Lucubrações em torno do Estado de Direito

July 25, 2017 | Autor: Manuel Monteiro | Categoria: Direito Constitucional
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Lucubrações em Torno do Estado de Direito José Domingues (Universidade Lusíada – Porto) Manuel Monteiro (Universidade Lusíada – Porto)

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“Scire leges non hoc est verba earum tenere” (Celsus – D.1.3.17) Resumo Este trabalho assenta, sobretudo, na relação que hoje se vive entre o Direito e a Justiça, douta e perspicazmente, denominada revolta do Direito contra as leis. A lei, mesmo que provenha de órgãos políticos legítimos, pode prescrever soluções injustas, contrárias à natureza humana e a princípios que não podem estar dependentes do poder legislativo. Por isso, para melhor perspectivar o futuro, não será pouco recomendável um olhar para o passado memorável do princípio do Estado de Direito ou Estado de Justiça. Neste sentido, sem querer menosprezar quaisquer excelsos contributos, nomeadamente o da common law, o Direito Ibérico medieval ainda tem muito para nos ensinar. Palavras chave – Estado de Direito, Justiça, Direitos fundamentais, Direito medieval português, Direito Constitucional. Abstract This work is mainly based on the current relationship between Law and Justice, scholarly and perceptively called revolt of the Law against the laws. The law, even if it comes from legitimate political bodies, may prescribe inequitable solutions, contraries to the human nature and the principles that can’t be dependent on the legislature. Therefore, for a better view of the future, will not be unwise a look to the memorable past of the principle of the Rule of Law or State of Justice. In this sense, without wanting to underestimate any sublime contributions, namely the common law, the medieval Iberian Law still has a lot to teach us. Key words – Rule of Law, Justice, Fundamental Rights, Portuguese Medieval Law, Constitutional Law.

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A Lei pelo Direito e o Direito pela Justiça: 1. Quando Sólon instituiu uma constituição e promulgou novas leis em Atenas estipulando que, após a sua gravação nos kyrbeis e do juramento para o seu cumprimento futuro, os magistrados mais importantes, os arcontes, se comprometessem “a erguer uma estátua em ouro no caso de transgredirem algumas dessas leis”1, era evidente a sua intenção em conferir às normas legais um papel proeminente no governo da cidade. De igual modo quando defendeu ainda a existência de “certas restrições à actuação dos magistrados e dos cidadãos em geral, determinando que, mesmo numa acusação grave como a de se aspirar à tirania, o presumível traidor tivesse direito a julgamento, pelo que a pena só poderia ser aplicada depois da condenação judicial”2, Sólon manifestava a sua preocupação com a defesa de direitos que, séculos mais tarde, haveriam de incluir o rol de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos3. Muito distante vinha o tempo em que, quer a consagração do chamado primado da lei, limitando a acção dos detentores do poder político, quer a institucionalização dos direitos fundamentais, se imporiam nos ordenamentos jurídico-políticos dos Estados. Mas na indicação das fontes de tais princípios dificilmente poderemos desconhecer os importantes passos dados na Grécia Antiga, de que Sólon foi precursor. Mesmo que fossemos sensíveis aos seus críticos, que o acusaram de ter feito leis obscuras, atribuindo com isso um poder de decisão arbitrário ao povo através dos tribunais populares4, não poderíamos ignorar o seu relevante contributo para o estudo que no presente fazemos da realidade política e jurídica que dá pelo nome de Estado de Direito. É certo que ao identificarmos hoje este tipo de Estado como “aquele onde o poder não só tem o seu fundamento no direito, como também está, externa e internamente, limitado pelo mesmo direito”5, não estamos nem na forma nem no conteúdo a falar da mesma realidade6, porém isso ARISTÓTELES, Constituição dos Atenienses, 2ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2009, p. 30. 2 Delfim Ferreira LEÃO, Sólon – Ética e Política, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2001, p. 361. 3 Referimo-nos quer ao direito à liberdade e à segurança, quer à presunção de inocência. Cf. a título de exemplo a enunciação destes direitos na actual Constituição portuguesa, no art. 27º/2 e no art. 32º/2, respectivamente. 4 Crítica que Aristóteles refutaria considerando não ser “correcto julgar a intenção daquele a partir da realidade actual, mas sim do conjunto da sua constituição”, cf. ARISTÓTELES, Constituição, p. 34. No mesmo sentido o comentário de Delfim LEÃO ao afirmar a este propósito que “as leis pareceriam pouco claras a quem estava habituado a um sistema legal mais desenvolvido, mas daí não será correcto nem justo deduzir que o legislador tivesse consciência dessa obscuridade”. Ibidem, nota nº 31. 5 José Adelino MALTEZ, “Estado de Direito”, in José Adelino MALTEZ, Tópicos Políticos, http://maltez.info 6 Realidade que implica distinguir não só a Cidade-Estado do Estado, como ainda, aten1

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não impedirá que descubramos na Antiguidade Clássica parte fundamental das suas fundações. Fundações que estão presentes seja para dizermos que Estado de Direito “supõe a subordinação jurídica da actividade estadual a critérios objectivos de conduta”7, seja para afirmarmos que Estado de Direito pressupõe a existência de processos jurídicos que “se encontram diferenciados por diversos órgãos, de harmonia com um princípio de divisão do poder”8. Com efeito, e para lá do que fica assinalado quanto ao pensamento de Sólon, também Aristóteles nos legou neste domínio um contributo valioso. Fê-lo quando escreveu que “o discernimento e o respeito do direito constituem a base da vida política”9, pelo que “se é ilícito mandar sem qualquer direito, com mais forte razão o é contra todo o direito”10, o que, segundo o próprio, nos conduz à tese segundo a qual “num Estado bem ordenado, deve-se, (…), observar com cuidado que nada aí se faça contra as leis e os costumes”11; e fê-lo, de igual modo, no que concerne à divisão de poderes quando defendeu, antes de todos, que “em qualquer governo há três poderes essenciais a cada um dos quais o bom legislador deve dar lugar conveniente”12, esclarecendo que “o primeiro destes três poderes é o que delibera (…). O segundo compreende (…), aqueles de que o Estado tem necessidade para agir (…). O terceiro abrange as tarefas da jurisdição”13. Posição que levou Marnoco e Sousa a considerar ser “em Aristóteles que se encontram os primeiros delineamentos da theoria da divisão dos poderes revestindo ainda uma forma rudimentar e pouco precisa”14. Se é certo que para o antigo professor da Universidade de Coimbra a divisão de poderes em Aristóteles assumia, de acordo com as suas palavras, uma “forma rudimentar e pouco precisa”, não é menos certo o explícito reconhecimento que faz ao filósofo estagirita nesta matéria. Reconhecimento esse que consideramos essencial para uma global compreensão quanto aos primórdios da defesa dos princípios que orientam e preenchem dendo principalmente ao objecto do nosso trabalho, as distintas perspectivas sobre o que há-de entender-se por Lei e por Direito na sua relação com os titulares do poder político, não esquecendo que nenhum Estado, seja qual a forma que adopte, “existe à margem do Direito (…) e nenhum governante deixa de estar vinculado às normas jurídicas que o titulam como tal – às «Leis Fundamentais» de que se fala nessa época”. Cf. Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, I, 9ª ed., Coimbra Editora, Coimbra 2011, p. 87. 7 Miguel Galvão TELES, “Estado de Direito”, Polis, Verbo, Lisboa/São Paulo 1984, pp. 1187. 8 Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, IV, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra 2008, p. 217. 9 ARISTÓTELES, Tratado da Política, Mem Martins, Publicações Europa América, 1997, p. 9. 10 Idem, ibidem, p. 47. 11 Idem, ibidem, p. 175. 12 Idem, ibidem, p. 96. 13 Idem, ibidem. 14 Marnoco e SOUSA, Direito Político, França Amado-Editor, Coimbra 1910, p. 56.

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a ideia de Estado de Direito e de um Estado de Direito percepcionado em função de critérios de natureza axiológica. Se hoje para muitos a expressão Estado de Direito configura o culminar de um processo evolutivo no pensamento desenvolvido a partir de Locke (16321704)15 e de Montesquieu (1689-1755)16, e na acção política desenvolvida a partir das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), há-de reconhecer-se que esse processo não teve inicio nem no séc. XVII, nem no séc. XVIII. Reportando-se a um sistema que compreende “a autoridade da lei, a separação dos poderes legislativo, executivo e judicial, e instituições representativas tendo em vista a protecção dos direitos individuais e colectivos”17, os princípios subjacentes à maioria destas ideias, que preenchem o conceito de Estado de Direito, não podem deixar de ser primordialmente perscrutados na Grécia Antiga. Recordamos, acrescendo ao que anteriormente foi mencionado, ser já em Aristóteles que pode ser encontrada uma preocupação distintiva entre as noções de Constituição e de lei. Ao afirmar que “a Constituição é a ordem ou distribuição dos poderes que existe num Estado, (…), a maneira como aí estão distribuídos”18 e que “as leis não são a mesma coisa que os artigos fundamentais da Constituição: servem unicamente de regras para os magistrados, para o exercício do mando e para conservar em respeito os refractários”19, Aristóteles inicia e antecede um debate travado muitos séculos depois. 2. Do mesmo modo, e cerca de cinco séculos antes das mencionadas revoluções americana e francesa, devemos a Inglaterra decisivos passos dados na direcção que haveria de conduzir ao Estado de Direito – tal como na actualidade, no que aos seus princípios estruturantes respeita, consensualmente o entendemos. Se é verdade que desde finais do séc. XVIII até ao presente muitas e substanciais alterações foram encetadas e produzidas na definição e no conteúdo de e do Estado de Direito20, não se nos afigura irrelevante o testemunho dado no séc. XIII Com a sua importante obra “Dois Tratados sobre o Governo”, publicada em 1689, com particular destaque para o segundo desses tratados. 16 Com a sua também importante obra “O Espírito das Leis”, publicada em 1748. 17 Howell A. LLOYD, «Le constitutionnalisme», in James Henderson BURNS, (dir.), Histoire de la Pensée Politique Moderne (1450-1770), PUF, Paris 1997, p. 230. Tradução nossa. 18 ARISTÓTELES, Tratado da, p. 122. 19 Idem, ibidem. 20 Situação assinalada por Bacelar Gouveia ao referir que o Estado de Direito “no seu percurso ao longo de dois séculos de Constitucionalismo, e na passagem do Estado Liberal ao Estado Social, permite sintetizar os seguintes sub-princípios que melhor o densificam: - o princípio da dignidade da pessoa humana; - o princípio da juridicidade e da constitucionalidade; - o princípio da separação de poderes; - o princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança; - o princípio da igualdade; - o princípio da proporcionalidade”. Cf. Jorge Bacelar GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, 4ª ed., vol. II, Almedina, Coimbra 2011, p. 797. 15

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pela Magna Carta e que, na essência, mantém justificado relevo21. Como assinala Caenegem, “a mensagem fundamental do documento, (…), é tão plena de significado hoje como em 1215, ou seja o princípio de que os governos são obrigados a actuar em conformidade com o direito e de que os súbditos (em 1215, os «homens livres») são protegidos por este nas suas pessoas e bens”22. Dos seus sessenta e três artigos, consagrados à definição de um vasto conjunto de liberdades e à instituição de limites ao exercício do poder, evidenciamos quatro aspectos que no nosso entendimento reforçam a perspectiva de actualidade referida e que são na maior parte dos casos, ou continuam a ser, dados adquiridos e incontestados nos textos constitucionais dos regimes democráticos e em particular dos Estados que integram a União Europeia: (i) a ideia de que não podem existir impostos sem o consentimento dos tributados; (ii) a defesa de bens móveis e da propriedade privada; (iii) a salvaguarda do direito à liberdade e à segurança; (iv) a liberdade de circulação. O primeiro aspecto está presente no artigo 12º quando estipula: “não lançaremos taxas militares ou tributos no nosso Reino sem o consentimento geral”23. A defesa de bens móveis e da propriedade privada encontra-se, entre outros, prevista nos arts. 28º, 30º e 31º. No art. 28º ao preceituar que “nenhum capitão ou bailio nosso tomará grão ou outros bens móveis de qualquer pessoa, sem os pagar imediatamente…”24; no art. 30º ao definir que “nenhum corregedor, bailio ou outra pessoa poderá tomar de um homem livre cavalos ou carros de transporte sem o consentimento daquele”25; e no art. 31º ao prescrever que “nem Nós nem os nossos bailios levaremos lenha para o nosso castelo ou com qualquer outra finalidade sem o consentimento do dono”26. O terceiro aspecto, referente à salvaguarda do direito à liberdade e do direito à segurança, encontra-se claramente enunciado no art. 39º. Determina este artigo da Magna Carta que “nenhum homem livre poderá ser detido ou encarcerado, ou privado dos seus direitos ou dos seus bens, nem considerado fora-da-lei, nem desterrado ou privado da sua posição de qualquer forma, (…), a não ser em virtude de sentença judicial dos seus pares e de acordo com a lei do Reino”27. Por último, a liberdade de circulação28 surge prevista no art. 42º, com uma Para uma consulta integral do texto da Magna Carta cf. Jorge Bacelar GOUVEIA, As Constituições dos Estados da União Europeia, Vislis Editores, Lisboa 2000, pp. 611 - 622. 22 R. C. Van CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito Constitucional Ocidental, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2009, p. 107. 23 Jorge Bacelar GOUVEIA, As Constituições dos Estados, p. 613. 24 Ibidem, p. 615. 25 Ibidem, pp. 615 – 616. 26 Ibidem, p. 616. 27 Ibidem, pp. 616 – 617. 28 Associada à liberdade de circulação merece referência a liberdade de comércio e de es-

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extensão e alcance que só muito recentemente encontrou paralelo nas disposições constitucionais dos Estados livres e democráticos29. De acordo com este artigo é assegurada a livre circulação de pessoas excepcionando-se apenas situações específicas decorrentes de momentos de guerra ou de condenação prévia dos cidadãos. São os seguintes os seus termos: “Doravante, qualquer homem poderá deixar o nosso reino e voltar sem sofrer danos e sem temor, por terra ou por mar, mantendo o seu vínculo de fidelidade para connosco…”30. Mas da Inglaterra não recebemos apenas a Magna Carta como documento marcante na definição de liberdades e na submissão do poder político à lei com a consequente limitação no exercício desse mesmo poder. Assim, e para além de outros relevantes textos integrantes do património constitucional inglês31, merece-nos destaque a Declaração de Direitos, de 1689, (o Bill of Rights). Esta Declaração é por muitos considerada “um elo importante na longa cadeia que conduz da Magna Carta medieval às modernas Declarações de Direitos do Homem”32, sendo apresentada como um documento que contém os “princípios fundamentais do rule of law (primado do direito)”33. Surgindo em reacção aos atropelos praticados que “usurpando e exercendo o poder de dispensar das leis, de adiar a sua entrada em vigor e o seu cumpritabelecimento, tal como consta do art. 41º: “Todos os mercadores poderão, em paz e em segurança, sair, entrar, permanecer e percorrer a Inglaterra, quer por terra, quer por água, para comprarem ou venderem, de acordo com os costumes antigos e justos e sem terem de pagar impostos devidos”. Ibidem, p. 617. Trata-se de um princípio que apesar de ser actualmente apresentado, em muitos fóruns, como decorrente das conquistas derivadas do processo de integração europeia (cf. a este propósito os arts. 45º - 55º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, relativos à livre circulação dos trabalhadores e ao direito de estabelecimento), surge formalmente consagrado na Idade Média, em Inglaterra. 29 Saliente-se, a título exemplificativo, que nem a Constituição americana de 1787 integrou uma disposição similar já que definia na Secção 9ª, do art. 1º, que “a migração ou a admissão de indivíduos, que qualquer dos Estados ora existentes julgar conveniente permitir, não será proibida pelo Congresso antes de 1808; mas sobre essa admissão poder-se-á lançar um imposto ou direito não superior a dez dólares por pessoa”. Cf. Thomas M. COOLEY, Princípios Gerais de Direito Constitucional nos Estados Unidos da América, Russell Editores, Campinas/SP 2002, p. 350. Em Portugal, no plano dos textos constitucionais, coube primeiro à Carta Constitucional de 1826, no § 5º, do art. 145º, dispor sobre esta matéria esclarecendo que“qualquer pode conservar-se, ou sair do Reino, como lhe convenha, levando consigo os seus bens; guardados os Regulamentos policiais, e salvo o prejuízo de terceiro”. Cf. Jorge MIRANDA, As Constituições Portuguesas de 1822 ao Texto Actual da Constituição, Livraria Petrony, Lisboa 2004, p. 99. 30 GOUVEIA, As Constituições dos Estados, p. 617. 31 Tais como a Petition of Rights, de 1628, e o Act de Habeas Corpus, de 1679. 32 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito, p. 147. 33 Idem, ibidem. Para uma consulta integral do texto desta Declaração cf. GOUVEIA, As Constituições dos Estados, pp. 630-633.

