LIVROS DIDÁTICOS E A CONSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA ESCOLAR BIOLOGIA: O PARADIGMA DISCIPLINAR NO COMPÊNDIO BRASILEIRO DE BIOLOGIA DE CANDIDO DE MELLO LEITÃO (1941-1942)

July 5, 2017 | Autor: Maria Santos | Categoria: Science Education, History of Education
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Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014

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LIVROS DIDÁTICOS E A CONSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA ESCOLAR BIOLOGIA: O PARADIGMA DISCIPLINAR NO COMPÊNDIO BRASILEIRO DE BIOLOGIA DE CANDIDO DE MELLO LEITÃO (1941-1942) Maria Cristina Ferreira dos Santos (Prof. Adjunta da FFP e CAp/UERJ) Sandra Escovedo Selles (Prof. Associada da FE/UFF) Resumo Este trabalho trata do processo sócio-histórico de constituição da disciplina escolar Biologia no Brasil, tomando como principais fontes livros didáticos de Biologia de autoria de Candido de Mello Leitão, zoólogo e professor do ensino secundário no Distrito Federal. Com base em aportes teóricos no campo do currículo, voltamo-nos para a análise das relações entre conhecimentos, livros didáticos e professores autores na produção da disciplina escolar. Foram selecionados para análise os dois volumes do Compêndio Brasileiro de Biologia (1942-3) deste autor. Na defesa de sua perspectiva disciplinar – aqui denominado paradigma biológico, Mello Leitão deu destaque aos conteúdos da Biologia e excluiu a Mineralogia e Geologia, diferentemente de compêndios de outros autores no período. Palavras-chave: conhecimento, livro didático, disciplina escolar. Introdução Este trabalho tem como tema a história da disciplina escolar Biologia no Brasil nos anos 1930-40, período de profundas transformações sociais, culturais, políticas e econômicas. Antes da revolução de 1930, os Estados tinham autonomia nas decisões nos diferentes níveis de ensino, situação que se modifica quando Getúlio Vargas assume o poder e são promulgadas as Reformas de Francisco Campos (1931) e de Gustavo Capanema (1942), com a centralização em nível federal da organização do ensino e seleção de livros didáticos. 1 Buscamos encontrar vínculos entre as mudanças educacionais e a produção da disciplina escolar, elegendo elementos para compreender as relações entre conhecimentos, livros didáticos, professores autores e disciplina. Admitindo que a o conhecimento escolar é uma produção específica da escola, influenciada por fatores internos e externos, e que não se traduz como uma transposição verticalizada do conhecimento das ciências de referência, entendemos que a hierarquização dos conhecimentos das ciências de referência em relação aos escolares limita as possibilidades de análise dos processos educativos, pois subvalorizam outras dimensões envolvidas em sua constituição. Argumenta-se que a análise da seleção e da 1

A pesquisa contou com apoio do CNPq.

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organização dos conteúdos de ensino em livros didáticos traça caminhos para a compreensão da história de determinada disciplina escolar e também possibilita a investigação da produção do conhecimento escolar pelos professores. Para subsidiar a análise partimos dos aportes teóricos, no campo do currículo, de Lopes (1999, 2008) sobre conhecimento e disciplina escolar e de Goodson (1995, 1997), com a abordagem sócio-histórica da construção do currículo e a importância de investigar o papel dos professores na produção das disciplinas escolares. Investigar os atores sociais, suas lutas e demandas em determinado contexto social, político e econômico nos ajuda a formular uma interpretação das permanências e mudanças na história das disciplinas escolares no Brasil. De acordo com Lopes (1999), os principais traços constitutivos dos saberes escolares são a mediação didática e a disciplinarização, processos que também os modificam. Assim, sua constituição se dá em conformação distinta daquela dos saberes científicos e acadêmicos: As disciplinas escolares reorganizam o conhecimento científico em novas subdivisões, que não necessariamente correspondem às divisões dos saberes acadêmicos. Nesse processo, sofrem influências de fatores diversos, além daqueles oriundos das universidades e centros de pesquisas. Desde fatores intrínsecos às instituições de ensino até questões político-econômicas (LOPES, 1999, p.227).

