Lobby e regulamentação: a busca da transparência nas relações governamentais

May 25, 2017 | Autor: N. Ferreira Júnior | Categoria: Political Science, Lobbying, Transparency, Corruption, Government transparency
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How to cite: FERREIRA JUNIOR, Nivaldo e NOGUEIRA, Patrícia M. Lobby e Regulamentação: a busca da transparência nas relações governamentais(pp 213 a 227). In: 48 Visões sobre a corrupção. Organizadores: Alexandre J. C da Cunha Filho, Gláucio Roberto B. de Araújo, Roberto Livianu, Ulisses A. Pacolati Júnior. Prefácio de Sérgio Moro. São Paulo: Quartier Latin: 2016 -917 pp

Lobby e Regulamentação: a busca da transparência nas relações governamentais . Nivaldo Adão Ferreira Júnior[1] e Patrícia Maria Nogueira[2] 1. Introdução

Na edição de nº 945, de 2016, da Revista Época, extensa reportagem, veiculada sob o título O Lobby sem lei (RIZZO, 2016), trouxe à tona realidade de uma atividade que, apesar de importante para o processo democrático de tomadas de decisões políticas, tem sido no Brasil constantemente associada a ações imorais, ilegítimas, ilegais, como o tráfico de influência e a corrupção. Na reportagem, desenha-se cenário de pouca transparência e publicidade, no qual lobistas e atores do processo de decisão política na esfera federal interagem na atividade democrática e legítima da defesa de interesses, o que é verdade; mas, coloca-se o profissional de relações governamentais (eufemismo para lobista) como um ser que anda nas sombras para defender interesses de quem representa, nem sempre com armas lícitas, sendo essa a parte tendenciosa da reportagem.

O veículo midiático citado não foi o único nem o primeiro a fazer a espúria ilação, e aqui serve apenas de mote para o encaminhamento de debate que há tempos ocorre na Academia e no Legislativo Federal. Trata-se da discussão acerca da necessidade – ou não – da regulamentação do lobby no Brasil e da busca de conceitos e limites, tanto para a atividade quanto para o seu controle pelas agências pertinentes. Para a reportagem, a imposição de se regulamentar o lobby é consequência de grandes escândalos de corrupção. Para a academia e para o Congresso Nacional, que atualmente discute o tema sob a forma de dois projetos de lei (nº 1.202, de 2007, tramitando na Câmara dos Deputados, e nº 336, de 2015, no Senado Federal), o reconhecimento da atividade se apresenta como necessário primeiro porque a participação de grupos de interesses no processo de tomada de decisão é um direito erigido em base constitucional; segundo, porque a profissão de lobby é uma realidade incontestável, com várias entidades e pessoas atuando nas três esferas e nos três poderes diuturnamente; por fim, porque, se há princípio que garante a participação de todos os interessados no processo decisório, outros exigem a transparência e a publicidade da relação entre atores públicos e privados, ou seja, entre os players do processo político.

213

Planteia-se, portanto, que a corrupção não decorre do lobby, mas pode ser parcialmente fruto do descaso do Estado para com esta atividade, suas características e suas necessidades. A percepção contrária - e equivocada – de que o lobby causa corrupção, poder gerar, além de reportagens tendenciosas, propostas de regulamentação da atividade como forma de dirimir casos de corrupção. Como causa e efeito não estão conectados neste caso, legislação que partisse deste princípio teria maior probabilidade de insucesso.

Seguindo esse norte, no presente artigo argumentamos que a ação de grupos de interesse e pressão é, antes de mais nada, corolário da democracia participativa. Os lobistas, como representantes desses grupos, não só são potencializadores do acréscimo de legitimidade no processo de tomada de decisões como não necessitam de autorização legal para atuarem, pois que a própria CRFB/1988 garante a todo cidadão, organizado ou não em entidades representativas da sociedade, o direito de acesso às instâncias decisórias do Estado.

