Longo poema atlântico

May 24, 2017 | Autor: Marsel Botelho | Categoria: Literatura, Semiótica, Teoría poética
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MENÇÃO-HONROSA DO PRÊMIO MAURO MOTA - 1993

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Este livro é dedicado ao Poeta Pedro Joaquim Vellez Botelho, meu avô paterno.

Um pouco de prosa.

Levantar diques ao curso livre das ideias. Amordaçar, manietar o pensamento com regras e preceitos convencionados é uma violação grave à lei da liberdade. A liberdade são pássaros sinagelásticos, sempre volitantes, sempre em alacridade. Não admitem peias, basta clareza no que se pensa e lenidade no que se diz. O mais são regras supérfluas, obstáculos erguidos ao que a alma sente. (Do livro Goivos e Lilases, 1936, de Pedro Joaquim Vellez Botelho.)

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Prefácio

César Leal1

É claro que Marsel Botelho não poderia deixar na gaveta tantos versos bem elaborados, tão vasto mundo de imagens e metáforas, tantas invenções que fazem da originalidade um valor permanente em qualquer arte, em especial a arte da poesia. Antes de expor o que pude observar em seus versos, permito-me uma longa digressão teórica. Sem dúvida um hábito de quem passou mais de meio século escrevendo poesia e crítica do poema. A poesia moderna é surpreendente. Talvez por ser uma das linguagens em contínua mudança de processos e técnicas de expressão. Sobre essa poesia – a poesia da modernidade – a gramática escolar não tem nenhum poder. Suas falas são governadas pela força idiomática da própria língua, um poderoso ensamble de elementos intuitivos indomáveis porque tais elementos constituem uma surpresa para o próprio criador de vozes ao explorar as regiões abissais da mente. Nenhum poeta, por maior que seja, saberá exatamente o que irá dizer ao iniciar um poema de certa extensão. Creio que nem mesmo a “fantasia ditatorial” de Rimbaud – conceito tão caro aos romanistas – foi capaz de impor ao menino de Charleville as falas que ele 1

Idealizou e fundou o curso de pós-graduação em Letras na Universidade Federal de Pernambuco. Membro do Conselho Diretor da Fundação Joaquim Nabuco. Membro do Conselho Federal de Cultura. Membro da Academia Pernambucana de Letras. Editor da revista Estudos Universitários. Prêmio Menendez y Pelayo do Instituto de Cultura Hispânica, 1956. Prêmio Othon Bezerra de Mello da Academia Pernambucana de Letras, 1964. Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras, 1987. Medalha de Ouro Joaquim Cardozo, de Honra ao Mérito, da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, 1999. Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, 2006. Condecorado Cavaliere da Ordem do Mérito da República da Itália. Cidadão Honorário do Estado de Pernambuco. Condecorado com a Ordem Capibaribe, por serviços prestados à Cidade do Recife. Poeta, crítico de poesia e Professor Emérito da UFPE.

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desejava expressar, sendo obrigado a submeter-se ao império das potências mágicas da língua, ou seja, a seus domínios mais recônditos; domínios que ele julgava haver atingido, quando afirmou a necessidade do poeta ser “absolutamente moderno”. Nem todos estão de acordo com a frase de Rimbaud. Nem precisariam estar, pois cada poeta tem liberdade de ação ao construir sua gíria no sistema da língua. Karl Vossler afirmou, há mais de um século, que a gramática lógica é a gramática das autoridades. Quem se dispõe a guiar-se por suas normas deve renunciar a escrever obras de arte literária. Ninguém, até agora, contestou Vossler, mas não são poucos os que se intitulam “poetas”, ainda que não se atrevam a violar as normas da gramática escolar. Desconhecem que o gosto existe; mas há o bom e o mau gosto. Por isso o gosto deve ser educado. A cada dia chegam ao mundo novos objetos que precisam ser nomeados. Herder – que era teólogo e conhecia muito bem a teoria da origem divina da linguagem – afirmou que a poesia “é a língua-Mãe” da humanidade. Daí a afirmativa de Vossler de que o “certo” e o “errado” não existem, onde predominam as forças poéticas da língua. É o bom gosto que impõe as falas do poeta. Todos sabem que a língua é um sistema social que se relaciona com todas as manifestações da cultura humana. O mesmo não ocorre com a fala, cujos fins são específicos. A distinção entre língua e fala estabelecida pelos lingüistas foi muito importante para o estudioso da literatura. A langue (língua) como sistema social e a parole (fala) em cujo âmbito situam-se as obras de arte literárias. Ao falar sobre langue e parole não cito Saussure, porque temo que Drummond ressuscite e lembre seu irônico poema em que exorciza, com muito engenho, o vocabulário técnico da crítica estruturalista. O poema é uma linguagem organizada em sistema. O ser do poema “não está na mensagem” – disse Roland Barthes – mas no sistema de signos arrancados à langue pelo poeta que o inventou.

