passa para outro sexto [...] 3. [...] é o indivíduo com identificação psicossexual oposta aos seus órgãos genitais externos, com o desejo compulsivo de mudá-los [...]

Já na conceituação de Vieira (2000), o indivíduo que possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu Registro de Nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia.

Ainda, Klabin (apud ARAÚJO, L., 2000, p. 29), concebe o transexual como um indivíduo, anatomicamente de um sexto, que acredita firmemente pertencer ao outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao ‘verdadeiro’ sexo, isto é, ao seu sexo psicológico.

A partir destas conceituações pode-se observar que estes sujeitos que apresentam uma “incompatibilidade entre o sexo biológico e a identificação psicológica” (SUTEER apud ARAÚJO, 2000, p. 29), ao apresentarem estas duas características juntas, é que são definidos pela sociedade como pertencedores do transexualismo. Assim, tem-se que o componente psicológico do transexual caracterizado pela convicção íntima do indivíduo de pertencer a um determinado sexo se encontra em completa discordância com os demais componentes, de ordem física, que designaram seu sexo no momento do nascimento. (VIEIRA, 2000).

Temos também que, essa falta de identificação acaba causando nos indivíduos um “processo angustioso, conflitivo e delicado” (ARAÚJO, L., 2010, p. 32), o gera um 359

sofrimento intenso, pois os transexuais vivem “o conflito de possuir uma genitália estranha às suas sensações, desejos e fantasias” (ARAÚJO, L., 2010, p. 55). E tudo isso, simplesmente, porque eles desejam pertencer a outro gênero, que possa melhor lhes representear e porque toda essa fase de escolha não é bem compreendida pela sociedade que os rodeia. Quanto à questão da escolha por um gênero mais adequado, explica Butler (2009) que, embora se possa dizer que isso é uma escolha [...] de caráter dramático e profundo [...] pode incluir um ou vários dos seguintes aspectos: a escolha de viver como outro gênero, passar por um tratamento hormonal, achar e declarar um novo nome, assegurar um novo estatuto jurídico para o seu gênero e submeter-se à cirurgia.

Entretanto, há uma tensão quando entram em debate pessoas que tentam obter legitimação jurídica e assistência financeira e aquelas que buscam fundamentar a prática da transexualidade na noção de autonomia. Pois, “de fato, podemos argumentar que ninguém alcança a autonomia sem a assistência e o suporte de uma comunidade, em especial quando se está fazendo uma escolha corajosa e difícil como é a escolha pela transição” (BUTLER, 2009). E, como afirma Bento (2006), [...] quando se diz “transexual”, não se está descrevendo uma situação, mas produzindo um efeito sobre os conflitos do sujeito que não encontra no mundo nenhuma categoria classificatória e, a partir daí, buscará 'comportarse como 'transexual'. O saber médico, ao dizer 'transexual' está citando uma concepção muito especifica do que seja um/a transexual. Esse saber médico apaga a legitimidade da pluralidade, uma vez que põe em funcionamento um conjunto de regras consubstanciado nos protocolos, que visa a encontrar o/a 'verdadeiro/a transexual'. O ato de nomear o sujeito transexual implica pressuposições e suposições sobre os atos apropriados e não-apropriados que os/as transexuais devem atualizar em suas práticas.

E acima de tudo, é preciso ainda entender que o simples fato de alguém não se identificar com o seu gênero de origem não tem nada a ver com um transtorno de qualquer ordem, como afirmam alguns, nas palavras de Butler (2009), “pesquisadores com propósitos homofóbicos”. Nesse sentido, quando o assunto é o processo de caracterização do transexualismo, o Conselho Federal de Medicina assevera que essa não identificação com o sexo psicológico não pode ser confundido com uma anomalia, pois apresenta traços específicos, de caráter contínuo e permanente. E é justamente por este motivo que a cirurgia de redesignação de sexo é considerada como “correta, válida e necessária” (ARAÚJO, L., 2000, p. 35). 360

