Lixo, trabalho e cidadania

May 31, 2017 | Autor: Paula Stroh | Categoria: Latitude
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Lixo, trabalho e cidadania Paula Yone Stroh1 Michaela de Araújo Santos2 Resumo: No contexto dos riscos sócio-ambientais entranhados na progressiva produção de lixo proveniente do descarte da sociedade de consumo e das respostas do capital industrial na constituição do novo segmento da reciclagem de resíduos sólidos e, tendo como base resultados empíricos parciais de um diagnóstico sócio-ambiental realizado no território de vida e trabalho dos catadores de resíduos sólidos do lixão municipal de Maceió − AL, o artigo discute a precarização e insalubridade do trabalho desta nova categoria de trabalhador no contexto dos países periféricos ao sistema econômico global, postulando o desenvolvimento de políticas públicas que tenham como pressuposto o reconhecimento dos excluídos como sujeitos de sua própria inclusão social. Palavras-chave: lixões urbanos. Manejo de resíduos sólidos. Catadores de materiais recicláveis. Lixão municipal de Maceió. Litter, work and citizenship Abstract: In the context of the socio-environmental risks intertwined in the progressive production of litter deriving from the consumption society's disposal and of the answers provided by the industrial capital in the constitution of the new segment of solid residues recycling and in the basis of partial empirical results of a socio-environmental diagnosis carried through in the territory of life and work of the solid residues' collectors in the municipal garbage dump of Maceió – AL, the article discusses the precarization and insalubrity of the work of this new worker category, in the context of the peripheries countries by the global economic system. The article takes over that the public policy must recognize the excluded ones as citizens to their proper social inclusion. Key words: urban garbage dump. Manipulation of solid residues. Collectors of recyclable materials. Municipal garbage dump of Maceió.

Paula Yone Stroh é Doutora em Sociologia, professora do Instituto de Geografia e Meio Ambiente e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia - Universidade Federal de Alagoas, E-Mail: [email protected] 1

Michaela de Araújo Santos é licenciada em Geografia, Universidade Federal de Alagoas, EMail: [email protected] 2

Latitude, Vol. 1, nº2, pp.135-150, 2007.

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Introdução

“As lágrimas dos pobres comovem os poetas. Não comove os poetas de salão, mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as tragédias que os políticos representam em relação ao povo” (Carolina de Jesus, Quarto de Despejo, 2005, p.47). Quem tem mais de 40 anos e cresceu em uma cidade brasileira tipicamente industrial, tem gravada na memória a existência de um personagem da vida cotidiana do seu bairro, andando pelas ruas puxando uma carroça, esta por vezes puxada por um burrico, e gritando a sua presença como coletor(a) ou comprador(a), por alguns trocados, de jornais, revistas e ferro velho, vasilhames de vidro e outros tipos de objetos inutilizados do consumo, que entulhavam o espaço doméstico e podiam ou deviam ser descartados. Este protagonismo urbano do “catador de papel”, “garrafeiro” ou “sucateiro” adquiriu visibilidade no início da década de 60, com a publicação do diário pessoal de Carolina de Jesus (2005), no qual ela registra a crueldade e o sofrimento de sua vida de catadora e moradora de uma das mais antigas favelas da cidade de São Paulo3. O trabalho precarizado de catação de rua dos materiais descartados do consumo desponta e se dissemina como parte intrínseca da modernização industrial dependente e correspondente explosão urbana sustentada no atendimento a um mercado consumidor urbano em célere expansão, para atender demandas econômicas externas. O progresso da sociedade de industrialização avançada e do hiper-consumo nos países da periferia do sistema econômico global se faz acompanhar da produção exponencial de lixo urbano. O capitalismo industrial, na capacidade de potencializar e explorar economicamente os riscos que produz, introduz um novo segmento no seu interior: o da reciclagem industrial de materiais descartados do consumo, ao qual está marginalmente integrado um contingente operário de catadores de materiais recicláveis. A partir de estudo sócio-ambiental realizado no território do lixão municipal de Maceió−AL, examina-se alguns aspectos referentes à emergência desse novo setor operário na sociedade de industrialização avançada e de consumo, com base em concepções orientadas para a inserção do catador de material reciclável como trabalhador formal de sistemas integrados de gestão e manejo e de cadeias produtivas de resíduos sólidos.

