Lógicas de desafiar a mudança nas \" periferias \" do espaço urbano em (i)mobilização: representar Zona Ponta, Praia, Cabo Verde

June 6, 2017 | Autor: Redy Wilson Lima | Categoria: Youth Studies, Hip-Hop/Rap, Etnography, Cape Verde
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Lógicas de desafiar a mudança nas “periferias” do espaço urbano em (i)mobilização: representar Zona Ponta, Praia, Cabo Verde1 Redy Wilson Lima2 Resumo3: Nos inícios dos anos de 1990, com a vaga de democratização em Cabo Verde, emerge no espaço social urbano novas formas de sociabilidades juvenis e a cultura hip-hop, mais concretamente o rap, proporcionou aos jovens novas possibilidades de protagonismo social, tornando-se num importante veículo de expressão e de protesto. Este artigo pretende, por um lado, analisar a emergência de um movimento contestatário na cidade da Praia a partir das narrativas dos rappers da Zona Ponta, na cidade da Praia e, por outro, a partir da pesquisa etnográfica alargar o marco compreensivo de realidades subalternas ignoradas nas ciências sociais cabo-verdianas e no sistema político instituído.

Palavras-chave: rap, jovens, etnografia, Cabo Verde

Introdução. Rap como tema de estudo Apesar de ter notado a importância do rap em comunidades juvenis subalternas, em 2005, no âmbito da minha pesquisa para a conclusão do curso de licenciatura em sociologia, tocando a questão dos comportamentos delinquentes dos jovens de origem cabo-verdiana nos subúrbios de Lisboa, Portugal, o interesse em estudá-lo surgiu apenas cinco anos mais tarde. Em 2008, ao regressar definitivamente a Cabo Verde constatei que o rap se tinha tornado num instrumento de comunicação privilegiado dos jovens sem direito à palavra, num sistema sociopolítico e económico que os têm marginalizado.

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Este artigo é dedicado a Dudú Rodrigues, jovem irrequieto, apaixonado pela arte em todas as suas dimensões, com quem muito aprendi e a quem agradeço eternamente por ter-me mostrado o outro lado do hip-hop praiense. 2 Sociólogo. Doutorando no Programa de Estudos Urbanos pela FCSH-UNL/ISCTE-IUL, investigador colaborador do CEsA/ISEG-ULisboa e investigador associado ao Núcleo de Antropologia Visual da Bahia/UFBA. 3 Lima, R.W. (2015). “Lógicas de desafiar a mudança nas ‘periferias’ do espaço urbano em (i)mobilização: representar Zona Ponta, Praia, Cabo Verde”. In: Ferro, L; Raposo; O.; Gonçalves, R. (Orgs.), Expressões artísticas urbanas: etnografia e criatividade em espaços atlânticos. Rio de Janeiro: Mauad, p. 189-208.

Ela afirma que os jovens africanos encontram-se actualmente em ruptura com as elites intelectuais e líderes políticos, optando por uma linguagem cujo desenvolvimento obedece a uma lógica “informal”, num contexto onde a imaginação é poderosa e activa. Entendo o rap africano como fazendo parte dessa linguagem “subalterna”, constituindose como uma nova forma juvenil de afirmação identitária e de protesto oculto. […] é o reflexo da sociedade actual que se faz ouvir através da música da qual não se pode ignorar nem o estilo nem a mensagem pois aí encontramos as preocupações da vida quotidiana, as esperanças e as feridas, os medos, as necessidades e as aspirações de uma sociedade submetida às pressões de correntes portadoras de valores contraditórios (Ela, 2013 [1994], p. 25).

Concordando com Saucier (2011), o rap tornou-se na expressão cultural mais poderosa em África, por onde as velhas identidades africanas foram desconstruídas e/ou reconstruidas e, se para muitos jovens, ele tornou-se na voz de mudança e representação de um futuro de esperança e de unidade pan-africana, para alguns (Abu-Jamal, 2006) ele tem sido utlizado como uma espécie de soft power na propagação da ideologia e dominação modernista (norte-americana), assim como na exportação da misoginia e violência. O que constatei foi que tal como os gangues de rua, o rap poderia servir como uma lente com o qual podemos ler as contradições da actual sociedade caboverdiana. O meu primeiro contacto com o rap foi nos anos de 1990, no Liceu Domingos Ramos (LDR), na Praia. Antes, nos finais dos anos de 1980, na Praça Alexandre Albuquerque, no Plateau4, alguns jovens imitavam acrobacias do break dance do filme Breakin’, podendo esta época ser considerada como sendo a do primeiro contacto dos jovens praienses (e mindelenses5) com essa cultura urbana. É de realçar que já na altura ouviase tentativas de cantar rap ao som do beat box6, no entanto, só no início dos anos de 1990 é que comecei a tomar conhecimento de circulação no LDR de cassetes de rappers norte-americanos e a partir de 1993 era frequente ouvir falar de grupos de rappers locais a cantarem em língua cabo-verdiana. Os jogos escolares, que punham anualmente em competição os Liceus de todas as regiões do país estava pouco-a-pouco a se transformar 4

Bairro central da Praia, centro histórico, e durante os períodos colonial e do regime de partido único (1975-1991), o principal centro económico e administrativo do país. 5 Cabo Verde é um arquipélago constituído por 10 ilhas (Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal, Boa Vista, Maio, Santiago, Fogo e Brava) e as cidades da Praia (Santiago) e Mindelo (São Vicente) são os dois maiores centros urbanos. 6 Refere-se à percussão vocal do hip-hop, em que se reproduz sons de bateria com a boca.

