LIVROS PARADIDÁTICOS: REFLEXÕES SOBRE AS MÚLTIPLAS LINGUAGENS DA LITERATURA ESCOLAR

June 2, 2017 | Autor: Andrea da Silva | Categoria: Education, Literature, Sexuality
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LIVROS PARADIDÁTICOS: REFLEXÕES SOBRE AS MÚLTIPLAS LINGUAGENS DA LITERATURA ESCOLAR Mestre Andréa Costa da Silva (doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ) e Professora Doutora Vera Helena Ferraz de Siqueira (docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) Resumo Este artigo, pautado nos pressupostos dos Estudos Culturais e da Historia Cultural, pretende fazer reflexões sobre o livro paradidático, trazendo a luz, com o apoio de estudos sobre o tema, as possíveis ressignificações que este suporte de leitura pode provocar na discussão da sexualidade na escola. Dando prosseguimento a pesquisa sobre o uso de livros paradidáticos na discussão da sexualidade na esfera escolar, iniciada no curso de mestrado, investimos em debater a presença deste suporte de leitura, cada vez mais presente no cenário das escolas brasileiras. Levando em conta o caráter pedagógico que normalmente carrega o livro paradidático, invariavelmente este é escolhido pelos/as docentes para discutir temáticas pertinentes aos Temas Transversais preceituados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. Este artefato cultural e pedagógico traz em si marcas que sugerem ações/mediações por parte dos docentes que dele fazem uso. Discutir tais possibilidades desestabilizando certezas sobre este suporte de leitura é o investimento deste artigo. Palavras-chave:Literatura escolar,discurso,sexualidade, gênero Abstract The present article is based on the theories of Cultural Studies and Cultural History, and contributes with considerations on paradidactic books. With the support of other studies on this topic it focuses on the possible new meanings that these books can bring to the discussions on sexuality at school. Continuing the research on the use of paradidactic books in the discussions about sexuality at school that began in the masters course, we invested in the debate around their presence, that is more and more significant, within Brazilian schools. Paradidactic books are frequently chosen by the teachers to approach transversal themes, recommended by the National Curriculum Parameters, due to the pedagogical characteristics these books usually present. This cultural and pedagogical artifact has traits that instigate actions/mediations in teachers that use them. Thus this article investigates these possibilities and challenges understandings of the paradidactic books. Key Words: School literature; discourse; sexuality; gender Introdução A partir do estudo “Apropriações docentes no uso de livros literários que abordam a gravidez na adolescência”1, observamos como os/as docentes compreendiam questões re1

Dissertação de Mestrado defendida em 2007(NUTES/UFRJ)

