Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis: duas maneiras de criticar a escravidão africana em solo brasileiro

May 28, 2017 | Autor: Gabriel Mordoch | Categoria: Luso-Afro-Brazilian Studies, Literatura brasileira
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Os estudos sobre Luis Gama aos quais tive acesso foram os de Azevedo (1999) e Ferreira (2000, 2011); sobre a São Paulo de Luiz Gama vejam também Assunção (2004). Sobre Maria Firmina dos Reis, consultei o prefácio de Almeida (1975) e o posfácio de Assis Duarte (2004). Este último inclui uma lista bibliografica de estudos sobre Maria Firmina dos Reis.
A adoção da perspectiva racista pelos próprios negros aparece por exemplo na fala do Soldado Nestor, personagem do romance Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo (121).
Segundo o dicionarista Raphael Bluteau, "carapinha" significa cabello revolto. v.g. o dos negros. Também segundo Bluteau, "azeviche" é uma pedra mineral, negra, luzidia, leve e frágil.

Vinicius de Moraes (1913-1980) é um bom contraponto à visão de Horacio de Almeida. Apesar de inicialmente identificado com o Integralismo brasileiro, e autor de poesia lírica elevada, Vinicius de Moraes passou por uma transformação intelectual que o levou à música e à escolha de um parceiro mulato, Baden Powell (1937-2000). Ambos compuseram em 1966 um disco chamado "Os afrosambas", em cujo uma das faixas, o "Samba da Benção", Vinicius de Moraes se auto proclama "o branco mais preto do Brasil".


Mordoch 2

Gabriel Mordoch
PT 7500
Autumn 2013
Prof. Lúcia Costigan
Rascunho #3

Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis: duas maneiras de criticar a escravidão africana em solo brasileiro
Introdução
Em Literatura Afro-Brasileira: um conceito em construção, Eduardo de Assis Duarte (103) busca entender o que torna a escrita afro-brasileira distinta do conjunto das letras nacionais. O pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais menciona a interação de cinco eixos através dos quais a literatura afro-brasileira se manisfesta. São eles os eixos temático, autoral, de perspectiva (ponto de vista), da linguagem, e do esforço em prol da formação de um público leitor empático à essa literatura.
Com base nesse aparato crítico-conceitual, vamos tentar entender de que maneira a poesia de Luiz Gama (Primeiras Trovas Burlescas de Getulino) e a prosa de Maria Firmina dos Reis (Úrsula) se encaixam no conceito de literatura afro-brasileira proposto por Assis Duarte.
A escolha desses dois autores afro-descendentes se justifica por pelo menos dois aspectos: o aspecto cronológico funciona como denominador comum, já que ambos publicaram as obras supracitadas no mesmo ano: 1859. Essa unidade temporal, no entanto, contrasta com a variação diatópica. Luiz Gama (1830-1882) escreve em São Paulo, enquanto Maria Firmina dos Reis (1825-1917) escreve em São Luiz do Maranhão. Apesar dos quase três mil quilómetros que os separam, quais seriam as semelhanças entre os dois autores no que diz respeito à africanidade brasileira? E quais seriam, por outro lado, as divergências entre o poeta paulistano abolicionista e a prosadora maranhense romantizante?
A proposta principal desse trabalho será, portanto, buscar os traços comuns capazes de suplantar as diferenças locais (São Paulo vs. Maranhão) e estilísticas (poesia vs. prosa). Por outro lado, através da analise literaria dessa obras, também teremos a oportunidade de verificar quais são as singularidades locais e estilisticas da expressão africana dentro da cultura brasileira de meados do século XIX.

O eixo temático
Em termos temáticos, o romance de Firmina dos Reis parece ser uma típica obra do movimento romantico, muito embora aclimatada à paisagem maranhense, por si só um dos destaques do romance (Era uma dessas tardes, que parecem resumir em si quanto de belo, de luxuriante, e de poético ostenta o firmamento no Equador [153]). Trata-se de uma história de amor entre a donzela Úrsula e o mancebo Tancredo, jovens brancos que personificam os ideias românticos de virtude, moral, pureza e dedicação. Úrsula é descrita em termos ultra-românticos como uma donzela cujas madeixas de seus sedosos cabelos molduravam-lhe as faces brancas de neve [...] (78), e cujo sorriso nos lábios é como a gota de orvalho no cálice de uma flor (162).
A bondade de ambos personagens contrasta com a maldade do comendador Fernando, quem é ao mesmo tempo tío e pretendente de Úrsula, ademais de ser o assassino do pai desta. A maldade do comendador Fernando também se expressa, por exemplo, na maneira como tratava seu escravos:

