Lumus Maxima! Explorando a cinematografia da saga Harry Potter

June 2, 2017 | Autor: Anne Beatriz Costa | Categoria: Communication, Film Studies, Harry Potter, Cinema, Cinematography, Fotografia, Cinematografia, Fotografia, Cinematografia
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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

ANNE BEATRIZ GONÇALVES COSTA

Lumus Maxima! Explorando a cinematografia da saga Harry Potter

BELÉM, PA 2016

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

ANNE BEATRIZ GONÇALVES COSTA

Lumus Maxima! Explorando a cinematografia da saga Harry Potter

Monografia apresentada para obtenção do grau de Bacharel

em

Jornalismo

pela

Faculdade

de

Comunicação Social da Universidade Federal do Pará, sob orientação do Prof MSc. Ricardo Harada Ono.

BELÉM, PA 2016

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

ANNE BEATRIZ GONÇALVES COSTA Lumus Maxima! Explorando a cinematografia da saga Harry Potter Monografia apresentada para obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Pará, examinada pela banca constituída:

________________________________________ Prof MSc. Ricardo Harada Ono Orientador ________________________________________ Profa Dra. Lívia Lopes Barbosa FACOM/UFPA ________________________________________ Profa MSc. Carolina Maria Mártyres Venturini FACOM/UFPA

BELÉM, PA 2016

AGRADECIMENTOS

Obrigada aos meus pais, Adenir e Socorro, por terem me dado todo o suporte que eu precisei durante toda a minha vida. Sou grata pela vida que me deram e por todos os sacrifícios que fizeram para que pudessem dar o melhor para mim e meu irmão. Obrigada, especialmente, pelo gosto pela leitura, tão incentivado na infância pela minha mãe, pois graças a isso eu pude chegar a vários lugares maravilhosos, tanto reais quando fictícios. Sou grata também à minha família e particularmente aos meus primos, por termos um laço que vai muito além do laço de sangue e por eles terem me proporcionado várias das lembranças mais felizes que carrego comigo. Agradeço especialmente à minha prima Ândrea, por sempre ter me servido de inspiração, por ser a minha referência de irmã mais velha e por ter sido uma das minhas melhores amigas durante toda a minha vida. Agradeço à minhas amigas Paloma, Amanda, Mayara e Ana Caroline por serem as coisas mais bonitas da UFPA depois do rio. Obrigada pelos apoios nos trabalhos, nos artigos e nas noites mal dormidas, pelas pijamadas regadas a pipoca e brigadeiro e por terem feito a minha passagem por essa Universidade ser tão especial. Também à Fabíola, Mariana e Natália, pelas amizades incríveis e inspiradoras. À Alana, Amanda, Geysa e Amanda (e ao pequeno Gui), pelos tantos anos de amizade e companheirismo. Obrigada por me incentivarem a não me contentar com pouco e querer ganhar o mundo, e também pelas crises de riso tão grandes que me deixaram várias vezes com falta de ar e a barriga doendo. À Renata, Isadora e Thainá, minhas parceiras do teatro e da vida. Obrigada pela amizade e lealdade constante e por me fazerem seguir em frente e acreditar nos meus sonhos. À Marcela, Lara, Carol, Ana Luiza e Amanda, por serem a família que eu ganhei em Londres, por terem somado alegrias aos dias especiais, tirado o tédio dos dias comuns, tornado os dias difíceis mais fáceis e terem ajudado a tornar 2013 um ano completamente inesquecível. À minha família de narizes vermelhos, Trupe Palhaços Curativos, por me ajudarem a encontrar meu estado de graça, me ensinarem a olhar o mundo com um olhar mais puro e por cuidarem de mim em momentos onde nada parecia estar dando certo. À Miuky, minha eterna filhote, que já me acompanha por metade da minha vida. A ela eu sou grata pelos quase doze anos de amor, carinho, focinho molhado e lambidinhas carinhosas a qualquer hora do dia.

Ao Diego, por ter sido tantas vezes meu ponto de apoio e segurança, pois sem ele esse trabalho não teria sido possível. Obrigada por me ajudar a encontrar minha coragem, por me dar forças e pelo cuidado, compreensão e dedicação incansável nos momentos mais delicados. Muito obrigada por todo o carinho e amor dedicados a mim. Aos meus professores, por terem me ensinado tanto nesses anos de convivência na FACOM, muitas vezes ensinamentos que ultrapassavam o âmbito acadêmico. Obrigada especialmente à Carolina Venturini, por ter sido a primeira a acreditar neste trabalho. Agradeço também ao meu orientador Ricardo Harada, por ter me ajudado a encontrar o caminho certo que me permitisse fazer esse trabalho do jeito que eu imaginava. Obrigada pela paciência, apoio e sabedoria. Por fim, agradeço à J. K. Rowling por ter ajudado a tornar-me quem sou e pela sua obra que fez deste trabalho algo especialmente único para mim. Agradeço por ter me ensinado o valor do amor, da amizade e da lealdade e por ter me dado amigos que ficarão comigo para a vida toda e que me ajudaram nos momentos em que eu mais precisei lembrar da minha essência.

Não precisamos de magia para mudar o mundo, nós já carregamos todo o poder que precisamos dentro de nós mesmos: temos o poder de imaginar. J. K. Rowling, Very Good Lives

RESUMO

Este trabalho é um estudo que discorre sobre as técnicas da cinematografia e que objetiva compreender de que maneira estas técnicas nos ajudam a contar histórias, através da forma como essas histórias serão reinterpretadas. Mediante um referencial histórico assistiremos ao nascimento do cinema, passando por seus ancestrais como a fotografia e até mesmo pinturas rupestres que já demonstravam a necessidade inata do ser humano de contar histórias. Para entendermos melhor de que forma a cinematografia ajuda a traduzir sensações em imagens, utilizamos dois filmes da série Harry Potter como objeto de estudo. Observamos, por meio deles, como os elementos da fotografia cinematográfica nos influenciam na forma como absorvemos as significações e sentimentos propostos nesses e em outros filmes. Palavras-chave: Cinema; fotografia; cinematografia; Harry Potter.

ABSTRACT

This work is a study that discusses cinematography techniques and aims to understand how these techniques help us tell stories by the way these stories will be reinterpreted. Through a historical reference we will witness the birth of cinema, going through its ancestors as photography and even cave paintings that already demonstrated the innate human need to tell stories. To better understand how cinematography helps translate feelings into images we used two films of the Harry Potter series as object of study. By them we observed how the elements of film photography influence us in the way we absorb the meanings and feelings proposed in these and other films. Keywords: Cinema; film; photography; cinematography; Harry Potter.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Exemplo de pinturas rupestres em cavernas de Altamira, Espanha. (Fonte: . Acesso em 05/04/2016.) p. 17 Figura 2: Gravura de um aparelho chamado lanterna mágica. (Fonte: . Acesso em 05/04/2016.) p. 18 Figura 3: Ilustrações que mostram registros da câmara escura. . em 26/04/2016.) p. 21

(Fonte: Acesso

Figura 4: Imagem registrada com betume da judéia, considerada a primeira fotografia da história. (Fonte: . Acesso em 26/04/2016.) p. 23 Figura 5: Eadweard Muybridge. "The Horse in Motion". (Fonte: . Acesso em 26/04/2016.) p. 26 Figura 6: Zoopraxiscópio de Muybridge. (Fonte: . Acesso em 26/04/2016) p. 26 Figura 7: Etienne-Jules Marey. “Running”. 1882. (Fonte: . Acesso em 26/04/2016.) p. 27 Figura 8: O cinematógrafo dos irmãos Lumière. (Fonte: . Acesso em 26/04/2016.) p. 28 Figura 9: Irmãos Lumière, "La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon", 1895. (Fonte: . Acesso em 26/04/2016.) p. 29 Figura 10: Georges Méliès, "Un homme de têtes", 1898. . Acesso 24/04/2016.) p. 30

(Fonte:

Figura 11: “Panorama pris d’un ballon”, Irmão . Acesso em 06/04/2016.) p. 37

(Fonte:

Lumière.

Figura 12: Close do filme "The Birth of Nation", de D. W. Griffith. 1915. (Fonte: . Acesso em 06/04/2016.) p. 39 Figura 13: Reencenação do Experimento Kuleshov. (Fonte: . Acesso em 06/04/2016.) p. 40

Figura 14: "Maria Antonieta", 2006. (Fonte: . Acesso em 10/04/2016.) p. 42 Figura 15: "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", 2001. (Fonte: . Acesso em 10/04/2016.) p. 43 Figura 16: "O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel", 2001. (Fonte: . Acesso em 10/04/2016.) p. 44 Figura 17: "Histórias Cruzadas", 2011. . 10/04/2016.) p. 45

(Fonte: Acesso

Figura 18: “Star Wars IV - Uma Nova Esperança”, 1977. . 10/04/2016.) p. 46

(Fonte: Acesso

Figura 19: "O Clube da Luta", 1999. . 10/04/2016.) p. 47

(Fonte: Acesso

Figura 20: “Os Excêntricos Tenenbaums”, 2001. (Fonte: . Acesso 11/04/2016) p. 48 Figura 21: "Moonrise Kingdom", 2012. (Fonte: . Acesso em 11/04/2016.) p. 48 Figura 22: "Kill Bill: Volume 1", 2003. (Fonte: . Acesso em 11/04/2016.) p. 49 Figura 23: “Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância)”, 2014. (Fonte: . Acesso em 11/04/2016.) p. 50 Figura 24: "Os Miseráveis", 2012. (Fonte: . Acesso 11/04/2016.) p. 50 Figura 25: Bruxa Má do Oeste, em “O Mágico de Oz”. 1939. (Fonte: . Acesso: 24/05/2016.) p. 55 Figura 26: Harry Potter em ilustração original de J. K. Rowling. (Fonte: . Acesso em 21/04/2016.) p. 59 Figura 27: Primeira edição da Bloomsbury para Harry Potter and the Philosopher's Stone. (Fonte: . Acesso 21/04/2016.) p. 60

Figura 28: Capas das "edições adultas" de Harry Potter. (Fonte: . Acesso em 21/04/2016.) p. 61 Figura 29: Emma Watson, Daniel Radcliffe e Rupert Grint em sua primeira sessão de fotos. (Fonte: . Acesso em 21/04/2016.) p. 63 Figura 30: Frames de todos os filmes "Harry Potter" condensados em uma imagem. (Fonte: . Acesso em 25/04/2016.) p. 69 Figura 31: Logo da Warner Bros. Pictures no início de "Harry Potter e a Pedra Filosofal. (Fonte: HARRY POTTER, 2001.) p. 71 Figura 32: Logo da Warner Bros. Pictures no início de "Harry Potter e a Ordem da Fênix". (Fonte: HARRY POTTER, 2007.) p. 71 Figura 33: Plano geral da casa dos Dursley em "Harry Potter e a Pedra Filosofal”. (Fonte: HARRY POTTER, 2001.) p. 72 Figura 34: Harry em cena de confronto contra Voldemort. (Fonte: HARRY POTTER, 2001.) p. 73 Figura 35: Harry, Rony e Hermione no Salão Principal de Hogwarts. (Fonte: HARRY POTTER, 2001.) p. 74 Figura 36: Natal em "Harry Potter e a Ordem da Fênix”. (Fonte: HARRY POTTER, 2007.) p. 74 Figura 37: Sala Comunal da Grifinória em "Harry Potter e a Pedra Filosofal". (Fonte: HARRY POTTER, 2001.) p. 75 Figura 38: Sala Comunal da Grifinória em "Harry Potter e a Ordem da Fênix". (Fonte: HARRY POTTER, 2007.) p. 76 Figura 39: Harry e Dumbledore em "Harry Potter e a Pedra Filosofal". (Fonte: HARRY POTTER, 2001.) p. 77 Figura 40: Harry e Dumbledore em "Harry Potter e a Ordem da Fênix". (Fonte: HARRY POTTER, 2007.) p. 77 Figura 41: Dolores Umbridge em sua primeira aula, em "Harry Potter e a Ordem da Fênix". (Fonte: HARRY POTTER, 2007.) p. 78 Figura 42: Dolores Umbridge como diretora de Hogwarts, em "Harry Potter e a Ordem da Fênix". (Fonte: HARRY POTTER, 2007.) p. 79 Figura 43: Saguão principal do Ministério da Magia. (Fonte: HARRY POTTER, 2007.) p. 80

Figura 44: Grande plano geral de Hogwarts, em "Harry Potter e a Pedra Filosofal". (Fonte: HARRY POTTER, 2001.) p. 81 Figura 45: Close de Harry em ângulo plongé. (Fonte: HARRY POTTER, 2001.) p. 81 Figura 46: Close de Hagrid em ângulo contraplongé. (Fonte: HARRY POTTER, 2001.) p. 82 Figura 47: Lucius Malfoy e Bellatrix Lestrange em ângulo oblíquo. (Fonte: HARRY POTTER, 2007.) p. 83

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 14 1 HISTÓRIA DA IMAGEM EM MOVIMENTO ............................................................. 16 1.1 O cinema antes do cinema .......................................................................................... 16 1.2 A Câmara Escura ........................................................................................................ 20 1.3 Os materiais fotossensíveis ......................................................................................... 22 1.4 Enfim, a invenção da fotografia .................................................................................. 22 1.5 A fotografia do instante .............................................................................................. 25 1.6 Cinema, a fotografia em movimento .......................................................................... 27 1.7 O cinema como a arte marginal .................................................................................. 31 1.8 A desmarginalização do cinema ................................................................................. 33 2 A LINGUAGEM DO CINEMA ....................................................................................... 36 2.1 Ângulos e Planos .............................................................................................................. 36 2.1.1 A evolução de ângulos e planos .............................................................................. 36 2.1.2 Utilizando os planos e ângulos ................................................................................ 41 2.1.2.1 Planos .............................................................................................................. 43 2.1.2.2 Ângulos .......................................................................................................... 47 2.2 Luz e Cor ........................................................................................................................... 51 2.2.1 O papel da luz no cinema ......................................................................................... 51 2.2.2 Colorindo as telas do cinema ................................................................................... 53 3 O MENINO QUE SOBREVIVEU ................................................................................... 56 3.1 A magia da infância .................................................................................................... 56 3.2 Os primeiros passos dessa história .............................................................................. 57 3.3 A adaptação para o cinema ......................................................................................... 61 3.4 O mundo mágico de Harry Potter ............................................................................... 64 4 O USO DA CINEMATOGRAFIA EM “HARRY POTTER” ....................................... 69 4.1 Luz e cor ........................................................................................................................... 69 4.2 Planos e ângulos ................................................................................................................ 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 84 REFEFÊNCIA ....................................................................................................................... 86

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INTRODUÇÃO

O ato de contar histórias é algo intrínseco ao ser humano. Nossas avós nos contam histórias dos tempos antigos que, por sua vez, ouviram de suas próprias avós. Nossos professores nos contam histórias sobre o nosso país e sobre o mundo. Nossos tios nos contam histórias fantásticas sobre as lendas urbanas e das florestas. Histórias reais ou fantasiosas nos enchem os olhos e os ouvidos, nos fazem querer saber mais, mergulhar em outros universos e possibilitam, mesmo que por um momento, deslocar-se no tempo, no espaço e na imaginação. A cada geração nós continuamos a tradição de contar histórias: reproduzimos os “causos” que ouvimos de nossos avós, as lendas que aprendemos sobre o lugar onde vivemos e também começamos a contar as nossas próprias histórias, para nossos amigos, primos, irmãos, filhos ou netos. As histórias vêm e vão, recontadas, reimaginadas e reinventadas. Nos tempos atuais, histórias de fantasia ganharam espaço rapidamente, principalmente por vivermos em um ambiente fértil que cada vez mais nos possibilita imergir nesses mundos paralelos. Hoje não dependemos apenas de palavras escritas ou faladas, pois também podemos mergulhar nesses mundos por meio de imagens, sons, efeitos, projeções, desenhos, etc... Georges Méliès, o primeiro mago das histórias cinematográficas, já sabia o quão importante eram as histórias de fantasia. Foi apenas por meio do cinema que um ilusionista cheio de truques pôde tornar-se verdadeiramente detentor de poderes sobrenaturais, capaz de invocar dragões, mover esqueletos, criar cidades embaixo do mar e, dessa forma, encantar um público que ficara apaixonado por esses instantes de sonho coletivo. Um século depois do primeiro contato de Méliès com o cinema, uma nova história de fantasia começara a ganhar o mundo e conquistar o coração de milhões de fãs de todas as idades, línguas e nacionalidades. O livro Harry Potter e a Pedra Filosofal foi lançado em 1997 e entrou rapidamente na lista dos mais vendidos do mundo todo. Em 2001, a adaptação dessas páginas repletas de magia chegou ao cinema dando início a uma jornada que duraria 10 anos. A manipulação da imagem e a indução de sensações específicas no público é uma área que ainda tem muito a ser explorada na área da comunicação. É de grande importância a forma como o audiovisual é apresentado ao público, pois influencia diretamente na forma como o espectador reage a essa história, a esse conteúdo. Mas, afinal de contas, quais

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aspectos podem conduzir o espectador a sentir uma ou outra emoção, ou ter esta ou aquela opinião sobre um assunto exposto na mídia? Com este trabalho, visamos explorar a linguagem cinematográfica, investigando seus artifícios e o modo como eles são usados para contar histórias e causar reações específicas no público. Entenderemos como esse processo de inspirar sentimentos ao espectador se dá através do uso de planos e ângulos específicos, assim como na utilização de luz e cores. O objetivo deste trabalho é identificar o uso desses elementos comparando a aplicação e a diferença deles em dois filmes da série Harry Potter, sendo eles Harry Potter e a Pedra Filosofal e Harry Potter e a Ordem da Fênix, respectivamente, o primeiro e o quinto filme da saga. Estudaremos os filmes para procurar entender como, através dos parâmetros da cinematografia, eles produzem variadas significações ao espectador e de que forma esses filmes se utilizam das técnicas de fotografia cinematográfica para expressar os diversos momentos e temas do enredo. Observaremos como o primeiro filme trata de um momento de descoberta. Descobrimos que Harry não é um garoto comum, descobrimos um mundo novo e encantador, cheio de magia, e também somos apresentados a alguns dos perigos que esse mundo mágico carrega. O filme foi feito para encantar crianças com essa história de fantasia e conseguiu esse objetivo com maestria. Quando o quinto filme foi lançado, seis anos depois, o público que assistira o começo dessa jornada já não era mais infantil, e nem o enredo do filme era tão cheio de deslumbramento e fascínio. O diretor também não era mais o mesmo que havia criado esse encantamento infantil no início da série e o novo diretor traria uma carga mais adulta. Nesse momento, o mundo mágico está muito mais sombrio e os perigos aumentam, assim como a carga dramática dos personagens principais, que também não são mais crianças. O interessante de usar os filmes da saga Harry Potter parte do princípio de que, como temos oito filmes sobre o mesmo mundo fantástico, contando uma história continuamente durante dez anos, conseguimos ter mais comparativos. Seria muito diferente se houvéssemos decidido utilizar filmes completamente desconexos, pois trataríamos de personagens, cenários e situações muito distintas. Utilizando dois filmes de uma mesma série, podemos comparar o modo como personagens e momentos similares são tratados de forma muito diferentes de acordo com a sensação que se quer inspirar no público. Dessa forma, torna-se mais fácil a compreensão do uso de elementos cinematográficos na construção de sentido de um filme.