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mento, sem autorização do Parlamento”34 e pugnando pelo impedimento da violação dos direitos e das liberdades, a Declaração espelha uma identidade digna de realce com os princípios hoje sustentados na apresentação do que é, ou deve ser, um Estado de Direito. Quando Afonso D` Oliveira Martins nos diz que “a ideia de Estado de Direito (…) associa-se ao imperativo do respeito e da garantia dos direitos e liberdades fundamentais (e desde logo de salvaguarda da dignidade da pessoa humana) assim como aos princípios da constitucionalidade e da legalidade, (…), sem esquecer o imperativo de independência dos tribunais”35, percebemos que a essência desta ideia já pode ser encontrada na Declaração de Direitos inglesa, de 1689. Vejamos, em sustentação do que afirmamos e tendo sempre em consideração a época em que a Declaração foi redigida, o seguinte: (i) o imperativo do respeito e da garantia dos direitos e liberdades fundamentais revela-se nos arts. 5º e 10º. No art. 5º ao mencionar “que é direito dos súbditos apresentar petições ao Rei, sendo ilegal qualquer prisão ou processamento dos peticionários”36; no art. 10º quando se explicita “que não se deve exigir fianças exageradas, impor multas excessivas ou aplicar castigos cruéis ou desusados”37. (ii) uma certa ideia de salvaguarda da dignidade da pessoa humana, poderá também estar presente no art. 10º. É certo que de acordo com o que hoje entendemos por tal princípio, nomeadamente em Portugal que aboliu a pena de morte pela Lei de 1 de Julho de 186738 (abolição extensiva aos crimes militares, a partir do Decreto com força de lei de 16 de Março de 1911), o âmbito desta disposição é manifestamente restrito39, todavia isso não nos impedirá de o entender, repetimos, no contexto da sua publicaGOUVEIA, As Constituições dos Estados, p. 630. Afonso D`Oliveira MARTINS, La Revisión Constitucional y el Ordenamiento Portugués, Edições estado & direito, Lisboa-Madrid 1995, p. 305. 36 GOUVEIA, As Constituições dos Estados, p. 632. 37 Ibidem. 38 Abolição, como referiu Meneres Pimentel, tributária da ideia de que “o Direito português sempre se caracterizou por uma cultura penal benigna (…). Desde o século XVIII foram abolidas as penas cruéis e as penas corporais, (…). A Carta Constitucional de 1826 extinguiu definitivamente as penas corporais, e o Acto Adicional de 1852 a pena de morte em relação aos crimes políticos, depois alargada a todos os crimes não militares pela Carta de Lei de 1 de Julho de 1867”. Cf. José Meneres PIMENTEL, Instituto de Reinserção Social – Relatório especial do Provedor de Justiça à Assembleia da República 1997, Provedoria de Justiça – Divisão de Documentação, Lisboa 1997, p. 17. 39 No Reino Unido a pena de morte só seria abolida em 1965, “cerca de cem anos depois desde a abolição da pena de morte em (…) Portugal.”. Cf. Frank DAWTRY, The Abolition of the Death Penalty on Britain, London, The British Journal of Criminology, vol. 6, nº 2, 1966, p. 183. Tradução nossa. 34 35

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ção. Estando aqui em causa, como bem esclarece Caenegem, “a proibição de – punições cruéis ou desusadas –, i.e., da justiça criminal arbitrária”40, não deixa de estar também implícita uma defesa da salvaguarda da dignidade da pessoa humana. (iii) a defesa da legalidade está presente, principalmente, logo no art. 1º, esclarecendo-se que ninguém, inclusive o Rei, está acima da lei. Segundo o art. 1º “é ilegal o pretendido poder de suspender as leis e a aplicação das mesmas, em virtude da autoridade real e sem o consentimento do Parlamento”41. (iv) quanto ao imperativo da independência dos tribunais podemos entender que, segundo o texto do art. 3º, “a Comissão para instituir o alto Tribunal das causas eclesiásticas e as restantes comissões e tribunais da mesma natureza são ilegais e perniciosos”42, indo no sentido de condenar a parcialidade dos tribunais instituídos e ao propugnar a respectiva substituição, visa garantir a sua independência face à Coroa. No fundo os signatários da Declaração de Direitos pretendiam também deixar claro, que a Coroa teria de saber respeitar o princípio da separação de poderes, aquele que muitos séculos depois continua a traduzir “uma das mais antigas projecções do Estado de Direito”, um princípio que “é dos poucos temas que o tempo e o uso não tornaram gastos”43. Tratava-se afinal, não apenas de contrariar tendências absolutistas por parte do Rei que colocassem em causa a posição do Parlamento, mas também de rejeitar qualquer ideia de uma monarquia arbitrária44. Sabemos que a posição até aqui apresentada por nós, quanto à importância do legado inglês na construção do actual Estado de Direito, é habitualmente relativizada, quando não contestada, por uma parte considerável da doutrina. Lendo por exemplo Jellinek, no seu estudo comparativo entre as declarações de direitos francesa e americana, e americana e inglesa45, percebemos o sentido de uma abordagem e reflexão que tem logrado obter amplo acolhimento, inclusive num substancial sector da doutrina portuguesa. Ressalta a ideia de que não pode ser comparável o que é incomparável, uma vez que de um lado, do Bill of Rights inglês, está a perspectiva de institucionalizar tão somente direitos históricos, direitos do passado; enquanto do CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito, p. 148. GOUVEIA, As Constituições dos Estados, p. 631. 42 Ibidem. 43 Jorge Bacelar GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, 4ª ed., vol. II, Almedina, Coimbra 2011, p. 811. 44 Sobre as diferenças entre a monarquia absoluta e a monarquia arbitrária cf. J.-P. SOMMERVILLE, «Absolutisme et royalisme», in James Henderson BURNS, (dir.), Histoire de la Pensée Politique Moderne (1450-1770), PUF, Paris 1997, pp. 333 – 339. 45 George JELLINEK, La Déclaration des Droits de l`Homme et du Citoyen, Albert Fontemoing, Éditeur, Paris 1902, pp. 45 – 69. 40 41

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outro, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa (1789) e do Bill of Rights americano (1791), mesmo que entre estas últimas sejam assinaladas diferenças, está uma outra concepção e visão. Concepção e visão que projectam objectivos distintos! A declaração de direitos inglesa procuraria a defesa do que existia ou já tinha existido, as declarações de direitos americana e francesa procurariam a defesa do que deveria passar a existir. No dizer de Jellinek, “as leis inglesas que estatuem sobre os direitos dos súbditos (…), são a confirmação, a interpretação, de um direito preexistente. Mesmo a Magna Carta não contém nenhum direito novo”46. Continuando neste raciocínio o autor afirma que, “as leis inglesas (…), não têm nem o poder, nem a intenção de limitar o poder legislativo (…). De acordo com o direito inglês, o Parlamento tem todo o poder e todas as leis que ele fez ou confirmou possuem o mesmo valor”47. Já em sentido oposto, “as declarações americanas, (…), contêm regras que são superiores ao poder legislativo ordinário”48. Ora estas díspares posições conceptuais conduzirão a caminhos com acepções diversas sobre o poder constituinte, logo, sobre o papel e posição da Constituição49 no ordenamento jurídico-político dos Estados, o que reflectirá compreensões variadas sobre a noção de Estado de Direito e principalmente sobre o conteúdo que a integra. Não será assim de estranhar, como dissemos, que muitas reflexões quanto à génese dos princípios orientadores do Estado de Direito tendam a relativizar, ou até ignorar, o contributo dos textos constitucionais ingleses. E isso sucederá seja por considerarem que eles se limitam a transcrever e a evocar direitos de forma retrospectiva, seja pelo facto de em Inglaterra não fazerem distinção formal entre esses textos e as demais leis, seja ainda pela circunstância de ao parlamento não ser exigido qualquer procedimento especial para alterar as disposições desses textos. Em síntese, e de acordo com esta posição, as declarações de direitos inglesas, nomeadamente a Magna Carta e o Bill of Rights, não preencheriam os requisitos Idem, ibidem, pp. 48 – 49. Tradução nossa. Idem, ibidem, p. 49. Tradução nossa. 48 Idem, ibidem. Tradução nossa. 49 Surgindo em decorrência destas posições, segundo Gomes Canotilho, três modelos “três experiências histórico-constituintes”: a inglesa, a americana e a francesa, que se traduzem respectivamente nas ideias de revelar, de dizer, de criar, a Constituição. Pela primeira a Constituição revela-se, ou seja o que se visa não é a criação de uma nova lei fundamental, “mas sim (…) confirmar a existência de “privilégios e liberdades” radicados em “velhas leis” de direito (…), num corpus costumeiro de normas e num reduzido número de documentos escritos.”; pela segunda a Constituição, assumindo o papel “de garantir direitos e de limitar poderes”, serve “Para “registar” num documento escrito um conjunto de regras invioláveis”; pela terceira, a Constituição surge para “criar uma nova ordem política e social, prescritivamente dirigida ao futuro mas, simultaneamente, de ruptura com o “ancien regime”. Cf. J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 9ª reimpressão, Almedina, Coimbra 2003, pp. 68 – 72. 46 47

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para serem consideradas verdadeiras declarações de direitos dos cidadãos, nem garantiriam a plena limitação do poder, podendo pois duvidar-se da submissão real deste ao direito. Seguindo então esta orientação, a linha de sucessão directa que vimos procurando estabelecer até ao actual Estado de Direito estará afectada? Se mantivermos a via de Jellinek a resposta parece ser afirmativa. Percebemo-lo quando o próprio, a propósito das fontes das declarações de direitos dos Estados americanos que viriam a integrar a Confederação, em particular o Estado da Virgínia, nos diz que só “um exame superficial pode obter uma resposta fácil”50. Pelo seu raciocínio “o nome indica a fonte inglesa. O «bill of rights» de 1689, o «HabeasCorpus» de 1679, a «petição de direito» de 1627 e por fim a «Magna Carta», parecem ser os precursores incontestáveis do «bill of rights» da Virgínia”51. Mas, nada mais errado segundo o autor porque, apesar de todas as semelhanças e da influência que os legisladores americanos terão recebido de Inglaterra, “um abismo separa as declarações americanas e as leis inglesas mencionadas”52, pelas razões que já tivemos oportunidade de citar53. Respeitando o ilustre pensador não é esta a posição que entendemos seguir e lembramos Gilissen para afirmar que “nem a França nem a América inventaram o Bill of Rights: os Estados da América do Norte não fizeram outra coisa senão continuar a tradição da Inglaterra, onde uma série de disposições legais asseguraram progressivamente as garantias de direitos aos súbditos do rei: a Petition of Rights de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679, (…), o Bill of Rights de 1689”54. Justifica-se pois que não façamos cortes na ligação entre a primeira Declaração de Direitos surgida em terras americanas, a Declaration of Rights made by the Representatives of the good people of VIRGINIA55, e o Bill of Rights inglês, mantendo, em consequência, o rumo inicialmente traçado56. Isso não pressupõe que desconheçamos as diferenças, os contextos e as ambições, que estiveram na base da redacção destes documentos e daqueles que se lhes sucederam, mais remota ou mais recentemente,57 relacionados com a matéJELLINEK, La Déclaration des Droits, p. 47. Idem, ibidem. 52 Idem, ibidem, p. 48. 53 supra pp. 9 -10. 54 John GILISSEN, Introdução Histórica ao Direito, 6ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2011, p. 429. 55 Cf. texto integral in Constitution of the State of Virginia and The Ordinances, Alexandria, D. Turner, Printer to the State, 1864, pp. 3–5. 56 Também neste sentido Vieira de Andrade ao considerar que “estes direitos dos ingleses são transplantados para os territórios coloniais e vão aí frutificar na Revolução americana como direitos dos homens”. Cf. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4ª ed./Reimpressão, Almedina, Coimbra 2010, p. 23. 57 Seja no âmbito das declarações de direitos do homem, como a Declaração dos Direitos 50 51

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ria em apreço. Contudo, uma coisa será não percebermos ou desconhecermos as diferenças58, outra será considerar que os princípios que hoje enformam o Estado de Direito devem a sua paternidade apenas, ou quase exclusivamente, a uma data fixa, a um único pensamento, a um exacto contexto político-social, a uma revolução. No nosso entender, os princípios da defesa dos direitos do homem, da submissão do Estado ao Direito e da separação de poderes, derivam de um processo evolutivo59 cujo inicio é anterior quer em termos de pensamento, quer em termos de acção, à segunda metade do séc. XVII e à segunda metade do séc. XVIII, respectivamente. E nestes termos não deveremos aceitar que a matriz fundacional dos princípios assinalados, enquanto princípios identificadores do Estado de Direito, seja posterior, ou essencialmente posterior, a todo o pensamento desenvolvido ao longo de muitos séculos, nomeadamente em Inglaterra. As especificidades próprias dos Estados e o modo como em seu nome eles se organizam jurídica e politicamente, assegurando a pluralidade, o respeito dos direitos individuais e a livre escolha dos seus representantes, implica que, sem escamotearmos o que não é igual, saibamos encontrar o que têm em comum. Se não o fizéssemos estaríamos a correr o risco de considerar que só há Estado de Direito onde existem Constituições escritas ou onde o exercício do poder legislativo dos parlamentos democráticos, se manifesta de forma distinta da praticada em terras britânicas. A submissão do Estado ao Direito, a efectiva limitação do poder a esse mesmo Direito e a defesa dos direitos e liberdades dos cidadãos, aferir-se-ão mais pelo que podemos, ou devemos, entender por Direito, logo por Estado de Direito, do que pela qualificação das normas jurídicas, pela maior ou menor facilidade dos Parlamentos para as aprovarem e alterarem e, por fim, pela preocupação de definir mais ou menos direitos fundamentais. do Homem e do Cidadão, de 1789, o Bill of Rights americano, de 1791 (correspondendo às primeiras dez Emendas à Constituição americana de 1787) e a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948; seja no âmbito das Constituições escritas. 58 Diferenças que, como refere Caenegem, podem ser assinaladas entre os textos dos revolucionários americanos e franceses. Segundo este, “os revolucionários americanos (…) apesar de olharem para o futuro, inspirados pelo moderno iluminismo, atribuíam grande importância ao antigo common law inglês. Os revolucionários franceses não praticavam este tipo de olhar nostálgico: o passado não possuía para eles qualquer atracção, e a crença no progresso e a vontade de inovar eram preponderantes”. Cf. CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito, p. 220. 59 Evolução que não podemos deixar de sublinhar nas ligações existentes entre a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão e o Bill of Rights do Estado da Virginia; bem como entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e a própria Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos, e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Cf. a este respeito CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito, pp. 220 – 221.