Ainda as casas dos escravos, que outrora tinham sido de um aspecto agradável, tapadas de barro e cobertas de telha, hoje mal representavam esse singelo asseio de outras eras. Já arruinadas, desmoronavam-se aqui, e ali; porque os desgraçados escravos do comendador, espectros ambulantes, não dispunham de uma só hora no dia, que pudessem dedicar em benefício de suas moradas: à noite trabalhavam ordinariamente até ao primeiro cantar do galo. Esfaimados, seminus, espancados cruelmente, suspiravam pelas duas ou três horas desse sono fatigado, que lhes concedia a dureza de seu senhor (166).

A mãe de Úrsula, Luisa B..., é irmã do comendador Fernando. Outrora uma bela mulher, no tempo da narrativa ela se encontra muito doente e em franca decadência; dos muitos escravos que possuia, só lhe resta agora um, chamado Túlio. A preta Susana, quem serviu de mãe para Túlio, e Antero, arruinado pelo alcoolismo, são outros personagem escravos que aparecem no romance. Apesar de não serem os protagonistas da história, esses personagem tem bastante visibilidade e fundamental importância para a trama narrativa, principalmente o generoso Túlio.
Conforme Assis Duarte, a preta Susana, espécie de alter ego de Firmina dos Reis, é um elo vivo com a memória ancestral e com a consciência da subordinação. Ademais, a preta Susana configura aquela voz feminina porta-voz da verdade histórica e que pontua as ações, ora com comentários e intervenções moralizantes, ora como verdadeira pitonisa a tecer passado, presente e futuro nos anúncios e previsões que, por um lado, preparam o espírito do leitor e aceleram o andamento da narrativa e, por outro, instigam a reflexão e a crítica (2004:278).
A temática do amor romântico parece ocupar o primeiro plano do texto. O conflito entre bondade e maldade também tem um papel importante no texto. A maldade do comendador Fernando impede a tão ansiada união entre Úrsula e Fernando. É portanto uma espécie de triunfo do mal. Por outro lado, o comendador Fernando termina louco e arrependido de todas suas maldades, entre elas ter matado a Tancredo. Ademais, nesse último estágio de sua vida o comendador libera todos seus escravos.
O tema da escravidão aparece ligado à maldade do comendador Fernando, e à maldade humana de um modo geral. A autora busca a explicação para a exploração do homem pelo homem justamente na faceta malvada do ser humano. Como vemos na passagen supracitada, a maldade do comendador Fernando, manifesta em todos os âmbitos de sua vida, também se expressa na maneira como trata seus escravos. Fernando é especialmente cruel com seus escravos. A maneira patética como Fernando termina é possivelmente uma mensagem da autora : quem gera o mal terminará mal. Para Assis Duarte, o romance Úrsula empreende uma denúncia da escravidão (2007:105). Nesse sentido, devemos lembrar que naquele então a escravidão não havia todavia sido abolida oficialmente no Brasil, o que veio a acontecer muito tardiamente no ano de 1888 (anteriormente haviam sido promulgadas as leis de proibição de tráfico e do "ventre-livre").
Também podemos encontrar no romance de Firmina dos Reis um tema que pode ser chamado de evocação da África, o qual se manifesta através da voz da preta Susana, e também através da voz de Túlio. Vejamos por exemplo a seguinte passagem que expressa os pensamentos do jovem e virtuoso escravo:

Oh! a mente! Isso sim ninguém a pode escravizar! Nas asas do pensamento o homem remonta-se aos ardentes sertões da África, vê os areais sem fim da pátria e procura abrigar-se debaixo daquelas árvores sombrias do oásis, quando o sol requeima e o vento sopra quente e abrasador: vê a tamareira benéfica junto à fonte, que lhe amacia a garganta ressequida: vê a cabana onde nascera, e onde livre vivera! (38-9)