As disciplinas escolares apresentam características que as aproximam das científicas e acadêmicas, mas também se distanciam destas, pois atendem a finalidades sociais específicas, que reconfiguram sua organização e conferem diferente hierarquização de objetivos e valores relacionados às finalidades educativas. Lopes (2008) indica que existe influência das disciplinas de referência sobre as escolares e esta é mais relevante para as acadêmicas universitárias do que para as científicas. Essa influência pode ocorrer durante a formação de professores e nos processos de seleção dos concursos vestibulares. A aproximação das disciplinas escolares com as disciplinas acadêmicas lhes concede mais “[...] prestígio, apoio social e posição na hierarquia das disciplinas, contribuindo para a sua constituição como um padrão de estabilidade curricular.” (idem, p.56). Entretanto, as disciplinas escolares e acadêmicas não são equivalentes e também as influências das ciências de referência são variáveis quando consideramos as diferentes disciplinas escolares: As disciplinas escolares podem então ser, de forma geral: a) disciplinas que, em seu processo histórico de constituição, assumem maior relação com as disciplinas de referência (ex.: química, física e história); b) disciplinas constituídas pela integração ou pela tentativa de integração de diferentes disciplinas de referência (ex.: ciências – integração de química, física, biologia e princípios de geologia e de astronomia; estudos sociais – integração de história e geografia); e c) disciplinas temáticas desenvolvidas com base em demandas sociais as mais diversas, sem qualquer relação com

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disciplinas científicas de referência (ex.: moral e cívica,orientação sexual e cidadania) (idem, p.57).

A inclusão de alguns conteúdos de ensino e a exclusão de outros nas disciplinas podem nos revelar as relações de poder entre os atores sociais, não sendo simplesmente seleções neutras que objetivem destacar e organizar conhecimentos entendidos como de maior valor para a sociedade. Uma seleção subentende o privilégio de algumas concepções e o apagamento de outras. Raymond Williams ajuda-nos a problematizar as relações entre o conteúdo do currículo, o poder e o controle, quando indica que “o que se pensava ser uma simples distribuição constitui, na verdade, uma modelação real com objetivos sociais específicos [...]. O que se considera ser uma educação é, de fato, um conjunto específico de ênfases e omissões” (WILLIAMS 2 apud GOODSON, 1997, p. 22-23). De acordo com Esland (1971), o professor toma decisões importantes sobre a sequência, a duração, o tempo, os conhecimentos mobilizados em aula e sua perspectiva compreende sistemas de interpretação que podem ser classificados de maneira ampla como disciplinares e pedagógicos. Este autor afirma que todos os professores têm uma perspectiva da matéria a ser ensinada e uma perspectiva pedagógica, com níveis diferentes de clareza e embasamento teórico. A perspectiva disciplinar está relacionada à visão do professor sobre o principal paradigma da disciplina e como este se articularia à dimensão utilitária do conhecimento - puro ou aplicado, conteúdos disciplinares ou suas tecnologias (ibidem, p. 8386). Ball e Lacey (1980) ampliaram a categoria perspectiva disciplinar proposta por Esland (1971), problematizando a compreensão das subculturas disciplinares como comunidades sem diferenças em relação ao conhecimento. Estes autores afirmaram que existem diferenças significativas do ponto de vista epistemológico dentro da comunidade disciplinar e suas subculturas e utilizaram o conceito de paradigma disciplinar 3 para referir-se às visões dos professores em relação aos conhecimentos que os professores consideram adequados para a disciplina que lecionam (BALL; LACEY, 1980). A partir destas considerações teórico-metodológicas nossa intenção é compreender quais conhecimentos foram mobilizados por um professor autor em seus livros didáticos publicados na década de 1940 e como os reelaborou para atender às mudanças educacionais, relacionando-os à produção do conhecimento da disciplina escolar Biologia no período, com a finalidade de identificar os ramos de conhecimento priorizados, reduzidos ou mesmo excluídos. Cabe-nos examinar mais detidamente em que medida a produção e organização do 2 3

WILLIAMS, Raymond. The Long Revolution. London: Penguin, 1975, p.146. No original: “subject paradigm” (BALL; LACEY, 1980).