num importante circuito de divulgação desse estilo de música, por um lado, e de dar visibilidade social a alguns grupos juvenis, por outro, e os jovens que começaram a adoptar a estética do hip-hop passaram a ser designados de yo7. A escolha do rap como tema de estudo aconteceu em 2010, por acaso, inicialmente devido à percepção da relevância do rap no contexto dos gangues de rua. Posteriormente, com a frequência das últimas sessões do Festival Hip Hop Konsienti (FHHK)8, percebi que para além do rap funcionar como uma nova forma de afirmação, de denúncia e um espaço por onde a África estava a ser “(re)descoberta”, como observa Dayrell (2002) no contexto brasileiro, a cultura hip-hop estava a proporcionar novas formas de socialização dos jovens, nas quais as sociabilidades produzidas ocupavam um lugar central. Após começar a estudar o rap percebi que a melhor forma de explorar as práticas culturais urbanas e “circuitos de jovens” na cidade (Magnani, 2007a), seria recorrer à etnografia urbana desenvolvida pelo Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo. Magnani (2012) utiliza como método de trabalho a perspectiva de perto e de dentro, centrando-se em “partes” ou “fragmentos” da cidade, ao invés do olhar de fora e de longe que toma a cidade como objecto. Tal como refere Cordeiro, a primeira abordagem abre novas formas de compreensão aprofundada do fenómeno urbano no seu conjunto, “tanto no que refere à pesquisa da dinâmica cultural como das formas de sociabilidade nas grandes cidades e metrópoles contemporâneas” (Cordeiro, 2010, p. 112). Com este artigo pretendo, por um lado, analisar a emergência de um movimento contestatário na cidade da Praia a partir das narrativas dos rappers da Zona Ponta e, por outro, a partir da pesquisa etnográfica alargar o marco compreensivo de realidades subalternas ignoradas nas ciências sociais cabo-verdianas e no sistema político instituído. “Etnografando” a cidade de perto e de dentro

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De yo, a associação do hip-hop com a violência e a apropriação da estética thug life de 2Pac, fez com que a geração hip-hop dos anos de 2000 começasse a ser designada de thugs. Igualmente, todos os membros de gangues de rua e jovens associados a comportamentos delinquentes passaram a ser designados dessa forma. 8 Com início em 2009, o evento organizado pelo grupo informal Djuntarti, liderado pelo artista plástico e activista sociocultural Dudú Rodrigues, visava mostrar o outro lado do hip-hop, na altura associado à violência dos gangues de rua.

Para Beaud e Weber o etnógrafo é o tipo de pesquisador que não se contenta com visões panorâmicas, nem se satisfaz com as categorias já existentes de descrição do mundo social (categorias estatísticas, categorias de pensamentos dominantes ou padronizados).

O etnógrafo reserva-se o direito de duvidar a priori das explicações já prontas da ordem social. Preocupa-se sempre com ir ver mais de perto a realidade social, livre para ir de encontro às visões oficiais, a opor-se às forças que impõem o respeito e o silêncio, àquelas que monopolizam o olhar sobre o mundo (Beaud e Weber, 2007, p. 11).

Quando comecei a intervir no espaço público, tendo como base as minhas “descobertas etnográficas”, pude constatar que, tal como afirmaram Beaud e Weber, o olhar etnográfico incomoda e causa mal-estar na medida em que mostra sem dissimulação as coisas e os homens tais como são. Várias vezes fui acusado de estar a incentivar a violência, ganhei a alcunha de professor thug, foi posta a circular rumores de que eu estava sob vigilância da Polícia Judiciária por ser um terrorista e que a minha prisão estaria por dias, fui considerado persona non grata em alguns sectores do governo, sociedade civil e academia, entre outras banalidades que deixo o desenvolvimento para outro espaço. A etnografia fornece um olhar de perto e de dentro, que nos permite observar e reconstruir, a partir de várias perspectivas, o ponto de vista dos sujeitos sociais e a sua visão do mundo. É uma forma especial de operar, que segundo Magnani,

o pesquisador entra em contacto com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte não para permanecer lá ou mesmo para explicar ou interpretar a lógica de sua visão de mundo, mas para, numa verdadeira relação de debate e troca, contrastar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento, ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente (Magnani, 2012: 264). Quem pesquisa não deve julgar nem condenar algo em nome de um ponto de vista “superior”, muito menos ter a pretensão de dar lições, como é prática comum de certos intelectuais orgânicos, que segundo Bourdieu, não sendo capazes “de colocar as suas mercadorias no mercado científico, onde a competição é difícil, iam fazer de intelectuais junto dos não-intelectuais, mesmo afirmando a inexistência do intelectual” (Bourdieu, 2002, p. 3). A função do pesquisador não é fazer profecias nem ensinar os outros a pensar. Ele deve escutar, pesquisar e inventar, no sentido de ajudar os grupos

(movimentos sociais, associações, comissões comunitárias, etc.) a aperfeiçoar suas práticas. Foi sob essa orientação bourdiana que associei-me a Dudú Rodrigues no início de 2010. A associação Djuntarti tinha cerca de cinco elementos base a trabalhar em regime de voluntariado e o segredo organizativo estava não só na capacidade de liderança do seu mentor, mas, sobretudo, no trabalho em rede, ligando activistas socioculturais de quase todos os bairros da cidade que partilhavam o gosto pelo hip-hop9. Autointitulando-se movimento cultural, a associação lutava para a independência cultural dos jovens e a palavra revolução era apresentada como um emblema. Tinham apoio institucional do Centro Cultural Francês (CCF) da Praia e sem qualquer apoio monetário conseguiram mobilizar jovens de praticamente todos os bairros da cidade e organizar oito espectáculos temáticos de hip-hop no CCF10. Foi também organizado uma marcha em homenagem a Amílcar Cabral11, no dia 20 de Janeiro de 2010, denominado “20 di Janeru: Manifestasom Kultural”. Essa actividade estava enquadrada numa programação mais vasta que incluía palestras de promoção da língua cabo-verdiana, intercâmbio cultural entre hip-hoppers e activistas da Praia e um grande espectáculo final na Praça Alexandre Albuquerque. A novidade foi a utilização de ferramentas audiovisuais como forma de luta. Na marcha de Cabral, por exemplo, pediu-se aos participantes que captassem imagens do evento para serem posteriormente editados e divulgados nos media formais e informais12. Para além das actividades acima referidas, foram produzidas micro reportagens de rua sobre o quotidiano dos rappers e de seus bairros, visando não só dar voz à rua, como mapear a nova “paisagem sonora” (Mendonça, 2009) da cidade.

