Lolitas e outras ninfetas. Confrontos estéticos e (i)morais em Balthus e Stanley Kubrick

Share Embed


Descrição do Produto

AVANCA | CINEMA 2016

Lolitas e outras ninfetas Confrontos estéticos e (i)morais em Balthus e Stanley Kubrick Bruno Marques Instituto de História de Arte/FCSH/NOVA, Portugal Suzana Ramos Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, Portugal

Abstract This paper focuses on the always complex conflicts between artistic creation and the standards that define a work of art as immoral or “morally acceptable”. Establishing a comparison between Vladimir Nabokov’s Lolita (1952), the eponymous comedydrama directed by Stanley Kubrick (1962), as well as paintings – and, more recently, photographs – by Balthus, we explore the relationship between films and painting, reflecting on the ethical, aesthetic and political implications resulting from a dilemma that puts art on the one side and morality on the other. If indeed there is a right under threat – the universal right to artistic freedom of expression – we also have, in turn, another safeguarded right – the right of the child not to have his or her image sexually exploited by a deviant artistic treatment. The source of this problem lies, as was the case with Nabokov’s novel, in a recent report highlighting the recurrence and on-going relevance of the theme: in 2014, in response to public outcry, the Folkwang Museum in Essen, Germany, cancelled an exhibition of Polaroid photographs taken by Balthus. A December article in the major newspaper Die Zeit called the images, depicting a model named Anna from ages 8 to 16, “documents of paedophile greed”. These images, some of which were used as preparatory work for Balthus’s paintings, are always suggestive and considered by many of great eroticism. Lolitas representing enigmatic places of evasion in painting, photography and cinema ultimately allow us to question freedoms and the limits of transgressive beauty.

Keywords: Stanley Kubrick, Balthus, Paedophilia, Censorship, Fredom of expression.

Introdução: a pedofilia como um dos fantasmas da arte moderna e contemporânea Em 2015 um tribunal britânico ordenou a destruição de obras de arte pertencentes a Graham Ovenden, pintor, escritor e fotógrafo acusado de pornografia e condenado por molestação de menores, devido ao facto de estas serem representadas com indecência (cf. Saner 2015). A maior parte das obras era da autoria do próprio Ovenden, mas o espólio visado incluía também fotografias de raparigas tiradas pelo escritor e artista francês Pierre Louÿs nas décadas de 60 e 70 do século XIX e trabalhos do artista alemão Wilhelm von Plüschow. A decisão da juíza foi imediatamente classificada por um escritor como «an act of medievalism to match any of the statuesmashing antics of the Islamic State» (O’Neill 2015). 226

O que incomodou a juíza foi o facto de considerar algumas dessas imagens «sexualmente provocadoras»: «Some, whether overtly or not, evoke poses by adult women that are intended to be sexually alluring.» – referiu Roscoe (Roscoe cit. p. Saner 2015). Discordando com o argumento proferido por Ovenden de que as suas imagens eram «arte reconhecida» e que, desse modo, o seu «mérito artístico» lhes confere uma espécie de imunidade perante o crime de «indecência», ela não mostrou, ainda assim, qualquer tipo de condescendência ao declarar: «I have very little doubt that sexual gratification is, at the very least, part of Mr Ovenden’s reasons for making these images.»1 (cit. p. Adam 2015). O conhecido crítico de arte do The Guardian, Adrian Searle, reagiu a esta decisão: «I’m shocked that a judge would feel they had the right to destroy these things»; esta reação, porém, não se prende com o facto de o crítico ser um admirador de Ovenden, que, aliás, considera um «rubbish artista», mas por julgar haver fundamento para contestar esta decisão a fim de se evitar a destruição da obra fotográfica de Louÿs e de outros. Outra voz que contestou a decisão do tribunal é Jonathan Jones. Será um erro considerar Ovenden um «grande» artista, refere o crítico de arte, e alguns dos trabalhos de Ovende atualmente parecem ser «extremamente problemáticos», mas na sua opinião tal não justifica a sua destruição. Diabolizar a arte, afirma Jones, não é uma resposta racional: «De forma alguma devemos punir a arte pelos crimes do artista. Uma sociedade civilizada preserva a arte e tenta aprender a partir dela» (Jones cit. p. Saner 2015). Nos últimos anos várias obras de arte modernas e contemporâneas que expõem nudez de crianças têm sido perseguidas e censuradas, até mesmo da autoria de mães artistas que se apresentam simplesmente com os seus filhos, ainda que sem indícios de qualquer tipo de abuso sexual ou de as mesmas terem intenções suspeitas (cf. Milliard 2014). Na década de 2000, reputados autores como Tierney Gearon, Nan Goldin ou Richard Prince viram trabalhos seus contestados, na mira da polícia ou até mesmo censurados, devido ao que alguns comentadores consideram ser um estado de «pânico» geral relacionado com a ameaça da pedofilia (Saner 2015). Ora, este ensaio debruça-se sobre os conflitos sempre complexos entre a criação artística e os padrões que definem a obra de arte como (i)moral ou «moralmente aceitável». Estabelecendo uma análise comparativa entre o romance de Lolita, de Nabokov, o filme homónimo de Stanley Kubrick bem como as pinturas – e, mais recentemente, as fotografias – da

Capítulo I – Cinema – Arte

autoria de Balthus, exploramos a relação entre cinema e pintura, ponderando as implicações éticas, estéticas e políticas decorrentes de um dilema que põe de um lado a arte e do outro a moralidade. Se efetivamente o direito da liberdade de expressão em contexto artístico se pode ver ameaçado, temos também em contraposição outro direito salvaguardado: aquele que impede que a imagem de uma criança ou de uma jovem seja explorada sexualmente ou sujeita a um tratamento artístico desviante, na sua dimensão passional de erotismo e sensualidade. Na origem deste problema encontra-se, tal como para o caso do romance de Nabokov, uma notícia recente que remete para a atualidade do tema: em 2014 foi cancelada uma exposição no Museu Folkwang, em Essen, com cerca de duas mil polaroids tiradas por Balthus a uma rapariga entre os oito e os dezasseis anos; as imagens, usadas como trabalhos preparatórios para as suas pinturas, foram consideradas de grande erotismo artístico mas também uma forma de incitamento à pedofilia (cf. Rauterberg 2013; Heddaya 2014; Altabe 2014). Lolitas que representam lugares enigmáticos de evasão na pintura, na fotografia e no cinema permitem assim questionar, em última instância, as liberdades e limites da beleza transgressora.

