Locke e a Prerrogativa

May 24, 2017 | Autor: Renan Barbosa | Categoria: John Locke, Filosofía Política, Estado de Natureza
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Locke e a Prerrogativa Renan Barbosa

Para uma obra1 que tem reconhecidos como uma de suas principais intenções e um de seus corolários práticos a possibilidade do exercício de um direito de resistência contra governos tirânicos2, o Segundo Tratado de John Locke causa estranhamento ao afirmar que, nas sociedades em que os poderes executivo e legislativo forem distintos, ao primeiro deve ser deixado um “poder de agir conforme a discrição em prol do bem público, sem a prescrição da lei e por vezes até contra ela” (160). Esse poder, chamado prerrogativa, é “o poder de fazer o bem público independentemente de regras” (166). Nesta dissertação, pretendo argumentar que esse estranhamento se desfaz quando entendemos que o exercício da prerrogativa deve ser independente de regras da sociedade civil, mas não da lei de natureza. Isso é afirmar que, em todos os casos, subsiste um critério de avaliação das decisões da autoridade civil pela esfera pública3 e que tais decisões, mesmo tendo certo espaço de arbitrariedade, podem ser consideradas usurpações ou tirânicas a posteriori. Locke define o poder político como o direito de editar leis e empregar a força em sua execução (3). Para estabelecer os fundamentos, a extensão e a finalidade desse poder, o autor mobiliza a célebre noção de estado de natureza. Em Locke, o estado de natureza é a condição em que todos os homens naturalmente estão quando não submetidos a nenhuma autoridade, isto é, um estado de “perfeita liberdade” e também de igualdade (4). Essa condição, entretanto, não se confunde com licenciosidade, uma vez que os homens estão naturalmente submetidos à lei de natureza (6). Como o homem é uma criação divina cuja marca distintiva é ser racional e as leis da razão também são criações de Deus, viver de acordo com essas leis é não só uma obrigação desse homem-criatura, mas a realização perfeita de sua função4. Por isso, Locke pode afirmar que “a lei, em sua verdadeira concepção, não é

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Todas as citações entre parênteses referem-se aos parágrafos do Segundo Tratado de Locke e foram extraídas de LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução: Julio Fischer, revisão técnica: Renato Janine Ribeiro, revisão da tradução: Eunice Ostrensky, 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2005. 2 Cf. ASHCRAFT, Richard. “Locke´s political philosophy”, p. 227 in The Cambridge Companion to Locke, CHAPPELL, Vere (org.), CUP, 1995; DUNN, John. Locke. Tradução: Luiz Paulo Rouanet, São Paulo, Edições Loyola, 2003, p. 45; TULLY, James. An approach to political philosophy: Locke in contexts. CUP, 1993, p. 282 3 Cf. TULLY (1993), p. 281. 4 Cf. TULLY (1993), p. 297: “A lei é constitutiva da liberdade, aperfeiçoando-a ou completando-a como sua causa final. A lei não é o meio convencional de controlar os desejos naturais do homem de