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Poder-se-á considerar este formato como o embrião que fez surgir três anos mais tarde o movimento denominado Korrenti Ativizta, liderado pelo activista social João José Monteiro aka UV, um dos participantes no evento organizado pelo Djuntarti, se bem que com outra filosofia, organização e recursos. 10 Não quero com isto dizer que existia apenas este espaço. Vários promotores culturais organizaram nesse período concursos de hip-hop, embora não de forma tão bem estruturada como o fez Djuntarti. Em Junho de 2009, por exemplo, projectou-se um grande espectáculo de hip-hop, na Praia e Assomada, com vários rappers e b-boys da ilha de Santiago, denominado “Hip-Hop Sem Guerra”, visando com isso pôr fim aos desentendimentos entre rappers e mostrar o lado positivo da cultura. Por falta de conhecimento da realidade “hip-hopiana” da Praia, não se fez um trabalho de base e o resultado foi o tiroteio surgido entre os gangues Wolf Gang, Boston e Karaka. 11 Político cabo-verdiano da “geração nacionalista” que com o slogan “pensar para agir, agir para poder pensar” comandou a luta de libertação dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde ante o jugo colonial português. 12 Vídeo do resultado aqui: http://www.youtube.com/watch?v=joj2B3ejfnk.

Através do Google Maps fez-se o mapeamento dos mini-estúdios existentes na Praia, mostrando que de facto existia um “circuito do hip-hop” na cidade. Perante esta descoberta, a mobilização da metodologia de trabalho desenvolvido por Magnani mostrava-se pertinente. Este autor, ambicionando transcender as dinâmicas de bairro, privilegiou o trânsito dos jovens pela cidade como forma de apreender a criatividade no modo de apropriar o espaço público, criando cinco categorias “nativas” que denominou de “família de categorias”. Pedaço designa um tipo particular de sociabilidade e apropriação do espaço urbano intermediário entre a rua e a casa. Seria “o lugar dos colegas, dos chegados. Aqui não é preciso nenhuma interpelação: todos sabem quem são, de onde vêm, do que gostam e o que se pode ou não fazer” (Magnani, 2012, p. 89). Mancha designa uma área contígua do espaço urbano dotada de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam uma actividade ou prática predominante. Trajecto aplica-se a fluxos recorrentes no espaço mais abrangente da cidade e no interior das manchas urbanas, uma vez que as pessoas circulam, fazem suas escolhas entre várias opções. Pórtico é tomado como um espaço, um marco ou um vazio na paisagem urbana que configuram passagens. Por fim, circuito que serve para descrever práticas ou ofertas de serviços “em estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantém entre si uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários habituais” (Magnani, 2012, p. 97). Esta proposta metodológica possibilitava-me olhar a maneira como os hip-hoppers faziam a cidade. Com a categoria cidade bis, Agier (2011) nos mostra que a cidade é também produzida por quem a olha, a partir do ponto de vista das práticas, relações e representações dos citadinos. O pesquisador adquire um conjunto de conhecimentos sobre determinado espaço ou situação, mas tal conhecimento está em constante transformação. Com isto quero dizer que a certo ponto da pesquisa constatei que a cidade que lia através do olhar dos gangues de rua (Lima, 2012a), embora com vários pontos semelhantes, era ligeiramente diferente da cidade que me foi apresentada pelos rappers com que fui cruzando. Longe de querer forçar categorias criadas em outras latitudes como é costumeiro em Cabo Verde, encontrei tanto no estudo dos gangues de rua como no dos rappers categorias “nativas” que de certa forma se assemelham às encontradas na etnografia de Magnani (2012). Tanto um como outro são fenómenos globais e através de filmes e vídeos de músicas norte-americanos e novelas brasileiras muitas palavras usadas naqueles contextos acabam por incorporar o léxico linguístico cabo-verdiano,

enriquecendo-o. Como afirma Ela (2013 [1994]), quando a linguagem segue uma lógica informal, num contexto marginal em que a imaginação é poderosa e activa, novos termos surgem diariamente. Na Praia, aquilo que Magnani (2012) designa por pedaço encontrei correspondência no termo block, actualização do termo ponta, popularizado pelos rappers praienses através das músicas. Verifiquei que o termo é empregue pelos jovens “periféricos” quando referem a um espaço ocupado por vários grupos do bairro, servindo entre eles daquilo que Magnani (2007b) chama de “enlace”. Várias vezes deparei-me em karakas13 no block interagindo com diversos agrupamentos juvenis do bairro. Ao longo da etnografia fui descobrindo categorias “nativas” que abrem um campo de possibilidades para outras leituras não só da vida urbana praiense, mas da própria cidade. Termos como os já referidos block e karaka, bem como street, route, night ou gueto, são apenas alguns street language14 de entre outros tantos utilizados pelos jovens e apropriados por alguns adultos. São categorias que não obstante terem sido na sua maioria apropriadas em outros espaços geográficos, ganham novas roupagens e significados na Praia. O termo gueto, muito usual no seio desses agrupamentos e sobre o qual chamei a atenção num outro espaço (Lima, 2012a) pelo seu uso indiscriminado por algumas individualidades com pretensões académicas, tem algumas semelhanças com o termo paulistino quebrada, identificado nas pesquisas de iniciação científica e mestrado coordenadas por Magnani (2007b). Significa, por um lado, a desafiliação, as dificuldades inerentes à vida nos bairros pobres e, por outro, o reconhecimento, a identidade colectiva, simultaneamente estigmatizada e portadora de um certo orgulho de pertença, que rotula este ou aquele indivíduo de confiável ou não conforme o gueto a que pertence. Representar Zona Ponta, Ponta D’Água: jovens e contestação no espaço público É usual ouvirmos dizer que a sociedade cabo-verdiana encontra-se anestesiada. O índice de violência urbana é elevado, o narcotráfico faz vítimas, fala-se de corrupção generalizada, nepotismo e clientelismo, entre outros problemas sociais e, no entanto, reacções públicas de populações são poucas. 13