Nabokov e Kubrick: escrever Lolita no grande ecrã Vladimir Nabokov começou a escrita de Lolita em 1949. Quando terminou o romance em finais de 1953, deparou-se com dificuldades sérias para conseguir publicá-lo. Os editores ficaram nervosos com a ideia de enviarem para as bancas e livrarias um livro supostamente narrado por um pedófilo e por arrasto quatro editoras americanas, que inicialmente demonstraram interesse, recusaram o romance, acabando este por ser publicado primeiramente em Paris pela Olympia Press (1955), editora que tinha no seu catálogo contos eróticos a par de literatura de outros géneros. Considerado «pura pornografia desenfreada» pelo editor do londrino Sunday Express (Gordon cit. p. Boy 1991, 295), os exemplares foram proibidos de entrar no Reino Unido tendo o romance entretanto sido igualmente banido em França em finais de 1956 por um período de dois anos. As controvérsias geradas em torno do livro aumentaram apenas o número dos seus leitores e as vendas floresceram. Lolita rapidamente alcançou o estatuto de clássico, sendo atualmente considerado um dos grandes marcos da literatura americana do século XX. Na Lolita de Nabokov, Humbert Humbert perdese irremediavelmente de amores por Dolores Haze, Lolita, a filha de 12 anos da sua nova inquilina, a viúva Mrs. Haze, que se rende rapidamente aos encantos do distinto professor de literatura. Humbert Humbert não quer de modo algum deixar que o tempo passe sem poder satisfazer os seus desejos insanos, desejos esses, afirma o próprio numa suprema argumentação de vaidade, que só podem existir num ser de exceção, num «artista», num «louco», num homem

«melancólico» e com o dom de reconhecer uma ninfeta entre as suas semelhantes. Para poder estar próximo de Lolita, Humbert Humbert decide então casar com a mãe, conseguindo assim concretizar o seu sonho após a morte acidental, mas sem dúvida providencial, da mulher. Depois de ficar viúvo, e sob a proteção da máscara do padrasto zeloso, empreende então com Lolita uma longa viagem através dos Estados Unidos durante a qual se consuma a ligação entre ambos. Certo dia, porém, acontece aquilo que Humbert Humbert mais temia: Lolita desaparece subitamente levada por um estranho indivíduo de meia-idade, o camaleónico Clare Quilty, dramaturgo de sucesso, que não é mais do que um duplo do próprio Humbert Humbert. Durante meses e meses o suposto «pai» procura Lolita em vão, mas só volta a encontra-la passado um ano, quando a jovem lhe escreve a pedir dinheiro emprestado e a comunicar-lhe que entretanto se casou e espera um filho. Humbert Humbert não hesita e o reencontro entre ambos é talvez uma das passagens mais comoventes tanto do romance – o apoteótico capítulo 29 da II parte – como do filme e constitui um momento particularmente pródigo no que diz respeito à capacidade de o narrador levar os leitores de Nabokov e os espectadores de Kubrick a um estado profundo de cumplicidade e compaixão. No filme Lolita (1962), a adaptação tragicómica que Stanley Kubrick (1928-1999) fez da obraprima de Nabokov, o realizador filma sobretudo a matéria química de que o grande romance é feito: a mente de Humbert Humbert, o anti-herói que redige a sua narrativa autobiográfica feita de memória e perversidade. Obviamente não é o tema da sentimentalidade amorosa que atraiu Kubrick para a adaptação do romance, mas sim o facto de Nabokov, exímio jogador de xadrez e conceituado lepidóptero, desenvolver, como refere Enrico Ghezzi, aquele que é por excelência o grande tema kubrickiano: a obsessão (Ghezzi 2003, 103). Dada a natureza do mesmo, a especificidade da imagem fílmica faz de imediato do projeto de adaptação do romance de Nabokov ao cinema algo de eminentemente arriscado e audacioso. É o próprio escritor que, numa missiva de 1958, escrevia que vetaria de imediato qualquer futura adaptação cinematográfica caso se usasse para o efeito uma menina para interpretar Lolita: «I would veto the use of a real child. Let them find a dwarfess» (Nabokov 1989, 261). Compreensivelmente, Nabokov receava a capacidade erótica perturbadora da imagem fílmica; temia o seu realismo na erotização de um menor. Por isso, um dos incómodos implicados nas supracitadas linhas do escritor era a forma como um adulto reagiria sexualmente a um menor erotizado no grande ecrã. Brian Walter formaliza a questão da seguinte maneira: What impulses and appetites does the film image feed that a character comprised of a series of printed words does not or cannot? Does the illusion of the film image so helplessly pander to the viewer that a child who played Lolita on screen would inevitably become a victim in her real life off it?” (Walter 2014, 51).

227

AVANCA | CINEMA 2016

O certo é que o escritor acabará ele próprio por escrever o argumento para o filme que Kubrick realizaria quatro anos depois. A atriz que interpretou Lolita, Sue Lyon, tinha 14 anos durante a rodagem; a adaptação do mais famoso e simultaneamente controverso romance de Nobokov o cinema resultava assim, logo à partida, numa ideia ousada e até um pouco sensacionalista, ao ponto de o próprio cineasta, no trailer da película, brincar repetidamente com a frase «How did they ever make a film from Lolita?» («Como é que puderam fazer um filme a partir de Lolita?»). Mas devido às restrições da época por parte da MPAA Motion Picture Association of America, o filme atenuou os aspetos mais provocadores do romance, deixandoos não raras vezes para a imaginação da audiência. Na época em que o filme foi lançado, o sistema de classificações não estava em vigor, sendo o Código Hays, datado dos anos 30, o texto que regulou a produção do filme. A censura da época inibiu então de forma muito considerável a realização de Kubrick, como mais tarde viria a confessar. Tais constrangimentos levam o realizador a sugerir a natureza do relacionamento entre Humbert e Lolita de forma indireta, através do duplo sentido e de pistas visuais. Por exemplo, o belíssimo genérico do filme faz um contraponto à altura das primeiras linhas de abertura, anunciando o erotismo e a dimensão obsessiva do romance: a mão de Humbert Humbert toca o pé de Lolita e enverniza-lhe as unhas com uma paciência e uma dedicação evidentes. Por outro lado, o lirismo musical de Nelson Riddle reproduz o fascínio linguístico deste começo e à minúcia da última pincelada de verniz corresponde precisamente a última nota musical, a partir da qual se vai anunciar uma história de profunda melancolia, paixão, transgressão mas também uma narrativa repleta de sentido de humor e de tragédia. Atendendo aos receios expressos em 1958 por Nabokov a respeito de uma futura adaptação cinematográfica de Lolita, no que concerne aos problemas de natureza ética implicados no uso de uma rapariga real para dramatizar situações de recorte erótico, importa analisar aqui algumas cenas do filme de Kubrick.