As Primeiras Trovas Burlescas de Luiz Gama, por sua vez, giram em torno da temática do branqueamento cultural dos mulatos de seu tempo e entorno social. Gama critica a aceitação passiva dos padrões de pensamento e comportamento "branqueados" de descendentes de africanos que ascenderam socialmente, às vezes por meio de cargos políticos ou nobiliários (veja-se o poema Serei conde, marquês e deputado), precisamente porque aceitaram os padrões culturais das elites brancas. Tratar-se-ia portanto de uma subordinação travestida de (pseudo-) autonomia. Vejamos por exemplo a paradigmática segunda estrofe do Sortimento de gorras para a gente do grande tom:

Se os nobres d'esta terra, empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados;
E, cedendo à prosápia, ou duros vícios,
Esquecem os negrinhos seus patrícios;
Se mulatos de cor esbranquiçada,
Já se julgam de origem refinada,
E, curvos à mania que os domina,
Despresam a vovó que é preta-mina:
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!


O eixo autoral
Em termos biograficos, tanto Luiz Gama como Maria Firmina dos Reis foram filhos de casamentos "mistos", isto é, de um progenitor negro e outro branco. Trata-se de uma mescla que pode parecer comum nos dias de hoje, mas que durante meados do século XIX carregava implicações mais graves, como por exemplo o estigma de ser fruto de uma união ilegitima em termos religiosos. Segundo afirma Assis Duarte, Firmina dos Reis era bastarda e mulata (2004:265).
Contudo, o fato de Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis serem descendentes de africanos não necessariamente faz de sua literatura uma literatura afro-brasileira, já que o eixo autoral, desconectado dos outros eixos conceituais supramencionados, não é suficiente para determinar o carater afro-brasileiro da literatura de certo autor. Ademais, conforme sugere Assis Duarte, o tópico da autoria não apenas implica a consideração de fatores biográficos e fenotípicos; mais que isso, a autoria está intimamente associada ao ponto de vista, sobretudo o ponto de vista do oprimido (2007:105-6).
A confusão entre os quesitos autoria e ponto de vista torna o aparato crítico de Duarte um pouco menos convincente; contudo, segundo o título de seu artigo, o conceito de literatura afro-brasileira é todavia um conceito em construção, de maneira que não devemos esperar encontrar uma conceitualização definida e/ou acabada de literatura afro-brasileira. Nesse sentido, também podemos nos valer da proposta de Massaud Moises, para quem o crítico literário pode excursionar para a biografia do autor, mas voltará obrigatóriamente ao texto, pois o núcleo de sua atenção sempre reside no texto (25).
Entretanto, não devemos desprezar a afro-descendência dos autores aqui estudados, já que a condição socio-étnica do artista de uma maneira ou de outra acaba influenciando sua obra, uma vez que a arte não se dá num contexto desassoaciado do social; pelo contrário, ela é exercida e praticada em total conexão com a dimensão ou dimensões sociais do artista. A vida imita a arte e, ao mesmo tempo, a arte imita a vida.
Conforme Ligia Ferreira (lxii), a biografia de Luiz Gama, de tão fascinante que é, por vezes até mesmo ofuscou sua literatura (o fato de ter sido vendido pelo próprio pai, a maneira acidental como foi alfabetizado, seus estudos informais na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, sua atividade jornalistica, política e jurídica). Contudo, como vemos, sua biografia e sua literatura estão intimamente conectadas.
Tanto no prefácio de Úrsula quanto o das Primeiras Trovas Burlescas, notamos um posicionamento que pode ser chamado de perfil baixo. Luiz Gama diz ao seu leitor (A quem ler), na abertura da segunda edição das Primeiras Trovas Burlescas, que está convencido do pouco que elas [Primeiras Trovas Burlescas] valem. Maria Firmina dos Reis, por sua vez, diz na primeira linha do prólogo de Úrsula:
Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume.

