LOGOS EM LUTA: DIÁLOGO COMO ARTIFÍCIO LITERÁRIO NO QUARTO EVANGELHO

June 6, 2017 | Autor: Francikley Vito | Categoria: Bakhtin, Bíblia Como Literatura
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Por conta de regras para apontamento de bibliografia, os trabalhos do Prof. Dr. João Cesário Leonel Ferreira, importante pesquisador brasileiro da Bíblia como literatura, serão indicados em nosso trabalho ora como LEONEL, ora como FERREIRA. Esta mudança no apontamento se deve ao fato de que em seus primeiros trabalhos aparece o seu nome em sua forma completa; enquanto que e em trabalhos mais recentes o seu nome aparecer em sua forma breve, forma essa que acabou ficando mais conhecida entre seus leitores e entre os pesquisadores da área. Daí a necessidade de indicar os seus trabalhos de duas formas diferentes.

Apesar de conhecermos a terminologia adotada por Amora (1917, p.41) ao chamar a literatura em geral de "fato literário", preferimos adotar neste trabalho o termo "fenômeno" literário para seguir a nomenclatura indicada por Moisés (1987), Alter (2007), Candido (2000), Zabatiero e Leonel (2011) e Eagleton, (2001).
Quando fazemos menção a esses números, estamos considerando a tradição que chamamos de pós-reforma, isto é, a tradição que não considera como canônicos os livros chamados Apócrifos (escondidos, não inspirados). Na Bíblia de tradição Católica os livros do Antigo Testamento são contados em um número de quarenta e seis, visto que aquela tradição considera como canônicos os livros de Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruque.
Quando empregamos aqui a palavra leitor (es), o fazemos de maneira genérica, sem considerar as classificações que nos são apresentadas por Eco (1994) em seu excelente trabalho de classificação dos tipos de leitores. Portanto, o leitor aqui citado diz respeito a todo aquele que se aproxima do texto bíblico, seja ele religioso ou não.
Para Dodd (2003, p.345, 353) "A palavra logos tem uma série de significados extremamente extensas [...] nos interessa dois que os estóicos distinguem logos endiathetos e logos prophorikos – o logos na mente e o logos pronunciado – isto é, "pensamento" e "palavra". [...] O Quarto Evangelista usa o termo logos num sentido especial, para indicar a eterna verdade (aletheia) revelada aos homens por Deus – esta verdade enquanto expressa em palavras (remata), quer seja as da Escrituras, quer, mais especificamente, as palavras do Cristo. (grifos do autor). Para uma discussão mais completa sobre as implicações do termo Logos, ver Champlin (2014, p. 337-340).
Para discussões a esse respeito, ver trabalho doutoral de Ferreira (2006, p.93-95)
Diz o evangelista: "Tendo, pois, muitos empreendido pôr em ordem a narração dos fatos que entre nós se cumpriram, segundo nos transmitiram os mesmos que os presenciaram desde o princípio, e foram ministros da palavra,pareceu-me também a mim conveniente descrevê-los a ti, ó excelente Teófilo, por sua ordem, havendo-me já informado minuciosamente de tudo desde o princípio." (Lucas 1.1-3)
O texto diz: "Este é o discípulo que testifica destas coisas e as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro. Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem. Amém." (João 21.24-25)
"Os três primeiros evangelhos foram pela primeira vez chamados 'evangelhos sinóticos' por J. J. Griesbach, um estudioso da Bíblia de nacionalidade alemã. No final do século XVIII. O adjetivo 'sinótico' vem do grego [...] que significa 'ver em conjunto'. Griesbach escolheu a palavra devido ao alto grau de semelhança entre Mateus, Marcos e Lucas em suas apresentações do ministério de Jesus. Essa semelhança que envolve estrutura, conteúdo e enfoque, são visíveis mesmo ao leitor desatento." (CARSON; MOO; MORRIS, 2012, p.9)
Quando falamos em função kerygmática das narrativas dos evangelhos, nos deportamos ao Kerygma cristão que, nos dizeres de Ricouer (2008, p.50), "não é a interpretação de um texto, é, antes de tudo, o anuncio de uma pessoa [Jesus Cristo]. [...] Esse kerygma é em si expresso em testemunhos, em histórias, e em textos que contenham a primeira confissão de fé da comunidade."
A leitura sincrônica, uma leitura que privilegie o texto como ele se apresenta hoje, e literária de livros bíblicos pode se furtar de tais problemas, segundo Alter e Kermode (1997), apesar de não poder ignorá-las completemante. As pesquisas com respeito à autoria, local e data de escrita do Quarto Evangelhos podem ser consultadas em vários autores que se debruçaram sobre essas questões tais quais Hendriksen (2014, p. 13-43), Fabris e Maggioni (2006, p. 261-272), Carson (2007, p.69-95) e outros.
Deuteronômio 18.15 diz: "O Senhor teu Deus te levantará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis [...]". Esse texto tornou-se modelo e uma expectativa corrente entre aqueles que conheciam os escritos do Antigo Testamento e esperava o Messias, o profeta maior que Moisés.
O livro de Malaquias 4.4-5 diz: "Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor; E ele converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos a seus pais; para que eu não venha, e fira a terra com maldição."
Para fazer a divisão daquilo que chamamos de "blocos" adotamos em nosso trabalho a organização que nos é apresentada pela Bíblia do Peregrino (2011) em nota introdutória ao capítulo três do Quarto Evangelho (p. 2552), isto é feito por entendermos que essa divisão condiz com a construção narrativa corroborada pelo contexto da narrativa. A tradução usada para transcrição dos trechos bíblicos, como indicamos na introdução do trabalho, é a da Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista e atualizada. São Paulo: SBB, 1995. Salvo indicação em contrário. O uso desta tradução foi escolhida por respeitar os textos originais do grego e por ser uma tradução largamente conhecida e lida no Brasil entre os mais diversificados ramos de pessoas.
Para saber mais sobre o grupo dos fariseus, sugerimos a leitura do Vocabulário teológico do evangelho de São João (MATEO; BARRETO, 1989, p. 146-156), bem como Introdução ao Novo Testamento I (KOESTER, 2005, p. 239-242).
Falando a respeito dos fariseus o texto diz: "Chegando, pois, à Galiléia, os galileus o receberam, vistas todas as coisas que fizera em Jerusalém, no dia da festa; porque também eles tinham ido à festa." O texto esclarece que para o grupo dos fariseus, bem como para as pessoas da região da Galileia, o que chama a atenção a respeito de Jesus não é o que ele diz, mas o que ele fez; os "sinais", no dizer de Nicodemos e "as coisas", nas palavras do narrador joanino.
Em João 3.3 e 7 o termo que aparece em grego "ἄνωθεν" (anothen) é traduzido na maioria das Bíblias como "nascer de novo" (ARC). Note-se, por exemplo, a tradução da Bíblia do Peregrino onde aparece "nascer de novo", bem como a Bíblia de Jerusalém que traz em sua tradução "nascer de novo". Como nos explica Eagleton (2009, p. 198), é difícil entender o porquê das versões cristãs preferirem a tradução como "nascer de novo" do que da tradução "nascer de cima", uma vez que esta parece ser a tradução que melhor se adéqua ao contexto. Dodd (2003, p. 397) parece concorda com este ideia, apesar de resaltar que "é provável que o evangelista estivesse bem cônscio da ambiguidade, e desejasse sugerir ambas as significações". (DODD, 2003, p. 397, nota 370).
Mateos e Marreto (2011, p. 184) dizem que a figura do vento não poderia ser estranha para alguém como Nicodemos que, como representante do magistério judaico, não teria dificuldades para reconhecer nas palavras de Jesus ecos com as passagens bíblicas do Antigo Testamento como Jeremias 31.31 e Ezequiel 36.24 que falam de um derramamento do Espírito (vento) de Deus.
O que se tinha aqui eram mais ou menos trinta e cinco quilos de uma mistura que era usada para perfumar e preparar um corpo, de acordo com o costume judaico, para seu sepultamento. O que mostra que Nicodemos tinha a preocupação de dar a Jesus um sepultamento digno de acordo com o costume do seu povo.
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE





FRANCIKLEY VITO





LOGOS EM LUTA: DIÁLOGO COMO
ARTIFÍCIO LITERÁRIO NO QUARTO EVANGELHO













São Paulo
2015

V845L Vito, FrancikleyLogos em luta : diálogos como artifício literário no Quarto Evangelho. / Vito Francikley – 2015.150 f. : il. ; 30 cm.Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.Referências bibliográficas: f. 144 - 150.1. Biblical Narrative. 2. Fourth Gospel. 3. Bakhtin. 4. Dialogue. 5. Arena I. Título.CDD 226.5

V845L Vito, Francikley
Logos em luta : diálogos como artifício literário no Quarto Evangelho. / Vito Francikley – 2015.
150 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.
Referências bibliográficas: f. 144 - 150.

1. Biblical Narrative. 2. Fourth Gospel. 3. Bakhtin. 4. Dialogue. 5. Arena I. Título.

CDD 226.5


























FRANCIKLEY VITO









LOGOS EM LUTA: DIÁLOGO COMO
ARTIFÍCIO LITERÁRIO NO QUARTO EVANGELHO



Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como
requesito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras



Orientador: Prof. Dr. João Cesário Leonel Ferreira






São Paulo
2015

































A Deus, de quem sou; e
aos meus pais, Josefa Rosa Vito e
Francisco Vito Neto
AGRADECIMENTOS

Ao meu Deus que com e sem palavras me ensina a cada dia a viver ao Seu lado;

À Geilza de Carvalho Vito, minha esposa, pelo incentivo constante. Toda tarefa fica muito mais fácil ao saber que o seu amor está comigo.

Aos meus filhos, João Paulo e Marcos, pelo prazeroso e constante aprendizado que me proporcionam;

Aos meus pais, Francisco Vito Neto e Josefa Rosa Vito, a quem ofereço este trabalho. Eles conseguiram me ensinar sem palavras aquilo que palavra nenhuma poderia ensinar.

Aos amigos Eric Miranda e Tereza Módolo, Caramuru A. Francisco, Célia Lima, Osvaldo Teixeira, Willian Carvalho, Ginaldo Carvalho e Erinalda Carvalho e Givalda Carvalho pelo empenho abnegado de trabalharem em prol de um projeto que não era, necessariamente, o deles. Obrigado meus amigos.

Ao Prof. Dr. João Cesário Leonel Ferreira, pela atenção, cuidado e respeito que dedica àqueles que têm o privilégio de serem orientados por ele. Muito obrigado, professor Leonel, é sempre uma alegria poder aprender com o senhor em cada encontro.

Aos professores Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero, pela forma competente com que nos conduziram e nos ajudaram na feitura deste trabalho e por aceitarem o nosso convite para participarem das Bancas de qualificação e defesa.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na pessoa de sua coordenadora Profª. Drª Ana Lucia Trevisan, pela atenção e respeito que dedicam aos seus alunos.

À Universidade Presbiteriana Mackenzie e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES pelo apoio a esta pesquisa através do benéfico CAPES-PROSUP/Taxas.
































"A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e o outro."
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV)





RESUMO

O Quarto Evangelho bíblico – chamado de evangelho de João – é um dos evangelhos que mais receberam análises e comentários em toda a história da Igreja cristã. Neste trabalho intentamos fazer uma leitura do Quarto Evangelho pelo viés literário, considerando os elementos narrativos presentes nele. Entre os elementos presente na formação narrativa da obra, olharemos com maior atenção para o diálogo por entender que nele temos um artifício largamente usado pelo narrador com o intuito de fazer conhecida a identidade de Jesus como o Logos – a Palavra de Deus. Como suporte teórico nos serão úteis os trabalhos desenvolvidos por Robert Alter (2007) e, para uma teorização a respeito diálogo como artifício literário na construção da identidade de Jesus, usaremos a teoria do filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin (1895-1975). Em seu trabalho sobre discurso e linguagem, Bakhtin entendia que todo diálogo se constituía como uma "arena" em que ideologias contrárias eram postas em luta pelos interlocutores do diálogo. Para observarmos como isso acontece, analisaremos dois diálogos do Quarto Evangelho: O diálogo entre Jesus e Nicodemos (João 3) e o diálogo entre Jesus e uma Mulher Samaritana (João 4). Os dois trechos foram escolhidos porque neles os diálogos se constituem como a parte mais significativa da narrativa. Assim, o trabalho pretende analisar como a identidade de Jesus é construída pela luta entre ideologias contrárias na arena do diálogo.

Palavras-chave: Narrativa Bíblica. Quarto Evangelho. Bakhtin. Diálogo. Arena.












ABSTRACT

The fourth biblical Gospel – called Gospel according John – is one of the gospels that have more received analyzes and comments in the entire history of the Christian Church. In this work we intend to take a reading of the Fourth Gospel by the literary bias, considering the narrative elements present in it. Among the present elements in the narrative of the work training, we will look more closely for dialogue on the understanding that it have a device widely used by the narrator in order to make known the identity of Jesus as the Logos - the Word of God. As theoretical support will be useful in the work developed by Robert Alter (2007) and, for a theory about dialogue as a literary device to build the identity of Jesus, we will use the Mikhail Bakhtin's (1895-1975) philosophical theory of language. In his work on speech and language, Bakhtin understood that all dialogue constituted as an "arena" in which opposing ideologies were put into the fight for the dialogue partners. Observing how this happens, we will analyze two dialogues of the Fourth Gospel: The dialogue between Jesus and Nicodemus (John 3) and the dialogue between Jesus and a Samaritan woman (John 4). The two sections were chosen because in them the dialogues are constituted as the most significant part of the narrative. Thus, the study aims to examine the identity of Jesus is built by the struggle between opposing ideologies in dialogue arena.

Keywords: Biblical Narrative. Fourth Gospel. Bakhtin. Dialogue. Arena.










SUMÁRIO


I. INTRODUÇÃO 12

II. BÍBLIA COMO OBRA LITERÁRIA 26

2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEXTO LITERÁRIO 26
2.1.1 Considerações sobre o texto bíblico 26
2.1.2 O texto literário 29
2.1.3 Subjetividade do texto literário 32

2.2 APROXIMAÇÕES LITERÁRIAS DA BÍBLIA 38
2.2.1 A Bíblia como literatura 39
2.2.2 Outros olhares na história 42
2.2.3 Tomada efetiva da Bíblia como literatura 43

2.3 QUARTO EVANGELHO COMO LITERATURA 49
2.3.1 O evangelho como gênero textual 50
2.3.2 Leituras do Quarto Evangelho 56
2.3.3 O narrador e sua história 62

III. DIÁLOGO COMO ARTIFÍCIO LITERÁRIO 72

3.1 ARTIFÍCIOS EM NARRATIVAS 72
3.1.1 Possibilidade dos artifícios 73
3.1.2 Artifícios literários 75
3.1.3 Para uma conceituação de diálogo 79

3.2 FUNÇÃO DO DIÁLOGO EM NARRATIVAS BÍBLICAS 82
3.2.1 Diálogo em narrativas bíblicas 82
3.2.2 Características do diálogo em narrativas bíblicas 86
3.2.3 Um exemplo preliminar 88


3.3 BAKHTIN: "TECIDO DE MUITAS VOZES" 95
3.3.1 Uma aproximação biográfica 96
3.3.2 Bakhtin e a Bíblia 100
3.3.3 Diálogo como arena 103

IV. DIÁLOGOS, ARENA E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

4.1 A PALAVRA E SEU TRAJETO 109

4.2 JESUS E NICODEMOS: A ENUNCIAÇÃO COMO ARENA 110
4.2.1 A noite como cenário de uma luta 115
4.2.2 Um homem chamado Nicodemos 123

4.3 JESUS E A MULHER SAMARITANA: A PALAVRA COMO ARENA 125
4.3.1 Um poço como testemunha de uma luta 131
4.3.2 Uma mulher chamada de Samaritana 136

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS 141

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 144













I. INTRODUÇÃO

A dissertação que agora apresentamos é fruto de estudos que desenvolvemos desde os primeiros momentos de nosso ingresso no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Mackenzie. Enquanto fazíamos as matérias obrigatórias do curso de mestrado, mais especificamente aquela ministrada pela Profª Drª Aurora G. Ruiz Alvarez, foi-nos pedido que fizéssemos um esboço de artigo para que servisse como trabalho final daquela disciplina. Para atender a solicitação, começamos a trabalhar com a teoria apresentada que versava sobre o filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin (1895-1975), em especial sua teoria do diálogo como "arena de conflito". À época escrevemos um trabalho que tratava de um trecho específico do Evangelho de Lucas (20.19-26) e que foi posteriormente apresentado como comunicação científica na XVII Mostra de Pós-Graduação na Universidade Presbiteriana Mackenzie (2014). Esse trabalho teve como um dos seus méritos nos colocar em contato com a teoria do filósofo e teórico russo, bem como nos possibilitar dar os primeiros passos na aplicação da teoria literária bakhtiniana aos textos bíblicos, coisa que, por sinal, ainda é pouco vista no cenário brasileiro.

Ao nos aprofundarmos em nossas leituras (GOURGUES, 2014; ALTER, 2007; FEE; STUART, 2011), percebemos que o diálogo como arena de conflito está presente não apenas no evangelho de Lucas, mas também nos outros evangelhos canônicos, ou seja, em Mateus, em Marcos e em João. Este último em especial nos chamou a atenção quando observamos que nele os diálogos construídos como conflito entre duas personagens e entre grupos rivais representados pelas personagens da trama, são usados pelo narrador não apenas como artifício literário e narrativo, mas também como artifícios discursivos; uma vez que por meio dos diálogos o narrador coloca questões de ordem espiritual-religiosa em contraponto a outras opiniões de outros grupos também religiosos.

Esta dinâmica de contrapor, por meio dos diálogos, duas visões de mundo acaba por criar no Evangelho de João arenas enunciativas em que as verdades do Cristo apresentado por João são colocadas em confronto com outras verdades na construção de novos significados. Saber como o narrador do Quarto Evangelho constrói e usa esse artifício do diálogo em conflito, acabou por se tornar o tema do trabalho que ora apresentamos como dissertação.

Sob o título de Logos em luta: diálogo como artifício literário no Quarto Evangelho, nosso trabalho procurou discutir como o diálogo é construído e usado como artifício literário em narrativas do Quarto Evangelho. Com isto o narrador/evangelista faz com que os sentidos a respeito do seu protagonista – Jesus – sejam construídos por meio do uso das falas dos personagens. Essas falas são cuidadosa e artisticamente colocadas em sua história, demonstrando um conflito entre verdades distintas para que, por meio dessa luta entre pontos de vista, um novo sentido a respeito de Cristo brote como resultado dessa "luta dialógica", entre as visões de mundo apresentada pelos personagens daquela narrativa.

1. 1 Corpus da pesquisa

Como dissemos acima, o nosso trabalho terá como corpus de pesquisa o Quarto Evangelho, também chamado de o Evangelho de João; contudo o evangelho que agora apontamos como material de análise é composto por vinte e um capítulos, o que seria um material extremamente extenso para uma análise como esta a que nos propomos; por conta disso, resolvemos, para delimitação do nosso trabalho, concentrar as nossas análises em duas histórias em que o diálogo figura como elemento primordial da narrativa, os diálogos contidos nos capítulos três e quatro, conhecidos como o diálogo de Jesus com Nicodemos (Jo 3), e o diálogo entre Jesus e a Mulher Samaritana (Jo 4).

Os trechos escolhidos para as análises mostram-se úteis para os propósitos deste trabalho na medida em que se apresentam como cenas em que o diálogo assume grande importância para a compreensão da história contada (LÉON-DUFOUR, 1996, p. 268), bem como para a compreensão dos propósitos do narrador ao contar a sua história a respeito do Logos, Jesus Cristo. Pensamos que essas passagens serão suficientes para demonstrar como, no Quarto Evangelho, os diálogos são usados pelo narrador como elemento fundamental para construção de sentidos. Quando nos pusermos a analisar elementos mais estruturais da narrativa, faremos uso dos trechos que estão logo no início do Evangelho.
O bloco dos capítulos de 1 a 4, que compreende os diálogos selecionados para análise, foi escolhido como exemplo para demonstrar alguns dos elementos estruturais de narrativas, como o trabalho do narrador, características próprias da narrativa do Quarto Evangelho e usos que o narrador faz das formas diversificadas de diálogos. Concentraremos nossos exemplos nesse trecho para que o leitor não seja conduzido constantemente a outros textos alheios ao texto sobre o qual se debruça esse trabalho, o evangelho de João.

Quando da transcrição dos textos bíblicos, inclusive aqueles que aparecerão que não são explicitados, será utilizada a Bíblia Sagrada, edição revisada (1995), traduzida por João Ferreira de Almeida e editada pela Sociedade Bíblica do Brasil. Esta tradução é fruto da tradução direta das edições críticas do Antigo Testamento, em hebraico, e do Novo Testamento, em grego. O texto apresenta uma tradução formal em português que a torna úteis para o trabalho que ora empreendemos. Nos momentos em que for necessário, usaremos a versão de O Novo Testamento Grego (1993) também publicado pela Sociedade Bíblica do Brasil.

1. 2 Problematização

Para nos aproximarmos do Quarto Evangelho com o intuito de analisá-lo como uma construção literária é preciso que nos voltemos, antes, para outros pressupostos que nos servirão de hipóteses com as quis trabalharemos e que nos serão úteis, a saber, (1) que a Bíblia é um texto literário intencionalmente construído por narradores que de posse de conhecimentos artísticos e literários vão elaborando um texto que seja ao mesmo tempo claro e belo, o que nos possibilita aproximarmo-nos dele como nos aproximamos de qualquer outra grande obra da literatura universal e (2) o narrador do Quarto Evangelho usa em suas narrativas os diálogos não apenas como elemento estrutural para desenvolvimento de sua trama, mas como artifício discursivo para produzir efeitos de sentidos em seus leitores, tanto os do passado – a chamada comunidade joanina – como os do presente. Assim, a pergunta a ser respondida em nosso trabalho é: O diálogo é usado no Quarto Evangelho como artifício literário para construção da identidade de Jesus, ou ele é usado despretensiosamente para reproduzir a fala dos personagens da narrativa?

A Bíblia é um texto composto por um conjunto de livros que vão desde a poesia, passando pelas narrativas épicas e chegando aos chamados relatos proféticos; o seu conteúdo foi intencionalmente construído para que os seus primeiros leitores, mediante processos narrativos, percebessem "a realização dos propósitos divinos nos acontecimentos históricos" (ALTER, 2007, p. 59). A Bíblia, palavra grega que significa conjunto de livros, é um dos documentos "sagrados" mais antigos e mais conhecidos da humanidade. É possível notar sua influência no ocidente e como ela é considerada ainda hoje como um livro de importância pelo número de exemplares que são impressas anualmente em todo o mundo, além das traduções que se faz dela ao redor do globo. Podemos acrescentar a essa fato o número de livros que são publicados anualmente para explicar ou contestar a veracidade dos relatos bíblicos.

Graças a uma abordagem interpretativa, uma aproximação para se chegar aos sentidos contidos no texto, que privilegiou apenas as suas características histórico-gramático-culturais, a leitura dos textos bíblicos se deu em grande medida pela preocupação em considerá-lo apenas com um guia de fé e de prática; furtando a ele, assim, qualquer outra possibilidade de leitura que não fosse aquela de caráter religioso. Como consequência, temos na maioria das comunidades que leem a Bíblia com interesses de fé uma abordagem unidirecional do texto bíblico.

Para aqueles que trabalhavam com literatura, e principalmente para aqueles que começavam a ver a Bíblia como mais do que somente um livro para preservação e regramento da fé, isso se dá após a influência iluminista e racionalista, que influenciou os estudos exegéticos principalmente do século XIX até meados do século XX. Esta maneira de enxergar os relatos bíblicos tem como marco a divulgação do trabalho inovador do alemão Erich Auerbach (1892-1957), em seu livro Mimesis, publicado originalmente em 1946 e no Brasil em 1971. No primeiro capítulo comparou e analisou os relatos bíblicos em justaposição às narrativas homéricas. Abriu-se então para os exegetas uma nova possibilidade de aproximação daqueles textos que eram vistos como "livros religiosos". Daí se percebeu a necessidade de olhar com maior atenção as características literárias dos textos bíblicos que, por muitos séculos, foram considerados apenas como textos de cunho moral-religioso. Ancorados nesta mesma tradição, os estudiosos das Escrituras costumavam olhar para os evangelhos da Bíblia apenas como "janelas para o passado", isto é, como documentos que mostravam as ações de Jesus Cristos que ficaram circunscritas a um passado distante e intocável.

Em nosso trabalho, argumentaremos que a Bíblia é um texto literário (BLOOM, 2001, 2009; ALTER, 2007, 2008) no qual seus autores registraram de modo artístico suas palavras e suas percepções com respeito ao mundo, a religião e a Jesus, o seu salvador. Esses registros "são palavras de variados tipos, nascidas de diferentes experiências de vida e fé, tecidas como fios em diversos tipos de trama" (RODRIGUES, 2004, p. 9). Desvelar os sentidos dessas tramas narrativas é o desafio que se apresenta quando investimos um estudo literário dos escritos bíblicos. Em tempos recentes, foram muitos os estudiosos que se voltaram para a Bíblia como uma construção literária e tentaram, a partir desses estudos, enxergar nesses textos não apenas uma perspectiva religiosa, mas uma obra literária rica e multifacetada. Apesar de olhar para o Antigo Testamento com um olhar de semioticista, será proveitoso ouvirmos as palavras de Eliana Branco Malanga (2007, s.p.), quando afirma que:

O primeiro estudioso a buscar uma visão mais crítica do estudo bíblico foi o filósofo inglês Thomas Hobbes, em 1651, em O Leviatã. Tratava-se de um estudo de importância secundária no todo da obra, mas ele levantou questões que se sustentam até hoje, como a intervenção de Esdras na forma final de alguns livros bíblicos.

Como observa Malanga, as colocações de Hobbes, com o passar dos anos, resultariam em trabalhos cuidadosos e técnicos na construção do significado dos textos bíblicos, tomando por base o pressuposto de que a Bíblia não é só um livro de cunho religioso, mas que nela podem ser reconhecidos traços de uma técnica literária acurada e rica na apresentação de suas narrativas, personagens e diálogos. Não por acaso se diz que há "um reconhecimento generalizado de que ela [a Bíblia] pertence ao cânon de obras literárias de nossa civilização, influenciando-a [...]" (ZABATEIRO; LEONEL, 2011, p. 19). Essa influência que a Bíblia traz às civilizações se dá, primordialmente, por suas características de "grande literatura". Nos dizeres do estudioso norte-americano Robert Alter (2008, p. 12):

As narrativas bíblicas me parecem plenamente comparáveis aos grandes clássicos da literatura, antigos e modernos. Elas refletem um senso insidioso de estrutura narrativa e de uso e sofisticados estilos de prosa. Elas nos dão vigorosas representações de caráter, frequentemente com grande profundidade psicológica [...] os personagens bíblicos desenvolvem-se no tempo, diferente dos personagens homéricos que são imutáveis, e isso os torna mais próximos dos personagens na grande tradição realística do romance.

Podemos, então, considerar que a Bíblia é uma obra literária, uma construção artística, que manifesta os pontos de vista de autores diferentes, em diferentes épocas da história; ela é, nas palavras de Alter (2008, p. 13), "uma antologia histórica de escritores hebreus". Sob essa perspectiva parece-nos justificado empreendermos um estudo cuidadoso sobre como as características literárias, tais como autor, personagem, tempo, gênero, etc. podem ser percebidos no texto bíblico.

Aqui um esclarecimento é necessário: Quando nos referimos aos artifícios literários do Quarto Evangelho, estamos fazendo uso das reflexões e terminologia de Kermode (1997, p. 403) quando, em sua introdução literária aos escritos do Novo Testamento, faz um apanhado geral sobre as características principais de cada um dos quatro Evangelhos canônicos.

Quando observados, especificamente, as narrativas, expressões e uso da linguagem contidas no Quarto Evangelho, percebeu-se algumas características que são peculiares ao quarto evangelista. Tais características impulsionaram estudiosos e comentaristas (cf. BRUCE, 2011; GOURGUES, 2014; HENDRIKSEN, 2014; BROW, 1999) a falar em um "sentido econômico da narrativa"; "características do método" joanino; "engenho narrativo" e "formato e cor" do evangelho.

Como resultado do emprego dessas características literárias em sua narrativa, Alter e Kermode chegam à conclusão de que o narrador do Evangelho de João pode ser perfeitamente chamado de um "romancista" (1997, p. 487). O emprego de tais técnicas fez com que o quarto dos evangelhos seja considerado por Kermode (1997, p.410) como o mais "artificial" dentre todos os evangelhos bíblicos.

Segundo Eagleton (2001, p. 4) os artifícios são como que ferramentas da linguagem, seja ela literária ou do cotidiano, para construção de narrativas e de outros textos, tais como as imagens, o ritmo, técnicas narrativas e outros estoques de elementos formais que exercem a função de auxiliadores linguísticos para a construção de textos literários e que os estruturalistas chamavam de elementos que causariam efeitos "estranhadores"; porém, como nos lembra Abadía (2000, p. 111), "a 'estranheza' que os artifícios produzem não é simplesmente perplexidade, que poderia ser uma sensação desagradável para o leitor. Mas esses artifícios marcam a originalidade com que os narradores contam sua história. Essa engenhosidade do autor na construção do seu texto foi observada por Sérgio Vicente Motta (2006, p. 32-33) quando, ao tratar das características do texto literário em prosa, diz que:

O narrador, como parte do processo [narrativo], tece a trama da intriga, manipulando os cordões de atuação das personagens, cujos atos são ligados às engrenagens das coordenadas espaço-temporais. Como resultado dos padrões seguidos pelo tecido narrativo, emerge uma "intriga fingida" na estampa do bordado, como um produto materializado pelos lances inventivos, executados no interior do código e da gramática que regem a linguagem desse sistema [...].

Portanto, segundo Motta, a intriga que se manifesta na narrativa só é possível mediante artifícios narrativos que são manipulados pelo narrador para criar cenários espaço-temporais que dão à sua história características de uma "intriga fingida", linguisticamente construída para dar sentido ao seu texto como todo. Aplicando essa mesma engenhosidade narrativa ao Quarto Evangelho, Kermode (1997, p. 486, 488) fala-nos do empenho do narrador em cuidadosamente construir os eventos que farão parte de seus relatos e juntá-los aos temas que serão tratados em seu Evangelho.

O engenho narrativo de João tem as virtudes da economia, complexidade e profundidade. Ele está empenhado em tornar sua narrativa coerente, mas, ao fazê-lo, sempre trata do seu propósito mais profundo, que é a representação do eterno em relação ao transitório, das manifestações do seu em um mundo de vir a ser [...] Os outros evangelistas também promovem esse equilíbrio de incidente e tema e desenvolvem relações dentro de seus livros [...] Mas a prática de João parece ao mesmo tempo mais delicada e mais poderosa.

Quando dizemos que os escritores bíblicos usaram de artifícios na construção de seu texto, essa afirmação não pode ser entendida como uma depreciação da força ou da beleza literária dos textos da Bíblia; ao contrário, essas afirmativas devem ser encaradas como valorização dos textos considerando-os não apenas em seu sentido doutrinal e religioso, mas observando, além disso, seu sentido artístico-literário.

Um segundo autor com o qual trabalhamos nesta pesquisa foi o filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin. Fortemente influenciado pela filosofia socrática, filosofia que defende a verdade como uma aquisição que vem à existência pelo diálogo, resultando no partejar das ideias (a maiêutica), Bakhtin acredita que só é possível ter uma real noção do que é e de como funciona a língua quando esta é posta em uma relação dialógica com a fala do outro, ou seja, só é possível compreender o mundo, e nele se colocar como criatura responsável, no momento em que uma visão de realidade se confronta com a visão de realidade do outro. De outro modo poderíamos dizer, nas palavras do pensador russo, que "este ou aquele ponto de vista criador, só se torna necessário ou indispensável de modo convincente quando relacionado com outros pontos de vista criadores." (BAKHTIN, 1988, p. 29).

Esse pensamento de construir significados com o outro equivale a dizer que a língua é compreendida, absorvida e significada quando vista em um contexto, em uma cultura real com suas peculiaridades, quando ela é observada em ação, no uso do cotidiano.

Em seus estudos, Bakhtin continua dizendo que "é, pois, em relação direta com a cultura que um fato, ou um fenômeno, que simplesmente existe, ou acontece, adquire sentido. Só é possível significar um fato quando ele é colocado sob o domínio cultural" (BAKHTIN, 1988, p. 29). Assim, para o pensador russo, esse ou aquele ponto de vista é construído no diálogo com o outro em uma realidade, em um contexto, vivo e real. Percebemos, então, que para que haja um conhecimento de determinada verdade é preciso uma construção que se torne real no momento em que o discurso do outro é colocado em luta com o meu discurso em uma realidade viva determinada, "o mundo do acontecimento" (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 40). Esse embate resultará em um parto em que o objeto ou fato em discussão passa a ter sentido, ganha vida, tanto para o locutor quanto para o interlocutor em um diálogo.

Esta luta pelo significado se dá em cenários específicos que Bakhtin denominou de "arena", local de luta entre dois oponentes. A imagem da arena deve nos trazer à memória um local em que lutas são travadas entre dois ou mais oponentes em busca de algo, seja ele o que for. Na teoria a que nos propomos a aplicar neste trabalho, a busca que se faz nesse embate de forças contrárias é aquilo que chamamos de "significado".

Na produção do sentido, a palavra tem um lugar privilegiado como um ato ético e linguístico produzido em uma relação social concreta. Nesse entendimento, é preciso lembrar de que "minhas palavras já vêm envoltas em muitas camadas contextuais sedimentadas pelas numerosas intralinguagens e pelos vários patoás sociais, cuja soma constitui 'a' linguagem de meu sistema cultural." (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 39).

O fato de a palavra ter um lugar privilegiado na comunicação e ser produzida em um dado momento histórico por indivíduos morais também oriundos de realidades sociais e de suas interpretações sobre essas realidades, causa pontos de vistas diferentes sobre determinados fatos e determinadas realidades. Daí emerge o primeiro cenário de luta na construção do significado: a elocução. Nas palavras dos estudiosos Clark e Holquist (2004, p. 242) a elocução é a "arena onde se entremesclam" as várias ideologias que compõem os discursos. Temos então de pensar que:

O enunciado existe, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecido pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar participante ativo do diálogo social. (BAKHTIN, 1988, p. 86)

Em outros termos,

Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e históricas que dão determinadas significações concretas [...] expressando a posição sócio-ideológica diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos da sua época. (BAKHTIN, 1988, p. 106)

Devemos nos lembrar, porém, que esse enunciado só pode ser entendido como uma arena se considerarmos que ele foi produzido em uma realidade social conhecida e impregnada de uma ideologia. Como nos explica Irene A. Machado (1995, p.41) "o discurso comunicativo torna-se representação, sem refletir diretamente o contexto vivencial da enunciação. O discurso é capaz de matizar a expressão como indícios deste contexto vivencial e deixa ressoar o que não é verbalizado".

Outra arena de luta é o próprio signo, a palavra investida de significações ideológicas. Não devemos nos esquecer de que um signo é resultado de um consenso social. Como nos explica Bakhtin/Volochínov, "cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios. O signo, então, é criado por uma função ideológica específica." (2006, p. 37) É apropriado lembrarmos também de que, segundo a teoria expressa em Marxismo e Filosofia da Linguagem, todo instrumento material, objeto natural ou produto de consumo pode ser convertido em um signo ideológico, fazendo desse signo "uma arena onde se desenvolve a luta de classes" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 47).

Apesar de ser conhecido como um filósofo que trabalha primordialmente os elementos da linguagem, precisamos nos lembrar de que o grande trabalho desenvolvido pelo teórico russo foi no campo da literatura, em suas pesquisas sobre a obra literária de um dos mais conhecidos escritores e romancistas russos Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Daí o vasto campo de possibilidade em trabalhar com suas teorias no que diz respeito à construção de narrativas, seja no campo dos discursos apresentados por meio dessas narrativas, seja por meio do estudo de elementos que são colocados por essas narrativas como as vozes na narrativa – a polifonia – ; o lugar em que a narrativa se desenvolve e todas as implicações daí decorrentes – o cronotopo – bem como os gêneros contidos em narrativas e sua importância para a compreensão das mesmas.

1. 3 Hipótese do trabalho

O tratamento literário dos documentos bíblicos apesar de ser uma perspectiva teórica nova no contexto acadêmico brasileiro, é absolutamente necessária se quisermos, com o mínimo de precisão, entendermos os sentidos semânticos e literários contidos nesses textos milenares. Tomando por base os pressupostos discutidos acima, poderemos delimitar o tema do nosso trabalho debaixo de uma hipótese central que pode ser assim colocada:

O diálogo é usado no Quarto Evangelho como artifício
literário para a construção da identidade de Jesus

Colocada tal hipótese, ela nos coloca diante de outras afirmativas que a ela estão intimamente ligadas, ou seja, considerar a Bíblia como uma obra literária; e do mesmo modo considerar o Evangelho de João como uma construção literária. Assim, neste trabalho, intentarmos um estudo do Quarto Evangelho voltando a nossa atenção principalmente para a problemática do diálogo.


1. 4 Hipóteses secundárias

Ancorados em nossa hipótese principal apresentada acima, desenvolveremos em nosso trabalho outras hipóteses cuja importância será apresentada no decorrer de nossa dissertação. Dentre essas hipóteses secundárias podemos observar as seguintes:

A revisitação da bibliografia que tem se aproximado da Bíblia como literatura serve de suporte para a tomada do Quarto Evangelho como obra literária;

Assim como toda obra literária, o Quarto Evangelho usa artifícios na construção do seu discurso literário, dentre eles o diálogo;

No quarto dos evangelhos, o narrador trabalha o diálogo entre as personagens de sua narrativa como artifício literário resultando em uma verdadeira "arena dialógica" em que os sentidos são construídos pelo conflito;

Ao observarmos com maior cuidado tais características e como elas se apresentam no Quarto Evangelho, intentamos propor uma compreensão das narrativas dos evangelhos que esteja fundamentada em uma perspectiva literária, fazendo com que o intérprete tenha seu horizonte alargado para as construções literárias contidas no texto do Quarto Evangelho, o que possibilitará uma leitura que esteja centrada nos elementos literários e não em outros elementos de natureza extratextuais, por exemplo. Trabalhamos, em suma, a importância de considerar o Quarto Evangelho como uma obra literária no estudo de dois textos específicos deste evangelho para observar como diálogo é construído. Um estudo de caso para percebermos a importância da abordagem literária do evangelho de João e dos diálogos como artifícios literários.