Em sua primeira edição, o livro “Quarto de Despejo” provocou grande impacto. Embora rechaçado pela crítica literária, já se encontra em sua 8ª edição. 3

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Sociedade de consumo e produção de lixo Estima−se que a massa diária de produção mundial de lixo urbano atinja atualmente a marca de 3 bilhões de quilos/ dia, dos quais o Brasil responde com 125 a 130 milhões, perto de 0,4% do total mundial. A média brasileira de produção de lixo por pessoa está estimada entre 500g a 1Kg, variando segundo fatores sócioeconômicos regionais4. Os objetos do consumo doméstico de produtos industrializados descartados como inúteis se alteram consubstancialmente, no processo civilizador moderno-industrial organizado e retro-alimentado pelos quatro motores: ciência, tecnologia, indústria e consumo (MORIN, 1997), Nos termos formulados por Jean Baudrillard, a estrutura da sociedade de consumo é governada pelo ritmo de produção dos bens, cuja produção de excedentes é função da própria produtividade industrial e da produção sem limites das necessidades de consumo. Tal dinâmica econômica do excesso governa e é governada por uma prodigalidade cultural do consumo, socialmente traduzida em dispositivos comportamentais obsessivos de aquisição de objetos, no dizer do pensador: “simulacros e sinais característicos de felicidade” (2005, p. 20) e de consumo de rápida obsolescência, fazendo movimentar a roda cujo eixo corresponde à própria dinâmica produtora das desigualdades sociais. A alarmante quantidade e diversidade do lixo urbano desvela, nas palavras de Zygmunt Bauman, que “o refugo é o segredo sombrio e vergonhoso de toda a produção” (2005, p. 38). É risco endógeno (induzido e indesejável) do progresso da industrialização de modernidade avançada e corresponde a fator intrínseco da “sociedade de risco” (BECK, 2001). A produção industrial de horizontes sem limites e a produção dos riscos são interdependentes na sociedade de consumo, revelando um paradoxo fundador do crescimento econômico: quanto mais pujante a economia, mais lixo se produz como sinal de crescimento da produtividade industrial e do consumo, dois dos principais indicadores de crescimento da economia de mercado. Tal paradoxo entretece elementos simbólicos das relações escatológicas da sociedade com os seus dejetos e resíduos, e, por prolongamento com o meio ambiente, nas quais a simbologia do lixo aparece tão carregada de preconceito no imaginário social, preconceito esse que se estende aos catadores de resíduos sólidos e aos seus familiares. As dimensões sócio-ambientais da problemática da hiper-produção do lixo na sociedade de consumo revelam, com efeito, uma faceta crucial da subordinação da superfície do Planeta às exigências ilimitadas da lógica utilitarista da civilização moderna e da onipotência do homem moderno (DUPUY, 2002; LATOUR, 2000; MORIN, Idem; MOSCOVICI, 1993). O volume do lixo não permite que os seus riscos sejam negados. E tendo a sociedade industrial avançada a capacidade de Em 2003, a cidade de São Paulo produziu cerca de 9 mil toneladas/dia; Salvador, 1900 mil toneladas/dia; Fortaleza, 1430 mil toneladas/dia e Maceió 110 toneladas diárias de lixo. Cf. GERSRAD, 2004. 4

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produzir sistematicamente as condições que as ameaça, buscando a sua própria recriação na potencialização e exploração econômica dos riscos (BECK, Idem), o capital industrial vem respondendo ao dilema crescente produção de resíduos do descarte do consumo, por meio de um progressivo aporte de novas tecnologias de reciclagem de resíduos sólidos, retro-alimentando a consolidação de um novo segmento industrial global característico da modernidade de industrialização avançada. “A sobrevivência da forma de vida moderna depende da destreza e da proficiência na remoção do lixo”, sintetiza (Bauman, p. 39). Assim, a re-introdução dos materiais descartados aos processos industriais originais está projetada como altamente promissora em termos de ganhos do capital global (CALDERONI, 2003). De acordo com os dados desse segmento industrial, o Brasil recicla menos de 5% de seu lixo urbano, frente ao percentual de 40% nos EUA e na Europa ocidental. O País é campeão mundial de reciclagem de latas de alumínio - das quais 85% são recicladas - e de papelão - cuja reciclagem é de 72%. No entanto, a reciclagem está restrita a poucos materiais, 21% de plástico e 38% de vidro e de papel 5. Neste novo segmento de negócios, em várias capitais brasileiras, ademais como em suas congêneres latinoamericanas, já estão implantadas bolsas de valores de resíduos ligadas às federações estaduais da indústria, como é o caso de São Paulo (onde também há uma bolsa de valores de resíduos sólidos ligado ao sindicato dos trabalhadores na indústria química), Rio de Janeiro, Paraná, Goiás, Amazonas, Pará, Bahia, Ceará e Pernambuco. Empresas de assessoria e consultoria atuam conectadas na internet, buscando nichos de mercado e de agregação de valor aos resíduos com maior capacidade de realização de lucros. A participação de entidades do Terceiro Setor − como, por exemplo, o CEMPRE (congregando um grupo de empresas de diferentes setores da produção industrial), a webresol, Instituto Ethos, ABRELPE, dentre outras − inscrevem os princípios da responsabilidade social e do desenvolvimento sustentável no circuito dos negócios, sobre os quais a indústria da reciclagem se apresenta como de rentabilidade econômica tão vantajosa quanto ambientalmente sadia, na qualidade de portadora de recursos tecnológicos que compatibilizam o progresso industrial com a preservação ambiental e o controle da temperatura do planeta. O discurso se sustenta em dois eixos principais: de um lado, a decomposição da matéria orgânica nos lixões e aterros sanitários é fonte geradora de gás metano, o qual, informa a literatura especializada, contém poderes tão nocivos para a atmosfera e para o aquecimento global quanto o CO2. Quando captado, o gás metano pode render aos gestores o direito de comercializar créditos de carbono, com base no Mecanismo do Desenvolvimento Limpo – MDL, capítulo integrante do Protocolo de Kyoto e responsável por um novo movimento do mercado de privatização dos serviços públicos de limpeza urbana e gestão do destino final dos resíduos. De outro lado, indica-se que a reutilização industrial de reciclagem de subprodutos descartados pós−consumo proporciona economia de energia elétrica e de emissões Cf. http://www.cempre.org.br. Radiografia da Indústria da Reciclagem no Brasil, in, CEMPRE Informa Nº 57, maio/junho, 2001. Acesso em 24.09.2005. 5

