Lógica, Modalidade e Interpretação Jurídica

May 30, 2017 | Autor: V. Nascimento | Categoria: Direito, Lógica, Lógica Jurídica, Hermenêutica Do Direito
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Lógica, Modalidade e Interpretação Jurídica Victor Luis Barroso Nascimento 28/08/2016

Resumo A presente monografia, elaborada como trabalho de conclusão de semestre para a disciplina "Estudo Individual" no programa de Mestrado em Filosofia da PUC-RIO, tem por finalidade discorrer sobre a possibilidade de utilização da Lógica de Primeira Ordem para a modelagem da semântica de termos jurídicos, bem como para a análise de controvérsias referentes interpretações judiciais.

Introdução Sumário

Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 Hermenêutica e Controvérsia . . . . . . . 2 Modelagem Lógica da Semântica Jurídica 2.1 Conceitos e Definições . . . . . . . 2.2 Interpretação e Modalidades . . . 2.3 Exemplo Prático . . . . . . . . . . 3 Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1 Hermenêutica e Controvérsia Em aulas sobre Direito Civil, quando abordam a importância que o princípio constitucional da dignidade humana vêm possuindo neste, alguns professores utilizam um exemplo curioso para mostrar as controvérsias que

existem e já existiram sobre o preceito jurídico, tido como um dos mais importantes dentre aqueles elencados pela Constituição de 1988: trata-se da controvérsia acerca da prática conhecida como "Lançamento de Anão"(Lancer de Náin), enfrentado em 1992 pela corte da pequena cidade de Morsang-sur-Orge, França. Ante a incomum prática de alguns bares locais, que disponibilizavam dublês portadores de nanismo para que seus clientes pudessem realizar competições de arremesso humano, a cidade decidiu proibir que estabelecimentos comerciais promovessem atividades deste tipo para fins de entretenimento, o que fez com que Manuel Wackenheim, cidadão francês que era portador de nanismo e ganhava a vida com tal prática, questionasse judicialmente a regularidade da proibição, ocasionando um acalorado debate judicial que, por fim, resultou na manutenção da proibições pelas cortes superiores francesas, sob o argumento de que a cidade estava autorizada a inibir práticas que atentassem contra a dignidade da pessoa humana. A controvérsia não terminou com o final do processo, de modo que o caso se tornou um paradigma tanto nos debates sobre a definição precisa do que seria a "dignidade humana"quanto nos debates sobre o papel do estado, bem como sobre o alcance de seus poderes, em questões referentes à chamada "moralidade pública". Se, por um lado, o aspecto vexatório da atividade leva muitos a crer que a profissão estava longe de ser ideal e era efetivamente era indigna, o que talvez justificasse a proibição de que anões continuassem a praticar o ofício (ainda que contra a vontade destes), por outro, certamente podemos aceitar que o que é indigno para nós não o necessariamente é para outras pessoas - e que, se Manuel acreditava que esta era a melhor profissão na qual poderia estar, a verdadeira violação de sua dignidade ocorreu quando o governo, por razoes que lhe eram estranhas, proibiu que este continuasse a praticar seu ofício. E foi precisamente este último conceito de dignidade que Dave Flood parecia ter em mente quando, ao se deparar com o mesmo tipo de proibição nos Estados Unidos, denunciou o moralismo público da questão com a afirmação "Eu não quero que o governo me diga o que eu posso ou não posso fazer. Eles pressupõem que (pessoas com nanismo) não têm mente própria1 . Em casos deste tipo, parecemos nos deparar com ao menos dois conceitos completamente diferentes (e possivelmente incompatíveis) do que seria precisamente a "dignidade da pessoa humana". Na primeira concepção, a dignidade parece estar relacionada ou a razões morais de ordem superior ou a razões de moralidade pública, sendo independentes, portanto, da vontade do indivíduo a que ela se sujeita; na segunda, a dignidade está estritamente ligada à liberdade individual e à necessidade de proteção desta contra forças externas ao indivíduo, devendo ser protegida, inclusive, contra os desígnios da "moralidade"alheia, não importando a forma por meio da qual esta se manifeste. E, sendo os dois conceitos (ao menos da forma como expostos aqui) 1