Se não necessitam de autorização, mas são alvo de percepções equivocadas que levam à contestação de suas ações, percebemos que alguma regulamentação se faz necessária. Contudo, essa regulamentação não deve ser gestada nem como autorizativo para a atuação de lobistas nem como panaceia para a corrupção que grassa no país. Deve, antes de mais nada, ser pensada como meio de se dar transparência ao processo decisório e informar cidadãos e demais grupos sociais dos interesses que estão sendo levados à avaliação das arenas decisórias, possibilitando a todos apoiarem ou confrontarem esses interesses; de potencializar o canal de informações ao tomadores de decisões públicas com a oferta crescente de dados acerca de cada assunto a ser debatido; de garantir aos grupos de interesse e pressão e aos lobistas o exercício livre de sua legítima atuação. Como efeitos secundários, contudo, acreditamos até que a corrupção sofra decréscimos em seus graus de ocorrência, uma vez que a transparência advinda da regulamentação tem o condão de produzir essa transformação.

Colocado os pressupostos em que acreditamos, apresentamos breve apanhado teórico para o tema e em seguida analisamos brevemente as duas proposições principais que hoje tramitam no congresso nacional para regulamentação do lobby. Ao final, breves considerações acerca do exposto tencionam deixar o debate em aberto para novas contribuições.

214

2. A Democracia Participativa como chancela constitucional ao Lobby

A divisão dicotômica entre democracia direta, conceituada como a tomada de decisões vinculantes a todos pelos próprios cidadãos, e democracia indireta, compreendida como a concessão de mandatos a representantes eleitos que passam a decidir em nome dos representados, não é mais suficiente para abarcar a miríade de modelos de democracia existentes. No Brasil, embora alberguemos majoritariamente institutos de democracia representativa (e.g. eleições periódicas de representantes do povo e assembleias legislativas como

centros

irradiadores

de

normas

cogentes),

caracterizadores

da

democracia

procedimentalista de base schumpeteriana, encontramos também institutos de democracia participativa erigidos como componentes intrínsecos ao sistema estatal de tomada de decisões. Assim é que na Constituição da República Federativa de 1988 (CRFB/1988), além das chancelas participativas do plebiscito, referendo e iniciativa popular (Brasil, 1988, art. 14), encontramos também a possibilidade da oitiva da sociedade civil nas audiências do Parlamento (Brasil, 1988, art. 58, II) e a exigência de participação cidadã na gestão democrática de vários sistemas da Administração Pública (e.g.: Brasil, 1988, artigos 194, inc. VII e 198, inc. III).

A partir desses exemplos, e da interpretação teleológica dos dispositivos que permitem a interação representantes/representados, afirma-se que a participação da sociedade civil nos processos de decisórios e na gestão estatal é princípio de base constitucional, previsto em posição topológica privilegiada, já no parágrafo único de seu primeiro artigo (repetido em dispositivos ao longo do Texto (Ferreira Júnior, 2008): Art. 1º . [...] Parágrafo único. Todo poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da lei. (Brasil, 1988).

A inclusão desse princípio na Carta Democrática de 1988 se deve ao momento histórico em que se encontram as democracias contemporâneas. De fato, a partir da comparação dos modelos de democracia existentes, autores como Robert Dahl (2001), J. Dryzek (2000), Charles Tilly (2007) apontam que a democracia formal tem por pressupostos, entre outros, a oferta de canais de informação de qualidade; o acesso aos órgãos decisórios, a possibilidade de igual manifestação de todos acerca de suas opiniões e a publicidade das decisões tomadas nessas arenas. 215

Quando efetivas, essas garantias permitem aos representantes conhecer os anseios e as necessidades de todos os possivelmente afetados pela decisão futura e considerar a perspectiva desses indivíduos ou grupos na tomada de decisões. Esse mecanismo torna o adjetivo democrático quase sinônimo perfeito de responsivo. Nesse contexto, governo democrático é aquele que busca adotar as políticas preferidas por seus governados (Miguel, 2005), o que só é possível se os representantes têm canais que propiciam o recebimento das demandas dos vários indivíduos e grupos sociais. Se canais de comunicação entre a sociedade e os seus representantes são pressupostos da qualidade da democracia, a utilização desses meios pelos lobistas, aqui entendidos como representantes legítimos de grupos partícipes dessa sociedade, não pode, de plano, ser considerada ilícita. Ao contrário, é, por um lado, direito dos grupos constituídos e, por outro, elemento de efetivação e verificação das chancelas democráticas. Como se nota, a definição de lobby abarca a concepção de representação de interesses legítimos de parcelas da sociedade. Esse conceito decorre do pensamento Farhat (2007), para quem o lobby é instrumento democrático de representação e defesa de interesses que se presta à tentativa de influenciar as decisões governamentais por meio de intermediários que, com informações e argumentos, provocam os agentes públicos a fazer ou deixar de fazer alguma no sentido pretendido. Esses autores apresentam os grupos de interesse e pressão como associações de pessoas físicas e/ou jurídicas unidas por propósitos coincidentes que por vezes recorrem a formas diretas de influenciar os tomadores de decisão (Farhat, 2007)1. Ressalta-se, contudo, que essas definições teóricas são insuficientes e que, na prática, os lobistas, além de representarem interesses de grupos organizados da sociedade civil, podem também servir como prepostos de pessoas jurídicas de direito público interno e externo Unidades da Federação, Estados estrangeiros, organismos internacionais - e de pessoas jurídicas de direito privado – empresas, organizações religiosas – que os contratem para representá-los junto aos tomadores de decisões em questões de políticas públicas que possam lhes afetar ou interessar. Tal