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3. Feita uma análise sumária quanto à génese dos princípios estruturantes do Estado de Direito, em épocas anteriores à revolução americana e à revolução francesa, importa agora que percebamos a que realidade nos estamos a referir quando falamos de Estado de Direito nos regimes democráticos. E importa que o façamos não sem antes recordarmos, que o conceito de Estado de Direito foi não só no passado, como ainda é no presente, objecto de múltiplas interpretações e sentidos e de que já demos anteriormente alguns testemunhos. Se épocas existiram em que Estado de Direito terá significado apenas “todo o Estado que respeita sem condicionalismos o Direito objectivo vigente e os direitos subjectivos que existam”60, outras se lhe seguiram apontando para “um Estado em que toda a actividade administrativa, principalmente da polícia, se encontre submetida à lei, e em que só em função desta sejam admitidas ingerências na liberdade de cada individuo”61. Ideias estas que surgirão desfasadas diante os que passaram a falar de Estado de Direito como “o Estado em que, para garantia dos direitos dos cidadãos, se estabelece juridicamente a divisão do poder e em que o respeito pela legalidade (…) se eleva a critério de acção dos governantes”62, ou até ultrapassadas face aos que agora nos dizem que “o Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; o Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático”63. Queremos com isto dizer que sob a capa de um Estado submetido ao Direito, com um catálogo mais ou menos extenso de direitos, liberdades e garantias, e com uma separação de poderes que não corresponda a um mero formulário, ainda que esse formulário dê pelo nome de Constituição, a apresentação que no presente nos surge pode revestir várias formas. Uns falam-nos de Estado de Direito para identificar aquele que se assume como “Estado de Constituição”, “Estado de Direitos Fundamentais”, “Estado Laico” e “Estado Democrático e Republicano”64; outros referem-se a Estado Constitucional, representativo ou de Direito, dizendo que Estado Constitucional será o que está “assente numa Constituição fundadora e reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder”65; outros ainda, procurando realçar a necessidade da existência do Carl SCHMITT, La Notion de Politique – Théorie du Partisan, Flammarion, Paris 1992, p. 141. 61 Idem, ibidem, p. 142. 62 Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, I, 9ª ed., Coimbra Editora, Coimbra 2011, p. 95. 63 J. J. Gomes CANOTILHO, Vital MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed.,Coimbra Editora, Coimbra 2007, p. 204. De sublinhar que a este propósito Jorge Miranda refere que “Estado de Direito democrático traduz a confluência de Estado de Direito e democracia”. Cf. MIRANDA, Manual de Direito, IV, p. 227. 64 Jorge Bacelar GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, 4ª ed., vol. I, Almedina, Coimbra 2011, p. 200. 65 MIRANDA, Manual de Direito, I, p. 95. 60

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elemento legitimador para que possamos com propriedade falar de Estado de Direito, advertem-nos para o facto de existirem “Estados de direito sem qualquer legitimação em termos democráticos”66. Das definições apresentadas ressaltam ideias força que julgamos relevante salientar, para uma melhor compreensão do conceito na actualidade: (i) Estado de Direito será um Estado que possui uma Constituição, sendo de considerar que essa Constituição tanto pode traduzir “a ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político67, como a situação “em que uma grande parte das regras sobre organização do poder político é consuetudinária; e, (…) a unidade fundamental da Constituição não repousa em nenhum texto ou documento, mas em princípios não escritos”68; (ii) Estado de Direito é um Estado democrático, no sentido que existe “legitimação democrática do poder”69, significando isso: a) que os representantes políticos são eleitos pelos cidadãos eleitores; b) que a actuação dos titulares dos cargos políticos está sujeita a fiscalização “seja por aquilo que fez e não deveria ter feito ou não deveria ter feito como fez, seja por aquilo que não fez e se impunha, em termos de juridicidade ou de boa conduta, que tivesse feito”70. Este Estado de Direito, com as características enunciadas é, repetimos, um Estado em que o poder político se submete ao Direito; um Estado no qual vigora a separação de poderes, como condição essencial para que a limitação do poder se possa manifestar; e é um Estado que assume o respeito pelos direitos dos homens, como um dos elementos centrais da sua existência. Mas se à primeira vista o que fica dito parece consensual e capaz de reunir pessoas das mais variadas proveniências, pensamentos e credos, impõe-se que esclareçamos qual o significado que damos às expressões e termos utilizados. Fá-lo-emos com as limitações próprias do âmbito deste trabalho, procurando todavia fazer incidir a nossa abordagem em torno de duas questões: (i) o sentido e alcance do direito a que o Estado de direito, democrático e constitucional, se submete ou deve submeter; CANOTILHO, Direito Constitucional, p. 93. Advertência que o autor complementa referindo que “a ‘domesticação do domínio politico’ pelo direito faz-se de vários modos e, por isso, devemos ter cuidado em identificar conceitos como Rechtsstaat, Rule of Law, État légal, não obstante todos procurarem alicerçar a juridicidade estatal”. Ibidem. 67 CANOTILHO, Direito Constitucional, p. 52. Acrescente-se que para Gomes Canotilho “o Estado constitucional é «mais» do que Estado de direito”. 68 MIRANDA, Manual de Direito, I, pp. 129-130. Sobre este tipo de Constituição, característico do Reino Unido, cf. Ivor JENNINGS, A Constituição Britânica, Editora Universidade de Brasília, Brasília 1981. 69 CANOTILHO, Direito Constitucional, p. 98. 70 Paulo OTERO, Direito Constitucional Português, vol. II, Almedina, Coimbra 2010, p. 80. 66

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(ii) o sentido e alcance dos direitos dos homens, que o Estado de direito, democrático e constitucional, se propõe respeitar e defender ou se deve propor respeitar e defender. (i) Quanto à primeira questão afigura-se-nos pertinente a análise segundo a qual “muitos ainda continuam a confundir o Estado de Direito com o mero Estado de Legalidade”71, afastando-se da ideia de que “não se pode dar o nome de Direito a qualquer normação da sociedade através da lei do Estado” e que “mesmo em democracia política e em Estado regido pela Constituição, os discursos políticos das maiorias (…), enunciados sob a forma de normas legais publicadas no Diário da República, não são por si só, regras de Direito”72. Do que se tratará afinal é de perceber a que ideia de direito nos estamos a reportar quando evocamos a existência de um Estado de Direito e principalmente em momentos em que “o direito, enquanto lei, é a principal fonte de manutenção no poder político de quem o exerce em nome do povo”73. Reportamo-nos à ideia da escola positivista segundo a qual “todo o direito está na lei”, pelo que “só o legislador, agindo em nome da nação soberana, tem o poder de elaborar o direito”74, não sendo por isso de aceitar qualquer outra fonte de Direito para além da lei que provém da vontade do referido legislador ou, em direcção contrária, assumimos que “o direito é, (…), coisa diferente da lei”75? A pergunta não será de somenos atentos às repercussões concretas e aos efeitos práticos na vida das pessoas, e das respectivas comunidades, que da resposta podem surgir. Tudo dependerá, reiteramos, se entendemos que “o Direito não é todo o conjunto de regras que disciplinam as relações entre as pessoas numa certa comunidade”, assumindo que para esse conjunto de regras se chamar “Direito terá de preencher um conjunto de requisitos mínimos na defesa do homem e de concretização da justiça universal ou geral”76, ou se consideramos que “não há outro direito senão aquele que provém do Estado, que é a expressão do Estado, que é a expressão da vontade do Estado”77, pela simples razão que “Direito em sentido MALTEZ, «Estado de Direito». Refere ainda Adelino Maltez que “o tópico Estado de Direito é bastante mais problemático que o simples primauté de la loi ou que o mero princípio da legalidade, conceitos com que a doutrina positivista o tentou aprisionar nas teias do mero juridicismo”. 72 Eduardo VERA-CRUZ, Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito, Principia, Lisboa 2010, pp. 185 – 186. 71

Idem, ibidem, p. 188. GILISSEN, Introdução Histórica, p. 516 75 Idem, ibidem, p. 518. 76 VERA-CRUZ, Curso Livre de Ética, p. 191. 77 Observações feitas por Georges BURDEAU †, Francis HAMON, Michel TROPER, na sua análise distintiva entre o direito positivo e o direito natural. Cf. Georges BURDEAU †, Francis HAMON, Michel TROPER, Droit Constitutionnel, 25 ͤ ed., Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris 1997, p. 84. Tradução nossa. 73 74

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verdadeiramente eficaz é somente aquele que uma lei pode assegurar ao seu possuidor, obrigando os mais a respeitá-lo e a absterem-se de violá-lo”78. Seguindo o primeiro caminho manifestamos a concepção de que o Direito não se esgota na lei e de que esta, enquanto vontade sempre subjectiva de quem em determinado momento detém o poder legislativo, não é sinónimo exclusivo de justiça. A justiça é o padrão, o limite, para a actuação do poder em geral e do poder legislativo em particular79; seguindo a segunda perspectiva, seguimos o juízo de que só a lei, e nada mais do que a lei, é pressuposto de justiça80, ou seja, aceitamos reduzir “o critério de justiça (…) à legitimidade dos meios (procedimentos de feitura das normas)”81. No fundo, o que está em causa para quem adopte o primeiro caminho é sustentar que “a lei não gera Direito, antes é o Direito que faz nascer a lei, porque a lei descreve o Direito82, e sendo o fim do direito, como defende Picard, a justiça, fazer a análise daquele sem esta percepção é esquecer que o direito pode funcionar num “estado de impostura ou de incongruência, no estado de mentiras sancionadas pela lei”83. Assume-se que a lei, mesmo que provenha de órgãos políticos legítimos, pode prescrever soluções injustas, contrárias à natureza humana e a princípios que não podem estar dependentes de quem governa. Prossegue-se na linha do que escreveu Leo Strauss, quando disse “que faz sentido, e que por vezes é mesmo necessário, falar de leis «injustas» ou decisões «injustas»”, porque, ainda de acordo com o seu pensamento, “existe um padrão de justiça e de injustiça que é independente do direito positivo e que lhe é superior”84. E pela simples razão, 78

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COOLEY, Princípios Gerais de Direito, p. 221, O autor reforça ainda a sua posição dizendo que “os direitos são criações da lei; nascem das restrições legais; e, sem elas, toda posse só pode ser obtida e defendida por meio de astúcia ou de força”. Ibidem, p. 222.

Interessante a este respeito é a posição de Charles Louandre quando pertinentemente escreveu que: “a obediência à lei é um dever; mas, como todos os deveres, não é absoluto, é relativo; ele assenta no pressuposto que a lei provém de uma fonte legítima e que contém limites justos”. Cf. Charles LOUANDRE, Oeuvres Politiques de Benjamin Constant, Charpentier Libraires – Éditeurs, Paris 1874, p. 120.

Posição sustentada por Kelsen para quem “a «justiça» significa legalidade” e “a manutenção de uma ordem positiva através da sua aplicação escrupulosa”. Cf. Hans KELSEN, Teoria geral do direito e do Estado, 4ª ed., Martins Fontes, São Paulo 2005, p. 20. 81 Kildare Gonçalves CARVALHO, Direito Constitucional – Teoria do Estado e da Constituição, Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., Editora Del Rey, Belo Horizonte 2008, p. 177. 82 Paulo Ferreira da CUNHA, “Constituição, Direito e Utopia”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Coimbra 1996, p. 285. 80

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Edmond PICARD, Le Droit Pur, Ernest Flammarion, Paris 1908, p. 304. Tradução nossa.

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Leo STRAUSS, Direito Natural e História, Edições 70, Lisboa 2009, p. 4. Ainda a este propósito assume relevo todo o pensamento e obra de S. Tomás de Aquino, para quem

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lembrando Adelino Maltez, que “a justiça é, (…) um elemento dinâmico na vida do direito, é aquela medida que tende a aproximar o direito que está do direito que deve ser”85. O que se visa promover é a ideia de que a vida das sociedades e de cada uma das pessoas que as integram deve sempre obedecer a princípios que são perenes e imutáveis, independentemente de sistemas ou formas de governo, independentemente de quais sejam os grupos ou as maiorias que detenham o poder86. Estas posições merecem todavia profunda contestação e crítica da parte de quantos consideram que elas “sugerem o ponto de vista de que o direito é mais bem compreendido como um «ramo» da moral (…) e de que a respectiva congruência com os princípios da moral e da justiça é da sua «essência», mais do que a sua integração por ordens e ameaças”87. Releva desde logo nesta tese a separação entre o que designam de preocupações morais, de cariz subjectivo, e o direito emanado do Estado. Neste sentido “a afirmação de que o comportamento de um individuo é «justo» ou «injusto», no sentido de «legal» ou «ilegal», significa que sua conduta corresponde ou não a uma norma jurídica, pressuposta como sendo válida pelo sujeito que julga por pertencer essa norma a uma ordem jurídica positiva”88. Caminha-se afinal ao encontro do que já Rousseau89 tinha prescrito quando defendeu que “para considerar humanamente as coisas, (…), as leis da justiça são “uma lei tem força enquanto é justa. E nas coisas humanas diz-se que algo é justo enquanto é recto segundo a regra da razão”. Cf. S. Tomás de AQUINO, Tratado da Lei, Resjuridica, Porto sd., p. 65. 85 José Adelino. MALTEZ, Princípios de Ciência Política – O Problema do Direito, ISCSP, Lisboa 1996, p. 190. 86

Ideia bem sublinhada por Constant ao afirmar que “a felicidade das sociedades e a segurança dos indivíduos repousam sobre certos princípios. Estes princípios são válidos em todos os climas, em todas as latitudes”. Cf. Benjamin CONSTANT, Cours de Politique Constitutionnelle, I, Librairie de Guillaumère, Paris 1861, p. 265..

Herbert L. A HART, O Conceito de Direito, 6ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2011, p. 12, para quem “a assunção de que «uma lei injusta não é lei» tem o mesmo timbre de exagero e paradoxo, se não de falsidade, que as afirmações «as leis do parlamento não são leis» ou o «direito constitucional não é direito»”. 88 KELSEN, Teoria geral do direito, p. 20. 89 Refira-se no entanto, que para o pensador genebrino as noções de justiça e de moral são apresentadas num sentido distinto daquele que habitualmente é feito no debate entre os precursores do direito natural e do direito positivo. Segundo ele a Justiça é do domínio do estado natural conduzindo à reacção instintiva e física, sendo a Moral do domínio civil e politico. Separando assim o que designou por liberdade natural e liberdade civil, Rousseau defendeu que a “passagem do estado natural ao estado civil produz no homem uma modificação bastante notável, ao substituir no seu comportamento o instinto pela justiça e ao dar às suas acções a moralidade que lhes faltava antes”. Cf. Jean-Jacques ROUSSEAU, O Contrato Social, Publicações Europa-América, Mem Martins 1974, p. 25. 87

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inoperantes entre os homens, pois só contribuem para o bem dos maus e para o mal dos justos”90. Mas, sem embargo dos valiosos contributos que estas últimas orientações dão à reflexão científica de quantos a estas matérias dedicam o seu estudo, e sem escamotearmos o facto de terem amplo acolhimento, parece-nos ser de sustentar que “o Direito só é Direito se através das suas normas se encontrar orientado para atingir determinadas finalidades relacionadas com a existência humana”91, pelo que há-de ser em função deste fim, e só deste fim, que a ideia de justiça pode ter acolhimento. A legitimidade formal não supera, nem substitui, a legitimidade natural da essência humana e se o direito se afasta deste princípio só para estar ao serviço da justiça legal, afasta-se da sua primeira e única razão de ser. Na verdade, esquecemo-nos por vezes que o positivismo legalista, na sua ânsia de ser a voz do momento presente, “exclui qualquer ideia de um ordenamento axiologicamente justo” e que promove essa exclusão em nome da “edificação de um Estado de Direito formal que, (…), faz de qualquer vontade do poder um critério absoluto de verdade”92. E o problema é tão mais real e actual, quando a mensagem de que vivendo nós num Estado que é de Direito, que é de direito democrático, e que é de direito democrático e constitucional, nos faz acreditar que o direito que vigora é sempre o mais justo, porque emana daqueles que têm o poder legitimado pelo voto para decidirem o que é justo e o que é injusto. Seria talvez útil, nestas circunstâncias, recordar Platão quando em busca de um outro ideal de justiça, nos disse que “em todas as cidades o justo é a mesma coisa: o que é vantajoso para o Governo constituído: (…), de onde se segue, para um homem que raciocine bem, que (…) o justo é a mesma coisa: a vantagem do mais forte”93. Dir-se-á que em democracia o mais forte é o povo, que governa através de representantes por si escolhidos, pelo que o mais forte será a maioria do povo ou, numa aproximação mais condicente com a verdade dos sistemas políticos democráticos, com a maioria do povo que vota num determinado acto eleitoral. Mas esta constatação em nada altera o problema de fundo quanto à definição de um direito que sirva à justiça, na medida em que esta tem de estar ao serviço do Homem. A democracia enquanto governo da maioria dos que votam “é a autoridade depositada nas mãos de todos, mas somente a soma de autoridade necessária à segurança da comunidade”94, o que significará sempre a rejeição da arbitrariedade, da iniquidade, da lei e da decisão injustas, mesmo que adoptadas em nome de uma legalidade legitimada do ponto de vista formal. Como bem salienta Mário Bigotte Chorão “a produção normativa por via Idem, ibidem, pp. 40 – 41. Paulo OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, vol. I, Almedina, Coimbra 2007, p. 604. 92 Idem, ibidem, p. 625. 93 PLATÃO, A República, Editora Nova Cultural, S. Paulo 1997, p. 20. 94 LOUANDRE, Oeuvres Politiques, p. 7. 90 91

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democrática não assegura necessariamente que o conteúdo da lei seja conforme com os valores jurídicos, designadamente com a justiça. Isto é, a lei pode ter origem num poder legítimo, e ser, ela própria, ilegítima”95. Acresce que a lei que deve a sua existência apenas à vontade maioritária legitimada pelo voto, ainda que tenha por assumida intenção a busca do justo, pode deixar de existir se outra for a maioria, se outro for o governo, podendo surgir em seu lugar uma outra, de sentido totalmente oposto, que não deixará todavia de reivindicar para si própria o epíteto de justa. Tal situação, que está longe de ser excepcional nos tempos do presente, levar-nos-á a concluir que “o simples facto de as mesmas leis que foram solenemente adoptadas pela cidade serem revogadas com igual solenidade pela mesma cidade” vem, afinal, “pôr a nu o carácter duvidoso da sabedoria que presidiu à sua elaboração”96. Sujeitar pois a definição do direito e do que é ou deve ser justo, à volatilidade do voto, à pressão de calendários eleitorais, às mudanças repentinas de opinião, às modas e às conjunturas políticas, ignorando que a “influência dos interesses sobre o direito consuma-se na legislação, mas também na aplicação do direito”97, poderá permitir que em nome do que é legal a Justiça fique cativa de grupos que, ora negociando ora conflituando entre si, decidam qual deve ser o seu critério e sentido. E isso poderá suceder apesar do direito ser democrático e do exercício do poder político se encontrar conformado por uma Constituição. Esta pode assegurar a legalidade democrática, condicionando pela imposição de determinadas regras quer a acção do poder político, quer a aprovação ou a alteração das normas jurídicas, mas isso não pressupõe, por si só, que o Estado de Direito esteja salvaguardado. Como oportunamente Afonso D`Oliveira Martins sublinhou, legalidade democrática e Estado de direito democrático são conceitos, que embora interligados, não se confundem. Refere o autor, a propósito da identificação do Estado de Direito no texto inicial da actual Constituição portuguesa, que a “expressão legalidade democrática na versão originária da Constituição, (…) apontava para a consagração de um Estado de direito democrático (…) mas com as limitações decorrentes das próprias circunstâncias: a legalidade democrática representava a afirmação circunstancialmente possível embora imperfeita – da noção de Estado de direito democrático”98. 95

Ideia que Bigotte Chorão complementa dizendo que “o positivismo jurídico subjacente à chamada «legalidade democrática» propende a esgotar a validade jurídica numa questão de validade formal”. Cf. Mário Bigotte CHORÃO, “Perspectiva Jusnaturalista da Revisão Constitucional”, Democracia e Liberdade, Instituto Democracia e Liberdade, Lisboa 1980, p. 39.