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Se é na fala que se embasam as criações literárias, tais falas não são mais do que uma gíria arrancada ao sistema da língua. Isso explica a catástrofe estética dos gramáticos ao escreverem obras de arte literária, pois seguindo rigorosamente as normas da língua, anulam as intuições inovadoras que dão à linguagem do verdadeiro poeta flexibilidade, originalidade e força capaz de alterar poeticamente os universos da natureza e da cultura. Acredito que este livro irá situar definitivamente Marsel Botelho2 na fechada corporação dos poetas – e utilizo o termo no sentido medieval – algo semelhante ao cânone dos integrantes das corporações da Idade Média, em que cada um dos membros desses organismos podia fazer algo diferente mas todos dentro do mesmo ofício. Na corporação de Dante – no seu cânon – figuravam apenas seis: Homero, Virgílio, Horácio, Lucano, Ovídio e o próprio Dante: Si ch` e `io fui sesto tra contanto senno.

Todavia, mesmo que sua poesia exija ainda a inconclusão de alguns valores próprios da modernidade, não há dúvida de que estamos diante de um autor para quem a imagem nova é uma festa, uma alegria que antecipa a visão da beleza do símbolo poético, um dos caminhos que ele terá de percorrer na busca da expressão que atenda ao postulado de Rimbaud: “É preciso ser absolutamente moderno”. Quando Marsel Botelho escreve:

E joga-se desta folha-alpendre/até por fim a matéria lançada/Nas chamas de que me visto: Vulcões que o homem acende/com o fósforo da imagem que lhe

Bacharel em Direito – UFPE. Mestre em Direito. Ex- Diretor do Sindicato dos Escritores Profissionais de Pernambuco. Professor Universitário. Poeta, compositor e escritor. Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil e da Associação Brasileira de Direito Procesual Civil (ABDPro). 2

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queima casa e jardim/E dele se apodera/ E o recupera à escuridão,

ninguém pode ocultar a estranheza desses versos que se apossam do seu entendimento e acende mil velas no castelo noturno de sua subjetividade. Para que citar versos de Marsel Botelho? Goethe dizia que um livro não deve ter prefácios. O leitor tem em mãos um livro de poemas. Cabe-lhe apenas ler os versos com suas imagens, alegorias, símbolos e as singularidades gráficas que não são poucas nem as camadas de sentido in absentia. Recife, 5/1/2008.

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Da abertura da vazante

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Jornada

Hoje, a paisagem magra esmiúça casas. Estendo-te o estandarte, O itinerário da infância: Águas e pontes no roteiro... Nassau... — Com que passos, de criança, as ruas, perdi? Abro-te a porta a esse caminho. Pois de verso como de gente, carecemos: Precisamos, um e outro — povo e rio.

Meus olhos de agora vêem águas Que o tempo ignora, que o homem ignora: Águas e flora sobre o caule do mangue... E lança o homem âncora No incomunicável desses rios desbotados da infância.

Do rio à criança há um laço E uma nova ânsia: Tâmaras verdes e maduros sonhos ao ventre. Sem asas, morrem as águas: Pássaros sujos de mangue.

E não há ninguém mais além de rios-jornada.

Casas amadurecem frutas E esgueiram-se com os rios. Aí, o rio assume as formas da amada.

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A luz, nos corrimões da escada, Penetra ponte sobre página: Gotas escapam do poema de mar

a b e r t o

Quis mágico, confesso, um instrumento, Um objeto diurnamente dimensionado. Um símbolo, um número, um poema, Afeitos a mim. Algo diverso como a mente. Máximo, ao meu lado. Porém tudo me interessa E o amor está disperso. Em ti, principalmente, a tarde...

Duas rotas abrem-se à distância: Subfoliáceas artesãs. Artífice a tarde operária... adstringente... Organicamente a tarde entranha o Recife.

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Paisagem

Recife, mosca sem ai sem cais sem rio sem Bandeira

Uma coisa mosca o Recife, Pousada na podridão do país. Povo ao vento Povo mosca

vida pouca.

Recife, não haverias sem ai sem cais sem rio sem Bandeira

E vives e te ausentas, Todos os dias, Como uma mosca, Sem levantar suspeita.  Quem desconfiaria?

Teus rios despem-se vestindo virgens nuas, E elas, mais despidas, se insinuam; São assim: só tuas... só tuas: As moças desta cidade, as ruas.

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As minhas e as tuas saudades se achavam. Deitavam tua paisagem, o momento à mímica, À lírica, tudo numa só linguagem!

Merluza dos Aguaceiros, encosta-me tua mão-aragem, Tua franja gasta; arrasta esse teu companheiro, Faze dessa saudade um exemplo à pátria, um alento:

Ó Recife, ó linda menina agarrada no tempo!

Os ratos... Capibaribe sombrio. Rio-rato povo-gato cidade-cão

Enchem de manhã os nossos quartos; As mãos, os nossos atos. Povoam praças e os sonhos cúpidos Dos bustos que o tempo e os arbustos consomem:

E vagam, dilatam e condensam a palavra ao dia.