É muito importante afirmar que isso não é um transtorno e que, na vida transgênera, há uma ampla variedade de relações complexas, como por exemplo: vestir-se de acordo com o gênero oposto, usar homônimos e recorrer à cirurgia, ou ainda uma combinação de todas essas práticas. Tudo isso pode ou não levar a uma mudança de escolha de objeto (BUTLER, 2009). Apesar da questão da transexualidade já estar presente em nossa sociedade há muitas anos, tendo um destaque especial nas décadas de 60 e 70 – quando articulou as discussões teóricas com as reivindicações em busca mudança nas práticas que regulam o corpo humano, esse debate sobre o transexualismo só recebeu visibilidade a partir do [...] surgimento de associações internacionais, que se organizam para produzir um conhecimento voltado à transexualidade e para discutir os mecanismos de construção do diagnóstico diferenciado de gays,lésbicas e travestis, [que ao] mesmo tempo em que se produz um saber específico, são propostos modelos apropriados para o ‘tratamento’ (BENTO, 2006).

Quanto à questão central, sobre a definição do gênero, L. Araújo (2000, p. 47) assevera que a consciência que se tem de ser do gênero masculino ou feminino é [...] adquirida e induzida pelo comportamento e pelas atitudes dos pais, dos familiares e do meio social a que se pertence, além da percepção e interiorização do meio social a que se pertence. Esse processo pode sofrer várias interferências, que podem levar a um sério comprometimento na identificação de gênero. Tais interferências podem ser de várias ordens: desde a psíquica até a social [...] Pode-se afirmar, porém, que não há uma única causa, e sim um conjunto delas, que fazem o indivíduo não ter identificação de gênero que corresponda ao seu sexo biológico [.. .]

De fato, as interligações entre identidade de gênero e orientação sexual são turvas, mas não se pode ter certeza, apenas com base no gênero de um sujeito, qual identidade ele terá ou quais direções seu desejo irá seguir. Porque ser transexual não significa nada além do que “desejar transpor a barreira entre os sexos.” (COLETTE; CHILAND, 2008). Assim, Butler (2009) nos explica que o pensamento dos sujeitos de que a orientação sexual é definida pela identidade de gênero está equivocado, pois esta, assim como a sexualidade nem sempre tem como referência à prévia identidade de gênero. Quando transpomos à realidade, o debate sobre a questão de gênero enfrenta diversas resistências, pois o nosso sistema não é capaz de satisfazer necessidades

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básicas de diversos indivíduos. E quando nos referimos a necessidades específicas dos transexuais a questão só piora, pois nosso sistema social e suas esferas – política, jurídica e econômica, sequer são capazes de atender a totalidade dos sujeitos. E a necessidade básica do indivíduo é estar integrado consigo mesmo, pois é somente a partir dessa integração que há possibilidade de se inserir de modo harmonioso na sociedade. O indivíduo, para ser (existir com dignidade), tem de ter uma identidade física, mental e moral [...] (ARAÚJO, L., 2000, p. 57 e 58). Diante desse modelo, que não se basta por si, é preciso buscar uma nova concepção de sistema, que supere o atual problema da não satisfação de necessidades, de forma que o sujeito possa se sentir integrado dignamente no meio em que vive e que sua preocupação maior seja a busca pela felicidade plena. Pois é de importância vital [...] que o indivíduo viva bem consigo mesmo e, consequentemente, com os outros; não ocorrendo isso, não há possibilidade de ser feliz. Felicidade é um sentimento abstrato, mas básico e essencial para qualquer realização. Ser ou estar feliz é perceber-se como pessoa, ser humano, poder criar, amar e contribuir com o meio em que se vive, integrar-se dentro de seus limites pessoais (ARAÚJO, L., 2000, p. 58).

Assim, é preciso repensar o tratamento dispensado aos transexuais pela sociedade. Pois a cada minuto milhares deles são vítimas de todo tipo de violência (física, psíquica e social), pelo simples fato de que não se identificam com o gênero que lhes foi concedido ao nascer. Desta forma, o transexualismo não pode mais ser tratado nos dias atuais como um tabu. É preciso ir além, e buscar um tratamento isonômico para estas minorias vítimas de preconceito e de sujeições de um gênero que não lhes pertence. Neste viés, o poder judiciário, auxiliado pelos ditames dos direitos humanos, deve agir como um instrumento que possibilite uma real integração dos transexuais em todos os aspectos por eles vivenciados, erradicando qualquer forma de sofrimento e/ou exclusão. Pois uma das bases do constitucionalismo moderno, assim como um dos preceitos de nossa Carta Magna, prevê que todos são iguais perante a lei, e que toda e qualquer relação jurídica, acima de tudo, deve prezar pela dignidade da pessoa humana. Entretanto, mudar apenas a forma como o Judiciário compreende o tema não é suficiente, precisamos de uma nova forma política e social de pensar sobre o assunto. De modo que situações de agressão, e até mesmo de morte, de transexuais, como exemplo do caso Verônica Bolina não se repitam. 362