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1 A HISTÓRIA DA IMAGEM EM MOVIMENTO 1.1 O cinema antes do cinema Um vídeo de pouco menos de 60 segundos. Uma cena corriqueira. Um trem chega à estação e há uma usual troca de passageiros - enquanto uns desembarcam, outros embarcam. Hoje, um pequeno registro do dia a dia como esse não teria importância e seria provavelmente entediante para quem a ele assistisse, mas há 120 anos, a história foi bem diferente. Quando, em 1895, os irmãos Auguste e Louis Lumière exibiram pela primeira vez em uma sala de projeção o seu vídeo intitulado "L'arrivée d'un train à La Ciotat" (A chegada de um trem à estação Ciotat), o público não estava nem um pouco preparado para o que viria a seguir. Quando o trem, no vídeo, começou a se aproximar da plataforma, muitas pessoas saíram correndo da sala por temer que o trem pudesse atingir quem estava ali assistindo. (RIBEIRO, 2013) O cinematógrafo, como era chamado o aparelho que projetava as imagens em movimento, era uma invenção muito recente, resultado de uma sucessão de descobertas que adicionam muitos nomes a essa história. É possível entender os motivos pelos quais o pequeno filme na estação de trem dos irmão Lumière provocou um grande susto no público. Estávamos no final do séxulo XIX e imagens em movimento eram uma completa novidade. Fotografias já eram lugar comum e as pinturas já vinham registrando momentos específicos, capturados no tempo ou na imaginação dos artistas, há muitos séculos. Mas agora as imagens não eram mais estáticas, não eram mais um fragmento congelado do tempo. O cinema estava nascendo e era algo com o qual ainda deveríamos nos acostumar. Porém, como falamos anteriormente, o cinema nasceu de uma sucessão de descobertas que datam de muito antes da sua estreia. Na verdade, os cientistas, pesquisadores e curiosos que, de algum modo, desenvolveram a parte técnica do cinema que, pouco depois, resultaria no cinematógrafo, dificilmente estavam em busca de intenções artísticas no uso de imagens em movimento de seus trabalhos. A história técnica do cinema, ou seja, a história de sua produtividade industrial, pouco tem a oferecer a uma compreensão ampla do nascimento e do desenvolvimento do cinema. As pessoas que contribuíram de alguma forma para o sucesso disso que acabou sendo batizado de "cinematógrafo" eram, em sua maioria, curiosos, bricoleurs, ilusionistas profissionais e oportunistas em busca de um bom negócio. Paradoxalmente, os poucos homens de ciência que por aí se aventuraram caminhavam na direção oposta de sua materialização. (MACHADO, 1997)

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Há muito tempo a humanidade busca formas de usar imagens para registrar o seu dia a dia e contar histórias. Machado afirma que a história do cinema começou bem antes do que a história da própria fotografia e que "qualquer marco cronológico que possam eleger como inaugural será sempre arbitrário, pois o desejo e a procura pelo cinema são tão velhos quanto a civilização de que somos filhos" (1997). Segundo ele, homens pré-históricos se aventuravam nas cavernas mais escuras e inóspitas para fazerem suas pinturas (Figura 1) porque iam às cavernas produzir e assistir a “sessões de cinema”. Para Watchel, "os artistas do Paleolítico tinham os instrumentos do pintor, mas os olhos e a mente do cineasta." (WATCHEL, 1993, apud MACHADO, 1997) Muitas imagens encontradas nas paredes de Altamira, Lascaux ou Font-deGaume foram gravadas em relevo na rocha e os seus sulcos pintados com cores variadas. À medida que o observador se locomove nas trevas da caverna, a luz de sua tênue lanterna ilumina e obscurece parte dos desenhos: algumas linhas se sobressaem, suas cores são realçadas pela luz, ao passo que outras desaparecem nas sombras. [...] E assim, à medida que o observador caminha perante as figuras parietais, elas parecem se movimentar em relação a ele e toda a caverna parece se agitar em imagens animadas. (MACHADO, 1997)

Figura 1: Exemplo de pinturas rupestres em cavernas de Altamira, Espanha.1

Se nossos antecedentes da pré-história já tinham "mente de cineasta" por tentar criar uma história com movimento através de imagens, podemos concluir que "antes de ser um dispositivo de espetáculo, independentemente da aparelhagem técnica que lhe dê suporte, o filme é um modo de pensar as imagens." (MICHAUD, 2014) A ideia do filme já vinha se                                                                                                                 1

Fonte: . Acesso em 05 abr. 2016.

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desenvolvendo há muitos séculos na mente humana, como se estivesse apenas aguardando o momento propício para se concretizar. Se encararmos o cinema como um sistema particular de recursos expressivos em que se tem, de um lado, a sintetização do movimento e da duração pela rápida exibição de imagens fixas separadas e, de outro, a projeção dessas imagens numa tela branca instalada dentro de uma sala escura, com o respectivo acompanhamento sonoro, para uma grande audiência, naturalmente devemos incluir em tal categoria não apenas os arrepiantes espetáculos de fantasmagoria do belga Étienne-Gaspard Robert (apelidado Robertson; final do século XVIII), não apenas os extraordinários desenhos animados de longa-metragem do teatro óptico do francês Émile Reynaud (meados do século XIX), mas também a tradição inteira da lanterna mágica2 (desde o século XVII). (MACHADO, 1997)

Os primeiros e importantes cineastas da Inglaterra haviam trabalhado antes com a lanterna mágica (Figura 2), o que explica uma certa maturidade precoce do cinema inglês, já que esses homens não viam tanta novidade no cinematógrafo. Acostumados com a construção de narrativas audiovisuais, "o cinema de forma alguma aparecia para eles como um meio de expressão e uma forma de espetáculo novos, mas tão somente como um incremento (mais um entre tantos que surgiam todos os dias) dos recursos expressivos da lanterna." (MACHADO, 1997)

Figura 2: Gravura de um aparelho chamado lanterna mágica.3 Se considerarmos que as placas das lanternas já incluíam, desde pelo menos o século XVIII, mecanismos engenhosos para simular o movimento das

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A Lanterna Mágica é um antecessor do projetor de cinema. "(...) é um aparelho para projecção de imagens sobre vidro pintadas em cores translúcidas. É composta por uma fonte luminosa, que nas primeiras lanternas era uma simples vela ou um candeeiro a petróleo, um reflector, um condensador e uma objectiva. É o primeiro aparelho destinado a projecções colectivas, contrariamente às caixas ópticas ou instrumentos ópticos para olhar individualmente através de lentes, espelhos ou prismas." (COSTA, 1988) 3 Fonte: . Acesso em 05 abr. 2016.

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figuras na tela (acionados por manivelas ou outros dispositivos cinéticos), recursos de transformação e sobreposição de fontes de luz para produzir fusões e dissolvências, técnicas sofisticadas de roteiros para transformar histórias orais ou escritas em sequências de imagens, sincronização dessas imagens com voz e som, se considerarmos ainda a existência de um público potencial frequentador desses espetáculos, instituições encarregadas de promovê-los e até mesmo a produção semi-industrial de placas transparentes para distribuição em larga escala, devemos forçosamente concluir que o cinematógrafo dos Lumière e de seus outros colegas não chega a representar propriamente um corte, uma virada na história dos meios expressivos do homem. (MACHADO, 1997)

Em seu livro "Pré-cinemas & Pós-cinemas", Machado (1997) dedica um capítulo a traçar vários paralelos entre o mito da caverna, de Platão, e o cinema, descrevendo, portanto, a sua origem muito antes de seus aparatos técnicos. Platão chega a descrever com assustadora precisão o que mais tarde viria a ser o aparelho de projeção do cinema. Primeiramente, ele não usa luz natural em seu "invento". A luz utilizada para projetar as sombras na parede (ou as imagens na tela) é artificial, proveniente de uma fogueira acesa atrás dos prisioneiros. Essa luz era estrategicamente posicionada atrás e acima dos prisioneiros/espectadores, pois se estivesse em outro lugar ela projetaria as sombras deles próprios na parede. Para manter a ilusão, é preciso que o mecanismo que proporciona a projeção seja ocultado, sendo assim, Platão coloca um muro baixo entre os prisioneiros/espectadores e o fogo/projetor. Por conta disso, a ilusão de realidade está segura e não será quebrada, a não ser que ocorra algum problema no mecanismo, como o fogo se extinguir ou o rolo de fita se romper no projetor. Necessário é reconhecer ainda uma outra sutileza na montagem do dispositivo de Platão: em vez de fazer projetar na tela-parede da caverna as sombras dos próprios objetos naturais, ou seja, dos seres que vivem à luz do exterior, Platão recorre a um simulacro de realidade, “estátuas de homens e animais” já codificadas por artesãos ilusionistas. Esse detalhe é vital para o funcionamento de sua crítica à razão dos sentidos: se as sombras percebidas no interior da caverna fossem produzidas por modelos reais, elas teriam o poder de apontar para algo “verdadeiro”, nem que fosse a título de índice de uma realidade que vibra lá fora. Por essa razão, ele afasta tacitamente qualquer intervenção direta da realidade exterior, fazendo projetar na caverna imagens de outras imagens: entre o aparelho de projeção (o fogo) e a tela-parede, o que se interpõe não é a “realidade” pura e simples, mas já uma representação, um simulacro que bem poderia ser a película cinematográfica se Platão pudesse naquela época concebê-la. Vale dizer: o mundo de sombras que os prisioneiros contemplam na parede da caverna não é um mero “reflexo” do mundo de luzes que brilha lá fora; antes, é um mundo à parte, construído, codificado, forjado pela vontade de seus maquinadores. (MACHADO, 1997)

Segundo Machado (1997), o próprio Platão admite o fascínio que domina os prisioneiros (ou espectadores), fazendo-os preferir a magia das sombras do que qualquer tipo

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de liberdade ou redenção. Eles preferem a ilusão das imagens projetadas à realidade. Por conta disso, pode-se dizer que Platão já tinha idealizado o projeto do cinema dois milênios antes de sua materialização técnica. E, nessa alegoria da caverna como o cinema, Platão representa o papel do lanterninha. De um lado, ele é o portador da luz – essa luz que emerge no Ocidente como a metáfora do conhecimento e da razão. A ele cabe iluminar o caminho daqueles que estão imersos nas trevas, conduzi-los aos seus assentos ou guiálos para fora da caverna. Representante da transcendência, da Ideia do Bem, o lanterninha está imbuído de uma missão pedagógica: conduzir o prisioneiro que se libertou, por sucessivos estágios de clarividência, até o foco solar, quando então ele já não necessitará da luz tênue de sua lanterna. Ao mesmo tempo, Platão aparece também como o lanterninha num outro sentido: a ele cabe vigiar a sala escura, surpreendendo com sua luz a alucinação que toma conta dos prisioneiros, um pouco como o lanterninha moderno, que flagra os amantes se tocando ou o solitário se masturbando. O lanterninha é também aquele que cumpre uma função ordenadora e civilizatória dentro da caverna, aquele cuja proximidade todos temem, por ameaçar o encantamento da sala escura com sua intervenção desveladora. (MACHADO, 1997)

1.2 A Câmara Escura E como estamos falando de uma teoria nascida na antiga Grécia, é nesse lugar e nesse momento que também é possível (já que não há certeza sobre a sua origem) que tenha ocorrido a invenção da chamada câmara escura, descoberta fundamental para a origem da fotografia e, consequentemente, do cinema. A câmara escura nada mais é que uma caixa preta totalmente vedada da luz com um pequeno orifício ou uma objetiva em um dos seus lados. Apontada para algum objeto, a luz refletida deste projeta-se para dentro da caixa e a imagem dele se forma na parede oposta à do orifício. Se, na parede oposta, ao invés de uma superfície opaca, for colocada uma translúcida, como um vidro despolido, a imagem formada será visível do lado de fora da câmara, ainda que invertida. Isso permite a visão de qualquer paisagem ou objeto através do orifício que, dependendo do tamanho e da distância focal, projetava uma imagem maior ou menor. (SALLES, 2008)

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Figura 3: Ilustrações que mostram registros da câmara escura.4

Não se sabe ao certo o tamanho dessa caixa, pois ela é descrita algumas vezes com as dimensões de uma sala, onde poderia caber um homem (Figura 3). Porém, para uma imagem ser projetada em uma câmara escura o orifício deve ser muito pequeno e a luz que entra não seria o suficiente para projetar uma imagem em uma sala de grandes proporções. Artistas do Renascimento se posicionariam dentro dessas câmaras para tomar moldes para seus desenhos, porém não se sabe como isso acontecia ou a quais obras se referem, pois não há registros diretos. Além disso, informações sobre a utilização desse aparelho pelas civilizações mais antigas são ainda mais confusas, pois naquela época ainda não eram conhecidos os materiais fotossensíveis e ainda não existia estudo de perspectiva. Entretanto, a câmara escura foi muito utilizada entre os séculos XVI e XVIII para estudar a perspectiva na pintura e permitir alguns avanços técnico-científicos como uso de lentes e espelhos para melhor compreender a imagem. Mesmo assim, a captura da imagem estava limitada ao trabalho manual de contorno da luz projetada. (SALLES, 2008) Com isso, ainda era preciso combinar este com outro elemento tão importante quanto para que surgisse, então, a fotografia, como explica Michaud: Se considerarmos a máquina fotográfica em sua dimensão técnica, não poderemos encontrar um catalisador que presida a sua invenção. De fato, ela nasceu do encontro de dois princípios científicos independentes um do outro e estabelecidos muito tempo antes. O primeiro é óptico: é a câmara escura, regularmente empregada por artistas, arquitetos e cientistas desde o século XVI, na busca da construção e perspectiva: um raio luminoso, passando por um pequeno orifício feito na parede de uma peça escura, projeta uma imagem invertida do mundo externo na parede oposta. O segundo princípio é químico: em 1727, Johann Heinrich Schulze identificou a propriedade dos nitratos de prata de escurecer sob a luz. Os inventores da fotografia usaram esse fenômeno de fotossensibilidade para fixar as imagens insubstanciais formadas nas câmaras escuras e lhes dar uma forma de perenidade. (MICHAUD, 2014, p. 17)