Não perdi o objeto do meu sonho Nem a liberdade dos gestos Que na infância deixaram-se ser breve alegria. Perdi a infância — ganhei a poesia. Voei vôos-ícaros, azuis mais místicos De líricos violões: porque mulheres, porque músico. Não fiz amigos — cobicei público. E, no mais lúdico dos dias, Perdi a fé — ganhei sabedoria?

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ÚTERO

19 horas bombas velozes chamas Aqui e ali o tempo Cavalos de sono ao vento Minuto de pedra e medo A busca ao

lo

co

co

mo

mo

mo

ver

ver

ver

ver

mo

mo

mo

mo

nos

nos

nos

nos

Atropelo do útero

De ter-nos de si a carne De ter-nos de si o fruto Carne pão embrionário Nossa profunda identidade

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— cidade.

Unhas sujas te comensuram Mas voltas no quando De teu tempo-túnel Tu-me-fa-zes-te No pão que uso em fome No animal que dorme em homem Teu sonho do universo escorre absurdo

Vago nos meus braços de que me escapo Não tenho a tarimba dos pássaros Mas uso a linguagem dos meus E gestos escarafunchados nos teus alfarrábios

asas ajus

Cada dia A criança-sombra habita Seu lugar-nenhum

e O

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iva tat

do que é vida, natureza morta

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que a pupila ventila

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O menino-fantasma Recolhe as letras-brinquedo do adulto Retoma o caminho parto Do espaço em alfabeto

Casas-pássaros garatujam o real Partem ao sol no espaço-ave Onde vem e vai a tarde A C Ú S T I C A C I S Ú M Onde cai do bico da ave O canto aborrecê-lo de mil outros O canto aborrecê-lo inútil.

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Sinais

Álgebra minha poesia, Que em mim, um dia, Como oásis brotou E com ele o sonho de habitá-lo. De que reino então fazê-la parte: Da Arte? De Taj? Ou de Marte? Que seios e mãos, feio gênio, Alimentam esses desertos, esses oásis? A poesia está mutilada Entre seios e emboscadas. Úmido, ungido, qual réptil O poema penetra: A terra geme gene gera Seu mito. O tempo me

O

O

cu

cu

cu

pa

lpa

lta

(Do tempo não se volta) Desse nada temo suas fezes.

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Frente a essa situação de dúvida E de magia, A par do teu claustro, Álgebra minha poesia, Um calor enorme de cidade Seu camelo move,

móveis sáxeos bem de pouso ao solo, sem depor do sol o tato

De estrela que, do Oriente, num só contato, Cerca a imagem desse dia que se adia, toma-me da boca O cuspo de que jorra a fonte e o lucro.

Se bem que tudo está só, Longe e derramado do vasilhame, Nas mãos do ontem, entremeio pó.

No arraial há crime. Sinais de luta. No canavial há fúria: Ombros inertes de estação.

Sinais que o tempo assenta, assanha o Recife, Sua sanha barrenta, que consome inteira A planta verde palma calejada: Arma dedilhada, Minha poesia a cabo de enxada!

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Cicatrizes

Nada por sobre o dia que nasce das migalhas dadas aos pombos; que cresce feito ervas daninhas e nos põe, no sexo, flores de asfalto.

O dia sai de mocassins. O dia das mãos do agiota. A cidade e seus confins.

A terra beira o caos, o caso, largo e fundo.

Rasga ao barulho: Futuro cai do ocaso, Do orvalho absurdo.

A esfinge dança o sonho egípcio. A música, dos séculos, ressoa. Movem-se as barcas para o inferno.

O sol aqui é eterno prisioneiro A pedra e a sal na terra: Cárcere em laje e luz.

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A dança das pedras move o silêncio Do espaço que se enche de pregas: Uma pássara de vento se desnuda.

Na música do vento quedam-se As vozes que a solidão asara.

As pedras comem suas cicatrizes, suas frutas de louça e de farpas;

Costuram-se, nessa fábrica de vultos, Colunas, esqueletos de sombras, Que não chegam a impedir a luz.

Nem os caminhos Chegam por atalhos, nus, Mas vestidos de uma resina Que a tudo impregna: —Que Ícaro brotou cera em luz nordestina?

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Carneplégicos

Não servem ao verme porque não têm em carne o que retêm em pedra; porque na derma e no grito falece-lhes o conflito: o que já devem de fome em prestações de vida: porque se servem de morte os que sobrevivem à vida.

Como a carne, que a lepra infecta, alerta está a vida e seu refugo néctar ao que de espaço na cidade é dilúvio e desespero; e ao que se lhe rompe do estômago e da fronte, uma fome maior se sobrepõe, se interpõe entre o pé e a pedra, a pele e a pereba: a fome carnívora dos mortos.

Uma película repuxa o fio da meada: endurece a língua, apodrece os dentes: A fome é a sobrevivente. Alimentormento de muitos carneplégicos recifenses.

