Lugares do amor em Bandeira

July 5, 2017 | Autor: João Victor Pereira | Categoria: Comparative Literature
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO  FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS (FFLCH ­ USP)                  João Victor Pereira da Silva                           

LUGARES DO AMOR EM BANDEIRA:  Um ensaio sobre os poemas “O impossível carinho” e “Arte de amar”                      SÃO PAULO  2015   

JOÃO VICTOR PEREIRA                           

LUGARES DO AMOR EM BANDEIRA:  Um ensaio sobre os poemas “O impossível carinho” e “Arte de amar”    Trabalho  final   da  disciplina  Literatura  Brasileira  I. Prof. Dr. Alcides Villaça.  Universidade de São Paulo​  (USP)  Faculdade  de  Filosofia,  Letras  e  Ciências  Humanas (FFLCH)  Departamento  de  Teoria  Literária  e  Literatura  Comparada (DTLLC)                   

SÃO PAULO  2015  1 

EPÍGRAFE      “Espiritualmente…  minha  filosofia  é  a  de  Einstein.  ‘Minha  religião  —  disse  ele  —  consiste  numa  humilde  admiração  pelo  espírito  superior  e  sem  limites  que  se  revela   nos  menores  detalhes  que  possamos  perceber  com  nossos  frágeis  espíritos.  Essa  profunda  convicção  sentimental  da  presença  de  uma  razão  poderosa  e  superior  revelando­se  no  incompreensível  universo — eis a minha ideia de Deus.’ Quando li isto, disse comigo mesmo: ‘É exatamente o  que  eu  sinto’.  Não  compreendo  a  negação  absoluta  de  Deus. Como é que  veio essa coisa que  não  começa  nem   acaba?  Tempo  infinito…  Espaço  infinito…  Uma  coisa  absurda  que,  no  entanto, existe!”1      Manuel Bandeira                 

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 BLOCH, P. ​ Pedro Bloch Entrevista.​  São Paulo: Bloch Editores, 1989.   2 

AMOR, INFÂNCIA E DEUS    Este  ensaio  busca  relacionar  dois poemas de Manuel Bandeira entre si: “O impossível  carinho”  (in  Libertinagem​ ,  1930)  e   “Arte  de  amar”  ​ (in  ​ Belo  Belo​ ,  1948).  A   análise  de  cada  texto  se  fará  destrinchando  o  modo  como  o  Amor  aparece  em  cada  um  dos  poemas,  individualmente,  tentando  elucidar  seu  valor  para  o  eu­lírico.  A  interpretação  dos  poemas se  fará  de  forma  conjunta  e  contrastiva,  em  forma  de  ensaio.  Busco,  nas  páginas  que  seguem,  elucidar a temática do Amor em dois momentos distintos da poesia de Manuel Bandeira.    O  AMOR  E  A  INFÂNCIA.  ​ Nos  versos  iniciais  do  poema  “O   impossível  carinho”,  são  apresentados  dois  sentimentos  diferentes:  o  desejo  e  a  ternura.  Em  uma  primeira  leitura,  não  se  pode  inferir   muito  sobre   as  acepções  que  o  poema  dá  para  essas  duas  palavras,  que  podem  construir  inúmeras  relações  de  significado  entre  si.  O  que  fica  claro  é  o  percurso  lógico  que  ele  vai  percorrer:  partindo  do  pressuposto de que desejo e ternura são sentimentos  opostos,  o  eu­lírico  faz  a  escolha  de  negar  seu  desejo,  contrapondo­o  a  sua  ternura,  essa sim  validada  por  ele.  A  ideia  central  que  encerra   esse  trecho  é  a  de  que  o  eu­lírico  tem  uma  vontade:  contar  sua  ternura  a  um  alguém.  Marcas  como  “escuta”  e  “contar­te”  delimitam,  logo  nos  primeiros  versos,  a  presença  desse  alguém,  um  interlocutor  definido,  mas  que  só  será  explicitado  mais  tarde.  Essa  é  a  primeira  parte  do  poema,  que  se  constrói  em  um  momento presente, a partir da materialidade das vontades do eu­lírico.  O  terceiro  verso  dá  início  à  segunda  parte  do  poema.  A  primeira   elucidação  que  ela  traz  é  a  explicitação  de  quem  é  a  pessoa a quem se dirige o eu­lírico. Ao dizer que ele recebe  desse  alguém  “tanta  felicidade”,  aproximamo­nos  da  figura  da  pessoa  amada.  O  poema,  que  antes  poderia  se  dirigir  a  um  eu  universal,  indefinido,  agora, sabe­se, fala àquela que se ama.  Retomando  o  primeiro  verbo  do  poema,  “escuta”,  fica  ainda  mais  palpável  a  figura  dessa  pessoa.  É,  muito  provavelmente,  uma  mulher  bastante  próxima do eu­lírico, com quem ele já  construiu  alguma  história.  O  verbo,  embora  no  imperativo,  traz à fala do eu­lírico um tom  de  afetividade  que  inexistiria  se  o  verso  inaugural  do  poema  não  viesse  introduzido  por   essa  frase com função fática.   Mais  adiante  na  leitura,  os  versos  que  compõem  a  segunda  parte  são  construídos  em  tom  de  lamentação.  Introduzida  pela  forma  fixa  “ah   se…”,  essa  parte  do  poema  anuncia  ao  leitor  um  momento  de  desabafo  ou  lamúria  do  eu­lírico.  Estruturalmente,  elementos  como  a  3 