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atmosféricas, além de diminuir as pressões sobre o uso dos recursos naturais. Cabe destacar, a este respeito, o Projeto de Lei 3912/04 que cria o Fundo de Incentivo à Reciclagem de Resíduos Sólidos, vinculado ao MMA e IBAMA, com a finalidade de amparar a expansão dos processos produtivos de dejetos sólidos. Acrescente-se a existência de 74 projetos de lei referentes à gestão de resíduos em tramitação na Câmara Federal e o importante papel de instituições brasileiras de pesquisa no desenvolvimento de novas tecnologias, como Ufscar - Universidade Federal de São Carlos, a Escola de Engenharia da UFMG e o Cefet - Centro Federal de Educação Tecnológica, de Curitiba, dentre outros6. Em suma, os sinais apontam na direção do expressivo progresso tecnológico, inclusive de tecnologias brasileiras, na reciclagem da parte reutilizável do descarte do consumo com reintrodução no ciclo de produção de origem. A distribuição geográfica das indústrias de reciclagem no território brasileiro reproduz o desenho das desigualdades inter-regionais, no espelho do conceito de “Região Concentrada” dos “Sistemas Técnico-informacionais” formulado por Milton Santos (2004, 2005). Com efeito, a região Sudeste concentra as indústrias de ponta do processo final de transformação industrial dos resíduos destinados ao reaproveitamento no processo produtivo original. Os estados de São Paulo e Minas Gerais reúnem o maior leque de tipos de resíduos sólidos recicláveis: pneus, papéis, plásticos, vidro, aço e alumínio, como também de baterias e lâmpadas. A região Nordeste não abriga nenhuma indústria de reciclagem de baterias e lâmpadas fluorescentes, muito embora estas estejam classificadas pela ABNT dentro da categoria de resíduos perigosos, tendo os seus descartes regulamentados pela Resolução CONAMA 257/997. O sistema industrial de resíduos implantado na região Nordeste está concentrado nos estados da Bahia, Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, com atuação predominante na etapa de pré-processamento para o processo industrial de transformação nas indústrias do Sudeste. Em Alagoas, foi identificada, até o momento, apenas uma indústria de processamento de dois tipos de plásticos (PEAD/PEBD). As cadeias comerciais de resíduos sólidos em Maceió contemplam somente papéis (apara e papelão), plásticos (PET, PEAD, PP, PEBD), vidro e metais (aço e alumínio). Os resíduos classificados na tipologia de resíduos especiais: baterias, lâmpadas fluorescentes e pneus, bem como embalagens cartonadas, isopor e plásticos do tipo PVC e PS, não são comercializados8. Permanecem no lixão municipal, contribuindo para o agravamento do passivo ambiental do território, do que se tratará no item a seguir. A cadeia comercial de resíduos sólidos em Maceió está articulada entre os seguintes elos de agentes econômicos: 1) o contingente impreciso de catadores Cf. www.ambientebrasil.com.br. Centros de Pesquisa e as tecnologia de reciclagem no Brasil. Acesso em 22/10.2005. 6

Dispõe a Resolução CONAMA 257/99 que as baterias descartadas devem ser recebidas pelos estabelecimentos comerciais do produto, independente da marca e deve ser preservada a solução ácida, sendo vedado o seu descarte ou mesmo a sua manipulação. 7

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As informações aqui apresentadas foram produzidas por Carlos Eduardo Nobre (2005).