Nesse sentido, é válido aplicar o critério de autoria proposto por Assis Duarte, ou seja, a de um autor menos associado a traços fenotípicos do que ao espaço de enunciação de um ser oprimido. Apesar de haver investigado um contexto totalmente diferente, Pierre Bordieu pode ajudar-nos a entender o processo de hierquização da cultura, o qual resulta em baixa estima por parte daqueles situados na parte inferior da piramide socio-cultural (1979).
Nesse sentido, é importante notar que a autora de Úrsula não assina sua obra. A página título da obra somente diz Úrsula, / romance original brasileiro / por / uma maranhense. Na interpretação de Horácio de Almeida, a autora, ou por modestia ou temerosa da crítica, oculta-se no anonimato (1975: vi). Apesar de ocultar seu nome, a autora entretanto não deixa de ocultar o fato de ser mulher e maranhense. O Maranhão do século XIX conheceu certa efervecência literaria (São Luiz ganhou então a fama de ser a Atenas brasileira), contando com escritores canônicos tais quais Gonçalves Dias (1826-1864) e Aluisio Azevedo (1857-1913, autor de "O Mulato").
O fato de ocultar seu nome pode muito bem ser associado ao que José Piedra (1987) chama de "literary whiteness", isto é, o submetimeto de autores não brancos aos padrões estéticos e ideologicos da literatura branca canônica como única maneira de ascender ao restrito universo das letras escritas. Apesar da pesquisa de Piedra estar dedicada à América Hispanica, também podemos aplicá-la ao âmbito da América portuguêsa.
Por divergir da representação tradicional do negro, Firmina dos Reis prefere não assinar sua obra. Ademais, este é um caso que pode ser associado ao que Žižek (2008) chama de violência simbólica, isto é, um tipo de violência invisivel que atua nos ãmbitos cultural e psicológico de maneira a diminuir, dismerecer e marginalizar culturas diferentes da cultura hegemônica.
Perspectiva (ponto de vista)
A perspectiva, ou foco narrativo, adotada por Firmina dos Reis não é a primeira vista uma "afro-perspectiva", se assim quisermos falar. O narrador do romance Úrsula se coloca fora da história. Ele é uma espécie de narrador onisciente e onipresente que conta a história de maneira cronológica, e que no entanto dá voz a seus personagens para que se expressem livremente, atraves de diálogos, algo que por vezes resultam em digressões.
A perspectiva narrativa, eminentemente romântica, e portanto europeia e branca, não deixa no entanto de dar voz aos personagens negros Túlio e Susana, ocasionando assim uma mudança de perspectiva narrativa, ainda que emoldurada pelo quadro maior da narração cronológica dos infortúnios dos jovens Úrsula e Tancredo.
Susana ganha voz ativa durante seu diálogo com Túlio (pp. 111-119); ela lamenta sua condição de cativa e critica a decisão de Túlio de partir junto com Tancredo. Túlio decide partir com Tancredo porque este lhe proporcionou o dinheiro para comprar sua própria alforria em troca do favor prestado (mais do que um favor, o generoso Túlio praticamente salvou a vida de Tancredo quanto este, fatigado por um longa e delirante cavalgada, cai do cavalo, ferindo-se gravemente). Susana conta comovida as saudades que tem do tempo em que era livre, verdadeiramente livre, na África, e de que maneira foi feita cativa e trazida ao Brasil numa horripilante viagem de navio de trinta dias de duração (117). Pensando na liberdade que tinha na África, Susana considera a liberdade de Túlio uma pseudo-liberdade, e diz a este que ao deixar a casa para acompanhar Tancredo, Túlio não faz mais do que trocar um cativeiro por outro cativeiro (113-4). Nesse sentido, podemos notar uma semelhança nas críticas de Firmina dos Reis e Luiz Gama, já que este último também está denunciando a pseudo-liberdade daqueles negros e mulatos branqueados culturalmente.
Como autor, Luiz Gama não deixa de adotar a perspectiva que corresponde a sua realidade social e ideologicamente iconoclasta: a do mulato letrado que trata de romper com os paradigmas de exclusão da possibilidade de expressão de um caráter negro visivel e/ou positivo. Nesse sentido, Gama celebra sua origem africana através de um poema dedicado a sua mãe (Minha mãe), quem
Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha
E no Brasil pobre escrava!
[...]
Luiz Gama trata de maneira positiva as características fenotípicas tradicionalmente associadas aos africanos e seus descendentes. Isso se dá por exemplo em "Lá vai verso!", onde se misturam mitologia grega (orfeu) com "carapinha":

Quero que o mundo me encarando veja,
Um retumbante Orfeu de carapinha
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Ao som decanta de Marimba augusta;
E. qual outro Arion entre os Delfins,
Os ávidos piratas embaindo
As ferrenhas palhetas vai brandindo,
Com estilo que preza a Líbia adusta
[...]