partícula  ​ se​ ,  no  terceiro  verso,  e  os  morfemas  modo­temporais  ​ ­sse  dos  verbos  ​ pudesse  e   soubesse  (conjugados  no  pretérito  imperfeito  do  subjuntivo)  conferem  a  toda  essa  porção do  texto  uma  ideia de impotência do eu­lírico perante uma situação. Da leitura de toda a segunda  parte,  poderia­se  extrair  uma  oração  de  valor   condicional,  que,  reorganizada  na  forma  direta  resultaria na seguinte oração: “Ah se eu pudesse e soubesse repor  no  teu coração despedaçado  as mais puras alegrias da tua infância…”   Embora  a  esta  oração  subordinada  não  se  relacione   nenhuma  oração  principal  (de  modo  a  dizer  o  que  aconteceria  caso  essa  condição  fosse  satisfeita),  fica clara a ideia que ela  contém.  O  eu­lírico  não  pode  e  não  sabe  repor  essas  alegrias,  mas  absolutamente  o  faria  se  assim  fosse  ​ possível​ .  Enquanto  a  primeira  parte  do  poema  se  constrói  alicerçado  na  materialidade  das  vontades  do eu­lírico (de não contar o seu desejo e de contar sua ternura), a  segunda  parte  se  constrói  na  impossibilidade  de  concretização  de  suas  vontades.  É  nesse  momento  que  o  leitor  parcialmente  unifica  a  leitura  do  poema:  por  não  poder  ou  não  saber  repor as mais puras alegrias da mulher que ama, é​  impossível​  que ele conte a ela sua ternura.  A  ternura  que o eu­lírico quer contar a sua amada é o impossível carinho de que fala o  título  do  poema.  No  momento  em  que  se  torna  possível  relacionar  o  título  do  poema  com  a  mensagem  que  está  gravada  em  seus  versos,  o  poema  ganha  sentido  para  o  leitor.  A  partir  disso,  porém,  outros  caminhos  se  abrem.  Por  que,  para  o  eu­lírico,  contar  sua  ternura  só  se  pode  fazer  repondo  no  coração  de  sua  amada  alegrias  de  sua  infância?  Por  que  é  tão  difícil  para ele fazer essa reposição?   Uma  tópica  na  lírica de Bandeira é a infância como uma “filosofia de viver”.2 Embora  em  diversos  momentos  de  sua  poesia  o  autor  remeta  à  sua  própria  infância  de   forma  memorialística,  encontrando nela matéria para sua poesia,  em outros, porém, esta fase da vida  ganha  um  caráter  de  objetivo a ser almejado. Parece a Bandeira que há algo de superiormente  evoluído  no  modo  como  as  crianças  enxergam o mundo, e no valor que têm suas “alegrias de  infância”.  É  justamente  esse  sentimento  primoroso  que  o  eu­lírico  quer  repor  no  coração  da  sua  amada.  Ao  adjetivar  “coração”  como  despedaçado,  o  poema  reforça  ainda  mais  a  importância  de   se  ter  reposto  no  peito  essa  alegria,  pura,  a  qual,  por  força  do  tempo,  vai  se  esvaindo e despedaçando o coração à medida que sai.  