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conhecimento evidencia padrões de permanências e mudanças na constituição desta disciplina escolar.

Os livros didáticos de Candido de Mello Leitão e o Compêndio Brasileiro de Biologia Cândido Firmino de Mello Leitão Junior (1886-1948) formou-se na Escola de Medicina do Rio de Janeiro em 1908 e trabalhou como médico e professor em instituições de ensino normal, secundário e superior. Docente de História Natural na Escola Normal do Distrito Federal e na Escola Normal de Niterói, atuou na década de 1930, como professor de História Natural. Em 1935 e 1936 foi professor da disciplina Biologia Geral na 6ª série do curso complementar na Escola Secundária do Instituto Normal do Distrito Federal. Mello Leitão produziu livros didáticos relacionados às disciplinas escolares História Natural e Biologia desde o início de sua carreira docente: Elementos de Zoologia (1917), Compêndio de Botânica (1924), Compêndio de Zoologia (1924), Noções de Biologia Geral (1930), Curso Elementar de História Natural (1930-1940), Biologia Geral (1940) e Compêndio Brasileiro de Biologia nos anos 1940. Entre as 12 obras didáticas produzidas, 11 foram escritas para as disciplinas escolares História Natural e Biologia e apenas uma para as Ciências Naturais. Embora ele não tenha sido o primeiro autor nacional a escrever livros didáticos de Biologia, visto que Rodolpho de Paula Lopes já havia publicado em 1911 o livro Elementos de Biologia, cinco obras publicadas a partir de 1930 voltam-se para a Biologia no currículo escolar. O primeiro compêndio de Biologia foi Noções de Biologia Geral, publicado pela Livraria Francisco Alves em 1930, editora que fundou as bases do mercado editorial de livros didáticos no Brasil. A segunda obra foi o quarto volume do Curso Elementar de História Natural Curso - Biologia (1935), que se destinava aos cursos pré-universitários e teve sua segunda edição em 1940, sendo então denominado Biologia Geral, publicado separado da coleção de História Natural.

Enquanto os três primeiros volumes desta coleção Curso

Elementar de História Natural mesclam conteúdos de ensino de Zoologia, Botânica, Mineralogia, Geologia, Paleontologia e Antropologia – privilegiando a Zoologia e a Botânica, o quarto volume trata da Biologia Geral. Na década de 1940 seguiram-se os dois volumes do Compêndio Brasileiro de Biologia. Estas quatro obras foram publicadas pela CEN. Além das obras didáticas, este autor também publicou em 1937 A Biologia no Brasil, obra de cunho científico. Neste livro ele defende a mesma concepção disciplinar de outros de seus livros didáticos, considerando a Biologia Geral, a Botânica e a Zoologia como ramos da Biologia. Os três livros didáticos que se referem à Biologia, publicados de 1930 a 1940, não foram reeditados após 1940 e provavelmente o Compêndio Brasileiro de Biologia representa a 5344

