Lua Singela - Primeiro CD de Luís Capucho

September 16, 2017 | Autor: Rodrigo Contrera | Categoria: Música, Mpb, Luís Capucho, Compositor brasileiro
Share Embed


Descrição do Produto

O CD sobre o qual vou falar agora eu comprei naquela inesquecível noite que eu passei na Casa das Caldeiras, na Água Branca, num show do Catarse, onde vim travar contato com esse ser mítico que acabei conhecendo pessoalmente e com o qual travo um contato gostoso de criadores e admiradores mútuos. Falo do Luís Capucho, autor/compositor/pintor/artista cult de cepa extremamente original e com uma presença que escapa daquilo que tradicionalmente uma pessoa, qualquer uma, poderia esperar de um artista do seu porte. Dia 30 agora, ele me disse, rolará o lançamento do seu último CD, Poema Maldito, que ele me mandou (recebi hoje), e sobre o qual falarei até lá – e que tentarei ajudar a divulgar, também 1.
Para esta resenha, não irei apenas faixa por faixa, como costuma ir a maioria dos resenhistas que fazem o trabalho como se deve. Irei também fazer conexões entre o jeito de ser do Luís, sua história pregressa e a história de suas dificuldades, assim como o estilo que ele usa para se comunicar, das mais variadas formas, artísticas ou corriqueiras. Para isso devo usar também algo do que venho inferindo da leitura de seus livros, Cinema Orly, Rato e Mamãe me adora.
O Luís é um professor de português e literatura do ensino médio aposentado por invalidez (recupera-se da Aids e de um período longo de coma) que publicou seu primeiro livro, o Orly, narrando seus excessos nesse local onde rolava de tudo em termos de sexo homossexual, e depois mais dois, sobre outros assuntos. Além do Lua Singela, este primeiro CD, Capucho lançou também mais dois (o terceiro será lançado dia 30 de janeiro) e agora também ganha a vida vendendo suas pinturas, todas com o mote Vizinhas de trás, uma das quais eu comprei aqui de São Paulo (ele mora em Niterói).
O Luís admite que só consegue escrever sobre o universo gay, que é aquele que ele conhece. Mas lendo-o a gente não sente que seus livros devam ser necessariamente classificados como livros de literatura gay. O Luís, a meu ver, trata o universo gay com a mesma naturalidade com que um Edward Bunker, ex-criminoso, trata seu universo de criminalidade, o único que ele realmente conhecia e com o qual, mesmo deixando-o para se tornar um escritor de sucesso, lá nos Estados Unidos (ele foi o mr. Blue, de Cães de Aluguel, de Tarantino), ele até a sua morte realmente se identificava. O Luís faz, a meu ver, com seus livros e CDs, uma aproximação de seu universo com o mundo, digamos, tradicional, da forma mais natural possível, sem considerar o que ele fez ou faz ou vier a fazer como algo passível de ocorrer somente em guetos. A literatura e as músicas de Capucho não são criações de gueto (embora eu não saiba se ele concorda com isso).
"Lua Singela" compõe-se de 12 faixas. A primeira é a faixa-título e desde já aproxima o ouvinte a algo bem, digamos, "para baixo". Faixa lenta, com acordes demorados e em grande parte do tempo sujos, variando do elétrico (guitarra) ao acústico (violão), Lua Singela já mostra ao que veio nas primeiras estrofes ("Eu gosto daqueles que são maiores/ que me parecem ter mais suco/ têm os poros com mais seiva/ têm maior quantidade de sangue/ para me alimentar/ para me alimentar"). Fica claro desde já que ele fala de "eles" e que tudo parece se resumir, ao menos neste ponto, a corpos, a dimensões, à existência de suco, seiva e sangue, à necessidade que qualquer um tem de ser alimentado. Tudo perfeitamente coerente com Cinema Orly, onde o único que realmente ocorre (em termos de atos, embora haja uma camada interna que faz a diferença em tudo o que é expresso) é o sexo, puro e simples, sujo ou limpo, verdadeiro.
Mas a diferença entre o Luís e muito do que vejo por aí que tenta captar a atenção desse mercado gay que só faz crescer é que ele bem que poderia jogar essa pedra apenas no lago que é sua canção. Mas não faz isso, e o que faz ele o faz com uma integridade que dá para sentir que é totalmente sincera. Alguns exemplos de trechos de estrofes que aparecem logo a seguir: "Morto de fome"/ "Muito mais lindos"/ "Nada pra comer"/ "Não tenho onde morar"/ "Andar sem destino"/ "Dormir sob as marquises"/ "A lua enorme caindo atrás da cidade"/ "Ê, lua singela". Já o resto se repete. Algumas indicações ficam claras aqui, especialmente para quem costuma visitar o blog do Luís, XXXX. O Luís, como quem o visita sabe, tem um costume perfeitamente arraigado de, de repente, usar expressões sutis, suaves até, em acepções completamente originais, que só ele usa, por escrito ou verbalmente, em qualquer lugar, mesmo em mensagens por face, que só possuem, é claro, um destinatário. Como, por exemplo, Yahhhhhhhhhhhh, que ele não se cansa de teclar quando se refere a algo que ele realmente valoriza, ou como emoticons de extremo bom gosto, que expressam