Por um lado, torna-se evidente o poder do impacto do corpo esbelto semidespido, adotando a pose tradicional da figura feminina erotizada que a pintura ocidental canonizou. Ao mesmo tempo, aquilo que o incomoda é o olhar seguro, grave, autoconfiante, quase insinuante que lhe é diretamente dirigido pela jovem Dolores Haze, enquanto se procura dominar (disfarçando o seu estado de encantamento) ao longo das palavras que troca com a mãe, a superficial e histriónica Charlotte Haze, magnificamente interpretada por Shelley Winters.

Fig. 2 - Lolita, interpretada por Dominique Swain, no filme Lolita de Adrian Lyne (1997), contemplada pela primeira vez por Humbert Humbert.

No filme de Adrian Lyne (1997), o primeiro encontro entre Humbert (Jeremy Irons) e Lolita (Dominique Swain) é deveras mais ousado e enfático. Ao entrar no jardim da casa ele fica siderado pela imagem viva de uma jovem rapariga deitada de barriga para baixo. Com a sua roupa colada ao corpo ressalta imediatamente o jogo sugestivo de transparências ao mesmo tempo que vinca as modulações entre costas, nádegas e coxas. Lolita lê uma revista de cinema, enquanto o seu copo é pulverizado pela água lançada por um regador. As conotações de índole sexual aqui são evidentes. A cena de Lyne ainda é mais erótica apesar da inocência da personagem. Subitamente Lolita levanta os olhos e dirige um sorriso a Humbert Humbert como faz uma menina incauta e desprotegida, liberta do sentido de pudor e das convenções sociais, ao passo que em Kubrick, a sua congénere dirige ao futuro padrasto um olhar tipificado da mulher fatal: dona e senhora da situação, compõe um semblante quase sobranceiro e plenamente consciente do seu poder de sedução.

Fig. 1 - Lolita, interpretada por Sue Lyon, no filme Lolita, de Kubrick (1962), fita direta e continuamente Humbert Humbert.

Na película de Kubrick, a primeira vez que Humbert (James Mason) vê Lolita (Sue Lyon) fica absorto e visivelmente perturbado; a jovem está deitada com um fato de banho vestido, sobre uma toalha no seu jardim. 228

Fig. 3 - Lolita, interpretada por Sue Lyon, no filme Lolita, de Kubrick (1962), no momento em que pela primeira troca olhares com Humbert Humbert.

Capítulo I – Cinema – Arte

Após um rápido olhar para o visitante, a Lolita do filme de 1997 continua a folhear a revista, enquanto Humbert Humbert exerce o seu estatuto de voyeur. Em Kubrick existe desde início uma circulação pública de olhares, uma troca mútua que obriga o professor aspirante a inquilino a manter com dificuldade a compostura; enquanto na versão de Lyne, com a mãe (agora interpretada por Melanie Griffith) convenientemente fora do enquadramento e Lolita com os olhos postos na revista, Humbert Humbert tem espaço de manobra para se exaltar, aliviando um pouco as fivelas que constrangem a manifestação do seu fascínio, ao ponto de murmurar de si para consigo mesmo «So beautiful»! – como se fosse o primeiro espectador de uma obra-prima nunca vista. Na versão de Lyne, Lolita é representada na sua condição de desprotegida, sem consciência do seu poder; aqui o realizador redu-la a uma mera imagem ou exposição sensual do corpo. Enquanto puro espetáculo visual consubstancia uma imagem mais literal de uma sexualidade palpável. Kubrick, por seu turno, parece assumir a autoconsciência da sexualidade de Lolita deste o primeiro momento, garantindo a sua «autoridade» e «controlo» (Waltter 2014, 65) para com a perspetiva do adulto, o que nos leva a pensar que Kubrick a co-responsabiliza, desde o primeiro segundo, pela futura concretização da relação ilícita de ambos.

Fig. 4 - Lolita, interpretada por Sue Lyon, no filme Lolita, de Kubrick (1962), no momento em que brinca com o hula hoop diante de Humbert Humbert.

Noutra cena, uma das poucas em que, no filme de Kubrick, existe alguma conotação erótica, é aquela em que a jovem Dolores testa habilidades físicas, conquistando o controlo sobre o seu próprio corpo, contando as vezes em que consegue fazer o «hoop alof» (o hula hoop) dar a volta sem cair. A conjugação do ritmo com a ondulação das ancas – tradicionalmente um lugar de atenção sexual – prendem claramente a atenção de Humbert Humbert tornando aqui, em contraste com a primeira cena de troca mútua de olhares, a inocência num espetáculo de inocência sexual (Walter 2014, 59). Poderemos dizer a propósito que tal consubstancia dramaticamente a cena do adulto seduzido pela imagem da criança. Tornada um objeto pelo olhar de Humbert Humbert, o misto de inocência e curiosidade sexual que ela personifica vai ao encontro das anseios do predador sexual (Walter 2014, 61).

Não obstante as duas cenas em questão – a do primeiro e impactante vislumbre de Lolita em fato de banho e a brincadeira aparentemente inocente com o hula hoop –, ao contrário da versão de Lyne (1997), não podemos afirmar que a força e audácia do filme de Kubrick se deva de todo à explicitação erótica das imagens comummente atribuída ao cinema, mas antes e à circunstância de assumirmos, através do dispositivo e da linguagem cinematográfica, a perspetiva (os «olhos») de alguém que se apaixona e mantém uma relação amorosa e sexual com a sua enteada de 12 anos. Influenciados pelas palavras de Ewa Mazierska a respeito do desafio de adaptar Lolita ao grande ecrã, podemos ter duas perspetivas opostas: (1) o realizador poderia tomar a «visão dominante» de Humbert Humbert e representá-lo enquanto «amante romântico»2, e até mesmo como «uma vítima passiva do poder sexual da ninfeta»; ou, por outro lado, Humbert Humbert poderia ser também representado como um «canalha neurótico», que não só «viola, manipula e escraviza uma criança» como também, até quase ao final da sua vida, «esconde os seus atos» por detrás de uma «barreira de linguagem ornamental» (Mazierska 2011, 18). Porém, a autora rapidamente propõe uma terceira via de abordagem que outorga a concomitância entre a figura do romântico soberbo e a do criminoso sórdido. Por que razão, enquanto leitores/espectadores, ficamos divididos entre o encantamento e o juízo, entre o entretenimento poético/estético e a repulsa moral? Na procura das razões que lhe possam dar sentido e justificação, irrompe uma cascata de opções: 1. Humbert é tão sedutor como seduzido e no início da narrativa há uma relação erótica mútua e voluntária. 2. O amor de Humbert Humbert é incondicional e ninguém fica indiferente ao facto de o professor constatar que sempre esteve e sempre estará apaixonado pela sua «Vénus ruiva de Botticelli», que acaba grávida, de óculos e com os seus encantos de adolescência degradados. 3. Humbert Humbert vinga, no final, Lolita. Tanto Nabokov como Kubrick provocam no leitor/ espectador uma certa tendência para tomar o fim da narrativa como o seu todo, fazendo da nossa memória uma memória seletiva e de uma ligeireza trágica. É curioso que nos possamos esquecer de que o próprio Humbert Humbert se surpreende a si mesmo: ao confrontar-se com aquela que é agora Mrs. Richard F. Schiller, nome de casada de Lolita, confronta-se consigo e com o facto de a amar, apesar da sua nova identidade e não obstante o facto de a jovem lhe contar a verdadeira história do seu desaparecimento com o rival que a abandona depois de a ter usado. Feita a confissão, Humbert Humbert decide ir em busca de Clare Quilty para lhe pôr fim à vida. Ao matar o seu duplo não só faz justiça pelas suas próprias mãos, como também vinga o seu grande amor. Cumprida a missão, é preso e é na prisão que escreve a sua história. A conjugação do assassínio do seu «duplo» e o seu fim na prisão 229