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Áfricas de néon

Destramam os olhos Metamórficos do negro As saúvas de sono Que habitam seus medos. Ocupa-se o negro De seu instrumento de carne, De sonho e de trabalho. Invade a cidade com seu carbono em crepom; Com seu náilon crespo Leva a vida até o cadafalso: Destrona-se de um tempo-afro, De seus olhos de aço e de ungüento. Áfricas de néon trespassam-lhe Os dedos e o gomo: A cidade colhe o negro E seu instrumento urbano. Sangra o verniz Das mãos urbanas do negro. Dorme a carne letárgica, que é madeira Sobre madeira, coisa sobre coisa, África sobre áfrica arreciferada.

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Urbe

Poste tombado Úmero em meus braços Quarenta por cento ao vento z-m

iz-me

fiz-me

Corpo do meu mícron. Nu em tanto lixo.

Vezes que durmo Púbis Meu mundo Meu século-volt Subtrassomando-se o louco:

Versitite lucro.

Corpo patrimônio ao vento Ventre-líquido Lacre ponto a ponto do meu rosto.

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Cópias miragem de mim mesmo Infruto antefruto pós fruto Invólucro antecorpo lobo.

Estou bancando a saudade Nas bancas da cidade. — A lâmpada acesa porque durmo adubos da terra! Porque colho o látex Deste reinox Cujo rei rex Monopoliza o oxi.

Recife estala aos dentes-navalha Dos deste lado de Drácula. O amor transfarta-se diabófago em cada detalhe Macro ou micro — utópico.

O amor subacha-se polegada e meia infixo, Para quem pára por uma cidade paraliticamente parábola, crucifixiado.

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Da preamar

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Noite máquina

Atiro pedras à escuridão. Procuro a noite, e sua textura, Palha que me enruga o rosto, Cauteriza minhas mãos, eterniza a procura.

Vejo a noite dos olhos do ancião vertida no chão

Que repensa o grão E replanta o homem E o emulsifica.

Renasce como Fênix.

A realidade opera milagres Com unhas e presas, vícios e dentes, ou em choro se desprende E joga-se desta folha-alpendre Até por fim à matéria lançada Nas chamas de que me visto:

Vulcões que o homem acende com o fósforo da imagem que lhe queima casa e jardim E dele se apodera E o recupera à escuridão.

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Toda a busca se curva ao cansaço,

que enruga, que chupa pele e osso e nos cospe ao fosso escuro de solidão e febre,

Que na dor faz seu jazigo.

No cromo de nossa carne, A noite queima seu petróleo E desce lava a nossos corpos desprotegidos.

A noite intensa explode a cada canto, a cada alarde, a cada parte Que se nutre de seu óleo.

A banda escura cai podre na cidade

E impregna as ruas de vento e de cansaço Com suas pegajosas mãos de cera e ungüento.

A noite é um cais ardente Onde atracamos urgentes e com fúria, E o mar de cansaço que o circunda Banha nossos corpos ácidos de pó e de infinito.

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A noite cai qual pedra... A gente vai, fora das pernas

e dos ombros, se sustentando de paisagens, por dentro.

Mas a noite larga-se sobre as casas,

antecipa-se à luz, que tarda: momentos de angústia e sofrimento.

Mais que isso: flui seu mito e seu aniquilamento. Infinitiza-se na substância têxtil de sua onipresença,

E nos confundimos da inquietação dos astros. Chove uma noite cromática,

caída em cada desejo cuspido da alma, como um assombro em nós exilado, de menino.

A noite máquina tece seu pano negro,

A que meu corpo de névoa se afeiçoa.

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E me amparo nesse existente plasma que a vida desmancha adiante.

E desmedido fujo pelo atalho por que se infinda Escotilhado de poros e esperanças Que se avolumam no meu peito Qual montanha De carvão e gestos a incendiar meu sonho.

Arrasta-se a manhã, que não vem; estiola-se E fico a contemplar perpétuo o infinito.

Expressão em nódoa numa vaga nitidez de obesas formas perdidas do universo em noite.

Meu corpo, objeto trágico à luz, sem bússola, percebe-se desentranhado Do pó Que vem com a noite:

E vê-se enorme,

flutuado templo, Transladado viajante, presa fácil dos astros vadios.

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Vaso

pipa

retalho Vaga vazio de mim por dentro Abrindo uma porta para o infinito.

E cai de mim um abismo de cansaço e mofo. ...Escorro-me das entranhas e sofro noctívagos ritmos...

De mil furacões de pedra meu coração esmigalha-se.

A noite mutila as rotas, e as açucenas espalham-se, Fertilizam a terra E lançam as sementes de que se debulham os sonhos de que se alimentam agora minhas mãos.

A escuridão desgarra-se por aí E nos recolhe ao seu ventre.

Desliza suave ébano Das geleiras do tempo.

Volto ao chão Com as mãos que no ontem me depositara: A mim me busco no meu corpo que me exala.