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1.3 Os materiais fotossensíveis Os materiais fotossensíveis formam, junto com a câmara escura, as peças-chave para a criação da fotografia. Se por um lado já existia a técnica, que permitia a projeção da luz, ainda era preciso o desenvolvimento de uma superfície fotossensível, ou seja, sensível à ação da luz. Somente dessa forma seria possível o registo preciso e automático da imagem análoga à que projeta a luz sobre tal superfície. De fato, todos os materiais têm alguma sensibilidade à ação dos fótons de luz, a exemplo de um tecido que desbota quando exposto por muito tempo ao sol, "mas algumas [superfícies] demoram milhares de anos para se alterarem, enquanto outras apenas alguns segundos já lhes são suficientes." (SALLES, 2008) Datam da Renascença os experimentos conhecidos com os sais de prata (ou haletos), material que enegrece proporcionalmente à intensidade da luz projetada sobre ele, destacandose os estudos de Georg Fabricius no ano de 1566 acerca dessa propriedade. Registros posteriores, ao longo do século XVIII, relatam o registro de imagens usando os sais de prata para sua obtenção. Em geral, esses registros eram obtidos por contato, "ou seja, algum objeto era colocado sobre o papel sensibilizado, e assim se obtinha uma imagem ou silhueta daquele objeto." (SALLES, 2008) O primeiro registro bem sucedido da combinação entre papéis sensibilizados com sais de prata e a câmara escura para registrar imagens aconteceu em 1800, nas mãos do ceramista Thomas Wedgwood, na Inglaterra. (SALLES, 2008) Mas ainda havia um detalhe que fez com que o experimento de Wedgwood ainda não fosse a pedra fundamental da fotografia como conhecemos: os sais de prata registram a luz projetada sobre o papel com sucesso; contudo, para visualizarmos a imagem registrada precisamos colocá-la à luz. O resultado é que essa luz continua interagindo com o material fotossensível e alterando-o, até que a imagem desapareça por completo. O último desafio para a invenção definitiva da fotografia era a fixação da imagem registrada, interrompendo a ação da luz sobre os sais de prata. 1.4 Enfim, a invenção da fotografia

Eis então que adentra ao cenário da história o Sr. Nicéphore Nièpce, nascido em Chálon-sur-saóne, França, em 1765. Apesar de ter seguido carreira militar, ele e seu irmão Claude se interessavam por pesquisas como cientistas amadores, e, apesar de diletantes, eram empenhados e chegaram a inventar, por volta de 1815, um motor a explosão. (SALLES, 2008)

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Bom, apesar de, nessa pesquisa não termos encontrado registros sobre o sucesso ou não do plano dos irmãos Nièpce de desenvolverem um motor a explosão e, por isso, seremos obrigados a deixar essa curiosidade no ar, pois os resultados desse experimento são completamente irrelevantes para o nosso trabalho. Contudo, o nome de Nicéphore é extremamente relevante para a história da fotografia, isso porque ele apresentava um interesse pelos registros visuais e "estudou diversas técnicas reprográficas e, com isso, feito importantes melhorias no processo de litografia." Além disso, avançou no objetivo de registrar imagens reais, já que a litografia só permitia a reprodução de imagens opacas ou transparentes já existentes. (SALLES, 2008) Com isso, Nièpce experimentava o uso da técnica da câmara escura com o betume da judéia, um tipo de verniz que seca rapidamente quando entra em contato com a luz. As áreas expostas e endurecidas eram extraídas, formando imagens bastante simples. Contudo, tal material demandava longas horas de exposição à luz e sofria de problemas como a evaporação do seu solvente antes da formação completa da imagem. A figura 4 é a única imagem registrada que permaneceu. Contudo, o próprio Nièpce não a considerava um resultado satisfatório. A esse processo o francês deu o nome de heliografia, ou seja, escrita com o sol. (SALLES, 2008)

Figura 4: Imagem registrada com betume da judéia, considerada a primeira fotografia da história.5

Louis Jacques Mandé Daguerre conheceu a divulgação do trabalho de Nièpce e se interessou pelas descobertas que resultaram na heliografia. Ele também utilizava a câmara                                                                                                                 5

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escura, mas para os tradicionais fins de pintura. Em 1829, Daguerre e Nièpce fecharam uma sociedade para aprimorar as técnicas já desenvolvidas, que veio a fracassar anos depois, em 1833, com a morte de Niépce. (SALLES, 2008) Daguerre continuou com os estudos e experimentações, dando continuidade ao trabalho de Niépce, mas com o foco em criar e fixar uma imagem, simplesmente, diferente do colega que objetivava a criação de uma matriz a ser reproduzida em processos litográficos. A descoberta da fixação de uma imagem em uma chapa com sais de prata se deu por acaso: após deixar uma chapa por alguns dias guardada em um armário, voltou para retirá-la e lá havia o registro de uma imagem que não estava lá antes. Investigando o que poderia ter acontecido, descobriu que a imagem tinha se fixado por conta da interação do material com o mercúrio que havia vazado de um termômetro que se quebrou. Foi assim que ele inventou o chamado Daguerreótipo. Tal resultado foi divulgado 3 anos depois à Academia de Ciências e Belas Artes, em Paris. (SALLES, 2008; OLIVEIRA, 2007, p. 4-5) Há também uma história paralela a essa, a da criação da fotografia no Brasil. Sendo esta uma pesquisa brasileira, é importante considerarmos essa história, também. Os registros divulgados pela pesquisa do fotógrafo Boris Kossoy contam que o francês Hercules Florence, após chegar ao Brasil para morar no interior do estado de São Paulo, fez descobertas análogas às de seus patrícios. Florence desenvolveu uma técnica de escrita sobre vidro, usando cola e a fumaça de um lampião. Com essa técnica, ele era capaz de criar textos e gravuras que, quando colocadas sobre material fotossenssível e expostas ao sol, reproduziam o registro, fazendo com que esse vidro servisse de matriz para possíveis reproduções seriadas. A esse processo o francês deu o nome de photographie. Os registros da descoberta datam de 1838, ano anterior ao da divulgação dos inventos de Daguerre. (OLIVEIRA, 2007) Como nosso foco a seguir é o da evolução da fotografia e, consequentemente, do cinema, não vamos nos ater aos detalhes das descobertas de Florence, pelo fato de que foi o daguerreótipo que possibilitou que a fotografia se espalhasse pelo mundo, ganhando novos adeptos e curiosos, que continuaram realizando descobertas para a sua evolução. O ritmo dessas novas descobertas, inclusive, acelerou-se; o daguerreótipo foi um grande salto que fez com que a fotografia começasse a andar a passos largos. Outros nomes ajudaram nesse avanço acelerado das técnicas fotográficas: os ingleses Talbot e Herschel, que produziram avanços no uso de químicos para a fotossensibilização e fixação das imagens; Claude Nièpce (neto de Nicéphore Nièpce), que utilizou a albumina da clara de ovo para fixar os sais de prata em vidro, permitindo o uso de chapas de vidro para

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produzir fotografias e, consequentemente, a produção de positivos a partir dos negativos gerados na fotografia; Petzval, que desenvolveu uma lente mais clara, que permitia tempos menores de exposição; Archer, com a descoberta do uso do colódio para substituir o caro uso de ovos nas chapas de vidro e mais de 20 anos depois o médico inglês Richard Maddox que passou a usar gelatina de secagem rápida para a mesma finalidade e criou as chapas fotográficas secas; e, finalmente, Eastman, que substituiu as chapas de vidro por uma nitrocelulose transparente e flexível, que viria a ser os filmes fotográficos analógicos como conhecemos hoje e criando em 1888 uma câmera chamada KODAK, que podia fazer várias fotografias sequenciais em um mesmo rolo. (SALLES, 2008) 1.5 A fotografia do instante Os avanços que citamos permitiram que a fotografia evoluísse em nitidez e velocidade de exposição. Isso fez com que, para além de fotografias de cenas estáticas, retratos posados e naturezas-mortas, pudéssemos fotografar instantes, cenas em movimento, verdadeiros recortes do cotidiano congelados pelos sais de prata. Foi se valendo desses recursos que - ainda antes do lançamento da câmera KODAK que citamos - o fotógrafo inglês Eadweard Muybridge aceitou um desafio em seu trabalho. Contratado em 1872 pelo ex-governador da Califórnia, um grande apostador de corridas de cavalo, para tentar comprovar a sua afirmação de que o cavalo ficava com as quatro patas simultaneamente no ar durante um galope, Muybridge, com a ajuda do engenheiro John D. Isaacs, construiu um sistema de 24 câmeras posicionadas a distâncias equivalentes, ativadas por fios esticados e colocados no lugar por onde o cavalo passaria. A medida que o cavalo avançava, as câmeras eram disparadas, capturando o movimento do cavalo de forma sequenciada, instante após instante. (CAIXETA, 2012) Podemos ver esse registro de Muybridge na Figura 5:

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Figura 5: Eadweard Muybridge. "The Horse in Motion" 6

O experimento de Muybridge deu tão certo que ele dedicou toda a sua vida a partir de então para estudar movimentos por meio de fotografias sequenciadas. Ele inventou o Zoopraxiscópio, um mecanismo com um disco circular e imagens sequenciadas que, ao ser girado, criava a ilusão de movimento (Figura 6). O Zoopraxiscópio foi, certamente, uma inspiração para o projetor de filmes.

Figura 6: Zoopraxiscópio de Muybridge7

Esse processo de visualizar o movimento através de uma sequência de imagens gravadas é conhecido como cronofotografia. Além de Muybridge, outro pesquisador pioneiro na cronofotografia e que criou mais um dos ancestrais da câmera cinematográfica foi o                                                                                                                 6

Fonte: . Acesso em 26 abr. 2016. Fonte: . Acesso em 26 abr. 2016

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fisiologista francês Etienne Jules-Marey, criando o fuzil fotográfico. Como fisiologista, Marey não entendia para que poderia servir animar uma série de fotografias, pois isso nada acrescentaria ao nosso poder de visão - o que a animação mostraria, poderíamos ver melhor com os nossos próprios olhos, olhando diretamente para o ser vivo. Para ele, o valor da sequência fotográfica era a possibilidade de congelar, decompor e analisar os movimentos em detalhe. Jules Marey sentia-se incomodado com o "realismo" do cinema, o que para ele era um defeito, então ele fazia o que podia para retirar essa natureza da cena, transformando-a apenas um diagrama que poderia ser analisado cientificamente de forma mais clara, como a figura 7. O fuzil fotográfico era um instrumento feito com um disco cheio de orifícios que captava a imagem a doze frames por segundo. (MACHADO, 1997)

Figura 7: Etienne-Jules Marey. “Running”. 1882.8

1.6 Cinema, a fotografia em movimento Por mais que esses pesquisadores só estivessem interessados na imagem congelada do movimento fragmentado, havia algumas pessoas, como os irmãos Lumière, que estavam mais interessados no momento em que a imagem era posta em movimento. Auguste e Louis Lumière nasceram na França em 1862 e 1864, respectivamente. Filhos de um fotógrafo proprietário de uma indústria de filmes e fabricante de papéis fotográficos, os irmãos já                                                                                                                 8

Fonte: . Acesso em 26 abr. 2016.

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estavam acostumados com a fotografia desde a infância. Coube a eles o registro patente do cinematógrafo, e 1895, sendo que o aparelho já teria sido inventado poucos anos antes, em 1893, por Léon Bouly. (ALMEIDA, [2009?]) O cinematógrafo era uma invenção que servia para captar cronofotografia, como aquelas que faziam Muybridge e Marey. Era um aparelho "movido à manivela e utiliza negativos perfurados (fotografias em película) e um sistema de rodas dentadas, tornando possível a projecção de imagens." (ALMEIDA, [2009?]) O aparelho por si próprio também era um antecessor da máquina de filmar e o seu nome inspirou e tornou-se a identidade da arte de imagens em movimento em todo o mundo (Figura 8).

Figura 8: O cinematógrafo dos irmãos Lumière.9

A primeira sessão pública de cinema ocorreu em Paris, em 1895, quando os irmãos Lumière apresentaram o filme "Saída dos Trabalhadores da Fábrica Lumière" (Figura 9), que era exatamente isso: um filme de menos de um minuto com imagens dos trabalhadores saindo da fábrica. O filme do trem, que já citamos no início do capítulo, foi o segundo filme apresentado ao público. Os irmãos fizeram cerca de 1500 filmes entre o final do século XIX e início do século XX, todos com menos de um minuto e cerca de 17 metros de rolo. Esses filmes são geralmente cenas do cotidiano, registros documentais, realistas e não tinham som.

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Figura 9: Irmãos Lumière, "La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon", 1895.10

O Grand Café, em Paris, foi palco da primeira exibição de filmes feita com cobrança de ingressos. Em 28 de dezembro de 1895, os irmãos Lumière levaram ao público uma série de vídeos curtos com cenas do cotidiano e, justamente nesse dia, o mágico e ilusionista Georges Méliès conheceu o cinema e se deslumbrou com as possibilidades que ele trazia. (ALMEIDA, [2009?]; MICHAUD, 2014) Se o cinema nasceu do aperfeiçoamento e da comercialização de um equipamento técnico, suas origens se perdem na história dos espetáculos de ilusionismo e de projeções luminosas: os mágicos foram os primeiros a aprender a dominar os efeitos desses recursos. [...] Os filmes com truques, as fantasias burlescas e os espetáculos de mágica que ele [Méliès] viria a realizar a partir de 1896, e que formariam a maior parte dos cerca de 150 filmes que ele rodaria até 1913, não foram puras invenções, nascidas de sua imaginação de cineasta, mas uma transposição dos espetáculos de magia que ele apresentava no palco do teatro Robert-Houdin desde 1888: constituíramse como um aparelho de resistência ao realismo das imagens em movimento que ele descobrira no Grand Café. (MICHAUD, 2014, p. 157)

Méliès estava ansioso para tirar algum lucro da 'fotografia animada', pois "era somente aí que se podia criar uma nova modalidade de espetáculo, capaz de penetrar fundo na alma do espectador, mexer com os seus fantasmas e interpelá-lo como sujeito". (MACHADO, 1997) O cinema se tornou um fenômeno. O público se maravilhava com a simples "duplicação" da realidade, como nos filmes dos Lumière, mas também com o universo mágico proposto por Méliès. Segundo Michaud (2014, p. 157), "Georges Méliès opôs sua reconstrução imaginária                                                                                                                 10

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e lúdica. Desviando a câmera de sua vocação documentária, ele a utilizou como um instrumento demiúrgico, não mais para observar a realidade, mas para recriá-la". Com todo o seu conhecimento sobre mágica e ilusionismo e mais um bocado de criatividade, Méliès trouxe muitas inovações para o cinema e ficou conhecido como o pai dos efeitos especiais. "O diretor abusava de jogos de luzes, efeitos fotográficos e óticos, design de sets de filmagem, recortes e colagens de película e ilusionismo. Cada centímetro de seu estúdio era cuidadosamente trabalhado para a composição das cenas. Quase tudo era feito na base da experimentação." (SALLES, 2014) Podemos observar um dos seus experimentos na figura 10.

Figura 10: Georges Méliès, "Un homme de têtes", 1898.11 Os filmes de Méliès não são invenções de formas: perpetuam, por meio do cinema, o espírito das atrações das feiras e do teatro popular, as quais, justamente, o cinema ameaçava substituir. Essas fantasias filmadas voltaramse nostalgicamente para o seu próprio passado, do qual tomaram a iniciativa de conservar o arquivo e inventar a fábula. (MICHAUD, 2014, p. 158)

Os filmes de Méliès tinham de 3 a 5 minutos e eram quase sempre em tom humorístico. Humor esse que poderia vir em coisas simples como a gesticulação ou a expressão dos atores. Lembremos que os filmes eram, até então, mudos, mas não eram silenciosos. Era comum que um pianista acompanhasse as sessões de cinema para auxiliar no ritmo do filme e aumentar o suspense ou a comicidade nas horas certas. Nem as películas em preto e branco foram um grande empecilho para a criatividade de Méliès. As imagens eram pintadas à mão, colorizadas manualmente, garantindo um atrativo a mais nas obras do diretor                                                                                                                 11

Fonte: . Acesso 24 abr. 2016.