Depois que vi a foto de Verônica Bolina, fui invadida por uma sensação de tristeza sem nome. Uma mulher negra, com seios expostos, o rosto completamente deformado por agressões de policiais, cabelos cortados, estirada no chão. Essa cena aconteceu dentro de uma delegacia, portanto, eram os operadores das normas legais os responsáveis pelo desejo, encarnado em cada hematoma no corpo de Verônica, de matá-la [...] O corpo de Verônica é um arquivo vivo (BENTO, 2015, p. 30).

O caso de Verônica Bolina repercutiu amplamente nas mídias, comprovando o que todos já sabem: a violência contra as pessoas trans é uma realidade brasileira. E que os maiores responsáveis por grande parte das agressões são os policiais, coformem apontaram diversas pesquisas, pois “é das relações sociais mais difusas que o Estado retira sua legitimidade para matar as pessoas trans” (BENTO, 2015, p. 30). Outro exemplo, dessa discriminação dentro de instituições públicas, é o caso da adolescente transgênera que teve 2 fotos e a ficha de seu alistamento militar postados na web por um cabo que participava do processo. Uma transexual de 18 anos denunciou ter sido constrangida em um processo de alistamento militar em Osasco, na região metropolitana de São Paulo. A estudante de administração Marianna Lively, de 18 anos, disse que teve fotos dela e de seus documentos pessoais – com seu nome de nascimento e telefone – tiradas e depois vazadas em grupos de WhatsApp por um cabo que participava do processo, no quartel do complexo militar de Quintaúna, no bairro do mesmo nome. O episódio [...] foi registrado em boletim de ocorrência [...] Foram publicadas três imagens nas redes – duas que mostram a jovem em pé em um pátio do quartel, e o outra do certificado de alistamento militar [...] De acordo com ela, o documento já estava em posse dos servidores do Exército, que precisavam assiná-lo antes de liberá-la (TOLEDO, 2015).

Mas, muito antes de preocupar-se com os setores governamentais, é preciso que ocorra uma mudança no pensamento das próprias famílias a que fazem parte os transexuais, pois os primeiros casos de exclusão ocorrem dentro da própria residência, “quando as famílias descobrem que o filho ou filha está se rebelando contra a ‘natureza’ e que desejam usar roupas e brinquedos que não são apropriados para seu gênero, o caminho encontrado para ‘consertá-lo’ é a violência” (BENTO, 2015, p. 33). E diante dessa não aceitação, acabam por fugir de casa e, (in)felizmente encontrando na prostituição um espaço para convívio social e sobrevivência financeira. E isso tudo, normalmente ocorre entre os 13 e os 16 anos. Outro setor da sociedade que muito dificulta as discussões acerca da diversidade de gênero é o da religião. Sim, vivemos em um Estado Laico. Mas “a religião é um dado da cultura [...] O sonho – ou delírio – de um mundo ‘sem religião’ 363

[...] contradiz a própria ideia de diversidade [...] na perspectiva dos Direitos humanos [...] hoje [...] defendidos” (MUSSKOPF, 2015, p. 35). A religião impede o debate e a garantia dos direitos de gênero, de modo que “em todas as religiões [...] é possível reconhecer discursos e práticas de resistência aos padrões normativos” (MUSSKOPF, 2015, p. 35). A religião acaba por ser o local onde os movimentos e debates LGBTTT encontram maior resistência e onde obtêm maior insucesso. Assim, tem-se que é preciso criar uma “teologia indecente” (MUSSKOPF, 2015, p. 37), onde seja possível questionar “o tradicional campo da decência e ordem latino-americanas enquanto permeiam e apoiam as múltiplas estruturas (eclasiológicas, teológicas, políticas e amorosas) de vida” (MUSSKOPF, 2015, p. 37). E não se pode esquecer os currículos escolares, nos quais discutir sobre a sexualidade e as normas de gênero ainda é uma espécie de tabu. De forma que, como nos diz Junqueira, (2015, p. 38 e 39), A heteronormatividade está na ordem do currículo escolar e, desse modo, tende a estar presente em seus espaços, normas, ritos, rotinas, conteúdos e práticas pedagógicas. A instituição normativa e normalizadora da heterossexualidade como única possibilidade natural e legítima de expressão sexual e de gênero envolve toda a escola e os sujeitos que a animam [...] Também informada por outros preconceitos e discriminações, a escola não apenas consente, mas também cultiva e ensina heterossexismo e homo-lesbo-transfobia [...] instauram na escola um regime de controle e vigilância da conduta sexual, do gênero e das identidades raciais.