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última versão de Mello Leitão do que ele considerava ser o conhecimento legítimo a ser ensinado na escola. Pelo motivo acima referido e por representar a perspectiva disciplinar deste autor nos anos 1940, diferenciada daquela mais frequente em compêndios de outros professores catedráticos de História Natural de instituições renomadas de ensino, como os de Waldemiro Alves Potsch, Lafayette Rodrigues Pereira 4 e Carlos Werneck 5, selecionamos para a análise os dois volumes do Compêndio Brasileiro de Biologia. Foram localizadas e consultadas apenas uma edição de cada volume do Compêndio. O uso da palavra Brasileiro no título dos dois volumes da obra parece-nos revelar a intenção do autor de acentuar o caráter nacionalista de sua produção intelectual e de mostrar o seu pertencimento a um grupo de intelectuais ligado ao Estado Novo, que acreditava que a educação era a chave para a modernização do país e defendia a necessidade de construção de uma identidade brasileira. Com apoio nas considerações de Magalhães (2006), quando este afirma que: [...] uma das marcas sócio-culturais mais relevantes quando se analisam os manuais escolares é a explicitação de juízos sobre conteúdos, lugares, figuras ou personagens. Subjazem aos manuais escolares lógicas de autoridade e de verdade que não são comuns a outros livros ou produtos culturais, mesmo no interior da cultura escolar. O manual escolar, mais que um meio de aculturação e de alteridade, é fator de afirmação e de dominação cultural. (MAGALHÃES, 2006, p.10)

Entendemos que a Biblioteca Pedagógica Brasileira, e em particular a série Livros Didáticos, esteve estreitamente vinculada à hegemonização das ideias de um grupo que defendia o ideário da escola nova e ao lugar que seus representantes ocuparam no primeiro governo de Vargas. No contexto das Reformas de Francisco Campos e Gustavo Capanema, em que houve a ampliação do número de matrículas no curso secundário e a necessidade de produção de livros didáticos para este nível de ensino, a Companhia Editora Nacional estava sintonizada com o projeto de Estado de educação e de construção de uma identidade nacional após a Revolução de 1930. Mello Leitão participou deste projeto intelectual, ao lado de outros educadores renovadores, como autor de vários livros na Biblioteca Pedagógica Brasileira. Através de sua atuação e produção intelectual, Mello Leitão participou de um grupo que almejou a definição das políticas educacionais e científicas no Brasil. Sustentamos que os livros de Biologia publicados representaram não apenas parte da produção cultural da época, 4

Waldemiro Alves Potsch (1892-1968) e Lafayette Rodrigues Pereira foram professores do Colégio Pedro II e autores de compêndios de História Natural. 5 Carlos Leoni Werneck (1888-1946) foi professor e diretor da Escola Normal, depois Instituto de Educação do Distrito Federal. Foi autor da coleção Curso Elementar de História Natural, com edições impressas pela Tipografia Besnard Frères no final dos anos 1920 e início dos anos 1930.

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mas também contribuíram para agregar capital com efeito simbólico a este professor e cientista, favorecendo-o na ocupação de espaços de prestígio social em instituições e associações educacionais e científicas. A seleção e organização dos conteúdos na perspectiva disciplinar Na concepção de Mello Leitão (1935, p.49), as Ciências Biológicas consistiam de estudos especiais de Citologia, Histologia, Anatomia, Fisiologia, Psicologia, Embriologia, Genética, Biométrica, Taxonomia, Botânica e Zoologia. Ainda nas Ciências Biológicas e, com aplicações mais restritas, incluíam-se a Patologia, a Higiene, a Antropologia e a Sociologia. A Biologia Geral tratava dos seres vivos, considerados em conjunto, e era dividida em cinco grupos de ciências: Morfologia (Citologia, Histologia, Anatomia), Fisiologia (Fisiologia, Embriologia, Psicologia), Genética, Ecologia e Etologia. No Volume I os capítulos foram organizados em duas partes: Biologia Geral, com oito capítulos em 156 páginas; e Botânica, com 13 capítulos e 258 páginas (Quadro 1). Quadro 1. Organização do Compêndio Brasileiro de Biologia, Volume I - Biologia Geral e Botânica, em capítulos, com os respectivos números de páginas e ramos do conhecimento. N. I II III IV V VI VII VIII

IX X XI XII XIII XIV XV

Títulos dos capítulos Parte 1 – Biologia Geral Biologia: Tratado dos seres vivos. Relação entre o ser e o meio: Talassociclo e Limnociclo. Epinociclo. Relações entre os seres vivos: Eussinafia e Prostíquia. Relações entre os seres vivos: Enantiobiose. Estudo geral do protoplasma. Estudo geral da célula: A célula vegetal. A espécie como unidade. Parte 2 - Botânica Caracteres dos vegetais. Sua classificação Esquizófitos Algas e Cogumelos Briófitas e Pteridófitas Organização geral das Espermáfitas Órgãos de nutrição dos Fanerógamos Fisiologia da nutrição nos vegetais superiores: Ciclo da água.