AVANCA | CINEMA 2016

pode ser vista como uma redenção, assim como a sua confissão em forma de romance pode ser tida igualmente como exercício de expiação. 4. Humbert Humbert sente-se culpado, demonstra consciência e moralidade, para lá da obsessão que o subjuga. A duplicidade deste narrador, aquilo que o torna verdadeiramente interessante pelo seu antagonismo interior, reside no modo como manipula e conduz as regras do seu jogo narrativo, ou seja, é uma duplicidade que assenta na forma como o seu Eu se projeta na ficção, no modo como lida habilmente com o teatro e o seu duplo, com a encenação da sua própria crueldade, cuja representação se faz entre a consciência da sua obsessão extrema e os sentimentos de culpa que o atormentam. 5. Humbert Humbert é um professor de literatura erudito, inteligente, culto e sofisticado e sobretudo um exímio narrador, hábil no uso da palavra, que nos seduz pela via da beleza estética. Verdadeiramente importante não é, portanto, a ação propriamente dita, mas antes aquilo que Humbert Humbert pensa acerca dos factos, acerca do conjunto de todas as ações, ou seja, verdadeiramente importante não é aquilo que acontece, mas sim a versão de Humbert Humbert sobre aquilo que acontece. No caso de Lolita, a realidade do narrador é, tal como Kubrick a expõe, a realidade da sua própria mundividência, a qual constitui uma identidade fechada sobre si mesma, um solipsismo levado ao extremo. 6. Ao encarnarmos a perspetiva do personagem, identificamo-nos irremediavelmente com Humbert Humbert, com o inebriante e sofisticado exercício de admiração apaixonada. Desse modo, no nosso íntimo não podemos deixar de ser também «cúmplices». Ao colocar a cena do assassínio de Quilty logo no início do filme, Kubrick está não só a definir o tema da sua obra – a obsessão, a obsessão que conduz ao crime – como também a envolver o espectador numa atmosfera de suspense, que se deslinda apenas no final. Depois disto, todo o desenrolar da película não faz senão mostrar-nos um outro crime em contraponto que se sobrepõe a este, numa extrema cumplicidade com o espírito nabokoviano: este crime advém não propriamente da relação de Humbert Humbert com Lolita, mas sim da nossa relação, enquanto leitores e espectadores, com a relação de ambos. É precisamente sob este aspeto que reside, como veremos posteriormente, a dimensão moral de Lolita. Longe de querermos promover heróis, anti-heróis ou condenar vilãos, talvez o exercício mais pertinente no que diz respeito à interpretação de Lolita consista na tentativa de compreender em que medida o livro e o filme possuem tanto uma dimensão moral como estética. Independentemente de nos deixarmos ficar confortavelmente sentados na qualidade de leitores, espectadores ou membros do júri empenhados no julgamento da trágica história de Humbert Humbert, o mais importante talvez seja recebermos a refinada piscadela de olho de um Nabokov lepidóptero e percebermos que é o próprio autor quem, afinal, nos julga a nós, é Nabokov quem apanha não apenas 230

Humbert Humbert mas também os seus leitores, tão volúveis e inconstantes como as borboletas que fazem parte do simbólico passatempo do escritor. Se, como afirma Deleuze, o cinema de Kubrick é um «cinema do cérebro», também o romance de Nabokov é, em contraponto, uma ficção subterrânea sobre a mente, cujas fundações assentam, tal como o filme, na vida de Humbert Humbert, nesse painel central feito de memória, obsessão e perversidade. Nabokov diria que o tipo de romance perfeito para ser adaptado ao cinema não é o romance de ação, mas sim o romance que se concentra na vida interior das personagens (Beja, 1979:246). Lolita não poderia ir mais ao encontro desta perspetiva. É precisamente este grande plano de interioridade, este enquadramento a partir do qual se constrói não só a identidade de Humbert Humbert mas também a identidade entre cérebro e mundo, que Kubrick esteve particularmente interessado em filmar: nada é mais verdadeiro do que aquilo que se passa dentro da nossa cabeça, independentemente dos seus referentes reais. Deste modo, fará sentido notar que Nabokov cria convictamente algumas cenas com uma forte carga sexual, mas nunca o faz de um modo eroticamente explícito. O objetivo último e maior da sua obra não vai ao encontro do universo da fantasia erótica, da excitação sexual, tratando-se, antes, justamente do exercício de encarnarmos a mente de alguém que vive um dilema tão monstruoso quanto refinado, situado entre o amor e a moralidade, entre a obsessão e a lei. Seguindo esta linha de pensamento, é legítimo perguntarmos: como é que o leitor/espectador reage a esta narrativa? Quais são as suas respostas físicas, emocionais, estéticas e morais? Como é que o leitor se revê a conceber uma relação erótica entre um adulto e uma rapariga jovem de doze ou catorze anos? Como é que o leitor se sente ao fruir o desenrolar da narrativa e das suas imagens? E o que poderá pensar sobre a forma como se sente ao observá-las? A ficção de Nabokov desloca o ónus da moralidade para o leitor, deixando assim que seja ele próprio a tomar a sua posição. Desse modo, o fascínio e a crueldade do espectador convertem-se em alvo de autoescrutínio.

Balthus censurado! Em nome da «beleza transgressora» A situação que Nobokov enfrentou depois da publicação de Lolita é semelhante àquela que o pintor Balthus viveu em 1934, por ocasião da sua primeira exposição individual em Paris. Balthus teve dificuldades em ver as suas pinturas exibidas no início da carreia. Representando jovens raparigas pubescentes em poses eróticas e voyeurísticas, as suas telas foram vistas por muitos como pornográficas. Esta predileção de Balthus por jovens meninas deu aso a inúmeras correlações feitas entre o seu trabalho e a personagem de Humbert Humbert, com a ressalva de que o artista francês de ascendência polaca parecia admirar múltiplas raparigas enquanto Humbert Humbert mantinha uma obsessão cega por Lolita, apenas Lolita.