fato

qualquer

força

a necessidade

do

alargamento

do

conceito

de

ação que busque influenciar os tomadores de decisão, e

lobby

para

o de lobista

1

Na literatura, grupos de pressão são os que estão momentaneamente atuando na defesa de interesses e grupos de interesse os que têm essa possibilidade de forma latente, em potencial. Aqui, nos referimos a ambos, em conjunto, por escolha metodológica.

216

para o agente que realiza a intermediação entre os tomadores de decisão e os grupos ou pessoas interessadas em influenciar a decisão. Nessa qualidade, o próprio lobista pode ser pessoa física ou jurídica, com vínculos pontuais ou mais permanentes com a pessoa ou entidade que represente. Pode, ainda, ser servidor público do próprio Estado, agindo em nome de um de seus órgãos, na defesa de interesses estatais (de fato, o Estado possui enorme quantidade de agentes de lobby agindo em seu nome). Estas últimas observações são relevantes porque jogam luzes sobre a diferença de constituição e de origem dos diversos personagens que atuam no cenário do lobby, o que vai necessariamente influenciar a qualidade e a forma da interação desses atores com o Estado. A percepção de que não é somente grupos de interesse e pressão que realizam lobby, mas que indivíduos (pessoas físicas e jurídicas) e o próprio Estado podem igualmente fazê-lo, ainda que na literatura não se tenha feito com profundidade a revisão conceitual, já é sentida nas propostas de legislação em estudo no Congresso Nacional, a exemplo do que ocorre nos países norte americanos e europeus que já regulamentaram a atividade do lobby. O que se pretende demonstrar, contudo, é que qualquer que seja a dimensão que se dá aos conceitos para a atividade, cumpre deixar clara a noção de que lobby é uma das formas de participação de parcelas da sociedade no processo de decisão política, sendo, portanto, um dos sustentáculos do que denominamos de democracia saudável (conceito construído a partir da noção de democracia deliberativa encontrada em Harbermas, 1997 e em Dryzek, 2000), visto que a conduta de fazer chegar ao conhecimento dos tomadores de decisão sobre políticas públicas as diferentes perspectivas existentes em uma sociedade plural como a nossa é efeito do já aludido conceito de democracia participativa. Ao se adotar conceito alargado, albergando-se diferenças na constituição e na origem dos atores do lobby, sobressaem diferenças na forma de relação entre esses atores e os órgãos do Estado. Isto é, alguns grupos de interesse e pressão e alguns atores de lobby possuem maior capacidade de pressão do que outros, por naturalmente disporem de maior quantidade de recursos. Alguns estudos acadêmicos começam a se preocupar com a Em da

recente Câmara

pesquisa acerca dos Deputados

a compreensão por

do

exemplo, que

terem suas

lobby lobistas

demandas

e

da perceptividade e

questão

colaboratividade

(ambiente, segundo a pesquisa, o

seu

papel

ligados

atendidas

pelos

ao

são

servidores

têm

dos

Brasil.