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e marcando a história como primeiros filmes projetados com cores, mesmo que não tivessem sido filmado em cores. (SALLES, 2014) Se Mèlies não "inventou" o cinema, porém o utilizou para prolongar uma história mais antiga, inventou, em contrapartida, a figura do cineasta: exercendo simultaneamente as funções de produtor, roteirista, diretor e ator, ele foi o primeiro autor proteiforme da história cinematográfica. Assim, se explicaria, em seus filmes, a multiplicação dos autorretratos. [...] Méliès parece ter-se representado dessa maneira em seus filmes, para assinar suas imagens - e talvez também, num plano mais profundo, para sentir os efeitos do cinema no próprio corpo. Evoluindo diante de cenários de perspectivas aberrantes, em meio a espectros e aparições, curandeiro místico, capaz de decompor e reconstituir os corpos, de fazer nascerem visões e de dissipá-las, Méliès, em seus filmes autorretratos, representa-se como feiticeiro e faz do cinema uma força mágica. (MICHAUD, 2014, p. 160)

E foi como essa força mágica que o cinema ganhou destaque ao longo dos anos. Os intelectuais do século XIX supunham que o cinema continuaria na função documental e de registro, como a fotografia, mas o seu desenvolvimento se deu de forma diversa. Para Machado (1997), "o novo sistema de expressão, assim que ganhou forma industrial, impôs-se esmagadoramente como território das manhas do imaginário, mantendo-se fiel aos seus ancestrais mágicos pré-industriais". 1.7 O cinema como a arte marginal Demoraram a existir salas de exibições próprias e exclusivas para o cinema. Principalmente nos primeiros 10 ou 20 anos do cinematógrafo, os filmes eram exibidos em locais alternativos, muitas vezes em lugares que não eram tidos como "de classe", mas sim "baixos" ou "vulgares". Filmes eram utilizados como uma atração de curiosidades ou como peças de entreato em feiras e apresentações de circo. Nas cidades pequenas do interior, zonas rurais ou países menos desenvolvidos, esse continuou sendo o meio de difusão dos filmes até os anos 60, quando se deu a chegada da televisão. Já nos grandes centros a exibição de filmes logo se concentrou em casas de espetáculos, locais onde se ia para comer, beber, dançar e se divertir. Esses locais eram conhecidos como music-halls, na Inglaterra, café-concerts, na França, ou vaudevilles e smoking concerts, nos Estados Unidos. Esses locais eram malafamados, de "baixo nível", abominados por pessoas de "boa família", pois o álcool era permitido e a prostituição orbitava ao seu redor. (MACHADO, 1997) O cinema era então uma das atrações entre as outras tantas oferecidas pelos vaudevilles, mas nunca uma atração exclusiva, nem mesmo a principal. A própria duração dos filmes (de alguns segundos a não mais do que cinco

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minutos) impedia que se pensasse em sessões exclusivas de cinema nos primeiros anos do cinematógrafo. Seria preciso esperar pelo florescimento e pela hegemonia comercial dos nickelodeons ( (...) o nome é derivado do fato de se pagar uma moeda de níquel para entrar) para que essa situação se invertesse. (MACHADO, 1997)

Esses nickelodeons surgiram cedo, mas não passavam de armazéns sujos, sem condições de segurança ou conforto. O preço pago pelo ingresso era tão irrisório que não era o suficiente para funcionar como um filtro para o público que frequentava esses locais, que acabava sendo o mesmo dos vaudevilles, pelo menos nos primeiros anos. Com o tempo e a evolução da técnica narrativa do cinema os nickelodeons evoluiriam, mas no início o filme continuava sendo um número de variedades como tantos outros. (MACHADO, 1997) Devemos considerar que, apesar de o cinema fazer parte, neste primeiro momento, de uma cultura do proletariado, ele não refletia os desejos e necessidades dessa parte da população. Os setores mais "conscientes" do proletariado eram, contraditoriamente, conservadores do ponto de vista cultural, e consideram o cinema como mais um meio de aliviar as dores e não causar grandes comoções políticas no povo. Até a primeira década do século XX, os filmes eram registros dos próprios números dos vaudevilles, cenas cômicas, contos de fadas e, é claro, a pornografia, que rolava solta. Os registros desse período derivam principalmente de certas formas de cultura popular da Idade Média ou posteriores, como as atrações de feiras e circos. (MACHADO, 1997) Os temas e personagens desses filmes explicam um pouco mais o motivo pelo qual o cinema era mal visto pela alta sociedade: mostravam cenas de adultério, mulheres desnudas e personagens míticos em situações sexuais, assim como policiais corruptos, ladrões, aproveitadores e malandros que se davam bem à custa de pessoas de "boa índole". Para as autoridades, as salas escuras traziam uma forma de degeneração da sociedade e esses locais foram submetidos a leis e regras bastante severas de censura, o que atingia a liberdade dos criadores de conteúdo e do público. Acabaram-se as vendas de álcool e alguns gêneros de filmes foram descontinuados, tudo numa tentativa agonizante das autoridades de purificar aquele ambiente do antro em que estava se tornando. (MACHADO, 1997) Nos Estados Unidos percebeu-se que era necessária a criação de um novo público e de um novo formato de filmes para que o cinema pudesse continuar o seu desenvolvimento. Era preciso que a classe média e a burguesia se transformasse em uma plateia que teria um poder aquisitivo bem mais significativo, assim como muito mais tempo de lazer. Segundo Machado (1997), o cinema precisava "encaixar-se na linha de evolução das artes 'elevadas'", e a forma encontrada foi apropriando-se da narrativa dos romances e do teatro do século anterior. O

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cinema precisava legitimar-se e acabar com o preconceito e a raiva dos conservadores, inserindo-se no universo das belas-artes. O cinema tinha de aprender a contar uma história, armar um conflito e pô-la a desfiar-se em acontecimentos lineares, encarnar esse enredo em personagens nitidamente individualizados e dotados de densidade psicológica. O novo cinema, que se começava a ensaiar a partir da segunda metade da primeira década, buscava de todas as formas reproduzir o discurso romanesco dos séculos XVIII e XIX e essa reprodução foi levada tão ao pé da letra que, a partir de então, a própria literatura passou a fornecer o material narrativo que seria moldado pelo cinematógrafo. (MACHADO, 1997)

1.8 A desmarginalização do cinema Na primeira década do século XX, as imagens fantasiosas e delirantes dos primeiros filmes vão sendo substituídas por um tipo de espetáculo mais verossímil, que retratasse de forma mais natural a vida do público. Machado (1997) supõe que "a experiência humana só ganha credibilidade na medida em que a sua simulação na tela se dá em 'condições naturais', a fábula legitimada pela mimese". A literatura dos séculos XVIII e XIX mostravam, de alguma forma, com bastante realidade, a vida doméstica do público, e era essa literatura que servia de base para o novo modelo do cinema, aquele que queria se fundir com as outras artes mais "nobres". Começaram a se reconstituir ações e momentos específicos em estúdio, como da guerra hispano-americana que foi reconstituída diversas vezes com atores para simular reportagens no local do acontecimento. Uma cena em específico que causou uma grande comoção por conta de sua "autenticidade" foi a do afundamento de uma das frotas espanholas na baía de Santiago. Segundo registros, a própria marinha espanhola comprou uma cópia do filme para ser guardada como documento histórico.(MACHADO, 1997) A função dessas atualidades reconstituídas não é simplesmente a de enganar o espectador; antes, elas visam revestir a estrutura ficcional de uma aura de autenticidade e colocar o espectador como testemunha ocular dos acontecimentos. Assim, pouco a pouco, os estúdios (americanos e ingleses principalmente) vão substituindo o feérico do filme primitivo pelas "cenas de vida real", pelos efeitos de transparência e mimese que vão dar consistência a uma arte do verossímil. (MACHADO, 1997)

Essas reconstituições não eram consideradas obras de ficção. As primeiras histórias de ficção com enredo de verdade foram as Paixões de Cristo. Eram filmados pequenos filmes, quadros, como na Via Sacra. O desenvolvimento da história se dava por uma sucessão desses quadros, separados e anunciados por intertítulos, como "Anunciação de Nossa Senhora" e "Adoração dos Reis Magos". Machado (1997) ressalta que não é por mero acaso que essas

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tenham sido as primeiras histórias a serem contadas em longa duração no cinema, pois, como já eram uma narrativa amplamente conhecida, isso facilitava a sucessão dos quadros que não tinham, por si só, meios suficientemente capazes de conectar a ação dos quadros entre si. (MACHADO, 1997) Curiosamente, cada quadro era vendido separadamente, como se fosse um filme independente dos outros. O exibidor era quem comprava os quadros de sua preferência e montava a Paixão de acordo com a sua própria escolha. Sendo assim, era comum que numa mesma sessão aparecessem quadros de produtores diferentes, com atores diferentes encenando os mesmos personagens. O exibidor, que também fazia de certa forma o papel de editor, poderia comprar os quadros mais diversos e fazer uma montagem misturando cenas de ficção com registros documentais, criando novas sequências narrativas. Tudo isso porque o exibidor era o dono dos quadros e poderia fazer com eles o que bem entendesse. A partir de 1907 isso mudou, pois os quadros começaram a ser alugados ao invés de vendidos, o que impedia que o exibidor montasse a sua própria sequência, que não fosse a sequência imaginada pelos produtores do filme, e "só então o cinema pode começar a se propor o projeto de imaginar formas narrativas estáveis, no sentido hoje entendido como tal". (MACHADO, 1997) A maturidade da audiência e os poucos recursos narrativos que o cinema tinha naquele momento, contudo faziam com que a narrativa precisasse de um auxílio para cumprir o seu papel comunicador. As primeiras imagens cinematográficas eram consideradas "confusas" demais para um público viciado no discurso linear e organizado do teatro e do romance romântico/realista. Num primeiro momento, a entrada nos nickelodeons de um público "virgem", de formação pequeno-burguesa, vai solicitar o concurso de um guia especializado, o conferencista "educativo", [...] cuja função principal é explicar o filme. (MACHADO, 1997)

A figura do conferencista era uma tentativa de elevar o nível do público, trazendo uma voz "detentora do saber e do veredito moral". Esse comentador deriva diretamente dos apresentadores de espetáculos de feira e da lanterna mágica, presentes desde a Idade Média. Entretanto, o principal papel do comentarista era colocar sentido no caos do cinema primitivo daquela época, explicando o enredo e apontando aspectos importantes da história. O cinema ainda não era capaz de construir uma narrativa lógica pelos seus próprios meios, então necessitava daquela figura para dar suporte verbal. Machado examina o que causaria essa "confusão" nos filmes, provocando uma necessidade de explicação do que acontecia em cena: A câmera em geral não se movia; ela estava sempre fixa e a uma certa distância da cena, de modo a abraçá-la por inteiro, num recorte que hoje

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chamaríamos de “plano geral”. Seu eixo ótico era frontal, perpendicular ao cenário, correspondendo ao ponto de vista cativo de um espectador sentado mais ou menos no meio de uma sala de teatro, ponto de vista que Georges Sadoul identifica como o do cavalheiro da plateia, que vê a cena por inteiro, desde a abóbada até a rampa, e cuja localização ideal faz dirigirem-se as linhas de fuga a um ponto no fundo e no meio do cenário. As entradas e as saídas dos atores eram laterais, como no teatro. Também como no teatro, era o deslocamento do ator para dentro ou para fora do cenário que compunha o quadro e não os movimentos de câmera, por enquanto, pouco significativos. A noção de montagem ainda não havia sido assimilada: mudava-se de cena apenas quando a ação seguinte deveria se passar num outro espaço ou num outro tempo, estando isso devidamente explicado nos intertítulos ou comentado pelo conferencista no momento da projeção. (MACHADO, 1997)

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2 A LINGUAGEM DO CINEMA Neste capítulo vamos estudar os vários tipos de representações trazidas com o desenvolvimento técnico do cinema e observar de que forma esses aspectos ajudam a desenvolver as narrativas que o cinema conta. Começaremos, então, com um apanhado histórico sobre esse desenvolvimento que permitiu que o "teatro filmado" se transformasse aos poucos na forma de fazer cinema que conhecemos atualmente. Após isso teremos uma abordagem diferente para entender um pouco mais as especificidades técnicas que diferenciam esses planos12 um dos outros e qual a importância e a função de cada um deles para a narrativa. Sendo assim, nos concentraremos nos planos que serão relevantes para a análise que virá a seguir. Por fim, observaremos o modo como as luzes e cores são escolhidas e como elas ajudam a preencher o filme de sentido, transmitindo sentimentos e sensações diversas. Sabemos que outros aspectos como movimentos de câmera também têm sua parcela de influência na construção de sentido da narrativa, mas não focaremos nesses elementos neste trabalho. Atualmente, cada um desses fatores carrega consigo significações que são utilizadas e escolhidas de forma consciente pelo profissional de cinema, trabalhados especialmente pelos diretores gerais, de fotografia e de arte. Cores e luzes específicas podem evocar sentimentos específicos, como tranquilidade ou ira. Da mesma forma, os planos e ângulos podem nos dar a sensação de desequilíbrio ou superioridade. 2.1 Ângulos e Planos 2.1.1 A evolução de ângulos e planos Como vimos no capítulo anterior, os primeiros filmes encenados em estúdio eram filmados frontalmente, de maneira que abrangesse toda a cena. Já os filmes rodados em cenários reais, como as reconstituições e os filmes documentais dos irmãos Lumière, traziam um ponto de vista mais natural, que poderia vir de qualquer lugar. Por exemplo, num dos primeiros filmes dos Lumière, o da estação de trem, o ponto de vista não era frontal, abarcando toda a plataforma e observando um deslocamento lateral do trem. Nesse filme, os irmãos optaram por posicionar a câmera na plataforma, como se do ponto de vista de alguém esperando o trem e o observando surgir do horizonte, com profundidade. Segundo Machado                                                                                                                 12

Explicaremos um pouco mais adiante neste trabalho o que são planos, quais os mais comuns e com que finalidade eles são normalmente utilizados.

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(1997), "o filme documental (ou mais frequentemente a sua simulação), segue as convenções da cena teatral, ou seja, da frontalidade". Os filmes dos Lumière mostravam uma realidade cotidiana e realista, entretanto é irônico que o primeiro efeito especial tenha surgido por acidente em um desses filmes. Na exibição de "Destruição de um muro", o rolo de filme foi acidentalmente girado ao contrário, para trás, resultando na reconstituição do muro aos olhos do público, que vibrava com a novidade do fenômeno visual. (ALMEIDA, [2009?]) Até então, os filmes eram todos filmados com câmera fixa. Mais tarde, alguns experimentos possibilitaram os primeiros movimentos de câmera do cinema. Segundo Michaud, "quando se emancipa do plano de inscrição, a câmera torna-se o vetor de desorientação" (2014, p. 163). Por exemplo, em "Panorama Eiffel" a câmera foi colocada fixa em um elevador panorâmico da Torre Eiffel, em Paris. Isso possibilitou que o ponto de vista fosse elevado, expandido de forma nunca vista antes. Em "Panorama de um Balão" (Figura 11), a câmera é colocada em um balão de ar e invertida a 90°, filmando o chão enquanto o balão sobe e a visão se abre para o que seria provavelmente o primeiro plano plongée13 do cinema. Para Michaud, "já não é o elemento móvel que desfila na superfície da tela, e sim o próprio quadro que se torna superfície de desfile" (2014, p. 163).

Figura 11: “Panorama pris d’un ballon”, Irmão Lumière.14

                                                                                                                13

Plongée: “mergulho”, em francês. Esse termo denomina o plano em que a câmera é posicionada de forma a capturar a cena de cima para baixo. 14 Fonte: . Acesso em 06 abr. 2016.

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O documentário "The Cutting Edge: the magic of movie editing" 15 , dirigido por Wendy Apple, trata sobre como a edição começou a ser desenvolvida e se tornar parte fundamental na arte de fazer filmes. Segundo o documentário, os primeiros cineastas apenas "fotografavam" o que viam e o que os interessava, pois não haviam cortes nem edições. Os irmãos Lumière eram, inclusive, bastante pessimistas quanto ao futuro do cinema. Eles entendiam como um interesse momentâneo das pessoas de verem essas imagens se movimentando, mas não entendiam por que alguém pagaria para assistir algo que você poderia ver de graça nas ruas e de verdade. O americano Edwin S. Porter foi um dos pioneiros a se dar conta de que ao cortar partes diferente do filme e juntá-las seria possível contar uma história. A partir da segunda década do século XX, foi-se percebendo a necessidade de novos planos, principalmente mais fechados16, que ajudassem o público a reconhecer os atores e entender suas expressões e sentimentos. "As tendências da filmagem moderna estão se afastando dos efeitos teatrais e adotando iluminação e tratamento de câmera mais naturais, envolvendo os espectadores mais profundamente na história mostrada nas telas" (MASCELLI, 2010, p. 11). O cineasta americano D. W. Griffith foi o primeiro a entender a importância psicológica do uso de planos diferentes na narrativa. Ele foi o primeiro a usar closes17 (Figura 12) com o intuito de atrair o público para dentro das emoções de seus personagens. A revolução de Griffith era tão revolucionária que os produtores, quando viram aquilo pensaram "Não podemos exibir o filme desse jeito. Não se pode cortar essa imagem enorme e feia de alguém. Primeiramente, nós estamos pagando por esses atores, então nós queremos ver o corpo inteiro deles. Em segundo lugar, o público não vai saber como responder a isso. Ele vão ficar todos confusos!". Bem, a realidade é que o público não ficou nem um pouco confuso. (THE CUTTING, 2004. Tradução nossa.18)

                                                                                                                15

Um corte no tempo: a magia da edição de filmes. Planos abertos demonstram a cena em sua totalidade, ou a maior parte dela. Já os planos fechados mostram recortes mais detalhados da cena, como o rosto de um ator, um objeto ou um movimento. 17 Plano fechado no rosto de um ator. 18 Original: "Griffith revolution was so revolutionary that producers, when they saw this, they thought 'You can't put this picture out like this. You can't cut this big ugly shot of somebody. First of all, we're paying for this actors, we wanna see their whole body. You don't wanna just see their face. Second of all, the audience won't know what to respond to. They're gonna be all confused!'. Well, the reality is that the audience were not confused at all." 16

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Figura 12: Close do filme "The Birth of Nation", de D. W. Griffith. 1915.19

O desenvolvimento técnico foi se dando de forma bastante acelerada a partir de então, possibilitando cada vez mais novos planos de câmera e técnicas de montagem e edição. Depois de um tempo não havia apenas closes, mas também flashbacks20, ações paralelas21 e outras formas que foram surgindo para atrair e manter a atenção do público. De acordo com o documentário The Cutting Edge (2004), "uma vez que você se dá conta de que o filme é a soma da edição, então a edição é a coisa para a qual você está sempre olhando."22 Mais do que um recurso técnico, que propõe uma seleção sintática dos elementos constituintes da narrativa fílmica, a montagem busca estabelecer uma relação entre as partes do filme; sugere uma relação semântica, para fins de avaliação e retenção da mensagem por parte do público receptor. Atua com eficácia na construção do sentido. A absorção do receptor se relaciona com a forma como a história é contada. (COVALESKI, 2015, p. 81)

Outro cineasta que se destaca na arte da montagem de filmes é o também russo Lev Kuleshov, que trabalhou na primeira metade do século XX. Ele fez um experimento no qual colocava a imagem de um ator seguida de três cenas completamente diferentes. A partir disso, o público percebia a reação do ator de formas completamente diferentes de acordo com a imagem à qual ele estava ligado, ora parecendo triste, com fome ou carinhoso. O interessante                                                                                                                 19

Fonte: . Acesso em 06 abr. 2016. "Um flashback pode representar um fato ocorrido antes de a história começar. Ou, então, retroceder no tempo para retratar parte de uma história mostrada anteriormente." (MASCELLI, 2010, p. 83) 21 A montagem paralela mostra paralelamente dois ou mais fatos, de modo alternado. Normalmente utilizado para mostrar fatos ocorridos ao mesmo tempo, porém em lugares diferentes, ou até mesmo fatos similares separados no tempo. (MASCELLI, 2010) 22 Tradução nossa. Original: "Once you start to realise that film is the sum of editing, then editing is the thing you're always looking at." 20

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é que o público não percebeu que a imagem do ator era a mesma usada nas três vezes. O Experimento Kuleshov (Figura 13) mostra o poder da sobreposição de imagens e demonstra como uma tomada vaza significado para a outra. A soma de duas tomadas diversas cria um terceiro significado. (THE CUTTING, 2004.)