1. 5 Fundamentação teórica

Aquilo que foi dito a respeito da Bíblia como um todo bem pode ser aplicado aos Evangelhos, isto é, ainda que tragam em seus textos elementos e características de uma obra literária, a interpretação dos documentos bíblicos sofreu durante muitos séculos uma abordagem apenas religiosa e pragmática. Apesar de necessária, esta abordagem não é suficiente para abarcar os muitos significados contidos nos textos bíblicos. Como indicado por Alter (apud ZABATIEIRO; LEONEL, 2011, p. 21),

O único motivo óbvio para a ausência por tanto tempo de interesse literário acadêmico pela Bíblia é que, em contraste com a literatura grega e latina, a Bíblia foi considerada durante muitos séculos, tanto por cristãos quanto por judeus, a fonte unitária e primária da verdade de [sic] revelação divina.

Para refletirmos sobre a Bíblia e suas características literárias é preciso que reflitamos, ainda que de maneira resumida sobre o que é uma obra literária e suas características; para tanto nos serão úteis o trabalho de teóricos que se debruçam sobre o tema. Ancorados nos trabalhos de Kristeva (2005) e Ricoeur (2008), bem como nos trabalhos de Guimarães (2005), refletiremos sobre o texto e como ele é construído para produzir em seus leitores sentidos estéticos e retóricos. Quando nos concentrarmos na questão da Bíblia como texto literário, nos serão úteis os trabalhos de Alter (2007), Frye (2004), Bloom (2009), Zabatieiro e Leonel (2011), Alter e Kermode (1997) Magalhães (2008) e Ferreira (2006; 2008, 2011).

Ao nos aproximar do Quarto Evangelho serão importantes para nossas análises os trabalhos interpretativos de Hendriksen (2014), Maggioni (1992), Dodd (2003) e Kümmel (2009); bem como aquelas leituras mais de ordem literária do evangelho trazida, entre outros, por Culpepper (1983), Gourgues (2014), Léon-dufour (1996), Marguerat e Bourquin (2009) e Kermode (1997), bem como os trabalhos de Brown (1999) e Mateos e Barreto (2011). Esses autores intentam fazer uma leitura sincrônica do Evangelho de João.

Para trabalharmos a questão do diálogo como arena de conflitos, lançamos mãos da teoria de Mikhail Bakhtin (1988; 2006; 2013) e dos trabalhos interpretativos de estudiosos que abordam as teorias do "filósofo da linguagem"; destacamos como material de base para esse trabalho os estudos de Kristeva (2005) de Machado (1995) e Clark e Holquist (2004), dentre outros.

Em todo o nosso trabalho, são importantes as considerações teóricas sobre a literatura, sua função e características; para uma aproximação teórica sobre os temas referentes à literatura e suas características lançamos mão dos trabalhos de Eco (2012), Eagleton (2001) e Gancho (2002), bem como os importantes trabalhos de Compagnon (2014) e Candido (2000), dentre outros que foram de importância para concretização e desenvolvimento deste trabalho.

1. 6 Metodologia

O método usado será a pesquisa bibliográfica tendo como objeto o texto bíblico do Novo Testamento, mais especificamente o Quarto Evangelho (Evangelho de João). A opção metodológica da pesquisa reside no método hipotético-dedutivo, isto é, em um primeiro momento, usando como lastro a teoria da Bíblia como literatura, bem como aquelas que as aproxima dos evangelhos como uma construção literária e, em um segundo momento, refletir sobre as implicações que esta proposição pode acarretar na interpretação destes documentos neotestamentários do primeiro século depois de Cristo. Em desenvolvimento ao nosso trabalho revisitaremos os teóricos, sejam eles da literatura bíblica ou não, para observarmos como o diálogo aparece em seus estudos. Esta abordagem se faz necessária para que na última parte da nossa pesquisa passemos às analises dos textos escolhidos como corpus do nosso trabalho, dois diálogos no Quarto Evangelho.

1. 7 Sumário dos capítulos

Intentando uma compreensão mais clara daquilo que procuramos fazer em nosso trabalho, empreendemos um breve resumo dos capítulos que compõem o mesmo. Nossa dissertação será composta por três capítulos organizados de forma que o leitor seja conduzido desde os assuntos e tópicos mais gerais até aqueles mais específicos. Segue, então, o resumo:



1 – No primeiro capítulo discutiremos a questão da Bíblia como literatura. Essa é uma questão que vem despertando a atenção de um número cada vez maior de estudiosos e críticos literários. Argumentaremos que antes de qualquer aproximação que se faça do texto bíblico é preciso considerá-lo como um texto de cunho literário. Em um segundo momento, aprofundaremos nossas reflexões falando sobre as características do texto em sua construção subjetiva e poética para, só então, intentarmos um resumo histórico sobre aqueles que se aproximaram da Bíblia como uma obra literária, desde as primeiras percepções da Bíblia como literatura até os trabalhos críticos mais detidos que tomaram os textos bíblicos como literatura e as narrativas bíblicas como construções artísticas e literárias. O capítulo terminará com a análise de um texto que mostra a importância do narrador na construção da narrativa.

2 – O segundo capítulo será construído como uma primeira aproximação do Quarto Evangelho como literatura. Em um primeiro momento revisitaremos os teóricos que versam sobre o diálogo seja em narrativas bíblicas ou não. Começaremos a discutir o que é um artifício literário e qual sua importância em uma narrativa; depois olharemos para o diálogo em narrativas bíblicas e como ele é percebido pelos estudiosos dos textos bíblicos e, em momento posterior, trabalharemos com um texto especifico do Quarto Evangelho para percebermos como o narrador trabalha com as informações à sua disposição para construir uma narrativa em que o diálogo aparece de maneira artisticamente construída.

3 – Nesse último capítulo trataremos do corpus específico do nosso trabalho, dois importantes diálogos no Quarto Evangelho: o diálogo de Jesus com Nicodemos, um respeitado líder religioso de sua época e o diálogo de Jesus com a Mulher Samaritana, uma representante do grupo étnico-religioso dos samaritanos que, apesar de viverem próximos aos judeus, tinham costumes e crenças diferentes destes. Faremos as análises desses diálogos ancorados na teoria de Mikhail Bakhtin e suas importantes contribuições para os estudos da literatura, bem como nos trabalhos de Alter sobre o diálogo em narrativas bíblicas. Assim, para analisar o diálogo entre Jesus e Nicodemos lançaremos mão da teoria do enunciado com suas vozes e para analisarmos o encontro entre Jesus e a Mulher Samaritana voltar-nos-emos para a teorização bakhtiniana sobre a palavra como uma "pequena arena".






























II. BÍBLIA COMO OBRA LITERÁRIA

Toda narrativa histórica é fictícia
na medida em que conta apenas uma parte da história.
Apenas Deus poderia contar toda a história;
mas Deus, sendo atemporal, não pode contar histórias.

NANCY HUSTON

2. 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEXTO BÍBLICO

Apesar das muitas e constantes aproximações que se fizeram no decorrer da história dos textos bíblicos, considerá-los em sua essência como um fenômeno literário ainda se mostra um obstáculo para muitos daqueles que, seja como acadêmico ou como leitores comuns, voltam-se para a leitura desses documentos antiquíssimos que são, em última instância, esteios para a construção da história ocidental. As muitas e variadas leituras que se fizeram das Escrituras, imprimem em muitos uma visão heterogênea desses textos, seja para distanciar-se deles seja para defendê-los, em muitos casos de maneira passional.

A Bíblia, como texto que é, foi construída por cerca de quinze séculos e é composta por sessenta e seis livros divididos em dois grandes blocos que a história (cristã) sagrou denominar de Antigo e Novo Testamento. O Antigo Testamento (ou Bíblia Hebraica) é composto por trinta e nove livros e o Novo Testamento é formado por vinte e sete livros, na tradição cristã posterior à Reforma Protestante. É depois desse período que a Bíblia é apresentada no formato em que a encontramos atualmente.

Muitos daqueles que lidam com a Bíblia a tem encarado apenas como uma espécie de manual para construção de doutrinas e modos de crença para guiar fiéis à busca da "verdade", sem considerar suas outras características, como sua qualidade estética, sua riqueza literária e sua retórica, por exemplo.

Ao nos falar da leitura que tradicionalmente se faz da Bíblia, Gordon D. Fee (FEE apud DYCK, 2012, p. 12), deixa-nos um quadro descritivo de como a aproximação dos Escritos Sagrados vem sendo feita no decorrer dos anos pela maioria dos fiéis. Segundo ele:

Para o estudioso bíblico, a hermenêutica significa aquele tipo de interpretação que considera as Escrituras como revelação divina, e que é, portanto, a base para a teologia, vida e comportamento cristão. Concebida nesses termos, a hermenêutica propõe aquele "sentido claro" das Escrituras e entendida com a ajuda do Espírito que é igualmente aplicável e obrigatório como a palavra de Deus para todas as pessoas, em todos os tempos e em todos os contextos. (grifo nosso)

Essa aproximação unidimensional, porém, deixa de considerar um dos elementos mais importantes para a interpretação da Bíblia, a saber: A Bíblia é antes de tudo um texto construído no tempo que traz consigo elementos de caráter literário. Essa tomada do texto bíblico apenas como ferramenta religiosa para construção de crenças e dogmas tem sido apontado pelo crítico literário Robert Alter (2007) como um elemento dificultador para outras abordagens possíveis e necessárias do texto bíblico. Segundo ele:
O único motivo óbvio para a ausência por tanto tempo de interesse literário acadêmico pela Bíblia é que, em contraste com a literatura grega e latina, a Bíblia foi considerada durante muitos séculos, tanto por cristãos quanto por judeus, a fonte unitária e primária da verdade de [sic] revelação divina. (ALTER apud ZABATIERO; LEONEL, 2011, p. 20)

Em outro texto de sua autoria, e sob o título e tradução diferentes, a mesma citação aparece assim:

Uma razão óbvia para a ausência de interesse científico na análise literária da Bíblia reside no fato de que, ao contrário da literatura grega e latina, a Bíblia foi considerada durante muitos séculos, por cristãos e judeus, como fonte primordial e única da verdade divina revelada. Essa crença ainda tem influência profunda, tanto naqueles que a refutam como naqueles que a perpetuam (ALTER, 2007, p. 34).

Em texto posterior em que trata da mesma questão, Alter (2008) aprofunda seus pensamentos sobre a visão tradicional da Bíblia como única fonte para construção de um sistema de crenças; e nesse texto o autor repete as mesmas palavras citadas acima para basear seus pensamentos posteriores quando defenderá a abordagem literária da Bíblia. Diz ele:

Qualquer escritor literário trabalha com um conjunto complexo de convenções e técnicas que são compreendidas geralmente pelos leitores porque são automáticos na cultura. O problema com a Bíblia é que, ao longo dos séculos, conforme esses textos são lidos estritamente em termos teológicos, perdemos as chaves para essas convenções. Na tentativa de recuperar os princípios artísticos com os quais os antigos escritores hebreus compuseram seus trabalhos, podemos ver mais plenamente o que está acontecendo nas histórias – quais são as implicações de uma inserção particular de diálogo, da recorrência de um tema, de um paralelo entre dois episódios etc. (ALTER, 2008, s.p.)

Ao expor sua opinião em dois textos distintos, Alter deixa clara sua posição em relação a não consideração da Bíblia como uma obra literária e coloca em destaque a inegável influência que os textos bíblicos exercem nas sociedades que foram por eles alcançadas. Negar a flagrante influência que os textos bíblicos exercem sobre as muitas sociedades seja no oriente ou ocidente, é equivalente a deixar de considerar muitos dos textos produzidos através dos séculos que tomam a Bíblia como sua fonte primeira de inspiração.

É, pois, equivocada a tomada da Bíblia como texto apenas de cunho religioso, que visa tão somente à edificação dos fiéis, bem como acolhê-lo apenas como esteio para elaboração de dogmas e fórmulas doutrinais. É para esse fato que nos chama a atenção João Leonel (2006; 2013; ZABATIERO; LEONEL, 2011), ao nos dizer seguidamente que a não consideração das características da Bíblia como um texto de cunho artístico e literário tem sido motivo de vários equívocos nas leituras de seus textos.

Apesar de andar no mesmo sentido de Leonel e Zabatiero, Bloom (2001) avança em suas observações quanto ao estudo literário dos textos bíblicos ao sugerir que a tomada da Bíblia como um fenômeno literário é mais interessante que tomá-la apenas como um texto de cunho religioso. Em entrevista concedida a uma revista brasileira, o crítico literário é perguntado se o enfoque literário na Bíblia é mais interessante do que o enfoque religioso, e responde:


Sem dúvida. O texto original do que hoje chamamos de Gênesis, Êxodo e Números é trabalho de um narrador magnífico, certamente um dos maiores contadores de história do mundo ocidental. Aliás, em O Livro de J, observo que o autor desses textos foi uma mulher que viveu 3.000 anos atrás, na corte do rei Salomão, um lugar de alta cultura, ceticismo e muita sofisticação psicológica. Pense em figuras como José, Jacó e Jeová. São todos personagens maravilhosos. E os efeitos poéticos do texto são extraordinários, comparáveis a Píndaro. Os profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel também eram grandes escritores, assim como os autores do Evangelho de Marcos e do Livro de Jó. A Bíblia é uma vasta antologia da literatura de toda uma cultura.

Notemos que ao defender sua posição em relação ao texto Bíblico, de que ele é um magnífico compêndio literário ou "uma vasta antologia da literatura de toda uma cultura", Bloom faz sua leitura do texto a partir das terminologias advindas do campo da literatura; ao falar sobre os escritores bíblicos, refere-se a eles como "narradores magníficos"; quando ao falar sobre figuras conhecidas da Bíblia como Jacó, José, Jeremias pensa neles como "personagens maravilhosos". Isso implica dizer que toda a abordagem feita por Bloom parte do princípio de que a Bíblia é uma obra literária que retrata uma cultura.

Segundo Ferreira, "a dificuldade vivenciada por aqueles que abordam a Bíblia apenas como texto sagrado reside em um equívoco de base. Falta uma compreensão adequada do que é um 'texto', bíblico ou não, e de suas funções" (FERREIRA, 2006, p. 2).

2.1.1 O texto literário

Classificar um texto como literário, nos conduz a questões que vem sendo debatidas por teóricos desde muito tempo. Segundo Compagnon (2010) dizer que uma obra merece a chancela ou não de literária remonta aos trabalhos de Aristóteles em sua Poética (1992) quando procura estabelecer uma organização dos gêneros literários. Refletindo sobre a mesma questão Adorno (2003) chega a dizer que a escolha desta ou daquela forma de expressão como válida literariamente é uma convenção cultural e econômica, sem considerar seriamente o conteúdo desses trabalhos e Eagleton (2001) resalta que a literatura impõe a nós leitores uma consciência dramática da linguagem. Candido (2000) analisando a forma como os estudiosos de seu tempo consideravam o valor de uma obra literária, coloca a questão nos seguintes termos:

De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurava-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que sua importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade [...]. Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas [...]. (CANDIDO, 2000, p. 5)

Não é sem sentido, portanto, a afirmação de Compagnon (2003, p. 43) de que "a literalidade, como toda definição de literatura, compromete-se, na realidade, com uma preferência extraliterária", isto é, quando se tenta definir literatura ou a literalidade de uma obra lança-se mão, geralmente, de recursos e valores outros que não a literatura mesma.

Apesar de reconhecermos que haja outras formas de classificações possíveis para as variantes textuais e para a literatura, adotaremos neste trabalho a classificação apontada por Guimarães (2005), e que concorda com Culler (1999) quando adota abordagem que pensa o texto como "objeto estético", para que possamos, a partir dessa premissa, refletirmos sobre o que é e qual a função do texto literário. É preciso levar em conta que quando intenta uma classificação das tipologias textuais, Guimarães está pensando em fornecer parâmetros que guiem o leitor em seu reconhecimento das funções práticas do texto, ou seja, pensar em como o texto é construído e como ele alcança seus objetivos pragmáticos em relação ao seu leitor, questão que também é considerada por Candido (2000). É essa aproximação que faz também Malanga (2002, p. 14) ao entender que, a arte, assim como a religião tem como principal objetivo a comunicação, e essa comunicação pode ser levada a efeito por meio de diversos expedientes, dentre eles a "escrita sagrada".

É neste sentido que podemos falar da função literária do texto bíblico, isto é, ele comunica-se com o seu leitor de maneira que este o possa entender por meio de uma linguagem artisticamente construída. Pensando ainda sobre os objetivos comunicativos de qualquer texto literário – inclusive o bíblico – precisamos atentar para aquilo que nos dizem Marguerat e Bourquin (2008, p. 9) ao lembrarem que os humanos sempre contaram histórias para transmitir à posteridade seus conhecimentos, consolar seus semelhantes, testemunhar seus feitos e principalmente para se comunicar com outros de seus pares.

Ao refletir sobre o que seria um texto literário em sua "materialidade", Amora (1973, p. 50) elenca algumas das características individuais que fazem com que um texto possa ser considerado uma obra literária. Para o autor, assim como cada ser humano tem algumas características que o diferenciam e outras que o faz semelhante a seus pares, assim também o texto literário tem algumas propriedades comuns que fazem com que ele seja, ao mesmo tempo, igual e diferente de outras obras artísticas.

Logo após essas observações, Amora (1973, p. 50-53) passa a dizer que o texto literário se caracteriza por transmitir ao leitor uma concepção intuitiva e individual de realidade; pelo tipo de conhecimento e construção retórica que transmite, um conhecimento subjetivo e elevado com seu conteúdo e forma. O autor termina dizendo que:
De tudo que dissemos se conclui que a literatura se distingue da não-literatura pelo conteúdo e pela forma, e que as características essenciais da obra literária são duas: um conteúdo intuitivo e individual e uma forma produto da criatividade expressiva do artista. (AMORA, 1973, p. 53)

Tomando também por base o sentido subjetivo e poderoso que a literatura exerce sobre o indivíduo em geral, Magalhães (2008) chega a dizer que a literatura é uma forma de libertação pessoal da realidade dada, bem como um instrumento de emancipação da pessoa que encontra no texto uma ferramenta para enxergar novas realidades. Segundo ele:

A literatura significa bem mais que uma libertação do ciclo da repetição. Ela liberta da imediatez da compreensão, possibilita releituras infinitas, cria uma rede de relação variada por meio de sobtextos e tradições, destaca o significado das palavras por meio da ironia e ambivalência, cria orientação e instabilidade por meio dos conselhos e interpretações variadas e faz emergir mundos do texto [...]. (MAGALHÃES, 2008, p. 16)

Ao falar sobre a escrita literária em sua argumentação um tanto quanto mais contundente, Assman ratifica a tese apresentada acima de que a literatura é o instrumento que possibilita ao ser humano um novo olhar sobre si mesmo e sobre o mundo e que essa alternativa apresentada pelo texto literário é a principal característica do monoteísmo bíblico.

A literatura é a única possibilidade que o mundo tem de olhar para si. Na forma da literatura o ser humano e a sociedade humana se colocaram um olhar com o qual eles mesmos se observam e respondem à pergunta pela razão da existência da vida humana no mundo, e isso de forma monumental, repleto de sentidos e de atribuição de significados. Enquanto o mito apresenta uma forma de modelação do mundo, é a literatura uma forma de mudança do mundo, de aquisição de mundos alternativos em mídia da ficção. É exatamente esta realidade alternativa que é o específico do monoteísmo bíblico. (ASSMANN apud MAGALHÃES, 2008, p. 16-17)

É nesse sentido que podemos dizer que a Bíblia é uma obra literária, isto é, afirmamos que a Bíblia é um texto literário tanto por sua forma, quanto por seu conteúdo; conteúdo esse que apresenta-se em sua multiformidade literária e poeticidade. Na mesma esteira caminham as observações de Alter e Kermode (1997, p. 12-13) quando afirmam que,

[...] a Bíblia, considerada como um livro, atinge seus efeitos por meios que não são diferentes dos geralmente empregados pela linguagem escrita. Isso é verdade quaisquer que sejam nossas razões para atribuir valor a ela – como o relato da ação de Deus na história, como o texto fundador de uma religião ou religiões, como um guia para a ética, como evidências para povos e sociedades no passado remoto e assim por diante.

Neste momento do nosso trabalho é preciso que reinteremos alguns dos conceitos já colocados durante nossa argumentação para que possamos seguir à última parte das argumentações que serão apresentadas neste trecho do trabalho. Temos, então, que a Bíblia pode ser considerada um texto por sua organização frasal, léxica e semântica, isto é, por sua organização coerente e coesa; apesar dessas características, é preciso que se diga que o texto que nós chamamos comumente de Bíblia não é "um livro", mas um conjunto heterogêneo de vários livros organizados historicamente. Temos que dizer, ainda, que o texto bíblico, por ser literário, tem a possibilidade de influenciar pessoas dos vários extratos da sociedade em vários períodos da história.


2.1.2 Subjetividade do texto literário

Quando pensamos na Bíblia como texto literário, é preciso que nos perguntemos que tipo de linguagem esse texto usa em sua função de convencimento de seus leitores, bem como quais as características do texto que as Escrituras trazem em seu interior. Ou para usar os termos empregados por Magalhães (2008), precisamos nos perguntar que tipo de discurso os textos literários bíblicos carregam consigo, ou seja, que tipo de comunicação esse texto quer empregar.

Pensar sobre esse fato traz consigo uma das maiores dificuldades para aqueles que lidam com o texto bíblico, a saber, o princípio de historicidade das narrativas bíblicas. Em outros termos, diríamos que, perguntar sobre o tipo de discurso que os escritores da Bíblia empregam para convencer os seus leitores, implica perguntarmos pela maneira pela qual esses escritores o dizem, maneira aqui entendido como estratégias retóricas e literárias empregadas pelos autores/redatores do texto sagrado para levaram a fim seus propósitos comunicativos.

Em sua conceituação sobre o que é um texto literário ou literatura, Amora (1973) mostra-nos que a literatura, por ser o que é, traz em seu discurso uma abordagem intuitiva, individual e subjetiva da realidade. Essa abordagem é, portanto, pessoal no sentido de não querer descrever uma realidade, mas de querer interagir com o leitor por meio desta subjetividade literária para que ele apreenda verdades até então não percebidas.

Para o também teórico literário e escritor Fidelino de Figueiredo:

A literatura seria, assim, uma forma de conhecimento ou, melhor, de compreensão, aplicada ao homem e às suas relações com o universo, à sua luta pela assimilação desse universo, uma forma de conhecer que não tem mais método que a intuição, nem mais meios para se traduzir que a ficção imitativa, a reprodução laboriosa, quase impossível da paisagem interior, que nos compõe o nosso caleidoscópio. Esse panorama interior, que o artista labuta por expressar, não é uma cópia fotográfica, é uma deformação tendenciosa, é a procura da grande linha, com eliminação dos pormenores [...] (FIGUEIREDO apud AMORA, 1973, p.55-56)

O interesse de saber sobre que tipo de realidade o discurso literário apresenta, e que a função desse discurso não é recente na história da teoria literária, desde os primeiros estudiosos do assunto, vem se tentando entender qual a realidade que o autor de uma obra literária tenta infundir em seus leitores ao organizar seus textos. Para Aristóteles os meios que os "poetas" empregam em suas "fábulas", suas histórias, foram motivo de seguidas reflexões (ARISTÓTELES apud AMORA, 1973). Tomando por base o seu conceito de que a obra de arte é mimesis, uma imitação, o filósofo se pergunta:

Que fim devem os poetas ter em mira ao organizarem suas fábulas, que escolhas devem evitar, que meios devem utilizar para que a tragédia surta seu efeito máximo, é o que nos resta expor, depois das explicações procedentes. A mais bela tragédia é aquela cuja composição deve ser, não simples, mas complexa, aquela cujos fatos, por ela imitados, são capazes de excitar o temor e a compaixão [...] (ARISTÓTELES apud AMORA, 1973, p.29)

Esses mesmos princípios de pessoalidade, interioridade, subjetividade, bem com eliminação de fatores desnecessários à construção de seu texto, vem sendo aplicados à Bíblia por aqueles que se debruçam sobre suas narrativas para entender como elas foram construídas, não sob a perspectiva religiosa e teológica, mas sob a perspectiva literária, estrutural e retórica. Ou seja, os autores das narrativas bíblicas não objetivam trazer aos seus leitores um relato histórico factual, mas contar-lhes uma história para persuadi-los a ações concretas no mundo real a partir daquilo que lhes é apresentado no mundo da narrativa.

Tratar do texto bíblico, de sua estrutura e de seu conteúdo, nos leva quase que obrigatoriamente a nos perguntar sobre como os escritores bíblicos construíram o seu texto, ou melhor, sobre qual era a intenção dos escritores bíblicos ao produzirem um texto que pode ser considerado uma produção textual religiosa e literária ao mesmo tempo, uma construção artístico-literária. Abordaremos, então, nas próximas linhas as questões sobre quais eram as intenções dos autores bíblicos ao desenvolverem o seu texto e se esses autores estavam interessados em desenvolver um texto que fosse, primordialmente, um texto histórico.

Ao tratar da possível historicidade do texto bíblico, os autores Gabel e Wheeler (1993) afirmam que a intenção dos autores bíblicos não era descrever um objeto, isto é, não era produzir uma literatura que examinasse, como um relato histórico, a caminhada de um povo; mas, sim; que a intenção dos escritores bíblicos era escrever sobre um tema. E explicam:

A diferença entre os dois é vital. Em seu sentido comum, objetos são coisas que existem fora de nós e independente de nós. Não precisam ser materiais – objetos podem ser ideias, eventos e até possibilidades – , mas existem lá fora. No tocante a um escritor, o objeto seria qualquer porção da existência exterior captada e registrada no papel pelo autor [...].

Um tema não é uma coisa "lá fora", mas algo "aqui dentro". Ele existe na consciência do autor; é uma concepção daquilo que o autor deseja exprimir. Pode ser um impulso ou fantasia particulares sem referência à realidade ou referenciar-se a uma coisa sólida, tangível ou consensual [...]. Essas percepções são modificadas pelo ponto de vista e pela experiência passada individual do autor, e, quando se manifestam, passam por uma transformação adicional, visto terem agora a forma de palavras [...] (GABEL; WHEELER, 1993, p.18,19)

Ainda como indicado pelos autores (GABEL; WHEELER, 1993), estarmos cientes dessas diferenças de perspectiva, isto é, de que o texto bíblico não nos quer contar um relato histórico, no sentido moderno do termo, mas que eles querem mostrar uma realidade percebida de forma individual e sob uma sensibilidade ímpar, deve nos fazer ver que os autores bíblicos não estavam interessados em fazer com que seu texto correspondesse a uma realidade objetiva, mas a transcendessem por meio de usos literários. Assim os seus leitores enxergariam naqueles textos realidades construídas por meio de artifícios literários e guiadas por propósitos especificamente traçados.

Frye (2004), ao meditar sobre o papel fundamental que as metáforas exercem sobre os leitores e sobre sua importância para os escritos da Bíblia, argumenta que a linguagem que as Escrituras empregam para desenvolver os temas que se propõe a tratar é uma linguagem poética ou literária que ganha força no contexto em que estão registradas, ou seja, no próprio texto bíblico. Assim, conclui ele que:

O aspecto primordial de uma estrutura verbal é o centrípeto, porque é a única coisa que as palavras podem fazer com uma previsão e acuracidade reais e permanecer juntas. [...] Os eventos descritos na Bíblia são, no dizer de alguns eruditos, "eventos de linguagem", trazidos até nós apenas por palavras; e são as próprias palavras que guardam o sentido de autoridade, não os eventos que descrevem. A Bíblia significa literariamente o que ela diz, nada mais, nada menos [...] (FRYE, 2004, p.88)

Nesta mesma esteira Zabatiero e Leonel (2011), ao argumentarem sobre as necessárias considerações que os leitores devem ter ao se aproximarem das narrativas bíblicas, dizem que nenhum texto é só representação do passado, mas uma ponte que liga um tempo pretérito e o tempo presente da leitura, em que leitores entram em uma relação dialética com o texto para produção de sentidos contidos neles. Para que essa interação e construção de sentidos sejam possíveis, os autores de um texto,

Trabalham com certa liberdade para expressar seus objetivos, sendo que a principal delas é a inclusão de estratégias retóricas nos escritos que visam convencer aqueles que os leem. Não reconhecer essas características, buscando nos textos, inclusive os bíblicos, apenas descrições de uma realidade passada ou a voz divina de caráter atemporal, significa negligenciar aspectos fundamentais que regem a recepção de um texto literário. (ZABATIERO; LEONEL, 2011, p.22)


Ao refletir sobre o mesmo tema – sobre qual seria o conteúdo apresentado nos textos bíblicos – o critico literário Robert Alter (2007), chama a atenção para o fato de que, entre os povos antigos somente Israel tenha escolhido expressar suas tradições em prosa; e completa dizendo que esse fenômeno tem sido chamado por alguns de "ficção historicizada" ou "epopeia nacional"; o autor, porém, em sua abordagem do problema, diz que "talvez seja mais correto descrever o que acontece na narrativa bíblica como história ficcionalizada" (ALTER, 2007, p. 47). Segundo ele, esse termo seria adequado, pois nas narrativas bíblicas há uma fuga deliberada dos modelos épicos; além disso, os autores bíblicos fizeram uso da liberdade na articulação de seus textos para não conformá-los às tradições disponíveis em sua época. Ainda Alter (2008), ao ser perguntado sobre o grau de confiabilidade do texto bíblico enquanto relato histórico, responde:

A erudição levantou graves questões sobre a confiabilidade da Bíblia como relato histórico, e os registros arqueológicos muitas vezes não confirmam o que encontramos na Bíblia. Mas isso não compromete a autoridade da Bíblia como coleção de trabalhos literários. As narrativas, para usar uma distinção proposta por Hans Frei, são "como-história" em vez de rigorosamente históricas, e isso deve ser suficiente para nós, leitores. Não diria que a Bíblia é um trabalho coerente por que é, além de tudo, uma antologia histórica de escritos hebreus abrangendo quase 900 anos e que, portanto, reflete os pontos de vista e agendas de muitos escritores diferentes que frequentemente discordam entre si. A heterogeneidade acrescenta interesse a ela, na minha opinião.

Ao defender a mesma ideia, só que sob outros termos, Freyne (1996) também argumenta a respeito da tensão existente no texto bíblico em relação ao mundo real e o mundo da narrativa. Segundo ele:

Nos textos narrativos [bíblicos] cria-se um mundo de ficção que funciona como um espelho no qual encontramos nossa própria cosmovisão, independentemente de o mundo do texto referir-se ou não a um mundo real. Inevitavelmente, a ênfase está na criatividade do autor mais do que no referente do texto no mundo real. (FREYNE, 1996, p.18)

Caminho parecido também é trilhado por Abadía (2000) quando intenta uma reconciliação entre o texto bíblico e o sentido comum de realidade. Segundo ele,

A verdade é que a Bíblia não apresenta fatos históricos em estado bruto. Dito de outro modo, nas Escrituras os fatos aparecem unidos inseparavelmente a outros dois fatores que devem ser levados muito em conta: sua interpretação e a finalidade do escrito. Os textos bíblicos que podemos considerar históricos (em contraposição aos que pertencem aos gêneros de ficção) apresentam os fatos interpretados à luz de alguns critérios religiosos e selecionados com vistas a alcançar um objetivo. Por isso recebem uma estrutura e um sublinhado peculiar. (ABADÍA, 2000, p.23-24, grifo do autor)

Essa subjetividade narrativa e liberdade de articulação levam-nos a pensarmos nas reflexões de Motta (2006) quando, ao analisar a gênesis e a formação do texto literário-narrativo, nos lembra do sentido da palavra texto e reflete sobre a ação do autor/narrador na construção engenhosa dos seus escritos. Segundo o autor:

Como uma arte fabricada a partir da linguagem verbal escrita, a narrativa literária condicionou a estrutura sequencial de sua natureza temporal na linearidade da prosa, que passou a funcionar como um suporte de expressão na configuração de um texto, que lhe serve como veículo de divulgação. Seguindo a linha da escrita, a narrativa instaura uma analogia implícita com o texto em que se fixa e recupera, da origem etimológica textu, a ideia de "tecido", pressupondo, em sua arte, o ato e os efeitos de um tecer [...]. (MOTTA, 2006, p.32, grifo do autor)

É essa tessitura inventiva que faz do texto narrativo bíblico uma "história ficcionalizada", nos termos de Alter (2007), que conta, para ser levada a efeito, com a criatividade do seu autor ao narrar sua história, baseado em uma realidade por ele percebida e que nos é apresentada de maneira artisticamente composta para produzir naqueles que as leem não sensações de bem estar ou uma comoção estética, mas um senso de tomada de posição em relação à narrativa lida. Essa característica da narrativa bíblica é percebida pelo teórico alemão Erich Auerbach (2007) quando faz uma comparação entre os textos de Homero e os textos bíblicos. Nas palavras do crítico:

Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor, como os de Homero, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é nos dominar, e se nos negamos a isto, então somos rebeldes [...] Ele [o texto bíblico] não quer nos fazer esquecer a nossa própria realidade durante algumas horas, como Homero, mas suplantá-la; devemos inserir nossa própria vida no seu mundo, sentimo-nos membros da sua estrutura histórico-universal. (AUERBACH, 2007, p.12)

Neste sentido, tomando ainda por base as reflexões de Guimarães (2005), podemos dizer que o texto bíblico, quanto à sua função discursiva, pode ser considerado como um discurso factivo em que o autor pretende "fazer o leitor ser". Ao usar o termo factivo, Guimarães toma emprestado um termo usado por Jakobson (s.d.) para mostrar que acordo com aquilo que lhe foi mostrado pelo mundo da narrativa, o leitor conforma sua realidade à realidade percebida pela leitura dos relatos narrados.

Ao refletir sobre o uso da linguagem que os textos literários trazem consigo no decorrer da história, o crítico literário Northrop Frye (2004), em O código dos códigos, ao trabalhar a questão da linguagem bíblica, afirma que essa linguagem é primordialmente uma linguagem "proclamativa", uma proclamação ou "kerygma", que objetiva incluir o leitor nos temas, narrativas e dramas éticos enfrentados pelos personagens daquelas histórias. E esclarece:

Kerygma é uma modalidade de retórica, embora seja uma retórica de um tipo especial. [...] A revelação não pode ser uma "simples" forma de escrita descritiva, como o concebe a visão populista (como podemos considerá-la) que fala da Bíblia como sendo literatura verdadeira. A Bíblia está por demais enraizada em todos os recursos da linguagem para que seja adequada qualquer abordagem simplista. (FRYE, 2004, p.55)

Antes dessas afirmativas o autor já explicara que quando tomo o termo "kerygma" tem consciência que a sua aplicação comum recai sobre os evangelhos, mas argumentar que, diante das diferenças entre os Evangelhos e as outras partes da Bíblia não justifica um uso tão restrito da palavra. Toda essa reflexão empreendida pelo autor é apoiada no fato de que para ele "a Bíblia certamente é um elemento da maior grandeza em nossa tradição imaginativa, seja lá o que pensemos acreditar a seu respeito." (FRYE, 2004, p.18).

Assim, como bem indicado por Magalhães (2008), não é possível aproximar-se do texto bíblico sem perceber suas características narrativas e o modo peculiar com que este texto trata de questões religiosas sobre uma perspectiva única e singular; perceber essas vertentes das Escrituras possibilita ao seu leitor novas abordagens e possibilidades de leitura. Em outros termos, trabalhar como a capacidade poética e literária do texto bíblico abrem "novas possibilidades de interpretação" que vão sendo articuladas, "inclusive a relação do texto bíblico com a literatura e o texto bíblico como literatura" (MAGALHÃES, 2008, p.18).



2.2 APROXIMAÇÕES LITERÁRIAS DA BÍBLIA

A aproximação e estudo dos textos bíblicos a partir do método literário não tem sido uma tarefa fácil para aqueles que se debruçam sobre esses textos para lê-los sobre uma ótica diferente daquela que foi praticada seguidamente por grupos "autorizados" a ler esses textos de forma tradicional. Em grande medida essa dificuldade é resultado direto de dois fatores: (1) uma dificuldade percebida entre os cristãos em reconhecer a utilidade e eficácia do método literário de estudo bíblico; pois, segundo Kothe (1987), no mundo cristão ainda parece uma ousadia pensar a Bíblia como literatura. Outro fator que tem alimentado essa recusa em admitir as Escrituras Sagradas como um fenômeno literário é, em um grau considerável, (2) não saber em que consiste considerar a Bíblia como uma obra literária. Isso se dá, em grande medida, porque, segundo Leonel (2011), as produções brasileiras nessa área, apesar de serem crescentes, ainda são poucas e de alcance limitado.

Tomando como ponto de partida tais dificuldades, intentamos nessa parte do nosso trabalho investigar como a aproximação narrativa dos estudos dos textos bíblicos surgiu e foi usado em tempos remotos e recentes, além de procurar entender o que significa analisar a Bíblia como uma obra literária. Em um momento posterior, examinaremos o pensamento de alguns teóricos que contribuíram para o fortalecimento e sistematização do método literário como instrumento de interpretação do texto bíblico.

2.2.1 A Bíblia como literatura

É notório que para uma classe de estudiosos o lugar da crítica literária como ciência não pode ultrapassar os limites da belles letteres, onde seria o seu nascedouro e lugar de atuação e sobrevivência. Exemplo demonstrativo posição contrária à tomada da Bíblia como um obra literária pode ser percebida nas palavras do biblista e hermeneuta Loren Wilkinson (WILKINSON apud DYCK, 2012, p.137) quando afirma que "a crítica literária, de modo geral, é um tipo de hermenêutica secular de texto não-bíblicos, e repousa em alicerces incertos durante, pelo menos, o período da sua existência como uma disciplina acadêmica." (grifo nosso). Tal posição exclui da crítica literária a possibilidade de cooperar com o campo da interpretação bíblica, uma vez que, segundo o autor, ela é um tipo de hermenêutica secular que trabalha com textos outros que não o bíblico. O que subentende que ela não pode ser usada como ferramenta de interpretação bíblica.

Mas essa posição, longe de ser uma constante entre os estudiosos bíblicos, nos parece ser pontual, uma vez que outros estudiosos, apesar de não usarem constantemente o método literário em sua aproximação do texto bíblico, reconhecem sua utilidade como instrumento para leitura e interpretação das Escrituras.

A crítica literária tem suas raízes numa preocupação válida [...] A atenção ao texto como tal como o conhecemos hoje em dia é um corretivo bem-vindo a essa tendência [de estudar os textos bíblicos com as ferramentas da crítica literária]. [...] E os exegetas podem lucrar com as taxionomias de estruturas narrativas utilizadas pelos críticos literários em suas interpretações. (CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p.56)

Apesar de demonstrar em seu texto algumas ressalvas em relação ao método literário, os autores reconhecem que o uso que os teóricos literários fazem de seus instrumentos de análise em sua aproximação do texto bíblico pode servir de ajuda para os exegetas que se debruçam sobre os textos da Bíblia para lê-los e interpretá-los. Apesar de esta posição conciliatória e cooperativa entre os métodos tradicionais de estudo do texto bíblico e o método literário apresentada a cima, não ser expresso com muita frequência pelos biblistas, seu uso pode ser facilmente percebido pelos termos empregados por esses estudiosos na exposição de suas ideias e conclusões em relação à Bíblia.