Entretanto, de nada adianta resolver os preconceitos dos setores sociais se antes não se pensar no próprio preconceito social, que acaba por ser o mais cruel de todos. E tudo baseado em simples convenções, que ao serem desafiadas provocam fortes reações emocionais. E ser transexual hoje, significa desafiar essas tais convenções. Um exemplo claro disso, é a retórica pergunta: “é menino ou é menina?”, que sucede qualquer notícia de gravidez. Como nos explica Diane Everett (apud ROMANZOTI, 2011), “temos a tendência, como sociedade, de colocar as pessoas em caixas”, de rotular tudo segundo os padrões ditos “normais” pela maioria (quase sempre preconceituosa). E os transexuais acabam sendo as maiores vítimas de toda essa rotulação preconceituosa, pois “um transexual não só atravessa as fronteiras de gênero, mas também as desafia. Se as pessoas não veem você como ‘ou isso ou aquilo’, elas têm dificuldade em se relacionar com você em seu nível de conforto” (EVERETT, apud ROMANZOTI, 2011). 364

E o exemplo mais recente dessa indignação social diante dos diferentes, é a repercussão polêmica que ocorreu após a transexual Viviany Beleboni atuar de forma a representar Jesus crucificado durante a 19a Parada do Orgulho LGBT em 07 de junho deste ano, em São Paulo. Ela só queria protestar contra a homofobia sofrida diariamente pelos transexuais, mas a grande maioria sequer prestou na mensagem que ela tentava trazer. Como ela mesma nos diz, “usei as marcas de Jesus, humilhado, agredido e morto. Justamente o que tem acontecido com muita gente no meio GLS” (BELEBONI, apud DANTAS, 2015). Entretanto, só foram capazes de pensar no repúdio e até mesmo no “nojo” que sentiam por ver uma transexual “brincando” com a crença religiosa deles. Sentimento este que fica claro nas palavras do Deputado Federal Marco Feliciano (apud DANTAS, 2015) ,

Imagens que chocam, agridem e machucam. Isto pode? É liberdade de expressão, dizem eles. Debochar da fé na porta denuda [sic] igreja pode? Colocar Jesus num beijo gay pode? Enfiar um crucifixo no ânus pode? Despedaçar símbolos religiosos pode? Usar símbolos católicos como tapa sexo pode? Dizer que sou contra tudo isso NÃO PODE? Sou intolerante, né? Infelizmente o que causa nojo é o fato de um “diferente” representar uma cena normalmente vista de outra forma – com um ator do sexo masculino e heterossexual. Ao passo que ver um transexual morto pelo preconceito sem limites, dos que se julgam “normais” (O que é ser normal? Existe alguém normal?), passa despercebido, a travesti que choca é a que está num palco, interpretando um cara que morreu pelos oprimidos. A outra, que morreu de braços abertos como Jesus, que morreu de falta de oportunidade, que morreu por conta da violência cotidiana, que morreu pela soma das violências que sofreu durante sua vida inteira, que morreu por conta da sociedade transfóbica que se alimenta de corpos de travestis e transexuais mortas todos os dias, essa outra travesti não rende protesto. Essa travesti assassinada, como milhares todos os anos, não são dignas da indignação dessa ~gente de bem~ que está ofendidíssima com a performance da outra travesti, a que segue viva e lutando cotidianamente pra seguir assim (MARTINEZ, 2015).