Tradução do autor. Original: "I don’t want the government telling me what I can or cannot do. They assume (people with dwarfism) don’t have a mind of their own". Fonte: http://www.sptimes.com/News/112901/news𝑝 𝑓 /𝐻𝑖𝑙𝑙𝑠𝑏𝑜𝑟𝑜𝑢𝑔ℎ/𝑆𝑚𝑎𝑙𝑙𝑚 𝑎𝑛𝑡 𝑎𝑘𝑒𝑠𝑏 𝑖𝑔𝑠 .𝑠ℎ𝑡𝑚𝑙

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irreconciliáveis, qual deveria ser considerada a interpretação "correta" do conceito de dignidade, sob um ponto de vista tanto filosófico quanto jurídico? Sob qual concepção de dignidade devemos interpretar o princípio constitucional da dignidade humana, e a quais políticas públicas tal concepção nos levaria? Nenhuma das duas concepções parece ser incompatível com nossa Constituição, que é extremamente econômica ao dispor sobre o tema:

Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana;

Por esta razão, este conceito, para poder ser aplicado em situações jurídicas, precisa ter seus limites contornados e precisados por meio de elementos de ordem extrajurídica, o que parece nos levar, naturalmente, à seara da interpretação e da hermenêutica jurídica.

2 Modelagem Lógica da Semântica Jurídica 2.1 Conceitos e Definições Em relação à modelagem do aspecto lógico deste tipo de controvérsia, a Lógica de Primeira Ordem parece possuir todas as ferramentas de que precisamos para a formalização da semântica jurídica, bastando, para tanto, que realizemos algumas definições preliminares sobre como a modelagem será feita, que tipo de objeto admitiremos em nosso ontologia, quais constantes estarão no domínio de nosso discurso e, por fim, como a representação de conceitos deverá ser feita em nossa linguagem formal. Nosso domínio, "D", terá como "objetos" todos os sentidos e interpretações que puderem ser conferidos às palavras ou termos sob análise; se "dignidade da pessoa humana" pode ser interpretado ou como "liberdade individual" ou como "moralidade pública", definiremos o conceito de dignidade como um predicado "H" e as definições "liberdade individual" e "moralidade pública" como duas constantes, "a" e "b", sendo esta os elementos básicos de nossa análise. Deste modo, definimos um predicado "H", indicamos que este servirá como um "marcador" para o conceito "dignidade da pessoa humana" e fazemos com que ele se aplique às constantes (a,b), sendo 𝐻𝑎 e 𝐻𝑏 duas fórmulas em nossa linguagem e representando, respectivamente, a interpretação da dignidade como liberdade e a interpretação da dignidade como moralidade.