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Pois em ter-me emerso, posso descobrir-me, debulhar-me E espalhar-me a vento, a semente, a gente, a genes. Procuro a mim, que de noites me edifico.

Atiro-me pedra à escuridão. Asilo a dor Em pequenas porções de calma, Como um ancião a catar milagres, a recolher fantasmas; a servir-se de si Em carne e tempo. ...me desespero e me quero do ontem, de seus porões, sem mais nada para dar, sem mais nada que tirar Do que há por deuses. (...) Que não há mais os deuses! Há muito que fazer.

Há muito que gritar perante a dor: Esgotaram-se as felicidades! Meus olhos de pedra paralelepípedo estancaram-se, Lápides fecharam-se e a mim mais Transitar não importa pálpebras ou selvas. Apenas quebrei o vôo Da ave que o espírito lança Na desordem em carne. Pois a ódio move-se o pão, A planta-mão-enxada.

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Ao aço movê-la, executá-la mais que inútil capim É boiar nos campos mapas colhidos a vento,

Como semente de terra Que a terra desterra. Destilá-la, chovê-la dentes pés Corpo vegetal amigo é vivê-la árvore sombra e sol, até o tempo ingerido vômito brotá-la dessa visão magra, arreciferada, onde mendigos-cães mordem o lixo, e de suas casas-latas Movem-se objetos da antivida da ante-rua Da tarde que queima feito chicote O sem sentido ser corpo entulho. Não há travas ou laços Nem algemas no outro que esmurro. ... Canso-me só do cansaço e me vejo prostrado ali, sem-fim, A lhes dar, feito bicho que se apedreja no escuro, do entulho, o fardo.

Assim, ao cativo de mim, dai-lhe pernas para fugir, dai-lhe voz para que eu o ouça. Mas que a dor e a fantasia Façam-se o escudo oportuno, Que em dia exato Há de encher-lhe o vácuo Com suas alegorias e húmus.

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O mundo apodreceu no esquecimento feliz que me ilumina o momento, pois que de humana carne infecta em seu passado reteve-se, fez-se. O universo está algo..., Que de imaterial consagra O objeto inacabado dos sonhos E põe cansado o homem Nesse imerso largo A seguir-se despido do humano, Dizimando seu dogma doentio, na terra de si mesmo, Sem a percorrer mais que poucos palmos Na infinidade onde está preso... E a couraça de vento Que a ele sustenta Há quinhentos anos, Alimenta o ar Que em mim corre subterrâneo. Ao dia suspenso no fruto A paisagem cheira. O almíscar não cansa o tempo, Objeto à-toa.

O grão se põe na areia, Potente ou impotente, Fragmento do mundo.

A noite sua sombra enorme cai Por sobre os ombros da cidade insone.

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Há uma chance de se viver, por oferta ou por procura. Uma chance de se ascender como presas ou perdas. — Há uma chance de se romper A atadura brutal com que tampas A boca alheia como quem asteia uma verdade Nessa loucura de não ser louco? No entanto a sorte e, quem sabe, até a morte já não seja terrena — tenra!

Porém o corpo é deserto, E a morte, quando emana, perde-se do concreto e da imaginação: em leve dialeto Se flexiona, sangra como de um corte.

Entre o homem e o objeto feito Do próprio homem: o guerreiro, a arma Feita à luz desse dia congruente e quedo Que nas pálpebras e mãos do homem é água, Há de por fim a essa saga.

Das porções desse absurdo, ungidos os meus e os teus anversos, espalhados e medonhos, encrostados em nossos pesadelos, Surgem objetos da espera: Animais futuros Povoam o pasto-poema.

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Aves extintas desertam... Além nossas lembranças Guardam-se peixes com os rios.

Animais insones caçam, Que está sempre em dívida a vida que de outras se extrai, Mesmo que nos fortaleça, multiplique-se ou se divida... Não pela cidade de que vejo meus inconcretos fusos de sonho, Mas, por ti, esperamos: A cidade desfiada de que somos; Dormida nos seios Polpas do negócio em negócio Que de mãos em mãos Lavados vãos.

Percorro o sono na garupa da noite... Lânguidos sonhos povoam a escuridão do poema Em que me habito coágulo de vida inorgânica, de vida que foi sexo e pêlo, reverso do fio que a costura ao destino. Não é absurdo falar-se assim Com a boca Ferida, fechada, vazia... Que não cala nem esconde Recife.

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Bem melhor lhe teria Mais que a um filho, seu vínculo, seu estado gene-terra intrínseco, Inseparável por indivisível.

Mas não pude. Recife, apoplético corpo: vejo-o por sobre o morto e a si mesmo derramado corpo vazio. Grito que está morto, Apodrecido — não me ouvem.

Passam por ele, e negam, e seguem ao passado enfim, Reboco que povoa O Recife morto, Posto ao sol deste porto De sobre a ferida aberta. Do humano nada resta. Depois da morte trago assepsia à cidade que ninguém denuncia; Não se servem em partes suas iguarias, Mas se separam e aniquilam O quanto em nós tem de argila.