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individuais, no lixão municipal e nas ruas; 2) grupos de comerciantes intermediários que compram diretamente do catador, em pequena escala, que separam os materiais segundo uma classificação genérica; 3) pequenas e poucas cooperativas; 4) grupos de comerciantes em larga escala detentores de tecnologia de separação seletiva, limpeza e enfardamento, segundo especialização de tipo de material e especificações determinadas pelas indústrias. Neste elo é operada a agregação de valor aos materiais, os quais, já ingressos na formalidade comercial, são exportados para as indústrias intermediárias localizadas em outros estados do Nordeste. Após o pré-beneficiamento, os materiais são enviados às indústrias da ponta do processo industrial localizadas na região Sudeste. Os materiais não comercializáveis excluídos da separação, retornam ao lixão municipal e lá permanecem. Os lixões urbanos e o lixão de Maceió Somente 13,8% dos municípios brasileiros dispõem de aterros sanitários e 68,4% do total de resíduos sólidos gerados nos municípios com população acima de 20.000 habitantes são depositados em lixões e vazadouros a céu aberto (IBGE, 2002). Nas cidades do mundo em desenvolvimento, a gravidade do problema da deposição do lixo se apresenta como parte intrínseca do caótico processo de estruturação do espaço urbano-industrial e conseqüente formação dos corredores, redes e hierarquias de funções urbanas, retro-alimentadas estas pelas oposições integradoras entre o “circuito inferior” e o “circuito superior” de circulação do capital, sob relações em que o circuito inferior é sempre intrinsecamente dependente do circuito superior (SANTOS, 2004a). A diversidade de setores do capital e do trabalho abrigados no mundo urbano, de acordo com Milton Santos, comporta atividades marginais do ponto de vista tecnológico, organizacional, financeiro, previdenciário e fiscal, revelando serem as periferias urbanas não apenas fator do modelo sócio-econômico vigente, mas também fator imanente de um modelo espoliador de produção espacial, cujos sub-processos econômicos, políticos e socioculturais do “processo, forma e conteúdo” da produção urbana entretecem as realidades de carência e denegação de direitos e de sub−humanização de parcela considerável da população abrigada nas franjas das cidades. No limiar do século XXI − destaca o mestre da geografia crítica − os “pólos marginais da economia” entretecem o conteúdo social de uma nova ordem urbana sustentadora de novas desigualdades sociais que, em grande medida, substituíram o tradicional modelo da desigualdade urbano-rural brasileira (SANTOS, 2005b). Para Mike Davis, a explosão das favelas no mundo urbano dos países em desenvolvimento vem implodir o sonho de gerações de urbanistas, cujas cidades projetadas para edificações em vidro e aço se concretizaram, em grande parte, em construções de alvenaria de bloco de cimento aparente, restos de madeira, plástico e amianto que acolhem a miséria urbana “cercada de poluição, excremento e deterioração” e são convertidas, em alguns casos, em “favelas-lixo”, onde

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os “imigrantes urbanos indesejados” convivem com o lixo urbano (DAVIS, 2006, p 55106). Os lixões que ladeiam as cidades brasileiras abrigam poderosos mananciais de vetores de contaminação ambiental e de insalubridade humana. A literatura especializada informa que os seus elementos contaminantes podem se concentrar na sub-superfície de diferentes compartimentos do ambiente: solo, sedimentos, rochas, materiais usados para aterramento de terrenos, águas subterrâneas, além da probabilidade de concentração em paredes, pisos e estruturas de construções derivados. Podem ser transportados a partir desses meios, propagando-se por diferentes vias: o ar, o próprio solo, as águas subterrâneas e superficiais, determinando impactos negativos na própria área e/ou em seus arredores. Junto à antiga prática da catação de rua, os lixões urbanos representam, hoje, o mundo do trabalho e de moradia de uma parcela da imprecisa população de catadores estimada entre 200 a 800 mil pessoas de acordo com o Fórum Lixo e Cidadania. Destas, indica−se, 35 mil vem a ser crianças (GRIMBERG, 2004). A Pesquisa Nacional de Saneamento Básico aplicada em uma amostragem de 1500 municípios brasileiros − equivalente a 27% destes − acusa a presença de 24.340 catadores exclusivamente em lixões municipais, destes, 22% menores de 14 anos de idade (IBGE, Idem). Com efeito, Bauman tem razão quando afirma que “os coletores de lixo são os heróis não decantados da modernidade (Idem, p. 39) A percepção dos catadores à contaminação constante a que estão submetidos nos lixões, acha-se decididamente constrangida pelas pressões das urgências à sobrevivência. Milton Santos instrui que as dinâmicas de relações sociais excludentes são permanentemente reelaboradas e objetivadas em um território, no interior do qual estão contidas as formas das estruturas econômicas e das estruturas mentais dos grupos humanos pertinentes (Idem, Ibidem). As privações aos meios essenciais de exercício dos direitos de cidadania e ao mercado, a subjugação a uma rotina de trabalho crescentemente competitiva diante do crescente aumento do número de catadores, a própria condição residual do trabalho e o estigma da existência entretecem dimensões da vida social reveladas em elementos simbólicos de simbiose com o meio, os quais atuam contra a percepção dos riscos presentes no ambiente (BECK, Idem). Depende, portanto, da diminuição de tais pressões a abertura dos caminhos à percepção dos catadores para as ameaças contidas na contaminação ambiental do seu território de trabalho e de vida.