Por exemplo: Ao falar sobre como analisar porções determinadas das Escrituras Fee e Stuart (2011) insistem que uma das preocupações principais do seu trabalho é identificar os vários tipos de "gêneros literários" que compões a Bíblia. Falando sobre a redação dos quatro Evangelhos, Pearlmann (2004) fala seguidamente daquela porção do Novo Testamento como "narrativas" e Black (2004), apesar de sua posição notadamente tradicional na interpretação dos Evangelhos, chama seguidamente Jesus de "o herói" das histórias contadas pelos evangelistas. Esses são só alguns exemplos para corrobora o fato de que, em se tratando de métodos usados para aproximação do texto bíblico, o caminho mais acertado não é a primazia dos estudos tradicionais em detrimento dos estudos literários Bíblia, mas uma cooperação construtiva entre ambos. Pois,

De tudo o que foi dito, conclui-se que nenhum método deve ser usado exclusivamente [...] Nenhuma abordagem ou objetivo deveria possuir o monopólio: cada um deles necessita do estímulo dou outros. Muitos, se não a maioria dos estudiosos da literatura e estruturalistas, por exemplo, reconhecem a necessidade e a importância de agregar a abordagem histórica á sua própria. E a crítica bíblica, desde seu inicio, tem frequentemente utilizado os métodos históricos e literários simultaneamente (DAVIS; ALLISON JR apud LEONEL, 2013, p.45)

Visto que a inserção do método literário para a análise do texto bíblico não exclui o método histórico-crítico, é preciso entender quais foram os caminhos percorridos pelo método literário até chegar aos nossos dias, isto é, refazer um caminho histórico para percebermos em quais momentos da história a Bíblia foi tomada como um texto que se assemelha a outras produções literárias da humanidade.

Para José Pedro Tosaus Abadía, em seu livro A Bíblia como literatura (2000), a tomada da Bíblia como obra literária remonta ao período dos Pais da igreja (Séc. II-V). Essa reconstituição histórica que faz Abadía da aproximação ou primeiras percepções da Bíblia como um texto literário, reforça a afirmação acima de que a critica bíblica desde seu início como ciência interpretativa tem utilizado, ou pelo menos percebido, o método literário como um auxilio para a interpretação. Segundo Abadía (2000, p. 139) diz ainda que:
Ao aplicar à Bíblia os princípios literários Greco-latinos, a compreensão e avaliação dos escritos bíblicos ficou distorcido: os textos eram julgados segundo os modelos de uma literatura estrangeira. Apesar de tudo, este reconhecimento do valor literário dos escritos da Bíblia é de grande valia.

Segundo Umberto Eco (2012), depois deste período (Séc. II a III d. C.), outro nome que se destaca em sua visão peculiar das Escrituras é Agostinho de Hipona, que indagava-se sobre a razão pela qual a Bíblia se demorava tanto em suas narrativas em descrever detalhes de pouca importância para os leitores em geral. Ao ensinar-nos sobre o "tempo de alusão", que é o momento em que o narrador suspende o ritmo da narrativa para guiar o leitor em um suspense construtivo, Eco (2012, p.74, grifo do autor) lembra-se desse fato. Segundo ele:

Santo Agostinho, que era um leitor sagaz, se perguntava por que a Bíblia tendia a dedicar tantas palavras e descrições supérfluas de roupas, edifícios, perfumes e joias. Deus, o inspirador dos autores bíblicos, iria perder seu tempo com poesia mundana? Evidentemente não. Se de fato o texto repentinamente se demora em alguma passagem é porque a Sagrada Escritura está tentando nos fazer entender que devemos interpretar essas descrições de maneira alegórica ou simbólica.

Apesar de não poderem ser considerada uma aproximação literária da Bíblia, essas observações de Eco a respeito de Agostinho mostra-nos que a leitura que se fazia da Bíblia em meados do século IV não era de todo desprovida de uma percepção literária dos excertos bíblicos. Não é, pois, sem razão que o bispo de Hipona inaugura aí o chamado método alegórico de leitura bíblica, que depois foi sistematizado e usado largamente por interpretes de várias épocas e lugares.

2.2.2 Outros olhares na história

Apesar de Weedwood (2002) ter como objetivo principal do seu trabalho "uma pequena" historiografia da linguística em seus vários campos de atuação; ao refletir sobre o desenvolvimento da gramática, ela acaba por lançar alguma luz sobre a maneira peculiar como Bonifácio (c. 675-754 d. C.), gramático da Idade Média, trabalhava com os textos bíblicos. Segundo a autora, Bonifácio foi o primeiro, em sua gramática e em aulas, a ensinar seus alunos fazendo uma comparação entre os textos bíblicos e os textos clássicos de Virgílio; pois não via problema nenhum em comparar um texto com outro, pois, segundo ele, ambos os textos eram composições artísticas literárias. Assim, de acordo com Weedwood (2002, p. 51), Bonifácio, ao desenvolver suas reflexões, colocava "breves excertos da Eneida ao lado de versículos da Bíblia", mostrando uma equivalência literária entre os dois textos.

Malanga (2008), quando discute sobre a possibilidade de novos métodos de aproximação interpretativas dos textos bíblicos, traça uma breve história daquilo que ela chama de os "estudos científicos da Bíblia". Segundo a autora, as primeiras aproximações científicas do texto bíblico só teriam ocorrido muito tardiamente na história com o filósofo Thomas Hobbes, em seu O leviatã, publicado originalmente em 1651.

O primeiro estudioso a buscar uma visão mais crítica do estudo bíblico foi o filósofo inglês Thomas Hobbes, em 1651, em O leviatã. Tratava-se de um estudo de importância secundária no todo da obra, mas ele levantou questões que se sustentam até hoje, como a intervenção de Esdras na forma final de alguns livros bíblicos.


Como apontado por Malanga (2008, s.p.) o que Hobbes fez foi uma investigação das intervenções editorias de Esdras, personagem e autor bíblico que, segundo a tradição, era um grande conhecedor da Lei judaica e que comandou uma renovação ético-religiosa sobre aqueles que retornaram à Jerusalém advindos do cativeiro babilônico, nos textos que hoje são considerados para os judeus seu Livro Sagrado – a Tanach – que no ocidente é chamada de o Antigo Testamento. Apesar de Hobbes ter feito uma espécie de leitura simbólica dos textos bíblicos, a tomada das narrativas bíblicas como construção literária foi aprofundada por outros estudiosos interessados em analisar com maior cuidado essas narrativas, não só sob um ponto de vista político e sociológico, mas acima de tudo literário.

2.2.3 Tomada efetiva da Bíblia como obra literária

Para os críticos literários e estudiosos da Bíblia como literatura, Alter e Kermode, em seu livro Guia literário da Bíblia (1997), uma aproximação efetiva da Bíblia como um fenômeno literário na história da humanidade só se daria de forma concreta com a publicação, em 1946, do livro Mimesis de Erich Auerbach. Escrevendo o livro durante a Segunda Guerra Mundial, Auerbach coloca a Bíblia entre as grandes obras da literatura mundial. Ao fazer, no primeiro e segundo capítulo, comparações entre a formação de personagens, o desenvolvimento do enredo e construção de narrativa, bem como discorrer sobre a intenção dos escritores bíblicos em relação às obras clássicas de Homero, o autor revela-nos novas possibilidades de trabalhar com o texto bíblico não como uma obra simplesmente religiosa e doutrinária, mas como uma rica fonte estética literária com suas riquezas de linguagem e "figuras". Não é, pois, sem razão que os autores dizem:

Auerbach mostrou que os velhos e simples contrastes entre hebraísmo e helenismo eram errôneos, que os realismos inventados pelos escritores da Bíblia eram ao menos tão importantes para o futuro europeu quanto a literatura da Grécia antiga. Não se tratava mais de uma questão de equacionar conduta com hebraísmo e cultura como helenismo; e com a Bíblia podendo ser vista como fonte de valor estético, questões vastas e novas se abriram, não somente sobre a revisão das relações entre o grego e o hebraico, mas também sobre a exploração de textos que paradoxalmente eram negligenciados, ainda que venerados e estudados [...]. (ALTER; KERMODE, 1997, p. 15)

Como podemos perceber, apesar de intermitentes, considera a Bíblia como mais do que um texto de começa a aparecer cedo na história, apesar de nesses períodos não haver uma sistematização, mas apenas uma aproximação comparativa entre os textos bíblicos e outros textos da literatura. Ainda que pontuais essas leituras não tradicionais das Escrituras, mesmo não sendo em suas primeiras manifestações sistemáticas e constantes, abriram caminho para que os teóricos posteriores pudessem firmar suas estacas no estudo da Bíblia como fenômeno literário.

Sem dúvida, umas dessas grandes contribuições no estudo da Bíblia como obra literária foi a do crítico literário Robert Alter em seu livro A arte na narrativa bíblica (2007 [1981]), marco na leitura dos textos do Antigo Testamento como uma construção artística e literária. Um ano depois da tradução do seu livro para o português, o crítico deu uma entrevista para uma revista brasileira em que defende suas teses e o seu método de leitura e interpretação da Bíblia. Segundo ele:

As narrativas bíblicas me parecem plenamente comparáveis aos grandes clássicos da literatura, antigos e modernos. Elas refletem um senso insidioso de estrutura narrativa e de uso e sofisticados estilos de prosa. Elas nos dão vigorosas representações de caráter, frequentemente com grande profundidade psicológica. Como Erich Auerbach argumentou muito tempo atrás, os personagens bíblicos desenvolvem-se no tempo, diferente dos personagens homéricos que são imutáveis, e isso os torna mais próximos dos personagens na grande tradição realística do romance.

[...] cobrir as convenções literárias dos textos antigos nos habilita a enxergar mais nitidamente o que se passa neles. Esses escritores foram, claro, impelidos por motivos religiosos urgentes – não estou certo se o termo abstrato "teologia" se aplica rigorosamente a eles –, mas eles escolheram depositar sua visão religiosa na maior parte em artística narrativa e forte poesia. Então, se você vê mais claramente como a narrativa e a poesia funcionam, você também chegará a uma profunda compreensão das nuances e complexidade de suas visões religiosas. (ALTER, 2008,s.p.)

Nesta reflexão a respeito de sua tese, Alter argumenta que a Bíblia pode ser considerada sem maiores dificuldades um texto literário cuidadosamente construído por seus autores/editores para enredar o seu leitor não apenas em suas verdades teológicas, mas também em suas narrativas, bem como pontuar a necessidade de cobrir as convenções literárias desses textos como um caminho para compreender as nuances e complexidade religiosa dos textos das Escrituras.

Além das obras acima citadas, é necessário que nos lembremos da inovadora contribuição de Alter e Kermode no livro O guia literário da Bíblia (1997 [1987]), quando nos apresentam uma espécie de manual para leitura da Bíblia como literatura. Como o próprio nome deixa transparecer, o livro se coloca como um guia para aqueles que desejem ler as Escrituras sob um método que priorize as características literárias e retóricas do texto bíblico.

Essas obras deflagraram a produção de uma literatura crítica que se voltava para a Bíblia com a intenção de lê-la não como um texto religioso, mas como um texto literário, reverberando uma tendência que já havia se manifestado de se aproximar dos textos bíblicos com um propósito mais acadêmico e literário e menos religioso e doutrinal. Podem ser citados como representantes no Brasil dessa nova abordagem da Bíblia os trabalhos de Malanga (2002) quando em sua tese doutoral, apoiada no conceito de Umberto Eco de obra aberta, propõe uma abordagem semiótica para interpretação dos textos bíblicos e o trabalho, também doutoral, de João Cesário Leonel Ferreira (2006) (ou simplesmente João Leonel) quando analisa o Evangelho de Mateus usando elementos da teoria literária como gênero e narrador. Ambos os trabalhos foram posteriormente publicados total ou parcialmente como livros; Malanga em 2005 com o título A Bíblia hebraica como obra aberta e Leonel em 2011 sob o título de Mateus, o evangelho (apesar de conter boa parte de sua tese, o último capítulo é constituído de material inédito).

É notória, também, a contribuição do programa de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo a partir da linha de pesquisa "Literatura e discurso religioso", além de outros trabalhos na área de mestrado e doutorado em que se trabalha com textos bíblicos sob várias perspectivas, bem como por meio do seu caderno de Pós-Graduação que no v. 11, n. 1, 2011, trouxe um Dossiê com trabalhos sobre "Literatura e Teologia/Religião"; cuja organização é do Prof. Dr. João Leonel, além de trabalhos, dissertações e teses que estão sendo produzidos pelos membros vinculados a essa linha de pesquisa, contribuindo assim para o fomento das pesquisas.

Refletindo sobre os trabalhos que já haviam sido escrito em várias partes do mundo sobre esse tema, o teólogo e literato Antônio Magalhães (2008) faz um mapeamento das obras que já haviam sido escritas quando da publicação do seu artigo. Segundo ele, merecem destaque no campo acadêmico, dentre as obras que estudam a Bíblia como fenômeno literário, os trabalhos já citados de Alter (2007), Auerbach (2004) e Frye (2004); bem como os trabalhos ainda não traduzidos para o português de Schmidt (2005) e Assmann (2003), além dos já lançados em língua portuguesa como Miles (1997) e Bloom (1992, 2006) são importantes contribuições para o estudo do tema em língua vernácula.

Ao tentar compreender esse novo método de leitura e compreensão dos textos bíblicos e como o método literário pode ser aplicado aos estudos da Bíblia, Marguerat e Bourquin (2009), em seu interessante livro Para ler as narrativas bíblicas, ancorados no fato de que os homens e mulheres na história sempre contaram e recontaram suas histórias, defendem que as narrativas bíblicas foram construídas não apenas para alimentar a fé, mas também para inflamar a imaginação de seus ouvintes por meio de uma narrativa artisticamente formada para produzir efeitos variados nos seus leitores. Ainda segundo os autores, o método que se encarregou de iluminar os bastidores da narração bíblica é o que tem sido denominado, principalmente na America do Norte onde é largamente reconhecido, é a "análise narrativa" ou crítica narrativa. Logo depois de conceituar termos básicos utilizados pelo método, os autores passam a pensar no objetivo da análise literária. Segundo eles:

Toda narrativa é composta visando exercer um efeito no leitor; trata-se de situar diretamente no texto os sinais que balizam e orientam a percurso de leitura [...] A narrativa é um conjunto das características que fazem de um texto uma narrativa diferente do discurso ou da descrição. Os traços narrativos, pelos quais se identifica um relato (digamos provisoriamente: conta-se uma história), diferenciam-se dos traços discursivos, pelos quais se identificam um discurso (que interpela diretamente o destinatário).

A análise narrativa é, portanto, um método de leitura do texto que explora e analisa a maneira como se concretiza, nesse texto, a narratividade. [...] O estudo científico da narratividade tem um nome: narrratologia [...]. (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p.13-14, grifo dos autores)

Apesar de os primeiros teóricos da narratologia terem publicado os seus trabalhos em meados dos anos de 1960 a 1970, a sua aplicação aos textos de narrativas bíblicas só se deram efetivamente dez anos mais tarde, por volta dos anos de 1980. Muito provavelmente advenha daí a dificuldade de aceitação que ainda hoje pode ser encontrado nos círculos acadêmicos em relação à leitura da Bíblia como um fenômeno literário, fato que ganha força e relevância quando aplicamos o método em círculos tradicionais de leitura e interpretação bíblica.

Na abordagem introdutória que se apresenta neste capítulo de nosso trabalho, resta-nos saber sobre quais são as características práticas de uma leitura da Bíblia como literatura ou, em outros termos, na continuação deste trabalho procuraremos identificar quais sãos os principais pontos defendidos por aqueles que fazem uma leitura sincrônica do texto bíblico, uma leitura que toma a Bíblia como fenômeno literário.

Para fazer isso, basearemos as nossas colocações no trabalho de Magalhães (2008, p. 13-15) quando procura sistematizar os principais pontos adotados pelos teóricos que veem os relatos bíblicos como narrativas literariamente construídas. Em sua abordagem "bastante resumida" das características literária da Bíblia, o autor lista quatro princípios que regem esse modo de enxergar esse método de aproximação do Texto judaico-cristão. São as seguintes as características listadas:

1. As formas literárias apresentadas na Bíblia estão intimamente ligadas aos seus propósitos religiosos. Não é possível, pois, se quisermos uma aproximação aprofundada dos textos bíblicos, desconsiderar que eles são resultado de uma cultura e que foram produzidos em um primeiro momento com o intuito de revelar aos seus primeiros leitores, seu leitor modelo, uma realidade que eles não seriam capazes de perceber não fosse pela mediação desses textos construídos para "proclamar" uma realidade que fosse diferente daquela percebida por esses leitores. Portanto, podemos dizer que apesar de não ser somente um texto de cunho religioso, os textos contidos na Bíblia tem um caráter religioso/teológico; que é explicitado em suas características literárias. Perder de vista essa relação, significa subverter o texto e diminuí-lo em seu potencial literário.

2. A riqueza dos textos bíblicos revela-se em sua dinâmica narrativa, ou seja, eles prezam por narrativas que são sempre apresentadas de forma sutil e econômica, tanto na construção dos enredos quanto na demonstração dos personagens. A narrativa bíblica, como bem notou Auerbach, se desenvolve de forma diferente daquela de Homero e outros, pois ela – a Bíblia – sempre descreve suas histórias sem muita riqueza de detalhes, como quem esperando que o seu leitor dê sentido àquilo que está lendo. Outra característica da literatura bíblica é que os seus personagens, como demonstrado por Alter (2008) se desenvolvem na história sempre contando com sofisticados recursos narrativos empregados pelos narradores daquelas histórias como repetições, diálogos sempre bem construídos e argumentos muito bem defendidos.

3. A linguagem das narrativas bíblicas sempre traz uma tensão; contrariando uma leitura estritamente teológica que é retrospectiva e que busca, primordialmente, a reconstrução de dados. Essa tensão é construída ora pela oscilação dos personagens, ora pela construção que a própria narrativa carrega consigo que deixam em absoluto suspense aqueles que se aproximam delas. Outra característica das narrativas bíblicas que culminará com essa tensão narrativa é o fato das várias formas com que o "Deus de Israel" se apresenta nesses textos. Uma multiforme caracterização de Deus que aumenta ainda mais a tensão do leitor em relação àquilo que vai ser mostrado em relação ao "Criador".

4. Principalmente na Bíblia Hebraica – o Antigo Testamento –, temos várias nuances dos personagens humanos que em vários momentos se mostram dependentes do Divino; em outros se mostram independentes dele e, ainda em outros, se mostram interdependentes desse mesmo ser. Esses conflitos tendem a enriquecer as tramas de modo a fazer com que elas se tornem cada vez mais dramáticas e interessantes para os leitores.

Ao apresentar essas características principais que podem ser tomadas ao identificar a Bíblia como um texto literário, Magalhães (2008, p.18) resalta que todos os autores listados por ele não são unânimes quanto ao tratamento que dão às narrativas bíblicas; enquanto uns dão maior prioridade ao gênero literário, outros veem na polissemia do texto o aspecto fundamental para a compreensão da literalidade das narrativas e outros ainda se debruçam sobre aspectos específicos da construção narrativa e suas estruturas; e completa dizendo que todas essas aproximações são feitas tomando sempre o cuidado de servirem como ferramentas para interpretação dos textos sem desprezar seu sentido religioso, em conjunto com o sentido literário. Ao citar tais autores, Magalhães (2008, p. 10-11) ressalta ainda que, apesar de não tomarem como ponto de partida para suas investigações as mesmas teorias, todos os autores concordam em, pelo menos, três coisas: (1) que a Bíblia é uma obra literária e que, portanto, deve ser lida a partir de teorias literárias; (2) que a Bíblia precisa ser lida em sua pluralidade de narrativas e (3) que a Bíblia é considerada uma obra basilar da literatura universal.

Postas as bases teórica para nossa aproximação da Bíblia como fenômeno literário, o nosso próximo passo será perscrutar o nosso corpus, a saber, o quarto evangelho canônico da Bíblia, que a tradição eclesial convencionou denominar de "o Evangelho de João". Pretendemos na próxima seção olhar esse evangelho em suas características literárias e únicas quando pensamos nele em relação aos outros evangelhos canônicos.

2. 3 QUARTO EVANGELHO COMO LITERATURA

Ao escrever sua narrativa a respeito de Jesus, o quarto evangelista não privilegiou a ordem comum dos fatos como nascimento, ministério, morte e ressurreição do seu personagem principal, como fizeram Mateus (1.18-25) e Lucas (1.26-2.7); antes inicia o seu evangelho apontando, ao estilo judaico, para a manifestação do Logos eterno (João 1.1-3). Esse texto é apresentado aos leitores do Quarto Evangelho de uma forma poética de maneira engenhosamente construída para mostrar-lhes o título principal de Jesus.

Ao iniciar assim a sua narrativa, o narrador do Quarto Evangelho inova de duas maneiras, a saber, (1) diferencia-se de Mateus e Lucas ao não começar seus relatos com a trama do anúncio e nascimento de Jesus Cristo, bem como de Marcos ao colocar antes da aparição de João Batista uma reflexão poético-teológica a respeito da personagem principal do seu Evangelho, que neste primeiro momento é chamada de Logos, o Verbo e (2) coloca-se, de maneira absolutamente diferente em relação aos outros evangelistas ao começar seus relatos não a partir de narrativas, mas sob a égide da poesia ou de um poema sapiencial, a exemplo da poesia judaica encontrados em livros canônicos como Provérbios e Eclesiastes.

Se seguirmos as observações de Eagleton (2013) de que quase todas as obras literárias começam com palavras que já tinham sido usadas antes, embora combinadas de forma diferente, e que a compreensão delas depende desta identificação de cunho cultura com textos já existentes, podemos dizer que o prólogo joanino é inspirado em outros textos já existentes – como os textos de sabedoria judaicos – e que ele é um guia pare a leitura de todo o evangelho, bem como para compreensão do "tom" que todo o evangelho ganhará a partir dali. A respeito ainda do Prólogo do Quarto Evangelho, seria bom atentarmos para as palavras de Gourgues, em seu comentário desta perícope específica, ao comentar que:

O Prólogo [do Evangelho de João] é um cume a partir do qual é possível contemplar o conjunto do evangelho. Resume a visão global de João sobre o mistério da vida do Cristo. Os temas que nele aparece percorre todo o evangelho. Poucos textos exercem um tal fascínio, não só nos espirituais, mas também na literatura universal. (GOURGUES, 2014, p.28)

Veja que, segundo Gourgues, o prólogo do Quarto Evangelho não é apenas uma bela peça poética, é, antes e acima de tudo, um sumário poético das verdades a respeito de Jesus Cristo que o evangelista quer que o seu leitor saiba; ou seja, para o narrador, o Cristo que aparece como personagem principal do seu evangelho é a "Palavra" de Deus (v.1); que essa Palavra habitava com Deus e que ela é responsável por todas as coisas que existem (vv.2, 3). Este que é a Palavra é portador de "Vida" (v.4) e que esta vida é "Luz" para os homens (v.5) e que esta luz resplandeceu nas trevas e as trevas a rejeitaram. Todo esse enredo poético será desenvolvido em todo o Quarto Evangelho por meio de uma narrativa artisticamente construída.

2.3.1 O evangelho como gênero textual

Segundo Kümmel (2009), o termo evangelho (to euangélion) teve um uso extremamente versátil na história. A palavra de origem grega tinha, em um primeiro momento, o significado de uma "recompensa pela transmissão de boas novas", de boas notícias. Portanto, se tomarmos essa primeira abordagem em que a palavra aparece, veremos que o termo já era largamente usado no mundo grego para descrever uma paga, uma recompensa que se recebia por um serviço prestado. Com o tempo esse termo passou a significar não a recompensa pela boa notícia, mas a própria boa notícia; daí a ideia de que evangelho seja uma boa nova, uma notícia boa.

Bem antes de os evangelistas usarem esse termo como designativo para seus escritos, a palavra já vinha sendo usada com um sentido religioso, principalmente no culto do imperador, para contar a vida daquele que era considerado os escolhido dos deuses como "o aparecimento do legislador divino universal, sua ascensão ao trono, como também seus decretos são outras tantas boas-novas" (KÜMMEL, 2009, p. 33); a partir desses primeiros sentidos históricos a palavra evangelho passa a fazer parte do vocabulário antigo como um gênero literário.

No Novo Testamento, o evangelho tem um significado especial de "boa-nova de salvação". Ainda segundo Kümmel (2009), o autor neotestamentário que usa o termo evangelho para designar especificamente seus escritos é Marcos (Mc 1.1) quando inicia a sua narrativa sobre Jesus, dizendo: "Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus". Foi só no começo do Séc. II que o termo evangelho começou a ser usado como boa nova escrita de salvação e posteriormente aplicados também aos escritos a respeito de Jesus, aí já sendo usados no plural, os evangelhos (ta euangélia). Foi também em meados do Séc. II que Justino, por influência da designação de Marcos para sua narrativa a respeito de Jesus Cristo, empregou a palavra para designar não apenas a proclamação cristã falada ou escrita, mas todos os documentos canônicos que relatam a vida e o ministério de Jesus.

Ao emoldurar seus escritos sob determinado gênero literário, os evangelistas – e dentre eles o narrador do Quarto Evangelho – fornece ao leitor de suas narrativas um direcionamento de leitura que lhes era provida, primordialmente, pela definição literária do gênero. Como nos indicam os escritores da Introdução ao novo testamento (CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p. 53), a questão de definição do gênero "é uma questão importante para o leitor dos evangelhos, porque uma interpretação exata depende, até certo ponto, da determinação precisa do gênero".

Falando ainda sobre a importância da determinação do gênero literário para uma melhor e mais clara leitura da obra literária, bem como para posteriores aproximações críticas dessas abras, Moisés (2012, p. 50, 51) diz-nos que:

[...] Os gêneros devem ser encarados, não como um fim, mas como um meio. Em vez de examinar as obras tendo em mira classificá-las em gêneros, espécies e forma, o crítico se propõe a julgá-las e interpretá-las depois que as submete à sistematização [...] Ou seja, não tem como submeter obras á crítica sem antes situá-las em categoria. [...] O entendimento de um texto está condicionado, por conseguinte, à sua inclusão no perímetro de um gênero, espécie ou forma.

O entendimento de Moisés sobre a utilidade e importância do gênero na construção de uma análise que atende as expectativas teóricas da crítica literária mais cuidadosa, isto é, de uma análise que veja a obra com um todo encapsulado ou emoldurado em determinado gênero, como diz Maggioni (2006, p.262), ajuda-nos a perceber – em especial no caso do Quarto Evangelho – sua unidade como característica primeira que é bem mais importante que as diferenças que podem ser apontadas nessas obras. Vem daí uma das importâncias fundamentais de identificar o gênero de uma obra literária; ou seja, ao moldar sua escrita literária a um gênero determinado, o autor está auxiliando o leitor a direcionar seu olhar diante daquela obra e dando a esse leitor limites e possibilidades de leituras e interpretações.

É com propriedade, então, que Kermode (2007, p. 404), depois de analisar as possibilidades de construção histórico-literárias dos evangelhos, chega à conclusão de que "o que parece claro é que os evangelhos foram inspirados pela necessidade de registrar por escrito algo da vida e dos ensinamentos de Jesus", o que reforça a ideia de que os evangelistas escreviam para proclamar as boas-novas da manifestação de Cristo, recontando fatos do seu nascimento, ministério, morte e ressurgimento.

Segundo Kermode (2007), outro fator que deve ser notado em relação aos gêneros literários é que constantemente novos gêneros estão se formando a partir daqueles já existentes; o que levaríamos a ter dificuldade para ler uma obra cujo gênero não tivesse nenhuma familiaridade com outros gêneros já conhecidos; mas como nenhum texto pode se formar sem que outro texto lhe sirva de modelo, de referência, muitos tem percebido semelhança entre os evangelhos e outras formas de escrita do seu tempo. Afirmativa que parece caminhar na mesma esteira das afirmações de Kristeva (2005), ao refletir sobre os pensamentos filosóficos e linguísticos de Bakhtin e que acabou por criar um neologismo que ficaria cravado como referência nos estudos do texto – o de intertextualidade –, quando diz que "todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade, e a linguagem poética lê-se pelo menos como duplo." (KRISTEVA, 2005, p. 68, grifo nosso). Adiante trataremos mais detidamente sobre esse conceito à luz da teoria bakhtiniana.

Ancorados, pois, nas observações de Kristeva de que todo texto é a absorção e transformação de outro texto, ainda que afirmemos, como faz Léon-Dufour (1996), que o evangelho é um gênero em si mesmo, não podemos deixar de considerar as semelhanças que existem entre ele o bios helenista, uma vez que nenhum gênero pode nascer por ele mesmo sem o auxilio de outras formas já existentes. Como afirma Bakhtin:
O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individualmente de um dado gênero. Nisso consiste a vida do gênero. [...] O gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o representante da memória criativa no processo de desenvolvimento literário. É precisamente por isso que tem a capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento. (BAKHTIN, 2013, p. 121)

Observadas tais colocações, é preciso que comparemos o gênero evangelho a outros gêneros que circulavam na sociedade Greco-romana no primeiro Século depois de Cristo. Tais comparações nos são necessárias, também, para que possamos provar a tese sobre a qual está firmada esta seção do nosso trabalho, a saber, que o gênero literário é uma chave de leitura para o texto literário; ou, em outros termos, que o gênero é um indicador e guia de leitura e de interpretação. Como indicado por Dosse, em seu estudo que trata das características históricas do gênero biografia:

A biografia responde a um certo número de cânones estéticos na medida em que se apresenta como gênero específico, capaz de satisfazer a determinadas exigências, nos termos do pacto de veracidade assinado entre o biógrafo e o leitor. Essa estética da biografia pressupõe o emprego de uma variação de enfoques, de uma escala de pontos de vista [...]. (DOSSE, 2009, p. 67)

Temos então que, sob aparente influencia da bios, o evangelista constrói uma espécie de retrato de seu herói que, apesar de não ser uma cópia daquilo que fizeram os outros evangelistas, cumpre o propósito de mostrar não apenas a vida, mas o caráter ímpar das ações, palavras e silêncios (cf. Jo 8.7-8) do seu Cristo. Como indicado pelo escritor e biógrafo antigo Plutarco em sua Vida de Alexandre:

Assim como os pintores, em seus retratos, procuram captar o rosto e os traços exteriores capazes de deixar transparecer o caráter, ignorando as outras partes do corpo, assim nos seja permitido também em nossa análise os sinais e traços, a partir deles, a vida destas duas personagens. Que outros se ocupem dos grandes acontecimentos e dos combates (PLUTARCO apud DOSSE, 2009, p.130)

Fazendo uso de uma metáfora, Plutarco sinaliza uma das funções principais do biogravo que se debruça sobre uma vida para dela apreender lições para outras gerações. Para ele o mais importante não é contar toda a vida do biografado, mas selecionar dentre os grandes fatos de sua vida aqueles que podem servir de inspiração, de modelo de virtude, para outras vidas. E, nesse sentido, parece que a narrativa contida no Quarto Evangelho em muito se parece com esse retrato-modelo que pode servir como inspiração para outras gerações; ainda que o quarto evangelista para começar sua narrativa sirva-se de um artifício poético.

Outra característica da bio helênica que aparece no Quarto Evangelho é a preocupação do biógrafo em expor os motivos pelos quais está contando sua história. Ao revelar seus objetivos o biógrafo não apenas clareia a mente do seu leitor, mas também dá faz com ele uma espécie de contrato de leitura, isto é, ao dizer o que está escrevendo e para que o está escrevendo o escritor emoldura sua biografia e, por assim dizer, direciona o olhar do seu leitor.

Em geral, o biógrafo expõe as motivações que o levaram a acompanhar a vida do biografado e retraçar-lhe a carreira. Revela seus objetivos, suas fontes e seus métodos, elaborando assim uma espécie de contrato de leitura com o leitor. Essa prática de expor intenções é bastante clássica, mas assume no gênero biográfico uma importância singular que a transforma num rito quase obrigatório [...]. (DOSSE, 2009, p. 95)

Não é muito difícil percebermos como esse artifício foi adotado pelos evangelistas. Se olharmos de maneira geral todos os evangelistas usaram esse "rito" ao contar sua história sobre a vida de Jesus Cristo. Mateus, por exemplo, chama sua narrativa de "Livro da genealogia de Jesus Cristo" (Mt 1.1) enquanto que Marcos diz que o livro que ele preparou é o "evangelho de Jesus Cristo" (Mc 1.1). Se concordarmos que essas introduções podem ser consideradas como as motivações e os objetivos das narrativas, temos que concordar também que aquele que melhor aplicou esse princípio foi o evangelista Lucas ao traçar detalhadamente a motivação, método e forma da construção de seus relatos sobre "os fatos" a respeito de Jesus. No Quarto Evangelho esse mesmo elemento aparece de maneira calara; a diferença é que neste evangelho essa condução de leitura aparece no fim e não no começo, como é no caso dos outros Evangelhos.
Jesus, pois, operou também, em presença de seus discípulos, muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome. (João 20.30-31)

Em o Quarto Evangelho surge ainda outro indício de que os autores/editores tinham conhecimento do modelo da bios: o fato de que o objetivo da obra e seu fechamento aparece em outro lugar do Evangelho (Jo 21.24-25). Parece haver uma concordância entre os estudiosos dos Evangelhos (MAGGIONI, 2006; HENDRIKSEN, 2014; CARSON, 2007) de que o capítulo vinte e um se caracteriza como um acréscimo posterior de redatores ou editores que sentiram a necessidade de repetir em outras palavras aquilo que já tinha sido dito pelo narrador no capítulo vinte ou fazer outro fechamento mais dramático para o Evangelho que não aquele que aparece acima. Essa dramaticidade é percebida quando o narrador se apresenta como uma testemunha e discípulo "que escreve essas coisas" (v.24) e quando supervaloriza os atos dos quais é testemunha ao usar uma hipérbole para falar das "muitas outras coisas" (v.25) praticadas por seu herói.

Se for então correta a afirmativa de que o evangelista não apenas conhecia, mas trouxe para sua narrativa algumas das características encontradas da bios helênica, podemos dizer que sua intenção era não apenas produzir um texto que atendesse aos seus propósitos – a proclamação da vida, morte e natureza do Cristo –, mas também que pudesse ser compreendido por seu leitor por conta de sua identificação com outros gêneros conhecidos e que circulavam no período da composição e divulgação do Quarto Evangelho. É neste sentido que podemos concordar com Culler quando reflete sobre o papel do gênero literário. Diz ele:

O que são os gêneros e qual o seu papel? Termos como épica e romance são simplesmente maneiras convencionais de classificar as obras com base em semelhanças grosseiras ou eles têm funções para o leitor? Para os leitores, os gêneros são conjuntos de convenções e expectativas: sabendo se estamos ou não lendo uma história policial ou uma aventura amorosa, um poema lírico ou uma tragédia, ficamos à espreita de coisas diferentes e fazemos suposições sobre o que será significativo. Lendo uma história policial, procuramos pistas de uma maneira que não fazemos quando estamos lendo uma tragédia. (CULLER, 1999, p.75)



Tem-se, então, que, ao aproximar-se de um gênero o leitor é persuadido pelo próprio gênero do qual aproximou-se, concordando em ser guiados por ele aos encontros de direcionamento que só nele e por meio dele podemos encontrar aquele tipo de história que nos propomos a ouvir, o que Eco (2012) chama de uma "pacto" de leitura.

Cada gênero precisa ser lido de maneira diferenciada. E esse princípio vale também para os evangelhos. Quando os primeiros leitores desses documentos se aproximavam deles, procuravam encontrar neles histórias a respeito do Cristo que fossem condizentes com o gênero ao qual eles pertenciam. Em outros termos e sobre outra ótica poderíamos dizer que ao emoldurar suas narrativas a respeito do Cristo em determinado modelo de escrita, os narradores criavam uma espécie de direcionamento de leitura para que estes soubessem como seus relatos precisavam ser lidos.

O mesmo autor continua seus raciocínios dizendo de outra característica da bios. Segundo indicado por ele:

[Desde a Antiguidade] o gênero biográfico teve por função principal identificar. Prestou-se ao discurso das virtudes e serviu de modelo moral edificante para educar, transmitir os valores dominantes às gerações futuras [...]. A biografia é um gênero antigo, que se disseminou tendo por base a noção de bioi (bios) e não se preocupa de retraçar apenas a "vida", mas também a "maneira de viver" [...] a partir do qual avaliamos esta ou aquela atitude com a finalidade de transmitir valores edificantes às gerações vindouras, é um aspecto fundamental que reencontramos ao longo do percurso histórico do gênero biográfico. (DOSSE, 2009, p.123)

Essas duas características referentes às biografias antigas, ou seja, sua padronização estética e sua preocupação não só com os fatos ordenados da vida de alguém, mas também com os exemplos de vida que esse alguém pode ensinar às gerações futuras, podem ser vistas muito facilmente na construção dos evangelhos, principalmente no Quarto Evangelho.

2.3.2 Leituras do Quarto Evangelho

O Quarto Evangelho é um dos mais conhecidos dentre os evangelhos canônicos; isso se dá em muito por conta da exclusividade de suas narrativas, isto é, algumas das narrativas mais populares da vida e das histórias contadas a respeito de Jesus estão nesse evangelho. Apesar de sua audiência entre leitores modernos, sua leitura ainda se constitui um desafio para todos aqueles que se aproximam desse evangelho para estudá-lo de forma mais detida e acurada. Muito dessas dificuldades nos são apresentadas por conta da linguagem peculiar que o narrador empreende para contar sua história e por causa da nossa dificuldade em entendermos o mundo descrito no texto. Daí a afirmativa de que nossos recursos de interpretação ainda serem insuficientes na aproximação do Evangelho de João (FABRIS; MAGGIONI, 2006). Concorde-se ou não com as leituras que fizeram do documento, não pode ser negado o fato de que elas foram lidas de muitas e de variadas perspectivas, o que acabaram por contribui para a construção de uma história da leitura do evangelho joanino.

Nesta seção do nosso trabalho apontaremos algumas das leituras adotadas na história a respeito do Quarto Evangelho, e veremos como o foco de leitura dessas narrativas, ainda que elas sejam narrativas canônicas podem variar dependendo da abordagem que se adote na aproximação desse documento. Pensamos em três momentos que, a nosso ver, se constituem momentos de descontinuidade na leitura que era feita até então; esses períodos históricos e de leitura do Quarto Evangelho podem ser representado por figuras de leitores modelo que representam cada um desses períodos.

As figuras representativas das leituras que se fizeram do Evangelho de João são: Eusébio de Cesareia, Rudolf Bultmann e R. Alan Culpepper. Como não é o nosso intuito fazer um trabalho exaustivo de pesquisa de história da leitura, entendemos que esses três autores serão de valia para que observemos três momentos distintos de leitura e de como esses momentos são importantes para a construção de uma compreensão do Quarto Evangelho.