Figura 13: Reencenação do Experimento Kuleshov23

Outro russo que teve um papel muito importante na história do cinema foi Sergei Eisenstein, que contribuiu para as teorias cinematográficas com estudos sobre o ritmo fílmico e com a sua teoria da montagem. No processo fílmico de realização de uma obra cinematográfica, a montagem ocupa um papel importante e, em dadas épocas, chegou a ser conceitualmente fator-chave da construção do discurso e da narrativa de um filme. [...] A partir das teorias propostas por Eisentein, ainda na década de 1920, a montagem tem a capacidade de gerar um novo conceito quando dois "pedaços" de filme de qualquer tipo são colocados juntos, e por conta dessa justaposição criam uma nova qualidade; possibilitam uma nova leitura e uma

                                                                                                                23

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nova compreensão. [...] Sempre foi evidente na obra do cineasta que a montagem era uma mola propulsora do ritmo e da agilidade narrativa de seus filmes. (COVALESKI, 2015, p. 79)

Apesar de, neste momento, estarmos focados na evolução dos planos, não podemos deixar de citar alguns aspectos que trouxeram grandes mudanças para o cinema. Como, por exemplo, o som, que só chegaria no cinema a partir de 1927. As cores demorariam mais ainda para chegar - o primeiro filme todo em cores só foi rodado em 1935, a obra "Vaidade e Beleza", de Rouben Mamoulian (lembrando, aqui, que alguns filmes de Méliès eram exibidos em cores, mas não por uma captura natural da cor, mas da colorização manual posterior à gravação). (ALMEIDA, [2009?]) 2.1.2 Utilizando os planos e ângulos O plano é determinado pelo ângulo da câmera e representa o ponto de vista do público naquela tomada. Cada mudança de plano deve ser feita de modo consciente e por um motivo, sempre escolhendo o melhor ponto de vista para filmar essa parte da ação e observando que porção da área deve ser incluída (MASCELLI, 2010). Um filme é composto de muitos planos. Em cada plano é necessário colocar a câmera na melhor posição para ver os atores, o cenário e a ação naquele momento particular da narrativa. A tarefa de posicionar a câmera - o ângulo da câmera - é influenciada por diversos fatores. [...] Um ângulo de câmera cuidadosamente escolhido pode aumentar a visualização dramática da história. Um ângulo escolhido de modo negligente pode distrair ou confundir o público ao representar a cena de uma maneira que dificulte a compreensão de seu significado. Portanto, a seleção de ângulos de câmera é um fator de extrema importância na construção de um filme que seja interessante do início ao fim. (MASCELLI, 2010, p. 17, grifos do autor.)

Sendo assim, o ângulo da câmera pode trazer o público para mais perto da ação ou afastá-lo, pode fazê-lo olhar para cima ou para baixo, pode fazer o espectador se sentir caminhando ao lado de um personagem ou ver o detalhe de um movimento, entre outras coisas. Antes de tudo, é preciso deixar claro alguns termos que serão usados a partir daqui e que podem gerar certa confusão se não esclarecidos: ● Cena: "define o lugar ou o cenário em que ocorre a ação. [...] Uma cena pode consistir de um plano ou de uma série de planos representando um acontecimento contínuo." (MASCELLI, 2010, p. 19, grifos do autor.)

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● Plano: "define uma visão contínua filmada por uma câmera sem interrupção. Cada plano é uma tomada." (MASCELLI, 2010, p. 19, grifos do autor.) ● Sequência: "é uma série de cenas, ou planos, completa em si mesma. Pode ocorrer num único cenário ou em vários." (MASCELLI, 2010, p. 19, grifos do autor.) De acordo com Mascelli, "o ângulo da câmera é definido como a área e o ponto de vista gravados na lente" (2010, p. 31, grifos do autor). Considerando o ponto de vista da câmera, podemos separá-los em câmera objetiva e câmera subjetiva. A câmera objetiva é como se fosse o ponto de vista do público. É um angulo impessoal que não representa a visão de nenhum dos personagens na cena. No ângulo objetivo, "o público vê o fato através dos olhos de um observador oculto, como se estivesse espionando" (MASCELLI, 2010, p. 20). Sendo assim, os personagens não demonstram estar cientes da presença da câmera e jamais olham direto para ela, como podemos observar na Figura 1424.

Figura 14: "Maria Antonieta", 2006.25

Já na câmera subjetiva, o ponto de vista passa a ser pessoal. No ângulo subjetivo, o espectador vê através dos olhos de um dos personagens, trocando de lugar com ele. Dessa forma, "o público participa da ação na tela como se fosse uma experiência própria. O espectador é colocado dentro do filme" (MASCELLI, 2010, p. 20, grifo do autor). A câmera                                                                                                                 24

A partir desse momento se fará necessário a utilização de imagens que ainda não fazem parte do nosso objeto de análise, no entanto esses exemplos são necessários para nos ajudar a formar uma melhor compreensão dos conceitos aqui apresentados. 25 Fonte: . Acesso em 10 abr. 2016.

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funciona como o olho do público que vê o que o personagem vê. Nesse tipo de plano, também é possível que o personagem em cena olhe diretamente para a câmera, como se estivesse olhando diretamente para os olhos do público. Em um filme de ficção, é possível utilizar a câmera subjetiva para estabelecer uma relação pessoal com o público quando o personagem ou narrador "olha para a câmera e apresenta o fato, os atores ou o cenário; ou, ainda, explica ou interpreta o que está acontecendo" (MASCELLI, 2010, p. 26), como podemos observar na Figura 15. No entanto é preciso ter cuidado ao colocar atores olhando diretamente para a câmera em filmes de ficção26, pois "uma mudança repentina de um plano objetivo para um subjetivo em que um ator olha diretamente para a câmera é surpreendente porque o público não está preparado para esse tratamento" (MASCELLI, 2010, p. 22). Por conseguinte, é muito mais comum vermos câmeras subjetivas apontando para objetos inanimados ou grandes paisagens e cenários, sem nenhum ator olhando diretamente para a lente.

Figura 15: "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", 2001.27

2.1.2.1 Planos A área fotografada, ou o tipo de plano, e o ponto de vista, ou o ângulo da câmera em relação ao objeto, podem ser utilizados em várias combinações para produzir um filme com variedade visual, interesse dramático e continuidade cinematográfica. (MASCELLI, 2010, p. 59, grifos do autor.)

                                                                                                                26

Falamos em filmes de ficção pois em outros tipos de filmes, como publicitários ou documentais é muito comum que o personagem em cena fale diretamente com o público, seja narrando ou explicando algum acontecimento, apresentando um produto, etc. 27 Fonte: . Acesso em 10 abr. 2016.

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Em relação à área fotografada, algumas definições podem nos ajudar a categorizar os planos, mesmo essas definições não sendo absolutas e podendo variar. Mascelli afirma que, "termos relativos têm significados diferentes para pessoas diferentes" (2010, p. 32), pois, segundo ele, o mesmo plano poderia ser considerado de formas diferentes por fotógrafos diferentes. No entanto, vamos estabelecer aqui algumas definições para nos ajudar a descrever as singularidades de cada uma e nos auxiliar na análise futura deste trabalho. Portanto, as definições de planos que usaremos a seguir são utilizadas por Mascelli no livro "Os Cinco C's da Cinematografia". ● Grande Plano Geral Este plano representa uma área muito grande vista de longe, de modo a situar o público sobre a imensidão do cenário ou do acontecimento. São normalmente filmados com uma câmera fixa e do alto, mas também podem apresentar movimentos panorâmicos se a proposta for revelar mais sobre a cena enquanto prossegue. Grandes planos gerais "preparam a cena para o que vem a seguir, colocando os espectadores no espírito adequado e fornecendo a eles uma visão geral antes de apresentar os personagens e determinar a trama" (MASCELLI, 2010, p. 34) e, por conta disso são planos amplamente usados no início de um filme ou de uma sequência, para situar o espectador. Exemplo a seguir, na Figura 16.

Figura 16: "O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel", 2001.28

                                                                                                                28

Fonte: . Acesso em 10 abr. 2016.

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● Plano Geral Este plano compreende toda a área onde a ação se desenvolve e mostra, de uma forma não tão ampla quanto no Grande Plano Geral, o lugar, pessoas e objetos em cena. Sendo um plano geral em menor escala do que o anterior, aqui pode ser representado uma sala, uma rua, uma praça ou qualquer outro lugar onde ocorra a ação, para situar o público no ambiente (Figura 17). Utilizando esse plano, "os espectadores saberão quem são as pessoas envolvidas e onde estão situadas conforme se movimentam e são vistas em planos mais fechados no decorrer da cena" (MASCELLI, 2010, p. 34). Por conta disso também é importante voltar a utilizar o plano geral entre planos mais fechados se os personagens se moverem muito em cena e for preciso estabelecer novamente a sua localização do cenário.

Figura 17: "Histórias Cruzadas", 2011.29

● Plano Médio É, como o nome sugere, um plano intermediário, entre os gerais e os closes. Nesse plano, "os atores são filmados acima dos joelhos ou logo abaixo da cintura. Embora muitos atores possam ser agrupados num plano médio, a câmera fechará o suficiente para filmar gestos, expressões faciais e movimentos com clareza" (MASCELLI, 2010, p. 35). Por representar uma distância média, esse plano é muito utilizado depois que a cena é apresentada no plano geral, podendo apresentar ações ou diálogos entre personagens com facilidade. O                                                                                                                 29

Fonte: . Acesso 10 abr. 2016.

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plano médio mais utilizado é o two-shot, onde dois atores são posicionados frente a frente e dialogam entre si. Quando o plano abrange três atores, é chamado de three-shot (Figura 18).

Figura 18: “Star Wars IV - Uma Nova Esperança”, 1977.30

● Closes Segundo Mascelli, "os closes são um dos recursos narrativos mais poderosos disponíveis ao diretor" (2010, p. 199) e retratar uma ação de forma tão próxima assim é um recurso exclusivo do cinema. Esses planos tão fechados têm o poder de transportar o público para a cena, focando apenas no que é importante para aquele momento da narrativa. Um close de alguém pode ser feito de vários modos, desde um plano abaixo dos ombros a acima da cabeça, como um superclose, feito focando na região logo abaixo da boca a parte logo acima dos olhos (Figura 19). Closes devidamente planejados, filmados de maneira eficaz e editados com cuidado são primordiais. São o ingrediente que acentua o sabor dramático do filme acabado. O envolvimento do público é mais bem-sucedido quando os espectadores são aproximados da cena, quando eles veem atores, objetos e ações em pequena escala em closes que ocupam a tela inteira. [...] Os closes proporcionam força dramática. (MASCELLI, 2010, p. 225)

                                                                                                                30

Fonte: . Acesso 10 abr. 2016.

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Figura 19: "O Clube da Luta", 1999.31

2.1.2.1 Ângulos Todo objeto ou pessoa a ser filmada tem três dimensões e o posicionamento da câmera quanto a este objeto pode criar volume e profundidade para a cena. Aqui trataremos de que forma a altura em que a câmera está posicionada influencia na interpretação da história pelo público, pois "um ângulo alto, baixo, oblíquo ou objetivo coloca o espectador numa posição diferente daquela que costuma apresentar uma perspectiva objetiva da altura dos olhos, e influencia enormemente sua reação emocional aos acontecimentos representados na tela" (MASCELLI, 2010, p. 70). Ao ajustar a altura da câmera em relação ao objeto, podem-se agregar à narrativa nuanças artísticas, dramáticas e psicológicas. Ao se optar por uma cena vista do mesmo nível, de cima ou de baixo, é possível influenciar o envolvimento do público e sua reação ao fato representado. (MASCELLI, 2010, p. 44)

● Ângulo Plano Neste ângulo, a câmera "filma da altura dos olhos de um observador de estatura mediana, ou da altura dos olhos do sujeito sendo filmado" (MASCELLI, 2010, p. 44, grifos do autor). É considerado uma altura mediana para planos médios e gerais, e em um close é importante ajustar a altura da câmera para a mesma altura dos olhos do ator que está sendo filmado, pois "grande parte do carisma de um ator num filme dramático, ou de alguém num documentário, é expressado pelos olhos" (MASCELLI, 2010, p. 45). Os ângulos planos, embora não carreguem a mesma intensidade quanto os que veremos a seguir, são ótimos para                                                                                                                 31

Fonte: . Acesso 10 abr. 2016.

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planos gerais ou closes, pois "proporcionam enquadramentos de referência. [...] Os espectadores veem o acontecimento como se fizessem parte da cena" (MASCELLI, 2010, p. 46), como exemplificado na Figura 20.

Figura 20: “Os Excêntricos Tenenbaums”, 2001.32

● Ângulo Plongée Este ângulo consiste na câmera posicionada em um ângulo alto e direcionada para baixo, de modo a visualizar o objeto filmado de cima, como podemos ver na figura 21. O plongée pode ser utilizado para atingir uma imagem mais artística, melhorar a visualização de uma ação ou influenciar o público, "fazendo-o olhar para baixo em direção a um ator para se sentir superior a ele [...] Essa inclinação é excelente quando um ator deve ser diminuído pelo cenário ou por suas ações" (MASCELLI, 2010, p. 48)

Figura 21: "Moonrise Kingdom", 2012.33

                                                                                                                32

Fonte: . Acesso 11 abr. 2016

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● Ângulo Contreplongée Ao contrário do ângulo plongée, neste aqui a câmera é posicionada em um ângulo baixo e filma o objeto de baixo para cima, como na Figura 22. Podem ser utilizados de forma técnica, para eliminar objetos ou cenário em segundo plano, distorcer linhas, etc. No entanto, também são utilizados para expressar deslumbramento, entusiasmo, assombro ou "quando um ator precisa olhar para cima em direção a outro ator que domina a história nesse momento [...] porque o público se identificará com o ator subordinado, envolvendo-se emocionalmente com sua causa" (MASCELLI, 2010, p. 51).

Figura 22: "Kill Bill: Volume 1", 2003.34

● Dupla Inclinação Esse ângulo exclui a monotonia da câmera plana e dá uma aparência tridimensional ao objeto, pois ao mesmo tempo em que a câmera muda o ângulo para captar a frente e a lateral do objeto, ela também se inclina para cima ou para baixo, de modo a filmar também a base ou o topo (Figura 23). Assim sendo, "as formas tridimensionais e as linhas de composição convergentes apresentam o objeto - seja uma pessoa, um edifício ou uma máquina - de maneira sólida e realista" (MASCELLI, 2010, p. 53).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          33

Fonte: . Acesso em 11 abr. 2016. Fonte: . Acesso em 11 abr. 2016.

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Figura 23: "Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância"), 2014.35 ● Ângulo oblíquo Também conhecido como ângulo holandês, "é um ângulo de câmera inclinado drasticamente, em que o eixo vertical da câmera está inclinado em relação ao eixo vertical do objeto" (MASCELLI, 2010, P. 56). Essas imagens na diagonal demonstram desequilíbrio e devem ser utilizadas para cenas violentas, dramáticas ou instáveis (Figura 24). Segundo Mascelli, o ângulo dessa inclinação também é importante, por pode representar algo ativo e vigoroso, quando inclinado para a direita, ou algo estático e fraco, quando inclinado para a esquerda, pois "um horizonte em diagonal que vai da parte inferior esquerda à parte superior direita sugere ascensão; enquanto um que vai da parte superior esquerda à parte inferior direita sugere declínio" (2010, p. 58).

Figura 24: "Os Miseráveis", 2012.36

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Fonte: . Acesso em 11 abr. 2016.

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2.2 Luz e cor 2.2.1 O papel da luz no cinema Assim como outros aspectos do cinema, a iluminação também evoluiu com o tempo e foi ganhando significado dramáticos nos filmes. Segundo Martins, "a evolução da fotografia fez com que essa deixasse de desempenhar um papel puramente físico, em que se limitava a fornecer luz suficiente sobre os atores para permitir a filmagem, passando a integrar a estética e a narrativa cinematográfica através de meios artísticos e dramáticos" (2004, p. 14). O valor plástico de uma imagem cinematográfica depende da composição e da luz para constituir seu poder expressivo. Uma imagem é composta pelo cenário, pela atuação dos atores, pelos ângulos e movimentos de câmara. Para avivar a composição da imagem, acrescenta-se a luz, produzindo-lhe uma atmosfera peculiar e dando-lhe todo um significado. (MARTINS, 2004, p. 22.)