servidores

em que a percepção

relativamente

governo

no

altas),

chances

públicos

dos

e

aferiu-se,

maiores órgãos

e 217

de

entidades ligadas ao governo simplesmente por serem compreendidos como representantes do Estado (Ferreira Júnior, 2016). Pode-se imaginar, igualmente (embora na pesquisa citada não se tenha análises acerca disso) que representantes de organizações que defendam causas às quais a grande mídia e, consequentemente, a opinião pública costumam ser mais simpáticas (e.g. defesa do meio ambiente e direitos humanos) teriam, em princípio, o acesso às estruturas burocráticas dos órgãos decisórios facilitado pelo simples fato da empatia que seu tema causa antecipadamente nos interlocutores. No entanto, representantes do governo, de causas simpáticas à sociedade, lobistas do setor econômico ou financeiro (grandes empreiteiras, sistema bancário, setor armamentista, indústria tabagista), intermediários de pequenas associações de classe deveriam, ao menos em tese, ter o mesmo direito e a mesma legitimidade de atuarem no processo decisório, uma vez que a sociedade plural em que vivemos não admite seletividade em demandas que se mostrem legítimas. A afirmação decorre, aliás, do princípio da igualdade (art. 5º, caput, CRFB/1988) e do direito de petição (art. 5º, inc. XXXIV, da CRFB/1988), ambos insculpidos como garantia individual. Reconhecemos, contudo, que o princípio da igualdade precisa de esforço da sociedade para ganhar concretude. Da mesma maneira que há diferenças no conteúdo das pautas defendidas por lobistas, também há variações na capacidade de influência que cada ator de lobby pode ter sobre representantes do Estado. Essas variações na dimensão do poder estão logicamente ligadas à origem do ente (como citado, representantes do lobby governamental têm mais acesso aos tomadores de decisão), mas também à quantidade de recursos (principalmente financeiros) disponíveis a determinado grupo de interesse.

Esse, aliás, em uma sociedade capitalista, é um dos fatores de

desequilíbrio da balança quando dois ou mais grupos de interesse e pressão defendem pontos antagônicos de uma determinada política pública. É indubitável que a maior quantidade de recursos pode facilitar a produção de informação (em questão de quantidade e de qualidade, contudo, com tendência de serem parciais e buscarem sustentar o interesse de quem as financia ou produz), a mobilização de ferramentas de persuasão e a possibilidade maior de acesso (por exemplo, não é todo grupo que pode sair de seu estado e ir a reuniões nos gabinetes parlamentares de Brasília). sentir apenas pelo

A dimensão

do

poder, contudo,

não se faz

potencial aporte financeiro de dada entidade; como visto na pesquisa

citada(FERREIRA JÚNIOR, 2016), lobistas do governo são naturalmente mais influentes que

218

os demais apenas por representarem, perante os tomadores de decisão sobre políticas públicas, parcela do próprio Estado.

Apesar destas diferenças de constituição, o Estado que quiser manter a qualidade de sua democracia e manter-se responsivo deve garantir abertura equânime a todos os grupos que desejarem frequentar as instâncias decisórias sobre políticas públicas. Do contrário, se aos já notórios desequilíbrios existentes entre os diversos grupos que buscam exercer influência forem acrescentados outros que resvalem em dificuldades de acesso aos tomadores de decisão, o exercício do lobby se firmará como algo para poucos e não um instrumento democrático de defesa dos interesses da sociedade. Servirá, enfim, para fortalecer a imagem negativa do lobby, vinculada à corrupção, algo que, em princípio, parece ser oposto do que pretendem os defensores da atividade. A par disso, compreendemos que qualquer regulamentação que venha a ser proposta para a atividade do lobby, por um lado, deve necessariamente apresentar alguma tutela aos grupos com menor possibilidade de acesso aos tomadores de decisão, o que homenageia a legitimidade da decisão futura; por outro, há de garantir que todos os interesses levados aos tomadores de decisão (em especial aqueles interesses defendidos pelos grupos de maior poder e acesso) se tornem conhecidos por toda a sociedade, para que esta, por meios de seus vários grupos (antagônicos ou não aos interesses defendidos e publicizados) possam também se manifestar, o que se traduz em transparência. Percebam que, neste ponto, transparência e legitimidade são faces de uma mesma moeda. Contudo, a questão do embate entre o poder dos grupos de interesse e pressão e a transparência nas relações públicas realizada

em 2014,

não é simples, como pontua

pela organização não-governamental

pesquisa

Transparência Internacional

(TI). Segundo relatório apresentado, em 19 países da União Europeia (UE),

58%

cidadãos

respectivos

daquela

governos foram, revelação,

união

econômica

total ou parcialmente,

se aditada

acreditam

que

os

seus

capturados por poucos grupos de interesse.