Nome dado a um tipo específico de convívio, organizado por jovens “periféricos” quer no bairro quer em zonas balneares da cidade, em que sob a manta de convívio testa-se a solidariedade comunitária e grupal. Os jovens situados no “centro” usam o termo xintada para designar algo parecido. 14 Actualmente são nove os elementos do hip-hop: break dancing, rapping, graffiti art, d-jing, beatboxing, street fashion, street language, street knowledge e street entrepreneurialism.

Scott (2013 [1992]) fala de infrapolítica para mostrar como os grupos dominados põe constantemente à prova os limites da dominação desafiando as suas fronteiras e travando uma luta de posições próxima da guerra de guerrilha. Em Cabo Verde, como qualquer outra sociedade com passado escravocrata e colonial, os grupos subordinados usam elaboradas forma de disfarce, criando a partir da sua experiência de sofrimento, um discurso oculto que representa uma crítica do poder expressa nas costas dos grupos dominadores. Esta atitude não escapa ao universo do rap cabo-verdiano, embora tenha encontrado no rap político (quer seja gangsta, street ou pan-africanista) algumas excepções. Pex e Hélio Batalha do Sindykatto de Guetto, jovens da Zona Ponta15, são alguns dos vários rappers e grupos da Praia que fazem do rap uma forma de participação sociopolítica e afirmação juvenil. Ponta D´Água, bairro localizado na parte nordeste da cidade, num dos maiores e mais altos planaltos da cidade, é considerado pela polícia como um dos mais “problemáticos16”. Califórnia e Bagdad17, duas subzonas que dividem o bairro de Ponta D’Água são os locais onde os jovens com quem convive passam a maior parte do seu tempo. Ficam situados num miradouro natural que possibilita ter uma visão alargada da cidade de cima para baixo, o que favorece aos gangues dessa zona controlarem os grupos rivais dos bairros considerados inimigos situados em baixo, bem como as movimentações da polícia. Em 2010, baseando nos dados do INE (2010), o concelho da Praia tinha 130.271 habitantes, 26,7% da população total e Ponta D’Água, com 8.682, era o terceiro bairro mais populoso da cidade (num total de 72 bairros), atrás dos bairros de Achada Santo António18 com 12.965 habitantes e Palmarejo19 com 12.037 habitantes.

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De 2011 a 2012 fiz etnografia neste bairro, tendo convivido com muitos rappers e membros de gangues de rua. A escolha de Pex e Hélio Batalha deve-se somente a sua ligação com o FHHK, espaço onde tive o primeiro contacto com os seus nomes. Sobre os outros rappers, na sua maioria estilo gangsta, deixo o desenvolvimento para outro lugar. 16 Em Janeiro de 2013 contabilizei neste bairro 12 gangues de rua em actividade (dos 92 existentes na cidade). Devido aos confrontos entre os gangues de rua da Praia, o bairro foi simbolicamente dividido em dois, dificultando a mobilidade dos jovens dentro do bairro. Para além das desavenças dos gangues do bairro, alguns grupos do bairro têm “guerras” abertas com gangues de bairros que o circundam (Vila Nova, Achada São Filipe, Achada Mato e Lém Cachorro). 17 Considerado um local “perigoso” devido às actividades de gangues de rua e de ser um posto de venda de drogas. 18 Neste bairro contabilizei em Janeiro de 2013, 15 gangues de rua em actividade, constituindo-se no bairro com o maior número de gangues de rua na Praia (e em Cabo Verde).

Na última edição do FHHP, em Maio de 2010, conheci Pex, jovem residente nesse gueto, considerado por muitos, o expoente máximo do rap estilo street que se faz na Praia. Numa tarde de Sábado, no início de verão de 2011, encontrei-o solidarizando com os seus niggaz20 no seu block. Ele acredita que o seu papel no bairro é representar as populações sem voz e relatar no microfone o quotidiano das pessoas, sobretudo jovens, marginalizadas pelo sistema.

O meu rap é vida. E a vida pode ser boa ou má. O meu rap não é só sobre coisas boas. Tem também coisas más, porque eu canto aquilo que vejo. Não posso cantar sobre aquilo que não vejo ou que não reflicto. Na vida há coisas boas e coisas más e nós temos a possibilidade de escolher aquilo que queremos para nós. O meu rap é isso, mostro-te o bom e o mau e cabe a ti escolher aquilo que queres. É esse o meu rap, a realidade [Pex, entrevista concedida em Junho de 2011].

Com “Jornal de Rua” Pex descreve a realidade da Praia visto pelos olhos dos da sua geração e de seu gueto. Colocando-se no papel de um jornalista cidadão, ironicamente toca na questão da estratificação social e nas relações partidas existentes entre os vários grupos sociais que habitam os espaços hierarquizados e hierarquizantes da cidade.