A. Eusébio de Cesareia. O historiador e escritor cristão do terceiro século depois de Cristo, Eusébio (263-340 d.C.), ficou conhecido por conta de sua importante obra, História Eclesiástica. Em seu livro o historiador intenta fazer uma síntese dos acontecimentos na história da igreja cristã desde os dias de Cristo até o Concílio de Nicéia (325 d. C.). No que diz respeito ao Quarto Evangelho seu trabalho como historiador mostra as crenças que circulavam na igreja dos primeiros séculos. É importante pois nos dá algumas pistas de como os documentos que hoje chamamos de evangelhos eram vistos pela chamada Igreja Primitiva.

Logo no capítulo dois de sua história, Eusébio intenta fazer uma reconstrução da História da humanidade partindo da existência de Deus e para dar base ao seu argumento usa o Quarto Evangelho colocando-o lado a lodo com o livro de Gênesis (EUSÉBIO, 1995, p.17). O que demonstra que já em seu tempo era comum à igreja considerar o Quarto Evangelho como escritura sagrada, assim como o livro de Gênesis. Não é sem razão que Carson (2007) argumenta que desde os primeiros anos do cristianismo o Quarto Evangelho era considerado como documento inspirado por Deus e tomado como canônico. Em seu livro Eusébio transmite as palavras de Irineu, que por sua vez conheceu pessoalmente Policarpo e Papias, discípulos do Apóstolo João que, segundo a tradição, é o escritor do Quarto Evangelho que só por volta de 125 d. C. ganharia o nome de Evangelho de João. Segundo Eusébio:

[...] De todos os discípulos, Mateus e João são os últimos que nos deixaram comentários escritos e, mesmo eles, diz a tradição, foram forçados a isso. [...] João, sendo solicitado a fazê-lo, escreveu um relato do tempo não registrado pelos evangelistas anteriores, e os atos realizados por nosso Salvador, os quais tenham deixado de lado (pois foram os eventos que ocorreram antes da prisão de João [batista]). [...] Quem atenta para essas circunstâncias não pode deixar de nutrir a opinião de que os Evangelhos estão em desacordo uns com os outros, porque o Evangelho de João compreende os primeiros atos de Cristo, mas os outros, a história que aconteceu na parte final do período. (EUSÉBIO, 1995, p. 102-103)

Para Eusébio, e consequentemente para a igreja dos primeiros séculos do cristianismo, o documento que hoje conhecemos como o Evangelho de João, foi um dos dois evangelhos produzidos por discípulos de Jesus, ainda que sua produção tenha sido forçada por conta de necessidades da Igreja, e não produzidos pela livre vontade dos apóstolos.

É notória também a preocupação entre os primeiros cristãos de já desenhar uma harmonia dos evangelhos para dirimir possíveis desacordos em relação à composição dos evangelhos canônicos que, segundo o historiador, pode ser explicada pela intenção de cada evangelista em contar episódios determinados da vida de Cristo. Falando especificamente do Quarto Evangelho, diz Eusébio:

[...] Damos agora sua palavras [de Irineu] e, em primeiro lugar, o que disse acerca dos Evangelhos sagrados: "Mateus, de fato", afirma ele, "produziu seu Evangelho escrito entre os hebreus [...] Marcos, intérprete e discípulo de Pedro, também transmitiu a nós por escrito o que fora pregado por Pedro. E Lucas, o companheiro de Paulo, colocou por escrito o evangelho pregado por ele, isto é, Paulo. Depois João, o discípulo de nosso Senhor, o mesmo que reclinava sobre seu peito, também publicou o Evangelho enquanto ainda estava em Éfeso na Ásia". Isso é o que Irineu diz no terceiro livro da obra já mencionada [...]. (EUSÉBIO, 1995, p. 174-175)

Como visto a leitura que se fez dos evangelhos nos primeiros séculos, sempre baseadas em sua sacralidade como livros inspirados, foram mediadas por compreensões e testemunhos advindos de pessoas que tomavam por base o princípio de que os livros tinham sido escritos por pessoas que, apesar de atenderem ao pedido ou necessidades de suas comunidades de fé, eram guiadas por uma inspiração maior e mais nobre. É neste sentido que podemos dizer que a leitura que se fez do Quarto Evangelho, neste período, é uma leitura que o tomou como um "evangelho espiritual", sem considerar outro autor que não fosse do Apóstolo João.

B. Rudolf Bultmann. Muito diferente da leitura que se fazia nos primeiros séculos da era cristã, a abordagem do teólogo alemão Rudolf Bultmann (1884-1976) diferencia-se drasticamente da leitura dos pais da igreja, como Policarpo, Papias e Eusébio. Guiado em suas leituras do Novo Testamento por um método hermenêutico que foi desenvolvido e denominado por ele de desmitologização, que tinha como principal propósito libertar "a palavra de Deus de uma visão já superada" (BULTMANN, 2003, p. 34). Com a chegada do Iluminismo muitos dos pressupostos que até então não eram questionados, passaram a ser largamente questionados pelas várias ciências, inclusive a teologia. É nessa esteira que o valor de verdade da Bíblia será colocado em cheque, inclusive sobre a fidelidade histórica dos Evangelhos. Neste mesmo sentido, o Quarto Evangelho ganhou certa visibilidade muito por conta das especificidades em relação ao trato dos discursos e "sinais" operados por Jesus.

Em uma sociedade que cada vez menos priorizava o sobrenatural e a visão mística do mundo, o modo como o narrador do evangelho joanino tratava as questões a respeito da história do Cristo acabou por fazer como que ele ganhasse certa primazia em relação aos outros evangelhos que aparecem na Bíblia, ainda que, segundo Carson (2007), esses motivos sejam questionáveis. Esta primazia, porém, começaria a mudar em 1835 como os trabalhos de David Friedrich Strauss, que questionou os modos narrativos que apareciam no Quarto Evangelho classificando-os como 'mito'.

No que diz respeito ao Evangelho de João, o mais importante interprete a estudá-lo foi Bultmann que levando em conta o seu método hermenêutico considerava que (1) o Quarto Evangelho tinha como sua base mais importante o gnosticismo; (2) que a única coisa que os historiadores podem saber sobre Jesus é de que ele existiu, e não que ele seria um salvador e fazedor de milagres, obviamente essa visão é resultante de sua forte tendência ao anti-sobrenaturalismo; (3) encaixou o evangelho de João em "formas mais tradicionais" de cristianismo dividindo o livro em um "livro de sinais", em uma fonte discursiva e um "redator eclesiástico" e, por fim, (4) ele entendia que o cristianismo e seus documentos poderiam ser melhor entendidos quando "demitologizado", livres das crenças que a sociedade do seu tempo não poderia aceitar. Ao falar sobre o seu método hermenêutico, Bultmann diz:

A este método de interpretação do Novo Testamento que trata de redescobrir o seu significado mais profundo, oculto atrás das concepções mitológicas, eu o chamo de desmitologização [...] Uma ou outra vez chega aos meus ouvidos a objeção de que a desmitologização transforma a fé cristã em uma filosofia. Esta objeção parte do fato de que eu chamo à desmitologização uma interpretação, uma interpretação existencialista [...]. Compreendermos melhor este problema se recordarmos que a desmitologização é um método hermenêutico, isto é, um método de interpretação, de exegese, posto que a "hermenêutica" é a arte da exegese. (BULTMANN, 2003, p. 16, 37)


Quando explica o seu método de interpretação, Bultmann afirma que o seu maior objetivo é tirar das narrativas bíblicas a sua carga mitológica, aqueles traços narrativos que podem ser consideradas como mito. Esta tomada de posição, acabou ir contra tudo aquilo que era crido pela igreja desde os primeiros séculos, passando pela Idade Médica e Reforma Protestante. Bultmann nega a historicidade dos relatos dos Evangelhos, ao mesmo tempo em que desconsidera toda a tradição construída antes dele. Quando se refere ao Quarto Evangelho, o autor diz que:

A terminologia gnóstica serviu, sobretudo, para expor com clareza o evento salvífico. Segundo ela, o redentor aparece como uma figura cósmica, como o ser divino preexistente, o filho do Pai, que desceu do céu e assumiu figura de ser humano, que de sua atividade terrena, foi elevado à glória celestial e conquistou o domínio sobre os poderes espirituais [...] Por natureza, um processo desses não acontece sem influência de conteúdo. E assim como o cristianismo helenista foi envolvido no processo sincretista por meio da formação do culto ao Κύριος [Senhor], tanto mais isso aconteceu pela formação da doutrina da redenção sob influência gnóstica. (BULTMANN, 2004, p. 230, 218)

A abordagem adotada por Bultmann a respeito do Novo Testamento e o Quarto Evangelho, acabou por trazer uma total negação não apenas da inspiração dos evangelhos, mas também de um desprezo às narrativas contidas nesses evangelhos. Como resultado de suas posições, as ideias de Bultmann acabaram por ser desconsideradas por grande parte dos grupos cristãos mais conservadores; apesar de esses mesmos grupos o considerar um dos maiores intelectuais do século vinte.
C. R. Allan Culpepper. Outra tomada de posição que mudaria completamente a perspectiva em que o Quarto Evangelho seria lido foi a adotada por R. Allan Culpepper. Ancorado na tese de que o significado do texto "se produz a partir do movimento mental" que esse texto convida o leitor a realizar, Culpepper empreende uma analise do evangelho que parte das categorias da crítica literária tais como tempo, enredo, personagens, o autor implícito, etc.

Ao fazer uso de tais categorias o autor muda drasticamente o ponto de partida pelo qual as abordagens a respeito do Evangelho de João eram feitas até então. Outra ideia que merece destaque no trabalho de Culpepper em relação ao Quarto Evangelho é o modo como ele encara a função dos personagens. Para o estudioso, cada personagem que aparece no evangelho tem a função de revelar uma característica, ou uma resposta possível, à pessoa de Jesus. Assim, por exemplo, os fariseus representavam a "rejeição total" enquanto que o discípulo amado representava a "fé exemplar", etc.. Essa abordagem teria como principal propósito analisar as narrativas do Quarto Evangelho não olhando para uma leitura diacrônica, mas em relação a sua construção como narrativa de cunho literário. No livro Anatomy of the fourth gospel (1983), o autor trabalha cada um desses pontos de maneira separada para que o leitor perceba como cada uma delas vai moldando a narrativa ao mesmo tempo em que vão trazendo novas compreensões a respeito dela.

O narrador transmite ao leitor a perspectiva do autor e manda sinais que estabelecem expectativas, distância e intimidade, e poderosamente influenciam o senso de identificação e envolvimento do leitor. As reivindicações do narrador e as normas do relato cortejam, acenam e desafiam o leitor a acreditar que a história narrada, seu mundo narrativo e seu personagem central revelam algo profundamente verdadeiro sobre o mundo 'real' no qual o leitor vive.

Pelo menos originariamente, é a criação literária do evangelista, que é manipulada com o propósito de conduzir os leitores a 'ver' o mundo como o evangelista o vê, de modo que, ao ler o evangelho, eles serão forçados a testar suas percepções e crenças sobre o mundo 'real', em comparação à perspectiva do mundo do evangelista que se encontraram no evangelho. (CULPEPPER apud WAVGINIAK, 2006, p.33-34)

Apesar de ainda ser visto com resalvas, o método de interpretação adotado Culpepper pode ser considerado como um marco nas abordagens que se fizeram com respeito às interpretações do quarto dos evangelhos bíblicos. Não é, pois, sem motivo que Carson (2007), em comentário ao Evangelho de João, argumenta que, apesar das discordâncias em relação à aproximação das narrativas bíblicas pelo viés da crítica literária, os trabalhos de Culpepper ainda precisam ser bem estudados por teólogos e não teólogos e que eles ainda por muito tempo ditarão o modo de aproximação dos evangelhos, em considerando a composição narrativa deles.

2.3.3 O narrador e sua história

A análise de qualquer narrativa – e isso inclui as narrativas bíblicas – deve levar em conta seus elementos mais importantes tais como tempo, cenário, personagens, enredo e um narrador. É preciso que se diga, também, que apesar da importância desses elementos para construção da narrativa, em uma análise, um ou outro destes elementos terá maior ou menor prioridade; sem contar o fato de podermos estudar as implicações de um desses elementos separadamente. Por exemplo: ao se estudar o narrador, pode se privilegiar um tipo especifico de narrador, ou seja, se o narrador que ali aparece é um "narrador intruso", ou um "narrador testemunha", ou um "narrador onisciente", etc. Começaremos, então, definindo o que é o narrador, e mostrando sua ocorrência no Quarto Evangelho, para depois podermos entender qual o tipo de narrador que ali aparece e como sua influência nos dá parâmetros para leitura e compreensão dessa obra.

Ao escrever em sua tese de doutoramento sobre o evangelho de Mateus, João Cesário Leonel Ferreira (2006) indica que, por possuir características diferenciadas dos outros evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas), o Quarto Evangelho – que ele chama de evangelho de João – merece tratamento à parte; e isso, em nosso modo de entender, deve ser considerado também em relação ao narrador. Assim, começaremos por entender qual a função do narrador na narrativa.

Em seu famoso ensaio em que trata do narrador e sua importância e posição na narrativa, Adorno (2003) mostra que é de fundamental importância reconhecer a figura do narrador como aquele que tem uma história para ser contada; e ao contar essa história ele se coloca como um "atento comentador" que se posiciona ideologicamente, como aquele que toma partido, a favor ou contra determinadas personagens. Daí o fato do narrador colocar-se como uma câmara de cinema a conduzir a visão do leitor que "é ora deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentário até o palco, os bastidores e a casa de máquinas" (ADORNO, 2003, p.61), ou seja, o leitor vai sendo conduzido na narrativa por uma voz que lhe serve de olho e que lhe diz para onde deve olhar. Não é, pois, sem razão que Jack D. Kingsbury, ao definir a função do narrador, diz que ele "é a voz, ou locutor invisível, que o leitor ouve à medida que ele ou ela se move através da história, aquele que conta ao leitor à história" (KINGSBURY apud FERREIRA, 2006, p.199).

Ao falar do narrador na dinâmica da comunicação narrativa, Reis e Lopes (2002), antes de definir o que é o narrador de uma história, procuram deixar clara a diferença existente entre o narrador e o autor de uma narrativa ao que o primeiro é uma entidade real enquanto que o segundo é encarado como um autor textual a quem cabe a tarefa de enunciar o discurso. Ao prosseguirem em sua conceituação de narrador os autores dizem que:

A descrição do conceito de narrador não deve processar-se de forma rigidamente formalista. Mesmo reconhecendo-se a sua especificidade ontológica, importa não esquecer que o narrador é, de fato, uma invenção do autor; responsável, de um ponto de vista genético, pelo narrador, o autor pode projetar sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas, culturais etc. que perfilham, o que não quer dizer que o faça de forma direta e linear, mas eventualmente cultivando estratégias ajustadas à representação artística dessas atitudes [...] As funções do narrador não se esgotam no ato de enunciação que lhe é atribuído. Como protagonista da narração ele é detentor de uma voz observável ao nível do enunciado por meio de intrusões, vestígios mais ou menos discretos da sua subjetividade, que articulam uma ideologia ou uma simples apreciação particular sobre os eventos relatados e as personagens referidas. (REIS; LOPES, 2002, p.62-63)

Vemos então que por definição o narrador é uma voz protagonista da narrativa que conduz o leitor por seu relato mostrando-lhe sua visão a respeito dos fatos e das personagens por ele descritas. Ao falar especificamente sobre o narrador do Quarto Evangelho, é pontuado por Freyne (1996) a forma como esse narrador organiza a sua história de maneira singular, como uma "verdadeira criação literária".

Entre todos os evangelhos, o de João é o que poderia ganhar reconhecimento geral como verdadeira criação literária, com sua linguagem e estilos característicos, seus trocadilhos sutis e seu uso de ironia. Apesar de os estudiosos recentes das críticas das fontes e da redação virem abalando gravemente o pressuposto de que ele seja obra de uma só mão, um "tecido sem costuras de cima a baixo", a maioria admitiria haver um ponto de vista distintivo de João que recebe na obra uma expressão verdadeiramente literária. (FREYNE, 1996, p.105, grifo nosso)

As características linguísticas, artificiais e narrativas apresentadas no Quarto Evangelho são percebidas pela presença de um narrador que se destinge em sua obra pelo modo característico com que se apresenta na narração por ele contada. Falando especificamente sobre o narrador, Culpepper argumenta que o narrador do Quarto Evangelho exerce funções múltiplas na condução de sua narrativa a respeito de Jesus, o Cristo. Segundo ele, no Quarto dos evangelhos bíblicos,

O narrador conduz o leitor por meio da narrativa, apresenta o leitor ao mundo da narrativa e aos personagens que devem visualizar no enredo. Em João, o narrador é aquele que fala no prólogo, conta a história, introduz o diálogo, fornece as explicações, traduz termos e nos conta o que vários personagens sabiam ou não sabiam. (CULPEPPER apud WAVGINIAK, 2006, p.29, grifos nossos)

Se tomarmos por base a classificação que nos é apresentada por Gancho (2002) e as características do narrador do Quarto Evangelhos apresentadas a nós por Culpepper (1983), podemos classificar o narrador do evangelho joanino como um "narrador onisciente intruso", ou seja, ele sabe de tudo o que acontece na história e com as personagens dessa história; narra sua história em terceira pessoa e é um narrador que fala com o leitor de sua história dando-lhe algumas pistas de como identificar a função e importância de cada um dos fatos e personagens, além de comentar esses fatos e ações. Vejamos um exemplo de como o engenho literário do narrador pode ser percebido em uma narrativa do Quarto Evangelho. A história é aquela que ficou conhecida pelos editores e estudiosos como "a purificação do templo".

Segundo a narrativa (Jo 2.13-22), estando perto o tempo de uma das grandes festas dos judeus – a festa da Páscoa – Jesus e os seus discípulos foram à cidade de Jerusalém, centro político e religioso da nação, e, ao chegar ao Templo, viu que muitos cambistas estavam vendendo "bois, ovelhas e pombos"; diante da cena de degradação religiosa do lugar sagrado, Jesus arma-se de um azorrague, um chicote, e passa a expulsar a todos os mercadores do Templo junto com suas mercadorias deixando espalhado pelo chão o dinheiro e derrubada suas mesas. Ao ser perguntado pelos judeus com que autoridade ele – Jesus – fazia aquelas coisas é-lhes dado a seguinte resposta: "Derrubarei esse templo e em três dias o levantarei" (Jo 2.19). Como podemos notar a resposta de Jesus não responde à pergunta que havia sido feita, mas para a comunidade leitora do Quarto Evangelho aquelas palavras faziam sentido no momento em que, ancorados na intromissão do narrador ("ele falava do templo do seu corpo" v.21), entenderam que as palavras e a narrativa como um todo ganharam novo significado com a ressurreição do Cristo. Ao analisar essa narrativa Kermode diz que:

A versão de João da Purificação difere dos Sinóticos porque ocorre no início e não perto do fim do ministério [de Jesus]. Ela difere também pelo fato de somente João armar Jesus com um chicote [...]. O incidente cumpre uma profecia de Zacaria, de que no dia do Senhor nenhum mercador será visto no Templo (Zac. 14:21). [...] João não chama a Purificação de sinal, mas "os judeus" pensam que é, e perguntam: "Que sinal nos mostra?" (2:18). Eles são como a multidão de Marcos [Mc 11.18], que vê, mas não podem compreender; para os judeus, a resposta de Jesus é obscura, e eles endurecem seus corações. (KERMODE, 2007, p.483)

Como indicado por Maggioni (1992) essa passagem mostra, no que diz respeito ao narrador e a narrativa bíblica, algumas características importantes. A primeira coisa que podemos observar nesta narrativa joanina é a condução do leitor pelo narrador. Munido de uma história que era comum aos outros três evangelistas, o narrador do Quarto Evangelho enriquece ser enredo com dois elementos que lhe são peculiares: (1) colocar a narrativa da purificação no início das ações ministeriais de Jesus, diferente dos outros evangelistas que a coloca no fim do ministério de Jesus e (2) armar Jesus com um chicote, coisa que os outros evangelistas não fazem.

Falando sobre essa característica distintiva do narrador, Carson (2013) argumenta que ao mover a purificação para o início de sua narrativa o quarto evangelista está reconhecendo o ato de Jesus ao purificar o tempo como um ato profético e pragmático que guiará o seu leitor nas demais ações de Jesus em seus atos posteriores nesse evangelho. E acrescenta dizendo que o intuito de João não era arrumar cronologicamente as ações de Jesus, mas dar-lhe um significado no todo da narrativa sobre o Messias. Assim "como todos os evangelistas arranjam, com frequência, seu material em ordem tópica, e não cronológica" (CARSON, 2013, p.177), o narrador do Quarto Evangelho não tem uma preocupação cronológica ao contar sobre a ação de Jesus no templo, sua preocupação é mostrar o cuidado de Jesus com a casa do Pai, bem como deixar ao seu leitor a consciência que Jesus tinha em relação a sua paixão, morte e ressurreição.

Quanto ao segundo elemento diferenciador da narrativa no Quarto Evangelho – o "azorrague" – Léon-Dufour (1996) vê nele apenas um elemento que o narrador usa para trazer maior dramaticidade ao episódio; enquanto que Carson (2013) entende que ele é não apenas verossímil, mas necessário, uma vez que não seria possível dispersar "bois, ovelhas e pombos" sem o auxílio de uma ferramenta como um chicote ou coisa parecida. Ainda assim, o autor lembra que "sua ação poderia não ter causado um tumulto turbulento, ou teria havido rápida represália por parte das tropas romanas na fortaleza de Antônia, que vigiava perto do complexo do templo" (CARSON, 2013, p.180).

Como bem apontado por Culpepper (1983), no Quarto Evangelho o narrador é aquele que fornece as explicações necessárias para compreensão da história, constituindo-se, assim, como um narrador intruso que conta sua história, mas que intervém para que sua narrativa fique clara ao seu leitor. No caso da narrativa que estamos analisando, o narrador coloca-se na posição de intérprete para explicar aquilo que o seu leitor corre o risco de não entender na narrativa da maneira que o evangelista queria que ela fosse entendida.

Quando conta sobre o embate entre Jesus e os mercadores e de como os judeus reagiram à ação de Jesus que disse que derrubaria o templo e o levantaria em três dias, o narrador insere uma fala explicativa em sua história ao dizer que "ele falava do templo do seu corpo" (Jo 2.21) e não do templo feito de pedras que servia de lugar de adoração; isso para que os seus leitores soubessem que o Messias estava falando de sua morte e ressurreição e não de uma ação direta contra o templo de Jerusalém (cf. Jo 2.22).

Ao fazer sua análise dessa passagem específica (Jo 2.13-22), Maggioni (1992) lembra-nos ainda de que não podemos deixar passar despercebido o fato de que, apesar de nos fazer entender que os discípulos haviam recordado (v.17) das palavras das Escrituras judaicas, não nos é revelado pelo narrador quando nem como essa lembrança se deu. Longe de ser uma falha, esse fato pode ser caracterizado como aquilo que os críticos da narrativa bíblica têm chamado de "narrativas lacônicas", ou seja, são narrativas em que não nos são dadas muitas informações ou detalhes sobre aquilo que acontece nas histórias ou com suas personagens.

O primeiro a perceber essa característica das narrativas bíblicas foi Erich Auerbach, em sua obra Mimesis, obra central nos estudos da Bíblia como obra literária. Para Auerbach (2004) os autores bíblicos, diferente de Homero, não tinham a intenção de contar apenas histórias de entretenimento, mas de fazer os seus leitores moldarem suas vidas pelo impacto causado por suas histórias; por conta disso os narradores bíblicos, apesar de imprimem grande força em suas narrativas, não se preocupam em revelar detalhes a respeito das mesmas, deixando por conta dos leitores a interpretação de "algo implícito" no texto. Segundo ele:

Não é fácil, portanto, imaginar contraste de estilo mais marcantes do que estes, que pertencem a textos igualmente antigos [a Bíblia e Homero] e épicos. De um lado fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente ligados entre si, sem pressões; acontecimento que se desenvolvem com muita vaga e pouca tensão. Do outro lado, só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa à mente da ação; o restante fica na escuridão. Os pontos culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados; o que há entre eles é inconsistente [...]. (AUERBACH, 2004, p.9)

Apesar de ter aplicado seus estudos ao Antigo Testamento, as observações apresentadas por Auerbach podem ser usadas, sem nenhum tido de agressão intelectual aos textos do Novo Testamento; pois, apesar de dar grande importância às ações concretas de Jesus, o evangelista – a "mente da ação" – não dá importância a elementos que para ele pode ser dispensável ao seu leitor, como no texto acima. Assim, percebemos que o narrador é aquele que seleciona, conduz o leitor e direciona o olhar desse leitor por sua narrativa. No Quarto Evangelho todas essas nuances podem ser percebidas.

Como indicado por Rodrigues (2004) os evangelhos – Mateus, Marcos, Lucas e João – são histórias contadas a respeito de Jesus Cristo, essas histórias eram endereçadas às comunidades de fé do primeiro século e tinham uma função primordialmente kerygmática, isto é, a função de fazer conhecidos os feitos e a vida de Jesus. Essas características das narrativas bíblicas são percebidas quando comparamos os relatos dos evangelistas e quando observamos em que momento desses relatos a figura de Jesus é apresentado pelos narradores dessas histórias. Ainda segundo Rodrigues (2004, p.82):

Assim, quando lemos uma passagem dos evangelhos seria bom considerar não apenas a memória da palavra e da ação de Jesus ali presente, mas também o esforço das comunidades que o seguiram em aplicar esses ensinamentos e atitudes na própria vida. Esse empenho que acaba tornando um evangelho diferente do outro: cada um reflete os desafios de uma comunidade em atualizar a prática de Jesus e de seus primeiros discípulos e discípulas!

Apesar de serem considerados, no que diz respeito ao gênero, evangelhos, as narrativas a respeito de Jesus têm, cada uma delas, suas peculiaridades narrativas e de enredo; cada um dos evangelistas arranjou sua história de maneira que o enfoque a respeito de Jesus é feito de uma maneira especial e singular; mas todas elas com um só objetivo régio: fazer Jesus conhecido e despertar fé nos ouvintes. Como afirmado por Kümmel (2009, p.35) "os evangelhos não foram escritos para recordar Jesus ou para glorificar os seus milagres, constituindo estes últimos apenas como parte de seu conteúdo [...] o interesse dominante neles é suscitar a fé e fortalecê-la." Assim, as narrativas dos evangelhos têm com centro a pessoa de Jesus, e nele e por causa dele todas elas são arranjadas de forma a mostrá-lo aos outros. Nas palavras de Fee e Stuart:

Quatro biografias não poderiam ficar lado a lado tendo o mesmo valor: esses livros ficam lado a lado, porque, ao mesmíssimo tempo, registra os fatos acerca de Jesus, relembram o ensino de Jesus, e dão testemunho de Jesus. Essa é a natureza, e essa é a sua singularidade [...]. (FEE; STUART, 2011, p.156)

Tomando, então, por base a apresentação que cada um dos evangelistas faz de Jesus, vejamos em que momento de cada narrativa o herói dos evangelhos aparece; isso para percebermos a singularidade de cada narrativa e a importância da disposição de como cada um deles apresenta Jesus, isto é, como cada um dos evangelistas organiza o material que eles conheciam para compor, cada um a seu modo, uma história a respeito de Jesus.

Em Mateus, narrativa que mostra Jesus como cumprimento de profecias em livros do Antigo Testamento, o nome de Jesus acompanhado de seu título de Messias ou Cristo aparecem logo no primeiro momento de narrativa (Mt 1.1); em Marcos, narrativa marcada pela brevidade inexistência de logos sermões e brevidade de episódios, começa dizendo que aquele é o "evangelho de Jesus Cristo" (Mc 1.1), mostrando seu cuidado de mostrar o seu protagonista logo no primeiro momento como o fez Mateus; em Lucas, apesar de não termos a aparição imediata do herói, temos o motivo pelo qual isso acontece, a saber, porque Lucas intenta narrar os acontecimento a respeito de Jesus "por sua ordem" (Lc 1.3); e nesse sentido, para cumprir os seus propósitos ele teria que começar pela narrativa do nascimento de João, àquele que seria enviado pelo Senhor para "preparar" um povo para Deus (Lc 1.17). Temos, então, que Lucas não protela a apresentação do seu protagonista, mas o coloca na ordem dos fatos em que a História teria se desenvolvido. Mesmo sobre essa ótica, a aparição de Jesus em Lucas não diferencia muito em relação ao número de versículos usados para essa aparição; no evangelho lucano, Jesus aparece no trigésimo primeiro versículo (Lc 1.31) e por motivos de cronologia dos fatos. Assim, cada um mostra por meio de sua narrativa e pela urgência em fazer o leitor ver o protagonista de suas narrativas, a centralidade da figura de Jesus Cristo.

No Quarto Evangelho, que em vários aspectos se diferencia dos demais, Jesus aparece no décimo sétimo versículo (Jo 1.17), mais ou menos como um aforismo do narrador em que Jesus é mostrado como um meio pelo qual a graça e a verdade se manifestam. Esse engenho narrativo do quarto evangelista faz-se necessário porque, diferente dos outros evangelhos, o quarto não começa com uma narrativa, mas com um poema em que apresenta Jesus como o Logos (cf. 2.2.3). Por essas e outras características, Gabel e Wheeler (2003) argumentam que para um leitor dos sinóticos a independência do narrador do Quarto Evangelho pode causar estranheza desde o seu inicio até o fim de sua narrativa. E completam:

Qualquer que seja a sua origem, o material foi assimilado pelo modo peculiar de pensamento de João antes de formar a substância do seu evangelho. Esse evangelho se assemelha mais a uma meditação teológica pontuada por eventos significativos do que à apresenta narrativa de atividade dos sinóticos. (GABEL; WHEELER, 2003, p.182)

Ao traçar um quadro comparativo entre o material contido nos evangelhos, bem como do material que é peculiar a cada uma das narrativas apresentadas pelos evangelistas, Fee e Stuart (2011) apresenta-nos de um forma descritiva um percentual em que coloca o que cada evangelho tem de seu propriamente e o que cada um dos evangelistas aproveitou das outras narrativas canônicas a respeito de Jesus. Esse quadro, além de servir de comparativo, serve para corroborar aquilo que foi apontado por Gabel e Wheeler (2003) como distintivo no Quarto Evangelho. Para fazer sua comparação, os autores Fee e Stuart tomaram como exemplo a narrativa da "multiplicação dos pães para os cinco mil", uma das poucas narrativas que são contadas por todos os evangelhos canônicos (Mt 14.13-21, Mc 6.32-44, Lc 9.10-17, Jo 6.5-13). Colocaremos aqui dois dos quatro itens apresentados pelos autores, por acharmos que eles são suficientes para mostrar o ponto que estamos tratando aqui, ou seja, que a narrativa joanina é diferente das outras narrativas sobre Jesus contidas nas Escrituras. O quadro percentual pode ser visto como segue (cf. FEE; STUART, 2011, p. 164):

Quantidade de palavras usadas para contar a história:
Mateus 157
Marcos 194
Lucas 153
João 199

Porcentagem de concordância entre as narrativas:
Mateus com Marcos 59%
Mateus com Lucas 44%
Lucas com Marcos 40%
João com Mateus 8.5%
João com Marcos 8.5%
João com Lucas 6.5%

As conclusões as quais podemos chegar, ainda segundo os autores, é que a narrativa apresentada por João em seu evangelho é flagrantemente independente da narrativa apresentada pelos outros evangelistas; ele – o narrador – usa palavras absolutamente diferentes para contar sua história de um sinal de Jesus, a alimentação de cinco mil pessoas.

Sabendo então dessas semelhanças e diferenças entre as narrativas que contam a história de Jesus, resta-nos saber como o quarto dos evangelistas canônicos organiza seu enredo para que o seu leitor tenha em mãos uma história sobre o Verbo que "se fez carne e habitou entre nós". Já mostramos acima que quando falamos das divisões do Quarto Evangelho lançamos mão dos trabalhos de Léon-Dufour (1996) e Maggioni (1992), considerando esses estudos teremos as seguintes divisões.

O Prólogo. Deferente dos outros evangelistas, o Quarto Evangelho começa por um Prólogo que a exemplo de outros de mesma construção e gênero literário traz consigo indícios de como aquela história será contada e que será a personagem principal da história ali narrada, no caso do quaro evangelista apresenta seu personagem principal não por um nome, mas por um título, o Logos, a Palavra vinda de Deus.

O Livro dos Sinais. Apesar de não ser o foco principal de sua narrativa o Quarto Evangelho traz consigo, neste trecho do livro, sete daquelas ações de Jesus que o evangelista chamará de "sinais", ou seja, ações miraculosas praticadas por Jesus para que aqueles que o seguem possam crer em sua missão e que ele tinha vindo enviado de Deus.

O Livro da Paixão. Aquilo que se chama de livro da paixão são os relatos dos derradeiros dias do ministério de Jesus que vai de sua entrada em Jerusalém para celebração da última páscoa em que ele estará com seus discípulos até os seus últimos momentos desde a cruz, onde foi morto, até sua ressurreição e últimas instruções aos seus seguidores.

O Epílogo. Apesar das várias discussões que existem se esse seria uma parte genuinamente pertencente ao Quarto Evangelho ou se ela seria uma espécie de acréscimo posterior; o fato é que o evangelho como nós o recebemos traz consigo esse trecho que conta um último sinal feito por Jesus, instruções aos discípulos mais chegados – dentre eles "o discípulo a que Jesus amava" – bem como promessas finais a alguns dos seus seguidores.

Assim, depois das aproximações preliminares e necessárias da construção narrativa do quarto dos evangelhos bíblicos, entender algumas outras questões que nos propomos a discutir neste trabalho; mais especificamente passaremos a tratar do diálogo como artifício e qual sua função em narrativas bíblicas, em especial em narrativas dos evangelhos.





















III. DIÁLOGO COMO ARTIFÍCIO LITERÁRIO

A literatura configura-se a si mesma, não se configura
do exterior: as formas literárias não podem existir fora da
literatura, mais do que as formas da sonata, da fuga ou do
rondó podem existir fora da música.

NORTHROP FRYE

3.1 ARTIFÍCIOS EM NARRATIVAS

Ao analisar, no capítulo anterior do nosso trabalho, a tomada da Bíblia como uma obra de cunho literário, entendemos ter deixado claro, àqueles que se interessam pelo tema, que a Bíblia, apesar de ter sido considerada durante muitos anos apenas como uma obra de cunho moral e religioso, pode ser entendida também como um compêndio da mais alta literatura universal. As mesmas características literárias e narrativas encontradas em outras partes da Bíblia podem ser também encontradas em toda a história contada pelo narrador do Evangelho de João que, assim como aconteceu com a Bíblia, demorou a ser estudado como uma obra de cunho literário, recebendo em sua história uma aproximação que, apesar de perceber sua diferença de composição, nunca entendeu essas diferenças como estratégias narrativas ou discursivas usadas pelo seu narrador para construção de sentidos para todos aqueles que ouviam ou liam suas história.

Assim, depois de termos colocado as bases para a nossa leitura dos textos bíblicos ao considerá-los como um fenômeno literário, nesta divisão do nosso trabalho, voltaremos à atenção para uma dos elementos literários fundamentais na construção de qualquer narrativa, seja ela bíblica ou não: o diálogo. Falaremos sobre o diálogo como artifício narrativo, veremos como ele aparece em narrativas bíblicas e quais as funções que ele exerce e, por fim, refletiremos sobre como ele se caracteriza como um gênero. Trabalharemos essas características sem perder de vista o nosso corpus geral de análise, o Quarto Evangelho.

Temos feito até esse momento usos de sinônimos para nos referirmos ao Evangelho de João ou o Quarto Evangelho. As duas expressões são usadas até este momento. Doravante, ao nos referimos ao quarto evangelho canônico, o chamaremos de o "Quarto Evangelho", seguindo a terminologia usada por Culpepper (1983), Dodd (2003), Maggioni (2006), Freyne (1996) e Kermode (1997); evitando o retorno constante às questões de cunho histórico-crítico como autoria, formação do texto, etc..

É preciso dizer ainda que para exemplificar, ainda que de maneira breve, os conceitos trabalhados, usaremos sempre que possível passagens do próprio Quarto Evangelho, salvo aquelas situações em que o uso de outro trecho seja de maior proveito, tanto por sua clareza em demonstrar a teoria a ser trabalhada, como para uma comparação necessária à clareza da argumentação. Vejamos então o que temos chamado em nosso trabalho de artifício e o porquê desse uso terminológico.

3.1.1 Possibilidade dos artifícios

Empreender uma leitura do texto bíblico partindo do pressuposto de que ele é uma construção literária e que, portanto, usa de muitos e variados artifícios para levar a fim seu intento de narrar uma história, nem sempre foi aceito pelos círculos conservadores de leitura da Bíblia. Esses círculos não admitiam, ainda que por hipótese que os escritores bíblicos tivessem usado em suas narrativas de expedientes retóricos na construção de seus textos.

Aquilo que temos chamado de leitura conservadora do texto bíblico é aquela que entende que as narrativas bíblicas, por terem uma inspiração do alto, não necessitam de nenhum outro elemento para sua existência que não a própria inspiração.

Essa visão de que os narradores bíblicos não usaram nenhuma espécie de artifício para construção de seus textos, é fruto de uma compreensão que nasce muito cedo na história da interpretação dos textos bíblicos.

O historiador cristão Eusébio de Cesareia, por exemplo, ao defender a inspiração e autoria dos textos bíblicos do Novo Testamento, em especial o texto do Quarto Evangelho, diz que esses textos não poderiam ser compostos como outros textos advindos da capacidade humana criadora de fábulas e histórias. Segundo ele:

Aqueles homens [os evangelistas] inspirados e verdadeiramente piedosos, os apóstolos de nosso Salvador, sendo sobremaneira puros em sua vida e adornados com toda espécie de virtude em suas mentes, mas comuns em sua linguagem, descansando na energia divina e maravilhosa concedida a eles, nunca souberam e tentaram propor as doutrinas de seu mestre com a arte e o refinamento de uma composição. Antes, empregando apenas a demonstração do Espírito que trabalhava neles [...]. Eles davam pouca atenção ao estudo do estilo, fazendo isso por serem auxiliados por uma cooperação maior que a dos homens. (EUSÉBIO, 1995, p. 101)

Como se vê, para Eusébio os evangelistas e escritores bíblicos, possuídos por uma energia "divina e maravilhosa", não tinham a preocupação de produzir documentos de cunho humano. Antes, esses relatos eram escritos sob a cooperação do Espírito. Essa tomada de posição em relação aos escritos bíblicos, porém, nos parece mais como uma salvaguarda, ou seja, colocar em relevo a natureza dos documentos produzidos pelos apóstolos, e menos com uma negação de que não houvesse elementos de uma narrativa nas histórias contadas pelos escritores bíblicos; pois o mesmo Eusébio em muitos lugares de seu escrito defende a inspiração dos escritos do Novo Testamento reputando-os como "genuíno", para diferenciá-los dos chamados "livros espúrios", aqueles que trazem em seu conteúdo as "ficções de homens heréticos" (EUSÉBIO, 1995, p. 104). Portanto o que o historiador pretende fazer é deixar claro para o seu leitor a natureza diferenciada dos escritos do Novo Testamento em relação àqueles outros e variados documentos que circulavam em seu tempo.