lacionadas à sexualidade e gênero presentes nas obras literárias2 , usualmente denominadas de paradidáticas, que abordavam a gravidez na adolescência no desenvolvimento de suas atividades pedagógicas. Foi perceptível também, durante a realização preliminar da pesquisa bibliográfica3, que havia uma profusão de títulos referentes a temáticas ligadas a saúde reprodutiva e sexualidade e foi possível confirmar, no transcorrer do estudo empírico, que estes livros têm grande circulação na rede pública e privada dos estabelecimentos de ensino nacionais, com tiragem e reedições significativas. Ao longo da inserção no campo, nas entrevistas com os/as professores/as, foi observado que estes livros4 estão presentes nas atividades pedagógicas dos/as docentes buscando contemplar a demanda por assuntos que agreguem o interesse juvenil e temas prescritos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. Com esse documento, o currículo das escolas brasileiras passou a ser pensado de modo a discutir as estratégias de prevenção, pois ao colocarem a sexualidade como tema transversal, coube às instituições escolares discuti-la de uma forma mais ampla, em todas as disciplinas. Com essas preocupações, os/as professores/as das diversas disciplinas, principalmente nas aulas de Ciências, mas também em outras como de Língua Portuguesa e Literatura, buscam atender à demanda dos PCNs e à emergência da temática da sexualidade em sala de aula, trazendo o assunto à baila, normalmente utilizando livros paradidáticos que se referem ao tema. Esses livros, artefatos culturais, trazem em si as marcas dos discursos veiculados pela instituição escolar, como também as representações que usualmente circulam no senso comum. Segundo Chartier (2001), tão importantes quanto o conteúdo da obra em si, imagem e texto são elementos discursivos imprescindíveis, já que textos não são indiferentes à sua materialidade, pois ao escrevê-los o autor deixa “senhas implícitas ou explícitas” inscritas em sua obra no sentido da intencionalidade e imposição de sentidos, dispositivos que: “[...] tendem a impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja que ele esteja” (CHARTIER, 2001, p. 97). Por esta via podemos compreender que tão importantes quanto as figuras do autor e do texto, são as composições que conferem materialidade ao objeto lido, que investem em assegurar um caminho para o leitor e para sua apropriação; as instruções do texto são cruzadas com outras, no seu processo de produção. Através dos estudos das práticas de produção, de circulação e de consumo dos materiais impressos, buscamos “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1999, p. 16). Assim podemos apontar que, na pesquisa realizada, os depoimentos dos/as professores/as sinalizavam que os livros que enfocavam a gravidez na adolescência/sexualidade apresentavam o perfil,da maternidade com forte significação negativa, principalmente quando associada a determinado recorte etário, a própria nomenclatura de “gravidez precoce” antecipando um sentido antes mesmo que possam ser levantados outros elementos de discussão. As considerações acerca da literariedade nas obras de ficção adotadas pelas escolas são um aspecto bastante controverso, no entanto, Barthes (1979) coloca: “Entendo por literatura não um corpo ou seqüência de obras, nem mesmo um setor ou comércio de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática; a prática de escrever” (p.16-17). 3 Em busca por títulos referentes à gravidez na adolescência, foi feito levantamento bibliográfico na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), no Rio de Janeiro, seção brasileira do International Board on Books for Young People (IBBY). 4 Os títulos escolhidos e o foco dos assuntos abordados nas narrativas literárias foram: Um sonho dentro de mim (gravidez na adolescência e AIDS), Aprendendo a viver (gravidez na adolescência e AIDS) e Anjos no aquário (gravidez na adolescência), todos de autoria de Júlio Emílio Braz. 2

Outro elemento que se destacou nas entrevistas com os/as docentes foram os critérios de escolha para adoção das obras literárias; neste aspecto, ficou evidente que a materialidade dos livros adotados interferiu de alguma forma nas escolhas feitas e no desenvolvimento do trabalho pedagógico. As ilustrações dos livros ou imagens presentes na capa e em outras partes do impresso veiculavam informações/representações que foram expressamente colocadas nos discursos docentes, inclusive como elemento qualificador da obra. A abordagem que a obra literária deu à temática (uma narrativa, pequena novela, onde as personagens femininas viam o desenrolar de suas vidas diante da gravidez “precoce”, por vezes com o agravante da AIDS em membros da família) foi elogiada por todos os docentes. O projeto gráfico composto pela capa, título, ilustrações e/ou imagens, se mostraram elementos de destaque e fatores preponderantes para escolha da obra literária, como evidenciaram as entrevistas. Levando em conta tais pressupostos e com o desenvolvimento da pesquisa de doutorado intitulada: “Ensinando sobre sexualidade: saberes, poderes e verdades na literatura escolar” que vem sendo desenvolvida no Laboratório de Linguagens e Mediações da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizamos este investimento teórico e neste artigo trazemos à baila reflexões sobre esse artefato cultural: o livro paradidático, levantando as possíveis ressiginificações que este suporte de leitura pode provocar. 1. Literatura na escola: laços antigos Quando Ellsworth (2001, p.11) indaga logo na abertura de seu artigo: “Quem este filme pensa que você é?” e assim discute a noção de modos de endereçamento na teoria cinematográfica com a preocupação inicial de compreender as relações estabelecidas entre “o texto” de um filme e a experiência de seus espectadores, imaginamos o mesmo movimento na relação livro e leitor, ao que autora acrescenta: “Os filmes, assim como as cartas, os livros, os comerciais de televisão, são feitos para alguém. ” (ELLSWORTH, 2001, p.13). Assim, ao pensarmos na literatura que circula na escola é inevitável deixar de tocar no possível estabelecimento do leitor na escola enquanto “destinatário”; as transformações no âmbito escolar no uso dos livros acabam por “[...] criar uma distinção entre duas grandes funções a serem preenchidas pelos livros, que se concretizará, aos poucos, na criação de dois tipos de livros escolares: o livro didático e o paradidático ou de literatura infantil” (LAJOLO e ZILBERMAN, 1999, p. 138). As peculiaridades nas atribuições e nos usos desses livros é que iriam imprimir a configuração peculiar a cada um. Tanto na esfera literária quanto no campo cinematográfico surge a discussão do possível governo das significações das obras. No que diz respeito à História da Leitura, Chartier (1999) nos faz atentar para este movimento contraditório entre texto/autor/leitor:

Por um lado, cada leitor é confrontado por todo um conjunto de constrangimentos e regras. O autor, o livreiro-editor, o comentador, o censor, todos pensam em controlar mais de perto a produção do sentido, fazendo com que os textos escritos, publicados, glosados ou autorizados por eles sejam compreendidos, sem qualquer variação possível, à luz de sua vontade prescritiva. Por outro lado, a leitura é, por definição, rebelde e vadia. Os artifícios de que lançam mão os leitores para ler nas entrelinhas, e subverter as lições impostas são infinitos (CHARTIER (1999, p. 7).

Com os pressupostos de Chartier (1997, 2001), podemos observar que a “interdependência fundadora” entre texto e leitor recebe uma liberdade que não é arbitrária, na perspectiva de que os códigos e convenções que norteiam as práticas de uma comunidade de leitores acabam por interferir nessa essa associação, como também as formas discursi-

vas e materiais dos textos lidos. Imbricadas nestes aspectos estão as representações presentes nos textos e imagens dos livros, que instituem sentidos antes mesmo que a obra em si seja lida.

Os livros, sejam eles didáticos ou paradidáticos, estão presentes no quotidiano escolar e no bojo destas questões é imprescindível situar que “a materialidade do suporte passa a ser inalienável do espírito das representações a que seus usos deram margem”, como nos diz Chartier (2001, p. 11).

Dentro deste contexto, os estudos de Soares (2003) e Paulino (1997) nos posicionam acerca do “pacto” instituído entre escola e literatura, “escolarizando” a produção literária, nomeando o destinatário, seja este o jovem, a criança ou o professor, mediador deste bem cultural. Neste sentido, em primeiro lugar, devemos levar em conta que professores não são leitores comuns, pois se apresentam em vários papéis: o primeiro nas suas leituras pessoais, em caráter informal; depois no decorrer das suas trajetórias de formação, quando ingressam no magistério e passam a selecionar e legitimar as leituras de seus alunos, estabelecendo para si e para eles “cânones” de leitura(s) (TARDELLI, 2003) e apropriação das mesmas. Com este referencial, como sinalizado em Silva, Siqueira e Lacerda (2010) 5 percebemos claramente que há um distanciamento entre os ensinamentos escolares e seus textos “lícitos” e as leituras “selvagens“, como denomina Chartier (1997) ao se referir as leituras feitas fora da escola, nos espaços não-formais de educação. Zilberman discute a prioridade das motivações educativas sobre as literárias, durante o século XVII, na produção de textos para jovens: “O que chamamos de literatura juvenil ‘específica’, isto é, os textos escritos exclusivamente para crianças, tem sua origem primariamente não em motivos literários, mas pedagógicos” (BAUMGÄRTER apud ZILBERMAN, 1981, p. 130). Com a expansão do mercado editorial, a ampliação da rede escolar e o crescimento das camadas alfabetizadas, acelera-se o processo civilizatório, e “[...] o ler transformou-se em instrumento de ilustração e sinal de civilidade” (ZILBERMAN, 2003, p. 55).