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Adicionalmente, para indicar as características e propriedades das constantes "a" e "b" e definir quais propriedades estas possuem, podemos afirmar que, além de serem a interpretação do conceito "H", elas também são interpretações dos predicados "L" (liberdade) e "M" (moralidade), de forma que 𝐿𝑎 e 𝑀 𝑏 também serão fórmulas em nossa linguagem, que indicam a posse de propriedades como "tem por base a liberdade" e "tem por base a moralidade" às nossas constantes. Por fim, uma vez que nós definimos dois tipos essencialmente diferentes de predicados e, não obstante, nosso interesse é definir conceitos do tipo "H" em termos de objetos com certas propriedades (e não o contrário), podemos introduzir uma convenção que vise promover uma espécie de separação (relativa) entre os predicados-conceito e os predicadospropriedade: ∃𝑥𝐻𝑥 : 𝐿𝑥 ∃𝑥𝐻𝑥 : 𝑀 𝑥 ∀𝑥𝐻𝑥 : ¬(𝐿𝑥 ∧ 𝑀 𝑥) Nossos definiendum, ou conceito, será indicado antes do sinal ":", e nosso definiens, ou definição da interpretação conceitual, será indicado após este. Para converter esta notação e dar às fórmulas sua sintaxe tradicional, basta que substituamos as fórmulas quantificadas existencialmente, tais como ∃𝑥𝐻𝑥 : 𝐿𝑥, por fórmulas do tipo ∃𝑥(𝐻𝑥 ∧ 𝐿𝑥) e as quantificadas universalmente, tais como ∀𝑥𝐻𝑥 : ¬(𝐿𝑥 ∧ 𝑀 𝑥), por fórmulas do tipo ∀𝑥(𝐻𝑥 → ¬(𝐿𝑥 ∧ 𝑀 𝑥)). E, caso desejemos lidar não só com a interpretação dos termos jurídicos, mas também com suas aplicações a situações fáticas, podemos estabelecer uma nova convenção que separe os predicados referentes à aplicação da lei, ou a seus efeitos concretos, dos predicados de definição e dos predicados de conceito. No caso do lançamento de anões, por exemplo, a solução dada pelos tribunais franceses poderia ser formalizada do seguinte modo: ∃𝑥𝐻𝑥 : 𝑀 𝑥; ∀𝑦(𝑁 𝑦 → 𝐴𝑥𝑦) Devendo esta fórmula ser entendida, formalmente, como: ∃𝑥(𝐻𝑥 ∧ 𝑀 𝑥) → (𝐴𝑥 → (∀𝑦∀𝑧(𝑃 𝑦 ∧ 𝑃 𝑧 ∧ 𝑁 𝑧 → (𝑃 𝐴𝑦𝑧))) A "tradução" de ";"na sintaxe tradicional não depende do quantificador a que o conceito está sujeito, de modo que a mesma fórmula seria válida caso 𝑀 𝑥 fosse a interpretação de todas as concepções possíveis da dignidade da pessoa humana - ou seja, fosse quantificado universalmente (∀𝑥𝐻𝑥 : 𝑀 𝑥). O predicado "A", umas espécie de constante predicativa na tradução de ";", deve ser utilizado de forma a indicar a aplicação pelo tribunal (ou, ao menos, 4

a simples aplicabilidade jurídica) da definição "x"a situações fáticas, de modo que, se os tribunais aceitarem a interpretação "𝑀 𝑥"de "𝐻𝑥"e a aplicarem faticamente, então "𝐴𝑥"é verdadeiro. A necessidade deste elemento para a análise da semântica jurídica está ligada ao fato de que nenhuma lei é auto-aplicável, uma vez que a produção de efeitos concretos, seja de uma interpretação jurídica qualquer ou até mesmo de um dispositivo legal ou constitucional, sempre dependerá de sua aplicação pelo sistema judiciário, ainda que se trate de dispositivos legais com "aplicabilidade imediata". Adequando a fórmula ao caso concreto apresentado, temos que o predicado "PA" poderá ser interpretado como "Proibição de que a pessoa y arremesse a pessoa z", o predicado "N" poderá ser interpretado como "Nanismo" e o predicado "P" poderá ser interpretado como "pessoa". Conferindo à fórmula uma interpretação contextual,a afirmação formal é equivalente à afirmação informal de que existe uma interpretação segundo a qual a dignidade da pessoa humana está ligada à moralidade, e, caso esta interpretação seja aplicada ou venha a ser tida como válida pelos tribunais, para qualquer pessoa "z" que tenha nanismo e para qualquer pessoa "y" que tenha ou não nanismo, então, por força do referido princípio, é proibido que "y" arremesse "z". Para usar o símbolo ";", no entanto, a menos que recorrêssemos às ferramentas da lógica do tipo "Many-sorted", precisaríamos expandir nosso domínio discursivo, de forma a considerar como objetos válidos não só definições de palavras e conceitos, mas também pessoas, proibições e aplicações de regras, dentre outros conceitos jurídicos e objetos da vida real. Uma vez que isto ocasionaria um crescimento exponencial na dificuldade de modelagem lógica, devemos nos ater, por ora, apenas à formalização da semântica e da interpretação jurídica.