N staba xintadu la na kaza sem nada fazi/N subi riba na zona pan tenta distrai/N kre fazeba un son ma nada na kabesa/N para na paraji ta spera otukaru passa/N panha otukaru n tra papel n ba ta skrebi/N txeka putus na rua sem nada fazi/N ba ta intendi mo ki kasu dja aumenta/N txiga na IFH nada pa kumenta/Putus dentu kaza es tem ZAP ku playstation ke pes seka/La lus ka ta bai na rua e ska ta sai/Ês ka ta bai xafaris ês tem tudu ki senpri ês kiz/Zona pikinoti ma ruti diferenti diskriminason susial/Tudu alguen sta odjal ma ninguen ka kre mudal/N sta li pan rilatal n sta spera ma bu ta arkival […] N txiga na Plateau n kontinua ba ta skrevi/N txeka kuzas ki ti inda n ka 19

Neste outro bairro contabilizei, também em Janeiro de 2013, dois gangues de rua, situados nas subzonas pobres (Casa Lata e Monte Vermelho) que circundam a malha “elitista” do bairro, designados num outro lugar (Lima, 2010) de funcos contemporâneos da cidade. 20 Expressão inicialmente muito utilizada pelos rappers e membros de gangues de rua, querendo ressaltar a irmandade existente entre eles. Hoje ela foi substituída pela expressão cousin, querendo significar a mesma coisa. É de se referir que para esta substituição muito contribui o trabalho de consciencialização negra levado a cabo pelo colectivo Ra-Teknolojia, liderado por Jorge Andrade, um dos que mais tem influenciado, através da rádio e de palestras semanais em vários pontos de Santiago, os jovens em Cabo Verde a adoptar o pensamento afrocêntrico contra o pensamento ideológico eurocêntrico dominante nas ilhas.

pirsebi/Mindigus detadu na porta di adventistas/Tudu alguen ta ignoras pa mas es da na vista/Riba di paseiu bendederas na djobi vida/Kori di fiscal dja torna sês rotina/Dinheru ka sta ma djobi so karons ki dentu Praia sta roda/Invista na farinha dja ka torna guentis paderus/Pa kel kin txeka n txiga un konkluzon/Ken ki tenel tenel ken ki ka teni disgadja [Estava sentado em casa sem fazer nada/Saí na rua tentando

distrair/Queria

escrever

uma

música

mas

não

conseguia/Parei-me na paragem à espera do autocarro/Apanhei o autocarro tirei um papel e fui escrevendo/Vi crianças na rua sem nada por fazer/Fui entendendo como os assaltos aumentaram/Cheguei no IFH21 nada a comentar/Putos dentro da casa com ZAP (TV a cabo) e playstation para jogarem/Ali não falta luz e na rua não saem/Não vão aos chafarizes/Tem tudo que sempre quiseram/Zona pequena mas routes diferentes e discriminação social/Todos sabem disso mas ninguém a quer mudar/Estou aqui para a relatar espero que o arquivas […] Cheguei ao Plateau e continuei a escrever/Reparei coisas que não consegui

perceber/Mendigos

deitados

na

porta

da

Igreja

Adventista/Todos os ignora por mais que dêem nas vistas/Vendedeiras em busca de sobrevivência vendem em cima dos passeios/Fugir dos fiscais tornou-se numa rotina/Não há dinheiro mas são muitos os automóveis de luxo a circular na Praia/Investir na farinha fez de muita gente padeiro (alusão ao tráfico de droga)/Do que vejo chego a uma conclusão/Quem tem vive bem e quem não tem que se desenrasque] (Pex, 2009).

A desigualdade social e a pobreza, resultado dos processos excludentes da sociedade cabo-verdiana, têm sido alguns dos temas preferidos de muitos rappers praienses. Alguns autores (Roque e Cardoso 2008, 2012; Lima 2010, 2011, 2012a; Bordonaro 2012; Cardoso 2012) têm defendido que o acto de violência colectiva despontada na Praia, nos anos de 2000, tem como raiz a desigualdade social e a exclusão, na medida em que “a violência surge associada a uma procura de bens simbólicos, de possibilidades de existência social” (Roque e Cardoso, 2012, p. 294), e não propriamente derivado da pobreza extrema.

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Nome como é conhecido os condomínios construídos pela empresa semipública Imobiliária, Fundiária e Habitat, S.A., apropriados pela classe média e média alta praiense.

Para Ela, devido ao sentimento de desespero de muitos jovens africanos, o risco de se desenvolver uma cultura de violência e de participarem em motins urbanos é elevado. Contudo, prossegue o autor, à la limite, no irromper da cidade, esses mesmos jovens “têm tendência para fazer dela um autêntico lugar de inovação social por meio de linguagens das quais se pressente as implicações nas culturas urbanas em gestação” (Ela, 2013 [1994], p. 26). Assim como perspectivou Ela, em Cabo Verde, particularmente na Praia, muitos jovens ao invés de pegarem em pedras, armam-se com microfones “para denunciar a desordem urbana, a sujeira omnipresente e o lixo que se acumula numa sociedade mal gerida e que lhes bate com a porta na cara” (Idem). Uma análise diacrónica dos acontecimentos juvenis no contexto urbano cabo-verdiano indicia que a abertura democrática propiciou ambas as possibilidades inventariadas por este autor. Surgiu espaços marginais fora das lógicas de controlo institucional, regulamentos comunitários e vigilância estatal, proporcionando ao mesmo tempo geografias de delinquência e de resistências (Diouf, 2003). Dito de outra forma, os jovens “periféricos” socializados no contexto democrático usam tanto a violência quanto o rap como forma de protesto contra a sua condição social. Em relação à necessidade de união dessas duas formas de protesto, com vista a combater o sistema que, no entender desses jovens, encontra-se corrompida e os marginaliza, Pex diz o seguinte:

Se estiveres revoltado com a sociedade não é necessário partires para a violência. Tens é de tentar mostrar que és uma pessoa inteligente através do teu rap e ao mesmo tempo intervir na sociedade. Acho que o importante é os rapazes que estão na street a viver a cena do thug life entenderem que nós como rappers somos também políticos. Não estamos numa eleição mas através da nossa inteligência podemos cativar as pessoas e mostrá-las que o nosso melhor caminho de fazêlos entender que somos capazes não é através da violência contra nossos irmãos. O nosso inimigo se encontra do outro lado. É através do knowledge que chegamos lá. Conseguirmos mobilizar todo o gueto e coloca-lo do nosso lado. Temos é de nos unir. Eles são quem têm o poder na mão e se os pressionarmos poderão fazer algo por nós, arranjando alternativas para os jovens daqui [Pex, entrevista concedida em Junho de 2011].