Capítulo I – Cinema – Arte

Fig. 5 - Balthus e Lolita parecem estabelecer uma correlação natural. Esta edição inglesa de 1995 é apenas uma entre outras publicações que evocam a obra do pintor.

Balthus dedicou toda a sua carreira a representar a sexualidade feminina pubescente e, à luz de um contexto marcado por inúmeros escândalos sexuais com menores, alguns chegaram mesmo a afirmar de forma simplista e sem fundamento seguro que «não há dúvidas de que era um pedófilo» (Viveros-Faune 2013), razão pela qual o consideram um «precursor» da personagem criada por Nabokov e até da «vida real de Polanski» (Viveros-Faune 2013).

Fig. 6 - Uma polaroid de Anna Wahli, tirada por Balthus.

Em 2014, o Museu Folkwang, em Essen, Alemanha, refreou os seus planos de exibir 2000 polaroids que Balthus tirou à sua modelo, Anna, entre os seus oito e dezasseis anos de idade, com a finalidade de servirem de estudos preparatórios para as suas pinturas. Num comunicado sobre o cancelamento, o museu justificava a decisão em razão da mostra poder «acarretar consequências legais indesejáveis» (cf. Altabe 2014). Porém, a crítica do The Examiner, Joan Altabe, nessa ocasião lembrava que quando, há alguns anos, os protestantes contra a pornografia infantil ameaçaram rasgar livros de arte que mostram crianças nuas nas livrarias Barnes & Noble, Mary Ellen Keating, um dos representantes daquela cadeia de lojas, não recuou: «Não acreditamos que a liberdade de escolha inclua a liberdade de impedir os outros de lerem o que escolhem para ler» (Keating cit. p. Altabe 2014). Joan Altabe dá-nos alguns exemplos paradigmáticos de pinturas históricas exibidas em alguns dos mais reputados museus do mundo, onde figuras despidas de crianças e adolescentes (Vénus, Cupidos entre outros seres mitológicos) aparecem representadas em cenas de forte recorte erótico e até incestuoso, da autoria de reputadíssimos pintores como Agnolo Bronzino ou Antonio Correggio (Altabe 2014). A crítica do The Examiner considera que alguns trabalhos contemporâneos recentemente confiscados pelas autoridades por ordem judicial parecem «virginais» (o exemplo dado é o do fotógrafo Jock Sturges) quando comparadas com algumas pinturas dos séculos XVI expostas na Galeria Borghese, em Roma, ou na National Gallery de Londres. Mas não é de todo para ela o caso de Balthus, cuja pintura A Lição de Guitarra (1937) – interpretada por si como uma escandalosa cena de abuso sexual entre uma aluna e uma professora – recusa reproduzir no seu artigo em razão de a obra sugerir a perspetiva de um «dirty old man».

Fig. 7 - Balthus, A Lição de Guitarra (1937). 231

AVANCA | CINEMA 2016

Numa anterior exposição retrospetiva – Balthus: Cats and Girls - Paintings and Provocations – inaugurada em 2013 no Metropolitan Museum of Art, um crítico considerava-a a mostra mais «perversa» patente em Nova Iorque (Viveros-Faune 2013), devido ao facto de os quadros ali exibidos retratarem meninas como «sex kittens» modernas sob o disfarce das Vénus dos antigos mestres (Viveros-Faune 2013). Na perspetiva de Viveros-Faune, a exposição despendia uma enorme quantidade de energia para interpretar a fantasia afeta à metáfora felina (a palavra francesa «chat», tal como acontece em inglês, também se refere a vagina). As pinturas de raparigas adolescentes de Balthus ali expostas foram então descritas no New York Times como «tão sedutoras quanto inquietantes» (Smith 2013). A mostra aconteceu num momento cultural muito sensível, sintomático da exponencial sexualização dos jovens (que a cultura pop e os mass media promovem) e a enraivecida e horrorizada reação ante a proliferação recente de casos ligados ao abuso sexual de menores. A crítica do New York Times, diante das suas telas, confessava então que Balthus a colocava entre dois estados de espírito, atração e repusa, e ainda em busca de um terceiro. (Smith 2013).

Fig. 8 - Balthus, Thésèse dreaming (1938).

Uma das pinturas mais citadas pelos seus atuais comentadores a fim de atestar o putativo impulso pedófilo de Balthus é a sua famosa Thérèse Dreaming (1938). Aqui a sua primeira modelo menor – uma menina com então 12 anos de idade – é mostrada reclinada, assumindo uma pose que é um misto de inocência distraída e de total exibicionismo. Aos seus pés, um gato malhado e gordo bebe leite de uma tigela (para alguns uma potencial metáfora sexual). Se deslocarmos o olhar para cima seguindo a diagonal desenhada pelas pernas traseiras do animal, encontra-se o que um crítico 232

considera ser a «glória do pintor»: um enquadramento da sua roupa interior, «digno da fantasia de cheerleader mais febril» (Viveros-Faune 2013). Apesar de Balthus ter recusado qualquer conotação de pedofilia, na opinião de Farago algumas das suas telas não deixam de ser «imagens eróticas de crianças» (Farago 2013). Balthus atribuia um valor de santidade aos seus «anjos» – era assim que ele chamava os seus modelos. Porém, diante das suas pinturas, Peter Schjeldahl confessa não conseguir parar de pensar numa frase de Oscar Wilde: «Um homem mau é o tipo de homem que admira a inocência» (cit. p. Schjeldahl 2013).

Fig. 9 - Lolita, interpretada por Dominique Swain, no filme de Adrian Lyne (1997), vista pelos olhos de Humbert Humbert.

Balthus, a alcunha utilizada pelo conde Balthasar Klossowski de Rola desde os treze anos, isolada funciona como uma majestade clássica que pode parecer bastante incongruente numa época febrilmente não aristocrática. Nunca se soube muito acerca de Balthus, devido ao facto de ter levado uma vida mais ao menos retirada. Assolado pelos desgostos dos tempos modernos, o artista optou por lidar com eles de uma forma oblíqua. As figurações estranhas e perturbantes de Balthus nunca foram associadas a qualquer escola ou movimento artístico. Não sendo um inventor formal, o pintor ignorava ambições de vanguarda. Considerado um pintor «antimodernista» – embora amado pelos pintores modernistas, entre eles Picasso – Balthus conjuga duas características aparentemente inconciliáveis: por um lado, a sua arte é imbuída de uma quietude e de uma monumentalidade digna de ser comparada à dos mestres clássicos que estudou; por outro lado, essa intemporalidade é atravessada pelo sentido de enigma e violência surda, assim como de erotismo e transgressão que não podia deixar de despertar a atenção dos surrealistas. Balthus teve a sua primeira exposição na Galerie Pierre Matisse, em Paris, em 1934. Uma das obras mais conhecidas que ali apresentou foi a já referida A Lição de Guitarra (1934), causando escândalo e indignação devido à representação sexualmente explícita em jogo: uma mulher prende no seu colo uma aluna de música, despida da cintura para baixo, enquanto «dedilha» os genitais pré-pubescentes da menina com uma mão e com a outra puxa o seu cabelo. A menor, com uma expressão ambivalente entre sofrimento e prazer, acaricia o mamilo desnudado da sua professora, sendo igualmente indiscernível