emoções mistas de orgulho e simpatia. Refiro-me, ao comentar tudo isso, é claro, ao "lindos", adjetivo que parece de certa forma deslocado, como se não devesse estar ali, mas que está, e que diz algo impossível de especificar, de colocar em alguma caixinha em particular. Os outros trechos de estrofe já parecem mais comuns, mas um aspecto cabe ser ressaltado a seu respeito: eles são comuns, sim, mas não expressam necessariamente uma exclusão que seria necessário combater ou tornar em bandeira, mas simplesmente uma situação pela qual nós, mortais, às vezes passamos, sem querer ou querendo mesmo. Eu, por exemplo, lembro-me, sempre que ouço Lua singela, de uma noite que passei no Bexiga, em São Paulo, lado a lado a uma garota enorme que, ao que parecia, queria me conhecer, e da qual me afastei para me refestelar embaixo de uma marquise para dormir, já que não havia mais ônibus para me levar para casa. Lembro-me sempre dessa noite, na qual, porém, quase nada aconteceu – a não ser aquilo mesmo, que me deixou uma impressão indelével, e que não morreu.
Sobre o estilo de cantar do Luís eu já falei naquele artigo que citei na nota 1 de rodapé deste texto. Mas aqui, sobre esta faixa, cabe notar como ele canta o refrão principal da canção de uma forma estranha, caindo, aos poucos, como se algo nele não quisesse morrer, e lutasse para se manter de pé. Não dá, sinceramente, para imaginar alguém cantando essa música em voz alta para causar boa impressão, ou para dizer que sabe cantar. O pessoal que ouvisse acharia que o cara tem algum problema, dado o jeito irregular e estranho, quase doente, de declamar essas palavras e essa mensagem, e que parece causar uma tristeza profunda em quem a admira, seja lá de qual lado o fizer. Logo em seguida, então, vem um Xalalá tão maravilhoso e estranho com o qual se estabelece um ar místico de rua suja e espírito destruído que, contudo, não nos deixa tristes, realmente tristes. É a forma por excelência de se dizer tudo sem falar nada. Há, nesse momento, na canção, o uso de coro (no tempo da fala principal, ou não) e outros instrumentos que criam uma aparência de eternidade corriqueira e inescapável para o qual nenhum otimismo ou pessimismo pode oferecer explicação ou mesmo solução, sequer passageira.
A segunda faixa, Fonemas, tem um estilo totalmente diferente da primeira. Seu esquema é o seguinte: por detrás de acordes sincopados de violão, surge um saxofone que dialoga com o Luís cantando Foneeeeeeeeeeeeeeeemas e frases encimadas por Que importam? e palavras expressando coisas a serem ligadas aos tais fonemas. A música toda segue essa estrutura, que lhe dá um caráter meio tosco mas ao mesmo tempo bem interessante, sem praticamente nada a acontecer, mas ao mesmo tempo incutindo no ouvinte uma curiosidade quanto ao significado desse jogo todo. Um ar de experimentalismo jogado por cima de uns acordes simples e bem trabalhados em conjunto com os aparentes improvisos do sax e a parte musicada como um todo. Dá quase para imaginar o Luís viajando no tema dos fonemas, importantíssimos para a compreensão da linguagem, e sua ligação com coisas reais, ligadas ao mundo real. Tudo no fundo parece algo ligado aos concretistas, que tudo questionavam por meio de jogos com a linguagem, seja lá qual a forma em que aparecesse.
Capixaba de Cachoeiro do Itapemirim, Luís costuma referir-se diversas vezes, em entrevistas ou nos seus livros, à sua criação em cidades pequenas, pela sua mãe. É este o caso da música Os Bichinhos, a terceira do cd. Nela, acompanhado de um violão grave e (aparentemente de propósito) mal-tocado, e de um coro feminino que faz um contraponto que beira o engraçado, Luís ambienta uma cidade qualquer, com árvores, rios pequenos, igreja no alto do morro e céu cheio de estrelas, o aparecimento de bichinhos, dos quais se lembrava, sim, mas de cujas ações não, não se lembrava. Interessante é que quando os bichinhos aparecem, aparece também uma guitarra que faz uns solos contidos, ao passo que ao final surge um coro que não expressa nada, ou na verdade algo mais parecido com um uh.... que não assume forma de qualquer vogal. Tudo isso dá uma ideia de singeleza e de algo parecido a nada a dizer.










1 Uma narrativa sobre minha descoberta de Capucho, que não foi me apresentado, nem pela vida, nem pela obra, por ninguém, de nossos contatos e encontro e de algumas características marcantes que sua mera presença provoca está em XXX. Irei fazer algo mais, outra narrativa, entrando mais em detalhes sobre algumas coisas que percebi na hora do nosso primeiro encontro e sobre ele e seu namorado, Pedro. Além disso, falarei em outro momento do lançamento, para o qual pretendo ir com uma amiga e um amigo, num carro alugado ou mesmo de ônibus, numa ocasião que desde já considero que vá ser marcante, por uma série de fatores que irei explicar naquele momento (começo desta frase).

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.