A busca de união entre os vários grupos rappers existente na Praia tem sido uma luta constante. Pina (2013), analisando os dados do Afrobarometer, repara que os caboverdianos apresentam uma desconfiança social generalizada, uma vez que 94% dos pesquisados afirmam que o relacionamento com os outros cabo-verdianos inspira

cuidado. Sendo assim, para este autor, as possibilidades de ocorrência de mobilização de acções colectivas muito alargadas é precária, tornando propício o surgimento de microgrupos ou, no caso juvenil, de várias tribos urbanas (Lima, 2011). Inspirados nos políticos e intelectuais revolucionários africanos e movimentos negros norte-americanos, os rappers da Zona Ponta, bem como alguns rappers de outros bairros, usam o rap como forma de mobilização política. Na música “Disakato”, Pex junta a sua voz a Sindykatto de Guetto para apelar à mobilização juvenil contra a burguesia do poder, considerando-se simbolicamente um terrorista, tentando com isso invocar uma revolução, cujo objectivo seria libertar o povo das corporações neocoloniais em conluio com os dirigentes nacionais. Varela defende a ideia de que foi uma pequena elite burguesa, com ambição de poder, produzida pela administração pública colonial, que mais tarde veio liderar a luta pela libertação dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde que tornou-se governante no período pós-independente, sem no entanto romper em toda a profundidade com a lógica colonial herdada, visto que tinham feito parte dela. Através da autodenominação dos melhores “filhos da terra”, este autor argumenta que “continuaram a utilizar a estrutura oficial estatal para tentar manter outros grupos sociais à margem da partilha do poder” (Varela, 2013b, p. 190). Mbembe (2013) apresenta evidências que sustentam a ideia de que os regimes pós-coloniais têm melhorado as estratégias de administração colonial, tornando-a mais segmentada e autoritária. Nos anos de 1990, propalou-se uma nova narrativa de libertação popular, dessa vez legitimada pelos “democratas”, a partir da ideia de terem resgatado a pátria do totalitarismo da esquerda comunista e instaurado um “verdadeiro” Estado Democrático (Lima, 2012b). Contudo, como bem lembra Évora (2004), a classe dirigente dos novos libertadores faziam parte dessa pequena elite burguesa e chegaram a ocupar postos de confiança no regime de Partido Único, tendo por isso herdado a lógica autoritária do regime anterior. Ferreira (2004), analisando o sector da comunicação social nos anos de 1990, deixa essa ideia e afirma no final do seu escrito que os meses iniciais após a mudança política de 2001 indicavam a continuidade política com a época anterior. Trinta e nove anos depois da independência e vinte e quatro anos depois da democracia liberal, o discurso classista, a questão da raça, o apelo a uma segunda libertação popular e à reafricanização dos espíritos é tema recorrente na narrativa do rap feito nos últimos anos em Cabo Verde. A explicação dessa repentina (re)consciencialização juvenil, que é um exercício que não cabe aqui, para além da influência de Jorge Andrade, assunto

explorado de forma provisória num outro lugar (Barros e Lima, 2012), deve-se, num primeiro momento, à descoberta da estética politizada do gangsta rap de 2PAC22. Ela tornou visível o mal-estar urbano provocado pela ideologia neoliberal e proporcionou aos jovens a possibilidade de reformular as suas críticas, na medida em que se encontravam numa situação de desespero e desilusão com a governação (Lima, 2012b), por um lado, derivado da falência do projecto nacionalista de desenvolvimento manifestado na crise económica e ajustamento ideológico (Diouf, 2003) e, por outro, perante os altos índices de desemprego e desigualdade social (INE 2000, 2010). Ao invés de continuar o legado de Cabral, Varela (2013) aventa que a elite burguesa cabo-verdiana, pela razão exposta em cima, optou por dar seguimento à lógica excludente do colonialismo, tendo acontecido o mesmo nos anos de 1990 (Lima, 2012b). Este facto explica a necessidade dessa nova geração, em processo de indigenização, pretender continuar Cabral, rotulando os seus camaradas de luta de traidores (Barros e Lima, 2012), procurando assim chegar a o que chamam de “verdadeira” revolução. Quando no mês de Julho de 2011, num comício do candidato apoiado pelo partido que suporta o governo às presidenciais, José Maria Neves, Primeiro-Ministro e Presidente do PAICV23, afirmou24 que Cabral tinha sido assassinado pelos dirigentes do PAIGC25, os rappers da Zona Ponta reagiram com a música “Cabralistas (Wake Up)”:

Mas fasil duminanu si nu sta divididu/Mas fasil dominanu si nu sta iludidu/Prosedi ses diskursus ku palavras difisil/Ku promessas invisível nhos ganansia e visível/Sakrifika nôs irmon pamodi sedi di puder […] E dividi pa dumina/Verdi kontra amarelu nu sta mesti sai di partidu/Pulisia traz di bandidu ma ês ki pegadu ku kilu/I dentu nha zona manu sta tudu divididu [É mais fácil dominar-nos se estivermos divididos/É mais fácil dominar-nos se estivermos iludidos/Procedem os seus discursos com palavras difíceis/Com promessas invisíveis mas a ganância é visível/Sacrificando os nossos irmãos por causa da sede de poder […] É dividir para dominar/Verdes (oposição) contra amarelos (governo), precisamos sair da lógica dos partidos/Polícia 22

Rapper e actor controverso americano nascido na zona Este de Harlem, Nova Iorque. Filho de pais exBlack Panther Party, viveu com o padrasto, igualmente, um ex-membro desse movimento. Nas suas letras falava do nacionalismo negro, igualdade e liberdade. Criou o acrónimo THUG LIFE, usado como emblema na contestação do sistema social e racial americano. Foi assassinado em 1996, por um atirador desconhecido. 23 Partido Africano da Independência de Cabo Verde. Ala cabo-verdiana do partido fundado por Cabral após o Golpe de Estado de 1980, que pôs fim ao sonho pan-africano de união entre os dois países. 24 Estas afirmações surgiram na sequência da luta interna do PAICV, que acabou por dividir o partido em duas alas durante essas eleições. 25 Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde, fundado por Amílcar Cabral em 1956.

atrás de bandidos mas os quilos (alusão à cocaína) foram encontrados com os polícias/E na minha zona os manos encontram-se divididos] (Pex; Rabelado Lopi; Hélio Batalha, 2013).