Capítulo I – Cinema – Arte

se o faz coagida ou por pura pulsão erótica. Balthus sugere aqui a ideia do corpo feminino tocado como um instrumento musical, ao mesmo tempo que explora a sensação de violência erótica exercida sobre uma mulher, com o agravante de esta ser aqui uma menina pré-adolescente. Ao mesmo tempo, nesta obra Balthus atualiza e perverte uma imagem religiosa, a famosa Pietá de Villeneuve-les-Avignons (c. 1470), onde a Madonna e o Cristo morto adotam uma posição similar (cf. Mahon 2005, 134). Balthus gostava de tomar de empréstimo composições da história de arte erotizando-as a fim de atingir um efeito escandaloso. Nesse sentido, a adição de dois tabus – lesbianismo e pedofilia – a esta imagem de violento erotismo causaria alarme e escândalo, chamando a atenção dos surrealistas. Não por acaso Alyce Mahon estabelece uma estrita correlação entre Le Viol, de René Magritte (Mahon 2005, 134), e a The Guitar Lesson, de Balthus, pinturas que têm a mesma data, sendo próximas também no seu estilo académico. Balthus nunca fez parte do grupo surrealista; porém, sob sua influência criou um realismo de sonho mediante pinturas fortemente carregadas de tensões e insinuações. Uma rua em Paris, um interior com uma chaminé negra, um feixe de luz atravessando a intimidade de um quarto – formam o fundo no qual é «tocada a doce e diabólica melodia do inconsciente» (Ferrier 1999, 532). Na exposição de 1934, na galeria Pierre, uma pintura como A Rua (1933, Nova Iorque, MoMA) mostra pessoas que, partilhando o mesmo espaço público, parecem viver uma existência separada, tendo causado desconforto no público pelas suas qualidades de alucinação e de ameaça.

Fig. 10 - Balthus, A Rua (1933, Nova Iorque, MoMA)

Podemos arriscar dizer que ao pintor lhe interessa a perspetiva das crianças num tempo em que a velha Europa atravessava uma profunda crise de valores, uma vez que, como afirma Balthus (cf. Balthus Through the Looking Glass 1996), elas são – e eram então e serão sempre – o «futuro». Será nesse sentido que Jean Clair vê na «graciosidade», «charme» e «doçura» de algumas das suas pinturas quiçá uma vontade de evitar a «catástrofe», de contrariar a «ruína» ou a «inevitável

destruição do glorioso mundo das aparências» (Clair in Balthus Through the Looking Glass 1996). O seu desígnio primeiro e último – ainda que assumidamente utópico – será a captura daquilo que vemos. Num tempo marcado por rápidas mutações e sob o peso da ameaça de tragédia civilizacional que se avizinhava, o «último dos pintores aristocratas» que preserva valores como «feudalismo» e «lealdade» (cf. Balthus Through the Looking Glass 1996) devolve-nos um mundo tenso e obscuro, feito de objetos familiares, ruas de uma Paris de outrora e corpos femininos pré-pubescentes em poses ambíguas. Meninas diante de espelhos, lendo ou dormindo em sofás, parecem habitar um mundo que vincadamente contrasta com o nosso.

Fig. 11 - Balthus, The Good Days (1944-1946)

Na aparente banalidade das suas composições e na teatralidade de gestos comuns das suas personagens esconde-se assim um trágico universo de silêncio e de solidão desesperada (Ferrier 1999, 785). Antonin Artaud tinha razão quando sugeria, aquando da escandalosa exposição de 1934, que Balthus era afeto ao seu próprio «théâtre de cruauté» (teatro de crueldade). E o poder dessa crueldade ainda hoje perturba, uma vez que Balthus pinta o despertar da sexualidade feminina. Os corpos são infantis (e préadolescentes), mas a expressão do rosto e das poses indica que eles estão prestes a entrar num novo mundo: o do desejo. A sua inocência, que a consciência do corpo em breve deitará a perder, emociona Balthus, e ele partilha connosco a sua simpatia emocional. São anjos prestes a deixarem de o ser... Não obstante muitas das suas pinturas representarem raparigas jovens em poses insinuantes, Balthus insistia na ideia de que a sua obra não era erótica, mas que a mesma reconhecia antes os factos desconcertantes da sexualidade infantil. Para outros, as pinturas de Balthus não são especificamente sobre a sexualidade infantil, questionando-nos antes, com uma honestidade desarmante, a respeito da nossa postura moral sobre a inconfessada perturbação sentida ante o espetáculo da perda da inocência e o surgimento da descoberta sexual.

233

AVANCA | CINEMA 2016

uma violência que, como viu Jean Clair, «ainda não foi cometida», o «crime não foi completado» (Clair in Balthus Through the Looking Glass 1996), e que, assim, a deixa num estado de pura potencialidade, passando a responsabilidade da mesma para o espectador. É ele, por conseguinte, que a poderá ver, é ele que poderá investir a sua obra com esse sentido. Em última instância, o crime está naquele que vê.

Considerações finais. Direito de proteção das crianças vs. liberdade de expressão: a proteção da arte e o direito de fantasiar

Fig. 12 - Balthus, The Room, c.1953, oil on canvas, 335 x 270.5 cm, Private Collection.

O truque de Balthus, dizia Robert Hughes, é a tensão que advém da «coexistência entre a superfície calma e o desejo predatório». (Hughes cit. p. ViverosFaune 2013) Muitos consideram que as suas telas estão repletas de símbolos eróticos, dos quais os gatos são apenas um exemplo. Mas sobre os eventuais significados escondidos que o pintor repudia, dizendo que nada tem que ver com a Lolita de Nabokov (Balthus in Balthus Through the Looking Glass 1996), Balthus alerta, a esse propósito, para o equívoco e «incompreensão» gerados pelo seu trabalho e que advém das «mentes doentes dos pedófilos». Na biografia sobre Balthus que publicou em 1999, Nicholas Fox Weber escreve: That critics have alluded to Lolita in reference to his work, and portrayed him as a sort of Humbert Humbert, struck him as “stupid” and “grotesque.” The use of his 1937 Girl with a Cat on the widely distributed Penguin paperback of Lolita was anathema to him. Balthus maintained there is not a hint of lasciviousness in this portrait he made of a girl Lolita’s age — in which the viewer is at eye level with the child’s crotch, which is also the painter’s vantage point. If we see sexuality in this rendition of a pensive child, it is our problem (Weber 1999).