 ​ COUTINHO, F. A memória da infância em Manuel Bandeira. In: FIÚZA, R. P.​  Modernismo: 80 anos. ​ Fortaleza:  Expressão Gráfica, 2002. p. 142  2



O  que  nos  resta  entender  nesse  momento  é:  como,  ao  contar  sua  ternura,  o  eu­lírico  poderia  causar  a  reposição  dessa  alegria?  E,  por  último,  por  que  ele  não  pode  e  não  sabe  fazê­lo?   Para  a  elucidação  dessas  questões,  é  necessário  retornar  aos  dois  versos  iniciais  e  buscar  valores  para  as  palavras  ​ ternura  e  desejo​ ,  que  ficaram  indefinidos  anteriormente.  Por  meio  de  uma  rápida  observação  da  estrutura  desses  dois  versos,  é  possível  notar   que  eles  se  constroem  em  paralelismo,  de  modo  que  se  torna  certa  a  oposição  entre  desejo  e  ternura.  Como  à  ternura  o  poema  atribui  o  valor  de  impossibilidade,  por  analogia  ao  desejo  está  atrelada a ideia da possibilidade.  Assim,  o  título  do  poema  condensaria  em  si  a  oposição  de duas formas de carinho. A  primeira  delas  é  o  carinho  possível,  que  parece  ser  facilmente  atingível.  É  o desejo sexual, o  beijo,  o  toque.  A  segunda  forma  é  o  carinho  impossível,  que  não  é  físico,  mas  sim  sentimental.  Seria  esse  o  carinho  ­  ou  simplesmente  o amor ­ que o eu­lírico queria ser capaz  de  transmitir  à  mulher  a  quem  ele  fala.  Esse  carinho,  que  tem  o  poder  de  repor  em  outro  coração  sentimentos  tão  puros  quanto  a  alegria  da  infância,  é  a  ternura  que  o  eu­lírico  quer  avidamente contar.   Os  motivos  por  trás  da impossibilidade de que esse carinho, essa ternura, seja contada  compõem  a  problemática  maior  do  poema.  Quando  os  versos  de  número  quatro  e  cinco  trazem, em evidência, as respectivas ideias do ​ não poder e do ​ não saber​ , a impossibilidade  de  que  se  fala  no  título  ganha  um  motivo:  a  impotência  do  eu­lírico.  Entende­se,  a  partir  disso,  que  sua  ternura  não  será  contada  porque  o  eu­lírico  não  pode  e  não  sabe  fazê­lo.  Embora  o  coração  do  eu  esteja  cheio  de  ternura,  que  provavelmente  são  as  ternuras  de  sua  própria  infância,  a  ele  nunca  caberia  uma tarefa tão grande como a de repor as alegrias mais  puras no  coração de alguém.   Ele  reconhece  suas  limitações  e  assume  uma  posição em que humildemente se recusa  a  repor  o  que  quer  que  seja  no  outro.  Em  “O  impossível  carinho”,  a  voz  que  fala  se  coloca  num  lugar  de  recolhimento  e  humildade em relação àquilo que toca. Ao  dizer que não sabe, e  ­  por  consequência  ­  não  pode  repor  as  alegrias  da  infância  da  amada,  ele  se  coloca  em  um  lugar  de  resignação  em  relação  ao  amor.  Assumidamente  impotente,  o  eu  transmite  nesses  versos  o  sentimento  de  que  o  carinho  superiormente  elevado que é a ternura da infância será,  para ele, um carinho sempre impossível de contar.   