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STRAUSS, Direito Natural, p. 88. Reinhold ZIPPELIUS, Filosofia do Direito, Quid Juris, Lisboa 2010, p. 100.

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Afonso D`Oliveira MARTINS, “Legalidade Democrática e Legitimidade do Poder”, Jorge Miranda (org.), Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra 1997, p. 583. Relevante é, neste sentido, a distinção que o autor faz entre “legalidade democrática”

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Significa isto, no nosso entender, que a Constituição também está, ou pode estar, dependente de conjunturas ou acordos inter-partidários, que determinarão nos momentos de revisão o que deve ou não deve ser entendido como Estado de Direito e qual o seu conteúdo e alcance. E para a reflexão presente não nos parece ser de relevar o facto da maioria necessária para a alteração constitucional, ser quantitativamente superior à que se exige para a alteração das demais normas legais. Os limites impostos à liberdade de actuação neste domínio, não deixam de poder ser ultrapassados se essa for a vontade política da maioria com poder para o efeito. O que importará, no que à matéria em análise diz respeito, é assumir que “a essência da Constituição nunca pode deixar de ser alheia à justiça ”99, porque “sendo a Constituição (…) o estatuto jurídico do político, negaria a sua dimensão essencial de estatuto jurídico se prescindisse do elemento de autonomização axiológica, por cujo crivo passa a torrente manancial do político”100. Assim, bem mais decisivo que a consagração formal do Estado de Direito poderá ser a necessidade de pugnarmos por um Estado de Direito material101, que assuma o valor da Justiça como primado. Um Estado de Direito no qual o poder político não apenas se auto-limita através do Direito que resulta da sua própria vontade e decisão, mas que igualmente se submete a valores e princípios que lhe são anteriores e superiores102. É que apesar da objectividade reivindicada pelos cultores do positivismo na sua defesa da lei criada pelo poder político, ela não deixa de conter elementos de subjectividade que resultam do entendimento preciso sobre o que é ou deve ser a justiça, num determinado momento e contexto. Qualquer vontade política, ainda que legitimada pelo voto dos cidadãos, não é isenta, não é neutral, antes transporta uma concepção sobre o que é e o que não deve ser, ou o que é e deveria ser, a vida em sociedade. Essa vontade é e “Estado de direito democrático”, no contexto da Constituição portuguesa. Segundo o seu entendimento “a legalidade democrática é constitucionalmente concebida a propósito do Estado – poder político, vinculando todos os órgãos que estão juridicamente obrigados a agir”; por outro lado “O Estado de direito democrático afirma-se como Ideia de Direito por ser ponto de partida e orientar a Ordem Jurídica para a realização da Justiça entendida em certo sentido”. Ibidem, pp. 586, 588, respectivamente. 99 OTERO, Instituições Políticas, p. 26. Paulo Ferreira da. CUNHA, “Da Justiça na Constituição da República Portuguesa”, Nos 25 Anos da Constituição da República Portuguesa de 1976 – Evolução Constitucional e Perspectivas Futuras, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa 2001, p. 101. 101 Sobre o Estado de Direito material cf. Paulo OTERO, Direito Constitucional Português, vol. I, Almedina, Coimbra 2010, p. 51 e pp. 75 e segs; e CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito, pp. 33 – 35. 102 Tal como refere Paulo Otero, quando refere que “o Poder político não está apenas limitado pelo Direito que cria (…), encontrando-se também limitado por normas e princípios que não se encontram na sua disponibilidade e relativamente aos quais se subordina”. Cf. OTERO, Direito Constitucional, I, p. 51. 100

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sempre mutável, pelo que não devemos sujeitar, como anteriormente dissemos, princípios que devem persistir, princípios que devem ser de valor inalterável, à normal mudança de opinião política (seja de quem representa, seja de quem é representado). Esta posição, sobejamente ausente das correntes de intervenção dominantes, entende que “o direito público não é mais do que a aplicação do princípio da justiça à organização do Estado e da sociedade”103, princípio, repetimos, que sendo um dos primeiros fundamentos do Estado de Direito deverá também ser o fim último da sua acção. ii) Uma muito sumária reflexão é agora devida ao Estado de Direito enquanto Estado de Direitos Fundamentais, mas tão-somente na perspectiva anteriormente enunciada. A questão coloca-se para nós nos seguintes termos: direitos fundamentais do homem são apenas aqueles que se encontram juridicamente positivados ou, independentemente dessa positivação, existem direitos do homem anteriores aos que o Estado, através dos seus órgãos políticos, entende e decide prescrever? E em caso de se aceitar a existência de direitos anteriores à respectiva positivação, o seu reconhecimento pelo Estado depende dessa condição posterior? Se, como diz Caenegem, “todos os seres humanos são portadores de direitos ao nascerem, direitos naturais, direitos que devem estar a salvo de toda a acção invasora por parte do governo ou do poder legislativo”104, necessitam estes direitos de ser inscritos na Lei para como tal serem considerados fundamentais, no sentido que actualmente lhes é dado? De acordo com Gomes Canotilho parece ser esse o entendimento, ao afirmar que “a positivação de direitos fundamentais , significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados «naturais» e «inalienáveis» do indivíduo”105; seguindo outra perspectiva “os governantes devem respeitar direitos inscritos na natureza humana que se impõem mesmo que não se encontrem

Henri AHRENS, Cours de Droit Naturel ou de Philosophie du Droit, t. I , 7ͤ éd., F. A. Brocklaus, Leipzig 1875, p. 99. Tradução nossa. Para o autor a aplicação do princípio mencionado tem por base a filosofia do direito, ou o direito natural, entendida por si como “a ciência que expõe os princípios primeiros do direito concebidos pela razão e fundados na natureza do homem”. Ibidem, p. 1. 104 CAENEGEM, Uma Introdução Histórica ao Direito, p. 38. Posição que já tinha sido sustentada por Locke ao afirmar que “embora os homens ao entrarem na sociedade renunciam à igualdade, à liberdade e ao poder executivo que possuíam no estado de natureza (…), cada um age dessa forma apenas com o objectivo de melhor proteger sua liberdade e sua propriedade”, ou seja os homens não perdem os seus direitos naturais pelo facto de passarem a integrar a sociedade, nem os governos que desta resultem podem atacar esses mesmos direitos. Cf. John LOCKE, Segundo Tratado sobre o Governo Civil e outros escritos, Editora Vozes, Petrópolis 1994, p. 159. 105 CANOTILHO, Direito Constitucional, p. 377. 103

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expressos no texto da constituição”106. Aponta esta última perspectiva para a ideia de que direitos fundamentais não são apenas aqueles que a Constituição cria podendo existir outros, que como tal mereçam ser qualificados, independentemente de reconhecimento ou integração constitucional. Fará assim sentido distinguir, por exemplo, os direitos humanos107 dos direitos constitucionais108, procurando evidenciar-se que mesmo se estes últimos não integrarem os primeiros nem por isso os governantes podem ignorá-los ou deixar de lhes conferir valor superior. Não se negará, nem se nega, o papel desempenhado por muitos textos constitucionais, principalmente a partir da segunda metade do séc. XX109, no reconhecimento, na aceitação e na integração, de princípios transpostos quer dos chamados direitos naturais, quer dos direitos humanos, direitos que, como refere Vieira de Andrade, já incluem os direitos naturais110, mas isso não implicará que tais direitos deixem de ser reconhecidos, e respeitados, nos casos em que as Constituições não o exprimam. Uma coisa será afinal esperar, e até exigir, que as Constituições dos Estados de Direito Democrático reflictam o homem enquanto pessoa humana e enquanto cidadão possuidor de direitos e de deveres111, outra será considerar que só a posiBURDEAU †, HAMON e TROPER, Droit, p. 36. Tradução nossa. Direitos humanos que não serão confundíveis com direitos naturais, seguindo nomeadamente o pensamento e estudo de Vieira de Andrade, na sua reflexão sobre as dimensões dos direitos fundamentais e as diversas perspectivas em que estes devem ser considerados. Nesse estudo o autor distingue os direitos fundamentais constitucionais, referindo-se aos “direitos constitucionalmente protegidos”, os direitos humanos, como aqueles que constam do “conjunto de direitos que hoje é património comum da generalidade dos Estados” e os direitos naturais, que se identificam com os “direitos mais directamente ligados à dignidade da pessoa humana”. Cf. ANDRADE, Os Direitos Fundamentais, pp. 38 – 40. 108 O que é sustentado por Rawls, para quem “os direitos humanos são distintos dos direitos constitucionais, ou dos direitos da cidadania liberal democrática”, sendo os direitos humanos “o substrato propriamente dito dos direitos possuídos pelos cidadãos num regime constitucional democrático liberal”. Cf. John RAWLS, A Lei dos Povos, Quarteto, Coimbra 2000, pp. 88 e 90. autor, e respectiva fundamentação, cf. pp. 17 – 50. 109 Sem embargo do que anteriormente escrevemos sobre o Bill of Rights inglês de 1689, no que respeita aos direitos dos súbditos, e de devermos assinalar a Declaração de Direitos do Estado da Virginia, de 1776, que, seguindo o pensamento de Locke, faz referência logo no seu art. 1º aos direitos inatos dos homens, direitos que a Declaração considera salvaguardados perante o Estado. Cf. Constitution of the State of Virginia, p. 3 ; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que no seu art. 1º proclama que “os homens nascem livres e iguais em direitos” e no art. 2º prescreve que “a finalidade de toda a associação política é a salvaguarda dos direitos naturais e imprescritíveis do Homem”. Cf. Micheline R. . ISHAY, (org.), Direitos Humanos: Uma Antologia, Editora da Universidade de S. Paulo, São Paulo 2006, p. 243. 110 ANDRADE, Os Direitos Fundamentais, p. 38. 111 Preocupação já exposta por Kant quando, a propósito da Constituição civil que cada Es106 107

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tivação de todos os direitos funciona como condição para o seu respeito integral, pela parte dos poderes públicos. Dir-se-á que ao falarmos hoje de Estado de Direito democrático e constitucional falamos implícita e explicitamente desses mesmos direitos, uma vez que as Constituições já os incluem, seja pela sua directa consagração, seja pela sua recepção a partir do direito internacional geral e das convenções internacionais112, pelo que o problema não se colocará. Nestes termos falar de Estado de Direito Democrático e Constitucional, será também falar dos direitos naturais113 e dos demais direitos humanos contemplados nas Convenções e Declarações internacionais, que os Estados democráticos ratificam e subscrevem. É um facto! É um facto que ninguém ousará questionar, mas isso não invalida a consideração de que “os direitos fundamentais são, enquanto parte do direito público e do direito constitucional, direito político e estão sujeitos à mudança das ordens políticas”114. Sucede que essa mudança tanto pode incluir a definição do que sejam, e de quais sejam, os direitos fundamentais, como a definição dos “meios mais adequados à sua salvaguarda, cuja escolha depende, pelo menos até certo ponto, da vontade popular”115 e nem sempre os meios, ainda que o não assumam ou que o assumam de acordo com um certo entendimento, respeitam os princípios116. Ou, dito de tado deveria adoptar, nos disse que os membros da sociedade, nas suas relações com o Estado, devem ser vistos enquanto homens, enquanto súbditos e enquanto cidadãos. Na primeira condição valorar-se-ia a sua liberdade individual, na segunda evidenciar-se-ia a sua dependência, na terceira realçar-se-ia a sua igualdade perante a lei. Cf. Immanuel KANT, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, Lisboa 2009, pp. 137 – 138. 112 Caso concreto da Constituição portuguesa que no seu art. 16º, nº 1, define que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”. 113 É esclarecedora a este respeito a observação de Vieira de Andrade sobre os direitos fundamentais na Constituição portuguesa, ao considerar “que a aplicação (e o «conhecimento») dos preceitos relativos aos direitos fundamentais pressupõe uma dimensão extra-constitucional e transpositiva destes, que tem como centro de referência a dignidade da pessoa humana”. Cf. ANDRADE, Os Direitos Fundamentais, p. 48. Situação aliás presente, logo na versão original da nossa Lei Fundamental, quando no art. 1º se afirma ser Portugal uma República baseada na dignidade da pessoa humana, na assumpção de um princípio que “é, (…), a referência axial de todo o sistema de direitos fundamentais”. Cf. Jorge MIRANDA, António CORTÊS, «anotação ao art. 1º», in Jorge MIRANDA, Rui MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra 2010, p. 82. 114 Bodo PIEROTH, Bernhard SCHLINK, Direitos Fundamentais – Direito Estadual II, Universidade Lusíada Editora, Lisboa 2008, p. 7. 115 MIRANDA e CORTÊS, «anotação ao art. 1º», p. 77. 116 O que poderá ser evidenciado a propósito da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez e da permissão da pena de morte, em Estados de Direito Democrático e Constitucional, justificadas pela ideia de que “a laicidade do Estado, a aconfessionalidade, o princípio da não dominação de qualquer visão do mundo sobre as demais podem

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outra forma, os meios podem alterar os princípios em nome dos fins a atingir, o que nos leva a reflectir sobre se a positivação de direitos fundamentais é, por si só, uma garantia da sua salvaguarda. Sucede que neste domínio, afinal aquele que verdadeiramente ajuda a compreender se nos deparamos ou não diante um verdadeiro Estado de Direito, “o Direito positivo escrito (…) nunca pode esquecer ou ignorar uma ordem axiológica suprapositiva que, (…), funciona, (…) como critério último de fundamento e validade de toda a ordem jurídica”117. Fundamento que deverá valer para aquele conjunto de direitos inatos à própria natureza humana (como o direito à vida, à liberdade e à segurança), independentemente da sua consagração, ou da sua não consagração, constitucional, legal ou convencional. Mas associados a estes direitos surgirão ainda outros cuja validade transcende o que há-de ou não ser positivado como direito fundamental e agora já no plano da dimensão social e política de cada pessoa humana. Falamos nomeadamente do direito que cada uma destas pessoas, homens ou mulheres, tem, como ser social, a participar na vida da comunidade em que se insere. Este princípio que se nos apresenta hoje como normal no âmbito dos direitos fundamentais de qualquer Estado de Direito Democrático e Constitucional, principalmente quando pensamos no direito de sufrágio, teve no que às mulheres diz respeito consagração tardia. Bastará recordar que a França apenas conferiu o direito de voto às mulheres em Abril de 1944118 (na Grã-Bretanha esse direito foi atribuído às mulheres com mais de 30 anos, em 1918, e às que tivessem mais de 21 anos, em 1928), percebendo-se assim que a subjectividade sobre o que é ou deve ser um direito fundamental também se pode verificar no lado positivista. Significa isto que a vontade do decisor político, logo do legislador, deverá ser sempre equacionada em função da conjuntura e daquilo que a ideia dominante do e no momento, considera como mais apropriado e compatível à sua manutenção no poder. Assim e sem questionarmos, reiteramos, o imenso e valioso contributo que a positivação de direitos fundamentais transportou para a defesa da liberdade, da certeza e da segurança jurídicas, importará não esquecer que esse contributo contém em si próprio elementos de relatividade e que esses elementos de relatividade, não esgotam o que havemos de entender por direitos fundamentais e, essencialmente, por Direito.

fundamentar ou explicar a despenalização ou a desprotecção penal de qualquer bem jurídico, quando uma parte da sociedade entenda que ele deve ser protegido por outras formas ou que nem sequer tenha de ser protegido”. Idem, ibidem, p. 87. 117 Paulo OTERO, Legalidade e Administração Pública, Almedina, Coimbra 2007, pp. 411– 412. 118 Através do Decreto-Lei de 21 de Abril de 1944. Cf. a este respeito Pierre MARTIN, Les Systèmes électoraux et les modes de scrutin, 2ª ed., Paris, Montchrestien, 1997, pp. 16 -17 e em particular Jean-Marie COTTERET, Claude EMERI, Les Systèmes Électoraux, 6ª ed., Paris, PUF, 1994, p. 17.