O erotismo aqui pode ser artifício e disfarce de uma «disciplina espiritual» (Balthus in Balthus Through the Looking Glass 1996) que o próprio pintor corrobora. Daí atribuir-se não raras vezes ao seu trabalho um caráter enigmático e de difícil interpretação. A sua obra não se destina, pois, a ilustrar nem nunca a tornar óbvio um qualquer objetivo. Talvez a representação da sexualidade pubescente seja metáfora de uma outra coisa que nos continua a escapar e que cabe a cada um de nós descortinar sempre que colocamos, sem hipótese de indiferença, os olhos nas suas inquietantes pinturas ao mesmo tempo trespassadas pela ausência de tempo. Esta estranha carga erótica, esta inquietante tensão por detrás da aparente serenidade, a fim de manter para sempre um vislumbre de beleza que desabrocha, traduzirá um sentido de violência exercida contra o tempo, a erosão e a morte. Mas trata-se de 234

Vimos que a obra de Nabokov, Kubric e Balthus sofreu os efeitos da censura sob a acusação de incitamento à pedofilia. Até a estreia da adaptação cinematográfica de Lolita de Adrian Lyne (1997) foi adiada, tendo o filme sido mesmo proibido em vários países. A respeito da celeuma gerada em seu torno, Jeremy Irons (que na película interpreta Humbert), comentou: «The whole subject [of pedophilia] should be discussed sensibly, rationally, morally, kindly and generously without the tabloid headlining, opinionmaking rubbish that is spewed out by moralists and politicians who want to jump on a bandwagon.» (Irons cit. p. Kim-Butler 2011, 584). Tal como Kim-Butler nota, é, pois, muito fácil aderir ao movimento de censura de matérias sexualmente explícitas que envolvem crianças, num contexto cultural e histórico em que o abuso sexual de menores é visto como «pior do que o homicídio» (Kim-Butler 2011, 584). Aqui, e citando Richard Phillips, Kim-Butler reproduz aquelas que também para nós serão as perguntas a colocar: «If Lolita should be banned under the bogus banner of preventing paedophilia why stop there? Why not ban Shakespeare or ancient Greek tragedy where incest, rape and other acts of violence abound?» (Richard Phillips cit. Kim-Butler 2011, 584). Os exemplos anteriores envolvem obras já amplamente aceites, consideradas referências máximas da cultura ocidental e reconhecidas como deliberada e politicamente provocadoras. Subjacente a estas discussões legais a respeito do mérito artístico e da proteção da arte encontra-se cada vez mais presente a ansiedade afeta ao espectro da pedofilia. Quando alguém cria uma ficção envolvendo crianças em situações de erotização, vários medos emergem. Kim-Butler (Kim-Butler 2011) discute amplamente o problema do ponto de vista ético e legal, dandonos como exemplo o caso Whorley: um homem foi sentenciado nos Estados Unidos por ter enviado um email com imagens eróticas de crianças ficcionais (ilustrações que se baseavam em puras fantasias, e não imagens de eventos ou pessoas reais) violando assim leis federais relativas à «obscenidade» (KimButler 2011, 586). Tal como refere Amy M. Adler, assim que erguermos fronteiras relativas a «o que é a arte?», um artista irá violá-las (Adler, Post-Modern Art cit. p. Kim-Butler 2011, 586). Esta instabilidade e este impulso transgressor que definem a própria arte dos tempos modernos e contemporâneos quando combinada com a ameaça da

Capítulo I – Cinema – Arte

pedofilia gera uma resposta irredutível feita de reações e de dispositivos de controlo em nome da defesa do direito das crianças. Emocional, irracional e emotivo, o recente pânico generalizado em torno da ameaça gera exageros evidentes, injustiças e absurdos. Assumindo a forma de uma verdadeira caça às bruxas, nomeadamente em alguns protestos recentes, não são apenas as fantasias dos pedófilos que estão em risco com base em imagens ficcionadas ou não, mas também um grande potencial de património artístico que, no espírito duramente conquistado da liberdade de expressão, nos leva ao questionamento da nossa natureza e sobretudo dos valores e princípios que regulam a nossa conduta e a nossa compreensão sobre nós próprios. No que diz respeito ao direito de usar a imaginação e de criar fantasias, Kim-Butler cita uma passagem de 1969 proferida por um tribunal norte-americano, num contexto anterior ao pânico que entretanto tomou a sociedade a respeito da pedofilia: «Our whole constitutional heritage rebels at the thought of giving government the power to control men’s minds.» (Stanley v. Georgia, 394 U.S. 557, 565 (1969) cit. p. Kim-Butler 2011, 586)

Notas finais 1 Acrescentando ainda a juíza que «The collection of photos appears to me to disclose an obsession with naked girls» (Roscoe cit. p. Adam 2015). 2 Por esta perspetiva, vemos um homem de meia-idade envolvido num dilema moral. Na primeira página da obra podemos ler o seguinte: «Lolita is not about sex, but about love. Almost every page sets forth some explicit, erotic emotion or some erotic action and still it is not about sex. It is love.»

Referências Bibliográficas AFP. 2015. “Major retrospective brings Balthus back to Rome”, Kuwait Times/Lyfestyle (25 de outubro de 2015), p. 1. Altabe, Joan. 2016. “Museum show is called out as pedophilia and the museum heeds the call”, The Examiner (11 de fevereiro de 2014). URL: http://www.examiner.com/ article/museum-show-is-called-out-as-pedophilia-and-themuseum-heeds-the-call. Acedido em 2-4-2016. Amis, Martin. 1991. “Lolita Reconsidered” in The Atlantic (1992), 109-120. Appel, Alfred. 1991. The Annotated Lolita. Nova Iorque: Vintage Books. Beja, Moris. 1979. Film and Literature. Estados Unidos da América: Longman. Boyd, Brian. 1991. Vladimir Nabokov. The American Years. New Jersey: Princeton University Press. Bradbury, Malcolm e McFarlane, James. 1991. Modernism 1890-1930. Londres: Penguin, Books. O’Neill, Brendan. 2015. “Graham Ovenden’s art is controversial, but its destruction is a scandal”, The Espectator (2015). URL: http://blogs.spectator. co.uk/2015/10/graham-ovendens-art-is-controversial-butits-destruction-is-a-scandal/ . Acedido em 7-4-2016. Clegg, Christine. 2000. Vladimir Nabokov Lolita – A Reader’s Guide to Essential Criticism, Cambridge: Icon Books. Couturie, Maurice. 2014. Nabokov’s Eros and the Poetics of Desire. Palgrave Macmillan.