Quando, pois, se empreende um estudo das narrativas bíblicas sob a perspectiva de sua estrutura literária, bem como de seus elementos narrativos e retóricos, não se está negando as outras características desses textos, sejam elas quais forem, se está apenas querendo observar como o narrador bíblico usa as ferramentas que estão à sua disposição para dar às suas narrativas os sentidos pretendidos por eles. Esse mesmo ponto é trabalhado por Alter quando procura esclarecer seu método de aproximação de narrativas bíblicas que ela chama de "arte literária". Segundo o crítico:


[...] O fato de estarmos diante de um texto antigo, cujos processos narrativos típicos diferem em muito dos métodos modernos, não nos autoriza a considerá-los, num gesto condescendente, como rudimentar ou simples. [...] A noção de "narrativa primitiva" é uma espécie de miragem mental engendrada por uma estreiteza de horizontes moderna, pois, quanto mais de perto se examina uma dada narrativa antiga, mais se deve reconhecer a complexidade e a sutileza de sua organização formal e de sua exploração temática, mais se verifica até que ponto o próprio texto é consciente de sua condição de discurso engenhoso. [...] O que precisamos compreender melhor é que a visão religiosa da Bíblia adquire profundidade e sutileza justamente por ser apresentada mediante os mais sofisticados recursos da prosa de ficção. (ALTER, 2007, p. 41, 42)

Note-se que, para o estudioso e crítico literário, entender como os sofisticados recursos da prosa se apresentam nas narrativas bíblicas não enfraquece a visão religiosa da Bíblia, ao contrário, entender a Bíblia como uma construção sutilmente composta e artisticamente organizada dá a esse texto riqueza e profundidade que, por outras leituras, fica muito difícil perceber. Ainda segundo o autor, o que dificultaria a leitura das narrativas bíblicas é a ideia simplista de considerá-las apenas como uma "narrativa primitiva". Esta tomada de posição é chamada pelo autor de "miragem mental", uma irrealidade produzida por desconhecimento ou fantasia que o estudioso que se aproxima da Bíblia para lê-la como literatura não pode admitir, uma vez que os resultados produzidos serão sempre o estreitamento de seu horizonte de pesquisa. É preciso, então, que esclareçamos o que será considerado neste trabalho como artifício literário.

3.1.2 Artifícios literários

Antes de falarmos sobre o "diálogo" como artifício literário, é preciso ajustar a compreensão sobre o que queremos dizer quando nos referimos aos artifícios literários, para que não corramos o risco de confundir conceitos, o que nos levaria, inevitavelmente, a conclusões equivocadas a respeito do assunto sobre o qual está versando este trecho do nosso trabalho.

Quando nos referimos aos artifícios literários no Quarto Evangelho, estamos fazendo uso das reflexões e terminologia usadas por Kermode (1997) quando, em sua introdução literária aos escritos do Novo Testamento, faz um apanhado geral sobre as características principais de cada um dos quatro evangelhos canônicos. Ao se voltar especificamente para as narrativas, expressões e usos de linguagem contidas no Quarto Evangelho, o autor percebe algumas características que são peculiares às narrativas joaninas. Tais características impulsionaram o crítico a falar em um "sentido econômico da narrativa" joanina; "características do método" joanino; "engenho narrativo" e "formato e cor" do Quarto Evangelho. Como resultado do emprego dessas características literárias em sua narrativa, o autor chega à conclusão de que o narrador do evangelho de João pode ser perfeitamente chamado de um "romancista" (1997, p.487).

Pensar no narrador do Quarto Evangelho como um romancista não pode ser visto como uma depreciação de seu evangelho; antes, essa afirmação deve ser entendida como um reconhecimento da capacidade do narrador do evangelho em organizar criativamente o material que tinha sua disposição para compor uma narrativa que fosse artisticamente apreciável e teologicamente aceitável. O emprego de tais técnicas faz com que o quarto dos evangelhos seja considerado por Kermode (1997, p.410) como o mais "artificial" dentre todos os evangelhos bíblicos, afirmação que deu origem ao título deste capítulo. Falando sobre a capacidade criativa dos narradores bíblicos, o crítico Robert Alter afirma que:

[...] É notável a arte como que o autor [bíblico] tece o enunciado etiológico à textura de sua própria prosa. [...] O autor pôde manejar com suficiente liberdade e firmeza autoral os materiais herdados e definir motivos, relações e desdobramentos temáticos com a mesma força sutil que associamos à arte consciente que chamamos de prosa de ficção. (ALTER, 2007, p. 56, 57)

Essa afirmativa leva-nos, obrigatoriamente, a perguntar sobre o que seriam esses artifícios literários apresentados no Quarto Evangelho e como o seu autor os usa em sua arte composicional. Segundo Eagleton (2001, p. 4) os artifícios são como que ferramentas linguísticas para construção de narrativas, entendidos como as imagens, o ritmo, técnicas narrativas e outros estoques de elementos formais que exerce a função de auxiliadores para a construção de textos literários; esses mesmos artifícios são aqueles que os formalistas nomeariam de elementos que causam efeitos "estranhadores" no texto literário; porém, como nos lembra Abadía (2000, p.111), "a 'estranheza' que os artifícios produzem não é simplesmente perplexidade, que poderia ser uma sensação desagradável para o leitor. Nasce a novidade formal, mas também do que esta acarreta: a originalidade em relação com aquilo que se fala". Essa engenhosidade do autor na construção do seu texto foi observada por Motta quando, ao tratar das características do texto literário em prosa, diz que:

O narrador, como parte do processo [narrativo], tece a trama da intriga, manipulando os cordões de atuação das personagens, cujos atos são ligados às engrenagens das coordenadas espaciotemporais. Como resultado dos padrões seguidos pelo tecido narrativo, emerge uma "intriga fingida" na estampa do bordado, como um produto material materializado pelos lances inventivos, executados no interior do código e da gramática que regem a linguagem desse sistema [...]. (MOTTA, 2006, p. 32-33)

Portanto, segundo Motta, a intriga que se manifesta na narrativa só é possível mediante artifícios narrativos que são manipulados pelo narrador para criar cenários espaço-temporais que dão a sua história características de uma "intriga fingida" linguisticamente construída para dar sentido ao seu texto como um todo, ou seja, para dar literalidade à sua narrativa. Aplicando esta mesma engenhosidade narrativa ao Quarto Evangelho, Kermode (1997) fala-nos do empenho que o narrador do evangelho de João tem em cuidadosamente construir os eventos que farão parte de seus relatos e juntá-los aos temas que serão tratados em seu enredo.

O engenho narrativo de João tem as virtudes da economia, complexidade e profundidade. Ele está empenhado em tornar sua narrativa coerente, mas, ao fazê-lo, sempre trata do seu propósito mais profundo, que é a representação do eterno em relação ao transitório, das manifestações do seu em um mundo de vir a ser [...] Os outros evangelistas também promovem esse equilíbrio de incidente e tema e desenvolvem relações dentro de seus livros [...] Mas a prática de João parece ao mesmo tempo mais delicada e mais poderosa. (KERMODE, 1997, p. 486, 488)

Quando falamos sobre o uso de artifícios literário no Quarto Evangelho e na Bíblia como um todo, é preciso que nos lembremos de que tais terminologias são advindas da teoria literária e, portanto, devem ser usadas com suas necessárias ressalvas para que não ocorramos em erros.

Quando dizemos que os escritores bíblicos usaram de artifícios na construção de seu texto, essa afirmação não pode ser usada como uma depreciação da força ou da beleza das narrativas presentes na Bíblia; ao contrário, estas afirmativas devem ser encaradas como uma valorização dos textos considerando-os não apenas em seu sentido doutrinal e religioso, mas observando, além disso, seu sentido artístico-literário. Não é, pois, sem sentido a afirmação de Ska (2005, p. 20) quando diz que:

Afirmar que a Bíblia utiliza alguns recursos literários que encontramos hoje no romance moderno não significa de modo algum que a Bíblia seja um romance. Significa apenas afirmar que o modo de escrever dos escritores bíblicos está mais próximo do utilizado dos romancistas modernos que daqueles que utilizados pelos cronistas, jornalistas e repórteres de nossa televisão. Em palavras muito singelas, essa constatação refere-se apenas a forma das narrativas bíblicas, e não implica nenhum juízo sobre seu conteúdo.

Colocadas, então, as definições e as funções daquilo que chamamos no título deste capítulo de artifícios literários, cabe-nos, em continuação às nossas investigações, pontuar alguns dos artifícios que podem ser encontrados no Quarto Evangelho. Antes, porém, lembremos que a função principal desses artifícios não é apenas enriquecer a narrativa, mas também proporcionar aos leitores dessas narrativas elementos que os permita entender o que é comunicado.

Foram vários os artifícios que os escritores bíblicos usaram em suas narrativas, mas neste trabalho não nos voltaremos para todos os artifícios literários que aparecem no evangelho joanino, antes a nossa atenção se prenderá ao diálogo. A escolha do diálogo como o artifício literário a ser estudado no Quarto Evangelho, justifica-se por entendermos que o narrador os usa como elemento primordial em sua estratégia narrativa para comunicar a importância e natureza do protagonista de sua história, Jesus Cristo, o Verbo que se fez carne, como dissemos na introdução desse trabalho.

Assim, é preciso que entendamos o diálogo como elemento constitutivo das narrativas e percebamos como ele é usado em narrativas bíblicas, especialmente nas narrativas do Quarto Evangelho. Começaremos nossos estudos pesquisando qual a função dos diálogos em narrativas e sua relevância; depois nos voltaremos para os diálogos em narrativas bíblicas e, por fim, mostraremos como o diálogo entre duas personagens pode se caracterizar em uma "arena" em que ideologias e sentidos contrários são postos em luta para construção de sentidos e, no Quarto Evangelho especificamente, da imagem de Cristo e de sua missão.

É conhecido o fato de que toda narrativa, seja ela qual for, é estruturada sobre elementos sem os quais tal narrativa não se constituiria como tal; em outros termos, para ser uma narrativa o texto em prosa deve conter em sua estrutura alguns elementos fundamentais à sua constituição. Esses elementos foram apontados por Gancho (2002) como o enredo ou trama, conjunto dos fatos que caracterizam uma história; o tempo, que pode ser entendido de duas formas principais: o lugar histórico em que o fato narrativo ocorre, se passa, ou a contagem que é feita na própria história, também chamado do tempo da narrativa; o espaço, o lugar físico em que se desenrolam as ações narradas; o narrador, que é a voz que conta a história e a personagem, que são os agentes por meio dos quais o enredo vai se desenvolvendo.

Ao falar especificamente dos personagens, a autora nos lembra que "o personagem é um ser que pertence à história [e] só existe como tal se participa efetivamente do enredo, isto é, se age ou fala" (GANCHO, 2002, p. 14). O diálogo é, então, sem levar em conta outras características que a ele são implícitas, o momento de fala de um personagem com outro, uma conversa entre dois personagens na história.

3.1.3 Para uma conceituação de diálogo

Temos, então, que o diálogo é uma espécie de interação entre personagens de uma narrativa, seja ela bíblica ou não. E essa interação é criada pelo narrador, colocada em dado momento do enredo, em um tempo específico da narrativa e ladeado por um cenário construído artisticamente por um autor que lança mão de artifícios literários para tecer sua trama e colocar aos seus leitores um discurso que vem à tona por conta de estratégias construída para este fim.

Ao falar sobre a análise de uma narrativa literária, Moisés diz que para analisar uma obra é preciso prestar atenção aos "recursos narrativos"; e dentre esses recursos estava os diálogos que, segundo ele é "a fala das personagens e podem ramificar-se em: diálogo direto, que é mostrado ao leitor por meio do travessão, aspas ou mesmo sem tais expedientes; diálogo indireto, que é mencionado pelo escritor com a expressão chave 'ele disse que' e sucedâneos [...]" (MOISÉS, 1987, p. 114). Ainda segundo o autor, o monólogo interior direto e o monólogo interior indireto ainda pertencem à esfera do diálogo.

Nesta mesma esteira, o teórico espanhol Ciriaco Morón Arroyo (1973), em artigo em que discute o diálogo em suas várias apresentações, argumenta que (1) o diálogo é um fenômeno essencial da convivência humana; (2) é o elemento de onde a língua adquire sua realidade e que (3) nas humanidades o diálogo é o último resultado a que podemos chegar. Em continuação à sua argumentação, Arroyo defende que, quando colocado em narrativas, o diálogo surge como uma imitação de uma realidade em que um homem conversa com outro para expor suas ideias, mas a imitação, diz o teórico, nunca será a realidade. Daí a necessidade de se estudar as formas como os diálogos são apresentados em narrativas para que se vá além da superfície e para que se compreenda o uso que os narradores fazem dessas palavras e não se entre em anacronismos. Vejamos, então, como o diálogo é conceituado. Se pensarmos em seu sentido etimológico, podemos dizer que:

No grego, a composição da palavra se dá pela justaposição da preposição διά [dia] (por causa de, graças a; através de, por meio de) ao nome λογος [logos] (palavra, discurso), constituindo o vocábulo que, em sua gênese, significa "graças ao discurso, por causa do discurso". Há aí uma dívida clara à palavra e ao discurso. [...] Seja como causa, seja como meio, de qualquer modo a palavra é condição do diálogo. (BRAIT; MAGALHÃES, 2014, p. 13)

Temos então a ideia de que o diálogo é o movimento em que o discurso de um se encontra com o discurso do outro por meio das palavras. O que faz com que o diálogo seja entendido como um gênero? Entendendo-se que gênero é leitura e adaptação de outro/os gênero já existente (KRISTEVA, 2005). É para este fato que nos chama atenção Juan Antonio Gonzales Iglesias (2001), em seu trabalho doutoral e que posteriormente foi publicado em livro. Segundo ele:

[...] O diálogo é um gênero em que a relação de cada texto com seu gênero se procede por modulação hipertextual, isto é, por uma construção histórica progressiva. O diálogo é uma classe genealógica em que se procede um engendramento hipertextual. [...] Na medida em que determinadas formas narrativas se perpetuam mediante a modulação histórica de um texto a partir de outros [...] O gênero vai se configurando historicamente mediante a relação de um texto novo (hipertexto) em relação a outro precedente (hipotexto). (IGLESIAS, 2001, p. 17, tradução nossa)

Ancorado na teoria do francês Gérard Genette, o autor entende que o diálogo é um gênero que nasce de um hipotexto, um primeiro texto, e que se desenvolve historicamente até alcançar uma forma modernizada em outro texto posterior, o hipertexto. Neste sentido, o autor entende que o diálogo pode ser tanto um gênero literário quanto um gênero discursivo e para diferenciar um e outro se coloca como elemento importante a materialidade, isto é, quando o diálogo é apresentado como texto, ele será um gênero literário; quando usado como elementos de fala, ou quando sua composição houver recorrência de certas propriedades discursivas ele será um gênero discursivo. São chamados de propriedades discursivas os traços que caracterizam a fala e que são transpostas para o texto, como acontece, por exemplo, com o sermão ou a disputa quando esses são transpostos para a forma escrita. Daí a afirmativa de que "nas línguas modernas o termo [diálogo] voltou a experimentar uma ampliação de seu alcance semântico, englobando de novo o gênero do discurso" (IGLESIAS, 2001, p. 33, tradução nossa).

Em uma conceituação uma pouco mais restritiva e tomando por base o uso de diálogos em narrativas, Reis e Lopes (2002) argumentam que:

Em narratologia, o diálogo encontra-se estreitamente relacionado com o discurso da personagem [...]. Ao optar por uma estratégia de representação próxima da representação dramática, o narrador dissimula a presença, dando a palavra às personagens. A reprodução fiel do diálogo entre as personagens implica a utilização do discurso citado, ou, em terminologia tradicional, do discurso direto [...]. A inserção do discurso citado implica uma mudança de nível discursivo e essa transição aparece geralmente assinalada por um verbo declarativo ou por recursos gráficos como os dois pontos, as aspas, o travessão. Essas são as marcas formais mais trivializadas; há, no entanto, muitas outras formas de introduzir o diálogo e de operar essa alteração da instância narrativa. [...] Abdicando de sua função de mediador [no diálogo], o narrador não deixa, pois, de ser o organizador e modalizador da matéria [...]: cabe-lhe sempre decidir acerca da instrução e da interrupção do diálogo, selecionando os momentos mais adequados em função da economia da narrativa. (REIS; LOPES, 2002, p. 236)

Apesar da extensão da citação, ela se faz necessária porque nela vemos como os autores delimitam sua conceituação de diálogo ao plano da narrativa, que é o objeto do presente trabalho. Isto posto, é preciso que notemos como os autores, ao empreender uma conceituação do diálogo no plano narrativo revisitam elementos já citados acima: os autores nos lembram de que ao utilizar o recurso do diálogo, quer-se fazer uma aproximação, ou uma reprodução fiel, do modo de fala que pessoas usariam em seus diálogos na realidade.

Ao se usar o expediente do diálogo, a fala das personagens vem sempre marcada por elementos introdutórios, como os dois pontos, por exemplo; os autores nos fazem ainda lembrar que, apesar da aparente ausência do narrador em cenas de diálogo, ele – o narrador – é aquele que instrui, interrompe, recomeça e decide quando é adequado usar o diálogo ou não para a organização narrativa e discursiva do seu enredo. Portanto, o narrador é figura central na organização e apresentação dos diálogos, apesar de sua aparente ausência com o uso do discurso direto. Perceber tais fatores é importante para que não cometamos o erro de imaginar que a narrativa, por mostrar um diálogo entre dois personagens, não seja um artifício do narrador para trazer à baila seu discurso por meio da narrativa e da fala dos personagens.
3.2 FUNÇÃO DO DIÁLOGO EM NARRATIVAS BÍBLICAS

Esperamos ter deixado claro que o diálogo é um importante artifício do qual o narrador se vale para deixar a mostra não apenas a fala das personagens, mas também suas impressões a respeito da realidade que o cerca e a respeito das personagens de cujas histórias são contadas por ele. Temos de pensar então que o diálogo é um artifício literário do qual se vale o narrador e que se caracteriza pela conversa entre personagens de uma história e que aparece, na maioria das vezes, marcados por recursos gráficos como aspas, dois pontos e outros. A partir de agora intentaremos perceber qual a função, ou as funções, do diálogo, em especial em narrativas bíblicas. Tais apontamentos caminharão desde os planos mais gerais até planos mais específicos terminando com um exemplo em narrativa do Quarto Evangelho.

3.2.1 Diálogo em narrativas bíblicas

Em um dos primeiros trabalhos que enfocam o diálogo e sua importância nas narrativas bíblicas, Klaus Berger (1998) considera o diálogo como uma injunção dos discursos vistos por ele como "composições literárias". Ainda para o autor, essas composições deveriam ser examinadas para que os leitores do Novo Testamento e dos evangelhos pudessem conhecer o escopo das situações que dão origem aos discursos, bem como para saber o que na literatura do cristianismo primitivo poderia ser classificado como um discurso. Para Berger, nas narrativas bíblicas os discursos muitas vezes são revelados por meio dos diálogos entre Jesus e os personagens com os quais ele dialoga; daí a importância de olharmos com maior atenção para todos os diálogos que aparecem nas narrativas do Novo Testamento bíblico.

A história da forma literária do diálogo no cristianismo primitivo quase não foi estudada ainda, embora seja de grande importância para compreender os métodos de ensinamentos daquela época, bem como o "caráter revelador" daquele cristianismo. Os dois gêneros mais importantes são o diálogo de ensinamento e o diálogo revelador. A diferença consiste em que o "diálogo revelador" se refere a uma revelação que precedeu mas não foi compreendido, precisando de um esclarecimento, que é dado [na continuação] do diálogo. (BERGER, 1998, p. 228)


Neste trecho o autor reconhece que o diálogo em narrativas bíblicas ainda tem sido pouco estudado pelos intérpretes da Bíblia; reconhece ainda que o diálogo é um gênero que merece um olhar mais atento daqueles que querem entender como este artifício servia de método de ensino entre os escritores do cristianismo antigo, bem como pontua que o diálogo em narrativas bíblicas é um gênero que se apresenta com duas funções principais: a revelação de algo não sabido e o ensino de algo não aprendido. É digno de nota que para o autor a conceituação de gênero diferenciará ligeiramente daquela que será adotada neste trabalho. A conceituação que será aqui adotada advém da teoria de Mikhail Bakhtin (2003), como veremos mais adiante. Porém, o autor de As formas literárias do Novo Testamento entende gênero literário como um agrupamento de textos que se deixa encaixar historicamente em uma situação típica dentro da história do cristianismo. Nos termos do autor:

Um gênero literário é um agrupamento de textos de acordo com diversas características comuns, isto é, não apenas as de natureza formal. Para se constituir um gênero, essas características não se acumulam simplesmente, antes se relacionam entre si, obedecendo a determinada hierarquia. [...] para definição de um gênero é decisivo concluir que elemento causa a mais forte impressão no leitor [...]. O elemento decisivo é que um gênero literário não apenas possui características literárias de diversos níveis, mas deixa também encaixar historicamente [...] Os gêneros podem ser chamados também de "sistema de convenções . (BERGER, 1998, p. 14)

Notamos que, de acordo com essas observações, os gêneros podem ser definidos como sistemas de convenções que para serem aceitos como tal precisa ser reconhecido historicamente, ou seja, dentro de um contexto histórico e que esse reconhecimento é dado pelo leitor, por meio de suas impressões em relação às características de determinado gênero em seu relacionamento com outras formas literárias adjacentes ao texto e à época em que esses textos foram produzidos. Daí, segundo Berger (1998, p. 15), a importância do leitor no reconhecimento do gênero, uma vez que ele é o seu receptor, e que essa recepção ultrapassa a situação inicial em que esses textos foram produzidos para tomar novos níveis de utilização. Assim, o gênero ganha força e novos significados por conta de suas leituras, tanto para a primeira comunidade que o recebeu quanto para os outros leitores desses textos.

Em obra que tem com intuito prover ferramentas para leitura bíblica a partir dos gêneros, os autores Fee e Stuart (2011) oferecem ferramentas para que a interpretação bíblica possa ultrapassas as limitações da leitura diacrônica; para tanto os autores propõe uma leitura que tomo como elemento de partida os gêneros literários em que os relatos bíblicos forma escritos. Nesta abordagem gênero é entendido como os textos com sua "particularidade histórica". Os autores destacam ainda que, por ser uma construção literária composta a partir de experiências humanas na história, a Bíblia usa para sua comunicação todo o tipo de meios disponíveis; dentre esses meios estão o enigma, provérbios, narrativas, parábolas e o diálogo. Ao conceituar o diálogo os autores dizem que:

O diálogo é uma característica crucial na narrativa [...] e um dos métodos principais de caracterização. De fato, uma parte significativa de todas as narrativas é movida pelo "ritmo" entre narrativa e diálogo. Três coisas precisamos buscar aqui: Em primeiro lugar, o primeiro ponto do diálogo é muitas vezes uma dica significativa tanto para o enredo da história como para a caracterização do falante. [...] Em segundo lugar, o diálogo contrastante muitas vezes também funciona como uma forma de caracterização. [...] Em terceiro lugar, muitas vezes o narrador enfatiza as partes cruciais da narrativa por meio da repetição e do resumo da narrativa por uma das personagens em um discurso. (FEE; STUART, 2011, p. 117-118, grifo do autor)

Temos que, para Fee e Stuart, é crucial para compreensão de narrativas bíblicas que o intérprete atente para o ritmo da narrativa proporcionado pela variação entre narrativa e diálogo que causa um movimento que tem como principal objetivo dinamizar aquilo que está sendo contado. Quanto às funções do diálogo, os autores afirmam que ele serve como artifícios para apontar características ocultas tanto de personagens quanto do enredo e enfatizar repetições de discursos colocados na fala das personagens, discursos esse que ganham significado e força com o desenvolver do enredo.

Ao falar especificamente do diálogo e sua função em narrativas do Novo Testamento, e principalmente na narrativa do Quarto Evangelho, Michel Gourgues (2014) enfatiza a importância do diálogo em sua construção histórica ao dizer que ele não é um gênero que nasce nos relatos dos evangelhos, mas que seu uso remonta aos escritos antigos da Filosofia clássica. Segundo ele, o que os narradores dos evangelhos fizeram foi se servir de um recurso literário que já existia em seu tempo e deram a ele uma utilidade que servisse aos seus propósitos ao relatar a história de Jesus Cristo. Isto seria preciso para que os leitores dos evangelhos pudessem ter algum tipo de identificação com a técnica literária usada na composição dos escritos canônicos do Novo Testamento, o que facilitaria a leitura e compreensão desses escritos. Ao conceituar o que é o diálogo, o autor diz:

O diálogo é uma técnica literária bem conhecida tanto da antiguidade como dos modernos. [...] Poder-se-ia dizer que, em nossos dias, mesmo a entrevista é um diálogo artificial na sua forma, pois as perguntas e as respostas são preparadas de antemão e reformuladas mediante acordo das partes. Os diálogos joaninos se assemelham muito provavelmente das formas habituais de que se serviam a filosofia popular da época. Utilizam técnicas facilmente identificáveis, como, por exemplo, o mal-entendido. (GOURGUES, 2014, p. 20)

Em sua argumentação, o autor coloca de maneira clara que o diálogo, mesmo aqueles encontrados em narrativas bíblicas, é uma técnica literária cujo conhecimento era comum tanto aos antigos como aos contemporâneos dos escritos e leitores/ouvinte dos evangelhos. Já assinalamos neste trabalho que o diálogo em narrativas bíblicas tem sido considerado um gênero, um gênero que por sua natureza, e como todos os outros gêneros, nasce e se desenvolve na história a partir de técnicas literárias existentes anteriormente.

Temos então que o termo "diálogo" tem atualmente uma aplicação muito ampla que vai desde a conversa entre amigos, passando questão da discursividade, ou seja, por um meio pelo qual o discurso de outro se faz perceber. Apesar de cientes de seus vários e múltiplos usos, tomaremos o termo diálogo em seus usos e funções em ralação às narrativas, pois, como defendem Reis e Lopes:

São múltiplas as funções do diálogo no texto narrativo. A sua ocorrência pode responder a um prurido realista de objetividade, dado que, como vimos, o diálogo é a forma mais mimética de representação da voz das personagens. [...] Ele contem uma série de indícios socioletais e idioletais que permitem uma caracterização indireta das próprias personagens e até do cenário social em que se movimentam. Refira-se ainda que o diálogo, além de permitir a dramatização da narrativa, pode funcionar também como núcleo diegético importante, na medida em que os atos verbais fazem muitas vezes progredir a história. (REIS; LOPES, 2002, p. 237)

Percebe-se aí a importância inegável do diálogo para as narrativas, sejam elas bíblicas ou não. Para análises das narrativas com as quais iremos trabalhas ser-nos-ão de grande valia os trabalhos do crítico literário Robert Alter, os quais passaremos a estudar a partir deste ponto do nosso trabalho.

3.2.2 Características do diálogo em narrativas bíblicas

Um dos trabalhos mais respeitados no que diz respeito à aplicação da teoria literária à narrativa bíblica é aquele formulado pelo crítico literário Robert Alter cujos resultados podem ser lidos no seu livro A arte da narrativa bíblica (2007). O livro de Alter tornou-se um ponto sobre o qual todo aquele que pretende uma aproximação dos textos bíblicos como uma obra literária precisa começar e desenvolver-se. Uma leitura obrigatória e cujos resultados têm direcionado pesquisadores ao redor do mundo. Resultado de vários anos de pesquisa, o livro é um trabalho de revisão de artigos publicados pelo autor e tem como objetivo principal iluminar o leitor na percepção das principais características da arte narrativa bíblica; pois, segundo Alter "a Bíblia tem muita coisa a ensinar a qualquer pessoa que se interesse por narrativa, pois sua arte – que parece simples, mas é maravilhosamente complexa – é um exemplo magnífico das grandes possibilidades da narrativa" (ALTER, 2007, p. 10). Guiado por tal pressuposto, o livro traz uma série de análises e teorizações sobre elementos e artifícios retóricos e literários usados pelos narradores bíblicos na construção dos sentidos de suas narrativas.

Entre os muitos pontos abordados pelo autor, podemos destacar o uso que os narradores bíblicos fazem de cenas-padrão e de convenções; a técnica de repetição e a caracterização de personagem na arte da narrativa bíblica; nesta trilha é de grande valia para nossas pesquisas o capítulo intitulado "Entre a narração e o diálogo" (p. 102-136) onde é abordado mais especificamente o diálogo em narrativas bíblicas, suas funções e suas formas. Comecemos por mostrar a conceituação de diálogo que nos é fornecida naquele capítulo. Logo depois de nos fazer conscientes do "pendor estilizador da narração-via-diálogo", ou seja, que o narrador bíblico muitas vezes usa o diálogo para revelar características de personagens e de suas ideias sobre a realidade vivida por este personagem, Alter continua dizendo:

A linguagem falada proporciona o modelo indispensável para a definição desse movimento rítmico de possibilidades políticas ou históricas, pergunta e resposta, incerteza da criatura e revelação intermitente dos desígnios do Criador – pois, para a visão bíblica, as palavras são o fundamento da realidade. [...] A linguagem falada perfaz o substrato de tudo que o corre de humano e de divino na Bíblia, e a tendência dos escritos hebreus a transpor o que é pré-verbal ou não-verbal para o discurso falado é, em última análise, uma técnica para chegar à essência das coisas, para penetrar em seu substrato. (ALTER, 2007, p. 111)

Ainda nas palavras de Alter, não é fácil determinar o porquê da preferência dos narradores bíblicos pelo discurso direto e porque até o pensamento, em narrativas bíblicas é quase sempre falado, apresentado como um monólogo interior, mas o autor arrisca-se a dizer que isso pode se dar pela forte convicção de que a linguagem tem um primado em relação á ordem das coisas; assim os autores bíblicos entendiam que um pensamento não podia ser inteiramente consciente se não fosse expresso de forma falada. Daí o compromisso bíblico com o diálogo. O resultado disto seria que as cenas bíblicas são quase que inteiramente concebida como comunicação oral, partindo do pressuposto de que tudo que há de significativo em uma personagem em dado momento da narrativa pode ser expresso pela fala dessa personagem; inclusive os contrastes entre elas, que são características dos diálogos em narrativas bíblicas. Para Alter:

A técnica do diálogo contrastivo funciona bem porque a prática permanente da narrativa bíblica, com algumas raras e marginais exceções, limita a cena a dois personagens de cada vez ou, eventualmente, ao diálogo entre personagem e um grupo que fala numa única voz, como um interlocutor coletivo. (ALTER, 2007, p. 115, grifo nosso)

Segundo Alter (2007, p. 119), a "estruturação da ficção historicizada", característica marcante das narrativas bíblicas na concepção do autor, começa pela narração para em seguida passar para o diálogo voltando momentaneamente para narração, mas sempre deixando à mostra a interlocução dos personagens que atuam uns sobre os outros e, como consequência, se descobrem mutuamente e revelam sua relação com Deus pela força da linguagem. Neste sentido, são várias ponderações que podem determinar o uso mais extensivo na narração de um relato dominado pelo diálogo. Em narrativas bíblicas "um diálogo é capaz de criar ambiguidades pelo que é dito e pelo que é silenciado, de como os personagens se revelam pelo que repetem, informam ou distorcem o que os outros falam" (ALTER, 2007, p. 121). É assinalado ainda que outra característica de narração presa ao diálogo é o relato de que o fato ocorreu, isto é, o narrador vai marcando a fala dos personagens de maneira clara e direta pelas locuções, como por exemplo, "e ele disse", "ele respondeu dizendo", "disse ele", etc.

Temos então que, de acordo com Alter, o diálogo em narrativas bíblicas é largamente usado como um artifício estilizador para deixar à mostra a primazia da palavra, para mostrar o contraste de ideias e de posição das personagens em relação a si mesmos, ou a outros e a Deus e para estruturar sua narrativa de forma historicizada.




3.2.3 Um exemplo preliminar

Ao falar sobre o diálogo contrastivo, Alter (2007) mostra que ele pode aparecer na narrativa de duas formas: quando um personagem se dirige a outro personagem ou quando um grupo de personagens que estão em diálogo com outro personagem representando não eles, mas a voz de um grupo social determinado. Para percebermos como a segunda forma apresenta em narrativas bíblicas concretas, ou seja, mostrar a posição de personagens em relação a outro personagem da narrativa, um exemplo nos será válido. É preciso lembrar ainda que neste exemplo especificamente mostraremos apenas o segundo modo de contraste apresentado por Alter, a saber, quando o diálogo se dá entre um personagem e um grupo que representa uma única voz, um interlocutor coletivo. Aprofundaremos nossas reflexões no terceiro capítulo de nosso trabalho quando analisaremos mais detidamente duas narrativas específicas do Quarto Evangelho.

O Prólogo do Quarto Evangelho é construído de modo poético para nos fazer entendera a natureza do Logos, o Verbo, bem como para servir de uma sinopse sobre o restante do evangelho. Construído sob um ritmo que podemos denominar de alucinante, com predominância de frases curtas e de sonoridade marcante é de se esperar que depois do auge (1.1-6) fosse revelado o nome daquele que era a "Luz", o narrador quebra o ritmo do enredo da narrativa (ECO, 2012) de forma brusca inserir outro personagem que bem poderia ser o Messias esperado, mas que não o era; ele é apresentado aos leitores pelo nome de João (1.7). O narrador usa do artifício literário do "suspense" para fazer com que o seu texto fique mais lento e, assim, prepare o leitor modelo para "a hora do herói" (KERMODE, 1997, p. 482).

Depois de suspender seu enredo, o narrador começa intensificar o suspense no momento em que informa que esse personagem que o leitor ficou conhecendo não era "a luz" (1.8), mas um que viera para testificar da luz. Essa frase deixa o leitor a se pergunta: Se esse João que apareceu na história não era a luz, quem será então? Ora, ao protelar a revelação de quem era o personagem central de sua história e introduzindo em seu relato um novo personagem, o narrador convida o leitor a enveredar pelos caminhos de sua narrativa para que ele – leitor – descubra lenta e artisticamente quem é o protagonista de sua história.
Falando a respeito da função da suspensão na narrativa, Eco (2012) afirma que dentre as várias funções que o recurso do "suspense" traz para a narrativa está a de fazer o leitor interagir com o texto dando a ele um significado que vá além da superfície, ou seja, torna o leitor participante dos significados que o texto adquire. E completa:

Em toda obra [...] o texto emite sinais de suspense, quase como se o discurso se tornasse mais lento ou até paralisasse, e como se o escritor estivesse sugerindo: "Agora tente você continuar". [Com isso] o autor não apenas insinua ao leitor que fatos como os que se pôs a narrar de fato aconteceram, mas também mostra a medida em que aquela pequena história está arraigada na História (ECO, 2012, p. 56, 64)

Com esse "artifício de representação" o narrador diminui a velocidade do tempo na narrativa para que o leitor entre no ritmo de sua história, causando um suspense quanto à continuidade dos fatos que ainda serão narrados. No que diz respeito ao Quarto Evangelho, o narrador usa deste mesmo artifício para suspender a apresentação do seu protagonista, do seu herói.

Esse engenho narrativo com o qual o narrador do Quarto Evangelho elabora a construção de sua personagem principal e sua importância em relação à realidade vivida pelo leitor de sua história ou como esses relatos podem influenciar a vida real do leitor desse Evangelho, bem como a criatividade deste narrador ao colocar seus personagens coadjuvantes em planos menores em relação ao seu personagem principal, foi observado por Culpepper (1989, p. 4-5, 102) em vários momentos de sua reflexão.

Apesar de ser a personagem principal da história contada pelo quarto evangelista, a aparição de Jesus se dá aos poucos no enredo contado pelo narrador. Prova disso é o suspense articulado logo depois da revelação poética de que "o Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1.14). A efetiva aparição do Herói só se dará por meio de uma vertiginosa e curta narrativa que segue à apresentação do testificador, João (Jo 1.15), cuja apresentação, ainda que sem maiores explicações, se dá ainda no Prólogo; mas que a história só será contada em outro momento em narrativa própria (Jo 1.19-42).

Após uma reflexão poética sobre o significado e encarnação do logos, o evangelista passa a narrar o ministério de outra figura central na primeira parte do seu Evangelho, João Batista (que neste evangelho é chamado apenas de João). Depois de uma breve introdução apresentada em que direciona o olhar do seu leitor para a personagem de João (1.19), o narrador traz para sua narrativa os grupos que serão antagônicos, em um primeiro momento, ao ministério de João e, logo em seguida, se colocarão em antagonismo ao ministério do Logos, Jesus Cristo. Essas duas aparições são descritas pelo narrador do Quarto Evangelho em um diálogo de perguntas e respostas que mais parece um interrogatório. Vejamos como na narrativa o diálogo se desenvolve:

[19] E este é o testemunho de João, quando os judeus mandaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para que lhe perguntassem: Que és tu?
[20] E confessou e não negou; confessou: Eu não sou o Cristo.
[21] E perguntaram-lhe: Então, quem és, pois? És tu Elias? E disse: Não sou. És tu o profeta? E respondeu: Não.
[22] Disseram-lhe, pois: Quem és, para que demos resposta àqueles que nos enviaram? Que dizes de ti mesmo?
[23] Disse: Eu sou a voz do que clama no deserto: Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaias [...]

Ancorados em interpretações do Antigo Testamento, os religiosos judeus queriam saber se João era (1) um profeta, em relação intertextual com o texto de Deuteronômio; (2) Elias, profeta do Antigo Testamento que apareceria para preparar o cominho do Messias; (3) o próprio Messias prometido ou (4) um falso profeta. Esse interesse em saber se João seria o Messias ou não foi motivado pelas certezas do povo que via nele a figura do Messias, segundo o que nos é informado pelo Evangelho lucano (Lc 3.15). É possível dizer também que as indagações feitas a João não era do grupo dos "sacerdotes e levitas" (Jo 1.19) que vieram vê-lo, mas dos "fariseus" (Jo 1.24), grupo político-religioso que detinha o poder naquela região e temia que sua posição diante do povo fosse ameaçada por aquele que era "a voz"; uma vez que as pessoas estavam vindas de vários cantos daquela região para serem batizadas por João. Daí o adjetivo que aparece em outros evangelhos (Mt 3.1) em relação a João chamando-o de João batista (batizador).
Depois de identificar que os fariseus "forma[m] a única seita que Jesus condenou ao inferno", Eagleton (2009, p.9) afirma que esse homens, "que eram muitas outras coisas além de legalistas e hipócritas", foram mal compreendidos pela tradição posterior descrita nos evangelho; ademais, segundo o crítico, os fariseus são colocados na narrativa dos evangelhos para sinalizar uma oposição ao ministério de Jesus por conta de suas doutrinas que era uma "clara distinção" entre os ensinamentos pregados e vividos por esse grupo de religiosos e as doutrinas ou ensinamentos propagados por Jesus e seus discípulos. O que se nota na leitura das narrativas é que no Quarto Evangelho os fariseus aparecem em vários momentos como antagonistas de Jesus e dos seus ensinamentos (cf. Jo 9.22; 11.45-57; 18.18-21), daí a necessidade do narrador em identificar o grupo que veio até João como pertencentes aos fariseus.