Ao abordar o critério do ponto de vista no ensaio supracitado, Assis Duarte tece o seguinte comentario sobre as obras de Luiz Gama e Firmina dos Reis:

Em suas Trovas Burlescas, Luíz Gama, autoproclamado "Orfeu de Carapinha", explicita a afro-descendência de seus textos ao apelar à "musa da Guiné" e à "musa de azeviche" para, em seguida, promover uma impiedosa carnavalização das elites. Já em seu romance Úrsula, também de 1859, Maria Firmina dos Reis adota a mesma perspectiva ao colocar o escravo Túlio como referência moral do texto, chegando a afirmar , pela voz do narrador, que Tancredo, um dos brancos mais destacados na trama, possuía "possuia sentimentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro" (2004:25). (2007:106-7).

Se por um lado Firmina dos Reis trata de nobilizar a alma e as atitudes dos negros através do comportamento exemplar e generoso de Túlio, Luiz Gama por outro lado trata de buscar uma situação de igualdade social entre brancos e negros (ou mulatos). Todos são serem humanos e, se estes últimos são chamados de bodes pelos primeiros, então os primeiros tampouco podem deixar de ser bodes (veja-se o poema Quem sou eu?, conhecido também como a bodarrada).

Linguagem
Uma vez que estamos tratando de obras escritas em meados do século XIX, um estudo filológico profundo seria a maneira ideal de abordarmos a linguagem de Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis. No âmbito deste trabalho, o que podemos fazer é limitarmos-nos a pensar numa comparação entre os estilos romântico da autora maranhense e o satírico do poeta paulistano.
O estilo romântico, mais existêncial, contemplativo, humanista e embuido de religiosidade cristã, se encaixa bem na proposta de Firmina dos Reis que é, conforme sugeriu Assis Duarte, denunciar as atrocidades da escravidão, menos de um ponto de vista institucional do que humanístico-humanitário. A sátira por sua vez se enquadra numa dimensão menos elevada e mais cotidiana, de maneira que também aborda questões institucionais e nuances sociais, tal qual o faz Luiz Gama em relação ao tratamento dispensado aos afro-descendentes, por uma lado, e pela submissão destes aos padrões culturais hegemônicos dos brancos, por outro.
Horacio de Almeida, prefaciador da edição de 1975 de Úrsula, chama a atenção para o seguinte aspecto da linguagem do romance,

Aqui e ali, como uma pedra de tropeço, topa o leitor com uma palavra fora de uso, exumada dos clássicos. No mais, carece o romance de outros requisitos, como o colorido das descrições, a fixação dos costumes, a espontaneidade do estilo coloquial. Com relação ao coloquial, predomina o tratamento de vós entre todos os personagens, até mesmo os mais humildes, os escravos, que não claudicam nas formas verbais. Por ventura, não são também artificiosas as obras literárias dos tempos românticos? (vii, meu grifo)

Como vemos, o fato de os escravos não claudicarem nas formais verbais, ou seja, não cometerem erros no uso da língua, ademais de se tratarem de maneira formal através do uso de "vós" (no lugar de tu), é para Horacio de Almeida algo artificioso. Isso que dizer que o prefaciador da obra não acreditava que escravos pudessem usar a língua "corretamente", ou tratarem-se usando pronomes formais, o que denota certo preconceito linguistico de sua parte, bem como uma perspectiva aprisionada ao conceito de brancura literaria (Piedra). A seguinte afirmação de Horacia de Almeida tão somente corrobora sua perspectiva ideológica:

Cabe, todavia, a Maria Firmina dos Reis o privilégio até então inédito nos anais da literatura brasileira de produzir o primeiro romance no Brasil, como pioneira da seara feminina, sem influência alienígena, onde um escravo, por seu caráter, por sua alma branca, ocupa lugar de destaque no plano da obra (viii, meu grifo).