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Laivos medievais do Estado de Direito em Portugal: 4. Pelo que ficou acima explanado deixa de ser antinómico asilar sob o mesmo cabeçalho o estandarte genésico do constitucionalismo revolucionário dos finais do século XVIII – o princípio do Estado de Direito – e o, bastante recuado, pensamento jurídico-político europeu do Medievo. Importa, agora, tentar precisar em que medida essas conclusões se podem estender ao caso do Estado português119. Seria uma perfeita insensatez, e totalmente inadequado aos propósitos de trabalho desta índole, ambicionar exaurir ou, sequer, arrolar a maioria dos expedientes disponíveis para uma investigação completa. Delegando essas competências para trabalhos de maior fôlego e autores de superior autorictas, as nossas singelas pretensões (ou lucubrações, como lhe chamamos no título) não excedem um mero convite à reflexão, acicatada por um muito escasso lastro de conjunturas documentadas no período da tardia Idade Média portuguesa. Antes, não se escusa uma breve referência às ditas liberdades ibéricas tradicionais, que antecedem em muitos séculos o documento que, comummente, tem sido apontado como o gérmen medievo do constitucionalismo moderno e das correspondentes liberdades fundamentais – a supra-referida Magna Carta Libertatum inglesa. Depois de recuarem a génese das liberdades ibéricas tradicionais aos tempos da monarquia visigoda, Paulo Ferreira, Joana Aguiar e António Lemos identificam S. Isidoro de Sevilha como “o precursor, no mundo da língua portuguesa e castelhana, do complexo jurídico e político das liberdades ibéricas tradicionais”120. 119 Questão polémica é a de apurar a origem do Estado. Se a corrente doutrinária maioritária defende que essa forma de organização político-social, com as características que, geralmente, lhe são adjudicadas, tenha surgido a partir do Renascimento, também há quem defenda tratar-se de uma conquista do Liberalismo. No entanto, Freitas do Amaral não duvida que a Europa Medieval era composta por Estados, entendendo que “pelo menos em Portugal, onde nem sequer houve feudalismo, mas apenas regime senhorial, é necessário e possível falar em Estado medieval” (Diogo Freitas do AMARAL, “Estado”, Polis – Enciclopédia da Sociedade e do Estado, Verbo, vol. II, 1158-1159. Para uma exegese sobre a questão do feudalismo no extremo Ocidente europeu, vide Marcello CAETANO, História do Direito (Séc. XII-XVI), seguida de Subsídios para a História das Fontes do Direito em Portugal no Séc. XVI, textos introdutórios e notas de Nuno Espinosa Gomes da Silva, 4.ª Edição, Lisboa / São Paulo 2000, pp. 149-174). Reforçando esta tese, o conceito de Estado, junto com os de pátria e nação, podem ser alicerçados nos juristas hispânicos dos séculos XII-XIII (Maria João Violante BRANCO, “Estados, Pátrias e Nações nos Juristas Hispânicos dos Séculos XII e XIII”, Cultura – Revista de História das Ideias, II série, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, vol. 15, 2002, pp. 21-46). 120 Paulo Ferreira da CUNHA, Joana Aguiar da SILVA e António Lemos SOARES, História do Direito. Do Direito Romano à Constituição Europeia, Almedina, Coimbra 2005, p.

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O sistema jurídico da Reconquista cristã caracteriza-se, por seu turno, como um Direito consuetudinário e foraleiro. Em Portugal, para além da assídua outorga de forais por parte dos primeiros monarcas121, manteve-se a força vinculativa dos forais outorgados pelos monarcas leoneses nos antecedentes séculos XI e XII – v. g., os forais de S. João da Pesqueira, Penela, Paredes, Linhares, Ansiães e Santarém, bem como os forais outorgados por D. Teresa e D. Afonso Henriques122. O foralismo ibérico, ao reconhecer liberdades e garantias pessoais e dos bens dos povoadores, bem como certas imunidades colectivas, constitui mais uma efectivação atávica do Estado de Direito123. Passe a audácia, o foral – diploma concedido pelo rei, ou por um senhorio laico ou eclesiástico, a determinada terra, contendo normas que disciplinam as relações dos povoadores ou habitantes, entre si, e destes com a entidade outorgante124 – acaba por consignar uma solução jurídico-política de Estado de Direito bem mais eficaz do que a contemporânea democracia de urnas. A título meramente exemplificativo, o foral de Sernancelhe serviu de freio à desmesurada pretensão na cobrança de tributos, por parte de Gonçalo Vasques Coutinho, donatário da terra da mão de el-rei. O relato chega-nos através de uma sentença do desembargador de D. João I, Fernando Alvares, assinada em Santarém, no dia 27 de Junho de 1430. Passando a palavra ao documento judicial (que vai dirigido ao coevo corregedor da Beira, Lourenço Eanes), o concelho apresentou um rol de queixas contra Vasco Coutinho que, contrariando o foral da terra, se excedia na cobrança de alguns tributos cinegéticos e emolumentos judiciais. O concelho começa por alegar que (i) o foral prescrevia que, no período de S. Miguel de Setembro até ao Entrudo, cada caçador desse um coelho, de quatro em quatro dias125; (ii) isto se devia entender para os caçadores que matavam 360. Estes autores constroem o seu manual em torno das liberdades ibéricas tradicionais. A concessão de forais, nos primeiros tempos de Portugal, está assim distribuída: Condes Portucalenses – 8; D. Teresa – 3; Infante D. Afonso Henriques – 5; D. Afonso Henriques – 26; D. Sancho I – 58; D. Afonso II – 28; D. Sancho II – 24; D. Afonso III – 92 (55); D. Dinis 79 [José MARQUES, “O Foral da Póvoa de Varzim de 1308, no contexto da política dionisina de organização e defesa do território nacional”, Boletim Cultural da Póvoa de Varzim, vol. 42, 2008, p. 307]. O que perfaz um total de 323, mas estão estimados em mais de 2 000 a totalidade dos forais portugueses, concedidos depois de 1096. 122 Portugaliae Monumenta Historica – Leges et Consuetudines, vol. I, pp. 343 e ss. 123 Juan António SARDINA PARAMO, El concepto de fuero – un analisis filosófico de la experiência jurídica, Santiago de Compostela 1979. 124 Mário Júlio de Almeida COSTA, História do Direito Português, 4.ª edição revista e actualizada com a colaboração de Rui Manuel de Figueiredo Marcos, Almedina, Coimbra 2010, p. 206. 125 O foral de Sernancelhe foi outorgado em 1124 e confirmado em 1220. Consta publicado em Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines, vol. 1 fasc. 3, Lisboa 1863, pp. 362-365. A regra jurídica alegada: “Et de monte de sancto Michael usque introitu des iiii dies det un conilio”. 121

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a caça para vender; (iii) mas Gonçalo Vasques levava o mesmo tributo aos lavradores que, após a jeira, iam matar um par ou dois de coelhos para comer – el-rei manda que o tributo se aplique apenas aos que caçam continuadamente e não aos lavradores. Alega mais o concelho que (i) por tradição, quando um homem bom da terra queria casar o seu filho ou filha, organizava uma caçada para matar coelhos para a boda, (ii) desses coelhos não pagavam nada ao senhorio, (iii) mas, agora, Gonçalo Vasques lhes exigia um coelho por cada quatro homens que fossem à caçada – el-rei manda que não paguem nada dos coelhos mortos para bodas. De seguida, agrava-se o concelho contra a coima de setecentos reais que o dito Gonçalo Vasques lhe aplicava por causa dos cães que traziam a guardar o gado, alegando que andavam à caça – manda el-rei que, sem qualquer opressão, lhes deixem trazer os seus cães para guarda dos gados. Mais um excesso do senhorio na cobrança do tributo cinegético: (i) segundo o foral, da caça grossa apanhada em “cepelho”, deviam pagar duas costas do javali e um lombo do veado126, (ii) e Goçalo Vasques levava todo o lombo com costas, ficando ao caçador apenas o ventre e as pernas – decide el-rei que lhe não levem mais de duas costas do javali e um lombo do veado. Finalmente, o excesso na cobrança de quinze reais por um bragal de cada um que citasse outrem em juízo, quando esses emolumentos apenas deveriam ser pagos em caso de duelo judiciário127 – o monarca difere o pedido do concelho. Invariavelmente, as decisões régias foram ponderadas em Relação – reunindo com os magistrados do supremo tribunal da corte – e tendo como suporte jurídico de fundo o foral de Sernancelhe128. A conjuntura acabada de explanar contraria um dos atropelos mais característicos do poder político medievo, a excessiva cobrança de tributos129. Ou seja, traduz a ideia clara de um foralismo ibérico a laborar como garantia fundamental contra o poder do fisco instituído. Por esta e outras múltiplas razões, esta concepção de Direito público pactuado – entre, por um lado, uma comunidade humana que ocupa um determinado espaço territorial e, por outro, o rei ou senhorio laico A regra jurídica alegada: “De peia ii costas de porco et de alio uenato i lumbo”. A regra jurídica alegada: “Qui contra uicinum suum facere uoluerit proua et uincerit illum illo qui cader pectet i bragal. Si iam in campo uenerint et eam non fecerint pectet medio bragal”. Sobre o duelo consultar: Paulo MERÊA, “Juramento e Duelo nos Foros Municipais”, História e Direito – Escritos Dispersos, Boletim da Faculdade de direito de Coimbra, Coimbra 1967. 128 Lisboa, IAN/TT – Gav. 14, mç. 3, doc. 13. 129 Os impostos foram um dos lastros da Magna Carta Libertatum inglesa, como ficou dito, a partir desse pacto “nenhum imposto podia ser lançado sem a prévia audiência dos contribuintes”. Contra os impostos extraordinários lançados por senhorios, em Portugal, surge a lei de 24 de Julho de 1386, que proíbe os prelados e fidalgos de lançarem outros tributos – “aallem daquelles dereytos e rendas que de dereyto e costume soyam de pagar” – nas terras da sua jurisdição, sem autorização régia (OA, Liv. V, Tít. 95). 126 127

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ou eclesiástico – irá funcionar como forja mediévica para uma ideia de Estado de Direito. 5. Tornando à democracia das urnas, a escolha de representantes políticos, no âmbito das eleições municipais, surge como outra conjuntura medieval susceptível de carrear uma certa ideia de democracia representativa130. Desde tempos imemoriais que – acauteladas as eventuais e devidas excepções131 – os concelhos escolhem os seus dirigentes em reunião plenária. Será, no entanto, no crepúsculo do século XIV que surge a primeira lei eleitoral portuguesa, assinada em Évora, no dia 12 de Junho de 1391132. A ordenação dos pelouros (designação com que transitou para a posteridade) veio impor que a escolha dos cargos concelhios se fizesse por pelouros – bolas de cera que envolviam o pergaminho com o nome do escolhido para o respectivo cargo da edilidade – a fim de evitar os danos e atropelos que, todos os anos, grassavam nos plenários municipais das eleições. Para cada um dos cargos (juiz, vereador, procurador, chanceler…) registam-se no livro das vereações os três nomes das pessoas consideradas mais aptas e idóneas e, em simultâneo, fazem-se os pelouros de cera para cada um; metem-se os pelouros de cada ofício num saco (capeyrote) e chama-se um homem bom para os tirar, ofício a ofício, até se completar a listagem dos escolhidos para aquele ano; os pelouros restantes seriam guardados numa arca de duas chaves, entregues a dois homens bons, fidedignos depositários, até à eleição do ano seguinte. Esta insipiência legislativa eleitoral não teve a eficácia pretendida. Por isso, foi necessário proceder a uma actualização legislativa do procedimento recenseador e de eleição dos candidatos aos ofícios municipais. Essa regulamentação surge integrada no regimento dos corregedores das comarcas, outorgado no dia 12 de Setembro de 1418, em Serra de Atouguia (actual Atouguia da Baleia). Em síntese, a partir de então, ao corregedor da respectiva comarca incumbia: i) Chamar à câmara ou casa do concelho os juízes, vereadores, procurador e homens bons para, com o acordo deles, eleger seis homens bons (chamaAinda hoje, na democracia participativa a “participação não equivale a competência decisória. Nem poderia equivaler, porque apenas os órgãos representativos baseados no sufrágio universal podem formar e exprimir uma vontade colectiva correspondente ao interesse geral da comunidade e a uma perspectiva de futuro (que os grupos não conseguem sentir). Os interessados devem ou podem ser ouvidos antes da tomada de decisões – inclusive legislativas – que os afectem especificamente, mas não se lhes substituem” – in MIRANDA e MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, anotação ao art. 2º. 131 A Idade Média é característica pela sua multiplicidade, sempre susceptível a excepções e contradições. 132 “Vereações” Anos de 1390-1395: O mais antigo dos Livros de Vereações do Município do Porto existentes no seu Arquivo, com comentários e notas de A. de Magalhães Basto, Documentos e Memórias para a História do Porto – II, Câmara Municipal do Porto, pp. 235-236. 130

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dos elegedores) jurados aos Evangelhos que, apartados em três duplas, fizessem três róis, a entregar ao corregedor, com os nomes dos que poderiam ser juízes, vereadores, procuradores, coudéis, escrivães da câmara e órfãos e juízes dos órfãos (onde o ofício não estivesse acoplado ao de juiz ordinário); ii) Apresentados os róis na reunião plenária, o corregedor devia examiná-los e concertá-los uns com os outros, em presença dos oficiais do ano anterior e dos homens bons, até chegar a uma redacção final, assente em livro a enviar ao monarca. iii) Para os ofícios concorriam todos os fidalgos, vassalos e cidadãos moradores no local. iv) Segue-se a feitura dos pelouros, de seguida metidos nos respectivos sacos de juízes, vereadores, procuradores, coudéis, escrivães da câmara e dos órfãos e juízes dos órfãos. No entanto, onde por costume se elegia um juiz fidalgo e outro cidadão, deviam ser metidos em dois sacos apartados, para que, efectivamente, se cumprisse a tradição. v) Por fora de cada saco seria cosido o título do ofício. vi) Todos os sacos seriam fechados numa arca de duas fechaduras diferentes, ficando uma chave com um dos juízes e a outra com um dos vereadores. vii) Não se poderia mexer nos sacos, salvo no caso de acrescerem eventuais candidatos por casamento ou por virem morar para a terra, que deveriam ser metidos no pelouro e saco respectivo. Estas eventuais alterações deviam ser comunicadas ao corregedor, quando andasse em visita pela comarca. viii) No dia das eleições, por foro ou costume, deviam apregoar o concelho e, perante todos os presentes, um homem simples meteria a mão no saco, revolvendo bem os pelouros, antes de tirar os pelouros suficientes para preencher cada um dos ofícios. ix) Os juízes de fora, nos lugares onde os havia, são extintos a partir deste diploma; procedendo-se, de imediato, à respectiva eleição por pelouros. Os outros oficiais manter-se-iam até ao termo dos mandatos. x) Os novos juízes eleitos deviam proceder, no prazo de um mês, à inquirição sobre os juízes antecedentes. Terminada a diligência, tinham o prazo de 15 dias para a enviar ao monarca, cerrada e com o selo do concelho, sob pena dos ofícios. xi) O coudel, o juiz dos órfãos, o escrivão dos órfãos e o da câmara deviam ser escolhidos para o exercício de três anos, com início no dia de Santa Maria de Agosto. xii) Os juízes ficam obrigados a abrir inquirição sobre a actuação destes oficiais cessantes, nos prazos e trâmites previstos ut supra para os próprios juízes. Pretende-se combater usuais corrupções no exercício das funções públicas.