Ainda admitindo a historicidade de João Batista, Léon-Dufour (1996, p.125) argumenta que o narrador do Quarto Evangelho "transformou em função de seus projetos literários os dados tradicionais sobre o Batista", ou seja, que o evangelista, ao colocar Jesus ao lado do Batista, mostra para seus leitores os papéis de ambos em relação um ao outro. Ao analisar a colocação da figura de Cristo ao lado do personagem João, Hendriksen (2014) sinaliza para o fato de que o narrador do evangelho, ao fazer isso conduz o seu leitor à percepção de que a personagem João não é o Cristo e que Jesus é o centro da narrativa empreendida pelo quarto dos evangelistas.

[...] O evangelista indicou o propósito do ministério de João, a saber, chamar a atenção de todos para a verdadeira luz, Jesus Cristo [...]. No parágrafo que estamos estudando agora, recebemos um relato detalhado do testemunho de João Batista diante de um comitê enviado pelo Sinédrio. [...] É fácil perceber por que o evangelista incluiu este material em seu livro. Sua inclusão está em harmonia com seu propósito principal [...] Não é a aparência de João Batista, sua maneira de viver, sua pregação em si, a excitação que criou, ou até mesmo seus batismos que são enfatizados pelo autor do quarto Evangelho [...] É especificamente o testemunho de João Batista sobre o Cristo que forma o tema deste parágrafo [Jo 1.19-23]. (HENDRINKSEN, 2014, p.110-111, grifo do autor)

Notemos como o narrador vai tecendo sua trama narrativa para que, pelo diálogo, os fariseus, representantes de um interlocutor que não está presente na cena narrada, descubram por meio de um confronto, que aquele João que eles pensavam ser o messias na verdade não o é. Mas essa revelação da personagem é mostrada na narrativa pela negação, daí a importância no diálogo bíblico não só daquilo que os personagens dizem, mas daquilo que eles não dizem, o silêncio ou a negação. O primeiro testemunho de João é dado no evangelho por meio da negação; assim os seus interlocutores percebem que ele não é o messias e nem um dos profetas do Antigo Testamento por aquilo que ele nega ser e não por aquilo que ele diz ser. Esse embate só cessa quando João diz ser "a voz que clama no deserto".

É preciso que digamos que quando o narrador traz à sua narrativa esse "minidiálogo" entre João Batista e aquele que foram enviados pelos fariseus, ele quer pontuar o fato de que por maior que tenha sido a abrangência do ministério do Batista, ele – João – não era a personagem principal de sua história, era apenas "a voz do que clama", ou seja, uma representante. Após mostrar que João não era o Messias – o enviado, o ungido – o narrador passa a descrever como a influência do "Cordeiro de Deus" (Jo 1.20) vai crescendo e alcançando cada vez mais seguidores até atingir seu auge no primeiro "sinal" do Quarto Evangelho, a transformação da água em vinho no casamento em Caná da Galileia (Jo 2.1-11).

Neste bloco narrativo do Quarto Evangelho, é preciso notar ainda uma outra característica enriquecedora do narrador. Ao usar um artifício narrativo para causar em seus leitores um suspense proposital, o narrador vai trabalhando no sentido de fazer com que Jesus seja reconhecido como personagem principal da história. Assim, é preciso observar como o herói – Jesus Cristo – é apresentado a grupos cada vez mais numerosos de pessoas em momentos diferente do enredo construído pelo quarto evangelista, desde sua "revelação" a um único personagem, João Batista, até a revelação plena de sua "glória" em um casamento a um grupo maior de discípulos em Caná. Como bem percebido por Culpepper (1983 apud WAVGNIAK, 2006, p.36):

No Evangelho de João, Jesus, que é decido do mundo de cima, é desconhecido exceto por um pequeno grupo de privilegiados. À medida em que se esforça em cumprir sua missão, "aventuras" menos preliminares (isto é, sinais e conflitos com oponentes) começam a revelar sua identidade. Ele se confronta com uma luta crucial, sua própria morte, a qual aceita e por meio desta consuma sua incumbência com êxito. (grifo nosso)

A cortina de desconhecimento que separa Jesus daqueles que o seguirão ou serão anunciadores de sua natureza "de cima", vai pouco a pouco sendo dissipada enquanto a narrativa vai avançando. Vejamos passo a passo como isso acontece: Mesmo sendo anunciado a existência de uma pessoa que é chamada de o "Verbo" e de que seu nome é Jesus Cristo (Jo 1.1, 17) a aparição efetiva desse herói no Quarto Evangelho é dada primeiramente a um só homem (Jo 1.31, 33). Depois essa sua identidade é mostrada a duas pessoas (Jo 1.37). Essas duas pessoas, por sua vez, tornam-se testemunhas de Jesus para um terceiro, Natanael, a quem também é mostrado que Jesus era o comprimento da palavra dita pelos antigos profetas de Israel (Jo 1.49). Como disse Kermode (1997), essas narrativas curtas que abrem o Quarto Evangelho funcionam como pequenas histórias para mostrar a travessia que todo personagem tem que fazer para submeter a sua vida à revelação do Cristo da qual foi participante, isto é,

Ambos [as personagens] saberm onde reside a plenitude do ser, e que a graça recebida é sobreposta à graça antes disponível [...]. A narrativa toda, seu passado e seu futuro, deve submeter-se à regra da grande antítese do ser e do vir-a-ser, ser governada pera presença do era [Jo 1.1] no vir-a-ser, a luz nas trevas. [...] A qualidade de limiar, a liminaridade do poema é agora aprofundada no mito, e o mito é revestido de representações da realidade. (KERMODE, 1997, 481, grifo do autor)

Após esta série de narrativa que marcam a adesão de um grupo cada vez mais crescente de seguidores do Cristo, chegamos a uma narrativa central do Quarto Evangelho: a narrativa da transformação da água em vinho em um casamento em Caná. Segundo a narrativa apresentada pelo quarto evangelista, houve um casamento em Caná e Jesus, sua mãe e os seus discípulos foram convidados para a festa. Em certa altura o vinho acabou e Jesus foi lembrado por sua mãe que não havia mais vinho e que alguma coisa precisava ser feita; diante disso Jesus transforma água em vinho e revela a sua glória aos discípulos que estavam com ele. Esse é o primeiro dos milagres que Jesus faz no Quarto Evangelho, que neste escrito recebe o nome de "sinais", ou seja, uma "ação significativa", miraculosa, da personagem principal da história narrada. Comentando esse episódio específico, Kermode (1997) lembra-nos de que esta é uma narrativa "parabólica" em que o que é feito deve apontar para outras coisas que ali estão representadas. Ou, nas palavras do próprio Kermode:

O primeiro milagre de Caná, independentemente do que mais possa ser, é um limiar [...] na versão mais abstrata de João a transformação de água em vinho tem a mesma força: ela é o primeiro ato do Verbo no mundo, e um tipo da transformação maior por vir [...] Ela pronuncia – é um tipo – a transformação final de vir-a-ser em ser, a última vitória que restaura o Verbo para Deus. O mestre-sala prova o vinho miraculoso (literalmente, prova "a água que veio a ser vinho") e não sabe de onde ele é – podíamos esperar era. A água, que é, vem a ser vinho; o vinho simplesmente é. Assim, o milagre exibe a doxa [glória] de Cristo; há uma citação direta de 1:14. A narrativa parabólica está nos dizendo para lembrar do Prólogo, ao mesmo tempo que pronuncia o fim. (KERMONDE, 1997, p.482-483, grifos do autor)

A narrativa do sinal em Caná da Galileia mostra que a hora do herói havia chegado e isso nos leva a duas observações que, no que diz respeito à construção narrativa. Neste momento aparecem dois fatores na narrativa que valem a pena serem analisados.

Primeiro, para resaltar a figura de Cristo, o narrador deixa de nomear, todos os outros personagens da história, que são denominados por suas funções ("sua mãe"; "os serventes"; "o mestre-sala" e "seus discípulos"); isso resulta em uma maior visibilidade do herói da história. Aqui se vê uma hesitação para compreensão apropriada dos sinais, ou seja, a "hora do herói" que ainda não havia chegado; demonstrando que o herói esperava o momento correto para demonstrar "graça além da graça" (KERMODE, 1997, p.482).

Em segundo lugar, a construção narrativa confirma aquilo que foi apontado por Culpepper (1983), citado acima, que a revelação de Cristo era dada a um grupo específico de pessoas em momentos singulares de sua carreira. Note que o narrador intromete sua narrativa para dizer que aquele sinal havia acontecido para que Cristo manifestasse sua glória, e como resultado, "os seus discípulos creram nele" (Jo 2.11). Se considerarmos a contagem que nos é fornecida por Champlin (2014), isto é, de que os discípulos que estavam com Jesus e sua mãe naquele casamento eram, de acordo com as narrativas anteriores, João, André, Pedro, Filipe e Natanael termos que a revelação sobre a identidade de Jesus, que em um primeiro momento foi dado apenas a João, agora já se alastrava para mais de seis pessoas, isso se levarmos em conta a indeterminação numérica dos "serventes" (Jo 2.5) que também viram o sinal realizado por Jesus.

Vimos, portanto, que o evangelista entrelaça o diálogo com uma narrativa para alcançar seus propósitos que podem ser resumidos em dois pontos: (1) apresentar João como aquele que prepara o caminho do Cristo, mesmo sem ser ele o messias, e isso é feito por meio do diálogo contrastivo e (2) mostrar o Logos como personagem central de sua narrativa, pela diminuição de outros personagens no todo da narrativa. Veremos agora a segunda teoria que servirá de esteio para nossas análises posteriores.

3.3 BAKHTIN: "TECIDO DE MUITAS VOZES"

Tomando, pois, como ponto de partida o fato de que o narrador do Quarto Evangelhos usou de vários artifícios literários na composição de sua narrativa, e de que, a exemplo dos narradores do Antigo Testamento, empregou muitos elementos retóricos na composição do seu texto, duas coisas podem ser percebidas: (1) que entre aqueles que compuseram as narrativas a respeito de Jesus, o Cristo, "havia bastante espaço para o exercício de referência pessoal e talento individual" (KERMODE, 1997, p.407) e se somarmos a isto o fato de que, segundo Eco (2012, p.122), um objeto só pode ser considerado uma obra de arte quando "conseguimos imaginar por trás dele a estratégia de um autor", podemos dizer que (2) o Quarto Evangelho pode ser classificado acertadamente como uma obra de arte de cunho literário aos moldes – mas não como cópia – das biografias do mundo helênico.

Para fazer nossas análises das narrativas acima mencionadas, faremos uso das teorias que estudam a Bíblia como literatura, entenda-se Robert Alter (2007), bem como a do filósofo russo Mikhail Bakhtin (2006) em especial sua teoria de que todo diálogo é uma "arena" em que os sentidos são produzidos pelo confronto, como está exposto no livro Marxismo e filosofia da linguagem (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2006). Antes, porém, de iniciarmos nossas análises é preciso que façamos uma aproximação, ainda que resumida, da vida e da teoria desse estudioso que em muito contribuiu para os estudos linguísticos e literários no século XX.

Essa aproximação bibliográfica se faz necessário para que o leitor, principalmente aquele que não conhece a vida e a obra do teórico russo, tenham condições mínimas de apreciar as informações contidas no decorrer desta seção, bem como para que sua leitura não seja dificultada por conta da falta dessas informações que apesar de básicas são, em nosso entender, necessárias.

Entendemos que reconstruir a vida e a obra de Bakhtin não é uma tarefa das mais fáceis, não só por conta das muitas e variadas informações que temos sobre ele, mas igualmente porque muitas dessas informações vieram a nós de maneira fragmentada e esparsas causando uma dificuldade ainda maior na reconstrução e sistematização dessas informações. Daí a importância do trabalho dos interpretes que se debruçam sobre a obra do filósofo russo para dar-lhe organização e o mínimo de homogeneidade descritiva.

3.3.1 Uma aproximação biográfica

O filósofo da linguagem Mikhail Mikhailovich Bakhtin nasceu na pequena cidade de Orel, localizada ao sul de Moscou em 16 de novembro de 1895. Segundo de cinco filhos de uma família cujo pai trabalhava como gerente de banco e que, por isso, teve condições de estudar; formou-se em grau superior primeiro em literatura clássica e, posteriormente, em filosofia na Universidade de Petrogrado de 1913 a 1918. Segundo Morson e Emerson (2008) a educação de Bakhtin nos clássicos e em filosofia "evidencia-se na escolha dos tópicos e exemplos que povoam a sua obra". Ainda segundo os autores,

Depois de formado, para evitar as terríveis privações na capital durante a Guerra Civil, Bakhtin mudou-se para a cidadezinha de Nevel, na Rússia ocidental. Ali trabalhou como professor e participou de séries de palestras e círculos de estudos consagrados às relações entre filosofia, religião e política. [...] Em 1924, com o país mais estabilizado economicamente e politicamente, Bakhtin e sua esposa – que logo se tornou indispensável para o marido pouco prático, enfermiço e, não obstante, notavelmente produtivo – voltaram para Leningrado. (MORSON; EMERSON, 2008, p.14)

Em 1920, por causa das suas muitas e constantes mudanças, o filósofo voltou a se estabelecer em Vitebsk, um centro da vanguarda artística na Rússia, onde seu Círculo de estudos continuou a se reunir; contando, entre outros, com a presença de Valentim Volochínov e Pável Medviédev, personalidades importantes deste círculo de estudos que ficaria mais tarde conhecido como o "Círculo de Bakhtin", intelectuais que se reuniam para discutir filosoficamente sobre vários assuntos acabando por produzir vários textos sobre arte, literatura, ética, moral, etc.

Na primavera de 1924, quando do retorno de Bakhtin a Leningrado, a cidade já "havia se recuperado dos piores momentos de caos e escassez da Guerra Civil", como indicam os biógrafos Clark e Holquist (2004, p. 118). Nesse período os intelectuais que haviam deixado a cidade por causa da situação desfavorável, já haviam retornado e conseguido empregos como funcionários públicos; menos Bakhtin que, por conta de sua pouca habilidade política e seu pouco conhecimento entre os intelectuais da cidade, não conseguiu um trabalho no governo. Resultado é que ele sempre viveu na cidade com "escassa renda". É notória, porém, a afirmação dos biógrafos Clark e Holquist quando dizem que esse período da vida do filósofo, apesar dos problemas financeiros e de saúde,

[...] Foi um dos períodos mais produtivos de Bakhtin em termos de publicações, provavelmente porque ele não tinha então nenhum emprego fora de casa. Além disso, dispunha também de suas próprias fontes de estimulação intelectual e melhor acesso aos livros necessários do que em Nevel e em Vitebsk. Embora não participasse muito em público da vida intelectual, o papel que desempenhava em seu círculo particular era, inclusive, bem maior do que antes. O antigo grupo continuava a se encontrar e Bakhtin surgia cada vez mais como seu líder. (CLARK; HOLQUIST, 2004, p.123)

Segundo Clark e Holquist (2004, p.148), "Bakhtin não pertencia a nenhum grupo religioso particular" em seu tempo. Contudo, no ano de 1929 Bakhtin foi preso, por conta de uma perseguição em massa movida contra os intelectuais durante os primeiros anos do regime stalinistas; no caso específico de Bakhtin, a acusação era a de que ele teria participado das reuniões secretas da Igreja Ortodoxa Russa, que durante aqueles anos operava de forma discreta, escondida, com reuniões de estudos cristãos, mas "não se sabe até que ponto o jovem Bakhtin se envolveu nos vários grupos de estudos cristãos secretos e não-secretos durante essa época" (MORSON; EMERSON, 2008, p.14). O fato é que por conta dessas acusações o filósofo foi condenado a dez anos de reclusão nas Ilhas Soloviétski, um campo de concentração localizado ao norte soviético; mas, "graças às intervenções de amigos", e de sua mulher Elena, e o reconhecimento pelas autoridades de sua saúde precária, devido a uma osteomielite, a sentença de Bakhtin foi mudada para seis anos de exílio no Cazaquistão, na cidade de Kustanai. A viagem para o Cazaquistão se deu no começo de 1930. No exílio enquanto trabalhava como contador em uma fazenda, uma vez que estava proibido de dar aulas, o pensador passou a escrever os seus mais importantes ensaios sobre a teoria do romance.

Em 1936, sob novos ares, Bakhtin assume uma cadeira na recém-inaugurada Faculdade Estatal de Professores de Mordóvia, na remota cidade de Saransk onde ministra aulas de russo e literatura mundial. Mas "boatos (que logo se tornariam realidade) de novos expurgos políticos – sempre um perigo para exilados – levaram-no a demitir-se e a retirar-se para uma cidade mais discreta" (MORSON; EMERSON, 2008, p.14). O cargo de professor só seria retomado com o fim da Segunda Guerra Mundial. É preciso que se diga que esse período de ostracismo e reclusão dos círculos intelectuais e o pouco destaque na imprensa durante essa época acabaram por lhe conservar a vida, uma vez que aquele era um período de repressão em massa.

Durante a década de 1950, porém, os trabalhos de Bakhtin experimentariam grande prestígio e fama crescente. Um grupo de estudantes e professores da graduação de Moscou que teve contato com a obra sobre Dostoievski se surpreenderam ao saber que o escritor daquela obra estava vivo e que ainda lecionava como professor universitário. Começaram, assim, as "peregrinações" a agora Universidade de Saransk para visitar a Bakhtin que foi considerado como que um "sobrevivente" de um passado intelectual que se julgava perdido. Por conta dessas visitas e discussões e do crescente prestígio que experimentara, Bakhtin foi persuadido a revisar seu trabalho sobre Dostoievski para uma segunda edição, edição essa que foi impressa em 1963. Com a publicação, outros manuscritos do filósofo vieram a lume o que fez com que Bakhtin se tornasse "o guia para a reconsideração pós-stalinista dos estudos literários, e seu parecer era procurado tanto pelos semióticos estruturalistas da Escola de Tartu quanto pelos humanistas marxista-leninistas mais conservadores do Estado soviético" (MORSON; EMERSON, 2008, p.14).

Quando de sua morte, em 7 de março de 1975 por complicações de sua frágil saúde, Mikhail Bakhtin já era reconhecido em todo seu país como um grande estudioso. Esse reconhecimento espalhou-se pelo mundo chegando à Europa (França) em abril de 1967 com a publicação do famoso artigo de Julia Kristeva "Bakhtin, le mot, le dialogue et le roman" (cf. KRISTEVA, 2005, p. 65-95) e chegando aos Estados Unidos. No Brasil as primeiras manifestações do pensamento bakhtiniano se dariam pelo trabalho de Boris Schnaiderman, professor de cultura russa na Universidade de São Paulo. As obras do filósofo da linguagem só seriam conhecidas por volta dos anos de 1970 com traduções de trechos de sua obra do francês para nossa língua; o primeiro livro só seria publicado em língua portuguesa em meados de 1979 com a tradução do francês de Marxismo e filosofia da linguagem: problemas do método sociológico na ciência da linguagem, que trazia na capa, entre parênteses, o nome de Volochínov. A chegada da obra de Bakhtin no Brasil foi lenta e fatiada, isto é, as obras chegavam às mãos dos pesquisadores em fragmentos de traduções que circulavam em pequena quantidade; resultado deste conhecimento paulatino foi que as ideias do teórico só foram conhecidas aos poucos pelos estudiosos brasileiros. Prova disso é que o último texto bakhtiniano publicado em língua portuguesa foi um artigo em que o filosofo trabalha a questão de ensino de língua materna, no caso o russo. A obra tem tradução de Sheila Grilo e Ekaterina V. Américo e recebeu o título de Questões de estilística no ensino da língua (2013). Note que o texto original, resultado de uma experiência de ensino de Bakhtin de 1937 a 1945 só teve sua tradução para o português em 2013, o que demonstra o espaçamento da chegada das obras do autor em nossa língua.

Entre os muitos traços da obra do filósofo da linguagem, uma parece ser importante mencionar em nosso trabalho, a saber: A obra de Bakhtin se concentrava principalmente no estudo da obra literária. Prova disso é que muitos dos termos usados pelo teórico é usado e percebido a partir do estudo de obras da literatura mundial. Neste momento pode ser colocada a questão sobre o porquê do uso constante e notório da teoria de Bakhtin na linguística. Para pensarmos nesta questão, é de grande valia as informações e apontamentos de Irene Machado (1995) quando argumenta que em um primeiro momento a teoria de Bakhtin chegou ao Brasil por mãos de linguísticas que influenciados pelo trabalho de linguistas franceses aplicaram as teorias do filósofo primeiramente aos estudos da Análise do Discurso. Ainda segundo a autora, os trabalhos de Bakhtin, apesar sua preocupação como o romance como um gênero híbrido, queriam era representar o homem na linguagem. "Ao se voltar para o romance, Bakhtin não particularizou o literário propriamente dito, seu foco de interesse foi direcionado para a fala do discurso social" (MACHADO, 1995, p. 20); nasce aí a categoria teórica que se tornou o eixo de toda a sua investigação: o dialogismo.

Se, num primeiro momento, estudar o dialogismo no romance significa estabelecer o contexto do diálogo enquanto gênero literário, numa perspectiva mais ampla se percebe que o dialogismo é um fenômeno não restrito á literatura, mas presente em todas as manifestações da linguagem criadas pelo homem. Nesse sentido, o dialogismo é fenômeno tangível a diversos produtos culturais. (MACHADO, 1995, p. 20)

No que diz respeito ao dialogismo, a citação acima deixa clara duas questões que nos parecem importantes para o nosso trabalho. A primeira é que o dialogismo é uma teoria que nasce e está intimamente ligado ao diálogo, razão pela qual o teórico russo se preocupou em decifrar esse tão importante instrumento da comunicação. Em segundo lugar é preciso observar que o dialogismo não é um fenômeno que atrela-se unicamente à arte literária, mas está presentes em várias manifestações culturais. Pensando nessas duas questões, veremos na próxima divisão do nosso trabalho como Bakhtin entendia o diálogo sua função e importância para a obra literária. Isso faremos porque são essas considerações que servirão como base para nossas análises posteriores.

3.3.2 Bakhtin e a Bíblia

Apesar de importância de sua teoria para os estudos literários, a aplicação dos estudos bakhtinianos às narrativas da Bíblia ainda são poucas. Não há, mesmo considerando estudos produzidos em outras línguas, um número vasto de trabalhos que enfatizem a teoria do filósofo da linguagem aplicada às narrativas bíblicas. É preciso levar em conta – como dissemos no primeiro capítulo do nosso trabalho – que a aplicação da teoria literária aos estudos de narrativas bíblicas também não é algo que se faça com muita frequência. Muito provavelmente resulte daí a pouca aplicação das muitas teorias contidas da Teoria Literária às narrativas do texto bíblico.

Falando especificamente da teoria bakhtiniana como ferramenta na interpretação dos textos bíblicos, Pelletier (2006) argumenta que a "hermenêutica literária", hora apoiando-se a dinâmica própria ora em uma hermenêutica filosófica, contribuiu para restituir ao texto as dificuldades que lhe são peculiares. Segunda a autora, depois de ter assistido, durante os anos sessenta, ao desfile de uma poética que valorizava sobremaneira a estrutura e a não historicidade da linguagem em seu horizonte referencial, o que resultou em uma abordagem subjetiva dos textos, os estudos modernos mudariam seu enfoque ao estudar o texto como tal em sua "literalidade". Literalidade que pode ser compreendida como a soma das formas e procedimentos que fazem do texto uma obra literária. Neste contexto, outras análises viriam para aprofundar os estudos referentes à linguagem literária. Segundo Pelletier:

[...] As obras de um Mikhil Bakhtin [...] admitiam, desde 1930, transformações que valorizam jogos complexos de vozes plurais em grandes obras da literatura. Uma vez que emanavam de fontes múltiplas e não de um enunciador único e estável, o sentido não podeia mais ser considerado uma realidade unívoca, atribuído a uma identificação simples, de uma vez por todas. [...] Bakhtin introduziu deste modo o conceito de polifonia. Um texto, afirma ele, é multivocal, polifônico [...] cada palavra pronunciada se apoia em uma rede de palavras anteriores [...]. Em contraste ainda com um formalismo que não só dissocia o texto do mundo exterior, mas também o separa de seu autor e dos seus leitores, tal abordagem requer uma teoria do sujeito. Pois o dialogismo aqui [é] relação entre um eu e um tu implicando uma translinguística. (PELLETIER, 2006, p. 76-77, grifo do autor)

O livro Bíblia e hermenêutica hoje, publicado em francês em 2004, é um dos poucos textos traduzidos em língua portuguesa que trabalha, ainda que de forma breve, a influencia da teoria de Bakhtin para os estudos bíblicos. O trecho acima citado se encontra em um capítulo do livro em que a autora irá tratar da hermenêutica que se vale da literatura como ferramenta para interpretação de textos bíblicos. Logo depois de passar pelo estruturalismo, com as colaborações de Vladimir Propp e Gogol, e suas teorias de estrutura narrativa e gênero, que serviriam como instrumento de aproximação do texto bíblico nos anos de 1960, além de outros trabalhos, a autora menciona também as teorias de Jakobson, e sua descrição das funções da linguagem e Greimas, com seus trabalhos semióticos de análise de narrativas. Só então nos convida a autora a olharmos para os trabalhos de Bakhtin, considerado por ela como um dos trabalhos cuja função é a de "marcar no interior de texto a presença de um fora-do-texto", isto é, a noção de que todo texto dialoga com outros textos que estão fora dele.

É digno de nota ainda, um capítulo escrito originalmente em língua francesa que trata da teoria bakhtiniana do cronotopo. O capítulo intitulado "Les séjours de Jésus à Béthanie au-delà Du jourdain selon le chronotope de l'evangile de Jean" (2000) o autor, A. Rakotoharintsifa, trabalha a questão do cronotopo no Evangelho de João. Segundo ele, um grande passo para se estudar o Quarto Evangelho em suas características narrativas foi dado pelo trabalho de A. Culpepper, que inaugura uma serie de estudos que considera as narrativas do evangelho de acordo com seus elementos constitutivos, como narrador, personagem, espaço, tempo, etc. Em seu trabalho, porém, o autor anuncia que irá trabalhar com a teoria de Bakhtin sobre o cronotopo para mostrar sua importância para se estudar a categoria espaço-tempo na narrativa joanina. Partindo da premissa de que o tempo-espaço é importante para a leitura das histórias contadas pelo evangelista, o autor concentra-se em observar como essas características espaço-temporais vão sendo construídas pelo narrador Para fazer suas análises o autor concentra-se na caminhada de Jesus desde Betânia até chegar dalém do Jordão (Jo 1.28-10.40). Rakotoharintsifa diz que seu trabalho servirá para que se perceba como o espaço e o tempo são usados para fortalecer os discursos que aparecem nessas narrativas. Essa topografia seria, então, muito bem trabalhada pelo narrador para corroborar sua história.

Em língua inglesa, duas abras merecem destaque por seu pioneirismo e profundidade ao tratar da teoria bakhtiniana como ferramenta para interpretação de textos bíblicos. A primeira é Dialogues of the Word (1993), de Walter L. Reed. Nesta obra o autor estuda o diálogo existente entre os livros da Bíblia – diálogo aqui entendendo de acordo com a teoria de Bakhtin. Ancorado na teoria de Bakhtin, o autor argumenta que a intenção do seu trabalho é compreender a relação, ou o diálogo, existente entre livros específicos não sobre suas características teológicas, mas sobre suas características de linguagem e literalidade. Organizada em cinco capítulos, o obra trabalha com os diálogos existentes entre os livros de Gêneses e os Evangelhos, as relações entre a Lei e os Profetas; o uso dialógico com que os escritores do Novo Testamento usam o termo "o Filho de Deus", atribuído a Jesus e terminando como todo o dialogo que existe entro o livro da Revelação (Apocalipse) e os outros livros, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Uma segunda obra é Bakhtin and genre theory in biblical studies (2004), editada por Roland Boer. Por se tratar de uma organização, o trabalho é composto por vários capítulos escritos por estudiosos diferentes que se propuseram a trabalhar com a teoria bakhtiniana do gêneros de discurso aplicados a vários livros da Bíblia e sobre como os vários gêneros contidos nestes livros podem ser lidos para que sua compreensão e discursos sejam apreendidos por seus leitores. O livro trabalha desde a concepção da genealogia como gênero, passando pela intertextualidade e chegando até um estudo sobre o cronotopo no livro do Apocalipse. Como pode ser observado, apesar de trazer no título a ideia de gênero na concepção bakhtiniana, o livro vai trabalhar com várias das teorias do filósofo da linguagem. Por conta dessa variedade de temas o livro acaba por se tornar uma importante ferramenta na aplicação das teorias de Bakhtin aos estudos bíblicos. Apesar de não serem os únicos trabalhos escritos em língua inglesa, esses se destacam no sentido de olharem as narrativas bíblicas em uma perspectiva bakhtiniana.
No Brasil, assim como em outras partes do mundo, o uso da teoria de Bakhtin na leitura de narrativas bíblicas ainda é muito pequeno. Na verdade, quase inexistente. Mas é necessário observar dois trabalhos pioneiros no que diz respeito à aplicação das teorias bakhtiniana aos estudos da interpretação bíblica. Apesar de não se concentrar exclusivamente nas teorias do filosofo russo, os trabalhos do Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira, professor de Literatura Bíblica na Pós-Graduação em Ciências da Religião e da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), merece destaque. Em 2012, Nogueira publica o artigo intitulado Hermenêutica da recepção: textos bíblicos nas fronteiras da cultura e no longo do tempo em que trabalha com as questões referentes à recepção do texto bíblico. É neste artigo que as questões referentes ao trabalho de Bakhtin começam a ser trazidas a público como resultado de pesquisa do autor. Esta aproximação entre a teoria de Bakhtin e à leitura dos textos bíblicos está sendo desenvolvida pelo autor por meio de publicação, cursos, orientações e palestras em que as ideias referentes à leitura bíblica em uma perspectiva bakhtiniana vêm sendo pouco a pouco trazida a lume.

Um segundo trabalho brasileiro que podemos citar é o livro Leitura cristã primitiva: olhares bakhtinianos (2014), saudado pelo Dr. João Leonel como uma obra inovadora que chega ao cenário editorial brasileiro para ocupar um espaço desabitado no contexto das produções que se propõem a ler os documentos cristãos primitivos, dentre eles os documentos e narrativas que compõem o Novo Testamento. O livro é organizado por Rodrigo Franklin de Sousa e Francisco Benedito Leite e composto por nove capítulos em que os colaboradores aplicam as teorias bakhtiniana como instrumento para interpretação de textos cristãos. Merecem destaques no trabalho os capítulos Bakhtin para exegetas: o carnaval como hermenêutica (p. 11-30), escrito por Francisco Benedito Leite, em que o autor trabalha a biografia do filósofo da linguagem, bem como alguns conceitos-chaves da teoria bakhtinianas, entre elas carnavalização, que será trabalhada em vários momentos do livro. Outro capítulo que merece uma atenção especial é aquele intitulado Cronotopo do reino de Deus no evangelho de Lucas (p. 55-64), escrito por Júlio Paulo Tavares Zabatiero, em que se trabalha a teoria do cronotopo em cena específica do evangelho de Lucas. O ponto forte do livro é o trabalho de aplicação das teorias de Bakhtin aos escritos e narrativas bíblicas, bem como sua ousadia em andar por um terreno ainda pouco palmilhado.

Como pode ser visto por aquilo que dissemos acima, o uso das teorias do filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin, apesar de já serem estudadas em grande medida pelos vários campos do saber no mundo e no Brasil, no que diz respeito às narrativas bíblicas ainda são poucas as iniciativas em entender e aplicar as teorias bakhtiniana aos textos bíblicos. Seja, pois, por estudiosos internacionais ou por pesquisadores nacionais as teorias do filósofo têm sido pouco exploradas como instrumento de análise em narrativas bíblicas. Daí a necessidade de que em um estudo como este, em que se procura aplicar uma das teorias bakhtiniana à narrativa bíblica, começarmos por elementos rudimentares como a biografia do teórico com o qual iremos trabalhar, por exemplo.

3.3.3 Diálogo como arena

Segundo Culler (1999), a característica principal que pode ser observada em uma teoria é o seu abrangente poder de adaptar-se aos diferentes campos do saber, ou seja, um pensamento filosófico, sociológico, antropológico, etc. Só será considerado uma teoria diante dos vários usos que se fizerem dela em campos variados do saber humano como teoria literária, teoria da educação, teoria da comunicação, e assim por diante. Se considerarmos esse critério como avaliador principal da validade de uma teoria, podemos dizer que os postulados e termos cunhados por Mikhail Bakhtin encaixam-se, sem dúvida, na categoria de uma grande teoria. São muitas as áreas do conhecimento em que os pensamentos de Bakhtin têm servido de esteio para reflexões, discussões e análises, desde os estudos de Análise do Discurso, passando pela Teoria Literária, Ciências da Religião, Linguística, Estudos Culturais e Educação. Esse vasto leque de operações e usos que se faz das teorias do pensador russo comprovam não apenas sua atualidade, mas também sua crescente utilização nos vários círculos acadêmicos.

É notório o fato de que, como indica Iglesias (2001), o estudo do gênero – e do diálogo – desenvolveu-se e ganhou nova importância a partir dos trabalhos de Bakhtin e sua classificação de gêneros. Admite-se ainda que a partir dos trabalhos de filósofo da linguagem, não apenas os estudos dos gêneros, mas também o uso do termo diálogo em suas várias aplicações ganhou novo fôlego. Segundo o autor, "nas línguas modernas o termo [diálogo] voltou a experimentar uma aplicação de seu alcance semântico, englobando de novo o gênero do discurso" (IGLESIAS, 2001, p. 33, tradução nossa). Pretende-se então nesta terceira parte desta subdivisão discutir o que Bakhtin entendia ser o gênero diálogo e suas formas de apresentação, seja na literatura ou fora dela.

Em Bakhtin (2011), todos os diversos campos da atividade humana estão ligados pela linguagem, mesmo que se compreenda que as formas de uso desta linguagem sejam multiformes e que essa multiformidade apresente-se em forma de enunciados, entendidos como atos em que o sujeito enuncia ou exprime seus sentimentos, pensamentos, etc. em palavras. Esses enunciados têm com fim refletir as condições específicas de cada campo da atividade humana, tanto por seu conteúdo, quanto por seu estilo – "seleção dos recursos lexicais" – e, acima de tudo, pela construção de sua composição. Ainda segundo Bakhtin, todos estes elementos, isto é, conteúdo, estilo e construção composicional estão ligados no todo do enunciado e essa ligação é indissolúvel. Assim, "cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados" (BAKHTIN, 2011, p. 262, grifo do autor); a estes tipos estáveis de enunciados Bakhtin irá chamar de gêneros do discurso.

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. Cabe salientar em especial a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais ou escritos). (BAKHTIN, 2011, p. 262)

Para o filósofo da linguagem, o estudo do gênero em suas várias formas, bem como o estudo da natureza do enunciado é de enorme importância; e isso se dá porque toda investigação do material linguístico opera como enunciados concretos sejam eles orais ou escritos. Neste sentido, apesar de não ser uma diferença funcional, os gêneros são classificados em duas espécies diferentes: os gêneros primários e os gêneros secundários. Serão classificados como gêneros primários, também chamados de gêneros simples, aqueles que estão vinculados à comunicação do dia-a-dia e, portanto, em ligação imediata com a realidade em que os enunciados reais são proferidos. Os gêneros secundários, denominados também de complexos ou ideológicos, são aqueles que surgem de um convívio cultural mais complexo, organizado e relativamente mais desenvolvido; entram, portanto, nesta categoria as formas de produção artísticas, científicas e sociopolíticas.

Esses gêneros secundários adquirem caráter especial, segundo Bakhtin (2011), porque ao perder seu vínculo imediato com a realidade eles incorporam e reelaboram os gêneros primários fazendo com que estes – os gêneros simples – adquiram um "caráter especial". O resultado disto é que um gênero primário, quando reelaborado e apresentado de modo artístico ganha forma e significado no plano do conteúdo da obra artística. É o que acontece, por exemplo, com o diálogo que é um gênero simples do dia-a-dia, mas que ganha contornos artísticos e ideológicos quando reproduzidos em uma obra de arte literária; criando, assim, uma relação orgânica e indissolúvel entre estilo e gênero.

Segundo Grillo (2006), esta tomada de posição de Bakhtin e do Círculo em relação aos elementos constitutivos da obra artística – entre eles o diálogo – eleva a ideia de que o significado de todo enunciado está mais em sua função construtiva e significativa do que em suas funções imitativas, pois a obra literária atende a um campo específico, o literário, e funciona como um primeiro nível da refratação da realidade (o segundo nível acontece no gênero do discurso).

A obra de arte é uma unidade fechada, na qual cada elemento recebe seu sentido, não em interação com algo exterior à obra (natureza, realidade, ideia), mas somente dentro da estrutura do todo, que possui sentido em si. Isto significa que cada elemento da obra artística tem primariamente um significado construtivo para a obra como construção fechada, auto-suficiente. (BAKHTIN 1991 apud GRILLO, 2006, p. 3)

Ainda segundo Bakhtin (1991 apud GRILLO, 2006), é próprio da literatura o controle de aspectos da realidade que são inacessíveis a outros tipos de ideologias – entendida neste contexto como gênero. É neste sentido que o diálogo ganha importância na obra do filósofo, pois ele é caracterizado como um gênero simples e que, quando reelaborado e retratado em uma obra literária, é configurado como um gênero ideológico; que ao mesmo tempo em que reflete a realidade a refrata, dando a ela novos significados. É assim que para Bakhtin:


Por sua precisão e simplicidade, o diálogo é a forma clássica de comunicação discursiva. Cada réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui uma conclusividade específica ao exprimir certa posição do falante que suscita resposta, em relação à qual se pode assumir uma posição responsiva. (BAKHTIN, 2011, p. 275)

E em outro lugar, diz o filósofo da linguagem:

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra "diálogo" num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.