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Lavei-a com sangue e orgulho eternos.

Com o cristal mais puro dos sonhos, Hei de fundir-lhe as noites e os dias Às cinzas de minhas cinzas, no cicatrizado e definitivo abraço. E na flor e na terra dissolvido, para sempre, Pulsar nos seus filhos o gérmen de seu espetáculo.

E este poema, de asfalto por dentro, alimento do morto futuro (herança da noite, cimento de sobre o mundo)...

Este poema já não pensa em nada mas não se queixa. Também não me deixa, Me quer dependurado. Figurado ou não, Encantado ou preso, É como ponta afiada rasgando carne, Coração e nervo. Morrendo, porque se morre mil vezes (até mais). Abrindo-se, através de cada olho. Acabando comigo.

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E no bruxulear da caneta Esferograficamente vazia, O mundo nos cai do olho em letras-carpintaria. Este poema é feito um lar. Folha míope que estranha sua vegetação caseira. É terreno, posto mapa, no desenho da criatura. Um minerar de coisas extintas em tintas. Parte de mim numa certa parte de ti. Teia presa na aranha. No meio, entressono o poema.

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Cova do mar

De um povo extinto frente ao mar: árvore-turquesa esculpida de azul,

De tantos milênios: estátua de tempo que aos sete mares exporta sua derme de mar e pedra; Hoje, dragão morto ao fogo que espraiamos.

Talvez feita de si mesma, ou de si nascente germina, Ao vento de seu corpo, gota de beleza, o seixo vulcânico da vida que sai de sua boca, Como seu oceano, Fruto de mar e terra: Corpo de seus séculos.

Inerme entre eternidade e morte, objeto do que reavemos e habitamos com nosso sangue e carne, secreta o que herdamos da ave de sal do seu oceano, no seu abraço lavado, nos seus braços carcomidos Pelo quartzo.

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No que nos acotovelamos minúsculos grãos invadidos de areia ao sabor dos obstáculos, O tempo âncora solta ao mar. Mar — vagaroso guia do que somos Frente a um grande espetáculo!

De ventre de água mumificada pelas nuvens que as envolvem, Da argamassa de ventos as vozes que no tempo navegam, e os albatrozes A velar pelos que dormem nessas águas.

Das velas do cais

por onde

o tempo

se esquina, O passageiro dia Da morte não se vacina: Constrói combogós para além de nós. Tange rios-gados dessa cidade com seu cajado: Pasta a vida em currais de lama.

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Cova do mar, a cidade de que somos Perdemo-la aos poucos numa derrama de esgotos para os medonhos seres de concreto, com seus fuzis de asfalto e de cimento; Os mangues, irrequietos, dos porões da terra curtida, lamificada, Desgarram-se da cidade amontoado urbano inorgânico. Ela, porém, infixa, numa carapaça de cal e de argila, subviverá em minhas narinas, intemporal, Até final momento De que nos derramaremos húmus, caudalosos, abaixo dos inconcretos Fusos urbanos, Em busca de rios e mangues subterrâneos.

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No rosto morto de cansaço, de aço e de fuzil, De cansaço que se fez pedra, a vida, louca-metralha, que importa se dissolvida ou petrificada Por entre a terra que abomina a mão De quem busca o pão E apanha-se em cinzas? Há vestígios de paisagem, indícios frágeis que o grosso estômago da cidade vai mastigando com seus dentes-luzes de mercúrio e pó. — Adianta dizer-te como? Ou dizer-te isso espanta? Conforme vida manda, mesmo mínima, peregrina, Há qualquer coisa nesse chão que me fascina, Que me alucina a verdade E me tem posto por entre vastas vias De pó, pedra e sal.

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Há muito a cidade se alimenta Do branco da cal do atlântico Que a perpassa;

Que devassa Suas alamedas frias, Que a veste para o despertar Atônito do dia.

Sei que sofre No esforço inútil De solidão e morte.

Vim aqui pedir por nós... Vim aqui traduzir a morte Que o asfalto trouxe Ao seu mau-hálito de mangue. Ao seu aleijar-se urbano.

Vim trazer mensagem urgente dos habitantes do vento, dos habitantes da lama, dos inabitáveis nichos em que se derrama a urbe. Vim falar, em sua língua, da urina de seu mundo minúsculo, depositório da lama em cujo idioma me traduzo;

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Pois há muito ouço seu discurso, sua palavra viscosa, grossa e fluida, como a de um mendigo, a de um menino que com a fome come seu idioma goma amargo, dissolvido, gago; E quando seus olhos, tentáculos a segurar sua fome, não sustentam a sílaba, a palavra da língua desaba como lama seca de caatinga.

A cidade descola como sola a largar-se do salto, como lodo de cacimba se solta, Como bola a descosturar-se, Como bala gente imola, pêlo que se raspa, carne que se corta.

Como a vida que se metralha

e escapa pelas narinas impregnadas de cola.

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Assim é a cidade que amamos e afunda a todos em desenganos.