É fácil notar que Horacio de Almeida se expressa desde uma perspectiva imbuída de preconceito ao atribuir o caráter virtuoso do escravo Túlio ao fato de este ter uma alma branca. O prefaciador adota uma ótica antiquada na qual virtude e pigmentação da pele devem estar necessariamente associadas. Se Túlio não tem a pele branca, então pelo menos sua a alma o é. Dessa maneira, é capaz que de Almeida tenha empreendido uma leitura que não captou deveras as intensões críticas da romancista maranhense.
A proposito do comentário de Horacio de Almeida, devemos lembrar que o primeiro capítulo de Úrsula se entitula "Duas almas generosas", uma referencia aos personagens Túlio e Tancredo. A autora equipara os dois personagens em termos de virtude, desconsiderando a diferença entre a cor de suas peles e seu estatus social, e desvazendo assim a visão promovida por Horacio de Almeida mais de um século depois da escritura de Úrsula. Ademais, conforme notamos no comentário de Assis Duarte supracitado (2007:106-7), Túlio é o parâmentro de virtude com o qual Tancredo é comparado, e não o contrário.

Podemos notar a denúncia da escravidão na seguinte fala de Túlio, onde as palavras que equiparam escravos e objetos se encontram italizadas no próprio texto original:

[...] minha desgraçada mãe fez para daquilo que ele [comendador Fernando] comprou aos credores, e talvez fosse ela mesma uma das coisas que mais o interessava (168)

Luiz Gama por sua vez possui uma linguagem muito mais irreverente e descontraída, o que lhe permite entitular um poema como "Lá vai verso!", algo que causa uma impressão de informalidade e dinamismo, como se o poema fosse atirado no ar, jogado de maneira espontânea para que o leitor o agarre. Luiz Gama cria neologísmos, como o famoso "bodarrada" (último verso de "Quem sou eu?) para designar um coletivo metafórico de homens-bode.

Publico leitor
É complicado aplicar o critério do público leitor às obras aqui analisadas. Como podemos ver no artigo de Assis Duarte, esse critério é discutido a partir de autores do século XX como Solano Trindade (1908-1974) e Oliveira Silveira (1941-). No tempo de Luiz Gama e Firmina dos Reis podemos imaginar que a maioria dos escravos e grande parte dos mulatos brasileiros estavam excluídos do universo das letras, obviamente como autores, mas também como leitores. Por esse motivo, calculo que o público leitor o qual Firmina dos Reis visava atingir era o dos brancos proprietários de escravos, bem como os circulos de pessoas poderosas capazes de se sensibilizar com os aspectos sub-humanos da prática escravista. Essa seria portanto sua maneira de promover uma campanha abolicionista menos política do que humanistica. No prólogo de Úrsula, a autora faz lembrar que trata-se de um livro

escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo (13)

É possivel cogitar que tal sentença também indique o público leitor que Firmina dos Reis visou atingir, isto é, o dos pseudo-intelectuais investidos da autoridade resultante da circustância de pertencerem às classes sociais dominantes. Nesse sentido, a crítica de Firmina dos Reis se aproxima bastante da crítica de Luiz Gama, que em vários poemas denuncia precisamente o mesmo fenômeno de pseudo-intelectualidade e autoridade forjada. Além disso, Luiz Gama buscava atingir os leitores que eram precisamente o objeto de sua crítica, isto é, o negro ou mulato branqueado culturalmente, quem despresava sua cultura ancestral africana em troca de certo prestigio e benefícios materiais. Também é possível que Luiz Gama tenha buscado sensibilizar as autoridades brancas que emprendiam as políticas culturais de branqueamento dos descendentes de africanos. Dessa maneira, Gama poderia tentar frear um processo que quiçá para muitos deveria parecer um processo irreversível. Considerando não somente as Trovas Burlescas mas o conjunto da obra do letrado paulistano, Lígia Ferreira (2011:20) afirma que Luiz Gama se dirigiu a um público universal: do escravo ao Imperador, dirigia-se a todas as camadas da população. Contava com público certo, e respondia a todos, inclusive a seus adversários, sempre atentos ao que tinha a dizer.