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6. A liberdade pessoal é um bem jurídico fundamental133 que, por isso, não pode ficar à mercê dos excessos dos poderes públicos. No entanto, é a própria Constituição que prevê a possibilidade de se restringir o direito de liberdade, através da prisão e detenção134. Sendo certo que a privação da liberdade, total ou parcial, só é susceptível mediante processo judicial condenatório fundado em lei anterior135; a liberdade, em princípio, deveria manter-se durante a tramitação do processo e só seria restringida após sentença condenatória com pena privativa da liberdade. Se se entender que o imputado pode perturbar os fins do processo, iludindo a acção da justiça, haverá lugar à prisão preventiva – medida cautelar de carácter excepcional e limitada no tempo136. Em definitivo, para evitar o abuso do poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, poder-se-á recorre ao habeas corpus. O habeas corpus funciona, assim, como “um remédio excepcional para proteger a liberdade individual”137. Essa luta pela liberdade e segurança individual, em directa conexão com a limitação do poder, resulta de uma longa evolução histórica. A insipiência legislativa é, maioritariamente, disputada pelo génio jurídico romano e pela Magna Carta de 1215. O primeiro, através do interdictum homine libero exhibendo, que consistia na acção que dava a todo o cidadão o direito de reclamar, perante o pretor, a exibição do homem livre detido ilegalmente138. A segunda, determina no seu normativo 39 que “nenhum homem livre poderá ser detido ou encarcerado, ou privado dos seus direitos ou dos seus bens, nem considerado fora-da-lei, nem desterrado ou privado da sua posição de qualquer outra forma, nem usaremos de força contra ele nem ordenaremos a outros que o façam, a não ser em virtude de sentença judicial de seus pares e de acordo com a lei do Reino”139. Sem embargo de alguma afinidade, ainda está bastante remota uma clara analogia com o habeas corpus. O interdicto romano, movido perante um pretor, embora tenha o efeito de libertação de alguém preso indevidamente, concerne apenas a relações jurídicas entre particulares e não a relações jurídicas entre “Todos têm direito à liberdade e à segurança” (art. 27º/1 da C.R.P.) Art. 27º/3 da C.R.P. 135 Art. 27º/2 da C.R.P. 136 Art. 28º da C.R.P. 137 Relatório do Decreto Lei n.º 35.043 de 20 de Outubro de 1945, que regulamenta ordinariamente o habeas corpus, apud Manuel LEAL-HENRIQUES, Medidas de Segurança e “Habeas Corpus” – Breves Notas, Áreas Editora, Lisboa 2002, pp. 54-55. Este Decreto-Lei é a primeira regulamentação ordinária do habeas corpus, após a sua introdução pela Constituição de 1911. Também, José de Faria COSTA, “Habeas Corpus (ou a análise de um longo e ininterrupto “diálogo” entre o poder e a liberdade)”, Linhas de Direito Penal e de Filosofia, Coimbra Editora, 2005, pp. 43-58. 138 D.43.29.4: “Si quis liberum hominem ignorantem suum statum retineat, tamen si dolo malo retinet, cogitur exhibere”. http://webu2.upmf-grenoble.fr/Haiti/Cours/Ak/ 139 GOUVEIA, As Constituições dos Estados da União Europeia, pp. 616-617. 133 134

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particulares e a autoridade pública. A que acresce a singularidade da liberdade romana (intimamente relacionada com a escravidão), que, segundo a palavra sempre respeitosa de Cícero, “não consiste em ter um dono justo, mas em não ter dono nenhum”140. Na Magna Carta, por seu turno, não é de todo manifesta a semelhança com o habeas corpus. Transparece antes a ideia de que a privação da liberdade só seria susceptível mediante processo judicial condenatório fundado em lei anterior – ou seja, o princípio da jurisdicionalidade da aplicação do Direito Penal ou princípio da mediação judicial (nullum crimen nulla poena sine juditio) e o princípio da legalidade (nullum crimen nulla poena sine lege). Princípios que, com certeza, estão na base do habeas corpus, mas que não se confundem com este. O habeas corpus inglês surgirá consignado, posteriormente, na Lei de Habeas Corpus de 1679, que ainda hoje faz parte dos textos constitucionais do Reino Unido141. Outro sério candidato à génese medieval do habeas corpus aparece ligado aos processos forais aragoneses, particularmente o processo de manifestación142. O processo de manifestación consiste numa ordem de protecção, emitida pelo Justicia aragonês, no sentido de aquele que tivesse alguém preso o entregasse, impedindo que se cometesse qualquer violência contra a sua pessoa, antes de ditada a respectiva sentença. No entanto, o imputado não é libertado: é reconduzido a uma prisão própria – o cárcel de manifestados – ou guardado numa casa particular ou lugar, previamente, fixado pelo Justicia. Assim sendo, só por esta imposição que mantém a prisão efectiva, afasta-se do habeas corpus moderno, aproximando-se antes às cartas de seguro pessoais portuguesas. Em Portugal a constitucionalização da garantia do habeas corpus surge com o primeiro texto constitucional republicano. Segundo a Constituição de 1911, fortemente influenciada pela congénere brasileira143, dar-se-á “o habeas corpus Luisa Fernanda GARCÍA LÓPEZ e Miguel MALAGÓN PINZÓN, “Mecanismos de protección de derechos: de la República Romana a la acción pública del siglo XIX en Colombia”, Opinión Jurídica [en línea], 8 (Julio-Diciembre), Universidad de Medellín, Colombia 2009, p. 156. [fecha de consulta: 14 de diciembre de 2011] Disponible en: ISSN 1692-2530 141 GOUVEIA, As Constituições dos Estados da União Europeia, pp. 625-630. 142 GARCÍA LÓPEZ e MALAGÓN PINZÓN, “Mecanismos de protección de derechos”, pp. 162-165. http://redalyc.uaemex.mx/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=94512330010 Julián RIBERA TARRAGÓ, Orígenes del Justicia de Aragón, Zaragoza: Tipografía de Comas Hermanos, 1897. 143 O artigo da Constituição portuguesa traslada, ipsis verbis, o § 22 do art. 72º (Declaração de Direitos) da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de Fevereiro de 1891. Foi também por influência do sistema constitucional brasileiro que, pela primeira vez em Portugal e na Europa, se introduziu o mecanismo de controlo difuso da constitucionalidade, ou judicial review. 140

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sempre que o individuo soffrer ou se encontrar em imminente perigo de soffrer violencia, ou coacção, por illegalidade, ou abuso de poder”144. Afasta-se dos nossos propósitos o estudo das idiossincrasias deste instituto no ordenamento jurídico brasileiro (desde o Código de Processo Criminal de 1832) e norte-americano (desde a sua primeira Constituição de 1787). Dependentes do objecto de estudo proposto, também não podemos demorar no habeas corpus português, antes e apôs a sua constitucionalização em 1911. Sem embargo, desde tempos primevos que, no reino de Portugal, se implantou um instituto análogo ao habeas corpus, as chamadas cartas de segurança. Existem duas espécies distintas, a carta de segurança pessoal e a carta de segurança judicial. A primeira, consiste numa carta concedida pelas justiças da terra ou, em última instância, pelo próprio monarca, dando protecção a alguém ameaçado de vindicta privata, para que pudesse ser julgado em processo judicial regular. A segunda, garantia a liberdade ao acusado de delito que, negando o delito ou confessando que o praticara em legítima defesa, quisesse estar a Direito145 – esta obsta à prisão preventiva e é a que mais se assemelha ao habeas corpus. Como veremos, a analogia com o habeas corpus é maior do que a dos três institutos congéneres acima referenciados. Não nos chegou qualquer preceito substantivo das seguranças medievais, pelo menos através de leis régias, sendo bem plausível que a sua génese radique em fonte costumeira primitiva146. A origem em costume antiquíssimo do reino de Portugal aparece bem patente em 1645, na obra de Mateus Homem Leitão, intitulada Acerca do Direito Português147. Em contrapartida, pode dizer-se copiosa a regulamentação medieva a nível procedimental, que passamos a explanar de forma condensada. Numa lei de D. Dinis, sem data, refere-se a segurança britada, de âmbito pessoal148. Do mesmo reinado, o capítulo 11º da concórdia de 1309, já indica reConstituição de 1911, art. 31º. Marcello CAETANO, História do Direito, pp. 578-580. Mais recentemente, José Eduardo Pereira Marques dos SANTOS, O Processo Penal Português no Período Medieval, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa 2010 (policopiada). 146 Por isso, essa disciplina jurídico-material terá que ser deduzida a partir das réstias documentais e, sobretudo, das próprias cartas de segurança. 147 Apud António Manuel HESPANHA, “Direito Moderno e Intertextualidade. Direito Próprio e Direito Comum em «De Jure Lusitano» (1645), de Mateus Homem Leitão”, Outros Combates pela História, Coordenação de Maria Manuela Tavares Ribeiro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra 2010, p. 477. 148 Ordenações Del-Rei Dom Duarte, Edição preparada por Martim de Albuquerque e Eduardo Borges Nunes, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1988, pp. 176 e 395 (= ODD). O segundo documento consta entre os de D. Afonso IV, mas sem identificar o monarca autor. Embora o primeiro documento seja passado em nome de D. Dinis, fica a dúvida. 144 145

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ferência à segurança judicial149. Esta surgirá bem regulamentada numa lei de D. Afonso IV, dada em Coimbra no dia 3 de Outubro de 1329. Este normativo insurge-se contra os abusos cometidos à sombra das cartas de segurança “que se dam tam ssoltamente e ssem rregra nos feitos das mortes”. Para evitar danos maiores e fuga à justiça impõe-se que (i) o segurado, que confessar a morte, nomeie logo as testemunhas; (ii) se o acusado negar a morte, distinguem-se duas situações: (a) se não houver acusador, passem-se carta às justiças da terra onde foi cometido o crime para que procedam às inquirições devassas, salvaguardando o contraditório ao acusado; (b) se houver acusador, inverte-se o ónus de nomeação das respectivas testemunhas, que passa para o acusador. O encargo das testemunhas trazidas a juízo é estabelecido de acordo com a situação económico das partes: (i) se o acusador for rico e o acusado pobre as testemunhas venham à custa do acusador, se o acusado concordar; (ii) se ambos forem ricos venham as testemunhas à custa de cada um que as nomear; (iii) se o acusador for pobre e o acusado rico, venham à custa do acusado; (iv) se ambos forem pobres, mandem averiguar a verdade pelas justiças da terra. Em caso de incumprimento, de qualquer dos preceitos supra, o acusado perdia a segurança e seria preso de imediato150. Ao tempo deste normativo jurídico a competência para a outorga das cartas de segurança ainda pertencia aos ouvidores de el-rei, passando para os corregedores das comarcas, com a outorga do regimento de 1340151. Existem duas queixas dirigidas a D. Afonso IV, por causa das cartas de segurança. Numa primeira queixam-se que os segurados não comparecem perante as justiças, nos dias marcados – manda el-rei que o que não comparecer no dia aprazado na carta de segurança seja, de imediato, preso152. Noutra queixam-se que os mestres das ordens militares e os prelados, com justiça de sangue no seu senhorio, davam cartas de segurança em todos os feitos – el-rei proíbe-lhes essa outorga e impõe-lhe o respeito pelas cartas de segurança régias153. D. João I reitera a interdição a todos que tinham jurisdição em terras do reino, impondo que as justiças não guardem quaisquer cartas de segurança que lhe sejam mostradas,

Sobre as seguranças reais, vide Ordenações Afonsinas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984. Fac-simile a partir da edição das Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1792, Liv. III, Tít. 122 (= OA). 149 OA, Liv. II, Tít. 4. 150 ODD, pp. 393-394. 151 Marcello CAETANO, A Administração Municipal de Lisboa Durante a 1.ª Dinastia (1179-1383), 2.ª Edição, Academia Portuguesa de História, Lisboa 1981, pp. 158-174. José DOMINGUES, As Ordenações Afonsinas – Três Séculos de Direito Medieval (12111512), Zérifo Editora, Sintra 2008, pp. 245-259. http://docentes.por.ulusiada.pt/jdomingues/ 152 Lisboa, IAN/TT – Feitos da Coroa, Núcleo Antigo 458 (conta antiga: Forais Antigos, mç. 10, n.º 7) - Foros de Beja, fls. 45v-46. 153 Idem, fls. 47v.

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salvo as passadas pelos desembargadores de el-rei ou pelos seus corregedores154. D. Pedro I, em capítulo geral das Cortes de Elvas de 1361, mandou dar cartas de segurança aos que andavam fugidos, por crimes cometidos até ao dia 23 de Maio de 1361, excepto os que eram acusados pelos crimes de traição ou aleivosia. Os que tivessem matado homem ou mulher, deviam comparecer perante os ouvidores de el-rei; por outros malefícios, deviam comparecer perante os juízes dos lugares – “e nom sejam presos ataa que judicialmente seja achado per que o devão seer”155. D. João I (1385-1433) e o seu filho D. Pedro (enquanto regente – 1438-1449) vão lapidar a legislação em torno das cartas de segurança. O primeiro impôs que as cartas de segurança, para agressões físicas, se não passassem de imediato à ocorrência do crime, estabelecendo o decurso de trinta dias após a prática do crime. Por assento de 17 de Março de 1442, D. Pedro determina o prazo de seis meses para as seguranças por crime de homicídio, quando o acusado negar o crime; manteve a outorga imediata para os casos em que o autor confessar o malefício e alegar legítima defesa. Noutra conjuntura legislativa o monarca da Boa Memória aperta a malha na outorga das cartas de segurança, que será, posteriormente, aclarada por assento do regente D. Pedro, para evitar que as seguranças se peçam indevidamente com o intuito de ganhar tempo e depois fugir para outra parte156. Esta ampla legislação, materialmente constitucional, da Baixa Idade Média portuguesa, em torno da garantia processual penal, posteriormente designada habeas corpus, será compilada para a colectânea oficial das Ordenações Afonsinas (1446) e transmitir-se-á, mutatis mutandis, para as sucessivas Ordenações Manuelinas (1512-13/1514/1521) e Filipinas (1603). Pelo que, até ao movimento codificador, ditado pelos ideais das revoluções liberais, existiu em Portugal um verdadeiro instituto do habeas corpus. 7. Para o final deixamos a questão, sem dúvida, mais controversa e admirável – a da submissão do Estado à justiça: se o Estado de Direito implica a submissão do Estado ao Direito, se a justiça é o derradeiro escopo de todo o Direito, concludentemente, o Estado de Direito implica a submissão à justiça. Por outras palavras, não é possível patrocinar um Estado de Direito sem o cabouco do Estado de Justiça. Partindo deste silogismo, não deixa de ser ambíguo que no nosso sistema jurídico actual se imponha a observância da lei, mesmo que esta vá contra vectores da própria Justiça – “O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”157. OA, Liv. V, Tít. 112. OA, Liv. V, Tít. 57. 156 OA, Liv. III, Tít. 123; e Liv. V, Tít. 44. 157 Art. 8º/2 do Código Civil. Diogo Freitas do AMARAL, Manual de Introdução ao Direito, vol. I, Almedina 2004, pp. 121-123 –doutamente assevera que “uma lei injusta é uma lei inconstitucional, por violar o princípio do Estado de Direito Democrático. Daqui concluímos que o artigo 8º, n.º 2, do CC de 1966 é hoje inconstitucional, podendo e devendo as leis injustas ser de154 155