Nesta encruzilhada, entre a demanda político institucional e os protocolos e leitura oriundos da clientela, os (as) docentes fazem, muitas vezes, opções que se caracterizam pela ação meramente “pedagógica”, ao que Sefton e Martins (2004, p. 279 apud KLEIN, 2010, p.185) assinalam: [...] houve um notável crescimento do mercado consumidor infanto-juvenil, uma vez que as histórias literárias passaram a ser vistas em seu potencial pedagógico. Com um status maior, as editoras de livros infanto-juvenis criaram estratégias ousadas para vender, investindo em catálogos caprichados, jogos agressivos de marketing junto aos professores e, mesmo, campanhas de lançamento de livros. Tais estratégias atraem olhares de todos os envolvidos no processo educativo, principalmente das instituições escolares, já que as mesmas revelam-se como grandes consumidoras [grifo das autoras]

Cabe salientar que a perspectiva educacional que professamos nos remete a um alargamento daquilo que entendemos por educativo ou pedagógico: “[...] pois na concepção dos Estudos Culturais são educativas todas as práticas, produtos e espaços culturais nos quais o poder se organiza e se exercita” (SANTOS, 2000, p.237) (grifos do autor). E assim, para Santos, “[...] práticas, produtos e espaços até então tidos como ‘inocentes’, como pura diversão, fuga do trabalho, e da vida urbana agitada [...], passam a ser analisados, como SILVA, A.C, SIQUEIRA, V.H.F. e LACERDA, N.G. Literatura e Sexualidade: visibilidades e silenciamentos nas apropriações docentes. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, Volume 35, Número 1.Janeiro/Abril, 2010.Disponível em : http://www.ufrgs.br/edu_realidade/ Acesso em: 09/08/2010. 5

produtores de representações que regulam nossas vidas.” (SANTOS, 2000, p.237). Nossa aproximação com os Estudos Culturais volta nosso olhar aos textos e às imagens das histórias infanto-juvenis como artefatos culturais que se inserem nos espaços escolares, estabelecendo relações entre os diferentes sujeitos da educação. Nesta perspectiva, o texto “[...] é apenas um meio no Estudo Cultural; estritamente um material bruto a partir do qual certas formas (por exemplo, da narrativa, da problemática ideológica, do modo de endereçamento, da posição do sujeito, etc.) podem ser abstraídas.” (SILVA, 2004, p. 75). Por essa via, na historicidade sobre as práticas de leitura e seus significados, devemos contemplar as relações sociais e as redes de poder e saber, em que tanto os indivíduos quanto os bens simbólicos estão envolvidos por inúmeros dispositivos, produzindo marcas que confirmam e produzem as diferenças e as hierarquias.

Como desdobramento desta reflexão buscamos aprofundar o entendimento das relações entre literatura, juventude e sexualidade como sistemas inter-relacionados presentes no cotidiano escolar. Um primeiro passo será, com os pressupostos de Cademartori, 2009 deslocar os marcos de identificação etária e com esta idéia considerar que:

O uso da literatura para expressar a idealização de certa etapa de vida, ou transmissão de idéias para a formação de determinado tipo de sujeito, continua vigente. Só o que mudou foi o modo de fazê-lo e os conteúdos a serem transmitidos. Portanto, embora uma gama variada de assuntos faça parte, hoje, da produção literária, ou daquela que assim se pretende, apenas em tese deixou de existir circunscrição temática para o público infantil. Pois, se foi repelido o pedagogismo a moda antiga, bem menos fácil é conseguir escapar das nossas idealizações do que seja infância, assim como do viés do que se passou a chamar de “politicamente correto”. (CADEMARTORI, 2009, p.48)?