tanto uma limitação quanto a direção de um agente livre e inteligente rumo a seu interesse adequado, e não prescreve além daquilo que é para o bem geral de todos quantos lhe estão sujeitos” (57). Dois são os deveres principais que decorrem da lei da natureza: a obrigação de cada um preservar-se e de preservar o restante da humanidade, o que inclui o dever de respeito à vida, à liberdade, à saúde, à integridade e aos bens dos demais (6). Podemos agrupar tudo isso sob a denominação genérica de propriedade, seguindo a terminologia de Locke, que afirma cada pessoa possuir um direito de propriedade sobre si mesma5, o qual é também o fundamento do direito de propriedade, em sentido estrito, gerado pelo trabalho (44,45). Além disso, no estado de natureza, cada pessoa tem o poder de punir um eventual transgressor da lei de natureza e, assim, ser o executor dessa lei (8). Com efeito, se cada indivíduo pode ser o poder executivo, e se as relações sociais tornam-se cada vez mais complexas com a criação do dinheiro (47), o exercício dos direitos naturais torna-se cada vez mais incerto e é deste perigo que os homens pretendem refugiar-se ao criarem as sociedades políticas6. Assim, Locke pode afirmar que o fim último da sociedade política é a conservação da propriedade (123), entendida em seu sentido genérico. O contraste entre sociedade civil e estado de natureza permite também a Locke compreender que nenhum homem pode ser colocado sob o jugo do poder político sem o seu consentimento, já que todos são “naturalmente livres, iguais e independentes” (95). Assim, se os homens pretendem livrar-se dos inconvenientes do estado de natureza, podem “revestir-se dos elos da sociedade civil”, mas somente por meio de seu consentimento em formar uma comunidade política governada pela maioria e cujo fim é a conservação da propriedade7. Os homens abririam mão do poder de se conservar a si mesmos como lhes apraz para que este poder seja regulado por leis pela sociedade (129); renunciariam ao poder de castigar os infratores da lei da natureza, colocando-o nas mãos do poder executivo da sociedade, conduzido por suas leis (130). Embora assim os homens renunciem a sua igualdade e liberdade fazer o que o agrada; ela é o guia natural para levar o homem à realização de sua inclinação natural de fazer o bem” (tradução minha). 5 Ao mesmo tempo, como notei anteriormente, Locke afirma explicitamente que temos um dever de preservar a nós mesmos (6), pois somos criações de Deus. A tensão revela-se apenas aparente se entendemos essa segunda afirmação de Locke (44) como uma espécie de “usufruto” de nós mesmos. Seríamos donos, por assim dizer, do desempenho de nossa vida, de tudo que nela fazemos e dela tiramos, mas não daquilo que nela não depende de nós, isto é, a vida biológica. 6 Locke esmiúça as limitações do estado de natureza: (i) ele careceria de uma “lei estabelecida, fixa e conhecida” (124); (ii) ele careceria de um juiz conhecido e imparcial, com autoridade para solucionar todas as diferenças de acordo com a lei estabelecida (125); (iii) ele careceria de um poder para apoiar e sustentar a sentença quando justa e dar a ela a devida execução (126). 7 Sobre a relação entre a gênese histórica das sociedades e o aparato conceitual de Locke cf. KUNTZ, Rolf. Locke, Liberdade, Igualdade, Propriedade, 1997, pp. 14-18, disponível em www.iea.usp.br/artigos, acesso em 20/12/14.

naturais, o poder da sociedade política não pode, em hipótese alguma, estender-se além do que exige o bem comum, uma vez que os indivíduos dão seu consentimento para a formação da sociedade com o fim de conservação de sua propriedade (131). Por isso, Locke define a tirania como “o exercício do poder além do direito, a que ninguém pode ter direito” (199). O poder executivo pode comportar-se como usurpador (197) se extrapolar os limites civis impostos pelo poder legislativo, mas o próprio corpo legislativo pode agir tiranicamente se contrariar a lei de natureza, pois ele também se limita ao bem público da sociedade e pelo consentimento dos súditos8. Subsiste nas mãos do povo, de forma latente, um poder de remover ou alterar o legislativo se este trair a confiança nele depositada pelos súditos contrariando os fins para os quais o governo é estabelecido (149, 222). Mas há uma complicação nesse esquema, decorrente do exercício da prerrogativa. Essa discussão surge, no Segundo Tratado, depois de Locke analisar o caso de “algumas sociedades políticas nas quais o legislativo não está em função e o executivo está investido numa única pessoa que também faz parte do legislativo” (151). Locke analisa, então, já na discussão sobre a prerrogativa, a complicada questão de julgar o uso da prerrogativa de o poder executivo convocar as reuniões do poder legislativo, se este for o caso – e este foi o caso em várias dos conflitos que marcaram o século XVII inglês (167). Se o poder executivo, nessas condições, é encarregado de convocar as reuniões do poder supremo, quem poderá julgar sua decisão se não o convocar? Se a prerrogativa, como vimos, permite ao poder executivo agir no silêncio da lei e, às vezes, até contra ela, não seria isso uma usurpação do poder legislativo e, portanto, uma ação que careceria do consentimento dos súditos? A resposta que Locke elabora para a primeira pergunta vale também para a segunda. A prerrogativa deve sempre ser exercida conforme as exigências do bem comum e, portanto, ser sempre conforme a lei de natureza (161). Com efeito, a própria existência da prerrogativa revela-se uma exigência do bem comum, na medida em que pode haver ocasiões em que a lei civil não ofereça diretrizes claras ou casos em que a lei deva deixar à alçada do executivo (159). Mas, mesmo nesses casos, subsiste a necessidade de consentimento dos súditos, que devem sempre anuir às decisões tomadas (164). Se não há controvérsia sobre a decisão do executivo, 8