N. pg. 156 18 21

Ramos Biologia Geral (Introdução) Ecologia

11 21

Ecologia Ecologia

17

Ecologia

15 23

Físico-Química Citologia

30

Genética

258 17

Anatomia e Histologia Vegetal

10 16 21 14 26 23

Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Anatomia Vegetal Fisiologia Vegetal

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XVI XVII XVIII XIX XX XXI

Fisiologia da nutrição: Fotossíntese e respiração. Fisiologia da nutrição nos vegetais superiores: O crescimento. Morfologia e Fisiologia da flor. Fruto, semente e germinação. Estudo das principais famílias de Angiospermas. Fitogeografia

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Fisiologia Vegetal

17

Fisiologia Vegetal

26 24 21

Morfologia e Fisiologia Vegetal Morfologia e Fisiologia Vegetal Morfologia e Sistemática

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Fitogeografia/Ecologia

No primeiro capítulo o autor apresentou as características gerais dos seres vivos reunindo-as em quatro grupos: “organização e forma; constituição química; nutrição e irritabilidade; e evolução” (ibidem, p.7). Este capítulo é uma introdução à Biologia Geral 6 com noções nos ramos da Citologia, Físico-Química 7, Fisiologia Celular e teorias sobre a origem da vida. Na categorização dos ramos de conhecimento nos livros, na parte da Biologia Geral estes estão principalmente distribuídos na Ecologia (70 páginas), Genética (30 páginas), em seguida pela Citologia (23 páginas) e Físico-Química (15 páginas). Na Parte II - Botânica, a Morfologia 8, a Sistemática e a Fisiologia Vegetal são privilegiadas, seguidas da Fitogeografia (14 páginas). Os conteúdos de Morfologia e Fisiologia Vegetal são apresentados interrelacionados em alguns capítulos (XVIII e XIX) e não separados em capítulos diferentes. Além de os conhecimentos mobilizados constituírem uma seleção diferente da tradicionalmente realizada na História Natural, também a apresentação da Morfologia com a Fisiologia representa uma abordagem diferenciada. 9 Mello Leitão (1943, p. 163) definiu a Biologia Geral como a ciência que estudava “os seres vivos como um todo, em suas relações com o meio, com os outros sêres e como se perpetuam os caracteres específicos e raciais”, enquanto a Botânica era o “Tratado das plantas” e a Zoologia era o “Tratado dos animais”. Na visão deste autor, a Biologia Geral se subdividiria em cinco ciências – Morfologia (Citologia, Histologia e Anatomia), Fisiologia (Fisiologia, Psicologia e Embriologia), Genética, Ecologia e Etologia, e estas ciências, ligadas a outros ramos – Taxonomia, Biométrica, Botânica, Zoologia, Paleontologia e Biogeografia 6

Na análise dos compêndios empreendida neste estudo utilizamos a denominação Biologia Geral para nos referirmos à reunião dos conhecimentos da disciplina escolar que incluíram a Citologia, Histologia, Bioquímica, Físico-Química, Fisiologia Celular, Genética, Ecologia (Biogeografia, Fitogeografia) e/ou Evolução. No exame dos capítulos dos livros preferiu-se a indicação de cada um dos ramos separadamente, sendo utilizada a denominação Biologia Geral quando não foi possível a correlação com um dos ramos em particular. 7 Os conhecimentos que abordam a química das macromoléculas nos seres vivos estão na Físico-Química. 8 Utilizamos a denominação Morfologia para nos referirmos aos conhecimentos de Morfologia Externa, Citologia, Anatomia e/ou Histologia, quando foram mobilizados de forma integrada. 9 Na categorização dos ramos optamos por utilizar as definições enunciadas pelo autor.