No início do cinema, os primeiros estúdios cinematográficos utilizavam única e exclusivamente a luz natural, que era no máximo controlada por cortinas ou janelas que contiam a passagem da luz e rebatedores que redirecionavam os raios de luz para os lugares corretos. Com o começo do uso de iluminação artificial, a luz era usada apenas para garantir o grau certo de luminosidade da cena e não deveria chamar atenção para si própria, pois "quando os efeitos de iluminação sobressaíam na fotografia, isso era considerado um erro técnico" (MARTINS, 2004, p. 14). Pouco a pouco os fotógrafos perceberam que, acrescentando luz artificial à luz natural, podiam melhorar a qualidade das imagens. Eles também perceberam o incômodo em trabalhar com cenários envidraçados: os painéis de vidro foram pintados de preto de forma que a luz externa não criasse nenhum desequilíbrio, tornando possíveis os efeitos cuidadosamente calculados através de iluminação artificial. (MARTINS, 2004, p. 16.)

A adoção da luz artificial em detrimento da natural também foi de extrema importância para o mercado cinematográfico que estava crescendo e produzindo filmes em grande escala. A luz artificial possibilitava filmar mesmo em horários em que não havia mais luz solar ou em momentos em que a chuva e outros fatores naturais poderiam atrapalhar as filmagens, mas também possibilitava (MARTINS, 2004, p. 17) O fotógrafo necessitava de unidades de iluminação projetadas para satisfazerem as demandas especificamente cinematográficas. Respondendo ao desafio, algumas companhias projetaram equipamentos de iluminação especialmente para suprir as necessidades da nova indústria do cinema. (MARTINS, 2004, p. 18.)

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          36

Fonte: . Acesso 11 abr. 2016.

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A luz foi ganhando efeito mais artístico e dramático a partir de 1914, quando começou a haver concorrência entre os estúdios de cinema , cada qual tentando apresentar efeitos mais interessantes em seus filmes. Foi então nessa época que foi criado o cargo "Diretor de Fotografia", pois a partir do desenvolvimento dos planos e da iluminação, esse profissional também passa a ser reconhecido como artista, e não apenas como um técnico operador de câmera. Os atores deveriam ser bem fotografados sob todas as condições sem que as suas sombras aparecessem. Com a entrada do cinema falado, o microfone era um elemento presente nas filmagens que dava trabalho para os fotógrafos. Os microfones precisavam ficar perto dos atores para que pudessem captar a sua voz, sem que projetassem sombras sobre eles ou o cenário. Segundo Martins, "toda uma nova técnica de iluminação teve que ser inventada para compensar o avanço dos microfones nos filmes sonoros. Foram criadas engenhosas proteções de luz e máscaras para eliminar as sombras" (2004, p. 18). No entanto, a novidade do cinema sonoro acabou ofuscando um pouco o brilho próprio que a iluminação vinha adquirindo. A prioridade sonora substituiu a demanda relacionada à qualidade fotográfica. O status adquirido pelo engenheiro de som fez com que a arte cinematográfica ficasse reduzida a uma mera função mecânica. Uma das principais exigências do meio fotográfico foi, então, a obtenção de equipamentos de iluminação mais eficientes e compactos o bastante para serem colocados próximos aos microfones. Isso permitiria ao diretor de fotografia trabalhar com um mínimo de interferência do engenheiro de som. (MARTINS, 2004, p. 20.)

A partir dos anos 1920, com a aquisição de câmeras mais modernas pelos estúdios, foi possível para o diretor de fotografia se dedicar a aprimorar alguns traços da sua arte, assim surgindo o estilo "foco suave", com menos contraste, contornos mais suaves e áreas de luz e sombra mais detalhadas. Segundo Martins (2004), com as luzes incandescentes que direcionavam a luz para onde quer que fossem apontadas, dava flexibilidade ao fototógrafo, permitindo que ele quase pudesse "pintar com a luz" (p.21). O jogo de luz e sombra é tão importante que durante muitos anos os filmes em preto e branco foram considerados superiores artisticamente aos coloridos, pois a grande gama de tons cinzentos criava uma atmosfera muito bela, que se distinguia da realidade, não a tornando enfadonha como a vida real. Mesmo com o avanço geral das cores no cinema, a luz não perdeu mais o seu destaque, e então foi-se desenvolvendo e descobrindo uma carga dramática que a iluminação podia trazer para a cena. A iluminação fraca é geralmente usada para a tragédia ou o drama, e a brilhante tem freqüentemente a função de transmitir impressão de alegria,

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calor, com um tom emocional otimista. Quando o trabalho de iluminação é levado ao extremo e a cena excessivamente iluminada acarreta um efeito irreal, fantasmagórico, mais adequado a sonhos, visões ou recordações de pesadelos. [...] A iluminação determina o tom emocional e dá a atores, cenários, acessórios e trajes um caráter adequado às cenas. (MARTINS, 2004, p. 35.)

2.2.2 Colorindo as telas do cinema A cor ganhou seu espaço no cinema aos poucos. Como Mèliés, outros cineastas como o inglês Robert Paul se aventuraram na técnica de pintar, manualmente, um fotorama por vez. Na primeira década do século XX também surgiu outra técnica de coloração, chamada "viragem colorida". Essa técnica consistia em imergir em tinta a película de uma cena inteira, fazendo com que cada cena tivesse uma cor diferente, como amarelo para cenas à luz do sol, azul para cenas noturnas e até mesmo vermelho para cenas dramáticas com fogo. De acordo com Martins, "Enquanto tingir era mais estético e prático do que colorir manualmente, suas possibilidades expressivas estavam obviamente limitadas pelo fato de que tudo numa cena adquiria a mesma cor" (2004, p. 23.) Entre 1917 e 1918 foi desenvolvido um sistema de cor que seria amplamente utilizado durante muitos anos, o Technicolor, que consistia em um sistema de adição e subtração de duas cores. No entanto, esse sistema de cores exigia uma qualidade de iluminação muito maior e demandava certo investimento por parte dos estúdios, que não estavam tão animados com a ideia de gastar dinheiro com essa nova empreitada. Os estúdios acreditavam que a cor era algo opcional e o novo sistema necessitaria de enorme e arriscado empreendimento financeiro sendo difícil encontrar uma empresa que aceitasse o desafio de projetar e produzir luzes capazes de fornecer a qualidade que o Technicolor requeria, uma vez que os novos equipamentos de iluminação não renderiam, a priori, os lucros almejados nessas parcerias. Notavelmente, a empresa americana MoleRichandson decidiu assumir os riscos do empreendimento e fabricou uma série completa de lâmpadas que se adaptavam às exigências do processo Technicolor. (MARTINS, 2004, p. 25.)

A partir de então, o Technicolor foi sendo cada vez mais aperfeiçoado e prevaleceu no mercado cinematográfico até a década de 1950, quando surgiram outros sistemas de cor, como o Agfacolor, desenvolvido na Alemanha e utilizado principalmente pelos russos, e o Eastmancolor, que desafiava o Technicolor no ocidente. Ambas as novas tecnologias utilizavam um sistema de três camadas de cores impressas em uma mesma película. Daí em diante, a maioria dos filmes passaram a ser rodados em Eastmancolor. Segundo Martins,

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essas películas de cores continuaram a ser aperfeiçoadas e evoluíram para que se tornassem adequadas à qualquer intensidade de luz, melhorando a qualidade dos filmes coloridos que se mantêm até hoje como os mais populares, ficando os filmes em preto-e-branco sendo utilizados apenas para finalidades artísticas ou estéticas. (MARTINS, 2004, p. 27-30) Atualmente as cores são de grande importância para a construção dramática de um filme, pois, segundo Bellantoni, "cores influenciam nossas escolhas, opiniões e nosso estado emocional. Nossos sentimentos de euforia ou raiva, calma ou agitação podem ser intensificados ou suavizados pelas cores em nosso ambiente. Isso é uma informação poderosa nas mãos de um cineasta" (2005, p. xxiii)37. Em seu livro "If it’s purple, someone’s gonna die: the power of color in visual storytelling for film"38, Patti Bellantoni atribui características às cores e mostra como cada uma delas, quando utilizadas em um filme, podem provocar reações emocionais no público. Cores nos impactam de maneiras que nós não conseguimos visualizar, mas que afetam como nos sentimos e como nos comportamos. Quando entramos em um quarto vermelho, por exemplo, é como se a cor vermelha e o corpo humano se tornassem dois diapasões39 ressonantes. Como uma nota, todo nosso sistema começa a "vibrar" vermelho - fisicamente, psicologicamente e emocionalmente. Cada cor nos afeta de modo único. Até mesmo a menor variação de uma cor tem uma profunda influência em nosso comportamento. Em mãos sábias, a cor pode se tornar uma ferramenta poderosa para cineastas, para preencher uma história de camadas de forma subliminar. (BELLANTONI, 2005, p. xxviii)40

Citaremos como exemplo de cores assumindo características e influenciando o público a Bruxa Má do Oeste, do filme O Mágico de Oz. Como podemos ver na figura 25, a bruxa tem um tom de pele verde, asqueroso. De acordo com Bellantoni (2005, p. 160), “quando associado ao corpo humano, o indício de verde é associado a doença ou maldade”.41 Sendo assim, logo que somos apresentados a essa personagem já sentimos uma certa repulsa e sabemos que há algo de mal associado a ela.                                                                                                                 37

Tradução nossa. Original: "Color influences our choices, our opinions, and our emotional state. Our feelings of euphoria or rage, calm or agitation can be intensified or subdued by the colors in our environment. This is powerful information in the hands of a filmmaker.” 38 Tradução: "Se está roxo, alguém vai morrer: o poder da cor na narrativa visual do cinema". 39 Diapasões são instrumentos metálicos utilizados para auxiliar na afinação de instrumentos musicais e vozes que funcionam através de vibração sonora. 40 Tradução nossa. Original: “color impacts us in ways we cannot see, but it affects how we feel and how we behave. When we walk into a red room, for example, it is as if the color red and the human body become two resonating tuning forks. Like a note, our whole system begins to “hum” red— physically, psychologically, and emotionally. Each color affects us uniquely. Even the slightest variation of a single color can have a profound influence on our behavior. In wise hands, color can become a powerful tool for filmmakers to subliminally layer a story.” 41 Tradução nossa. Original: “When associated with the human body, green’s clue is often illness or evil.”

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Figura 25: Bruxa Má do Oeste, em “O Mágico de Oz”. 1939.42

                                                                                                                42

Fonte: . Acesso: 24 mai. 2016.  

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3 O MENINO QUE SOBREVIVEU 3.1 A magia da infância J. K. Rowling é uma das mulheres mais poderosas do mundo por sua riqueza e influência sobre toda uma geração, mas não foi sempre assim. Antes de escrever e publicar Harry Potter, a saga que a tornaria uma escritora de sucesso e lhe daria o status de celebridade, a autora passou por muitas situações difíceis, incluindo um relacionamento conturbado e a necessidade de criar uma filha dependendo de benefícios sociais do governo. No entanto, nada disso apagou o brilho de sua infância e a centelha de magia que nasceu ali. Joanne nasceu em 1965 na cidade de Yate, na Inglaterra, filha de Anne e Pete Rowling. Quando criança, era uma leitora voraz, mergulhando nas histórias de fantasia. Obras como “The Little White Horse”, O Cavalinho Branco, de Elizabeth Goudge, e “As Crônicas de Nárnia”, de C. S. Lewis, foram algumas de suas grandes influências na infância. Tanto que desde os seus 6 anos de idade ela escrevia continuamente. Sua primeira história, escrita aos 6 anos, se chamou “Rabbit” e nessa história o protagonista é um coelho que fica doente em casa com sarampo e recebe diversas visitas de amigos bem inusitados, como Miss Bee, ou Senhorita Abelha (SMITH, 2003). Assim, Joanne cresceu com o desejo de tornar-se escritora e conta em seu site oficial que "desde que soube o que eram escritores, eu quis ser uma. Tenho o temperamento perfeito para ser escritora; sou capaz de ficar muito feliz sozinha em um quarto, inventando histórias". A infância de Joanne foi muito marcante para ela, que diz se lembrar nitidamente como se sentia e pensava aos 11 anos e em todas as idades seguintes, até os 20 anos. Essa memória vívida talvez a tenha ajudado a construir a evolução de personagens dos 11 aos 17 anos de forma que gerou tanta identificação com o público. E a fantasia desde cedo já fazia parte do seu imaginário, tanto a partir das histórias que lia, das brincadeiras que criava e dos lugares onde morou, como as redondezas da Floresta de Dean, um lugar recheado de histórias mágicas, contos e lendas. Segundo Smith, no livro "J. K. Rowling: uma biografia do gênio por trás de Harry Potter", "Joanne inventou um jogo em que as meninas se vestiam de bruxas e os meninos de magos. [...] Sentavam-se debaixo de uma árvore e Joanne elaborava umas palavras mágicas e fingia que estava preparando poções mágicas com ingredientes esquisitos." (SMITH, 2003, p. 14) Com o desejo de ser escritora, Joanne queria cursar inglês na universidade, mas acabou estudando francês por influência de seus pais "que acharam que isso poderia lhe ser mais útil para encontrar um emprego do que um diploma em inglês" (SMITH, 2003, p. 52).

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Graduou-se em 1987 pela Universidade de Exeter, na costa sul da Inglaterra, e trabalhou como secretária da Anistia Internacional em Londres, um grupo de defesa dos direitos humanos.

3.2 Os primeiros passos dessa história Foi em junho de 1990 que a história de Harry Potter começou a nascer. Depois de um final de semana em Manchester em busca de um apartamento para viver junto com seu então namorado, Joanne voltou sozinha para Londres em uma viagem de trem. (SMITH, 2003) Joanne Rowling sempre fora muito sonhadora e, à medida que olhava para fora, pela janela do trem, e via algumas vacas malhadas de olhar igualmente perdido, ela imaginava um trem transportando um menino para um internato de magos: "A idéia de Harry surgiu de repente em minha mente. Não sou capaz de dizer o que desencadeou isso. Mas vi muito claramente a idéia de Harry e da escola de magos. Nesse momento eu tive a idéia básica de um menino que não sabia quem era, que não sabia que era um mago, até receber um convite para a escola de magos. Nenhuma outra idéia tinha me animado tanto quanto esta." (SMITH, 2003, p. 63)

Alguns meses depois, sua mãe, Anne, faleceu depois de anos lutando contra a esclerose múltipla. Ao mesmo tempo, seu relacionamento ia chegando ao fim, o que fez Joanne decidir sair de Manchester e ir trabalhar na cidade do Porto, em Portugal, como professora de inglês. Lá morou por alguns anos, casou-se e teve sua primeira filha, Jessica. No entanto, seu casamento era muito conturbado, o que acabou levando-a a se encontrar sem casa com um bebê de apenas 4 meses no colo. Em 1993 voltou para o Reino Unido e foi se instalar na capital da Escócia, Edimburgo, onde sua irmã Dianne morava com o marido. (SMITH, 2003) Morando em um apartamento provisório, minúsculo e sem aquecimento, com um bebê pequeno e sem conseguir encontrar um emprego, Joanne logo passou por um processo para receber benefícios do governo e auxílio moradia. Foi muito difícil encontrar um lugar melhor para morar, pois nenhuma agência imobiliária queria assinar contratos com pessoas que viviam de benefício, até que uma das corretoras se solidarizou com a situação de Joanne e aceitou conversar com ela e lhe mostrar alguns imóveis. Seria nesse novo apartamento que Joanne terminaria de escrever Harry Potter e a Pedra Filosofal. (SMITH, 2003) Em janeiro de 1995, Joanne foi aprovada para fazer o curso de Línguas Modernas na Marvay House. Esse curso de pós-graduação lhe possibilitaria atuar como professora de

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francês nas escolas escocesas, já que sua experiência como professora de inglês em Portugal não era o suficiente. Após passar no curso, Joanne deixou de viver do auxílio moradia e contou com uma subvenção do Departamento Escocês para Educação e Indústria, além do apoio financeiro de um amigo para pagar a creche de sua filha. Dessa forma ela pôde se dedicar a ser estudante em tempo integral e terminar de escrever o primeiro livro de Harry Potter, a partir das ideias e anotações que ela tinha acumulado ao longo dos anos. (SMITH, 2003) Uma das coisas que as pessoas em geral não percebem em relação à série de Harry Potter é que Joanne está escrevendo todos os livros ao mesmo tempo, sob a forma de notas. Ela planeja histórias para todos os seus personagens. Histórias que podem nem ser usadas nos livros, mas são arquivadas usando seu sistema infalível: caixas de sapatos. [...] Ela tem que guardar notas sobre tudo para fazer referências cruzadas em algum livro futuro. (SMITH, 2003, p. 107)

