Lugares perfeitos

June 13, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Pintura
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Descrição do Produto

Lugares perfeitos1 Emília Ferreira I. Não deve haver ninguém que não tenha feito o exercício de imaginação de passar para o outro lado do espelho. Dentro de casa, olhando o reflexo, espreitando o que, atrás da nossa imagem, se repete (embora “ao contrário”), imaginamos, para lá do visível, um espaço inesperado, surpreendente. Permitam-me particularizar: no meu caso, esse exercício, perdido na infância, ampliava as casas, abria-lhes jardins, rasgava vistas para o mar. Nesses lugares insuspeitos e magicamente revelados, o ar era transparente, as águas cristalinas, as árvores portentosas. E as casas, como nas revistas e no cinema, eram grandes e despojadas, de linhas direitas e grandes janelas pelas quais a natureza se adentrava, numa comunhão de espaços e luzes. A cidade não tinha aí entrada. O mundo era um imenso bosque, um eterno mar de primavera. A natureza acolhia-nos e tudo concorria para tornar perfeito esse lugar. Do outro lado do espelho, o tempo era infinito. Sobre ele, pairava uma luz doirada, de infindáveis dias amenos. Por isso, o ócio era o lugar que aí se habitava. Cadeiras confortáveis ou toalhas estendidas sobre a caruma dos pinheiros ou ainda areais brancos, que terminavam invariavelmente em águas transparentes, acolhiam os corpos para o repouso e para o jogo. Ao crescer, perdemos, com o tempo finito, essa interacção com o espelho. Ele deixa de ser porta para se transformar num elemento prosaico, que serve as pressas do quotidiano. E, dentro de nós, adormecemos esses lugares. II. É talvez por isso que a pintura de Fátima Pinto nos perturba. Porque nela, esse mundo ressurge intacto e poderoso. Nele, casas modernistas, lineares e abertas, que já protagonizaram, há anos, papéis urbanos (de que permanecem claros vestígios nas brincadeiras das crianças), recolhem-se agora a outra 1

FERREIRA, Emília. (2009). “Lugares Perfeitos”. Fátima Pinto. Margens. Catálogo da exposição na Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, Almada, 30 Maio – 30 Agosto 2009. Curadoria de Emília Ferreira. Exposição realizada em colaboração com o Instituto Camões. ISBN: 978-972-8794-65-1. Pp. 25-28.

paisagem, partilhando o espaço com as árvores, as rochas, a água; os seus habitantes distendem-se e o tempo acompanha essa respiração, quedando-se, imóvel, suspenso. Meninas, meninos, cães, pássaros, mulheres e homens passeiam-se na bonomia dessas horas mansas, em cuja cintilância quase se ouve o rumor de crescimento das árvores. Estas, como as manchas de água, como as casas, erguem-se em grandes linhas de organização do espaço, definindo as escalas, esclarecendo os planos da pintura, modulando a luz. A sua paleta turmalina, de generosa gama de verdes, azuis, cinzas, ocres e vermelhos, pontuada a ouro, serve bem a gradação lumínica que modula a paisagem. Céus flamengos ou venezianos, enevoados ou rosados, cuja luz coada permite observar melhor o mundo nos seus múltiplos pormenores, ou céus mediterrânicos, de claros azuis, coroam essas paisagens tranquilas. Contudo, apesar da aparente unidade, o mundo pictórico de Fátima Pinto resulta de uma composição de fragmentos. Sucessão de planos de janelas que revelam a paisagem ou o interior de casas, ele retoma, na sua plena claridade e transparência, a observação do desenho para o transformar em exercício lumínico. A escala brinca com as personagens e com o lugar, instalando tempos e espaços diversos, conjugando mundos que, geometricamente, se unem, sobrepõem, jogam. Para um melhor entendimento do fragmento, de que é claro exemplo a escala diferenciada da pintura, é essencial também a observação do desenho. Necessariamente mais liberto, rápido e espontâneo do que o trabalho sobre tela, ele é o grande captador de imagens. Obra de instantâneos — nos apontamentos e esboços —, exercício preparatório ou mesmo exemplar de investigação espacial e narrativa, o desenho congrega os muitos matizes do olhar da artista. Nele encontramos o que a pintura não permite por depurada: a narrativa (mesmo que apenas sugerida e nunca insistente), o humor, o estudo contínuo, aturado, do visível. E também a rapidez do traço, a energia poderosa, expressiva e compulsiva que colhe do mundo as suas linhas mais notórias para as sintetizar em forças, em texturas, em vibrações. Mais ligado ao real — mesmo que esse real se enraize em referentes oníricos — o desenho mantém, no entanto, um elemento de perturbação que partilha com a pintura: a quase total ausência de sombras (acentuando uma citação

oriental que o perfil das árvores e das rochas e a paleta tantas vezes denotam). Com efeito, as sombras surgem apenas para sublinhar o peso das árvores ou das construções arquitectónicas. As figuras humanas passeiam-se, em plena luz, sem que nada da sua presença deixe lastro. Habitam a luz como se fossem feitas da mesma matéria, ali nascendo e crescendo sem obstáculo, claramente oriundas da memória. III. Mais conhecida como pintora, Fátima Pinto é, contudo, uma desenhadora compulsiva. Nesta exposição quisemos mostrar os diferentes tempos da pintura e do desenho e os modos em que este se processa: tanto autonomamente, como quando assume o papel de estudo para as composições finais, nas múltiplas janelas que a pintura abre. A preto e branco ou imerso em cor, como se de pequenas pinturas se tratasse, o desenho surge por todo o lado. No atelier da artista, entre telas que se erguem sobre os cavaletes, abundam os cadernos de desenho, as folhas soltas, os apontamentos, e também as grandes superfícies de papel sombreadas a grafite. Por isso, à parte os desenhos expostos nos seis cadernos Moleskine (quatro dos quais desenhados nos últimos dois meses, expressamente para integrar esta exposição), quisemos reunir num cd mais umas dezenas de apontamentos traçados nos últimos anos. Notas que terminaram fechadas nos cadernos ou que apontaram caminhos na pintura. Fragmentos de sonhos, de passeios, de encontros, de desejos. Um desenho que ri, que nos cativa, que nos envolve. Que nos leva de passeio nos metros servidos ao nosso olhar nas linhas abertas dos cadernos Moleskine. Apontando para dentro de si mesmos ou para os lugares mais luminosos da pintura. Entre o ventre da Cisterna, para onde estes desenhos foram criados, e o Salão Nobre, aberto sobre o Tejo e Lisboa, com um pinheiro secular em primeiro plano (mimando a pintura), o trabalho de Fátima Pinto encontra-se com o espírito da casa. A pintura, escolhida também expressamente para este espaço, integra-se no curso da sua obra e integra agora a casa secular — sem linhas modernistas — no seu corpo pictórico. A luz, como sempre, se encarregará de

unir todos estes fragmentos, para lhes dar coerência e nos abrir de novo as portas para o outro lado.

Emília Ferreira Almada, Maio de 2009.

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