Considerações finais

Amparados no aparato crítico-teórico apresentado por Assis Duarte (2007), emprendemos uma leitura das obras Úrsula de Maria Firmina dos Reis, e Primeiras Trovas Burlescas de Luiz Gama com o intuito de identificar traços comuns de uma possivel literatura afro-brasileira.
Apesar da distância de três mil quilometros que separaram Gama e Firmina dos Reis, além da diferença formal entre prosa romântica e poesia satírica, ambos autores possuem traços comuns em relação ao conteúdo e mensagem das obras analisadas. Tanto Gama como Firmina dos Reis tratam de desmistificar a ideia de cultura branca como cultura superior. A ideia da troca de um cativeiro pelo outro, explicitamente mencionada por Firmina dos Reis através da voz da personagem Susana, também se manifesta, de maneira burlesca, na poesia de Luiz Gama. Uma das diferenças entre ambos, no entanto, reside na maneira de fazer sua crítica: enquanto Firmina dos Reis denuncia a escravidão e acentua a virtude enquanto característica da alma e não da pele, Luis Gama critica os padrões culturais e estetéticos baseados na brancura da pele, bem como a aceitação desses padrões pelos descendentes de africanos residentes no Brasil naquele tempo. Em outras palavras, a submissão ao que Konder Comparato chama de falsas elites (2011).
Por motivos óbvios, desde os primórdios da formação do Brasil pós-cabralino até os dias de hoje, é visivel a predominancia da cultura branco-européria em relação a cultura das minorias étnicas que formaram e formam o Brasil, isto é, os negros e os indios (estes últimos paradoxalmente estrangeiros em sua própria terra). A associação entre o Bom e a cor de pele branca vigorou a vigora ainda hoje. As obras dos dois autores analisados, vêm, cada qual a sua maneira, romper com tal paradigma e denunciar que, por trás de uma capa de naturalidade, o que existe são construtos culturais que buscam favorecer e perpetuar o poder de derminados grupos étnicos em detrimento de outros.
Obras citadas
Fontes primárias:
Gama, Luiz. Primeiras Primeiras Trovas Burlescas e otros poemas. Edição preparada por Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000 (1859).
Reis, Maria Firmina dos. Úrsula: Romance : A escrava: conto. Posfácio de Eduardo de Assis Duarte. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres; Editora PUC Minas, 2004 (1859).
Evaristo, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.

Fontes secundárias

Almeida, Horacio de. "Prólogo". Maria Firmina dos Reis, Úrsula: romance original brasileiro. Edição fac-similar. Rio de Janeiro, 1975, i-viii.
Assunção, Paulo de. São Paulo imperial : a cidade em transformação. São Paulo: Editora Arké, 2004.
Assis Duarte, Eduardo de. "Literatura Afro-Brasileira: um conceito em construção". A Mente Afro Brasileira / The Afro-Brazilian Mind. Niyi Afolabi (ed.). Trenton, NJ: Africa World Press, 2007, 103-112.
---. "Posfácio – Maria Firmina dos Reis os Primórdios da Ficção Afro-Brasileira". Úrsula: Romance : A escrava: conto. Maria Firmina dos Reis. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres; Editora PUC Minas, 2004, 265-281.
Bluteau, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v.
Bourdieu, Pierre. Distinction: a Social Critique of the judgement of Taste. Translated by Richard Nice. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1984 (1979).
Comparato, Fábio Konder. "Luis Gama, contemptor de nossas falsas elites". Lígia Fonseca Ferreira (org., apresent. e notas). Com a palavra, Luiz Gama : poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011, 7-10.
Fonseca Ferreira, Lígia (organização, apresentações e notas). Com a palavra, Luiz Gama : poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011.
Moisés, Massaud. Guia prático de análise literária. São Paulo: Cultrix, 1969.
Piedra, José. "Literary Whiteness and the Afro-Hispanic Difference". New Literary History, Vol.
18. No. 2, Literacy, Popular Culture, and the Writing of Hiwestory, (Winter, 1987), pp. 303-332.
Žižek, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008


Bibliografia adicional, a ser consultada

Azevedo, Elciene. Orfeu de carapinha : a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP; Cecult, 1999.
Bastide, Roger. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973.
Hunold Lara, Silvia. "Vassouras e os sons do cativeiro no Brasil". Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein : Vassouras, 1949. Silvia Hunold Lara e Gustavo Pacheco (org.). Campinas: Cecult; Rio de Janeiro: Folha Seca, 2007, 45-67.
Soares Fonseca, Maria Nazareth. "Visibilidade e Ocultação da Diferença: Imagens de Negro na Cultura Brasileira". A Mente Afro Brasileira / The Afro-Brazilian Mind. Niyi Afolabi (ed.). Trenton, NJ: Africa World Press, 2007, 59-80.


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