dos

Tal

a dados levantados pela mesma pesquisa sobre a percepção ruim

que os europeus têm das normas vigentes para o lobby aplicáveis às suas instituições (média de 36%) – e da pouca transparência

(26%),

da pouca integridade (33%) e da

díspar equidade de acesso (33%) no âmbito da Comissão Europeia, Parlamento Europeu e Conselho Europeu -

torna-se o esteio e as razões para discussões sobre a necessária

evolução dos regulamentos acerca de sua regulamentação. De fato, naquela seara, os debates avançam com notável velocidade, envolvendo

propostas para a implementação 219

de registro obrigatório de todas as instituições praticantes da atividade, como forma de conferir transparência aos seus expedientes e garantir aos cidadãos da UE algo elementar: o exercício do direito de saber quais são os interesses e quem são os atores que buscam influir nas decisões que afetam as suas vidas.

Os dados para a percepção do lobby no âmbito da UE e a notícia de estudos para melhorar a regulamentação da atividade leva-nos a imaginar cenário de completo descontrole dos agentes que a realizam e das causas que postulam. Contudo, a realidade do continente é bem outra. Uma vista breve ao chamado “Registro de Transparência” atualmente existente no Parlamento Europeu, ao qual aderiram, de forma voluntária, representantes de 9.841 organizações que atuam perante aquela instituição2, e a leitura e compreensão de suas normas de funcionamento realçam a transparência e o controle que já alcançaram da atividade de lobby. O Registro Europeu, atualizado diariamente, é acessível por qualquer pessoa através da rede internacional de computadores (Internet). Além disso, abarca informações como a descrição dos objetivos e missões dos grupos e entidades nele inscritos, as estimativas de gastos financeiros com o exercício da representação desses interesses, as proposições monitoradas por esses grupos, além dos dados pessoais do lobista e o contato da instituição ou grupo para o qual trabalha.

A busca por mais transparência ao se regulamentar a atividade de lobby foi igualmente o grande eixo de discussão dos debates que levaram à regulamentação da atividade nos Estados Unidos (EUA) e no Canadá, ainda que, nos EUA, denúncias de corrupção na indústria naval, ocorridas na primeira metade do século XX, tenham acelerado o processo de regulamentação e forçado a edição do primeiro ato normativo de peso para o EUA (Chari e Hogan, 2007). É de se salientar que em todos esses países, mesmo quando choque externo, como atos de corrupção, forçam a edição de leis, na regulamentação da atuação dos grupos de interesse e pressão e de seus agentes de lobby, a atividade sempre é compreendida como ação legítima, fortalecedora da democracia. Como afirma os autores citados, ao avaliarem o contexto em que surgiu a regulamentação canadense: Based on the belief that lobbying is a legitimate political activity, the principal reason for having a registry, as reflected in the legislation and mentioned in several elite interviews in this study, is that it helps to ensure transparency and openness in the democratic process from which citizens,

2

Disponível em: http://ec.europa.eu/transparencyregister/public/homePage.do, acesso em set. 2016.

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lobby groups and politicians can benefit. If citizens, lobby groups and public office holders know who is lobbying whom, then this will allow for a better idea of who is trying to influence policy. Citizens will benefit because they can see which private interests are seeking to affect policy and influence state institutions; other lobbyists will benefit because they can see what their competitors are potentially doing; and politicians benefit because they can be seen as being open and helping increasing legitimacy in the political process because there is increased transparency in policy-making as far as citizens are concerned. In short, it is a positive-sum game where everyone wins (Chari e Hogan, 2007).

3. As perspectivas para o Brasil: situação legal e espaços para a regulamentação

A tentativa de regulamentação do Lobby no Brasil não é recente. Santos e Cunha (2015) observam que o debate foi formalmente inaugurado no parlamento brasileiro em 1984 com a apresentação do Projeto de Lei (PL) 25/1984, de autoria do Senador Marco Maciel (PFL/PE). O projeto não prosperou e, anos depois, em 1990, o mesmo senador apresentou outra proposição tratando do mesmo assunto (PL 6.132/1990). Antes disso, porém, o tema já tinha ganhado espaço no Congresso Nacional, pela força das investigações de CPI criada para “investigar a existência de "lobby" no Congresso Nacional”, em 1963. Essa CPI destinou-se a investigar, dentre outros fatos, a existência de grupos de pressão atuando no Congresso, a identidade dos lobistas, além da origem e o montante dos recursos empregados na atividade de representação e defesa desses interesses (BRASIL, 1963)