É evidente que o diálogo constitui um caso particularmente evidente e ostensivo de contextos diversamente orientados. Pode-se, no entanto, dizer que toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um desacordo com alguma coisa. (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2006, 111- 112, 127, grifo nosso)

Temos, então, que para Bakhtin o diálogo é a forma clássica de comunicação discursiva por conta de sua precisão e simplicidade; precisão esta que é demonstrada no momento em que cada réplica em um diálogo revela a posição do falante que exigirá do seu interlocutor uma resposta que, por sua vez, desvelará a posição ideológica deste interlocutor em relação a determinado fato. Mas o diálogo é entendido em dois sentidos: como a comunicação em voz alta entre dois indivíduos, que será denominado de o sentido restrito de diálogo; e em um sentido amplo, isto é, todo comunicação verbal que dialogue com outros tipos de manifestações.

Ainda para Bakhtin, o diálogo constitui um caso evidente e ostensivo de contexto diversamente orientado, uma vez que todo enunciado, produto último da fala, contém sempre a indicação de um acordo ou desacordo por parte de seus enunciadores em relação a alguma coisa; isso se dá por conta do conteúdo ideológico que toda enunciação carrega consigo. Daí resulta que todo diálogo constitui-se uma "arena" em que ideias contrárias são postas em ambiente de luta na construção de sentidos resultantes do conflito entre posições discordantes. Ou como diz o próprio Bakhtin:

[...] Os contextos possíveis de uma única e mesma palavra são frequentemente opostos. As réplicas de um diálogo são um exemplo clássico disso. Ali, uma única e mesma palavra pode figurar em dois contextos mutuamente conflitantes. [...] Os contextos não estão simplesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns aos outros; encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, 110-111, grifo nosso)

Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como um produto da interação viva das forças sociais. (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2006, p. 67)

Assim temos que: quando da sua expressão a palavra se constitui em uma arena em que os significados são construídos em uma relação de conflito entre dois falantes em uma situação histórica viva, a enunciação, em que as posições ideológicas são trazidas à tona pelo ato de fala responsável que dá a palavra dita sentidos. E estes sentidos são construídos dependendo dos contextos em que elas são enunciadas. Portanto, como nos indica Marchezan (2012) o diálogo na teoria bakhtiniana é sempre visto como uma reação ao outro, um ponto de tensão entre eu e o outro, entre círculos de valores o entre forças sociais. Nas palavras da própria autora:

A palavra diálogo [...] é bem entendida, no contexto bakhtiniano, como reação do eu ao outro, como "reação da palavra à palavra de outrem", como ponto de tensão entre eu e o outro, entre círculos de valores, entre forças sociais. A essa perspectiva, interessa não a palavra passiva e solitária, mas a palavra na atuação complexa e heterogênea dos sujeitos sociais, vinculada a situação, a falas passadas e antecipadas. (MARCHEZAN, 2012, p. 123)

A ideia de que a fala do outro sempre entra em uma relação de conflito com a fala do seu interlocutor é o que o filósofo da linguagem chamou de "arena", ou seja, a luta ideológica e viva que se materializa no diálogo de um sujeito com um outro que por sua própria constituição como indivíduo é diferente dele, configurando assim o que Bakhtin chama e de heterogeneidade dos sujeitos. Tal realidade de luta entre falas de indivíduos no diálogo é uma realidade tanto nos gêneros primários, como é o caso do diálogo na vida, quanto nos gêneros secundários, como o é o caso do diálogo em uma narrativa artisticamente construída.

Munidos destas informações, cabe-nos agora aplicar a teoria apresentada naqueles textos que constituem o corpus do nosso trabalho, a saber, o diálogo entre Jesus e Nicodemos e o diálogo entre Jesus e a Mulher Samaritana, duas narrativas historicizadas do Quarto Evangelho. Para fazer nossas aproximações nos valeremos das teorias da Alter (2007) quando defende que o diálogo é a forma preferida pelos escritores bíblicos para revelar características dos personagens e das teorias de Bakhtin e do Círculo (2006; 2011), ao defender que o diálogo em narrativas é um gênero secundário que se configura como uma "arena" em que a fala dos personagens são colocadas em luta por conta das diferentes posições ideológicas e pela própria realidade em que esses diálogos acontecem, a enunciação, entendida como todo o contexto em que a fala é pronunciada. Sigamos, então, às análises.









IV. DIÁLOGOS, ARENAS E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

A vida de uma palavra está na sua passagem de um locutor a outro, de um contexto a outro, de uma coletividade social a outra, de uma geração a outra.
E a palavra não esquece jamais seu trajeto [...]

MIKHAIL BAKHTIN

4.1 A PALAVRA E SEU TRAJETO

Tomando, pois, como ponto de partida o fato de que (1) as narrativas bíblicas podem ser consideradas acertadamente como construções artísticas engenhosamente construídas e que (2) o narrador do Quarto Evangelho empregou vários expedientes retóricos na composição do seu texto, a exemplo dos narradores do Antigo Testamento, bem como (3) a clara preferência dos narradores bíblicos por cenas de diálogo; duas coisas podem ser colocadas para análise em nosso trabalho: em primeiro lugar, observaremos como o narrador do Quarto Evangelho constrói seus diálogos no que diz respeito à arquitetônica narrativa de sua história e, em segundo lugar, perceberemos como esses diálogos podem ser usados para apresentar ao seu leitor características a respeito da natureza do protagonista de sua narrativa, Jesus Cristo – o Logos.

Neste capítulo, portanto, trataremos do corpus específico do nosso trabalho, dois importantes diálogos no Quarto Evangelho: o diálogo de Jesus com Nicodemos, um respeitado líder religioso de sua época e o diálogo entre Jesus e a Mulher Samaritana, uma representante do grupo étnico-religioso samaritano que, apesar de viverem geograficamente próximos aos judeus, tinham costumes e crenças diferentes destes.

Para fazer nossas análises das narrativas acima mencionadas, faremos uso das teorias do filósofo russo Mikhail Bakhtin (2006; 2011) quando defende que todo diálogo, seja na vida ou em obras literárias, configura-se como uma arena em que dois pontos de vista sãos postos em confronto para construção dialógica de significados nascentes deste embate da palavra de um com a palavra do outro, bem como a teoria de Robert Alter (2007), quando mostra que o diálogo é usado em narrativas bíblicas como instrumento retórico para desvelar a natureza dos personagens, assim como suas posições religiosas, políticas, morais, etc. Cabe-nos lembrar ainda que para o filósofo da linguagem, a "arena" em que os significados são construídos pelo conflito manifesta-se tanto na palavra, o signo, quanto na enunciação, um evento de interação verbal e dinâmica em que a palavra de um individuo é posta em uma realidade viva para confrontar-se com a palavra de outro indivíduo também habitante de um espaço social (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 240).

Nas análises subsequentes, usaremos um modo de aproximação tríplice, a saber, (1) reconstruiremos os diálogos quanto a sua forma para sabermos como eles se organizam em relação à sua estrutura literária; (2) procuraremos identificar em que sentido eles podem ser classificados como uma arena discursiva e (3) intentaremos perceber como a identidade do Cristo vai sendo construída pelo narrador no uso que é feito do artifício do diálogo.

4.2 JESUS E NICODEMOS: A ENUNCIAÇÃO COMO ARENA

O primeiro texto com o qual trabalharemos para nossas análises é a narrativa joanina do encontro entre Nicodemos e Jesus (João 3.2-14). Tomando por base aquilo que diz a passagem bíblica, Nicodemos era um chefe dos fariseus que em uma noite foi encontrar-se com Jesus para uma conversa. O diálogo discorre a partir da perspectiva de que Nicodemos reconhece em Jesus um mestre vindo de Deus pelos sinais que este realizou. O desenvolvimento do diálogo se dá a partir do momento em que Jesus força o doutor da lei a colocar-se diante de suas certezas para re-trabalhá-las tanto em relação a ele mesmo quanto em relação a Jesus. Configurando-se, então, um embate na arena da enunciação.

Usamos aqui o termo enunciação na acepção bakhtiniana e do Círculo, ou seja: o produto de um ato de fala que é, por sua constituição, de natureza social (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 113). Podemos dizer que a fala ganha sentido de enunciação quando expressa em um determinado contexto social vivo. E esse contexto pode ser depreendido tanto em uma leitura na realidade em que o diálogo é proferido, na vida real, quanto em uma realidade literária, um texto de cunho literário, formando em ambos os casos um "auditório social". Vejamos em um primeiro momento como o diálogo entre Jesus e Nicodemos foi construído pelo narrador do Quarto Evangelho.

BLOCO 1
[2.23-25] Ora, estando ele [Jesus] em Jerusalém pela festa da páscoa muitos, vendo os sinais que fazia, creram no seu nome. Mas o próprio Jesus não confiava a eles, porque os conhecia a todos, e não necessitava de que alguém lhe desse testemunho do homem, pois bem sabia o que havia no homem. [3.1] Ora, havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus.

BLOCO 2
[3.2-12] Este foi ter com Jesus, de noite, e disse-lhe: Rabi, sabemos que és Mestre, vindo de Deus; pois ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele. Respondeu-lhe Jesus: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus. Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer? Jesus respondeu: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito. Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode ser isto? Respondeu-lhe Jesus: Tu és mestre em Israel, e não entendes estas coisas? Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testemunhamos o que temos visto; e não aceitais o nosso testemunho! Se vos falei de coisas terrestres, e não credes, como crereis, se vos falar das celestiais?

BLOCO 3
[3.13-21] Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem. E como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna. Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem crê nele não é julgado; mas quem não crê, já está julgado; porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. E o julgamento é este: A luz veio ao mundo, e os homens amaram antes as trevas que a luz, porque as suas obras eram más. Porque todo aquele que faz o mal aborrece a luz, e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que seja manifesto que as suas obras são feitas em Deus.

A divisão em blocos que fizemos da passagem bíblica é necessária para que a aproximação do texto sobre o qual a nossa análise será feita se dê da maneira mais didática possível, principalmente se pensarmos que este é um trabalho da área de letras em que seus potenciais leitores nem sempre terão familiaridade com os textos da Bíblia Sagrada. Seguiremos, em um primeiro momento, a uma leitura introdutória dos blocos destacados para que tenhamos uma visão geral da passagem em apreço.

No primeiro bloco o narrador situa o leitor no ambiente em que se dará o diálogo entre Jesus e um dos chefes, ou príncipe, dos fariseus, grupo político-religioso que eram conhecidos por sua autoridade e prestígio entre as pessoas do seu tempo. O primeiro bloco coloca o contexto em que o diálogo irá se desenrolar; aquilo que o crítico Robert Alter irá chamar de "sumário" (ALTER, 2007, p. 102), isto é, uma forma de narração usada pelos narradores bíblicos para ligar um acontecimento da narrativa a outro.

Para aqueles que estão acostumados a lerem a Bíblia e suas narrativas partindo de suas divisões de capítulos e versículo parecerá estranho a tomada do sumário partindo do versículo 23 do capítulo 2; mas temos que lembrar que essa divisão de capítulos e versículos só são agregados às narrativas bíblicas muito tardiamente na história. No caso da divisão das narrativas bíblicas em capítulo, a divisão se deu entre os anos de 1234 e 1242 pelo professor da Universidade de Paris, França, Stephen Langhton e a divisão do Novo Testamento em versículo só se daria em 1551 por um editor francês chamado Robert d´Etiénne que à época morava em Gênova, na Itália. Daí a necessidade de realocarmos o sumário do diálogo para que percebamos as manobras narrativas que o narrador empreendeu para contar sua história e não nos prendamos a marcas paratextuais – como as divisões de capítulo e versículo – na leitura da narrativa.

Ao observarmos a importância do sumário para o restante da narrativa podemos observar alguns pontos que nos ajudarão a ler com maior clareza o diálogo que se dará logo em seguida. Em primeiro lugar, o narrador aloca Jesus na capital religiosa do seu tempo, Jerusalém, e nos diz o motivo que o levou àquela cidade, a Festa da Páscoa. Essas duas informações munirão o leitor de ferramentas para entender que Jesus não estava ali exclusivamente para um encontro com Nicodemos, mas que Nicodemos aproveitou uma oportunidade para ir ter com Jesus, uma vez que Jerusalém era o local em que estavam as autoridades religiosas, bem como aqueles peregrinos que vinham de vários locais da região da Palestina para celebrar a festa nacional da Páscoa. Em segundo lugar, o narrador nos informa que muitos viam os "sinais" que Jesus faziam e, por esses sinais, criam nele. Esse dado explica o argumento de aproximação usado pelo chefe dos judeus para reconhecer em Jesus um mestre mandado de Deus (v. 2), bem como o fato de que entre aqueles que viram os sinais que Jesus fazia estavam pessoas religiosas e influentes. Em terceiro lugar, é preciso notar como uma afirmativa do sumário é usada pelo narrador como o motivo ao redor do qual se desenrola todo o diálogo posterior, a saber, a afirmativa de que ninguém precisava dizer a Jesus coisa alguma uma vez que ele conhecia o coração de todos os homens (2.25). Isso será demonstrado em todo o diálogo.

O sumário vai preparando o leitor do diálogo para o embate que se dará entre um mestre entre os homens e um mestre vindo de Deus. Um que conhece a verdade por aquilo que vê e outro que ensina a verdade por aquilo que faz. Um que tem uma posição dentre o povo que é construída a partir das verdades que demonstra e outro que conhece uma verdade que lhe foi ensinada por uma tradição posterior a ele, mas que em breve não lhe servirá de esteio. Ao colocar esses duas situações absolutamente antagônicas em seu sumário, o narrador vai preparando o terreno para que o narratário enxergue no diálogo que será contado logo em seguida um embate entre visões de mundo contrárias.

O sumário tem a função de preparar o leitor para o "evento" narrativo que virá logo depois dele, uma cena em que acontecerá algo especial na narrativa e que o narrador quer deixar a mostra. Ainda segundo Alter (2007, p.102), "um evento narrativo propriamente dito ocorre quando o ritmo da narração se desacelera o suficiente para que captemos uma cena singular". Não há recurso narrativo em que a desaceleração da narrativa é mais percebida do que no diálogo, pois no diálogo o tempo narrativo e o tempo narrada entram em sincronia (ECO, 2012, p. 55,56). É neste sentido que o diálogo narrado no bloco 2 se insere. Ele é o evento chave que dá sentido a toda a narrativa, tanto aquelas palavras que aparecem antes dele, quantos aquelas que aparecem depois dele. O diálogo apresentado a nós pelo narrador do Quarto Evangelho será analisado mais adiante neste trabalho. O que queremos colocar aqui é que nele as trevas que circundam o interior do mestre dos judeus são trazidas à luz por aquele que é "a luz" (João 1. 4, 5), bem como o fato de que ao usar o artifício do diálogo o narrador, por meio da desaceleração de sua narrativa, faz com que seu leitor seja como que obrigado a olhar mais atentamente para aquilo que está sendo dito e mostrado a ele no embate entre Jesus e Nicodemos.

O terceiro e último bloco parece se encaixar mais em uma reflexão que o narrador do evangelho faz a respeito do amor de Deus e de como esse amor é manifesto através da doação do filho que é luz e que foi rejeitado pelos homens. A hipótese de o versículo 13 insere na narrativa uma reflexão teológica do narrador a respeito do Cristo parece ficar clara no momento em que ele deixa o artifício do diálogo e passa a utilizar uma espécie de sermão para confirmar aquilo que foi mostrado no diálogo, ou seja, que Jesus é a luz que brilhou nas trevas e que é capaz de iluminar a vida de todos os homens. Ao comentar sobre este texto, Léon-Dufour (1996, p. 230-232) argumenta que o texto pode ser considerado como uma reflexão do narrador quando comparamos a estrutura das declarações apresentadas e aqueles que aparecem no Prólogo em que o narrador argumenta sobre a existência eterna do Logos, bem como o uso do kai (gr. καὶ) que pode ser traduzido tanto por "Ora", como aparece na versão usada neste trabalho, como por "Sim", como prefere Léon-Dufour (1996, p. 231) em sua tradução deste trecho. Seja como for o termo parece mostrar uma mudança no período. Quando olhamos, sobretudo, o conteúdo do texto fica muito difícil entender que se trate de um monólogo de Jesus; preferimos, antes, entender o trecho como uma reflexão do narrador.

Uma marca textual que fortalece essa hipótese é que no início do sermão o narrador n o se refere a Cristo como Jesus, um personagem que está em um diálogo com seu interlocutor, Nicodemos, como acontece em toda descrição do diálogo. Ao se referir a Cristo em suas reflexões teológicas ele passa a chamá-lo de o "Filho" e dá a esse filho não mais a voz de um ensinador que condiz o seu aluno, mas de "luz" que tem o poder de iluminar a todos os homens e de juiz que tem o poder de julgar a todos os homens, por sua recusa em receber a luz verdadeira. Note-se que não só a figura de Cristo passa a receber outro título, mas suas funções em relações ao mundo – aos homens – passam a serem outras. Assim, o terceiro bloco da narrativa encaixa-se mais em um discurso do narrador a respeito da pessoa de Cristo do que necessariamente uma continuação em forma de monólogo do diálogo mostrado anteriormente. Aqui o que parece acontecer é que o narrador usa o diálogo com esteio para suas reflexões a respeito de Cristo e para que sua comunidade de fé saiba que rejeitar a este cristo é entrar em juízo por rejeitar a doação de Deus dada em amor aos homens.

4.2.1 A noite como cenário de uma luta

Ao fazer uma aproximação geral das passagens que circundam o nosso texto, procuramos passar uma visão geral do que o trecho nos conta. A partir de agora voltaremos nossa atenção à análise no texto base com o qual nos ocuparemos e que na seção anterior chamamos de "bloco 2", o diálogo propriamente dito entre Jesus e Nicodemos. Para tanto será necessário a lembrança daquilo que Bakhtin chamou de "enunciação". O texto mostra o diálogo entre "um príncipe" dos judeus, reconhecido por sua educação e treinamento religioso dentro do seu grupo, os fariseus, e o Logos-Deus (Jo 1.1); um Mestre enviado de cima e um mestre pertencente ao mundo de baixo. Esta diferença de realidades entre a formação de Jesus e a formação de Nicodemos, caracteriza uma diferença sócio-religiosa construída por vozes diferentes em ambientes diferentes, o que resultará em uma luta de vozes na arena da enunciação. Daí a afirmativa de Machado (1995, p. 68) de que no diálogo é possível "delimitar o campo de ação de cada participante no ato comunicativo, onde cada uma assume uma posição única e privilegiada". Assim, podemos entender este diálogo não como uma reprodução do diálogo que existiu entre os personagens, mas como um desvelamento de diferentes pontos de vista discursivos.

No primeiro trecho (v.1) é dito que "havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus". O narrador ao colocar as últimas informações sobre as quais o seu diálogo será construído, deixa transparecer informações importantes sobre o personagem que será o interlocutor do diálogo. Ele era uma homem que se encontrava entre aqueles que eram chamados de fariseus, um grupo religioso que construía todo seu arcabouço discursivo em torno de uma santidade que, segundo eles, era herança de seus antepassados que serviram fielmente a Deus. Nicodemos estava não apenas entre os fariseus, mas era um dos seus príncipes, ou seja, ele fazia parte da mais alta corte religiosa do seu tempo, o Sinédrio, tribunal judaico em que eram julgados os crimes contra a religião judaica. Por essa informações se entende que ele era alguém que gozava do respeito de sua comunidade por ter construído, durante quase que uma vida toda uma reputação e uma educação que o fizera galgar o posto de "príncipe". Nicodemos era alguém que tinha em seu campo de atuação – a religião judaica – um nível de respeito não facilmente alcançável.

Por esta condição religiosa tão elevada, ele não tinha nenhuma necessidade de ir à procura de Jesus; mas foram os milagres que Jesus fazia e não sua educação religiosa (v. 2) que fizeram com que o fariseu e conhecedor de toda a cultura religiosa de seu tempo fosse procurar aquele a que ele chama de "Mestre". Uma frase deste primeiro trecho tem despertado a atenção de vários daqueles que estudam este texto. O narrador diz que: "Este [Nicodemos] foi ter com Jesus, de noite" (v. 2). Ao comentar sobre a frase, Hendriksen (2014, p. 154-155) aponta três motivos pelos quais Nicodemos veio durante a noite procurar por Jesus: Um primeiro grupo (1) tem entendido que a visita ocorreu durante a noite por conta do medo que Nicodemos sentiu de ser criticado por seus companheiros de Sinédrio; em oposição, estudiosos têm defendido que nesse momento do ministério de Jesus, o momento inicial, a oposição não seria tão forte para causar medo em um chefe do povo; outros dizem que (2) o medo que sentia Nicodemos era fruto da iminente morte de Cristo, este grupo defende também que esse relato não é do início do evangelho, mas do fim do ministério de Cristo; outros ainda argumentam que (3) o motivo da procura durante a noite foi simplesmente pelo fato de que Jesus estava sempre muito ocupado durante o dia para uma conversa tão demorada com quem quer que fosse.

É preciso lembrar, porém, que a narrativa joanina é magistralmente construída por um narrador que usa de muitos e variados recursos literários para dar brilho a sua narrativa (cf. 2.3), além de usar termos habilmente escolhidos para que os efeitos de sentidos sejam percebidos pelo seu leitor. Assim, podemos dizer que o uso da palavra "noite" no contexto da narrativa do Quarto Evangelho é não apenas uma marcação temporal, mas um termo cuidadosamente usado para demonstrar o estado de interno da personagem que vai ao encontro de Jesus na noite de sua existência. Este ponto pode ser colocado a partir do momento em que olhamos a narrativa que antecede o diálogo entre Jesus e Nicodemos quando o narrador parece trabalhar a questão da luz que brilhou nas trevas e que os homens não haviam percebido (Jo 1.4-5), bem como o fato de que em toda a sua narrativa o narrador trabalha com dualismos, dentre eles a luz e as trevas. Portanto as trevas que "cobriam" o diálogo eram as trevas de Nicodemos que serão dissipadas pela luz advinda das palavras de Jesus. Como indicam Fabris e Maggioni (2006, p. 309), se se quiser penetrar na poesia construída pelo narrador do Quarto Evangelho, é preciso admitir que "é como sobre um fundo vazio e negro (como é escura a noite) que se destacam as duas figuras": Jesus representando a luz em sua pessoa e ensinamento e Nicodemos representando as trevas em sua existência e incompreensão. A partir deste momento (Jo 3.2) temos o diálogo propriamente dito:

[2] Este foi ter com Jesus, de noite, e disse-lhe:
Rabi, sabemos que és Mestre, vindo de Deus; pois ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.
[3] Respondeu-lhe Jesus:
Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.

A primeira parte do diálogo coloca em foco a percepção que Nicodemos tinha a respeito de Jesus e como esta percepção havia sido adquirida. Ao iniciar o diálogo com Jesus, o chefe dos judeus coloca em prática um plano arquitetado por ele para confirmar suas certezas a respeito daquilo que ele pensava que Jesus era, isto é, um profeta enviado de Deus para mostrar Deus aos homens através dos sinais que fazia (Jo 3.2). Esta mesma percepção parece ter sido compartilhada pelo grupo social e religioso do qual pertencia Nicodemos, os fariseus (Jo 1.21), analisado brevemente neste trabalho no capítulo três (3.2.3). O que demonstra que uma cultura discursiva estava sendo construída a respeito da identidade de Jesus. E é com essa certeza sócio-ideologica, alimentada pela percepção dos milagres que Jesus fazia (cf. Jo 3.2; Jo 4.45) que Nicodemos abre o diálogo com Jesus, entendendo que ele é grande por ser um profeta, um representante de Deus, e Mestre, alguém que merece ser ouvido.

Ao elevar Jesus à posição de rabi e mestre em suas palavras iniciais, o interlocutor do diálogo mostra que sua percepção a respeito de Jesus é resultante de uma percepção discursiva, aquilo que tinha ouvido, e de uma percepção pessoal, aquilo que tinha visto. A junção dessas duas percepções reveladas na fala inicial de Nicodemos corrobora a ideia de que o seu discurso é perpassado pelos discursos de sua comunidade de fé, uma variedade de vozes que acabou por fazer com que ele construísse uma imagem identitária de Jesus que logo seria desafiada e superada na arena do diálogo.

Neste primeiro momento salta à vista o esforço em fazer com que a imagem que nele fora criada discursivamente sobre Jesus seja confirmada pelo seu falar em relação ao "Mestre". Mas Jesus, conhecendo o que estava no íntimo de Nicodemos (Jo 2.25), rebateu sua fala inicial desafiando-o a uma compreensão nova da identidade de Cristo. Começa assim a luta entre duas vozes discursivas que vão se digladiar na arena da enunciação. Coloca-se de um lado as vozes que deram origem à fala de Nicodemos, as coisas que são de cima, e de outros o discurso de Jesus que incorpora à enunciação um novo modo de compreender as verdades "de cima" (Jo 3.12). Vejamos a fala de Jesus:

[3] Respondeu-lhe Jesus: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.
[4] Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer?

Neste segundo trecho do diálogo, o narrador coloca na boca de Jesus, personagem principal do diálogo, não apenas um aparente "mal-entendido", mas acima de tudo um novo paradigma com o qual Nicodemos deveria lhe dá, ou seja, o fato de que um doutor da lei estava totalmente na escuridão da ignorância quanto a uma verdade que ele passou toda a vida estudando para entender, a realidade da (1) existência de uma verdade, (2) uma verdade a respeito de um reino de Deus e (3) uma verdade que traz à luz a realidade de uma ignorância que apesar de não ser percebida era existente. Nicodemos foi forçado a reavaliar suas verdades e reconhecer sua ignorância.

Falando especificamente do termo usado por Jesus para contrapor a afirmação de Nicodemos de que ele era um mestre-profeta vindo da parte de Deus pelos sinais que fazia, o teórico e crítico literário Terry Eagleton, ressalta a engenhosidade narrativa do narrador do Quarto Evangelho quando diz que "João tem grande entusiasmo por duplos sentidos, que não podem ser traduzidos do grego original sem perder o significado. Aqui está o exemplo mais famoso. Em grego, a palavra anothen tanto pode significar 'nascido de cima' quanto 'nascido outra vez'[...]. Esta é uma clássica brincadeira de João" (EAGLETON, 2009, p. 198). Apesar de entendermos que o narrador do Quarto Evangelho utiliza-se de sofisticados artifícios para enriquecer sua narrativa, não nos parece exequível a afirmativa do crítico de que aqui se trate de uma "brincadeira" do narrador com o intuito de entreter seus leitores, mas de um recurso muito bem utilizado para mostrar a limitação de entendimento do doutor da Lei em relação à identidade e mensagem de Jesus.

O intuito primordial deste trecho parece ser mostrar que as vozes discursivas que deram origem à imagem de Jesus no interior de Nicodemos estavam absolutamente equivocadas em relação à revelação apresentada por Jesus de um nascimento do alto. Daí a necessidade de repensarmos não apenas a compreensão que Nicodemos teve em relação às palavras de Jesus na arena da enunciação, mas também o intuito de Jesus em colocar em luta as verdades judaicas em relação às verdades de um novo discurso, o discurso de cima. Para tanto é preciso que observemos os outros trechos do diálogo.

[5-6] Jesus respondeu: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito.
[7-8] Não te admires de eu te haver dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.
[9] Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode ser isto?
[10-12] Respondeu-lhe Jesus: Tu és mestre em Israel, e não entendes estas coisas? Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testemunhamos o que temos visto; e não aceitais o nosso testemunho! Se vos falei de coisas terrestres, e não credes, como crereis, se vos falar das celestiais?

Quando pensamos na interrogativa de Nicodemos no versículo quarto acima ("Como?"), podemos depreender que o chefe dos fariseus não apenas reconhece a limitação de seu conhecimento em relação a Jesus e os seus ensinos, mas percebemos que ele esperava que Jesus lhe desse outras explicações a respeito da afirmativa de o que seria esse "nascer do alto". Para surpresa do interlocutor, porém, Jesus não o responde com explicações didáticas, aos moldes rabínicos, mas coloca a sua incompreensão na berlinda das incertezas por meio de outra afirmação que não se encaixa na gama de discursos antes ouvidos por Nicodemos. Coloca diante dele a realidade de dois nascimentos – o da carne e o do espírito – e ainda instiga o velho homem a viver em uma nova forma de liberdade, a liberdade experimentada por aqueles que ao nascer do espírito, tornam-se livres como o vento.

Reconhecer na figura do vento uma representação do Espírito e do poder de Deus, não era algo novo para um mestre da Lei judaica; mas colocada do modo como fora colocada por Jesus, a representação do Espírito como vento ganhou novo sentido na arena da enunciação. É assim que pela palavra viva em uma realidade viva os significados são construídos e as verdades são mudadas pelo poder da palavra (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 111). Ante a enxurrada de verdades novas, não restou a Nicodemos outra alternativa se não reconhecer a limitação do seu conhecimento diante das enunciações de "verdade" emitidas por Jesus e admitir sua necessidade de aprendizado (v. 9 "Como pode ser isto?"). A pergunta estupefata de Nicodemos aparece aqui pela segunda vez. Aquele que é chefe dos Judeus e reconhecido como guardião das "verdades de Deus" se vê acuado diante das afirmações de um profeta do povo que, em sua maneira de ver, só era reconhecido pelos sinais que fazia e não pelo ensino que proferia (Jo 2.24-25).

Um mestre judeu que não compreende as coisas de cima e um nazareno profeta que não fala das coisas da terra. Ecoa aqui a intrigante pergunta de Natanael: "Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?" (Jo 1.46). Enquanto que no caso de Natanael ver o presente de Deus era suficiente; na narrativa de Nicodemos, cujo nome significa "homem do povo", não era suficiente apenas ver – como o resto de seu povo – era preciso aprender, apreender e modificar os significados que ele havia construído a respeito do mestre de Nazaré. Essas afirmativas parecem saltar do texto e ser confirmadas quando acompanhamos o último ensino de Jesus a Nicodemos. Na última parte do diálogo temos as duas únicas e intrigantes pergunta de Jesus ao chefe fariseu:

[10] Tu és mestre em Israel, e não entendes estas coisas? [...]. [12] Se vos falei de coisas terrestres, e não credes, como crereis, se vos falar das celestiais?

O terceiro trecho que iremos analisar mostra as duas últimas perguntas de Jesus ao chefe dos fariseus, que veio procurá-lo em meio ao silêncio da noite. Perceba-se que as duas interrogações, apesar de serem feitas à mesma pessoa na dinâmica da narrativa, quando olhados mais atentamente os pronomes que principiam cada uma dessas interrogações, percebemos que as perguntas são endereçadas a dois enunciadores diferentes na dinâmica do discurso. Em um primeiro momento aparece um "tu" (v.10) e no segundo momento, na segunda pergunta, aparece um "vós" (v.12). O primeiro "tu" é referido ao interlocutor presente – Nicodemos – aquele com que dialoga Jesus; enquanto o "vós" bem pode ser endereçado ao grupo do qual Nicodemos era representante – os fariseus. Vejamos como isso aparece na engenhosidade narrativa do narrador do Quarto Evangelho.

Em todo o diálogo e em todas as perguntas, Jesus parece fazer questão de trazer à baila verdades espirituais ao mestre da Lei, Nicodemos. Veja-se, por exemplo, o versículo cinco em que Jesus afirma: "Em verdade, em verdade te digo"; no versículo sete é exclamado: "Não te admires de eu te haver dito"; e na pergunta final: "Tu és mestre em Israel". Entendemos, então, que em todos os momentos do discurso a palavra é dirigida à personagem Nicodemos. Uma clara indicação de que a preocupação de Jesus era fazer com que aquele doutor dentre o povo de Israel entendesse verdades que são de "cima", ao contrário dos ensinamentos com os quais ele estava acostumado, "as coisas da terra". Assim, há toda uma construção narrativa e discursiva para mostrar a preocupação de Jesus em atender a necessidade de conhecimento de Nicodemos, que estava coberto de uma densa escuridão representada pela noite do tempo narrativo. Todas essas palavras de Jesus tinham como alvo revelar a este "tu" verdades eternas.

Ao mudar o pronome de "tu" para "vós", no diálogo, o narrador indica aos seus leitores que o discurso proferido por Jesus era endereçado a outro interlocutor que, apesar de ausentes na dinâmica do diálogo, estavam presentes nas palavras de Nicodemos. Vozes veladas que eram ouvidas ao perpassarem o discurso do líder judeu. O "vós" na segunda pergunta, parece resgatar o grupo de religiosos do qual Nicodemos era representante. Para percebermos como essa outra voz é representativa nas palavras de Nicodemos, basta lembrarmos de que na primeira ocasião em que o mestre em Israel dirige a palavra a Jesus apresentou-se como representante de um grupo maior. Como disse Nicodemos: "Rabi, sabemos que és mestre" (v. 2). Neste momento o narrador faz-nos perceber que o discurso de Jesus era dirigido não a Nicodemos, mas aos judeus aos quais ele representava, os fariseus.

A terceira e última parte do diálogo entre Jesus e Nicodemos traz em seus meandros toda a leveza e riqueza da linguagem que se entremeia em uma espécie de luta e dança entre a realidade viva do momento narrado e a retomada de vozes antes mostradas, que invadem a narrativa de uma maneira quase imperceptível em uma luta entre a voz presente do protagonista e seu interlocutor e a voz oculta de outras construções que pareciam não estar presentes. Ao referir-se ao seu interlocutor como "mestre em Israel", Jesus resgata a ele a primeira imagem que dele aparece na narrativa e assume um tom de um verdadeiro mestre que coloca, pela palavra, o seu aluno em posição de aprendizado consciente. Alguém que aprende que não sabe tudo, mas que não despreza aquilo que sabe. Sob outra perspectiva, as palavras de Jesus resgatam a ideia de que assim como o discurso de Nicodemos não era dele só, mas resultado de vozes outras que se manifestavam na voz do chefe dos judeus; assim também o discurso de Jesus não era endereçado apenas a Nicodemos, mas a todos aqueles a quem este discurso representava e dos quais o seu falar era reflexo.

O primeiro diálogo que estamos analisando, mostra que sua construção é usada pelo narrador do Quarto Evangelho como uma ferramenta – um artifício – para construção de significados. Nicodemos que chega a Jesus influenciado por vozes outras que não a sua própria, percebe naquele que por ele era considerado como um profeta enviado de Deus e um mestre no meio do povo, não apenas um mestre de coisas terrenas, mais um Mestre das coisas "de cima". O diálogo entre Jesus e Nicodemos banhado pela noite em Jerusalém, a habitação de paz, parece ser uma arena em que vozes discursivas se encontram na dinâmica da narrativa e na vivacidade da enunciação. Ou como disse a estudiosa de Bakhtin, Irene Machado (1995, p. 134), o diálogo na narrativa transforma-se "numa arena de contrastes entre visões de mundo que desafiam" as próprias ideias que eram defendidas pelos participantes do diálogo em momento anterior a esse diálogo.

4.2.2 Um homem chamado Nicodemos

O diálogo entre Jesus e Nicodemos é em todos os aspectos uma mostra da genialidade do narrador do Quarto Evangelho. Na primeira menção que se faz a Nicodemos ele é apresentado com "um homem" (Jo 3.1) para ligar a narrativa que está prestes a se iniciar à narrativa anterior que diz que Jesus "não necessitava de que alguém testificasse do homem, porque ele bem sabia o que havia no homem"
(Jo 2.25). Assim, todo o diálogo é emoldurado por narrativas curtas que confirma tudo aquilo que é apresentado no diálogo, seja antes ou depois dele. No caso deste diálogo, porém, algo parece fugir deste padrão no sentido de que, no caso de Nicodemos, ele aparece como interlocutor do diálogo, mas logo depois da reflexão do narrador a respeito de Jesus (Jo 3.13-21), ele some da narrativa imediata para reaparecer capítulos depois no relato joanino.

A segunda vez em que Nicodemos vai aparecer na narrativa joanina, faz-se referência dele ainda participando do grupo dos fariseus e sendo ainda um dos chefes deste grupo. Segundo o narrador do Quarto Evangelho (João 7), por motivo de uma festa dos judeus, a festa das cabanas, Jesus vai a Jerusalém para ensinar em público e, mesmo admitindo que o modo de Jesus ensinar era singularmente especial (Jo 7.15), os judeus procuravam um motivo para prendê-lo e matá-lo. É nesse momento de grande tensão entre Jesus e os chefes dos judeus que reaparece Nicodemos na narrativa. No momento em que a multidão admite em Jesus um profeta pelos sinais que fazia e reconhece que as motivações daqueles que procuravam matá-lo não eram boas (Jo 7.20), surge uma pergunta intrigante: "Creu nele porventura algum dos principais ou dos fariseus?" (Jo 7.48). A pergunta é endereçada a um grupo de soldados que foram prender Jesus e voltaram com um relatório aos chefes dos judeus que estavam, pensa-se, reunidos para ouvir o relatório desses soldados que, maravilhados pelo discurso de Jesus, não conseguiram prendê-lo. Mas a pergunta demonstra que até aquele momento Nicodemos não tornara conhecido seu encontro com Jesus. Nicodemos então se manifesta: "Porventura condena a nossa lei um homem sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?" (Jo 7.51). Os chefes dos judeus entendem a objeção de Nicodemos não como uma mostra de que ele já havia tido algum contato com Jesus, mas como uma questão de regionalismo usada como tom irônico. Até aqui temos indícios dos resultados daquele diálogo, mas não temos certeza dos seus resultados sobre o homem Nicodemos.

A terceira e última cena da narrativa joanina em que Nicodemos aparece é no sepultamento de Jesus (João 19). Após ter sido crucificado, o corpo de Jesus permaneceu na cruz até o final da tarde, mas por conta da festa da páscoa que estava se aproximando e diante da certeza de que Jesus estava morto "José de Arimatéia (o que era discípulo de Jesus, mas oculto, por medo dos judeus) rogou a Pilatos que lhe permitisse tirar o corpo de Jesus. E Pilatos lho permitiu. Então foi e tirou o corpo de Jesus" (Jo 19.38). É nesse momento da narrativa que aparece pela última vez a figura de Nicodemos. Segundo o narrador do Quarto Evangelho, junto a José de Arimatéia "foi também Nicodemos (aquele que anteriormente se dirigira de noite a Jesus), levando quase cem arráteis de um composto de mirra e aloés" (Jo 19.39). Os dois personagens sepultaram o corpo de Jesus de acordo com os costumes judaicos e o fizeram em um sepulcro novo que estava vazio e "por estar perto" (Jo 19.42).

A expressão "por estar perto" aparece de maneira ambígua do texto uma vez que não é possível determinar a sua importância ou aplicação na narrativa. Ou seja, não se sabe se o "estar perto" era importante para os dois homens (1) por conta da proximidade da virada do dia; (2) por causa do peso que as especiarias juntamente com o peso corpo causavam ao transporte do lugar da crucificação ao sepulcro ou (3) por conta da preocupação dos dois em manter sua relação com Jesus em segredo. Quando olhamos para a situação de José de Arimatéia, parece ficar claro que ele tinha uma preocupação em manter oculta sua relação com Jesus; no caso de Nicodemos esta preocupação em manter seu contato com Jesus em segredo é algo que nos é colocado pelo narrador do evangelho quando nos lembra que ele era aquele que "anteriormente se dirigira de noite a Jesus". Todas as vezes que Nicodemos aparece, esta frase é repetida como um indicativo não apenas de uma lembrança do narrador, mas como uma marca indicativa da condição pessoal de Nicodemos, alguém que estivera na noite mas que queria estar perto da Luz.