O  AMOR  E  DEUS.  ​ Enquanto  “O  impossível  carinho”  claramente  escolhe  a  ternura  ao  desejo como forma de concretizar o amor, “Arte de amar” parece fazer a escolha contrária.  O  poema  de  Manuel  Bandeira,  famoso  por  seus  últimos  versos,  é  lido  por  muitos  como  um  grito  hedonista  pelo  amor  físico.   O  que  me  parece,  porém,  é  que,  longe  de  desfigurar  o  entendimento  que  Bandeira  sempre  teve  do  amor,  esse  é  um  poema   que  reflete,  por  meio  da  voz  de  um  eu­lírico,  a  humildade  que  permeia  sua  poética  ­  embora  o  faça  de  uma  forma  peculiar.   Como  em  "O  impossível  carinho",  o  verso  inicial  marca  a  segunda  pessoa   a  quem se  dirige  o  eu.  Embora  este  traço  desenhe  uma  congruência  entre  os  poemas,  no  sentido de que  os  dois  se dirigem a um alguém, ele é também um ponto de bifurcação. Enquanto no primeiro  poema  a  interlocução  vinha  direcionada  à  mulher  que   o   eu­lírico  ama,  nesse  ela  marca  uma  segunda  pessoa  universal,  o  que  dá  ao  poema  um  tom  de  conselho.  Essa  ideia  pode  ser  ratificada  no  título  do poema, que uso de um jargão próprio de textos instrucionais (“a arte de  argumentar”,  “a  arte  de  ser  feliz”,  etc)  para  implicar  a  ideia  de  que  amar  é  um  ofício,  que  pressupõe técnica e apuração.   Esse  câmbio  no  plano  da  forma  é  a  primeira  indicação  de  como a poesia de Bandeira  sofreu  mudanças  com   o   tempo.  Se  o  amor antes inspirava no poeta emoções das mais fortes  e  resultava em confissões lamuriosas, agora ele se reverte em poemas­cartilhas, em bulas frias e  objetivas.  As  mudanças  a  que  estão  sujeitas  a  poesia  de  Bandeira  também  se  refletem  no  plano  do  conteúdo.  Ao  dar ao leitor seu primeiro conselho em “Arte de amar”, o poeta parece  negar tudo o que antes disse sobre o amor.   Enquanto  em  “O  impossível  carinho”  o  amor  superiormente  elevado  era  aquele  que  podia ser concretizado na alma do outro ­ isto é, “em teu coração despedaçado” ­, agora ele só  pode  ser  alcançado  quando  tal  preocupação  com  a  alma  é  deixada  de  lado.  A  recusa  que  o  eu­lírico  faz  da  alma  no  processo  de  amar  vai  lentamente  se justificando ao longo do poema.  Fazendo  uso  de  quatro  versos,  o  poema  expõe  ao  leitor  dois  motivos  pelos  quais  a  alma não  pode  cumprir  função  na  arte  de  amar:  1)  as  almas  não  podem   se  comunicar  umas  com  as  outras; 2) só em Deus ou fora do mundo elas podem encontrar satisfação.    A  partir  da  primeira   ideia  já  é  possível  entender  que  o  poema   não  necessariamente  contradiz  “O  impossível   carinho”.  Quando  o  eu­lírico  afirma  que  as  almas  são  incomunicáveis,  ele  está  retomando  uma  ideia  contida  na  segunda  parte  do  outro  poema.  Da  mesma  forma  que  o  eu­lírico  antes  não  podia  e  não  sabia  repor  na  alma  de  sua  amada  a  6 