2.2 Interpretação e Modalidades Uma vez que a inclusão de absolutamente todas as definições possíveis de um termo jurídico qualquer em nosso domínio parece ser um expediente literalmente impossível, caso desejemos obter progresso e fazer com que este tipo de modelagem seja útil, devemos estabelecer parâmetros e regras que nos permitam decidir exatamente quais interpretações efetivamente incluiremos em nosso jurídico, sendo um dos critérios possíveis o de que uma interpretação só poderá ser considerada objeto se esta efetivamente tiver sido apresentada por algum jurista e, portanto, tiver alguma relevância para a prática forense. Esta necessidade de limitação, no entanto, não nos impede de tecer algumas considerações menores sobre aspectos modais da semântica jurídica, o que consiste em fazer indicações potenciais sobre as formas por meio das quais poderemos (ou poderíamos) incrementar nossa ontologia ao acrescentar novas interpretações. Introduzindo o operador modal  nas convenções que definimos até o presente momento, parece que as interpretações modais que 5

podem ser conferidas às fórmulas indicadas são bastante intuitivas:  ∃𝑥𝐻𝑥 : 𝑀 𝑥; ∀𝑦(𝑁 𝑦 → 𝐴𝑥𝑦) ∃𝑥𝐻𝑥 :  𝑀 𝑥; ∀𝑦(𝑁 𝑦 → 𝐴𝑥𝑦) ∃𝑥𝐻𝑥 : 𝑀 𝑥;  ∀𝑦(𝑁 𝑦 → 𝐴𝑥𝑦) A primeira fórmula consiste na afirmação de uma necessidade conceitual, na qual se postula que o conceito definido, bem como sua interpretação e aplicação, são elementos necessários no fenômeno jurídico. A segunda, por sua vez, consiste na afirmação de uma necessidade interpretativa, na qual se postula que o conteúdo deste conceito é necessário para a prática jurídica, ainda que o conceito em si não o seja. Por sua vez, a terceira fórmula afirma uma necessidade pragmática, na qual a aplicação da lei, quando feita com base nos critérios definidos anteriormente, inevitavelmente ocasionará os efeitos indicados ao final da fórmula. Parece clara a ligação dos dois tipos iniciais de necessidade com concepções metafísicas ou apriorísticas do Direito, sendo mais aptas a descrever as posições filosóficas dos teóricos do chamado Direito Natural. No entanto, ainda que adotemos uma posição cética e afirmemos ser o Direito uma criação humana que, em função de sua relativa autonomia em relação a concepções morais (já que o Direito, apesar de valorativo, não se presta unicamente a satisfazer os interesses de uma única concepção moral, tendo servido até mesmo para satisfazer os anseios de comunidades hoje vistas como imorais, como foi o caso do Direito Nazista), do que decorre que nenhum conceito jurídico é necessário ou possui um núcleo absolutamente necessário de conteúdos interpretativos, certamente podemos afirmar que, uma vez estabelecido um conceito jurídico e atribuído a este certos conteúdos, seja por meio da lei ou de interpretações judiciárias, quaisquer aplicações ou usos da regra, principalmente quando se tratar da criação de outras regras, preceitos e conceitos jurídicos (sejam estes legislativos, jurisprudenciais ou doutrinários), precisarão seguir as linhas já estabelecidas por esta mesma atribuição de conteúdos, sob pena de redefinição do conceito por meio da atribuição de um novo sentido. Caso definamos, por exemplo, que a dignidade da pessoa humana está indiscutivelmente ligada à liberdade individual e ao direito de não ser molestado pelo governo, nós necessariamente nos comprometemos com a liberdade, sob pena de violar o princípio que acabamos de estabelecer e entrar em contradição. Da mesma forma, caso definamos a dignidade da pessoa humana em termos de moralidade pública mas, ainda assim, modifiquemos o nosso conceito de "moralidade pública"para que esta possa ser compatível com uma parcela maior de liberdade, nós estamos indicando que, muito embora alguns conceitos de dignidade da pessoa humana que estejam ligados à moralidade sejam incompatíveis com um grau maior de liberdade individual, é perfeita-