Não se sabe muito bem o que acontece com o chefe dos fariseus Nicodemos, mas uma coisa parece certa é que as palavras de Jesus o impressionaram profundamente e causaram em sua existência marcas indeléveis; não se pode dizer também que em seu caso houve uma radical mudança em sua perspectiva religiosa, mas não podemos negar que nele há uma constante preocupação em ficar perto daquele que ele tinha reconhecido como um mestre.

4.3 JESUS E A MULHER SAMARITANA: A PALAVRA COMO ARENA

O segundo diálogo que nos propomos a analisar é aquele que acontece em decorrência do encontro entre Jesus e uma mulher samaritana. Diante de mais uma oposição dos fariseus em relação à obra que Jesus e os seus discípulos faziam, o batismo de prosélitos, ele deixou a região da Judeia e foi à região de Galileia. Nesta travessia passa pela região da Samaria onde, fora da cidade de Sicar, havia um poço em que as mulheres da cidade vinham buscar água para suprir suas necessidades. É sob este cenário que ocorre um dos mais belos e engenhosos diálogos de toda à narrativa bíblica, o diálogo entre Jesus e a Mulher Samaritana. Uma mulher sem nome, mas que demonstra toda sua riqueza como personagem por suas referências: uma mulher advinda de um grupo étnico-religioso, os samaritanos.

Este texto é uma excelente demonstração de que as narrativas bíblicas não tem nada de "narrativas menores", antes são narrativas altamente sofisticadas como as maiores narrativas da cultura humana; elas nos mostram também que a ideia de que o diálogo é algo monótono e sem dinamismo pode ser facilmente abandonadas. Como nos afirmas os críticos literários Robert Alter e Frank Kermode (1997, p. 486) a respeito do narrador do Quarto Evangelho:

O engenho narrativo de João tem as virtudes da economia, complexidade e profundidade. Ele está empenhado em tornar sua narrativa coerente, mas, ao fazê-lo, sempre trata do seu propósito mais profundo, que é a representação do eterno em relação ao transitório, das manifestações do ser em um mundo de vir-a-ser. Em outras palavras: embora haja uma quantidade excepcional em João – em seu Jesus, em discurso e diálogo, é de longe o mais comunicativo dos quatro – , ele tem ainda em grau maior do que os outros preocupação com a organização temática da narrativa, a criação de detalhe á maneira da história e o que é às vezes chamado de "efeito do real".

Talvez não haja no Quarto Evangelho outro lugar em que estas características apresentadas pelos críticos se mostrem de maneira mais clara do que nesse diálogo entre o homem judeu e a mulher de Samaria. Ao falar especificamente da dinâmica do diálogo, Ferreira (2006, p. 357) advoga que "trechos narrativos em forma de diálogo e os discursos em sua totalidade são tensos e trazem ao leitor o caráter de urgência vivencial em relação a seus conteúdos". Temos, então, que não há nada de monótono nos trechos narrativos em forma de diálogo, antes temos neles uma "urgência vivencial" que é demonstrada na tessitura da narrativa. E isto será mostrado no texto joanino.

Um último esclarecimento neste momento se faz necessário: enquanto que ao analisar o diálogo entre Jesus e Nicodemos, nos valemos da afirmativa de que a enunciação em narrativas literárias é uma arena em que a visão de mundo de um personagem entra em luta com a visão de mundo de outro personagem em um diálogo, quando analisarmos o diálogo entre Jesus e a Mulher Samaritana voltar-nos-emos à afirmação de Bakhtin de que a palavra é uma "pequena arena" em que os significados são construídos em luta na arena maior da enunciação. Nas palavras do próprio Bakhtin:

A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. [...] O signo, então, é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela. A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, cientifica, moral, religiosa. [...] cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais [...]. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como produto da interação viva das forças sociais. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, 36-37, 67)

O intuito é, pois, observar como a palavra ganha sentido ideológico na dinâmica do diálogo e como resultando temos que a própria palavra se mostra como uma arena pela luta entre forças ideológicas sociais. Mas antes de irmos para as analises dos diálogos, observaremos a moldura que o narrador do Quarto Evangelho dá a sua narrativa. Só então passaremos a análise do diálogo propriamente dito.

BLOCO 1
[4.1-4] Quando, pois, o Senhor soube que os fariseus tinham ouvido dizer que ele, Jesus, fazia e batizava mais discípulos do que João (ainda que Jesus mesmo não batizava, mas os seus discípulos) deixou a Judéia, e foi outra vez para a Galileia. E era-lhe necessário passar por Samaria.

BLOCO 2
[4.5-26] Chegou, pois, a uma cidade de Samaria, chamada Sicar, junto da herdade que Jacó dera a seu filho José; achava-se ali o poço de Jacó. Jesus, pois, cansado da viagem, sentou-se assim junto do poço; era cerca da hora sexta. Veio uma mulher de Samária tirar água. Disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. Pois seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. Disse-lhe então a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? (Porque os judeus não se comunicavam com os samaritanos). Respondeu-lhe Jesus: Se tivesses conhecido o dom de Deus e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe terias pedido e ele te haveria dado água viva. Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que tirá-la, e o poço é fundo; donde, pois, tens essa água viva? És tu, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, do qual também ele mesmo bebeu, e os filhos, e o seu gado? Replicou-lhe Jesus: Todo o que beber desta água tornará a ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna. Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água, para que não mais tenha sede, nem venha aqui tirá-la. Disse-lhe Jesus: Vai, chama o teu marido e vem cá. Respondeu a mulher: Não tenho marido. Disse-lhe Jesus: Disseste bem: Não tenho marido; porque cinco maridos tiveste, e o que agora tens não é teu marido; isso disseste com verdade. Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me, a hora vem, em que nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos; porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e é necessário que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade. Replicou-lhe a mulher: Eu sei que vem o Messias (que se chama o Cristo); quando ele vier há de nos anunciar todas as coisas. Disse-lhe Jesus: Eu o sou, eu que falo contigo.

BLOCO 3
[4.27-30] E nisto vieram os seus discípulos, e se admiravam de que estivesse falando com uma mulher; todavia nenhum lhe perguntou: Que é que procuras? Ou: Por que falas com ela? Deixou, pois, a mulher o seu cântaro, foi à cidade e disse àqueles homens: Vinde, vede um homem que me disse tudo quanto eu tenho feito; será este, porventura, o Cristo? Saíram, pois, da cidade e vinham ter com ele.

BLOCO 4
[4.39-43] E muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher, que testificava: Ele me disse tudo quanto tenho feito. Indo, pois, ter com ele os samaritanos, rogaram-lhe que ficasse com eles; e ficou ali dois dias. E muitos mais creram por causa da palavra dele; e diziam à mulher: Já não é pela tua palavra que nós cremos; pois agora nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo. Passados os dois dias partiu dali para a Galileia.

Como fizemos para nos aproximar do capítulo três, neste primeiro momento de nossa análise faremos uma aproximação geral da narrativa para nos familiarizarmos com o modo como o narrador do Quarto evangelho conta sua história; e só então nos deteremos no diálogo que é objeto de uma análise mais acurada em nosso trabalho.

O trecho que aparece no primeiro bloco é o emolduramento narrativo que o narrador do Quarto Evangelho dá ao diálogo que virá logo em seguida. Ancorado na ideia de que a oposição dos fariseus em relação a Jesus estava aumentando por conta de que o povo o estava identificando como sucessor de João, o Batista, por conta de sua ação de batizar pessoa em uma espécie de proselitismo e que o narrador explica que não era Jesus que batizava, mas seus discípulos, o narrador passa a narrar – com a economia que já lhe é característica – a saída de Jesus da região da Judeia para a região da Galileia. Neste trecho especificamente duas coisas parecem saltar aos olhos.

Em primeiro lugar, é estranho Jesus fugir de um lugar para outro por medo da oposição dos fariseus, visto que a presença deste grupo é algo com o qual Jesus já estava acostumado. Assim, muito provavelmente o narrador está se utilizando da ideia de um designo maior para que Jesus deixasse uma região determinada e seguisse para outra, escapando da prisão iminente, para continuar a missão que havia sido designada a ele pelo Pai (v. 34). Por segundo, a afirmativa de que Jesus mesmo não batizava, que na narrativa aparece entre parênteses (recurso gráfico usado pelos editores para assinalar trechos que não aparecem em todos os autógrafos, textos mais próximos no tempo dos originais), parece ser um acréscimo posterior e havia sido colocada ali para minimizar a ação de Jesus como um batizador, evitando a identificação dele com João Batista, o que resultaria na espera de outro messias por parte dos samaritanos (BROWN, 1999, p. 406).

Se for assim, precisamos levar em conta a possibilidade de que não apenas os discípulos batizavam, mas também o próprio Jesus, o que teria suscitado a acirrada perseguição dos fariseus a Jesus, obrigando-o a deixar a região da Judeia. Um ponto importante a se observar também é a afirmativa do narrador de que a Jesus e aos seus discípulos era "necessário" passar por Samaria. A questão que se coloca aqui é em que sentido havia esta necessidade, ou seja, de que natureza era essa necessidade? Neste ponto seguiremos novamente as observações de Brown (1999, p. 411) ao argumentar que do ponto de vista geográfico não havia nenhuma necessidade de Jesus atravessar da Judeia para a Galileia passando por Samaria, pois se Jesus estava no vale do Jordão, como parece indicar João 3.22, ele poderia subir pelo mesmo vale ao norte e chegar facilmente a Galileia. Deste modo, para o autor, a necessidade que aparece aqui diz respeito a "cumprir a vontade e os desígnios de Deus" (BROWN, 1999, p. 411, tradução nossa). A mesma posição de que a menção que faz o narrador do Quarto Evangelho de uma necessidade não é de ordem geográfica é compartilhada por Mateos e Barreto (2011, p. 218) em seu comentário. O que combinaria muito bem com a expressão de Jesus do versículo trinta e quatro quando ele diz que sua comida é "fazer a vontade daquele que me enviou, e completar a sua obra".

No segundo bloco da narrativa aparece o diálogo entre Jesus e uma mulher cujo único designativo que temos é que era uma samaritana. Além de ser mulher, que para os padrões da época era uma desqualificação do ser, ela era samaritana. Os judeus tinham em relação aos samaritanos várias contrariedades que vão desde desavenças quanto aquilo que poderia ser considerado o Livro Sagrado até a afirmativa de que eles – os samaritanos – eram um povo maldito, imundo. As diferenças entre judeus e samaritanos gravitavam em, pelo menos, três pontos: (1) enquanto os judeus acreditavam em todo o Antigo Testamento, os samaritanos só criam nos cinco primeiros livros; (2) enquanto que os judeus entendiam que eles eram o povo escolhido de Deus, os samaritanos advogavam que eles eram os escolhidos; (3) enquanto os judeus entendiam que o lugar escolhido por Deus para que seu nome fosse adorado era Jerusalém, no templo, os samaritanos entendiam que o lugar para se cultuar a Deus era o monte Gerizim, nas terras dos samaritanos. Essas informações nos ajudam a entender em certa medida o porquê (1) a surpresa da mulher em ouvir Jesus lhe pedindo água (v. 9); (2) a referência da mulher a um monte onde se deveria adorar (v. 20) e (3) o maravilhar dos discípulos ao verem Jesus falando com uma mulher (v. 27). Mas uma coisa judeus e samaritanos tinham em comum: a esperança de que um dia um messias surgiria para os fazer entender todas as coisas. Daí o interesse quase que frenético da mulher em saber a respeito do messias e sua súbita mudança ao reconhecer em Jesus esse messias (v. 25, 29).

O terceiro e quarto blocos mostram como o testemunho de uma mulher influenciou não apenas uma cidade, mas uma região inteira. Os samaritanos diante do testemunho da mulher, saem em busca daquele que ela afirmava ser o messias esperado e ao ouvirem as palavras, os ensinos, de Jesus eles também passaram a crer na pessoa de Jesus, não mais por conta das palavras da mulher, mas por causa da experiência deles em relação a Jesus (v. 42). O resultado direto da necessidade e crença dos judeus foi que Jesus, quebrando qualquer tipo de preconceito étnico, ficou com eles por dois dias; e o narrador faz questão de deixar subentendido que a estadia de Jesus em terras samaritanas se deu por que os samaritanos o honraram como messias e profeta (v. 44). Assim, em consequência de um diálogo que fora impulsionado pelos desígnios de Deus, toda uma região crê que Jesus era o messias e, como resultado, as barreiras étnicas que separavam dois povos por vários anos foram quebradas para ser construídas novas possibilidades de reaproximação.

4.3.1 Um poço como testemunha de uma luta

Na primeira parte de nossa análise, observamos o texto como um todo em linhas gerais; e são essas linhas gerais que nos darão base para analisarmos mais especificamente o diálogo entre Jesus e a Mulher Samaritana, personagem coadjuvante que dará cor e riqueza à narrativa joanina. Como vimos (3.2.2), a técnica do diálogo contrastivo em narrativas bíblicas dá-se primordialmente, mas não exclusivamente, entre dois personagens que são colocados em um diálogo com intuito de estreitar a cena e dar a ela características de uma estrutura de "ficção historicizada". É exatamente isso que acontece na passagem em que o narrador do Quarto Evangelho coloca frente a frente duas personagens de origem étnico-religiosa diferente para construir significados a respeito de Jesus e de sua missão. O bloco em que o diálogo aparece (Jo 4.5.26) pode ser dividido em três partes distintas respeitando-se os temas tratados nesses trechos. O primeiro trecho (v. 5-15) tem como tema principal a água como uma necessidade física-espiritual; o segundo trecho traz como tema principal as relações conjugais da mulher e é deflagrado e giram em torna da palavra "marido" (v. 16-19); e o último trecho gira em torno das controvérsias sobre qual seria o lugar apropriado de "adoração/culto" (v. 20-26). Temos assim as partes do diálogo:

[4.5-6] Chegou, pois, a uma cidade de Samaria, chamada Sicar, junto da herdade que Jacó dera a seu filho José; achava-se ali o poço de Jacó. Jesus, pois, cansado da viagem, sentou-se assim junto do poço; era cerca da hora sexta. Veio uma mulher de Samaria tirar água.
[4.7-8] Disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. Pois seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida.
[4.9] Disse-lhe então a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? (Porque os judeus não se comunicavam com os samaritanos).
[4.10] Respondeu-lhe Jesus: Se tivesse conhecido o dom de Deus e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe terias pedido e ele te haveria dado água viva.
[4.11-12] Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que tirá-la, e o poço é fundo; donde, pois, tens essa água viva? És tu, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, do qual também ele mesmo bebeu, e os filhos, e o seu gado?
[4.13-14] Replicou-lhe Jesus: Todo o que beber desta água tornará a ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna.
[4.15] Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água, para que não mais tenha sede, nem venha aqui tirá-la.

Em todo trecho a palavra água serve como um fio que vai costurando todo o diálogo, dando a ele beleza estética e sentidos discursivos. O termo água (gr. ὕδωρ, hýdōr) vai ganhando significado ideológico na medida em que vai sendo usado, principalmente nas construções discursivas de Jesus. Na primeira vez que o termo é usado temos uma espécie de introito para situar o leitor no universo da narrativa que se desenrolará em seguida. O narrador diz que Jesus cumprindo os propósitos de Deus sente a necessidade de passar pela região de Samaria. Lá chegando e por conta da caminhada, senta-se em um poço até que uma mulher da região chegue para buscar água. Apesar de não se saber ao certo a distância entre a cidade e o poço, não é possível deixar de notar a semelhança entre este encontro de Jesus e outros encontros entre homens e mulheres em narrativas do Antigo Testamento (cf. Gn 24, Rebeca; Gn 29, Raquel e Ex 2. 15-22, Zípora), o que Robert Alter (2007, p. 82) chamara de "cena padrão". Faz-se notar na mesma medida que todas as mulheres das passagens com as quais o texto dialoga são nomeadas, mas esta não. Perceba-se que para o narrador nomear o poço era mias importante que nomear a mulher, diferente do que acontece com as narrativas de encontros em poços do Antigo Testamento.

O diálogo a partir do momento inicial do encontro vai girar em torno da água, mas quando olhamos mais detidamente o trecho, tendemos a perceber que o principal motivo pelo qual Jesus pedira água à mulher era para iniciar com ela um diálogo. É notório esse uso quando percebemos que em dado momento da conversa o sentido da água como elemento físico (v. 13) é abandonado para ser revestido de outro sentido, o ideológico. Confirmando aquilo que disse Bakhtin e o Círculo (2006) que a realidade de toda palavra é absorvida por sua função de signo e que esta função é determinada por posições ideológicas daquele que profere essa palavra. A mulher não entendeu, mas Jesus empregou à palavra água um significado ideológico que ela não possuía até aquele momento, um manancial que tem o poder de dar a vida eterna (v. 14). A mulher, em seu limitado entendimento, achou que o que Jesus estava prometendo era alguma água sobrenatural que capacitasse a pessoa a nunca mais ter sede. Mas não era isso o que Jesus estava tentando dizer, antes o que ele tinha em mente era mostrar à mulher que o que ele daria a ela é um "dom de Deus" (v. 10). Neste primeiro círculo do diálogo aquele que é recebido como um "judeu" (v. 9) passa a ser tratado como "senhor" (v. 15). Que demonstra que a rudeza com que a mulher responde ao primeiro contato de Jesus é substituída por uma atitude de tolerância e respeito.

Aproveitando-se da receptividade que agora é manifestada pela mulher, Jesus faz com que o diálogo caminhe por um terreno mais pessoal e mais espinhoso. Sem nenhum aviso prévio, o diálogo muda de tema com um pedido de Jesus: "Vai, chamar teu marido" (v. 16). Ao fazer tal pedido à mulher, Jesus está transportando o diálogo da esfera coletiva para a esfera pessoal. Ao invés de deter-se em discussões de ordem étnicas, o diálogo é encaminhado para esferas mais pessoais diminuindo o campo de ação do discurso ao mesmo tempo em que alarga os seus potenciais resultados como veremos em seguida. A mulher responde prontamente: "Não tenho marido" (v.17). E diante desta resposta franca e contundente, Jesus passa a contar-lhe o que ela já sabia: que ela tivera cinco maridos e aquele a quem ela considerava seu marido não era dela (v. 18). Quando olhamos esta sequência do diálogo ela parece desconectada da primeira, pois não há nela nenhuma conexão aparente com o primeiro tema. Mas se considerarmos pelo viés discursivo e narrativo, veremos que existe aqui uma extensão do primeiro tema, isto é, enquanto que na primeira parte do diálogo a água funciona como um revelador da necessidade física de Jesus e da mulher, aqui começa-se a perceber que a necessidade menos importante da mulher – e de Jesus – era a necessidade física da água.

Como indicado por Mateos e Barreto (2011, p. 227), Jesus abre os olhos da mulher e a convida "a tomar consciência de que o seu culto está prostituído, isso explica o fato de ela passar em seguida ao tema dos templos". Ao fazer menção de um culto prostituído, os autores retomam a resposta da mulher ao afirmar que já tivera cinco maridos e o que agora está com ela não era seu marido. Frase que dialogará com toda a situação cúltica dos habitantes da região de Samaria. A mulher, apesar de viver em um relacionamento falso, – um casamento que não era seu – ao ser confrontada diz a verdade. O que demonstra a realidade da região em que ela habitava. Apesar de estar vivendo em um engano em relação à sua forma de adoração, está preocupada em conhecer e viver a verdade na verdade (v. 23).

Quando confrontada com o seu passado, a mulher reconhece em Jesus outra característica que até aquele momento era desconhecida para ela, a saber, ela reconhece na pessoa de Jesus um "profeta" (v. 19). Neste momento, ao reconhecer em Jesus um enviado de Deus, a própria mulher muda o foco do diálogo para o terreno religioso, neste momento não é mais Jesus que está inquirindo a mulher, mas a mulher passa a exercer o papel de inquiridora na dinâmica da luta na arena da palavra. Essa nova tomada de posição da mulher em relação a Jesus só foi possível depois que a imagem dele ganha novo significado para ela: Primeiro ele é um judeu, depois senhor e depois um profeta. Assim, da mesma forma em que a conversa vai se aprofundando, os temas vão se tornando cada vez mais profundos. As imagens de Jesus que brotam na mulher – como uma fonte que jorra para produzir outra realidade – vão sendo construídas no e pelo diálogo.

Chegamos, então, à terceira parte do diálogo. Impulsionada pela imagem que agora possuía a respeito de Jesus a mulher espera receber dele algum ensinamento em relação à sua religiosidade e à religiosidade de seu povo. Nessa expectativa, pergunta a Jesus: "Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar" (v. 20). A curiosidade da mulher aparece aqui travestida de afirmação que parece ser interrompida por Jesus antes de ser completada, e essa interrupção ou resposta abriria caminho para que Jesus exigisse da mulher uma crença transformadora (v. 21). Aqui se encontram duas realidades: uma necessidade antiga (água/ lugar de adoração) e uma nova realidade inaugurada pelo judeu-profeta, que pela palavra vence o antigo para revelar o novo (água viva/ adoração verdadeira). Não é, pois, sem sentido a afirmação de Bakhtin/Volochínov (2006, p. 98, 99): "Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más [...]. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico". Daí a ideia de que a palavra é uma pequena arena em que a luta pelo significado se trava entre dois oponentes em busca de significados para suas realidades e vivências.

Jesus, ao perceber a volição da mulher em receber suas boas palavras de verdade, dá-lhe duas revelações de si e de Deus. Na primeira, diz ele: "Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade" (v. 24). Apesar de sua preocupação em ouvir da boca de Jesus as verdades a respeito da sua realidade religiosa e da realidade religiosa de seu povo, a mulher lança-se para um futuro incerto na dificuldade de reconhecer em Jesus o portador das boas notícias de uma nova realidade espiritual (v.25). Ante essa dificuldade, Jesus parte para a segunda revelação, essa em relação a ele mesmo: "Eu o sou, eu que falo contigo" (v. 26). Como uma cena de um filme que chega ao momento máximo de revelação, a narrativa joanina vai crescendo paulatinamente até chegar ao momento máximo de emoção e genialidade.

Não é por acaso que se afirmou a capacidade do narrador do Quarto Evangelho em construir grandes narrativas. Diante da maior e mais importante revelação de Jesus em relação à sua identidade, o leitor/ouvinte da história fica à espera do seu desfecho para ver qual foi a reação da samaritana diante da revelação de que o messias que era esperado por seu povo estava à sua frente falando com ela. Mas o narrador, em sua capacidade de juntar perícia narrativa e criatividade, interrompe a cena justamente no auge da revelação esperada por seu público desde o começo da história. O texto continua dizendo: "E nisto vieram os seus discípulos [...]" (v. 27). E aqueles que até este momento acompanharam a história para ver o seu desfecho, ficam esperando em suspense o fim da narrativa e a história é transpassada pela fala dos discípulos.

Logo depois desta suspensão do diálogo que vem sendo conduzido pelo narrador, a história continua dizendo que: "Deixou, pois, a mulher o seu cântaro, e foi à cidade, e disse àqueles homens: Vinde, vede um homem que me disse tudo quanto tenho feito. Porventura não é este o Cristo?" (v. 29-29). Em seguida nos é dito que os habitantes de Samaria ao ouvirem o anúncio da mulher, saem para encontrarem com Jesus (v. 30). O trecho faz eco com os encontros posteriores apresentados pelo narrador – com exceção de Nicodemos – em que as pessoas que descobrem em Jesus uma identidade diferente daquela que antes tinham passam a falar dele para outros, foi o caso de André (Jo 1.41) e Felipe (Jo 1.45), por exemplo.

No caso de Nicodemos, como vimos, a dinâmica foi outra. Mesmo tendo um encontro com Jesus e recebendo dele ensinamentos novos, Nicodemos parece ter continuado na "noite", sem revelar a seus pares o que acontecera com ele. Mas uma coisa ambos – a mulher e Nicodemos – tinham em comum: A mulher não foi capaz de entender a afirmativa de Jesus porque só conhecia uma água e Nicodemos não foi capaz de entender a afirmativa de Jesus porque só conhecia um nascimento. Ambos perderam a luta na arena do discurso. Mas, diferente de Nicodemos, a mulher da região de Samaria para responder à revelação que tivera e reconhecendo que perdera a luta contra as palavras de um "homem" judeu que se revelou a ela como o "Messias", o Cristo, esperado por seu povo (v. 29). Talvez tenha sido esta a maior qualidade da mulher em relação a Nicodemos, reconhecer-se vencida e anunciar que perdera a luta, mas ganhara uma água que ela não sabia que existia, a água que salta para a vida (v. 14).

4.3.2 Uma mulher chamada de Samaritana

Olhar para uma narrativa em que o protagonista é Jesus e seu interlocutor é uma mulher, causou espanto não apenas naqueles dias, como demonstrado pela narrativa com respeito a reação dos discípulos (v. 27), mas também os comentaristas do Quarto Evangelho têm se perguntado sobre qual seria o motivo pelo qual o narrador resolveu contar esta história – uma vez que ela é única nos evangelhos canônicos (cf. KERMODE, 1997; FABRIS; MAGGIONI, 2006). Muitas dessas indagações podem ser respondidas quando olhamos a ação responsiva da mulher em relação à revelação que tivera. O texto diz que: "Deixou, pois, a mulher o seu cântaro, e foi à cidade, e disse àqueles homens: Vinde, vede um homem que me disse tudo quanto tenho feito. Porventura não é este o Cristo?" (v. 28-29). Uma cena significativa para o final de uma narrativa.

Esta é sem dúvida uma grande cena. Ao sair de sua aldeia para buscar água, a coisa mais importante para a mulher era encher o seu cântaro e matar a sua sede, mas ele não imaginava que encontraria em um poço que frequentado primordialmente por mulheres, um homem judeu. Ao ouvir suas colocações e indagações, a mulher ouve da boca daquele homem até então desconhecido que ele era o "Cristo", o Messias esperado por seu povo. O cântaro é abandonado, sua necessidade é abandonada para anunciar ao seu povo que a maior necessidade do samaritano havia sido suprida, o Messias estava entre eles. Aquilo que era uma necessidade primária passa a ser uma necessidade secundária quando comparada a alegria de encontrar aquele que era esperado por muito tempo. A cena do abandono do cântaro é não apenas um belo exemplo de que "a narrativa bíblica muitas vezes guarda certas informações até o momento da história em que elas são diretamente relevantes" (ALTER, 2007, p. 106), mas dialoga com a poesia do Antigo Testamento quando aponta o deixar de algum objeto como prova do amor e abnegação da noiva em relação ao seu noivo: "os filhos de minha mãe indignaram-se contra mim, puseram-me por guarda das vinhas; a minha vinha, porém, não guardei." (Ct 1.6). Apontando a Mulher Samaritana como uma noiva que, por amor, deixa suas necessidades mais importantes para buscar o noivo e introduzi-lo na casa de sua mãe (Ct 3.4), aquela de quem a mulher tinha nascido. Samaria figura como uma mão que recebe o noivo que estava longe e veio para sua casa. Selando a reconciliação há tanto esperada.

Neste ponto duas coisas precisam ser observadas. Em primeiro lugar, podemos observar que a recepção dos samaritanos ao relato de uma mulher foi muito melhor que a reação dos judeus; compare, por exemplo, a reação dos discípulos de Jesus a saber que ele tinha ressuscitado. Eles não acreditam no relato pelo simples fato de ter sido contado por mulheres (cf. Jo 20; Mc 16). Nesse sentido, o contraste entre a fé dos samaritanos, que creram prontamente no relato da mulher, e os discípulos de Jesus que não creram em sua ressurreição, por conta do instrumento que relatara o fato é gritante. Um segundo ponto que nos chama atenção é que a mulher pelo impacto do que tinha ouvido, "deixou [...] o seu cântaro" (v. 28). A Mulher Samaritana anda em sentido contrário àquilo que fez o chefe dos fariseus, Nicodemos, uma vez que este não teve coragem de deixar que suas necessidades fossem supridas por Jesus (mostrada na narrativa pelo binômio noite/luz), enquanto que a mulher chega ao diálogo com um cântaro e uma necessidade e sai de lá sem o cântaro e sem necessidade (na narrativa é mostrada pelo binômio "esta água"/ "água viva").

Como bem nos lembra Léon-Dufour (1996, p. 268), "todo diálogo requer certo grau de oposição semântica ou estilística [...] isto funciona tanto no nível dos interlocutores como no nível dos objetos em pauta". É exatamente isso que disse Alter (2007) e que foi demonstrado em nosso trabalho na teoria de Bakhtin (cf. 3.3.3), isto é, que o diálogo é uma arena em que ideologias diferentes são colocadas em luta para construção de novos significados.

No diálogo com o qual estamos trabalhando esta "arena" aparece de forma muito bem marcada pelo narrador quando mostra que a água que para a mulher era uma necessidade imediata, foi usada ideologicamente para mostrar a ele a sua verdadeira necessidade, uma "água viva" que tinha o poder não só de matar a sede, como faz o elemento água, mas dar àquela mulher um novo paradigma de vida. Entendemos que toda riqueza da construção dos sentidos na narrativa é alcançada por meio dessas oposições – as lutas. Como resultado do testemunho da Mulher Samaritana, diz o narrador que:

[4.39-43] E muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher, que testificava: Ele me disse tudo quanto tenho feito. Indo, pois, ter com ele os samaritanos, rogaram-lhe que ficasse com eles; e ficou ali dois dias. E muitos mais creram por causa da palavra dele; e diziam à mulher: Já não é pela tua palavra que nós cremos; pois agora nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo. Passados os dois dias partiu dali para a Galileia.

Este relato narrativo que fecha a história e emoldura definitivamente o diálogo, confirma aquilo que já fora apontado por Alter (2007, p. 115), a saber, que em muitos casos a narrativa que se segue a um diálogo bíblico serve para confirmar aquilo que foi mostrado no diálogo. Os samaritanos, ao darem ouvidos aos relatos da mulher vão ao encontro de Jesus e pedem a ele que fique em sua cidade durante aquele dia. Mas em resposta à crença daqueles homens Jesus fica com eles não só um dia, ficou com ele três dias. Como resposta às palavras e aos ensinamentos de Jesus, os samaritanos vão à mulher e dizem: "Já não é pela tua palavra que nós cremos; pois agora nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo" (v. 43).

Se acompanharmos Bakhtin/Volochínov (2006, p. 117) em seu entendimento de que a palavra é uma "espécie de ponte" entre aquele que fala e aquele que ouve, podemos dizer que, no caso do diálogo entre Jesus e a Mulher Samaritana, a palavra serviu de um instrumento de ligação não apenas entre pessoa e pessoa, mas entre povos diferentes que se ligaram por meio das palavras de um homem que era ele mesmo a Palavra (Jo 1.1). Quando se coloca em luta a palavra não apenas pessoas são ligadas, mas culturas, modos de pensar diferentes, visões de mundo. Em uma só palavra: mundos que estavam separados por centenas de anos, foram colocados lado a lada pela dinâmica do "diálogo contrastivo" (ALTER, 2007, p. 115). Neste sentido podemos dizer que um diálogo reverberou na história de um povo mudando sua visão a respeito de um homem, de suas próprias perspectivas e de seu passado.

Nesta parte final de nossa análise, é preciso ressaltar algo que fica muito claro quando olhamos o todo da narrativa do quarto evangelista: a mudança e o crescente no reconhecimento que se vai construindo a respeito da identidade de Jesus. Ao encontrar-se com Jesus na beira de um poço, o primeiro nome pelo qual ela o chama é "judeu" (v. 9); com o decorrer do diálogo sua percepção a respeito de Jesus muda e a Mulher enxerga nele alguém que merece respeito e o chama de "senhor" (v. 11); quando sua vida pessoal é desvelada diante de seus olhos, a mulher, assustada e temerosa, chama Jesus de "profeta" (v. 19) e, por fim, vencida em uma luta de contrastes em que suas palavras e concepções, sua vida e necessidades são colocados na arena, a mulher duvida de que ele não fosse o "Cristo" esperado (v. 29). Mas não é apenas a Mulher que é vencida pelas palavras de Jesus, diante da presença do Logos (Jo 1.1) os samaritanos cessam sua procura ao encontrar em Jesus, o homem com quem a mulher havia falado, o seu Cristo – por experiência e não mais por testemunho – "o Salvador do Mundo" (v. 43). Note-se como no diálogo a identidade de Jesus vai se modificando no encontro e oposição entre as palavras da Mulher e as palavras do Ungido.

Quando se fala de Jesus conversar com uma mulher samaritana, toda a cena ganha novo significado quando consideramos que essa mulher parece não ser bem quista pelas pessoas de sua aldeia por conta dos seus vários relacionamentos, some-se a isto o fato de que uma mulher não era ouvida com muita frequência por homens naquela cultura. Todos esses fatores fazem com que este encontro ganhe contornos de uma narrativa em que elementos culturais são usados pelo narrador para enriquecer sobremaneira sua trama, dando a ela dramaticidade, suspense e beleza. Elementos de grandes narrativas. Tem-se aí a engenhosidade de um narrador que lidar com elementos narrativos de maneira competente, mostrando a força persuasiva do diálogo, bem como a força da imagem de Jesus – o Logos de Deus.





















IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Quarto Evangelho foi um dos que receberam maior número de comentários na história; consequentemente, é um dos que tem maior número de abordagens, o que constitui um desafio tanto de leitura quanto de compreensão dessas muitas abordagens. Empreender uma leitura do Quarto Evangelho por outro viés que não aqueles usado pela maioria dos comentaristas, é uma tarefa empolgante e desafiadora. Os desafios encontrados foram os das mais variadas ordens, desde os já conhecidos de leituras que, de tão extensas, tendem a, no final, se mostrarem inadequados pelo caminho adotado, até as leituras que de tão ricas e multifacetadas, correm o risco de ocuparem um lugar exagerado na composição do trabalho.

Some-se a isto, a riqueza do corpus que tínhamos para trabalhar. O quarto Evangelhos é uma obra literária rica em nuances e facetas das mais variadas que o narrador/editor se utilizou para contar uma das mais belas histórias da humanidade – a história de Jesus. O caminho escolhido por esse narrador é diferente do caminho trilhado por todos os outros evangelistas, o que acrescenta a pesquisa ricos elementos para análise e que exige do pesquisador uma afiada navalha para fazer os cortes necessários para que seu trabalho não acabe querendo falar de tudo sem falar de nada.

Assim, caminhamos pelo evangelho joanino com o cuidado necessário de não correr quando a vontade era fazê-lo e não parar quando a empolgação parecia exigir de nós tal postura. Procuramos trabalhar com a seriedade necessária para respeitar os trabalhos empreendidos, ao mesmo tempo em que procuramos enxergar novos caminhos que se nos abria diante da maneira como o narrador nos contava sua história.

Mas delimitar era necessário. Então escolhemos como recorte do nosso trabalho os capítulos de 1 ao 4 do Quarto Evangelho e procuramos trabalhar com este recorte na maioria da nossa dissertação. A citação de outras passagens, seja dentro do evangelho de João seja de outras partes das Escrituras Sagradas, só foi usada quando eram necessárias para esclarecer pontos obscuros e que eram clareados pela citação desses textos. Com respeito ao uso do grego, procuramos utilizá-lo como ferramenta para expor termos que nos ajudassem na análise de determinadas passagens.

Nosso olhar sobre o Quarto Evangelho, deu-se pelo artifício do diálogo. Procuramos entender qual é a importância e utilidade do diálogo na construção dos sentidos e da identidade de Jesus. Para tanto, olhamos especificamente para dois trechos do evangelho em que ocupa lugar privilegiado na narrativa, os capítulos três e quatro, denominados de o diálogo de Jesus com Nicodemos e o diálogo entre Jesus e a Mulher Samaritana. Ambos os diálogos são ricos em elementos literários, desde os cenários nos quais são desenvolvidos, passando pelas peculiaridades dos personagens e chegando até o modo engenhoso com que o narrador elabora na narrativa essas histórias.

Ao lançar um olhar sobre o Quarto Evangelho, fizemos uso das ferramentas da teoria literária, mas especificamente a teoria que trata do diálogo como "arena" em que sentidos são construídos pela luta de vozes discordantes na enunciação e no signo. Neste sentido, fomos guiados por uma pergunta: O diálogo é usado no Quarto Evangelho como artifício literário para construção da identidade de Jesus, ou ele é usado despretensiosamente para reproduzir a fala dos personagens da narrativa?

A hipótese era que o narrador do Quarto Evangelho usava do artifício do diálogo para construir a identidade de Jesus. Corrobora essa tese o fato de que uma extensa bibliografia considera a Bíblia e os evangelhos como obra literária e que seus autores usavam de vários e sofisticados meios literários e retóricos na construção de suas narrativas e o fato de que o diálogo e um artifício largamente usado pelos autores bíblicos para mostrar fatos aos seus leitor/ouvinte. Some-se a isto a presença no Quarto Evangelho de dois diálogos que são exclusivos dele, mostrando que eles ali estão com o intuito não apenas artísticos, mas de mostrar uma nuance particular da identidade de Jesus, bem como deixar transparecer alguns nuances do ministério de Jesus, isto é, sua conversa noturna com um fariseu e sua visita e estadia por três dias na terra dos samaritanos.

Assim, ao olharmos essas evidências, parece-nos acertado colocarmos algumas observações sobre o diálogo no Quarto Evangelho. Tais observações são aqui colocadas não de maneira conclusiva, mas como caminhos que precisarão de maiores e mais acuradas pesquisas. Temos, portanto que:


O narrador do Quarto Evangelho constrói suas histórias de forma engenhosa para produzir os efeitos de sentidos por ele pretendidos;

Essas histórias são colocadas em seu evangelho, muitas vezes, com elementos exclusivos, ou as próprias histórias são exclusivas do Quarto Evangelho. Apesar de não poder determinar o quanto, parece que o narrador do Quarto Evangelho era consciente da existência de outras histórias a respeito de Jesus;

O diálogo é usado largamente no Quarto Evangelho, sob formas e situações diferentes: ora ele é usado como elemento principal das narrativas, ora ele é usado com um elemento acessório, com o intuito de revelar características das personagens, especialmente em relação a Jesus.


No nosso modo de entender, estudar o Quarto Evangelho pelo viés literário é um terreno vasto e que precisa ser largamente explorado. Apesar de haver vários trabalhos e comentários que se aproximam do evangelho de João para comentá-lo com Escritura Sagrada, a maioria deles não o considera como uma obra de cunho literário e, consequentemente, não consideram toda a riqueza literária deste evangelho. Abre-se, pois, lacunas e possibilidades que precisam ser fechadas e trabalhadas com o tempo.













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