De lá para cá, foram várias as tentativas empreendidas para reacender o debate acerca da regulamentação do lobby e a aspectos relacionados à atuação do lobista nas dependências do Congresso Nacional. Entre 1990 e 2007 foram apresentados de seis projetos de lei, e entre 1985 e 2011, doze projetos de resolução entre 1985 e 2011, totalizando-se dezoito tentativas de regulamentação em 26 anos (Nóbrega Netto, 2015). Mais contemporaneamente, somam-se a essas proposições a iniciativa do Senador Walter Pinheiro (à época do PT/BA, hoje sem partido), representada pelo Projeto de Lei do Senado (PLS) 336/2015, e dois projetos de lei em tramitação na Câmara: o PL 1202/2007, do Deputado Carlos Zarattini (PT/SP), em torno do qual se dá o debate atual naquela Casa legislativa, e o PL 1961/2015, de autoria do Deputado Rogério Rosso, que se encontra apensado àquele.

221

A falta de normas específicas para o campo, o cadastro parcial e opaco de entidades e atores pelo Legislativo, a falta de publicidade na relação entre os grupos de interesse e pressão e o Estado são razões para déficits de transparência do processo decisório e da ação do lobby, o que dá azo à construção de preconceitos em relação à atividade. Deposita-se esperança nas proposições em tramitação no Congresso Nacional e no aprofundamento do debate como forma de sanar os problemas de falta de transparência e desentendimento do âmbito de atuação do lobby, o que nos impele a realizar breve análise de seu conteúdo, com vistas a verificar se os dispositivos propostos buscam reconhecer a legitimidade da atividade e dar-lhe mais transparência (o que compreendemos como necessário) ou se buscam usar a regulamentação como caminho para combate à corrupção (o que reputamos desvio de finalidade).

Os PLS 336/2015 e PL 1202/2007 são projetos relativamente curtos (o maior deles tem quinze artigos), e têm por objetivo comum a regulamentação do lobby para a esfera da Administração Federal, no âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo. Como primeira observação, tem-se que em vários dispositivos as redações guardam identidade, o que, cremos, seja fruto do amadurecimento do tema pelas décadas de debates já realizados no Congresso.

As proposições analisadas primam pela regulamentação da atividade pautando-se por dois eixos: o do controle (cadastros e coleta de informações dos interesses defendidos) e o da transparência (obrigação das autoridades em manter atualizados os cadastros compilados; divulgação das pautas de discussão e das reuniões realizadas com lobistas; e obrigação das entidades de lobby em prestar, periodicamente, informações acerca das atividades, gestões e gastos realizados em suas atividades).

Consoante exposição de motivos do PLS 336/2015, percebe-se o esforço parlamentar em se aproveitar a experiência das rodadas de discussão ocorridas nos países que já enfrentaram o tema, sendo explicitamente citados textos normativos americanos. Da mesma forma, o autor se filia à corrente majoritária da literatura e reconhece que a atividade de lobby decorre de direitos individuais já presentes na Constituição brasileira de 1988: Para muitos, o lobby é da essência da democracia, possibilitando que, com transparência, os grupos de pressão e de interesse possam atuar organizadamente, e que, com menores custos, todos os setores da sociedade possam fazer uso de estruturas profissionais destinadas a

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levar suas opiniões e posicionamentos aos Congressistas, em benefício do processo legislativo e de sua segurança.

[...]

Embora seja decorrência do exercício de direito individual, a legitimidade das atividades de lobby e representação de interesses em sua interface com os agentes públicos depende, sobretudo, da transparência com que são exercidas, dos limites que a legislação estabeleça e dos mecanismos de controle sobre elas, para impedir que o que é legítimo e necessário para o funcionamento da democracia, como o direito de petição, a prática do contraditório, o fluxo de informações qualificadas, a oportunização do acesso aos representantes de interesses aos decisores e a discussão de alternativas que melhor atendam aos interesses organizados na sociedade, gerem corrupção, tráfico de influência, acesso privilegiado e captura do processo decisório (BRASIL, 2015)

A justificação ao PL 1202/2007 igualmente remete à experiência estrangeira (EUA, Inglaterra, México, França), que reconhece o lobby como uma das possibilidades da democracia, e sugere que o Brasil acompanhe esse movimento. Nesse ponto, as duas proposições, por suas justificativas, corroboram os postulados teóricos que apresentamos acima. Ressalta, ainda, o clamor social e escândalos de corrupção recentes como situações catalisadoras da presente discussão, aptas a proporcionarem debates mais aprofundados.