Era 1996 quando Joanne começou a enviar o manuscrito de Harry Potter e a Pedra Filosofal para alguns agentes literários. A agência de Christopher Lee não trabalhava com literatura infantil, pois o agente achava que esse gênero não dava dinheiro, mas sua gerente e assistente pessoal, Bryony Evans, salvou o manuscrito de Joanne da pilha que seria devolvida para os autores. Bryony pegou o livro e se interessou pela sinopse e pelo fato de que havia ilustrações originais da autora nele (Figura 26), levou para casa e leu em um dia. Após isso, convenceu o chefe a ler o livro também e quando ele estava convencido de que era um boa oportunidade, fecharam contrato com Joanne para representá-la. Foi quando começaram a enviar para editoras e receberam cerca de uma dúzia de rejeições. Até que uma editora pequena do Reino Unido, a Bloomsbury, ficou encantada com a possibilidade de publicar a história daquele menino bruxo. Os editores sugeriram que ela assinasse o livro com iniciais, pois um livro escrito por uma mulher poderia afastar o público masculino, então foi assim que ela se tornou J. K. Rowling, adotando o nome da avó, Kathleen, para compor a sua assinatura como autora. Rowling só havia escrito um livro até então, mas já sabia que escreveria sete e já tinha inúmeros rascunhos e ideias sobre todo o desenvolvimento da história. (SMITH, 2003) A ambição de Barry [Cunningham, coordenador da divisão de livros infantis da Bloomsbury] era publicar livros "que despertassem reações nas crianças", e foi o que ele encontrou em A Pedra Filosofal. "Foi emocionante. O que me impressionou logo de cara foi que o livro vinha com um mundo imaginário completo. Percebia-se que Jo conhecia seus personagens e sabia o que iria lhes acontecer." (SMITH, 2003, p. 95)

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Figura 26: Harry Potter em ilustração original de J. K. Rowling.43

A Bloomsbury pagou duas mil libras para o direito de publicação do livro no Reino Unido, quantia esta que, mesmo tirando os 15% referentes ao agente literário, era uma pequena fortuna para J.K. Rowling. Mas até então, Joanne ainda dependia de auxílios, pois havia terminado o curso de pós-graduação e ainda era difícil encontrar um emprego fixo. Com o livro prestes a ser publicado, conseguiu o primeiro lugar em uma bolsa de auxílio para autores pelo Conselho Escocês de Artes, no valor de oito mil libras. Com esse dinheiro, sua primeira decisão foi comprar um computador, afinal escrever um livro em máquinas de escrever era extremamente difícil e cansativo. No fechamento do contrato com a Bloomsbury, Barry Cunningham parabenizou-a pelo livro, mas disse que ela nunca ganharia dinheiro com literatura infantil. Mal sabiam eles o que estava por vir a partir daquele momento, pois "em três anos, Joanne se tornou uma das mulheres mais ricas e famosas do mundo." (SMITH, 2003, p. 124)

                                                                                                                43

Fonte: . Acesso em 21 mai. 2016.

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Figura 27: Primeira edição da Bloomsbury para Harry Potter and the Philosopher's Stone44

Lançado em 1997, Harry Potter e a Pedra Filosofal (Figura 27) ganhou 21 prêmios de literatura em 4 anos. Em uma crítica, o jornal Sunday Times afirmou que Harry Potter era uma literatura agradável que agradaria a todos, dos 10 aos 99 anos. Desde o início, seu agente Christopher Little afirma que sabia que não se tratava apenas de literatura infantil, mas sim de excelente literatura. Segundo Smith, o público-alvo principal eram crianças dos 9 aos 13 anos, "mas Joanne poderia conseguir uma realização especial como autora de livros infantis caso seu trabalho também pudesse atrair os adultos" (2003, p. 108). Os livros claramente tinham feito um crossover e entrado no mercado de adultos: adultos estavam vindo falar com Jo Rowling em sessões de autógrafos e admitindo que adoravam seu trabalho, enquanto outros tinham sido vistos lendo o livro escondido atrás do jornal nos trens. (Isso levou a Bloomsbury a criar edições para "adultos" dos livros, que apresentavam o mesmo conteúdo com capas fotográficas mais dramáticas em vez das capas ilustradas para crianças[Figura 28]) Um livro infantil capaz de fazer esse crossover era um maná - havia muito menos probabilidade de um livro para adultos descer e agradar uma faixa etária mais baixa de leitores que livros de criança de subir, mas o crossover ainda era algo de elusivo, algo como o Santo Graal do mundo editorial. Contudo, cada vez mais adultos estavam admitindo que tinham ficado encantados pela maneira brincalhona e por vezes bem debochada e sonsamente adulta com que Jo Rowling descrevia seu mundo. (ANELLI, 2011, p. 74.)

                                                                                                                44

Fonte: . Acesso 21 mai. 2016

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Figura 28: Capas das "edições adultas" de Harry Potter.45

J. K. Rowling certamente provocara uma mudança no mercado editorial, sobretudo o de literatura infantil. Certas pessoas diriam que suas obras saturaram tanto o mercado que não haveria mais espaço para nenhum outro autor. No entanto, havia algumas visões mais otimistas, que diziam que Harry Potter abrira caminhos para a expansão do mercado editorial infantil, influenciando crianças e jovens a se tornarem leitores ávidos, e foi essa visão que acabou se tornando realidade nos próximos anos. (SMITH, 2003.)

3.3 A adaptação para o cinema Antes mesmo do primeiro livro ter sido publicado, em 1997, um manuscrito já havia chegado à produtora pequena que prestava serviço para os estúdios Warner Bros., a Heyday Films. O livro foi deixado em uma prateleira de baixa prioridade junto com outras possíveis obras para serem adaptadas para o cinema, até que um dia, a secretária do produtor David Heyman entrou em seu escritório com o livro em mãos, dizendo que tinha lido e estava encantada com a história. Segundo ela, Heyman precisava ler aquele livro e dar uma chance para ele. O produtor levou o livro para casa com a ideia de ler alguns capítulos à noite antes de dormir, mas acabou se maravilhando com aquela história e com a escrita envolvente de                                                                                                                 45

Fonte: . Acesso em 21 mai. 2016.

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J.K. Rowling, então terminou de ler Harry Potter e a Pedra Filosofal na mesma noite, certo de que aquele livro tinha tudo para ser um bom filme e que ele precisava produzi-lo. Logo em seguida começou a corrida para a compra dos direitos autorais. Quando o acordo com a Warner Bros. foi fechado, após dois anos de negociação, Harry Potter já era bestseller no mundo inteiro. (SMITH, 2003) Não foi o maior negócio de todos os tempos na indústria cinematográfica - as crifras citam um milhão de dólares -, mas Joanne também não entregou Harry Potter por um punhado de moedas. Ela permaneceria parcialmente no controle sobre o filme, contribuiria para o roteiro e teria o direito de vetar certos tipos de merchandising, especialmente dentro da Inglaterra. Em troca, a Warner Brothers assumiria o controle da marca Harry Potter pelo mundo todo, que ela compreendeu que significaria roupas e jogos, bebidas e chocolate - e rios de dinheiro. (SMITH, 2003, p. 129)

O próximo passo da Warner Bros. era encontrar o diretor ideal para iniciar essa franquia. Depois da especulação de alguns nomes como Steven Spielberg, quem acabou ficando com o trabalho foi o diretor Chris Columbus, que já tinha importância em escrever roteiros de aventuras fantásticas e dirigir filmes com crianças, como Os Gremlins, Os Goonies e Esqueceram de Mim. Para a Warner, era importante encontrar um diretor que tivesse afinidade com crianças e magia, então Chris Columbus acabou sendo a escolha ideal. (SMITH, 2003) Depois da escolha do elenco, com os atores mirins Daniel Radcliffe (11 anos), Rupert Grint (11 anos) e Emma Watson (10 anos) nos papéis principais (Figura 29), era necessário entrar em um calendário de filmagens apertado, pois em cada livro, ou seja, em cada filme, Harry, Rony e Hermione estariam um ano mais velhos e para isso era necessário que a produção conseguisse acompanhar o crescimento das crianças. Isso significava uma aposta arriscada da Warner Bros.: começar a produzir o segundo filme sem saber se o primeiro faria sucesso. Para aumentar as chances de sucesso, a Warner investiu muito em publicidade. (SMITH, 2003) A estreia mundial de Harry Potter e a Pedra Filosofal foi o ponto alto de meses de uma intensa campanha de divulgação. No início de março, o pontapé foi dado com a exibição de um trailer com uma amostra da mágica que viria a seguir. A impressão mais duradoura que o trailer deixou foi que o jovem Daniel Radcliffe era igual à ilustração do original de Thomas Taylor para a capa do primeiro livro. (SMITH, 2003, p. 163)

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Figura 29: Emma Watson, Daniel Radcliffe e Rupert Grint em sua primeira sessão de fotos.46 J. K. Rowling permitiu que a equipe desse uma olhada nos seus manuscritos e algumas

anotações para os próximos livros, de forma que diretor, roteirista e produtores conseguissem ter uma visão mais ampla sobre o que aconteceria no futuro e pudessem guiar a história de forma correta. Segundo o diretor Chris Columbus, "todos os envolvidos estavam comprometidos com o material e empenhados em descobrir um modo de torná-lo não só cinematográfico, mas também mágico. Jo nos dava insights extraordinários." (SIBLEY, 2010, p. 12) “A série teria quatro diretores. [Chris] Columbus dirigiu os dois primeiros filmes; Alfonso Cuarón, o terceiro; Mike Newell, o quarto; David Yates, os quatro últimos. ‘Cada diretor fez um grande trabalho’, diz [Alan] Horn [presidente e executivo chefe de operações da Warner Bros.]. ‘Cada um deles trouxe algo diferente para a série. Do estilo visualmente deslumbrante de Alfonso, ao humor que Mike encontrou nas histórias, baseando-se especificamente em suas experiências como estudante britânico, à determinação e realismo de David, tão bem incorporados [ao mundo bruxo].’” (McCABE, 2011, p. 18-19)

Ainda entre o primeiro e o segundo filme, em entrevista, o diretor Chris Columbus mostrou como se sentia muito animado com a perspectiva de fazer essa série de filmes: Uma das coisas mais emocionantes sobre esses filmes seria ver o mesmo elenco ao longo dos sete filmes47 e vê-los crescer ao longo dos anos em

                                                                                                                46

Fonte: . Acesso em 21/04/2016. 47 Apesar da série de livros consistir de sete volumes, a produção dos filmes decidiu por fazer oito filmes, dividindo o último em dois: Relíquias da Morte - Parte I, e Relíquias da Morte - Parte II,

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Hogwarts. Isso pode ser um sonho, talvez não seja possível, mas seria, do ponto de vista cinematográfico, muito emocionante. Você poderia realmente ver Harry Potter crescer dos 11 aos 17 anos." (HARRY POTTER, 2001.)

O primeiro filme, Harry Potter e a Pedra Fisosofal, foi lançado em 2001. De lá até o lançamento do oitavo e último filme, Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte II, em julho de 2011, foi uma jornada de 10 anos no cinema. O sonho impossível de Chris Columbus e de todos os outros se tornara realidade: Harry Potter havia crescido nas telas do cinema. 3.4 O mundo mágico de Harry Potter Em Harry Potter e a Pedra Filosofal (ROWLING, 2000), conhecemos Harry Potter, um menino magricela, com uma cicatriz fininha em forma de raio na testa, que vive com seus horríveis tios e seu primo valentão. Até onde ele sabe, seus pais morreram em um acidente de carro quando ele tinha um ano, no mesmo acidente onde ele tinha ganhado a sua cicatriz. Por causa disso ele teve que ir morar com os tios, Válter e Petúnia Dursley, que nunca esconderam a sua infelicidade de ter que aguentar a presença do sobrinho em sua casa. Os Dursley têm um filho poucos meses mais velho que Harry, chamado Duda, que é a criança mais mimada e birrenta que poderia existir, no entanto é um anjo aos olhos dos pais. Duda ganha todos os presentes que deseja e tem todas as suas menores vontades atendidas pelos pais que, por outro lado, tratam Harry como qualquer coisa, menos um membro da família: o menino é obrigado a dormir no armário sob a escada da casa dos tios, só usa roupas folgadas e velhas de Duda (que é duas vezes maior que Harry, o que faz o menino parecer menor ainda do que já é) e é obrigado a fazer tarefas domésticas da casa, como se tivesse que retribuir pelo favor de seus tios o deixarem morar lá. Na escola, Harry sofre bullying do próprio primo e de seus amigos, que o escolheram como alvo de seus ataques por ele ser, aparentemente, mais fraco e indefeso. Durante toda a sua infância, Harry passou por alguns episódios no mínimo curiosos que ele não conseguia explicar para seus tios ou professores, o que só fazia ele receber bons castigos como resposta. Certa vez, fugindo de Duda e seus amigos, ele, de alguma forma, acabou em cima do telhado da escola, sem saber exatamente como tinha ido parar lá. Outra vez, Tia Petúnia estava reclamando de seus cabelos rebeldes, então pegou uma tesoura da cozinha e cortou o cabelo do menino tão curto e horroroso que Harry passou a noite                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Dessa forma, a maior parte dos detalhes conseguiria ser mantida e a história seria finalizada de forma que houvessem respostas para todas as perguntas.

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preocupado com como apareceria na escola no dia seguinte, mas quando acordou o seu cabelo estava exatamente do mesmo jeito que estava antes de ter sido atacado pela tesoura da tia. No verão em que completaria 11 anos, Harry começou a receber estranhas cartas endereçadas a ele e, mais curioso ainda, endereçadas diretamente ao seu quarto no armário sob a escada, na Rua dos Alfeneiros, número 4. Seus tios, no entanto, tomaram todas as providências imagináveis para que Harry nunca conseguisse colocar as mãos em uma daquelas cartas de papel grosso de pergaminho, endereçada com uma tinta verde esmeralda e selada com um brasão em cera. Um dia, quando tio Válter tinha levado a família inteira para um casebre em uma rocha sobre o mar, com a expectativa de que nenhuma daquelas cartas chegariam lá, um homem gigante invadiu o local com a responsabilidade de entregar a carta nas mãos de Harry. A carta dizia que ele tinha uma vaga para estudar na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. A partir de então, Harry descobre que é um bruxo e que seus pais também eram e que eles foram assassinados por um poderoso bruxo das trevas, que desapareceu na tentativa de matar Harry também. O menino descobre que é famoso no mundo bruxo, como "O Menino Que Sobreviveu", por ser a única pessoa conhecida a sobreviver à maldição da morte, saindo dela com apenas uma cicatriz na testa. O feitiço, de algum modo, ricocheteou e atingiu o próprio bruxo, Lord Voldemort, que sumiu depois desse dia. Grande parte da população bruxa acredita que ele morreu, enquanto outros afirmam que ele continua vivo, porém fraco demais para continuar. Já na escola, Harry conhece as pessoas que serão seus melhores amigos para o resto da vida: Rony Weasley e Hermione Granger. Nesse ano, muitas coisas estranhas acontecem em Hogwarts e no final descobre-se que Voldemort ainda está vivo, porém sem um corpo próprio, vivendo como um parasita em outro bruxo. Ele tenta roubar a Pedra Filosofal para voltar ao poder e tentar recuperar o seu próprio corpo através do Elixir da Vida, líquido mágico produzido pela pedra. Felizmente, Voldemort não consegue se apoderar da pedra, mas ele continua tentando voltar ao poder de outras formas durante os anos seguintes. Durante o segundo livro, Harry Potter e a Câmara Secreta (ROWLING, 2000), uma perigo paira sobre o castelo de Hogwarts. Ameaças são escritas nas paredes com sangue, acidentes estranhos acontecem e tudo parece envolver uma lenda antiga da escola, sobre um monstro que habita uma câmara secreta e só pode ser controlado pelo herdeiro de Salazar Slytherin, um dos fundadores da escola. Depois de muitas especulações, descobrimos que o real herdeiro de Slytherin é o próprio Voldemort, que agora tenta recuperar o poder através de um diário enfeitiçado, onde guardou todas as suas memórias do seu tempo de escola,