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constituiriam as Ciências Biológicas. Ainda a Patologia, a Higiene, a Antropologia e a Sociologia poderiam ser agrupadas dentro das Ciências Biológicas, com restrições (MELLO LEITÃO, 1940, p. 49-51). De acordo com Mayr (1982, p.119-121), somente entre 1936 e 1947 os diferentes ramos das Ciências Biológicas foram unificados com a teoria sintética de evolução e neste período de refinamento da teoria emergiram novos campos na Biologia: a Etologia 10, a Ecologia 11 e a Biologia Molecular 12. A Ecologia por anos permaneceu estática e descritiva, tratando da listagem e número de espécies e indivíduos ocorrentes em determinada área. A partir das considerações feitas por Mayr (1982) e da organização de conteúdos de ecologia em livros didáticos atuais, optamos por relacionar os conteúdos de Fitogeografia ao ramo da Ecologia. O destaque dado à Biologia escolar por Mello Leitão nos anos 1920 a 1940 encontra ressonância em outros países, como a Grã-Bretanha, onde esta disciplina teve rápida expansão devido a seus aspectos utilitários e inclusão nos exames (TRACEY, 1962). Considerando o lugar da Biologia Geral neste compêndio, tanto em relação ao número de páginas como com a inclusão de ramos mais identificados com os processos de modernização nas ciências de referência, e a circulação de Mello Leitão no meio científico brasileiro e internacional, entrevemos a preocupação do autor com a atualização dos conhecimentos escolares e a sintonia com as dinâmicas que fertilizavam a produção desta disciplina. Voltamo-nos agora para a análise do segundo volume deste compêndio, cuja primeira e única edição localizada foi publicada em 1942, um ano antes do volume I (1943) e da expedição do programa de Biologia para o ensino secundário (1943) na reforma Capanema. Neste, os capítulos não foram agrupados em unidades temáticas e o autor tratou da maioria dos grupos do Reino Animal conjugando com maior destaque a Morfologia e a Sistemática. Na maioria dos capítulos que exploram os grupos de animais, é dada grande ênfase à Anatomia, Morfologia Externa e Sistemática, aproximando, neste aspecto, estes conhecimentos aos ramos tradicionais da História Natural. Em alguns capítulos também foram incluídos conteúdos da Embriologia, Fisiologia e/ou hábitos dos animais (Quadro 2).

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A Etologia estuda de forma comparada o comportamento animal (MAYR, 1982). O termo Ecologia foi cunhado por Ernst Haeckel (1834-1919), um biólogo alemão, em sua obra Generelle Morphologie (1866), no sentido de uma ciência que trata dos seres vivos em seu ambiente e da conservação da natureza. O desenvolvimento desta ciência como um dos ramos biológicos teve impulso no século XX, quando se articulou à Biologia Evolutiva (MAYR, 1982). 12 Ciência que emerge a partir da decifração da estrutura do DNA por James Watson e Francis Crick em 1953 na Inglaterra. 11

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Quadro 2. Organização do Compêndio Brasileiro de Biologia, Volume II - Zoologia, em capítulos, com os respectivos números de páginas e ramos do conhecimento. N.