GERSRAD-UFAL

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Este quadro tem lugar na cidade de Maceió. No denominador comum da contaminação ambiental, da marginalização social e da segregação sócio-espacial produzidas no interior da sua função urbana, o lixão municipal da cidade retém uma particularidade geográfica: localiza-se entre os bairros de Cruz das Almas (no litoral) e o Sítio S. Jorge (no tabuleiro), na bacia hidrográfica de Riacho das Águas do Ferro, abarcando um perímetro de 33ha (dos quais 22ha são ocupados pela massa de resíduos). O local detém esplêndida paisagem para o mar da cidade conhecida como “paraíso das águas”, sendo este o maior atrativo da indústria do turismo local. Integrado à área, acha-se o território favelado de duas comunidades de catadores: a Vila Emater, subdividida em Vila Emater 1, com 480 casas de alvenaria e barracos e uns poucos micro equipamentos comerciais e a cooperativa dos catadores − COOPLUM, onde convivem catadores, ex-catadores, pequenos comerciantes de materiais e biscateiros, e a Vila Emater 2, composta de 240 casas, quase que exclusivamente de barracos habitados por catadores do lixão e suas famílias. Estudos já comprovaram o colapso da capacidade de suporte do lixão municipal e a gravidade de risco das condições ambientais do território: a presença constante de vetores e micro-vetores transmissores de doenças, a contaminação do subsolo e exalação de odores desagradáveis. Todos com efeitos sinérgicos nos bairros circunvizinhos e no comprometimento da balneabilidade das praias, da atmosfera e da saúde humana, e com a sua população exposta à fumaça, poluição visual e olfativa e aos vetores de contaminação, principalmente através de moscas, ratos, urubus, entre outros [GERSRAD, 2004]. “Pra que tanto céu, pra que tanto mar?”, intriga a canção “Inútil paisagem” de Tom Jobim, na confrontação da paisagem do mar de Maceió intermediada pelas montanhas de lixo que exalam cotidianamente um odor fétido e são sobrevoadas por grupos de urubus que disputam os resíduos com os catadores. DIAGSOAMB

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A descrição da historicidade da formação do território ultrapassaria os limites deste escrito9, cabendo ora apontar que as funções urbanas do território esculpiram as suas feições de enclave, conquanto revela o próprio modo como se faz a cidade. Há anos se arrasta a decisão política do Poder Municipal de por fim à existência do lixão, substituindo-o por aterro sanitário respeitador da Resolução CONAMA 237/97. O impasse responde por um contencioso judicial de largo espectro demandado pelo Ministério Público e o órgão estadual de meio ambiente contra a Prefeitura Municipal. Bastante repercutida na mídia local10, a solução para o problema do lixão municipal parece estar ainda longe de ser alcançada. Razões de diferentes ordens se conjugam no impasse da política pública, arrastado a partir de concepções pontuais e excludentes na orientação do planejamento do PoderGERSRAD Público Municipal. Concepções muito distantes daquelas regidas segundo princípios de sistemas integrados de gestão e manejo de resíduos sólidos, nos quais as dimensões ambientais, sociais e culturais da matéria são tão relevantes quanto as dimensões econômicas, tecnológicas e institucionais. Princípios, portanto, regidos sobre bases metodológicas interdisciplinares e efetivamente participativas dos atores sociais implicados. Tal sistema requer a articulação entre os níveis municipal, estadual e federal de governo e as esferas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a articulação com os grupos sociais envolvidos, a adoção de tecnologias adequadas às realidades locais, a continuidade da política pública no longo prazo e a inserção dos catadores como trabalhadores formais da cadeia produtiva de resíduos sólidos. Catação e precarização do trabalho São crescentes as pressões judiciais do Ministério Público Estadual e do órgão estadual de meio ambiente contra a Prefeitura Municipal de Maceió, junto às quais se associam as advindas do capital imobiliário sobre uma área de célere valorização fundiária e da indústria do turismo. Desde agosto de 2005, encontra-se vigente (em sucessivos adiamentos de execução) um Termo de Ajuste de Conduta Judicial comprometido pela Prefeitura Municipal junto ao Ministério Público Estadual de Alagoas, pelo qual cabe a esta: “a implantação de um aterro sanitário, a criação e operacionalização de uma política pública de coleta seletiva dos resíduos sólidos urbanos, a recuperação ambiental da área ocupada pelo Lixão, com o desenvolvimento de um programa social voltado aos habituais catadores de lixo daquele local” (Procuradoria da República em Alagoas, Ação Pública nº. 2004.80.00.006780-4) O compromisso judicial é explícito quanto à responsabilidade do Poder Municipal em operacionalizar um Programa Social destinado à integração sócio−econômica dos

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Este processo é analisado em Stroh & Lima Fº (2007).