Por conseguinte, fica claro que as mudanças devem ocorrer em todos os setores sociais, inclusive entre os próprios operadores e garantidores (ou dos que deveriam ser) dos direitos dos sujeitos. De modo que, vive-se hoje em uma sociedade que fecha os olhos para a realidade e que repudia o que ofende seus padrões de normalidade. Para a qual tudo o que é diferente é errado, causa nojo e revolta. Ao passo que ser transexual em nossa sociedade representa muito mais que uma simples “escolha” de gênero, mas uma ofensa as tradicionais formas de sexualidade, e até mesmo de normalidade. Entretanto, esta concepção não pode continuar sendo aceita, muito menos propagada pelos setores da segurança pública ou ensinada nos 365

“currículos” escolares. Sem falar que o preconceito sofrido pelos transexuais dentro de suas próprias casas é algo totalmente intolerável, pois ser transexual significa apenas que o sujeito não aceita seu sexo biológico e que deseja adequar este ao seu sexo psicológico, ou seja, não significa ser anormal. E se fosse? Qual o problema em ser diferente? Na verdade, não existe nada de errado nisso, e a sociedade (como um todo) precisa entender todo esse processo e apoiar os indivíduos que se sentem como minorias, pois, como nos diz nossa Carta Magna, todos são iguais perante a lei (inclusive os transexuais), ou ao menos deveriam ser.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o que foi exposto até aqui, fica clara a importância dos direitos humanos nas questões relacionadas ao gênero, de modo a buscar uma igualdade para as minorias vítimas do tensionamento das questões indenitárias. Ao passo que, o surgimento destas novas identidades culturais precisa de uma atenção especial para que não surjam novos conflitos baseados em preconceitos mal concebidos. Neste viés acautelatório é que se faz muito importante a noção sobre os reais conceitos dos direitos humanos, de gênero e de igualdade, ou seja, é preciso primeiro compreende-los, para que em um segundo momento seja possível fazer uso destes para proteger as minorias vitimadas pelos preconceitos. E um exemplo claro dessas situações ocorre com os transexuais, que diariamente são ridicularizados, e até mesmo agredidos, em razão de suas “escolhas” de gênero. Sem falar que o preconceito sofrido pelos transexuais é algo totalmente intolerável, pois ser transexual significa apenas que o sujeito não aceita seu sexo biológico e que deseja adequar este ao seu sexo psicológico, ou seja, não significa ser anormal. E se fosse? Qual o problema em ser diferente? Na verdade, não existe nada de errado nisso, e a sociedade (como um todo) precisa entender todo esse processo e apoiar os indivíduos que se sentem como minorias, pois, como nos diz nossa Carta Magna, todos são iguais perante a lei (inclusive os transexuais), ou ao menos deveriam ser. Por conseguinte, têm-se que os direitos humanos desempenham um papel muito importante na integração dos transexuais, viabilizando uma oportunidade para 366

estes se sentirem iguais, tendo em vista que em nosso Estado de Direito prezamos por um tratamento isonômico para todos os seres humanos, independentemente de qualquer consideração de gênero e que nossa Carta Magna coloca a dignidade da pessoa humana como um preceito a ser seguido em toda e qualquer relação, pois esta é uma condição intrínseca inerente a qualquer sujeito de direito. Entretanto, efetivar este direito fundamental à igualdade ainda é uma questão a ser enfrentada, inclusive em sociedades onde o preconceito em face do transexualismo ainda impera, como é caso do Brasil e de vários outros países do mundo. Assim, buscamos por uma solução efetiva com o fim de compreender o real sentimento dos sujeitos que nasceram em um gênero que não lhes pertence. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Para além dos direitos do homem. In: ______. Meios sem fim: Notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, pgs. 23-34. ARAN, Márcia. A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Rio de Janeiro: Agora, 2006. Disponível em: . Acesso em: 30 mar 2015. ______. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Revista Contemporânea, São Paulo, 2014. Disponível em: . Acesso em: 27 out 2015. ARAUJO, Glauco. Adolescente transgênera tem fotos e ficha de alistamento postadas na web. São Paulo: G1, 2015. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2015. ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000. ASSMANN, Selvino J.. Condição humana contra "natureza": diálogo entre Adriana Cavarero e Judith Butler. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 3, p. 650-662, set/dez. 2007. Disponível em: Acesso em: 10 de Mar de 2015. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. ______. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. BENTO, Berenice. A diferença que faz a diferença: corpo e subjetividade na transexualidade. Bagoas, Rio Grande do Norte, v. 3, n. 4, p. 95-112, 2009. Disponível 367

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