I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII

Títulos dos capítulos Prefácio Introdução. Leis internacionais de nomenclatura zoológica A célula animal As principais divisões do reino animal Protozoários O zigote dos animais multicelulares e sua evolução. Tecidos animais. Espongiários Cnidários Moluscóides Platelmintos Asquelmintos Anelídeos Malacópodes

N. pg. 1 6

Ramos Sistemática

17 9

Citologia e Bioquímica Sistemática

29 22

Morfologia, Sistemática e Fisiologia Embriologia e Histologia

10 29 9 5 22 20 15 3 8

Morfologia, Sistemática e Fisiologia Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Morfologia, Sistemática e Fisiologia Morfologia, Sistemática e Fisiologia Morfologia, Sistemática e Fisiologia Morfologia, Sistemática e Embriologia Sistemática Morfologia e Sistemática

27 24 8 61 37 19 14

Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Morfologia, Sistemática e Fisiologia

22 8 44 22 32 60

XXI XXII XXIII XXIV XXV XXVI

Artrópodes em geral Trilobites, Merostomados e Pantópodes Crustáceos Aracnídeos Miriápodes e Quilópodes Insetos Moluscos Equinodermas Homalopterígios, Enteropneustas, Urocórdios e Cefalocórdios Caracteres gerais dos Vertebrados Ciclóstomos Peixes Anfíbios Répteis Aves

XXVII

Mamíferos

77

XXVIII XXIX

Os Hominidas O meio e a fauna. Dispersão dos animais Noções sucintas de Zoogeografia Panoramas da terra nas eras geológicas A evolução

20 15

Morfologia, Sistemática e Fisiologia Morfologia e Sistemática Morfologia e Sistemática Morfologia, Sistemática e Fisiologia Morfologia, Sistemática e Fisiologia Morfologia, Sistemática e Paleozoologia Morfologia, Sistemática, Embriologia e Fisiologia Antropologia Ecologia

49 16

Biogeografia/Ecologia Paleontologia

20

Evolução

XIV XV XVI XVII XVIII XIX XX

XXX XXXI XXXII

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Os capítulos que apresentam maior número de páginas são em ordem decrescente: Mamíferos (77 p.); Insetos (61 p.); Aves (60p.); Noções sucintas de Zoogeografia (49 p.); Peixes (44p.); Moluscos (37 p.) e Répteis (32 p.), sendo privilegiados os conteúdos de ensino que tratam dos vertebrados, dos insetos e da Zoogeografia. Os Artrópodes 13 constituem um grupo privilegiado neste compêndio, com 131 páginas em seis capítulos. Encontramos descrições, em letra de tamanho reduzido, sobre os hábitos de vários Aracnídeos, possivelmente por Mello Leitão ter sido um especialista nesta classe. Os Insetos, o grupo com o maior número de espécies, são nesta obra a classe com maior destaque entre os Artrópodes, o que é comum em outros livros didáticos antigos e atuais. O autor alega ter utilizado para os Insetos os sistemas de classificação “de Parker & Haswell e de Lamere, por serem estes dois livros recentíssimos” (MELLO LEITÃO, 1942, p. 291). Quando aborda os peixes, também se refere à classificação de Parker & Haswell, entre outras (p. 470). Ressalta-se a sua preocupação de atualização dos conhecimentos nos livros didáticos para o ensino secundário com os conhecimentos acadêmicos. O autor inicia o estudo dos grupos frequentemente apresentando alguns exemplos da fauna ocorrente no Brasil. A ênfase nos animais brasileiros é um dos traços que remonta à exaltação do nacionalismo e formação de uma consciência patriótica entre os alunos do ensino secundário, acentuados no governo de Vargas. Também foram localizados conhecimentos que podem ser correlacionados à Zoologia Aplicada e tratam do uso de minhocas na pesca, alimentação e como remédio (MELLO LEITÃO, 1942, p. 186) e doenças causadas por ácaros nos humanos e animais (ibidem, p. 281). Embora aparentemente inscritos nas tradições utilitárias, facultam também outra interpretação: poderiam ser conhecimentos exigidos nos exames para o ingresso em cursos superiores, como o de Veterinária.