No período de março de 2002 a janeiro de 2006. Foram encontradas 91 matérias jornalísticas referentes 10

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catadores. A Cláusula 13ª dispõe expressamente a respeito de ações direcionadas “.a sua inserção como parceiros no sistema integrado de gestão de resíduos” (Idem). Perante a vulnerabilidade do desamparo a que são sujeitos e a insegurança que sustenta a “alma de favelado”, como escreveu Carolina de Jesus: “quando tem fome recorre ao lixo, cata verduras nas feiras, pedem esmola e assim vão vivendo” (Jesus, 2005:56), compete ao Ministério Público garantir o campo dos direitos sociais do trabalho dos catadores, em suas aflitivas interrogações dirigidas ao poder municipal com relação ao seu futuro a partir do encerramento do lixão. Cabe anotar que a garantia legal ao reconhecimento dos direitos sociais dos catadores e dignificação de um trabalho tão indispensável para a cadeia produtiva dos resíduos sólidos quanto socialmente estigmatizado e denegatório de direitos já encontra amparo legal na Lei Nº. 11.445, de 5 de janeiro de 200711. Desde a inscrição do conceito de exclusão social pela sociologia francesa, na década de 70, busca-se ampliar os caminhos de compreensão, interpretação e explicação sociológica e filosófica da miséria urbana, indo além das dimensões de análise adstritas ao problema da renda. A emergência na arena política dos movimentos sociais dos excluídos, desde os anos 80, trouxe importantes contribuições para a reflexão sociológica, traduzidas na valiosa bibliografia focalizada para a capacidade ativa dos sujeitos em procurar os meios mais adequados para realizar a inclusão social. Na procura por desvendar os elementos estruturantes das cadeias da exclusão, vários estudos dedicam-se à análise do constructo cristalizado nas condições cotidianas da privação na vida pessoal, coletiva e trabalho, mediante a compreensão dos modos pelos quais os referentes de uma identidade social associada à privação e, particularmente à privação aos direitos do contrato social democrático, fixam-se nas mentes e atuam como barreiras para a própria percepção dos direitos (ESCOREL, 1999; DIETERLEN, 2003). A miséria urbana reveladora das extremas desigualdades impõe-se como questão social não por si própria, mas, antes, por seus componentes de denegação ao campo do direito e da exclusão do contrato social. O problema sociológico da miséria urbana se sustenta no “modo como os direitos de cidadania são negados na trama de relações sociais” (SILVA TELLES, 2001). Em 1999, foi criado o Movimento Nacional dos Catadores(as) de Materiais Recicláveis (MNCR), cuja entrada oficial na arena política ocorreu em 2001, no 1º Congresso Nacional dos Catadores(as) de Materiais Recicláveis, realizado em Brasília, reunindo em torno de 1.700 catadores e catadoras. No histórico das atividades organizativas divulgadas pelo movimento social, no qual se inclui a articulação política dos catadores do mundo latinoamericano, algumas A Lei Nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007, conhecida como Lei do Saneamento Básico, incorporou a política nacional de resíduos sólidos, cuja matéria esteve em debate na Câmara Federal desde 1991. O Art. 24, inciso XXVII explicita a respeito da “contratação da coleta, processamento e comercialização de resíduos sólidos urbanos recicláveis ou reutilizáveis, em áreas com sistema de coleta seletiva de lixo, efetuados por associações ou cooperativas formadas exclusivamente por pessoas físicas de baixa renda reconhecidas pelo poder público como catadores de materiais recicláveis, com o uso de equipamentos compatíveis com as normas técnicas, ambientais e de saúde pública”. 11

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conquistas foram alcançadasi. Dentre elas, cabe destacar o Decreto de 11 de setembro de 2003, que “Cria o Comitê Interministerial da Inclusão Social de Catadores de Lixo” e define a articulação de políticas setoriais para acompanhamento e implementação dos programas voltados à população catadora de lixo nas localidades brasileiras. Sob o nº 5192.05, a ocupação de catador de material reciclável acha-se registrada na CBO − Classificação Brasileira de Ocupações, editada pelo Ministério do Trabalho, em 2002. Sob a denegação dos direitos sociais do trabalho, os catadores de materiais recicláveis desempenham atividade de suma necessidade econômica para a cadeia produtiva dos resíduos sólidos, para o serviço público de coleta de lixo e contenção da massa de lixo dos lixões municipais. A existência social do catador pode ser indesejável, porém o seu trabalho é economicamente indispensável. A busca deste reconhecimento social está no centro da apresentação pública do MNCR: “A profissão Catador de Material Reciclável existe desde meados de 1950. O catador sempre foi visto como um sujeito excluído socialmente. Contudo, nós catadores sempre prestamos um serviço à sociedade, mesmo sem dela receber o reconhecimento, nem do poder publico receber o pagamento devido por tal trabalho”.12 A partir da categoria analítica da “nova questão social” urdida na globalização, formulada por Robert Castel (1995), cabe um exame a respeito da índole da exclusão social do catador de materiais recicláveis, tendo por referência a emergência de uma nova categoria de trabalhadores urbanos radicada na equação perversa: a sociedade hiper-industrializada e de consumo engendra um trabalho economicamente necessário ao setor produtivo, ao mesmo tempo em que, o mantendo excluído do campo dos direitos sociais, pode projetar altas margens de lucratividade. Neste quadro, os catadores de materiais recicláveis excluídos do mercado de trabalho formal vêm sendo estimulados tanto a se organizarem em cooperativas e outras formas associativas que lhes concedam a necessária geração de renda e a dignificação profissional. Em geral, são iniciativas apoiadas por organizações do Terceiro Setor, redes de ONG’s, mas com inserção débil em políticas públicas de desenvolvimento social associadas a sistemas de manejo e gestão integrada de resíduos sólidos urbanos. Como tendência geral, a globalização está movimentando novas práticas de organização cooperativista, como resposta às profundas alterações do mercado de trabalho e recrudescimento do desemprego. Práticas alternativas de organização cooperativista de categorias de trabalhadores excluídos dos processos produtivos formais vêm sendo conduzidas sobre princípios da “Economia Solidária”, para quem o trabalho autogestionário representa práticas pontuais de 12

http://www.movimentodoscatadores.org.br . Acesso em 18/02/2007.