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A analogia que o preceito do actual Código Civil pode suscitar com a lei de 23 de Novembro de 1770 não pode passar em claro. Consta neste normativo, da segunda metade de Setecentos, que “Representando-Me [ao Rei] com todos estes fundamentos a referida Junta [a Junta das Confirmações Gerias] por huma parte, que ainda que havia ponderado, que não era do seu conhecimento a justiça, ou injustiça das Leis, nem ainda o disputar sobre a força, e merecimento dellas”158. Para além da distância temporal de mais de dois séculos que separam a vigência dos dois comandos jurídicos, ao tempo do último, em Portugal vivia-se sob a couraça do regime absolutista. Sendo certo e sabido que foi o aceso combate contra este regime político que deflagrou a revolução liberal, que, supostamente, arrastaria consigo o princípio do Estado de Direito, torna-se antinómico que no seio de um Estado que se pretende de Direito germine uma das divisas larvares do Estado Absolutista pré-constitucional – ninguém, nem mesmo os tribunais se eximiriam à observância da lei, mesmo que fosse injusta, quod lex non dicit iudex non facit. Desde os antigos filósofos gregos aos recuados parâmetros do Direito romano, pelo menos, que o conceito de Direito andou sempre, umbilicalmente, ligado à Justiça159. E. g., Bártolo, o portentoso jurista de todos os tempos, enfatiza que “o direito é derivado da justiça” – jus a justitia derivatur; S. Tomás de Aquino certifica que “o direito é a própria coisa justa” – jus est ipse res justa; Celso, Ulpiano e Baldo atestam que “o Direito é a arte do bom e do justo” – jus est ars boni et aequi. O conceito de justiça mais vulgarizado acabou por ser o de Ulpiano, sobretudo quando assevera que “justo é dar a cada um o que é seu” – Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi; Iuris praecepta haec sunt: honeste vivere, alterum non laedere, suum quique tribuere160. Um conceito mais completo saplicadas pelos tribunais, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do princípio do Estado de Direito democrático (CRP, art. 204º)”. 158 Collecção da Legislação Portugueza desde a última compilação das Ordenações regida pelo desembargador António Delgado da Silva, Legislação de 1763-1774, Lisboa 1829, pp. 504-513. http://legislacaoregia.parlamento.pt/Pesquisa/Default.aspx?ts=1 159 Para uma exegese, desde os autores clássicos, passando pelo Digesto, até chegar ao pensamento jurídico medieval português, cf. Ruy de ALBUQUERQUE e Martim de ALBUQUERQUE, História do Direito Português, Lisboa 1993, pp. 60-61, que acabam por concluir que, no pensamento medieval, “o direito está para a justiça como o filho para a mãe” (p. 69). 160 Dig. I, 1, 10. http://webu2.upmf-grenoble.fr/Haiti/Cours/Ak/ Freitas do Amaral entende que esta formulação não esgota toda a noção de justiça: “Tanto ou mais importante do que dar a cada um o que já lhe pertence, é dar a cada um o que lhe deva pertencer segundo um critério de justiça. Por isso usamos a fórmula, que se nos afigura mais correcta, de dar a cada um o que lhe é devido – o que abrange não apenas o que já seja seu, mas também o que a justiça exija que passe a ser seu. Isto é muito importante para abarcar as dimensões modernas de justiça, nomeadamente a justiça social: quando o Estado assegura aos cidadãos mais desfavorecidos o direito à saúde, à

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e menos assíduo nos manuais e literatura académica hodiernos, caiu da pena do infante D. Pedro para a carta de Bruges (c. 1426) que dirige ao seu irmão, o futuro rei D. Duarte (1433-1438): “A justiça tem duas partes: huma he dar a cada hum o que he seu, e a outra dar-lho sem delonga”. Esta concepção, particularmente portuguesa, para além de, mais uma vez, vazar o conceito elementar e terminante de Ulpianus, destila a austera preocupação medieva – perfeitamente transponível para a praxis quotidiana actual – com a morosidade da justiça. A justiça, como atributo fundamental do poder político medieval161, surge bem aclarada numa lei de D. Fernando (1367-1383) sobre as malfeitorias dos fidalgos (1375): “Porque a Justiça he sobre todollos beens e he virtude mais alta e mais proveitoso e mui necessaria a todallas cousas e sem ella nenhuma obra nom he de louvar e segundo disserom alguuns sabedores foi achada pera ajuda e defensom e especialmente dos pequenos menos poderosos que os maiores e poderosos; e assy pela ley de Deos como pela ley dos homeens he commetida e encomendada aos Reyx e a elles he mais propria que a outro nenhuum pera guardar e defender cada huum no seu e nom leixar nem consentir a nenhuum de fazer obra de poderio nem prema contra os seus sobjeitos; e segundo authoridade do sabedor Salamom e outros muitos Santos o Rey que consente ou leixa passar sem escarmento e sem pena será avudo por quebrantador e despreçador da ley de Deos cujo logo tem; e nom querendo usar de justiça de que usar deve pera louvar os boons e justos e penar malfeitores mereceria de perder o nome e estado de Rey; e segundo outro sy o dito de Aristoteles serião menos prezados dos homeens e condapnados da ley de Deos; e ainda segundo disserom os Santos Doutores da nossa Sancta Fe Catolica assy como antre os homeens Deos fez mais alto ao Rey e lhe deu maior estado assy ante Deos nas penas do outro mundo se justiça nom fizer ou se leixar de a fazer elle teera o principal logo e porem na obra desta justiça os homens boos e grandes do regno como braços de Rey devem a elle seer ajudadores”162. segurança social, à habitação, à educação, não está a dar-lhes algo que eles já possuam, mas sim algo que lhes falta e que a justiça impõe que lhes deva ser dado.” [Diogo Freitas do AMARAL, “O Princípio da Justiça no Artigo 266º da Constituição”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2002, pp. 699-700]. 161 Cf., entre outros, ALBUQUERQUE, História do Direito, pp. 55-90. 162 OA, Liv. III, Tít. 60, § 1. Também a cronística não é alheia a esta ideologia, v. g., as palavras que o conde D. Henrique, na hora da morte, dirigiu ao seu filho D. Afonso Henriques, fundador do reino de Portugal: “E faze sempre justiça (…) ca sse huum dia leixares de fazer iustiça huum palmo loguo outro dia se arredará de ti uma braça e do teu coraçom. E porem, meu filho, tem sempre justiça em teu coraçom e averás Deus e as gentes”, apud ALBUQUERQUE, História do Direito, p. 57. Nunca será demais aspar mais uma concepção medieva: “Por grande louvor he contado ao Rey ou a qualquer outro Pricepy da terra seer franco e liberal, usando com seu povoo de franquezas e liberdades e d’outras eixençõoes; e muito mais deve seer louvado

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O arquétipo do rei justo que nesse tempo se fazia sentir em Portugal já tinha raízes no século VII, mais uma vez ligado ao vulto erudito que influenciou toda a produção intelectual da Península Ibérica medieval, S. Isidoro de Sevilha (560636). Para o bispo hispalensis “são duas as principais virtudes régias, a justiça e a piedade. No entanto, deve destacar-se nos reis a piedade, pois a justiça, por si só, é severa” – regiae virtudes praecipiae duae: iustitia et pietas. Plus autem in regibus laudatur pietas, nam iustitia per se severa est163. Em pleno século XIII, para a nossa questão, assume foros de destaque o pensamento jurídico-político de S. Tomás de Aquino (1225-1274). Na construção teórica deste pensador de duzentos a lei positiva, criada pelo homem para possibilitar a vida em sociedade, subordina-se à lei natural. Quando a lei positiva desrespeita esta obediência converte-se numa lei injusta, perdendo o seu carácter imperativo. Por outras palavras, os destinatários não estão obrigados a respeitar as leis consideradas injustas164. As leis humanas só são viáveis na medida em que concretizem o ideal de justiça (justiça supra-legal), caso contrário deixam de ser leis, entendendo-se o Direito como objecto da justiça – Unde manifestum est quod ius est objectum iustitiae165. Eis a verdadeira essência do moderno Estado de Direito, que Freitas do Amaral radica neste autor de Duzentos – “o Estado que é fundado no Direito e que deve respeitar a justiça, o que permite aos cidadãos

quando he avudo por justo. E o Rey justo justifica realmente seu nome e conserva longamente seu real estado e senhorio e por esso he chamado Rey, pera que aja de reger justamente seu Regno e manteer seu povoo em direito e justiça; e quando o elle justamente nom rege, já nom merece seer chamado Rey, pois que nom conforma seu nome aas suas obras. E conhecida cousa he que a primeira e principal virtude e que mais convem ao Rey ou ao Princepy assy he a Justiça polo que dito he e ainda por seer cousa celestial e enviada per Deos dos seus altos Ceeos aos Reix e Princepes em este mundo em que se ajam de fundar, pera justamente reger e governar seus Principados e Senhorios. E esto se prova per autoridade do Salmista, honde disse que a justiça do alto do Ceeo esguarda e a verdade da terra he nascida; e em outra parte se lee que leixarom de peccar os boons por suas virtudes e os maaos por temor da justiça, receando as penas que acustumarom de padecer os que de semelhantes pecados usaram” (OA, Liv. V, tít. 1, Início). 163 Renan FRIGHETTO – “Tutaque sit inter inprobos innocentia: aspectos teóricos e práticos sobre os limites da autoridade régia no reino hispano-visigodo de Toledo segundo as fontes jurídicas e conciliares do reinado de Chintila (636-640)”, Scripta Mediaevalia, n.º 1, Universidad Nacional de Cuyo, Argentina 2008, pp. 117-139. A propósito da piedade, Ariel GUIANCE, “A Pietas e a Realeza: Modelos de Poder na Monarquia Castelhana Medieval”, Signum, n.º 3, São Paulo 2001, pp. 61-73. 164 “este carácter ético do Estado e o respeito que lhe é devido cessam, segundo S. Tomás, no caso das leis injustas e no da tirania” – L. Cabral de MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, vol. 1, Clássicos Jurídicos, Reimpressão, Coimbra Editora, 2006, p. 85. 165 Elcias Ferreira da COSTA, “A Conceituação do Direito em Santo Tomás de Aquino”, A Ética Medieval Face aos Desafios da Contemporaneidade, Porto Alegre 2004, pp. 295312.

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reagirem contra as injustiças mesmo quando cometidas pelo próprio Estado”166. Uma coisa são as teorias doutrinais e outra, bem distinta, o exercício prático do poder político medievo. Não será mero acaso que o supremo tribunal do reino português, até D. Afonso V (1438-1481), se identifique com a Casa da Justiça e só posteriormente se passe a designar como Casa da Suplicação. Ainda hoje os tribunais são, comummente, identificados como casas da justiça e os advogados terminam as suas alegações com o “peço justiça”. Será possível precisar um pouco mais o pragmatismo do conceito doutrinário medieval de Estado de Justiça, no espaço geográfico do reino de Portugal? Acreditamos que sim, muito embora a questão tenha que ficar em aberto, susceptível a ulteriores achegas. Passando a palavra à pena do Medievo, chamamos à colação (i) o debate em torno da vindicta privata – considerado “o primeiro passo do homem no longo caminho para o pleno Estado de Direito”167; (ii) a contestação, em Cortes, contra a lei mental; (iii) a III Oratione de Jean Jouffroy a favor do infante D. Pedro. (i) Arraigada, desde tempos primitivos, a vindicta privata consiste numa arcaica forma de tutela jurídica privada em que, sobretudo em caso de morte ou desonra, os parentes do ofendido, depois de verificada a culpa do acusado e autorizados pelo concelho ou juiz, podiam fazer justiça por suas próprias mãos – não confundir com a vingança, em que o ofendido actua por sua própria conta e autoridade. Já D. Afonso II (1211-1223) tinha regulamentado este instituto judiciário168, mas vais ser no reinado de D. Afonso IV (1323-1357) que se vai travar um interessante diálogo contra esta prática consuetudinária, considerada injusta. O Bravo, no início do seu reinado, promulga uma lei (1326) contra o direito de vindicta e será pouco despiciendo que o incipit consigne mais um apelo ao conceito de justiça169. O derradeiro objectivo do monarca é acabar com as mortes AMARAL, “O Princípio da Justiça”, pp. 692-693 e p. 698 – “com S. Tomás de Aquino, surge a ideia de justiça supra-legal, uma justiça que orienta a elaboração das leis e que, se não for respeitada por elas, permite ao cidadão criticar a lei, contestá-la, procurar alterá-la e, nos casos mais extremos, desobedecer-lhe”. 167 John GREENFIELD, “A Vingança de Sangue no Parzival de Wolram von Eschenbach”, Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literatura, série II, vol. 9, Porto 1992, p. 83. Refere o autor que este mecanismo de defesa próprio ainda hoje é praticado, em certas zonas isoladas da Europa (na Sicília e na Sardenha), sob a designação de vendetta. 168 Cf. José Duarte NOGUEIRA, Lei e Poder Régio I – As Leis de Afonso II, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa 2006, pp. 299-307. Numa lei de D. Dinis, datada de 31 de Julho de 1318, consta que, desde os reis antecessores, se não podia tomar vindicta no lugar onde o rei estivesse e num raio de duas léguas à sua volta – é a chamada paz de el-rei (ODD, p. 303). 169 “A milhor das virtudes per que o mundo se sostem e rege assy he aquella per que cada hum ha o seu e per que cada huum guarda sua honrra e he mantheudo no seu estado; e esta virtude he a Justiça” – note-se, mais uma vez, a afinidade com o conceito de Ulpiano. 166

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constantes derivadas da justiça privada e obrigar os ofendidos a recorrer à justiça pública: garantindo justiça aos mais fracos, que careciam de força para exercer a sua vindicta, e, por outro lado, evitar a vindicta desproporcionada e exagerada dos mais fortes. O discurso régio, para se opor ao vetusto Direito costumeiro, recorre assiduamente ao amparo da justiça, v. g., logo no começo “Nós Dom Affonso pela graça de Deos Rey de Purtugal e do Algarve veendo e consirando quanto bem e quanta prol nace e vem da Justiça e entendendo camanho carrego hi aos Reyx jaz em a fazerem e sosterem e em como della a Deos ham de dar recado, quando se assy nom fizesse; e porque huma das cousas que assinadamente aos Reyx perteence assy he poerem antre os da sua terra assessego e concordia com Justiça e per Justiça tirar dantre elles bulliço e desavença”. Em diploma interpretativo posterior afirma, categoricamente, que o costume antigo da vindicta e revindicta era contrário ao Direito de Deus e ao Direito natural – “achamos que aquel custume antiguo que os filhos d’algo diziam que lhes fora aguardado nom podia seer dito custume pois nom tam sollamente era contra direito de Deos, mais ainda era contra direito natural”170. Em defesa da sua decisão legislativa o soberano refere que noutros reinos, onde sempre se guardou a justiça e nunca se fizeram estas vindictas, se guardava o Direito comum. Não deixa de ser curioso este apelo ao Direito comum – sobretudo romano-canónico, que grassavam por toda a Europa – em detrimento do direito consuetudinário - “E veendo que este Direito era proveitoso e com razom e com arredamento de todo o dapno e catando que aquelle uso e custume era contra este Direito e trazia comsigo dapno e estrago e assinadamente contra a Ley de Deos”. Em definitivo, a declaração final no título das Ordenações Afonsinas (1446) impõe aos fidalgos o recurso à justiça pública e proíbe a justiça pelas próprias mãos, salvo no caso de encontrar a mulher em flagrante delito de adultério, “honde lhe he outorgado per costume dos nossos Regnos que per sy meesmo possa tomar vingança da dita deshonra sem outra authoridade de Justiça”171. Os mais acérrimos teóricos do legalismo-positivista podem interpretar, a contrario sensu, que se trataria de um primado da lei, que se consegue sobrepor ao costume. Embora esta fonte de Direito perca alguma força e autonomia com a recepção do Direito comum, continua a ser fonte primordial do Direito – mantendo-se, por vezes, pelo simples facto de ser antigo, ainda que se reconheça mau ou danoso172 – e esta conjuntura está longe de reproduzir um mero conflito de fontes de Direito e, menos ainda, o imperium incipiente da lei escrita. O que ditou a abolição deste costume grosseiro foi, seguramente, o Estado de Justiça. Repare-se que pouco tempo atrás, em Galiza, Afonso X tinha optado por uma hierarquia de fontes distinta. Sendo-lhe querelado que os juízes eclesiásticos de Santiago Clara alusão às teorias de S. Tomás de Aquino. OA, Liv. V, Tít. 53. 172 Nuno Espinosa Gomes da SILVA, História do Direito Português – Fontes de Direito, 5.ª edição revista e actualizada, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2011, pp. 272-275. 170 171