Assim é sua cartilagem, seu corpo viário da vassalagem;

Parte que se basta, como garça desvairada que flutua, essa cidade pálida sobre casas túrgidas! À medida que se posta carne, e a fome traz os homens mastigados, a faca Dos hemorrágicos mascates a detona: deles tudo sangra numa derrama de acidentados: Miçangas, pratarias, violas, poesia...

que já não se sabe se as ruas os cabem ou neles se prolongam, ou se lhes são a própria sombra nelas se adentrando Num curso lento e profundo, Penetrando-as até raiz De onde as cidades nascem e se maturam.

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Porém essa de várias cidades se completa: pode ser a Meca, a Mauritsstad, Ou qualquer outra, ou todas. Ou seja só feita de si mesma, ou nem isso seja. Importa, sim, que seu povo a veja, a deseje, a possua em qualquer sombra de si fincada.

Pois uma cidade, assim edificada, começa na gente a crescer

Até em nós ser povoada.

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Do fechamento das águas

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De cada dia que se fia

Do amor e do ódio de todos os dias, Uma porção é guardada, por fatia, Para o animal no homem deglutido.

No amor e no ódio de todos os homens, Come o homem à fome de sua agonia, Doma a fome ao homem e o anestesia.

Na areia lavada e no corpo endurecido, Uma parte, se alma, se enxágua, amolecida Pela mão d’água vazante da vida.

Dia a dia a mão se anuncia, incansável, À procura da sombrança do destino, E se madura de infância e de menino.

Passa o homem de si mesmo adiante, Num eclipse total, vôo rasante e confuso, Para conter-se no outro de si oriundo.

Abre-se em flores e de flores tais que o próprio Olhar não se distrai e vai derramando Seus orbitais por sobre imagens irreais do futuro.

Constrói, assim, com seu martelo de aragens, O tempo em que a imaginação Rebenta a carne pálida.

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No sonho e na casa em que habita, Despe-se o homem e sua lírica, Mede-se a fome com sua carcaça e fibra.

Na casa do homem sua química se multiplica Na matéria-gente dormida, nos sonhos suspensos Nas ripas, no jardim roído de formigas.

A casa do homem é seu alimento predileto, Sua carne inorgânica, ilíquida no concreto. O exterior do interior que lhe domina.

A casa do homem não é Simplesmente uma casa: é organismo vivo Trabalhando formas glúteas, diáfanas.

É o choro guardado do menino Marcando sua passagem, é o fruto, O vaso, a xícara, toda sua inquilinada.

A carne do homem É estandarte de sua fome e preguiça: A garfo e faca se lha cobiça.

A carne do homem não o eterniza Mas o desfia da máquina da vida costurada Em cada dia que se fia.

A carne do homem é sua empreitada, Alimento em terra cultivado Com as mãos-arados a céu aberto.

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Afobado... vacila com o tempo intacto. Amordaçados os ventos... Pássaros fogem e se espantam.

Em vôo subterrâneo, sem horizonte, Atira-se só e dissonante às trevas; Cego como a pedra, em pedra.

A carne frágil rasga-se ao aço Do tempo, flagelando a humanidade No maior de todos os holocaustos.

E de fragmentar-se lavra-palavra indizível, Transeunte de corpos impotentes, Transporta-se incorpóreo e ausente.

Assim, a construir seus mortos, O homem se elabora, se apreende; Entende, enfim, o que de si não termina.

E, com o que de si permanece, Cresce em vida, tranqüiliza seu verso. Fixa-se na substância de sua oficina.

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Decodificação da oficina

A poesia a tudo pode haver-se estática, Paralisada; no sem-sentido Habitar-se por longos anos. De tudo Desentender-se, a poesia Eclode dos confins da dinâmica Entre o ser e o nada.

E se existe literatura no nada, Nem tudo é literatura, palma , poesia, No entremundo das palavras, do sentido: Fases múltiplas, som/ante-som: tudo Que é viva ou morta estática Do antivir da coisa dinâmica.

Louca ou acrobata é essa dinâmica, E não sendo exata, exatamente como tudo Que é humano, transpira de sua estática O que lhe é próprio, diante do nada. De que outros motivos o ser sentido Faz-se palavra que cimenta poesia?

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Quase sentido? Ou não é sentido o que diz poesia? Nada mais que formigamento? De nada Serve impedir a pena à dinâmica Do dia colhido em corpo e estática E sombra humanos; que nos serão isso tudo? Lição ou poesia? Serventia do sentido?

Revira-se o código, a poesia, e o sentido Que lhes damos (litterae non estática), Aos poucos se desencanta, e nada Mais ocultamos, por sentido: a dinâmica Se vai acionando com/sem poesia, Arqueológica no seu nada: quase tudo.

Nunca conseguimos dizer-nos (tudo Mesmo) por mais que esteja a dinâmica Da máquina, da oficina, da alargança da poesia, Impregnadas de motivos; sem sentido Capto-a desorbitada, como que o nada De palavras provesse sua estática.