ternura  que  lhe  faltava,  ainda  agora  ele  parece  não  saber.  Dessa  ideia  da incomunicabilidade  das  almas  decorre a de que não é possível encontrar satisfação na alma do outro: o impossível  carinho de que fala o primeiro poema está sendo contado também no segundo.   Quando  essas  impossibilidades  são  percebidas  dentro  do  segundo  poema,  podemos  entender  porque   é  necessário  que,  ao  praticar  o  amor,  ignoremos  nossas   próprias  almas.  Ao  tentarmos,  como  tentou  o  eu­lírico  em  “O  impossível  carinho”,  nos  comunicarmos  com  outras  almas  e  ao  tentarmos  buscar  nelas  satisfação  própria,  padecemos.  O  que  sobra  dessa  tentativa  de  concretizar  o  amor  no  campo  sentimental  é  sempre  o  “ah  se…”  que  habita  “O  impossível carinho”. Nesse sentido, a nossa alma é quem estraga o amor.  Até  esse  momento,  “Arte  de  amar” não traz nenhuma ideia nova no que diz respeito à  concepção   de  amor:  quando  o  eu­lírico  aconselha  que  o  leitor  ignore  sua  própria  alma  ao  praticar  a  arte  de  amar,  ele  apenas  reforça  que  devemos  humildemente  aceitar  nossas  impotências,  e  nos  recolher  diante  delas.  É  a  partir  da  segunda  ideia,  porém,  que  uma  nova  luz  recai  sobre  “O  impossível  carinho”  e  um  novo  contraste  pode  ser  rascunhado  entre  ele  e  “Arte de amar”.  Para  o  eu­lírico  do  primeiro  poema,  as  alegrias  e  memórias  da  infância  constroem  dentro  de  cada  ser  um  lugar  em  que  poderia  habitar  o  amor  mais  puro,  no  qual  se  poderia  alcançar satisfação, e que ele tentou tocar em sua amada. O que “Arte de amar” diz sobre esse  lugar  é  que  ele  na  verdade  está  em  Deus  ­  ou  fora  do  mundo.  A  ideia  de  que  a  satisfação da  alma  só  pode  se  encontrar  em  Deus  pode  ser  melhor  entendida  a  partir  da  filosofia  da  Trindade,  do  Cristianismo.  Feito  à  imagem  de  Deus3,  o  homem  é  corpo,  alma  e  espírito.  Enquanto  corpo  e  alma  constroem  uma  dualidade  indissolúvel,  o  espírito  é  o ponto em que a  palavra  de  Deus  toca  o  homem4.  É,  portanto,  a  existência  de  Deus  no  homem.  A  satisfação  que  o  eu­lírico  antes  buscava  no  outro  ­  e,  mais  especificamente,  na  ternura  do outro ­ agora  só pode ser alcançada em seu próprio espírito.   Já a ideia de que a satisfação da alma só pode se encontrar fora do mundo compreende  a  noção  da  morte,  que  é  um  espectro  muito  presente  na  poesia  de  Manuel  Bandeira.  Sem  a  intenção  de  me  aprofundar  nesse  tema,  busco traçar  o  paralelo que há entre Deus e a morte, e 

 ​ Gênesis 1:26­27. In: ​ Bíblia Sagrada​ . Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro:  Ecyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica.    4  ​ Hebreus 4:12. Idem.  3