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mente possível imaginarmos uma interpretação da dignidade humana na qual liberdade e moralidade pública coexistem. Deste modo, se de uma definição legal rigidamente fixada em um ordenamento necessariamente se seguir algo, poderá ser obtido um consenso sobre este significado, o que fará com que aqueles que estejam sujeitos e esta lei possam ter um maior grau de segurança jurídica quando pautarem suas condutas por ela. No entanto, como é bem sabido, altíssimos níveis de segurança jurídica tendem a ser acompanhados por ordenamentos estanques - de modo que, caso desejemos um sistema jurídico capaz de evoluir, precisamos deixar alguma margem de possibilidade interpretativa e permitir que, mesmo em ocasiões onde a maioria das interpretações jurídicas tidas como válidas sigam por determinado caminho, ao menos algumas possam desviar deste e estabelecerem-se como dissidentes. Com isto, ainda que descartada a possibilidade de necessidade conceituais e de necessidades interpretativas absolutas, talvez ainda possamos afirmar a existência de necessidades interpretativas relativas, bem como de necessidades pragmáticas que decorrem de certas interpretações2 . Portanto, quando partimos de premissas jurídicas suficientemente determinadas, ainda que assumamos um ponto de vista positivista, nossas crenças sobre a necessidade ou contingência de determinado preceito jurídico acabará por ser irrelevantes, já que estas "modalidades condicionais" funcionariam do mesmo modo caso, por exemplo, os teóricos do Direito Natural estejam certo e o Direito, de fato, esteja diretamente ligado à moral. Isto é dizer que, independente da existência de um Direito Natural ou da limitação do direito ao Direito Positivo, tendo em vista que determinado conjunto de preceitos normativos (e não algum outro) efetivamente existe em uma sociedade qualquer, as normas e realidades jurídicas que poderiam vir a surgir no seio daquela comunidade são limitadas não pela origem destas, mas sim por sua instanciação no mundo real, do que se depreende que as teses do positivismo e do jusnaturalismo são, nesse aspecto, equivalentes.

2.3 Exemplo Prático Antes de encerrar o artigo, analisaremos brevemente como a modelagem semântica poderia indicar, de maneira correta, a forma como as controvérsias jurídicas parecem se apresentar, assim como os efeitos práticos que as diferentes interpretações de um termo podem ter sobre a prática forense. No contexto brasileiro, um dos temas jurídicos que se tornaram mais controverso ultimamente é aquele que diz respeito à prática ou não de crimes de responsabilidade pela presidente Dilma Vana Rousseff. Neste claro embate 2

A interpretação de que uma prática é nociva e de que práticas nocivas devem ser combatidas, por exemplo, pode nos levar à conclusão de que a interpretação de uma prática como nociva necessariamente nos levaria à conclusão pela necessidade de seu combate.

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de forças políticas em um processo jurídico que, apesar de técnico, possui forte carga política-valorativa, um principais pontos de controvérsia foi a possibilidade (ou não) de se enquadrar atos praticados pela presidente no conceito de "realização de operação crédito com banco federal", o que, se viável, faria com que esta pudesse ser responsabilizada pelos atos que passaram a ser chamados, vulgarmente, de "pedaladas fiscais". Especificamente em relação a esses atos, a denúncia contra a presidente se pautou em interpretação específica do seguinte artigo da Lei Complementar no 101, também chamada de Lei da Responsabilidade Fiscal:

Art. 36. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.

O ponto controverso é, justamente, quais tipos de atos poderiam ou não ser considerados como "operações de crédito". Quando um empréstimo é tomado junto a uma instituição financeira, seu beneficiário se compromete a devolver a mesma quantia após determinado período de tempo, e, como remuneração pelo direito de uso deste valor, realiza o pagamento de juros à instituição de crédito no momento da devolução. Da mesma forma, a contração de uma dívida qualquer com instituições financeiras obriga o contraente a lhe entregar determinada quantia monetária na data do vencimento desta, e, se o pagamento não for feito na ocasião do vencimento, esta pessoa deverá pagar, além de eventuais multas e encargos legais, o valor que deveria ter pago no vencimento mais os juros, uma vez que o contraente, ao não devolver o valor, está usufruindo de valores monetários que deveriam ter sido transferidos para a instituição financeira. Em ambos os casos, valores pertencentes à instituição está estão nas mãos de outrem, dando azo à remuneração por juros. Surge, portanto, a questão: uma vez que quantias significativas de dinheiro, que deveriam ser repassadas pela Governo Federal à Caixa Econômica Federal (mantida pelo próprio governo, apesar de detentora de certa autonomia), foram reiteradamente retidas e, posteriormente, repassadas com atraso para o banco, poderia a presidente ser acusada de realizar operação de crédito junto ao banco, já que o efeito econômico das duas medidas é o mesmo e, em ambos os casos, o Governo possuía em caixa quantia que deveriam estar no caixa da instituição financeira? Ou deveríamos interpretar o termo "operação de crédito" restritivamente, de forma que o ato só seria criminoso se os valores não repassados tivessem sido emprestados diretamente pela Caixa à União? Trata-se, claramente, de uma controvérsia interpretativa, que parece ser derivada de duas concepções - mutuamente excludentes - do que poderia ou não ser considerado, para fins legais, uma "operação de crédito", sendo 8