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Soneto da etérea continuidade

Pássaros à espera de insetos, ovo manhã. Urgentemente expelem de suas asas um vento excedente, Frijo e gasoso: a abundância de espaço Instiga ao vôo o corpo como um dardo.

Várzeas e um céu profundo fluem, aglutinados; Musgos, nuvens, seres alados, qual fantástico Contato de deuses e de sementes: A vida pulsa, persistente, posta e difusa.

E por mais que tentemos transformá-la, descrentes E confusos do que somos, por disparecer A face e o gozo da liberdade,

Suave o pássaro penetra a carne Da paisagem, que o sustenta, e o devolve, Em parte, pois dele também se alimenta.

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Soneto de orbe e de infinito

Agora faço a viagem, que raios itinerantes, qual espírito, Desentranham o sonho da matéria, enchem os espaços De onde o dia se põe aceso e solta os pássaros, Invadem a sala, mobíliam a casa de luz e de infinito.

Os pássaros itinerantes aliam-se aos ventos e aos rochedos E, nessa viagem, de corpo inteiro, cada dia seu coletam. Acordo então e ponho-me a pensar nesses segredos, Em todos esses obstáculos de ave que em nós se hospedam.

E a buscar respostas nessas rarefeitas estâncias, Do pêlo um desejo urgente cresce e me revista; Na boca a fala em dentes se recama no revôo

De palavras secas e esquisitas, qual energia Que cai nos poros e, liberta, como aves, se inicia Na colheita da vida que nos cerca e nos irradia.

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Soneto de todo o corpo lavado

Ao longo das margens, acerquei-me Do rio, que em minhas botas assentou. Busquei, assim, em suas rotas, de joelhos, Lavar o cansaço como se lavam as gaivotas

E os olhos de quem chorou; como lava o inverno. Ali, o corpo rompeu-se pus e ventania Para além do dia e das mãos que imitavam o inferno, Tomando-o da água, que não o embacia.

Menos até que isso: da água-mão que o embalsamava E o ungia; mesmo assim, o corpo, como um rio, seguia. Vestia-se de água e de vento, por fora e por dentro.

E a cada momento girava seu carrossel de espumas E trazia à terra toda o pasto das chuvas, As coisas todas como um inventário imenso!

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Dois sonetos da mudança

I

Mudar é, antes de tudo, ato de coragem. É revisitar-se por dentro de si: Procurar nessas coisas todas nossa possível imagem. Soltar os pássaros do canto feito no jardim.

Lançar-se como pedra entre forquilha Se atira ao longe de quem mira E que precisa de com o alvo alojar-se.

Mudar é, acima de tudo, Renovar o transitório da linguagem a cada Palavra que se atravanca sem a dinâmica Da mensagem ao ser decodificada.

Abrir-se, mas como a chave ao vestir-se De fechadura deva comprimir-se Sólida, firme, sob medida.

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II

No mudar deve haver força indômita, Qual a primeira mudança do menino Em homem, da semente em criança, Da vida em morte, assim por diante.

Que deva haver uma constante imutável Qual Deus que se supõe governar a humanidade, Tal questão aqui não há de ser

Resolvida nestes dois sonetos da mudança: Constato a liberdade que impregna a vontade humana No buscar suas forças, eterna procura Do açúcar vital que comungamos.

Mudar?! Certo é que passamos, invisivelmente, A semente que herdamos dessas praias Em que desaguamos mais que subitamente.

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O alimento precário

I

Lá vêm as naus de pau, lusitanas, Chacoalhando o mar, que as conduz: — Terra à vista! O homem não se engana. Deram-lhe o nome de Vera Cruz.

Da praia alguns homens nus Espreitavam a presença humana. Conheceriam o estrondo do arcabuz E a morte que por ele ufana.

Como se chega do ventre à criatura, Aqui, então, a colonização é chegada. Sobrevivente e nua, à palmada, Parindo assim a pedra duma Civilização de raças misturadas!

II

morrer de pátria patriota de medo morre-se de fome

morre-se em templos isentos do tempo da fome (adeus, ó Pátria, de Deodoro a Figueiredo!) morre-se de medo provinciano

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por isso não falo seu idioma sua palavra-goma cuspo meu ideogramazedo fluxo-carbonalis

armei assim o poema-garapa para alimentar-me garfo e faca e industrializar minha arca de palavras iluminada por vaga-lumes —zapa! zape! zapetrape! Leve, amiúde, um pássaro surge por detrás do açude

a palavra coleta suas larvas inanimadas e esconde-me sua face de poesia, quando o medo é maior que a fome, que não sacia, porque não alimenta, enfastia.

Zângão. A fêmea. A flor. O vôo prende-me à sua zoografia...

palavras brotam-se mumificadas nos casulos; poemas-estrumes lançam-se para além dos muros das orações, dos urros das canções, porque os poetas do futuro enganarão a morte, trairão as palavras. ― Mas abandonarão a Terra...

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