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resistência ao desemprego e ao subemprego e à falta de perspectiva de nova colocação no mercado do trabalho formal (SINGER, 2003; MAGERA, 2004). Paul Singer assinala três tipos de cooperativas ingressas no mercado de trabalho globalizado: aquelas formadas por trabalhadores que assumem a massa falimentar ou pré-falimentar de empresas das quais já foram trabalhadores formais; aquelas criadas por trabalhadores desempregados dos setores industrial e de serviços; e aquelas formadas por contingentes de trabalhadores em atividades marginalizadas ou estigmatizadas, onde predominam a baixa ou nenhuma formação educacional e as maiores dificuldades de autogestão e, em contrapartida, a dependência de apoios externos. Resguardando a existência de poucas práticas bem sucedidas de cooperativismo de catadores de materiais recicláveis, a grande maioria não alcança nem renda de Salário Mínimo aos cooperados nem tampouco autonomia gestionária. Não é desprezível o número de ensaios de organização cooperativista que não vingam ou que se mantêm dependentes ou tuteladas às entidades de apoio. A precarização do trabalho do catador não se traduz apenas na exclusão à seguridade social, mas também na fragilidade dos vínculos sociais que regem o trabalho da catação como a única ou a última alternativa possível, impondo marcas de déficit de cidadania de difícil superação. Paul Singer assinala a auto-descrença generalizada na capacidade de os sub-trabalhadores agirem com auto-eficiência e a necessidade de apoio externo no longo prazo e desde a gestação do trabalho cooperativado (Idem). Castel acrescentaria que a desvinculação social do trabalho responde pelas extremas dificuldades presentes na organização cooperada dos catadores, sujeitos que são de dupla precariedade: no plano dos direitos sociais e no plano do próprio sentido da desvinculação, na qual se entretece a identidade em negativo, discriminada e estigmatizada, que se relaciona com a realidade a partir da indiferença, naturalização, conformismo e sujeição ao divino, formando um constructo que atua como resistente barreira à construção de laços de solidariedade e confiança próprios entre os pares cooperados. Geraldo Magera observa em estudo realizado junto a uma cooperativa de catadores em Sorocaba−SP, que a indústria da reciclagem sustenta os seus lucros na precarização do trabalho do catador, ao mesmo tempo em que estimula o cooperativismo como parte da cadeia produtiva, o que não pode gerar senão a organização do trabalho precarizado (MAGERA, Idem). A organização cooperativista de catadores somente poderá apontar para a melhoria de renda dos catadores, caso a inserção sócio-econômica no setor produtivo seja ação de política pública e não uma livre ação do mercado. É imprescindível a presença do poder público como agente catalisador de política pública nesta direção, por mais ativas que sejam as entidades do Terceiro Setor e os compromissos com os princípios da Responsabilidade Social do setor produtivo. Contudo, não basta apenas assegurar a presença do poder público, sem o abandono de concepções clientelistas e paternalistas e a adoção de concepções programáticas e organizativas de capacitação profissional, nas quais se associem programas de resgate da própria humanidade dos catadores. O significante da falta de dignificação do trabalho reverbera subjetivamente sofrimentos e violências