como  eles  se  opõem  à  infância  como  lugar  de  conforto  do  eu  que  fala.  Por  fim,  me  limito  a  comprovar que ambos os poemas se constroem em volta da mesma filosofia de vida.  Tanto  em  Deus  quanto  na  morte  está contida a noção de natureza. Embora à figura da  onipresença  divina  possa,  muitas  vezes,  se  ligar  o  conceito  de sobrenaturalidade, Deus como  sinônimo  de  espírito  é  parte  da  existência  humana;  é,  portanto,  natural.  A  morte,  que  nada  mais  é  do  que  o  desprendimento  de  alma  e  espírito  da  matéria  (corpo),  quando  entendida  como  fenômeno  inerente  à  vida,  também  é  um  fenômeno  natural.  O  que  isso  quer  dizer,  em  “Arte  de  amar”  é  que  esses  dois  lugares  únicos  onde  a  alma  pode  encontrar  satisfação  são  lugares  não­físicos;  são  o  que  há  de  suspenso  na  Natureza,  o  que  se  poderia   chamar  de  Destino.  Quando  o  poema  versa  a  favor  do  relacionamento  físico  (“Deixa  o  teu  corpo  entender­se  com  outro  corpo  /  Porque  os  corpos  se  entendem,  mas  as  almas  não.”),  ele o faz  somente  porque  acredita  que  é  só  isso  que  resta  ao  homem,  já  que  o  amor  que  vem  da  alma  não  pode  encontrar  satisfação  em  nenhum  lugar  concreto.  Não  se trata de um grito hedonista  pelos  prazeres,  porque  nesse  conselho  está  contida  uma  ideia  de  resignação.  Quando  no  poema  parece  haver  um  chamado  para  o  desejo   e  a  luxúria,  há,  na  verdade,  a constatação de  uma ​ impossibilidade​  de amar.  Essa  postura  humilde  de  reconhecer  o  amor  dentro  de suas próprias definições (como  coisa  da  alma,  inatingível)  pode  ser  ratificado  quando  voltamos  ao  primeiro  verso   e  encerramos  a  leitura  do  poema.  Muito  embora  pudesse  o  eu­lírico,  frente  às  decepções  da  vida,  escarnecer  o  amor  e  maldizê­lo,  por  ser  coisa  irreal  e  inalcançável,  ele  o  define  como  uma  felicidade.  Quando  trata  a  arte  de  amar  como  a   “felicidade  de  amar”,  ele   se  coloca  na  mesma  posição  de  recolhimento  que  permeava  “O  impossível  carinho”,  em  que  o  eu­lírico  reconhece, antes de tudo, sua impotência frente aquilo que é posto.    O  AMOR  E  O  ESTOICISMO.  A  principal  máxima  da  Ética  estoica  é  viver  seguindo  a  natureza.  Para  essa  escola  filosófica  do  Período  Helenístico,  há  uma  ordem  racional  que  rege  o  cair  das  folhas  e  o  nascer  do  sol,  e  portanto,  há  uma  ordem  que  rege  também  a  vida  humana.  Esta  ordem,  quando  seguida,  leva  à  Virtude,  e  se  desobedecida,  conduz  ao  Vício,  que  é  o  malogro  da  existência  humana.  Na  conduta  estoicista,  as  paixões  deveriam ser evitadas para que se alcançasse a vida plena. 