O enfoque dado ao recorte etário designado de “literatura infantil” não desaloja a genealogia da argumentação, pois se a adequação aos livros, de uso escolar ou não, normalmente está sob a tutela do adulto, será sua perspectiva que prevalecerá independente da esfera em que se encontre. 2. Paradidáticos: um novo produto cultural A escola, enquanto espaço de práticas pedagógicas que viabilizam a ação de mecanismos que criam e recriam formas diversas de relações de poder, é diariamente perpassada pelas sutilezas que a linguagem institui, naturalizando lugares e posicionamentos. A educação que tem em sua gênese preocupações moralizantes encontra nos dispositivos pedagógicos investimento nesta demanda e a literatura usada pela escola não poderia desobrigar-se desse mérito. Ao estabelecer esta reflexão levando em conta os elementos da cultura, Costa et al. observam:

Um noticiário de televisão, as imagens, gráficos etc. de um livro didático ou as músicas de um grupo de rock, por exemplo, não são apenas manifestações culturais. Eles são artefatos produtivos, são práticas de representação, inventam sentidos que circulam e operam nas arenas culturais onde o significado é negociado e as hierarquias são estabelecidas. (COSTA et al, 2003, p.38)

Assim, os objetos culturais inserem-se em um contexto amplo de posições ocupadas, em que poder e reconhecimento são sempre negociados. Ao discutir as representações de infância na literatura em articulação com os campos da cultura, Kirchof apresenta um panorama sobre a inserção da temática da diferença na literatura destinada a crianças e jovens a partir dos anos 60 do século XX, quando analisa livros infantis que se detém sobre a temática e neste investimento relata:

No Brasil, em parte devido a essa tendência internacional no campo da crítica da literatura infantil e, em parte, devido às várias políticas de inclusão adotadas pelos governos federais e estaduais dos últimos anos, percebe-se uma nítida proliferação de obras destinadas ao público infanto-juvenil cuja principal temática está diretamente ligada à questão da diferença, com a presença de temas como a velhice, a infância pobre, vários tipos de deficiência física e mental, questões de raça e de gênero, entre outros. (KIRCHOF, 2008, p.61)

O autor sustenta que a crítica literária britânica e norte-americana a partir dos anos 60/70 do século XX, aponta para as representações hegemônicas presentes nos livros infantis e “[...] também procuraram denunciar o fato de que a maior parte dos livros infantis, até então, representava grupos minoritários de forma estereotipada” (KIRCHOF, 2008, p.61). O movimento iniciado fora do Brasil alavanca as mudanças em nossas terras, mas na análise do autor a consequência não é das melhores, pois: “[...] a grande maioria dessas narrativas ainda é tributária de uma tradição histórica do campo da literatura infantil, a saber, seu caráter predominantemente moralizador e pedagogizante.” E como um efeito colateral: “[...] atualmente, numa inversão surpreendente, ela [a literatura] parece estar ensinando, de modo francamente monológico, a política do multiculturalismo e do respeito às diferenças.” (KIRCHOF, 2008, p.62). Coincidência ou não, o fato é que no Brasil seria justamente nesta época que os livros com recorte temático surgem e também a sua denominação: “[...] é só na década de 1970 que surge a nova denominação para este tipo de livro e, conseqüentemente, os primeiros livros paradidáticos [...]” conforme observa Melo (2004, p.15). O endosso dos pesquisadores da área faz coro com a observação de Munakata (1997) quando sinaliza que a nomenclatura de “livro paradidático” “[....] é um termo tipicamente brasileiro, mas agregando características parecidas com outras obras publicadas em outros países[...]”. (MUNAKATA ,1997, p.102). Ao que Melo (2006, p. 119) acrescenta: Se o termo pode ser uma construção editorial recente, segundo os pesquisadores neste campo de investigação, porém livros de leitura contando narrativas ficcionais com o objetivo de ensinar conteúdos curriculares não o são, na história do livro para leitura das crianças na escola.