Considerações finais No volume I do Compêndio o autor apontou que, em decorrência do desenvolvimento da Biologia nos séculos XIX e XX, “os seus diversos ramos constituem outras tantas ciências, formando o conjunto das Ciências Biológicas”: a Zoologia, a Botânica, a Paleontologia, a Ecologia, a Biogeografia, a Genética, a Anatomia, a Fisiologia e a Embriologia (MELLO LEITÃO, 1943, p. 7). Nos dois volumes do Compêndio, Mello Leitão dá grande destaque à Biologia Geral, Botânica e Zoologia. A partir dos conhecimentos veiculados nos dois volumes nesta obra, podemos compreender que na visão deste autor estes estariam inscritos nos ramos 13

Neste compêndio Mello Leitão agrupou os animais denominados Artrópodes nas classes: Trilobites, Merostomados, Pantópodes, Crustáceos, Aracnídeos, Miriápodes, Quilópodes e Insetos.

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considerados principais na constituição da Biologia escolar, tendo sido também incluídos conteúdos de Citologia e Histologia (Morfologia), Antropologia e Evolução, integrantes da Biologia Geral. Santos (2013) destacou dois subgrupos de professores com diferentes paradigmas disciplinares nos anos 1930-40: um que priorizava o estudo dos seres vivos e excluía os conteúdos de Mineralogia e Geologia da disciplina escolar – denominado por esta autora de paradigma biológico - e outro que considerava que estes dois ramos deveriam fazer parte da disciplina e incluía o estudo de seres brutos e vivos – o paradigma naturalista. O paradigma biológico se apoiava em um novo enfoque teórico-metodológico que se desenvolveu no século XIX e que estudava as características comuns presentes nos animais e vegetais. Denominada independentemente por Lamarck, Treviranus e Oken de Biologia, ela toma como objeto não as diferenças entre os animais e plantas, mas sim o que os une - a vida – e os distingue dos minerais e rochas, então objetos da História Natural. Segundo Jacob (1983), nela não se desenvolveram somente novos conceitos, mas também novos métodos em diferentes ramos do conhecimento, progressivamente ao longo dos séculos XIX e XX. Mello Leitão foi um grande defensor do paradigma biológico. Esta distribuição de conhecimentos da Mineralogia e Geologia à parte das Ciências Biológicas acompanhava o modelo da Academia Francesa de Ciências, seguido pela Academia Brasileira de Ciências desde a sua fundação até 1953 14. A produção intelectual de Mello Leitão nos indica o lugar de destaque por ele concedido à Biologia no currículo escolar e a sua aposta na unicidade da disciplina, ao invés da ênfase em seus ramos, acompanhando as tendências nos Estados Unidos da América e em outros países que culminariam na síntese nas Ciências Biológicas, com possíveis influências no Brasil. Neste sentido, entendemos que a disciplina escolar Biologia, em seu processo sócio-histórico de constituição, tenha sofrido significativa influência das disciplinas de referência, embora apresente outra conformação, resultante também das práticas sociais e finalidades específicas. Argumentamos que Mello Leitão escreveu livros didáticos não somente com a intenção de organizar e reelaborar os conhecimentos biológicos na defesa de um projeto curricular, mas também porque ele fazia parte de um grupo de intelectuais que pretendia tornar hegemônica a proposta de seu grupo de modernização pedagógica no país, 14

Em sua fundação em 1916 a ABC foi dividida em três seções: Matemática, Ciências Físico-Químicas e Ciências Biológicas. A seção de Matemática compreendia a matemática, a astronomia e a físico-matemática; a seção das Ciências Físico-Químicas incluía a física, a química, a mineralogia e a geologia; e a seção das Ciências Biológicas abrangia a biologia, a zoologia, a botânica e a antropologia. A partir de 1953 a seção de Ciências Físico-Químicas foi dividida em três: Ciências Físicas, Ciências Químicas e Ciências da Terra, mantendo estas cinco seções até 1995 (ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS, 2012).

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baseada na pedagogia da Escola Nova, alicerçada em um repertório de saberes pedagógicos autorizados, do tipo moderno, experimental e com caráter científico. Neste sentido, a publicação de seus compêndios de Biologia pela Companhia Editora Nacional se insere em um projeto político de Estado de modernização e desenvolvimento do Brasil.

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SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia

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