uma das interpretações oferecidas (naturalmente, a que atualmente é defendida pelos defensores da presidente) restritiva, implicando na inocorrência de quaisquer crimes de responsabilidade por parte da presidente, e a outra (naturalmente, a que é favorecida por seus opositores) mais ampla, que implicaria na necessidade de imputação do crime de responsabilidade à presidente. Portanto, nos termos das definições que apresentamos anteriormente, temos que, no contexto legal, as seguintes interpretações podem ser oferecidas para o termo "operação de crédito":

∃𝑥𝐶𝑥 : 𝐸𝑥 ∃𝑥𝐶𝑥 : 𝐸𝑥 ∨ 𝐴𝑥

Onde "C" representa "operação de crédito", "E" representa "Empréstimo" e "A" representa "Atraso nos repasses". As duas interpretações teriam efeitos completamente diferentes caso fossem aplicadas a esta situação específica, já que apenas 𝐴𝑥 foi praticado por Dilma. Caso estendêssemos o domínio de nosso modelo para modelar não só as diferentes interpretações do termo "operação de crédito", mas também as diferentes consequências jurídicas da adoção de cada um, poderíamos, mais uma vez, utilizar o modelo apresentado anteriormente:

∃𝑥𝐶𝑥 : 𝐸𝑥; ∀𝑦(𝑇 𝑦 → 𝐶𝑦) ∃𝑥𝐶𝑥 : 𝐸𝑥 ∨ 𝐴𝑥; ∀𝑦(𝑇 𝑦 ∨ 𝐷𝑦 → (𝐶𝑦))

Onde "T" simboliza "tomou empréstimo", "D" simboliza "atrasou os repasses" e, por fim, "C" simboliza "cometeu crime de responsabilidade". Na primeira interpretação, não se pode afirmar que Dilma cometeu crime de responsabilidade com base neste artigo, já que apenas um empréstimo configuraria a situação criminosa; na segunda, Dilma cometeu crime de responsabilidade, já que o atraso nos repasses também é suficiente para a configuração do crime, não sendo necessária a existência de um empréstimo direto.

3 Conclusão As dificuldades de modelagem do Direito, seja em Lógica de Primeira Ordem ou em qualquer outra linguagem formal, parecem ser derivadas, ao 9

mesmo tempo, tanto das dificuldades impostas à modelagem a própria linguagem natural quanto da aparente necessidade de, durante este tipo de trabalho, adequar a linguagem lógica aplicada ao modo específico de atuação dos raciocínio de caráter jurídico. As duas camadas de complexidade se acumulam, fazendo com que a modelagem e a representação formal se tornem ainda mais difíceis. Ainda assim, a complexidade não parece impedir que alguns padrões úteis venham a emergir neste contexto - tanto na camada linguística do problema, já que é justamente a estabilidade que permite aos seres humanos a utilização da linguagem como meio habitual de comunicação, como em sua camada jurídica, já que este é, em última análise, apenas uma modalidade específica de manipulação (e uso) das ferramentas presentes na linguagem cotidiana. Mesmo que não possamos vir a capturar absolutamente todas as minúcias desta espécie de fenômeno nas representações de uma linguagem formal ou, ainda, analisar todos os seus aspectos sob o prisma de um banco de dados, a complementação da linguagem natural com as linguagens formais certamente fornece uma perspectiva única sobre o modo interno de funcionamento destes sistemas. Deste modo, o emprego de esforços na busca e no desenvolvimento de cálculos dedutivos que se prestem a decifrar sentidos jurídicos, ainda que efetivamente consista na constante busca pelo aperfeiçoamento de algo intrinsecamente imperfeito, certamente se mostrará útil para aqueles que manipulam o Direito ou se prestam a estudá-lo - o que talvez já seja suficiente para, por si só, justificar a necessidade da dedicação de esforços nesse sentido.

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