Melo (2006, p. 120) ressalta outro aspecto, tomando por referência a pesquisa de Dalcin (2002), que aponta alguns precursores dos chamados livros paradidáticos de Matemática como: “[...] as obras Aritmética da Emília, de Monteiro Lobato, e alguns livros de Malba Tahan, principalmente o livro O homem que calculava [...]”, por suas características e usos. A autora assegura que seria somente na década de 1970 que a denominação “livros paradidáticos”, criada pelos próprios editores, seria incorporada a este tipo de livro, e finaliza:

Deste modo, paradidático não é apenas um novo termo para um determinado tipo de livro, mas representa a constatação de que, neste período, há a criação de um novo produto cultural, uma nova fórmula editorial com objetivos específicos, buscando atender à demanda de um determinado tipo de público leitor, caracterizadamente escolar. [grifo da autora] (MELO, 2006, p.121)

A autora contrapõe os livros paradidáticos infantis e os livros de literatura infantil que circulam na escola, afirmando ser possível constatar que:

A grande diferença entre eles, no entanto, pode estar no fato daqueles darem ênfase ao trabalho com algum conteúdo do currículo escolar e destacarem, já no texto introdutório, os seus objetivos pedagógicos, enquanto que a literatura infantil preocupa-se mais com a linguagem literária, com a criação e inovação na construção dos personagens, do enredo e do cenário em que ocorrem as histórias. (MELO, 2004, p.120)

. Considerando tais pressupostos e tomando por objeto de investigação os livros paradidáticos de educação sexual endereçados à infância, Furlani (2005) preocupa-se em estabelecer um paralelo distintivo entre as categorias de livros didáticas e paradidáticas, levando sempre

em conta que são as duas categorias mais presentes no cotidiano escolar. Em relação aos didáticos a autora sinaliza que “[...] é um recurso do ensino, ligado a programas educacionais coerentes com a política pedagógica de cada escola, mas vinculado a uma política educacional maior, como a estabelecida pelo Governo Federal (com a LDB-Lei 9493-96 e os PCNs/96)” (FURLANI, 2005, p.19); acrescenta ainda que o mesmo ofereça subsídio às matérias regulares do currículo escolar e que apresenta como característica principal ser “utilitário ao ensino”, ao passo que o livro paradidático também apresenta conhecimentos e serve ao ensino, mas “[...] seus conteúdos relacionam-se a temáticas que tangenciam as disciplinas do currículo oficial.”. Acrescenta ainda que os mesmos “[...] são vistos como um complemento aos livros didáticos, [...] e são elaborados especificamente para cada assunto [...].” (FURLANI, 2005, p.19). Constatando tais posições, é perceptível que não há uma unanimidade no conceito do que seria a literatura paradidática; entretanto concordamos com Melo (2004) no que se refere a considerar que mesmo não havendo um conceito em uníssono, o livro paradidático tem como característica primordial ser “[...] uma produção cultural com destino ao público escolar.” (MELO 2004, p.36). Com a perspectiva de amealhar esse público o mercado editorial se transforma e corporifica investindo em viabilizar procedimentos de aquisição e interpretação uniformes, mas os estudos das práticas que se apossam de maneiras diversas dos livros, enquanto produções culturais, apontam para a produção de usos e significações variadas. Chartier (1999, p. 13) argumenta que: “[...] a leitura é sempre uma prática encarnada de gestos, em espaços, em hábitos. [...] uma história das maneiras de ler deve identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura.” As comunidades de leitores estabelecem usos legítimos dos livros, as maneiras de ler, os instrumentos e procedimentos de interpretação e as práticas de leitura são investidas por interesses e expectativas contrastantes entre as comunidades de leitores. Tão importantes quanto as figuras do autor e do texto, as composições que conferem materialidade ao objeto lido investem em assegurar um caminho para o leitor e sua apropriação; as instruções do texto são cruzadas com outras, no seu processo de produção, e Chartier indica que uma história da leitura deve retornar à materialidade do texto: “[...] ao próprio objeto impresso, pois traz em suas páginas e em suas linhas os vestígios da leitura que seu editor supõe existir nele e os limites de sua possível recepção. .” (CHARTIER, 2001, p. 96). Para que possamos fazer uma interlocução com Chartier, encontramos em Lajolo (2002, p.29) importante acréscimo: [...] um livro que aspira ao circuito escolar é circundado – no catálogo que deve promovê-lo junto aos professores – de um conjunto de informações que só constam no catálogo por corresponderem à imagem que os editores fazem do que é e do que não é relevante para o professor que adotará o livro. (Grifo nosso)