Na mesma linha de “Disakato”, esta música radicaliza ainda mais o discurso, colocando ênfase na necessidade de união entre guetos, rappers e gangues de rua, apresentando-se como cabralistas, logo, continuadores do projecto de Cabral. Iniciam a música com a afirmação de Neves para depois condená-lo e apelar os cabo-verdianos a acordarem e a mobilizar para pôr fim ao que chamam de “pesadelo”. O desconhecimento da história da resistência negra e a mentalidade escrava dos jovens são preocupações que aparecem nesta narrativa, razões entendidas como estando na base na dificuldade de mobilização juvenil em Cabo Verde fora das lógicas partidárias26. Antes, em 2011, Hélio Batalha através dos Sindykatto de Guetto, apresentando-se como representante do povo e uma versão cabo-verdiana de Azagaia27, juntou-se a GPI para gravarem “Golpe de Estado” num mixtape com o mesmo nome. Na introdução da música ouve-se um curto discurso de Amílcar Cabral a incentivar as tropas para a luta:

Nu sta fartu di promesa mal kunpridu/Dimagugia stanpadu na kada kunprumisu/Di abuzu di puder ki sta doma povu/Pa falta di rispetu na limiti di guetu/Nu sta fartu di diskursu dikoradu/Enkuantu povu ta sufri sem nada poi na pratu/País di klasi media ka konxi sufrimentu/Jovens ta entra na krimi pamodi falta di inpregu/Favela fabrika di monstru/Politika pa joven fadja nhôs ta dánu disgostu/Ali e ka Palmareju ali na guetu/Polisia ta shoka dipôs ta pidi kel dukumentu/Preokupadu ku imaji internacional/Bon governason na padron di FMI i di Banku Mundial [Estamos fartos de promessas mal cumpridas/Demagogia estampada em cada compromisso/De abuso de poder a domar o povo/Falta de respeito no limite do gueto/Estamos fartos de discursos decorados/Enquanto o povo sofre sem nada para colocar no prato/País de classe média não conhece sofrimento/Jovens entram no crime por falta de emprego/Favela fábrica de monstros/As políticas para jovens falharam e vocês dão desgosto/Aqui não é Palmarejo, aqui é gueto/Polícia agride e depois pede documento/Preocupado com a imagem internacional/Boa governação nos padrões do FMI e Banco Mundial] (Sindykatto de Guetto; GPI, 2011).

Assim como Pex, Hélio Batalha representa Zona Ponta e é um dos muitos rappers na Praia influenciado num determinado período da sua vida musical por Jorge Andrade, o responsável pela mudança do nome do grupo Timberland para Sindykatto de Guetto. 26

Sobre este assunto ver Lima (2012b). Rapper revolucionário moçambicano, considerado como um dos incitadores naquilo que ficou conhecido como a “Revolta do Pão”, em Setembro de 2010, em Moçambique. 27

Uma das críticas que recebemos no início foi de que cantávamos apenas sobre Ponta D’Água. Em todas as músicas falávamos Zona Ponta no final, no início ou no meio. Em qualquer lugar que íamos ao ouvirem as nossas letras identificavam-nos logo como os rapazes de Ponta D’Água. […] Os temas da minha música abarcam os problemas do meu bairro. Pressionar o governo para dar mais atenção à comunidade [Hélio Batalha, entrevista concedida em Agosto de 2011].

Após o mixtape de 2011 como Sindykatto de Guetto, em 2012, lança o álbum denominado “Golpe de Estado II”, assinando o próprio nome28, com narrativas mais corrosivas e posicionando-se como cabralista. Ao perguntá-lo porquê Cabral, a resposta foi:

Poderia falar de Nelson Mandela, Bem Bella, Agostinho Neto, mas temos é de falar de Cabral. Foi ele quem lutou pela nossa independência, que fez a luta armada e deu a cara na ONU. Há um livro escrito por Cabral com muitos tópicos sobre os objectivos a seguir depois da independência. Quando hoje olhas para este país, vês coisas diferentes… e quando trazemos Cabral para a cena do rap, o objectivo é mostrar aos políticos que estão no governo a real essência da igualdade, liberdade e fraternidade, que é que o povo precisa [Hélio Batalha, entrevista concedida em Agosto de 2011].

Com “Golpe de Estado II” pretende, para além de apelar à mobilização popular, chamar a atenção dos jovens da sua comunidade para a necessidade de um golpe de estado mental, em que a música “Nu Korda Soldadus”, em parceria com o rapper mindelense 4ARTK, é elucidativo.