Embora  “O  impossível carinho” e “Arte de amar” devam ser entendidos em diferentes  momentos  da  poética  bandeiriana,  os  dois  poemas  se desenham numa mesma linha filosófica  estoica,  em  que  o  amor  é  entendido  como  um  sentimento  separado  dos  desejos  humanos.  Num  momento  inicial,  esses  desejos  humanos  eram  absolutamente  renegados.  Tratava­se  de  uma  poesia  muito  mais  ligada  ao  modo  estoico  de  amar,  em  que  os  prazeres  e  os   excessos  deveriam  ser  evitados   pois  não conduziriam à Virtude humana5, e em  que a infância era lugar  idílico.   Num  momento  mais  avançado,  o  poeta  parece  provocar  suas  próprias  concepções  e  passa  a  dar  vazão  à  luxúria  e  aos  excessos,  como  faz  no  icônico   “Vou­me  embora  para  Pasárgada”6, em  que um eu­lírico sonhador se refugia em um mundo de prazeres sexuais. Não  se  crê  mais  na  possibilidade  de  consumação  do  amor,  e  surgem  a  figura  de  Deus  e  da  morte  mais preponderantemente. Para além de estoica, a forma como se retrata o amor em Bandeira,  de  acordo  com  o  que  foi  constatado  nesse  ensaio,  carrega  muito  da   herança baudelairiana de   extrair  das grandiosidades os seus instantes efêmeros e mais sublimes. De toda a grandeza em  que poderia se solidificar o amor, ele repousa sempre na simplicidade e pureza da alma.  O  que  conclui  esse  ensaio  é  a  tentativa  de  extrair  dos poemas uma essência. Tanto na  forma  ​ menor  como  entende  o  amor,  como  na  postura  ​ humilde  que  toma  em  relação  às  imagens  que  alcança,  Manuel  Bandeira  inunda  suas  palavras  com  o  que  Davi  ​ Arrigucci  Jr.  interpretou  como  uma  “consciência  das  próprias  limitações”  (2003,  p.  131).  Com  efeito,  o  que  se  alcança  é  uma  lírica  por  excelência,  que  toca  no  mais  íntimo  (por  ser  pequena)  de  quem se lê, e que não invade (por ser humilde), mas que penetra.                   ​ MOURA, D. T. “A ética dos estoicos antigos e o estereótipo estoico na modernidade”. In: ​ Cadernos  Espinosanos​ , v. 26. São Paulo, 2008, p. 112­115.  5

 

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 ​ BANDEIRA, M. ​ Estrela da vida inteira.​  5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 2009, p. 143.  9 

O IMPOSSÍVEL CARINHO    Escuta, eu não quero contar­te o meu desejo  Quero apenas contar­te a minha ternura  Ah se em troca de tanta felicidade que me dás  Eu te pudesse repor  — Eu soubesse repor —  No coração despedaçado  As mais puras alegrias de tua infância!     (in​  Libertinagem​ , 1930)        ARTE DE AMAR    Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.  A alma é que estraga o amor.  Só em Deus ela pode encontrar satisfação.  Não noutra alma.  Só em Deus ­ ou fora do mundo.  As almas são incomunicáveis.  Deixa o teu corpo entender­se com outro corpo.  Porque os corpos se entendem, mas as almas não.     (in ​ Belo Belo​ , 1948)             

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS    ARRIGUCCI  JR.,  D.  ​ Humildade,  paixão  e  morte.  A  poesia  de  Manuel  Bandeira.  ​ 2.  ed.  São  Paulo: Companhia das Letras, 2003.    BANDEIRA, M. ​ Estrela da vida inteira.​  5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 2009  __________________. ​ Itinerário de Pasárgada. ​ Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985    BÍBLIA.  Português.  ​ Bíblia  Sagrada​ .  Tradução  de  Padre  Antônio  Pereira  de  Figueiredo.  Rio  de Janeiro: Ecyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica.    BLOCH, P. ​ Pedro Bloch Entrevista.​  São Paulo: Bloch Editores, 1989.     CANDIDO, A. ​ O estudo analítico do poema. ​ 4. ed. São Paulo: Humanitas, 2004.  ________________. ​ Na sala de aula. Caderno de análise literária.​  São Paulo: Ática, 1985.    COUTINHO,  F. A memória da infância  em Manuel Bandeira. In: FIÚZA, R. P. ​ Modernismo:  80 anos.​  Fortaleza: Expressão Gráfica, 2002. p. 142    DICIO  ­  Dicionário  Online  de  Português.  Brasil:   7   Graus  Informática,  2014.  Disponível em:  . Acesso em: 20 de junho de 2014.    MOURA,  D.  T.  “A  ética  dos  estoicos   antigos  e  o  estereótipo  estoico  na  modernidade”.  In:  Cadernos Espinosanos​ , v. 26. São Paulo, 2008, p. 112­115.           

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