Os catálogos são instrumentos de divulgação de livros didáticos e paradidáticos nas escolas, e freqüentemente têm sua distribuição gratuita, em busca da mediação proporcionada pelos professores junto aos alunos. Oliveira (2006, p. 42) nos traz um perfil:

Os catálogos, material efêmero, são sempre muito coloridos, impressos em papel de qualidade, resistentes para o manuseio intensivo, encadernados como livros e têm número de páginas, tamanhos e formatos significativamente diferentes entre eles [...] Na materialidade que assume (o catálago), dirige-se ao professor, sujeito mediador entre livros, leitores e práticas de leitura [...].

Sobre este suporte Klein nos traz um acréscimo ao pesquisar livros de literatura infantil que tematizam a questão da diferença:

Interessante para a nossa análise foi constatar que, nos catálogos ou nos sites de algumas editoras nacionais pesquisadas, o leitor é auxiliado a encontrar histórias a

partir de temáticas ligadas aos temas transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais (meio ambiente, pluralidade cultural, ética e cidadania, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo) ou, ainda, a temas diversos, dos quais ressaltamos os seguintes: deficiência física, diferenças (aceitação), diferenças sociais e raciais, diferentes maneiras de olhar o mundo/pensar, solidariedade, entre outros. (KLEIN, 2010, p.182).

Assim, é frequente que nos catálogos dos livros que circulam na escola sejam encontradas dedicatórias, biografias de autores e ilustradores, apresentações da série a que o livro pertence ou, ainda, sinopses convidativas, apresentando a história trazida pela obra. É muito comum também que venham encartadas com a obra as chamadas “fichas de leitura” ou “suplemento do professor” e neste sentido fica patente que o endereçamento se desloca para dois destinatários: a criança ou jovem e o adulto: pais, mães, familiares, professor/a, possíveis mediadores/as da leitura em questão. Tais objetos - dedicatória, resenha, titulo, prefácio, ilustrações, etc. - a principio considerados periféricos, podem interferir na abordagem e compreensão da obra, pois longe de ser um apêndice da obra em si, “[...] trata-se aqui de um limiar ou [...] de um ‘vestíbulo’, que oferece a cada um a possibilidade de entrar ou de retroceder.”. Assim, se o texto é uma estrutura com significação, o paratexto é: “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (GENETTE, 2009, p.9). Tal conceito compreende o texto de forma interligada com uma estrutura que o envolve e contribui para que tome forma e produza sentidos. Ao apropriar-se do temo “paratexto” e batizá-lo com competência específica, Genette sinaliza uma materialidade textual que se coloca paralela a outra, com a qual mantém uma relação direta, não de dependência, mas de continuidade. Para Genette (2009) os elementos constitutivos do paratexto são: Título, subtítulos, intertítulos; prefácios, preâmbulos, apresentação, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim; epígrafes; ilustrações; dedicatórias, tira, jaqueta [cobertura], e vários outros tipos de sinais “acessórios”. Esses elementos constitutivos, segundo o crítico francês, que se apresentam nas franjas do texto, embora considerados como elementos limítrofes, não deveriam ser lidos na sua marginalidade, mas, pelo contrário, como verdadeiros atos de linguagem. Os paratextos conferem significação à obra, mesmo antes de ser livro; seria como se o texto ficasse preso no seu próprio mito de origem e se tivesse tornado tal, pelo simples fato dele existir, conferindo-lhe, nesse caso, existência. Genette (2009, p.14) sinaliza que “todo contexto forma paratexto” e desta forma mostra que determinada obra se compõe dos discursos circundantes a ela sem existir necessariamente qualquer materialidade; a este tipo de paratexto nomeia de “paratexto factual”, esclarecendo que “[...] é certo que a consciência histórica da época que viu nascer uma obra raras vezes é indiferente a sua leitura” (GENETTE, 2009, p.14), como no caso da negação de leitura de determinados romances pelo público masculino, por seu perfil “açucarado”. Diferenciações no “endereçamento” de determinado suporte de leitura são comuns quando se deseja atingir determinado público-alvo. Assim, uma obra pode receber determinada diferenciação ou estigma por pertencer a determinado grupo, tendo em vistas suas características físicas ou narrativas. Sobre este aspecto, Del Priore (2005, p.287) recorda que “As adolescentes eram incentivadas a ler obras da conhecida Biblioteca das Moças [...], sucesso absoluto entre os anos 40 e 60, [...]. Nos casamentos aí relatados, a mulher era sinônimo de honra, na virtude e pureza; e o homem, de honra, baseada em seu bom nome.” A mesma autora (2005, p.288) indica diferenciação de gênero nas leituras empreendidas por meninos e meninas: Enquanto elas consumiam tal literatura cor-de–rosa, completamente fora da realidade, eles devoravam os quadrinhos eróticos de Carlos Zéfiro [...]. Conhecidos por “catecismos”, pois cabiam no bolso da calça, comprados às escondidas ou disputa-