PAICV ku MPD dividi kontingenti/Tenpu Kanpanha ya joven rostu kontenti/Dipôs kanpanha passa nôs nomi e dilinkuenti/Dadu dinheru pa votu kunpradu makarov/Kel makarov ki na strret sta da kasubodi/Matadu un matadu doz ma ninguen ka parsi/Matadu trez ninguenka parsi nen e ska sta parsi/Prublema e ka di sez moda ELECTRA/Si nu mata kunpanheru e nôs ki sta ta koka/Nha manu korda konsiensializa/Nôs tudu e irmon nu korda i nu infrenta vida [O PAICV e o MPD dividiram o contingente/Nas campanhas eleitorais recebem-nos com o sorriso na cara/Findo a campanha somos considerados delinquentes/Deram dinheiro para comprar votos foram compramos makarov (uma marca de arma)/O mesmo makavov que serve para assaltar nas ruas/Matou-se uma vez matou-se duas vezes mas ninguém foi culpabilizado/Matou-se pela terceira vez e ninguém foi culpabilizado de novo e nem nunca o culpado aparecerá/O problema não é deles assim como a ELECTRA (empresa responsável 28

Inicialmente um duo, Sindikatto de Guetto acabou por ser uma espécie de nome artístico deste rapper, com a saída do outro elemento.

pela distribuição da energia eléctrica e água)/Se matarmo-nos uns aos outros o problema é nosso/Irmão acorda e consciencializa-te/Somos todos irmãos, devemos acordar e enfrentar a vida] (Hélio Batalha; 4ARTK, 2012)

Notas finais. Rap, voz subalterna e o olhar etnográfico O rap cabo-verdiano simboliza a fala do subalterno e representa o “mundo de baixo”, uma nova forma de protesto juvenil oculto a que Ela (2013 [1994]) apela para que os cientistas sociais africanos estejam atentos. Este estilo musical é para muitos jovens “periféricos” com quem convivi, uma forma de libertação individual, um espaço por onde pode-se tecer discursos que noutras circunstâncias seria mais difícil produzi-las, o que o torna numa forma de insubordinação igual aquilo que Scott (2013 [1992]) chama de infrapolítica dos oprimidos. Em várias ocasiões tive a oportunidade de questioná-los sobre as narrativas mais corrosivas e directas, tendo reparado algum desconforto, chegando ao ponto nalgumas situações de desmarcarem-se da mesma, sobretudo nas músicas escritas em parceria. Mesmo negando a existência de um movimento hip-hop cabo-verdiano, o que é patente no apelo da maioria das músicas à união, e saber das rivalidades ideológicas e estéticas existentes nas várias “tribos” existentes na Praia em particular e em Cabo Verde no geral, reconheço que o rap conseguiu criar uma plataforma política (Moassab, 2011) devido à sua capacidade de sensibilização e consciencialização de uma grande parte da população juvenil para temas vários. Este facto faz com que sejam constantemente assediados pelas instituições de cariz assistencialistas, partidárias e de controlo, que devido à cultura de necessidade do cabo-verdiano (Lima, 2012b), poucos têm conseguido e sabido resistir. O rap tem sido enquadrado nos estudos culturais e em Cabo Verde, apesar de já haver estudos recentes de qualidade, em que na esteira da proposta teórica de Stuart Hall (Carvalho, 2001) reinterpreta-se temas como identidade e hibridismo cultural, embora faltando o carácter etnográfico, o estudo do rap (e de outras formas de arte e culturas urbanas) é ainda encarado como algo sem sentido e pouco académico. Este pensamento pode ser explicado em parte por Ela, quando aponta a falta de criatividade dos sociólogos e antropólogos africanos, que limitam-se “até agora29 a integrar na sua análise um relacionamento directo entre a cultura do colonizador e as culturas 29

Convém levar em conta que esta afirmação de Ela data de 1994.

autóctones” (Ela, 2013 [1994], p. 27), deixando escapar realidades inscritas na ordem do nosso quotidiano. Por outro lado, interpreto este pensamento a partir da premissa de que ainda as ciências sociais cabo-verdianas (e o projecto universitário) estejam cativas de formalismos coloniais (Varela, 2011) Varela é de opinião que não obstante o grande contributo dos investigadores que tem-se debruçado sobre as questões apontadas em cima na produção científica cabo-verdiana, metaforicamente sofrem de um “complexo electra-claridoso”.

Um aspecto que, pese embora ultrapassado há várias décadas, continua sub-repticiamente a ensombrar grande parte da intelligentsia cabo-verdiana, no país e na diáspora, bem como alguns investigadores mesmo internacionais que têm na realidade nacional o seu campo. É certo que, pelo teor consciente como ele vem sendo reproduzido por mais diversos agentes como: políticos, diplomatas, homens de cultura, economistas, etc., entranho seria, se ele não repercutisse também, no quotidiano do tecido social, preenchido, lato senso, pelo povo anónimo (Varela, 2013a, 511-512).

Por outro lado, na mesma linha, Varela (2013b) argumenta que a grande limitação destas obras prende-se com o facto de não conseguirem escapar do paradigma ocidental da ciência moderna, também tributária do colonialismo europeu. O estudo do rap cabo-verdiano a partir da perspectiva de perto e de dentro e enquadrada naquilo que Ela (2013 [1994]) chama de “antropologia do próximo”, a meu ver, proporciona evitar não só o tal complexo referido em cima como também buscar novas ferramentas analíticas com a finalidade de compreender essa nova geração que se encontra em processo de indigenização, que diariamente tem reclamado por uma segunda descolonização. Igualmente obriga os pesquisadores a mobilizarem o conceito raça que, segundo Furtado (2012), tem estado ausente nos estudos realizados por pesquisadores cabo-verdianos, escolha essa por vezes propositada, visto que uma boa parte da produção teórica e ensaísta sobre as ilhas situa-se ideologicamente no primado do povo singular, fruto da síntese cultural perfeita, ao invés de problematizar sobre o encontrão cultural (Varela, 2013b) havido após o achamento das ilhas. Sendo assim, enquadrar o estudo dos jovens subalternos em Cabo Verde tendo como referências teóricas apenas os famosos académicos pós-coloniais de língua inglesa de hoje pode ser um erro, uma vez que, como defende Carvalho (2001), ela foi forjada no ocidente e, por conseguinte, corre-se o risco de retomar os eixos de investigação privilegiados pelo discurso colonial (Ela, 2013 [1994]), despolitizando o sujeito

pesquisado (Varela, 2013b), ignorando desta feita as formas de resistência e discurso juvenil em processo de redefinição.

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