Na parte normativa, logo nos primeiros cinco artigos, tanto o projeto do Senado, quanto o da Câmara dos Deputados principiam por definir normativamente o que deve ser compreendido por agente responsável, decisão e órgão decisório; grupos de pressão e de interesse; vantagens (devidas e indevidas) passíveis de recebimento pelos servidores públicos (presentes, recompensas); lobby e agente de lobby (lobista). Reputamos essencial esse esforço inicial, principalmente devido à polissemia e imprecisão conceituais que estes termos sofrem mesmo na literatura das ciências sociais.

Em seguida, os dois projetos compreendem que os servidores do governo que realizam as atividades definidas como lobby são igualmente lobistas e que todos os agentes de lobby devem ser cadastrados perante o Legislativo e o Executivo. Igualmente, impõem aos órgãos do governo a obrigatoriedade de manterem atualizados esses cadastros. No projeto da Câmara dos Deputados há limitação do número de lobistas que poderão ser cadastrados (dois por entidade) o que nos parece se contrapor ao princípio da transparência.

223

Realça-se o art. 2º do PLS 336/2015, que aponta princípios constitucionais que orientam a atividade do lobby (entre eles o de transparência, isonomia de tratamento e de acesso à informação), demonstrando que já adentra o Congresso Nacional percepção de que a atividade é direito legítimo dos grupos sociais, não carecendo de autorização, mas tão somente de regulamentação, consoante a corrente doutrinária que nos filiamos no capítulo anterior. Após o esforço conceitual, os artigos que se seguem em um e outro projeto homenageiam o eixo da transparência e especificam as informações que devem ser fornecidas pelos lobistas e as sanções por informações falsas ou imprecisas. Em seguida, determinam situações de proibição e impedimento da ação de agentes e entidades de lobby, como espécie de quarentena para atores oriundos dos órgãos do governo que desejem atuar como ou para entidades privadas. Direitos dos atores e entidades que buscam influenciar o processo decisório também estão previstos nos dispositivos propostos pelos dois projetos, como o direito de entidades de lobby a requerer participação em audiência pública quando estiverem em fase de elaboração ou discussão assuntos relacionados a sua área de atuação, inclusive no âmbito do judiciário (Brasil, PL 1.202/2007). Merece realce também o fato de que se propõe nos dois projetos espécie de contraditório que obriga as autoridades competentes não só a divulgar as reuniões realizadas com os lobistas como abre possibilidade a grupos contrários de igualmente serem ouvidos e apresentarem seus argumentos, o que, ultrapassando a questão da transparência, aumenta o grau de legitimidade das decisões que se tomarem nesses processos. Por fim, os dois projetos de lei apresentam nos artigos finais dispositivos de controle da atividade, prevendo prestação de contas periódicas das entidades e atores do lobby, em que deverão ser apontadas as ações perpetradas e seus custos, restando patente que, para além dessa prestação programada de contas, a qualquer momento as autoridades poderão convocar entidades e atores lobistas para prestar esclarecimentos acerca de pontos e ações específicos. Por fim, em ambos os projetos, algumas ações defesas, por imorais ou antiéticas são descritas tanto para servidores públicos quanto para lobistas, e tipos penais são criados para situações mais graves, como improbidades administrativas e corrupção. Essa

é a estrutura

percebe, a posição adotada pelos pretende

seguida,

bastante

teórica apontada

parlamentares

que

no

similar em ambos capítulo

inicial

apresentaram

dar autorização legal à prática do lobby,

as

os

deste

projetos. artigo

propostas.