Nas palavras de Locke: “(...) porquanto ao governo, seja em que mãos estiver, o poder foi confiado (...), sob essa condição e para esse fim, que os homens pudessem ter e garantir suas propriedades, o princípio ou o senado, por mais que possa dispor do poder de elaborar leis destinadas a regular a propriedade entre os súditos entre si, jamais poderão dispor de um poder de tomar para si, no todo ou em parte, a propriedade dos súditos sem o consentimento destes” (139) ou ainda “(...) o legislativo age contrariamente ao encargo a ele confiado quando tenta violar a propriedade do súdito e fazer a si, o a qualquer parte da comunidade, senhor ou árbitro da vida, liberdade ou bens do povo” (221).

supõe-se que houve consentimento dos súditos. Se houver controvérsia quanto ao exercício da prerrogativa, caberia ao poder legislativo validar a decisão se conforme ou não o bem comum. Se a controvérsia, por sua vez, for quanto à própria prerrogativa da convocação do poder legislativo pelo poder executivo, tratar-se-ia de um daqueles casos em que “não pode haver juiz sobre a Terra (...) não [tendo] o povo outro remédio além do apelo aos céus” (167). Nessas hipóteses extremas, se a autoridade executiva usurpar algum poder ou a legislativa tornar-se tirânica, excedendo seus poderes, ela deixa de ser autoridade de direito e pode ser combatida de fato pelos súditos (202). De outro ângulo, nesses casos Locke compreende uma alteração do legislativo e, por consequência, a dissolução da sociedade política (212,214). Em suma, pela usurpação, pela tirania, ou pela alteração do legislativo, quem introduz mudanças que o povo não autorizou, a priori ou a posteriori, introduz na verdade um estado de guerra (227), abrindo espaço, caso exista uma série contínua de malefícios, para a rebelião justificada contra o governo, caso no qual, de fato, caberá ao povo agir como juiz dos encargos confiados ao governo (232,240). A prerrogativa, portanto, deve ser exercida conforme o bem comum e à lei de natureza e corpo do povo constitui, por meio de seu consentimento, o garante último do governo. É verdade que onde não há lei, não há liberdade (57), mas lei, aqui, não é apenas a lei civil. Podemos ver, então, que o exercício da prerrogativa não constitui uma contradição ou uma exceção à teoria de Locke, pois ela pode ser harmonizada com os principais conceitos da filosofia política do autor. Bibliografia ASHCRAFT, Richard. “Locke´s political philosophy” in The Cambridge Companion to Locke, CHAPPELL, Vere (org.), CUP, 1995. DUNN, John. Locke. Tradução: Luiz Paulo Rouanet, São Paulo, Edições Loyola, 2003. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução: Julio Fischer, revisão técnica: Renato Janine Ribeiro, revisão da tradução: Eunice Ostrensky, 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2005. KUNTZ, Rolf. Locke, Liberdade, Igualdade, Propriedade, 1997, disponível em www.iea.usp.br/artigos, acesso em 20/12/14. TULLY, James. An approach to political philosophy: Locke in contexts. CUP, 1993.

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