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de Compostela aplicavam o Direito comum (romano-canónico) em prejuízo do Direito costumeiro e do Fuero Juzgo (tradução do Código Visigótico, feita por Fernando III, em 1241), o Sábio mandou que sentenciassem pelos costumes e usos da cidade e, na falta destes, pelo Libro de Judgo173. (ii) Esta lide vitoriosa contra uma fonte de Direito injusta espelha bem a ideia de Estado de Direito/Justiça que vimos defendendo. A liça também se podia desenvolver contra uma norma régia. A lei mental, apesar do eco fraco que chegou até nós, foi, com certeza, muito contestada pela fidalguia portuguesa do final do século XIV e século XV174. Embora sem êxito, ainda nas Cortes de 1472/73 os fidalgos se queixam que “amtre as Lex e ordenaçõees que asy sam feitas em perjuizo dos fidalgos e a mais perjudicial e mais tocamte a todos a ley mentall que se chama feita per elRey voso padre muito contra dereito e justiça e aimda comtra sua comçiemçia e contra a vossa”. O monarca usa o mesmo argumento para não revogar a dita lei mental, nomeadamente, que “a ley memtall ouue primçipio e fumdamento em elRey dom Joam seu avoo e foy depoys por el Rey dom Duarte seu pay de todo autorizada e pobricada avemdo os ditos Reis a ley sobredita por proueitosa e necesaria pera o bem de seus Reinnos e cousas da corroa deles nem desvaira muito do dereito da primagenetura em outros Reynos usada e praticada e protamto parecee ao dito Sennhor que nom seria cousa rezoada nem de bom emxempro que ele ora inouase e mudase o que seus amteçeçores com preposyto tam laudauel e justo hordenaram por proueito destes Regnos quamto mais que he notorio que em seus dias a dita ley mentall nam trouue pejo alguum a seus fidalgos”175. A partir das Ordenações Manuelinas, esta lei passa a integrar a compilação oficial de Direito176. No entanto, em momento anterior, a fidalguia conseguiu a sua exclusão da compilação oficial anterior, na palavra autorizada de Marcello Caetano: “É um mistério a sua omissão nas Ordenações Afonsinas, fruto porvenFaustino MARTÍNEZ MARTÍNEZ, “Antologia de textos forales del Antiguo Reino de Galicia (Siglos XII-XIV)”, Cuadernos de Historia del Derecho, n.º10, Universidad Complutense, Madrid 2003, pp. 262-263. Idem, “Notas sobre la penetración del derecho común en Galicia (siglos XII-XV)”, Cuadernos de Estudios Gallegos, Tomo 48, fascículo 114, Santiago de Compostela 2001, pp. 93-96. 174 Sobre a lei mental e a sua oposição por parte da nobreza: Humberto Baquero MORENO, “Contestação e oposição da nobreza portuguesa ao poder político nos finais da Idade Média”, Revista da faculdade de Letras – História, 2.ª série, n.º 4, Porto 1987, pp. 103-118. Paulo MERÊA, “Génese da «Lei Mental» (algumas notas)”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. 10, Coimbra 1926-1928. Reeditado em Estudos de História do Direito I – Direito Português, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 2007, pp. 151-162 175 IAN/TT – Suplemento de Cortes, Maço 2, Doc. 14, fls. 63v-64. 176 Ordenações Manuelinas (1513), Liv. II, Tít. 17. 173

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tura da oposição dos fidalgos, que ainda nas Cortes de 1472 consideravam a lei como feita «contra direito e justiça»”177. Pena que nos falte a argumentação em torno deste afastamento, de qualquer forma, fica patente ser possível a oposição à lei régia medieval considerada injusta. (iii) Denúncia bem mais sintomática contra o Direito-lex – adoptando a designação sugerida por Vera-Cruz, que o contrapõe ao Direito-ius178 – surge, em meados do século XV, após a batalha de Alfarrobeira, onde viria a perder a vida o infante D. Pedro e vários fidalgos que o acompanhavam179. A conduta de D. Afonso V, é reprovada na grande maioria das cortes europeias, mas será a partir da corte de Borgonha que se organiza a contestação contra o monarca português e a defesa do infante executado, dos seus filhos, do seu património e dos seus partidários. D. Isabel de Portugal, duquesa de Borgonha e irmã do falecido infante D. Pedro, acolhe os seus sobrinhos e organiza uma embaixada a Portugal. A embaixada borguinhã foi encabeçada pelo deão de Vergy, Jean Jouffroy, que chegou a Portugal em meados de Outubro de 1449, imediatamente a seguir à batalha de Alfarrobeira (20 de Maio de 1449). O propósito desta embaixada é a reabilitação da memória do ex-regente do reino, a protecção dos bens aos seus herdeiros e a restituição da honra e da fama à família. Nesse sentido o deão de Vergy, recebido pela corte portuguesa em Évora, vai proferir quatro discursos ou orationes: a primeira, no dia 6 de Dezembro de 1449; a segunda, no dia 29 de Dezembro de 1449; a terceira, no dia 12 de Janeiro de 1450; e a última, no dia 16 de Janeiro180. A tertia oratione181 traduz uma habilíssima defesa jurídica, caída da pena de um jurisperito bem familiarizado com o ius commune, mas também conhecedor do ius proprium português. O domínio de ambos ordenamentos, permite-lhe um píncaro de contestação aberta à Lei do reino de Portugal (as Ordenações Afonsinas) – “Todavia a isto chamar-se-á lei ou dissolução de todas as leis? – Haec utrum dicetur tandem lex na legum omnium dissolutio?”182. A sublevação contra o Direito iníquo destila ao longo de toda a tertia oratione do jurista de Luxeuil, Jean Jouffroy, v.g., quando propõe o Direito natural em vez das leis do

Marcello CAETANO, História do Direito, p. 515. VERA-CRUZ, Curso Livre de Ética, pp. 185-200. 179 Sobre Alfarrobeira: Humberto Baquero MORENO, A Batalha de Alfarrobeira – Antecedentes e Significado Histórico, Biblioteca Geral da Universidade, Coimbra 1979. 180 Manuel Francisco RAMOS, Orationes de Jean Jouffroy em Favor do Infante D. Pedro (1449-1450) – Retórica e Humanismo Cívico, Dissertação de Doutoramento em Literatura apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto 2006. 181 RAMOS, Orationes, pp. 176-250. 182 RAMOS, Orationes, pp. 216-217, 322-323 e 328-331. Cf. a nota 112 à terceira oratione, em que o autor salienta a analogia com a doutrina de S. Tomás de Aquino, na Suma Teológica, “na medida em que uma lei se opõe ao direito natural não é lei, mas uma corrupção da lei”. 177 178

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reino – “legibus regni tui naturam”183. Em causa estava, sobretudo, a lei das Afonsinas que, disciplinando o crime de lesa-majestade, prescrevia a confiscação imediata dos bens do traidor, sem qualquer processo judicial, desde que a traição fosse notória – “Pero se o malefício for notorio, serom elles confiscados, tanto que o maleficio for cometido, per esse meesmo feito sem outra alguma sentença”184. Nestes conturbados tempos (meados do século XV) existe uma multiplicidade de fontes jurídicas que vigoram no reino de Portugal. No entanto, o que, à primeira vista, parece ser um mero conflito de fontes de Direito – o Direito comum, invocado pelo jurista de Luxeuil, contra o Direito próprio, alegado pelos jurisperitos conselheiros de D. Afonso V – encontraria fácil solução nos critérios de hierarquização estabelecidos nas próprias Ordenações Afonsinas. Logo no primeiro parâmetros aí fixado, o ordenamento jurídico pátrio (lei do reino, estilo da corte e costume) prevalece sobre o utrumque ius (leis imperiais e santos cânones), “porque onde a Ley do Regno dispõem cessam todalas outras Leys e Direitos”185. O que quer dizer que, em 1449/50 em Évora, a vantagem do jurisperito mandatário de D. Isabel de Portugal, nada tem a ver com a “superioridade do Direito romano justinianeu” em Portugal, ao ponto de se considerar “direito su-

RAMOS, Orationes, pp. 184-185. OA, Liv. V, Tít. 2, § 12. Não deixa de ser curioso que, apesar de as Partidas de Afonso X serem a fonte próxima deste título, não se encontra qualquer correspondência para o § 12. Sobre este título das Afonsinas: Ana Isabel Barceló Caldeira FOUTO, “Dos que fazem treiçom, ou aleive contra ElRei, ou seu Estado Real. A transformação do Conceito de Traição Medieval no Contexto da Recepção do Direito Justinianeu e a Construção do Conceito Moderno de Traição”, Revista de História do Direito e do Pensamento Político [em linha], Instituto de História do Direito e do Pensamento Político da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, n.º 1, 2010, pp. 7-60. [data de consulta: 16 de Dezembro de 2011]. Disponível em: http://www.fd.ul.pt/Institutos/InstdeHistdoDireitoedoPensamPolítico/RevistaHDPP.aspx 185 OA, Liv. II, Tít. 9. Para esta matéria consulte-se: José Artur A. Duarte NOGUEIRA, “Algumas reflexões sobre o direito subsidiário nas Ordenações Afonsinas”, sep. Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXIV, n.º 4, Coimbra 1980. Nuno J. Espinosa Gomes da SILVA, “O Sistema de fontes das Ordenações Afonsinas”, Sep. Revista Scientia Iuridica, tomo XXIX, n.º 166-168, Braga 1980. Guilherme Braga da CRUZ, “O direito subsidiário na história do direito português”, Revista Portuguesa de História. Homenagem ao Doutor Paulo Merêa, Tomo XIV, vol. III, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1975, pp. 177-316 / Obras Esparsas: Estudos de História do Direito. Direito Moderno, vol. II, 2.ª Parte, Coimbra, 1981, pp. 245-436. 183 184

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pra regna”186. A primazia de Jouffroy é outra e reside mais no facto de a lei do reino estar em antinomia com a Justiça. Por isso, a considera não-Direito, contra o Direito natural, e chama à colação e em defesa da sua pretensão o Direito comum. No entanto, o discurso é bem mais “bífido” do que pode parecer aos menos familiarizados com o pensamento jurídico-político medieval187, na medida em que dirige um ataque perigoso ao predicado legitimador do próprio poder do rei. O alcance do dano causado pela oratione de Jean Jouffroy na orbe dos juristas de Afonso V pressupõe, antes demais, o afastamento de uma visão meramente positivista do Direito e o despir de alguns mitos que enfermam o jurista moderno. O Direito medieval português, à semelhança da maioria dos outros países europeus, é profundamente influenciado pelo ideário cristão, mormente no âmbito penal – v. g., confundindo-se a ideia de crime com a de pecado ou acreditando na intervenção divina nos processos de ordálio ou juízo de Deus e nos juramentos probatórios188. Não admira! Porque se acredita que todo o Direito procede de Deus. Esta origem sagrada implica, necessariamente, que o Direito seja justo. Ou seja, se Deus é Justiça, se o Direito deriva de Deus, então só pode ser Direito aquele que revista carácter de justo. Caso contrário, será não-Direito ou, aspando as palavras do Jouffroy, “legum omnium dissolutio”189. Esta é a primeira premissa. O alcance definitivo da tertia oratione depende, em simultâneo, da arraigada teoria do direito divino (sobrenatural ou providencial), segundo a qual o poder político do monarca radica em Deus. O rei é o vigário de Deus na terra. Por isso, é a ele que incumbe fazer justiça na terra, em Sua representação. Atente-se na palavra do texto jurídico português coevo: “todo Rey e Princepy antre todallas outras cousas deve principalmente amar e guardar justiça, deve-a guardar e manteer em especial acerca dos peccados e maldades tangentes ao Senhor Deos, de cuja mãao tem o regimento e seu real estado, como dito he; e aquelle que o assy nom fezesse deveria seer reputado por indigno e desmerecedor da mercee e beneficio que delles recebeo; e assy como aquelle que ouvesse encorrido em peccado de ingratidooem, devia pouco durar seu estado e senhorio”190. Em definitivo, o rei que não seja justo, incorre em conduta pecaminosa de ingratidão com a própria divindade, não merecendo ser considerado rei. Aspamos as expressões de RAMOS, Orationes, pp. 328-329. Para o conceito de Direito na Idade Média, cf. Faustino MARTINEZ MARTINEZ, “Idea Medieval del Derecho”, E-Legal History Review, n.º 2 (Junio, 2006). http://www.iustel.com/v2/revistas/detalle_revista.asp?id=15&numero=2 188 Teresa MORAIS, “Dos Meios de Prova no Direito Medieval Português, notas para a história do juramento”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raúl Ventura, Coimbra Editora, 2003, pp. 401-444. 189 Entre outros, o jurista Álvaro Pais († 1349), no seu De Statu et Plactu Ecclesiae, deixou consignado: “Leges aute qs faciunt reges tales debent esse.vt p. eas fiant homines bonivirtuosi. Al’s nõ sunt leges; sed corruptiones legum”, apud ALBUQUERQUE, História do Direito, p. 84. 190 Ordenações Afonsinas, Liv. V, Tít. 1, § 1. 186 187

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O rei que não faz justiça não pode ser considerado o legítimo ministro de Deus na terra. Cerca de dois séculos antes, o monarca português, D. Sancho II, tinha sido deposto pelo Papa Inocêncio IV. A deposição régia na Idade Média concentrou-se em torno do monarca iniustus, do tyrannus e do rex inutilis. A bula Grandi non immerito, outorgada a 24 de Julho de 1245, faz referência constante à falta de justiça e apresenta uma radiografia de um reino sem justiça, onde grassavam “ladrões, espoliadores, usurpadores, incendiários, profanadores públicos e abomináveis homicidas”, e de um rei que “conscientemente tolera criminosos assassinatos tanto de clérigos como de leigos, de nobres ou humildes, sem atender à religião, ao sexo ou à idade, assim como os roubos, os incestos e os raptos de mulheres, quer freiras quer seculares, e os cruéis tormentos que alguns desse reino infligem a negociantes ingénuos com o fim de extorquir-lhes dinheiro. E, além de parecer que tais crimes são cometidos com o consentimento dele, visto ficarem impunes, são uma porta aberta para coisas piores”191. Repare-se como, desta forma sagaz e não apenas com uma aparente superioridade do ius commune (esgrimido como Direito justo), são atacados os alicerces do poder político do monarca português. Existe melhor submissão do poder político à Justiça do que esta? Ou melhor ostentação do Estado de Justiça do que esta? Com tão incisiva manifestação do Estado de Direito, em tempos ainda muito remotos ao constitucionalismo revolucionário norte-americano e francês, arrematámos e passamos a breves conclusões finais.

1. Conclusão Cônscios de que nas civilizações antigas (nomeadamente a grega e romana) a escravatura é uma realidade quotidiana incontestável, que a Magna Carta foi um pacto de carácter prosélito, apenas entre o monarca e os barões ingleses, que muitos pensamentos não passaram de meros ideários escritos, que certas vicissitudes compilatórias não se identificam com verdadeiras manifestações originárias do poder constituinte (no sentido formal em que o entendemos hoje), apesar de admitirmos certas conquistas válidas do constitucionalismo revolucionário, estamos convictos que a vivência do Estado de Direito se pode reportar a épocas bem mais recuadas e a distintas comunidades humanas. Num momento em que, a mais de dois séculos do prisma do constitucionalismo liberal dos finais do século XVIII, se antevê a decadência das realidades indissociáveis de Estado e Constituição, a separação de poderes (que tende a esba191

José VARANDAS, «Bonus Rex» ou «Rex Inutilis». As Periferias e o Centro – Redes de Poder no Reinado de D. Sancho II (1223-1248), Dissertação de Doutoramento em História Medieval, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa 2003. Publica a bula de deposição na nota 134, pp. 343-346.

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Lucubrações em Torno do Estado de Direito

ter-se para uma ineficaz distribuição de poderes) deixa de funcionar como mecanismo de controlo do poder político, do imperialismo da lei brota um segmento irrefreável de não-Direito, se abafam fontes verosímeis do Direito, se preceitua a existência de normas injustas e, sobretudo, de normas constitucionais inconstitucionais… não será pouco recomendável um olhar para o passado memorável do princípio do Estado de Direito. Neste sentido, sem querer menosprezar excelsos contributos, nomeadamente o da common law, o direito ibérico medieval ainda tem muito para nos ensinar. Em definitivo, sem objectar à laicização do poder jurídico-político ocidental192, não podemos aceitar que, negligentemente, se abandone a procura assídua da justiça, mesmo com a única certeza de nunca a alcançar. Justiça e Direito são partes integrantes do mesmo ordenamento jurídico, as duas faces da mesma moeda. No entanto, o Direito legalista-positivo nem sempre é Direito justo e a Constituição também não esgota o parâmetro último e definitivo da justiça. Existe Justiça para além de qualquer direito positivo, seja ordinário ou constitucional. Por isso, em pró do Direito-jus, deve ser legítima a defesa do cidadão contra o Direito-lex e, sobretudo, “os tribunais portugueses têm o dever de não aplicar as leis clara e verdadeiramente injustas ou imorais, ao menos na hipótese de um grave atentado à justiça ou à moral”193. Mas para isso não basta compulsar códigos actualizados e conhecer leis vigentes. Fazendo jus ao paradigma milenar de Celso (Séc. I-II) – que encima este singelo trabalho – saber Direito não é conhecer, apenas, a letra dos textos jurídicos em vigor.

Como ficou dito, em épocas remotas, o poder jurídico e, consequentemente, o conceito de justiça está arreigado ao religioso. Actualmente, em Portugal, vigoram os princípios da liberdade religiosa e da separação entre as Igrejas e o Estado (art. 41º CRP), nomeadamente, “as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado”. Por sua vez, a lei ordinária (Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho – Lei da Liberdade Religiosa), no seu art. 4º/1, estabelece que o Estado é laico e “não adopta qualquer religião nem se pronuncia sobre questões religiosas”. 193 Oração de Sapiência, proferida em 10 de Outubro de 1957, pelo Doutor José Carlos Martins Moreira – Orações de Sapiência da Faculdade de Direito – 1856-2005, coordenação de Maria João Padez de Castro e Rui Figueiredo Marcos, edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra 2007, p. 254. 192

Lusíada. Direito. Porto n.º 4 - 2.º Semestre (2011)

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