Deleuze, Gilles. 2006. A Imagem-Tempo – Cinema 2. Traduzido do francês por Rafael Godinho, Lisboa, Assírio & Alvim. Farago, Jason. 2013. “Bizarre Balthus show reveals artist’s fixation with cats and young girls”, The Guardian (21 de outubro de 2013). URL: http://www.theguardian.com/ artanddesign/2013/oct/21/balthus-cats-girls-paintingsprovocations-metropolitan-review . Acedido em 2-4-2016. Ferrier, Jean-Louis e Le Pichon Yann (Eds). 1999. Art of the 20th Century: A Year by Year Chronicle of Painting, Architecture and Sculpture. Paris: Editions du Chene. Heddaya, Mostaf. 2014. “Balthus Exhibition Canceled Amid Accusations of Pedophilia”, Hyperallergic, 6 de fevereiro de 2014. URL: http://hyperallergic.com/107509/ balthus-exhibition-canceled-amid-accusations-ofpedophilia/. Acedido em 8-3-2016. Kim-Butler, Bryan. 2011. “Fiction, Culture and Pedophilia: Fantasy and the First Amendment After United States v. Whorley”, 34 COLUM. JL & ARTS 545, 547 (2011). Kravets, David. 2009. “Appeals Court Backs Prison for E-Mail Obscenity”, Security (17-6-2009). URL: http://www. wired.com/2009/06/email-obscenity/. Acedido em 5-3-2016. Kubrick, Stanley. 1970. “An Interview with Stanley Kubrick (1969)” por Joseph Gelmis. Extraído de The Film Diretor as Superstar. Garden City, N.Y.: Doubleday, 1970. URL: http://www.visual-memory.co.uk/amk/doc/0069.html. Acedido em 5-3-2016. Ghezz, Enrico. 2003. Stnaley Kubrick. Traduzido do italiano por António Rocha. Lisboa: Cinemateca Portuguesa. Leibovitz, Judith. 1974. Narrative Purpose in the Novella. Paris: Mouton. Lusher, Adam. 2015. “Paedophile artist’s photographs and paintings must be destroyed, judge rules”, Independent (13 de outubro de 2015). URL: http://www.independent. co.uk/arts-entertainment/art/news/paedophile-artist-sphotographs-and-paintings-must-be-destroyed-judgerules-a6692921.html. Acedido em 2-4-2016. Martin, Marcel. 2005. A Linguagem Cinematográfica. Traduzido do francês por Lauro António e Vasco Granja. Lisboa: Dinalivro. Mazierska, Ewa. 2011. Nabokov’s Cinematic Afterlife. Jefferson, NC and London: McFarland and Company, Inc. Micchelli, Thomas. 2013. “The Cultured and the Creepy: Balthus’s Parting Shots”, Hyperallergic, 26 de outubro de 2013. URL: http://hyperallergic.com/90195/thecultured-and-the-creepy-balthuss-parting-shots/. Acedido em 8-3-2016. Milliard, Coline 2014. “Artist Censored After Artwork With Daughter Branded As Paedophilia”, artmet mews (6 de novembro de 2014). URL: https://news.artnet.com/ art-world/artist-censored-after-artwork-with-daughterbranded-as-paedophilia158151 (acedido em 8-4-2016). Nabokov, Vladimir. 2006. Lolita. Londres: Penguin Books. Nabokov Vladimir. 2005. Opiniões Fortes. Traduzido do inglês por Carlos Leite. Lisboa: Assírio & Alvim. Nabokov, Dmitri and Matthew J. Bruccoli (eds).1989. Vladimir Nabokov: Selected Letters 1940–1977. - San Diego: Harcourt Brace Jovanovich. Pifer, Ellen (Org.). 2003. Vladinir Nabokov’s Lolita – A Casebook. Oxford University Press. Poe, Edgar A. 1996. The Complete Poetry of Edgar Allan Poe. Nova Iorque: Signet Classic. Rauterberg, Von Hanno. 2013. “Die Bilder des Begehrens Nun hat die Kunst ihre Pädophiliedebatte: Soll man lüsterne Fotos wie die von Balthus wirklich zeigen?”, DIE ZEIT Nr. 50/2013 (5 de dezembro de 2013). URL:

235

AVANCA | CINEMA 2016

http://www.zeit.de/2013/50/fotografie-balthus-paedophiliedebatte. Acedido em 8-3-2016. Roth, Phyllis. 1984. A Critical Essays on Vladimir Nabokov. Boston: G.K. Hall & Co. Rowe, William. 1971. Nabokov’s Receptive World. Nova Iorque: New York University Press. Saner, Emine. 2015. “From Caravaggio to Graham Ovenden: do artists’ crimes taint their art?”, The Guardian (17 de outubro de 2015). URL: http://www.theguardian. com/artanddesign/2015/oct/17/from-caravaggio-tograham-ovenden-do-artists-crimes-taint-their-art. Acedido em 1-4-2016. Sinyard, Neil. 1986. Filming Literature – The Art of Screen Adaptation. Londres: Croom Hell. Smith, Roberta. 2013. “Infatuations, Female and Feline”, The New York Times (26 de setembro de 2013). URL: http://www.nytimes.com/2013/09/27/arts/design/the-metsbalthus-cats-and-girls-is-strangely-refreshing.html?_r=0. Acedido em 2-4-2016. Stam, Robert. 2005. Literature Through Film. Estados Unidos da América: Blackwell Publishing. Schjeldahl, Peter. 2013. “In the Head. Balthus and Magritte reconsidered”, The Art World (7 de outubro 7 de 2013). URL: http://www.newyorker.com/ magazine/2013/10/07/in-the-head. Acedido em 2-4-2016. Viveros-Faune, Christian. 2013. “Ol’ Dirty Master: The Discomforts of Balthus”, Voice (16 de outubro de 2013). URL: http://www.villagevoice.com/arts/ol-dirty-master-thediscomforts-of-balthus7184300. Acedido em 4-4-2016. Walter, Brian. 2014. “Only a Child. Spectacles of Innocence in Lolita films”, in Kidding Around. The Child in film and media (eds. Alexander N. Howe and Wynn Yarbrought). - New York: Bloomsbury Academic, 2014, pp. 51-68. URL: http://file.ebook777.com/KidAroTheChiInFilAndMed.pdf. Acedido em 1 de março de 2016. Weber, Nicholas Fox (1999). Balthus, a Biography. Nova Iorque: Alfred A. Knopf.

Filmografia Lolita. 1962. De Stanley Kubrick, Estados Unidos da América. Lolita. 1996. De Adrian Lyne, França / Estados Unidos da América. Balthus Through the Looking Glass. 1996. De Damian Pettigrew, 72’, Super 16, TV PLANETE/CNC/PROCIREP.

236

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.