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que, por sua vez nutrem auto-percepções de inferioridade e subdignificação (DEJOURS, 2005) dos catadores e de suas famílias. As suas crianças, por exemplo, ao entrarem na escola, são constrangidas a tomar banho antes de adentrar a sala de aula, constrangidas à humilhações que ao longo do tempo tendem a ter como reação o escapismo às drogas. Uma catadora do lixão de Maceió, cooperada da COOPLUM e ativista do MNCR, exprime a violência da vivência do estigma social do catador: “O catador é um trabalhador que tira o sustento do lixo [...] e quando a gente diz que é catador de lixo, muita gente acha que a gente é sujo[...] até se a gente pedir um copo d ’água, e receber um caneco, quando a gente devolve a pessoa joga no mato, já aconteceu isso comigo”. A COOPLUM - Eu separo meu lixo - Cooperativa de Recicladores do Município Urbano de Maceió está situada na área municipal do lixão, e foi criada no ano de 2001 sob determinante intervenção da SLUM – Superintendência de Limpeza Urbana de Maceió. Inicialmente congregara 22 catadores cooperados, com a finalidade de vir a controlar as atividades de catação no lixão, porém, em pouco tempo o grupo decresceu em cerca de 40%. Mantida por meio de coleta seletiva porta a porta (implementada em poucos bairros) e da segregação do material reciclável, a COOPLUM enfrenta dificuldades estruturais, não somente quanto à agregação de valor na comercialização dos materiais como no domínio da autogestão. Não dispõe de regimento interno, indicando dificuldades na explicitação das regras comuns; as sucessivas diretorias enfrentam, além de graves empecilhos administrativos, graves dificuldades comunicativas e de representatividade junto aos cooperados, possivelmente em virtude das relações estarem assentadas sob o domínio da urgência (PANDOLFI, 2003). Precariamente instalada em um pequeno galpão cedido pela SLUM, cabe aqui um parênteses: a cooperativa possui uma biblioteca formada por livros descartados e coletados na coleta seletiva, cujos títulos correspondem, inclusive, a obras de escritores representativos da literatura universal e brasileira. A média mensal do volume de materiais coletados pela COOPLUM é da ordem de 4t. de papelão, 3t. de aparas, 300 kg de alumínio, 1.400 kg de lata de aço e 1.200 kg de plástico. Além de pequeno o volume é variável, como o são os preços auferidos aos materiais, exclusivamente estipulados pelas indústrias compradoras. A renda média mensal dos cooperados varia entre R$200,00 a R$240,00, dependendo da quantidade e do tipo de material coletado e comercializado. A organização da cooperativa não resultou em aumento da renda aos catadores; ao contrário, a coleta individual e venda direta aos primeiros intermediários do comércio, cujos pontos de compra localizam-se no próprio lixão, mostra-se mais vantajosa do que os ganhos conseguidos por meio da cooperativa.

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A capacidade da COOPLUM está limitada ao estágio primário da cadeia produtiva: coleta, separação e venda de um volume de material pouco significativo em relação ao que chega ao lixão, e restrito aos materiais de papel, papelão, vidro, lata de aço e alumínio. Além das pequenas quantidades e diversidades de materiais passíveis de introdução no mercado local, a cooperativa não dispõe de equipamentos tecnológicos para a segregação e enfardamento dos materiais, sendo que a diversificação e a apropriação dos processos de segregação, enfardamento e transformação inicial, ressalta Magela, são elementos essenciais para a sua agregação de valor. Corrobora decisivamente com a precariedade da COOPLUM o fato de o estado de Alagoas não dispor de indústrias de reciclagem, à exceção da única indústria anteriormente aludida. Resulta ser débil a legitimidade da COOPLUM junto aos catadores do território do lixão. Apenas 37,3% dos moradores indicam conhecer ou já terem ouvido a falar em cooperativa, mas poucos sabem informar em que consiste o cooperativismo de catadores. Quanto à COOPLUM, 14% a vêem como uma organização social favorável à coleta e reciclagem de resíduos sólidos, mas somente 6% indicam−na como auferível de melhores condições de trabalho. Em contrapartida, 81% declaram não depositar confiança na direção da cooperativa. A ampla maioria dos catadores prefere o trabalho individual no lixão, correndo vários riscos, dentre eles cortes e ferimentos produzidos por objetos cortantes, pedaços de vidro e resíduos dos serviços de saúde − RSS, em particular agulhas de injeção, evidenciando a inobservância do poder público para com as normas legais estabelecidas pela legislação ambiental. Sujeitos a uma jornada de trabalho que muitas vezes adentra a noite, separam individualmente o material coletado, vendendo-os aos primeiros atravessadores por preços aquém do mercado. Considerações finais O desenvolvimento dependente da economia brasileira, centralmente pensado com foco no atendimento a um mercado consumidor urbano em célere expansão e sempre respondendo a demandas exteriores, resultou em uma modernização amparada na expansão da classe média urbana e de “novas equações de um consumo popular intermitente”, como afirma Milton Santos (2005, p. 39), amplamente estimulada por sistemas extensivos de crédito orientados pelas demandas da expansão industrial. A modernização brasileira amparada no enorme desenvolvimento da produção material, industrial e agrícola provocou uma mudança exponencial na estrutura do consumo. A inclusão social que leve à diminuição da abissal desigualdade social brasileira é prioridade urgente e inadiável e, seguramente, este movimento passa pela criação de sistemas de “produtivismo social”, como acentua Celso Furtado: empregar a população miserável, por meio de incentivos sociais, para que o Brasil produza os bens e serviços essenciais para toda a população. A complexidade do

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desafio consiste em se descobrir modos e formas de intervenção pública que reconheçam as particularidades regionais e sejam capazes de superar a exclusão social, sem esperar mudanças profundas nas estruturas econômicas globalizadas (FURTADO, 1999). A inclusão social dos miseráveis brasileiros, da qual a inclusão dos catadores na cadeia produtiva dos resíduos sólidos faz parte, é tão essencial para a construção da democracia como é um desafio de política pública de alta complexidade, cuja urgência não admite restringi-la a programas oficiais de renda mínima, nem a ações pontuais do mercado de estímulo à organização cooperativista dos catadores. A educação para a cidadania é a pedra de toque das vias de inclusão social e isso pressupõe o reconhecimento dos excluídos como sujeitos de sua inclusão social.

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