dos à tapa, tais quadrinhos feitos a bico de pena continham todo o universo erótico masculino.

Levando-se em conta tais representações, refletimos que o gênero produz o sexo, na erotização das relações polarizadas, introduzidas nas significações dos papéis sociais. E desta forma a literatura destinada ao público feminino reveste-se de paratextos nada subliminares, como cores próprias e imagens características. Por este viés, devemos considerar o conceito de gênero, que na acepção de Joan Scott (1996), é entendido como “elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e um primeiro modo de dar significado às relações de poder.” Desta forma, enquanto homens e mulheres, seres sexuados, estamos incorporados a processos de naturalização de atribuições sociais, vivenciados no quotidiano. A introjeção dessa estrutura pela nossa subjetividade marca atuação social própria e em relação ao outro, pois define nossos modos de perceber o mundo, interpretar a cultura e estabelecer parâmetros de relacionamento. A importância de perceber a dinâmica dos elementos descritos por Scott incide em despolarizar construções estáticas e reconhecer a participação do processo de produção simbólica como elemento dinâmico. As relações sociais vão colaborar para o processo de subjetivação e construção de identidade em cada indivíduo. Assim, devemos sempre levar em conta instâncias como a família, a escola, os meios de comunicação e o contexto cultural como lugares de circulação e produção simbólica. A importância de perceber os aspectos sinalizados por Scott se deve à possibilidade de despolarizar construções estáticas e reconhecer a participação do processo de produção simbólica como elemento dinâmico, central na construção identitária. Algumas considerações finais Para este artigo foi preponderante a noção de “modos de endereçamento”, como formulada por Ellsworth (2001); essa noção se faz necessária para discutir a possível (inter) dependência entre objeto impresso e os elementos que lhe conferem materialidade, investindo em pensar também o caráter ativo do leitor, pois ainda que “modos de endereçamento” sejam impossíveis de delimitar, pois seriam como um “evento que ocorre em algum lugar entre o social e o individual” (p. 14), não podemos esquecer que cada produto é produzido tendo em vista um público específico, um público que não pode ser explicitamente diagnosticado ou mapeado, mas que é imaginado e desejado por vários atores desta cadeia de produção. Assim é possível investir nos pressupostos que nos fazem estudar o livro paradidático como artefato cultural, carregado das significações que lhe são próprias e que por vezes servem de amparo a pratica pedagógica; isso, sem esquecer que esses artefatos são constituidos e constituintes histórico e culturalmente. Podemos deslocar esta discussão para a literatura destinada aos jovens, em que artefatos simbólicos, como imagens, texto e paratextos presentes nas obras poderão investir em potencializar as distinções “naturalizadas”. Nosso esforço se deteve em oferecer outras abordagens, ou possibilidades para perceber as inscrições que estas obras eventualmente apontem: um empreendimento desafiador, mas com certeza importante. Referencias bibliográficas BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1979. CADEMARTORI, Ligia. O Professor e a Literatura: para pequenos, médios e grandes. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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