mas,

é

Nelas,

reconhecendo

Como se a

mesma não que 224

se se

arrima em preceitos constitucionais e que já é amiúde prática (ou seja, sofreu institucionalização informal), busca-se formalizar a atividade com o intuito primeiro de dar transparência e legitimidade ao campo. Deseja-se igualmente, sem tolher prerrogativas, gerar alguma forma de controle dos atores do lobby, ação justificável visto que lobistas agem defendendo interesses parciais da sociedade e interagem com o Estado. Outro ponto de coincidência entre as proposições legislativas analisadas e nossa compreensão do que deve conter uma legislação para o campo é a compreensão de que não se deve, por meio de regulamentação do lobby, tentar diminuir a corrupção no país. Quanto ao avanço dos debates desses projetos no Legislativo, aponta-se que a proposição do Senado, em setembro de 2016, ainda se encontrava em estágios iniciais de tramitação, esperando designação de relator na primeira comissão a que a matéria foi distribuída. Na Câmara dos Deputados, o PL 1.202/2007 encontrava-se à mesma época, um pouco mais adiantado, sendo que, distribuído a duas comissões, já havia tramitado por uma delas (Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público), tendo parecer aprovado à unanimidade em dezembro de 2008. Atualmente encontra-se na segunda comissão (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJC), com relatoria designada (Deputada Cristiane Brasil (PDT/RJ)) e audiência pública realizada em agosto de 2016. 4. Considerações finais A regulamentação do lobby, que já consta há mais de duas décadas da pauta do Congresso Nacional, vem ganhando cada vez mais destaque entre os assuntos pendentes de deliberação pelos parlamentares. Em tempos de grandes escândalos de corrupção, percebe-se nos debates que se sucedem nas duas Casas o esforço em se lançar luz sobre atividade que, por falhas na legislação, equívocos de percepção e alguma contribuição por parte da imprensa, por vezes confundese, entre outros ilícitos, como tráfico de influência e corrupção ativa. Conquanto seja altamente contestável a associação do lobby ao cometimento desses tipos de crimes, o debate é bem-vindo na medida em que contribui para esclarecer mal-entendidos e para encaminhar a discussão ao seu devido escopo: o aperfeiçoamento da nossa democracia. Por se tratar do exercício de direito garantido pela Constituição Federal e realidade irrefutável de uma sociedade cada vez mais atenta à sua capacidade de influenciar e pressionar agentes públicos, a atividade do lobby tornou-se de extrema relevância no rol de assuntos conducentes a legitimar o processo 225

decisório sobre políticas públicas no Brasil. Dentre outros méritos, permite que parcelas da sociedade tenham acesso aos tomadores de decisões que lhes interessem ou afetem, tornando suas deliberações não somente mais legítimas como passíveis de produzir políticas públicas mais qualificadas e inclusivas. A simples observação da evolução por que vêm passando as proposições cujo objeto é a regulamentação do lobby permite concluir pela existência de preocupação crescente com aspectos que, a um só tempo, tornarão mais efetivas as chancelas democráticas da atividade representação e defesa de interesses junto ao Poder Público e afastarão quaisquer dúvidas ainda pendentes acerca da legalidade de seu exercício. Nesse contexto, o imperativo da transparência adquire relevo na medida em que permite a toda sociedade conhecer os interesses defendidos pelos atores de lobby e exercer o direito de apoiar, contestar ou manter-se indiferente a eles, mas sem nunca ser privada de saber que se passa nas instancias que decidem sobre assuntos que lhe concerne e, se for da sua vontade, tomar parte no processo decisório. Ademais, ao reconhecer que, entre outros fatores, o poder econômico de alguns grupos de pressão e o status de alguns lobistas (se servidor público, por exemplo) podem desequilibrar o jogo político em favor ou desfavor de certos grupos, o estabelecimento de regras para o exercício da atividade do lobby tem o condão de conter desigualdades. Daí porque afigura-se importante acompanhar os desdobramentos dos dois projetos que tramitam no Congresso Nacional, os PLS 1.202/2007 e 336/2013, propostas cujo conteúdo costumam chamar a atenção da grande mídia somente no contexto do combate à corrupção, mas que carregam consigo não só a perspectiva de aumentar o coeficiente de legitimidade das decisões, mas melhorar, de forma geral, a qualidade da democracia brasileira. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Mestre, Advogado e cientista político. Servidor da Câmara dos Deputados e professor de programas de pósgraduação em Ciência Política. CV: http://lattes.cnpq.br/3160659352663443 [2] Especialista em Processo Legislativo, Pós-graduanda em Relações Governamentais pela FGV-Brasília; coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (CEFOR) da Câmara dos Deputados sobre “O acesso dos grupos de interesse às instâncias decisórias do Congresso Nacional ” e Servidora da Câmara dos Deputados.

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