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cinquenta anos antes. Lord Voldemort, ou Tom Riddle, como descobrimos que é seu verdadeiro nome, é impedido mais uma vez por Harry e tem sua tentativa frustrada. No terceiro ano, no livro Harry Potter e o Prisineiro de Azkaban (ROWLING, 2000), Harry descobre que tem um padrinho, Sirius Black, que era melhor amigo de seu pai. Sirius fugiu da prisão, onde passou 12 anos preso injustamente acusado de crimes que não cometeu e, por isso, tem que viver em fuga para não ser preso novamente. Harry acaba criando um laço muito forte com Sirius, quase como em uma tentativa de estabelecer uma figura paterna que lhe falta. Ao final do quarto ano, em Harry Potter e o Cálice de Fogo (ROWLING, 2001), Lord Voldemort consegue retornar ao seu corpo e começar a ganhar forças novamente, reunindo seus antigos seguidores de volta. O lorde das trevas não desiste da tentativa de matar Harry, então os dois se enfrentam em um duelo perigoso, do qual Harry consegue escapar com vida mais uma vez, mas, infelizmente, um colega de Hogwarts, Cedrico Diggory, morre durante esse encontro. A partir daquele momento, nada seria o mesmo, pois Voldemort estava retornando à sua antiga força e a paz na sociedade bruxa estava outra vez sob ameaça. Em Harry Potter e a Ordem da Fênix (ROWLING, 2003), Harry encontra-se em um momento muito delicado. Ele fora a única pessoa a presenciar o retorno de Voldemort, além de seus seguidores e Cedrico Diggory, cujo corpo Harry conseguira recuperar para entregar para sua família. Poucas pessoas acreditam na versão de Harry da história, a imprensa do mundo bruxo está tachando-o de mentiroso e desesperado por atenção, coisas que o deixam extremamente revoltado. Enquanto os jornais estão rindo da suposta mentira de Harry, Voldemort recupera rapidamente o seu antigo poder, às escondidas. Logo no início do livro, o garoto passa por um processo bastante tendencioso e um julgamento para tentar expulsá-lo de Hogwarts, mas consegue manter sua vaga graças à interferência do diretor da escola, Albus Dumbledore. O diretor acredita na versão de Harry e tenta fazer seus alunos se conscientizarem do retorno de Voldemort, então o Ministério da Magia envia uma funcionária especial para Hogwarts a fim de interferir nas decisões da escola e nas informações que são fornecidas aos alunos. Dolores Umbridge entra na escola primeiramente como professora, logo após vira Alta Inquisidora de Hogwarts e seu poder e influência crescem até que ela assume o lugar de Albus Dumbledore na direção da escola, sempre reafirmando que a história de Harry é uma mentira e que Voldemort não está de volta. Os bruxos que acreditam no retorno de Lord Voldemort formam uma sociedade para lutar contra as artes das trevas, chamada Ordem da Fênix, que tenta encontrar informações sobre o atual paradeiro e planos do bruxo das trevas. Aqui também observamos que Harry tem

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uma ligação muito próxima com a mente de Lord Voldemort (e, provavelmente, vice-versa), conseguindo ler pensamentos e emoções do feiticeiro, o que pode ser muito perigoso. Ao final, por conta de uma visão falsa criada por Voldemort justamente através dessa ligação, acontece uma grande batalha envolvendo Harry e seus amigos, a Ordem da Fênix e os seguidores de Voldemort, também chamados de Comensais da Morte. Nessa batalha, o padrinho de Harry, Sirius Black, é assassinado na sua frente, e o garoto fica muito perturbado por perder a figura paterna, há tão pouco recuperada. Voldemort e seus seguidores conseguem escapar impunes, mas desta vez sem deixar dúvidas, para o mundo bruxo, de que retornara. No ano seguinte, em Harry Potter e o Enigma do Príncipe (ROWLING, 2005), as coisas mudam de figura. Harry agora é exaltado como "O Escolhido", devido à uma profecia sobre ele e Voldemort que diz que nenhum deve viver enquanto o outro sobreviver, o que significaria que Harry é a pessoa que deve matar o Lorde das Trevas. Ele passa a ter reuniões extracurriculares com o diretor da escola, Alvo Dumbledore, que conta para o garoto tudo o que descobriu sobre Tom Riddle ao longo dos anos, coisas que podem ajudar a destruí-lo. Descobrimos que Voldemort dividiu a sua alma em sete partes e guardou cada um desses pedaços em objetos valiosos, muito bem escondidos, chamados horcruxes. Foram essas horcruxes que permitiram que o bruxo chegasse o mais perto da imortalidade do que qualquer outro, pois ele jamais poderia morrer de verdade enquanto um pedaço da alma dele continuasse preso ao mundo, então seria necessário destruir cada uma das seis horcruxes antes de destruir a sétima e última porção, a que estava com o próprio Voldemort. Nesse ano, Harry tenta aprender a fechar sua mente para a entrada de Voldemort, para que coisas, como no passado não se repitam, mas sem muito sucesso. Ao final desse livro o diretor Alvo Dumbledore morre, deixando Harry sozinho na busca pelas horcruxes. No último livro, Harry Potter e as Relíquias da Morte (ROWLING, 2007), Harry resolve não voltar para a escola e, ao invés disso, sair em busca das horcruxes para destruir Lord Voldemort. Seus amigos, Rony e Hermione, também decidem largar a escola para acompanhar Harry e ajudá-lo na busca. Voldermot e seus seguidores já tomaram o poder do mundo bruxo: o Ministério da Magia e Hogwarts agora estão sendo controlados por Comensais da Morte, sob o comando do lorde das trevas. Harry e seus amigos têm que percorrer o país se escondendo, pois agora, com a nova ordem estabelecida no mundo bruxo, Harry é o Procurado Nº 1. Depois de muitas adversidades, Harry, Rony e Hermione conseguem encontrar todas as horcruxes e destruí-las, mas antes do conflito final Harry descobre o motivo de sua ligação com Lord Voldemort: ele é a sétima horcruxe que o bruxo não planejou criar e nem sabe da existência. Quando a maldição da morte ricocheteou em

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Voldemort na tentativa de matar Harry ainda bebê, um pedaço da sua alma, já tão fragilizada, se desligou do resto e se apegou na primeira coisa viva que encontrou por perto, ou seja, o bebê Harry. Harry decide entregar-se para a morte, pois jamais conseguiria destruir Voldemort com um pedaço de sua alma colada à dele. Ele entrega a responsabilidade de matar Voldemort para seus amigos e se entrega, de peito aberto, para o bruxo, quando este o chama para um duelo mortal nos confins da floresta. Harry entrega-se, mas novamente não morre. Voldemort apenas destruiu a parte de si mesmo que havia em Harry. Depois de uma grande batalha, Voldemort é finalmente destruído. Seus seguidores, agora acovardados, fogem e a paz volta a se reestabelecer no mundo bruxo. Ao longo dos sete livros, podemos perceber como a história deixa de ser apenas literatura infantil para tornar-se algo muito mais profundo. O público leitor também foi crescendo juntamente com os personagens, permitindo que a história ficasse cada vez mais madura e com temas mais adultos, afinal, foram dez anos entre o lançamento do primeiro e do último livro.

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4 O USO DA CINEMATOGRAFIA EM "HARRY POTTER" 4.1 Luz e cor Como vimos nos capítulos anteriores, os elementos da cinematografia são utilizados de forma a ajudar a construir a dramaticidade dos filmes e preencher as cenas de sentido. Assim como cores, ângulos e planos podem influenciar no modo como o espectador se sente em relação ao filme, pois trazem consigo algumas características emocionais para a cena. Segundo Martins (2004, p. 63), “para o espectador comum, o impacto de uma grande fotografia é frequentemente subliminar, mas os espectadores mais atentos podem deleitar-se com os planos mais audaciosos e os pequenos detalhes.” A partir de agora, vamos analisar de que forma os elementos da cinematografia que já conhecemos foram empregados nos filmes da saga Harry Potter, ajudando na construção de sentido e no desenvolvimento da narrativa. Como sabemos, a série passa por uma transformação: começa como literatura infantil e, a partir disso, vai ganhando cargas mais pesadas e obscuras conforme o amadurecimento dos personagens principais e os acontecimentos que perpassam a narrativa. Alguns fãs compactaram todos os frames48 dos oito filmes de Harry Potter e produziram uma imagem parecida com um código de barras, onde é possível observar como a paleta de cores vai se transformando e ficando mais sombria com o avanço da história (Figura 30).

Figura 30: Frames de todos os filmes "Harry Potter" condensados em uma imagem.49 Você perceberá que eu frequentemente tendo a atribuir características para uma cor. Para mim, depois de anos de investigação, cores realmente têm personalidades distintas. Por exemplo, vermelhos quentes são 'vigorosos'.

                                                                                                                48

Frame, do inglês 'quadro', é cada uma das imagens fixas de um vídeo, que se sobrepõem para formar o movimento. 49 Fonte: . Acesso em 25 abr. 2016.

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Isso não significa que a cor tenha essa propriedade emocional inerente a si. Isso significa que ela pode extrair essa resposta física e emocional do público. [...] Uma cor forte deduz uma forte resposta visceral. Isso, por sua vez, pode levar o público a antecipar uma ação em particular. 50 (BELLANTONI, 2005, p. xxv)

Com o intuito de determinar um foco e estabelecer parâmetros para análise e comparação, escolhemos dois filmes da série como objetos de estudo, sendo eles o primeiro, Harry Potter e a Pedra Filosofal, e o quinto, Harry Potter e a Ordem da Fênix. Esses dois filmes foram escolhidos porque eles estabelecem pontos de partida de diferentes momentos da saga. No primeiro, somos introduzidos a esse novo mundo, cheio de magia e encantamento. O protagonista, um menino que era muito maltratado por todos, encontra grandes amigos e um lugar que ele finalmente pode chamar de lar. É um filme cativante e encantador. Já em Harry Potter e a Ordem da Fênix, a situação é completamente diferente. O grande vilão da série ressurgira no final do ano anterior, deixando tudo com um aspecto muito mais sombrio. Harry se vê desacreditado por muitos de seus colegas e pela sociedade bruxa em geral e é tratado como um pária. Enquanto isso, o Lorde das Trevas ganha cada vez mais poder e organizações são criadas na tentativa de impedir o avanço de Voldemort e seus seguidores. Neste filme, começam os preparativos para uma guerra que vai ter seu ápice no último filme, o que significa que a partir de agora o mundo bruxo não está mais seguro. Sendo assim, selecionamos algumas cenas correspondentes nos dois filmes para que possamos comparar de que forma foi feita a transposição de significado do filme para o espectador e quais elementos foram alterados nessa mudança. Vamos começar com a forma pela qual o filme é apresentado logo de início ao público. No começo de cada um dos filmes da saga, somos apresentados à logo da Warner Bros. Pictures e, logo depois, ao título do filme. No primeiro filme, a logo da Warner aparece em um padrão clássico utilizado no início dos anos 2000 (Figura 31), muito usado em filmes para a família, para as crianças, comédias em geral, etc. A logo apresenta um amarelo forte, em alguns pontos quase alaranjados, e muito azul. Segundo Bellantoni (2005), o amarelo é uma cor visualmente poderosa, alegre, ousada e exuberante. Já o azul, aqui presente tanto no fundo da logo como no céu ao fundo, quando apresentado de um modo brilhante e poderoso, como nesta imagem, denota poder.                                                                                                                 50

Tradução nossa. Original: "You will find I often tend to attribute characteristics to a color. For me, after years of investigation, colors indeed have distinct personalities. For example, hot reds are ‘lusty.’ This does not mean the color itself has that inherent emotional property. It means that it can elicit that physical and emotional response from the audience. […] A strong color elicits a strong visceral response. This, in turn, can set up an audience to anticipate a particular action."

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Figura 31: Logo da Warner Bros. Pictures no início de "Harry Potter e a Pedra Filosofal"51

A mesma logo da Warner Bros. é apresentada de forma completamente diferente no quinto filme (Figura 32). Ela foi reconfigurada para apresentar características específicas que pudessem fazer o público antecipar o que viria a seguir. O amarelo alegre e exuberante sumiu, juntamente com quase toda a luz. O azul da logo e do céu ao redor se transforma em um azul muito escuro. Segundo Bellantoni (2005, p. 32), "quando uma cor se torna escura, ela é lida como 'mais pesada'. peso, por sua vez, é percebido como algo mais sério"52. A partir de então, todo o filme passa a carregar essa coloração azulada e escura, como se esse peso se prolongasse por toda a narrativa. Para Bellantoni (2005), o azul é a cor que mais representa a impotência. Como já conhecemos o enredo dos filmes, podemos entender que a utilização da cor nesse filme é muito precisa, pois é o ano em que Harry mais se sente impotente diante da sociedade que não acredita nele e o ridiculariza.

Figura 32: Logo da Warner Bros. Pictures no início de "Harry Potter e a Ordem da Fênix"53                                                                                                                 51

Fonte: HARRY POTTER, 2001. Tradução nossa. Original: "When a color becomes darker, it reads as 'heavier'. Heavier, in turn, is perceived as more serious.” 53 Fonte: HARRY POTTER, 2007. 52

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Harry Potter e a Pedra Filosofal nos apresenta a casa dos tios de Harry, os Dursley, como um lugar nada acolhedor, onde Harry passa por muitas humilhações. Segundo o diretor do filme, Chris Columbus, a casa "tinha que parecer como esse lugar horrível e desprezível, então nós intencionalmente procuramos por um lugar que desse a impressão de que mataria qualquer criatividade ou originalidade que qualquer pessoa pudesse ter" 54 . (HARRY POTTER, 2001.) Podemos observar na Figura 33 que a casa parece iluminada por uma luz fria, azulada, pálida. Segundo as pesquisas de Bellantoni (2005), azul pálido transmite letargia e impotência. Enquanto está vivendo com os Dursley, Harry sempre usa cores claras e neutras. Muito azul claro e cinza azulado, denotando a mesma impotência da qual já falamos. “A figurinista Jany Temime criou estilos e paletas de cores individuais para cada personagem jovem. ‘Na primeira vez em que pensei em Harry Potter, imaginei um renegado’, diz Temime. ‘É um menino solitário que se sente deslocado. [...] Então, dei cores suaves: cinza, branco, preto e depois azul claro. Porque quando você se sente deslocado, não gosta de usar cores brilhantes.’” (McCABE, 2001, p. 237)

Figura 33: Plano geral da casa dos Dursley em "Harry Potter e a Pedra Filosofal"55

Enquanto Harry usa muito cinza, seu primo, Duda, é quem aparece vestido de vermelho, cor que, segundo Bellantoni (2005), pode ser muito associada ao poder. Afinal, nessa relação familiar disfuncional, é Duda que detém o poder sobre Harry. Quando vemos Harry vestido de vermelho no final desse mesmo filme, ele está em uma cena de confronto com Voldemort que está tentando se apossar da pedra filosofal (Figura 34). Segundo                                                                                                                 54

Tradução nossa. Original: "Privet Drive had to feel like this mean awful place and so we intentionally looked for the place that felt like it would kill any creativity or originality that anyone would ever have." 55 Fonte: HARRY POTTER, 2001.

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Bellantoni (2005, p. 58), "o vermelho afeta você fisicamente. Você não tem controle sobre isso. Seu pulso acelera. [...] O vermelho aumenta o seu nível de ansiedade."56 Vermelho vivo é como cafeína visual. Pode ativar a sua libido ou torná-lo agressivo, ansioso ou compulsivo. De fato, vermelho pode ativar quaisquer emoções latentes que você colocar na mesa, ou no filme. Vermelho é poder. Mas vermelho não traz consigo um imperativo moral. Dependendo do que a história precisa, vermelho pode dar poder a um mocinho ou vilão. (BELLANTONI, 2005, p. 2)57

Figura 34: Harry em cena de confronto contra Voldemort.58

Ao chegar em Hogwarts, Harry é apresentado à um mundo mágico, com cores quentes e acolhedoras. De acordo com Chris Columbus (HARRY POTTER, 2001), o Salão Principal de Hogwarts tem muito fogo pois queriam construir um ambiente de acolhimento e magia. A figura 35 mostra Harry, Rony e Hermione no Salão Principal, que está decorado para o natal. Essa cena de Harry Potter e a Pedra Filosofal apresenta com muitas luzes quentes, amarelas e alaranjadas. Para Bellantoni (2005), o laranja é uma cor acolhedora e calorosa. Laranja é uma cor quente que sinaliza uma presença doce. [...] A energia do amarelo fica mais feliz na presença do laranja. [...] Nossa pesquisa mostrou o laranja como alegre, simples e descomplicada. (BELLANTONI, 2005, p. 46)59

                                                                                                                56

Tradução nossa. Original: "The red affects you physically. You have no control over it. Your pulse rate accelerates. It’s as if you were implicated somehow in their scheming. Red raises your anxiety level way up." 57 Tradução nossa. Original: “Bright red is like visual caffeine. It can activate your libido, or make you aggressive, anxious, or compulsive. In fact, red can activate whatever latent passions you might bring to the table, or to the movie. Red is power. But red doesn’t come with a moral imperative. Depending on the story’s needs, red can give power to a good guy or a bad guy.” 58 Fonte: HARRY POTTER, 2001. 59 Tradução nossa. Original: "Orange is a warm color that signals a sweet presence. [...] Yellow’s energy becomes happier in the presence of orange. […] Our research has shown orange to be cheerful, simple, and uncomplicated."

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Figura 35: Harry, Rony e Hermione no Salão Principal de Hogwarts60

Em Harry Potter e a Ordem da Fênix, o Natal é bem diferente, como podemos observar na Figura 36. Desta vez, Harry não passa as festas final de ano em Hogwarts, mas sim na sede da Ordem da Fênix, a organização de bruxos contra Voldemort. É possível notar uma nítida diferença entre essa cena e a do primeiro filme, pois agora a cena, mesmo sendo de uma data especial como o Natal, ganha um aspecto sombrio e azulado, assim como já fora apresentado na logo da Warner. A única luz mais quente e alaranjada está presente no centro, onde estão algumas das pessoas mais importantes para Harry: Hermione e a família Weasley, de seu amigo Rony. Essa cena nos faz ter a sensação de que ainda há algo que traz conforto à vida de Harry, mesmo que esse lugar de segurança esteja sendo envolvido pelas sombras, "afinal de contas, a influência das cores não dá apenas suporte emocional para a história, mas também influencia o público" (BELLANTONI, 2005, p. 132)61.

Figura 36: Natal em "Harry Potter e a Ordem da Fênix"62

                                                                                                                60

Fonte: HARRY POTTER, 2001. Tradução nossa. Original: "After all, color’s influence doesn’t just emotionally support the story, it influences the audience as well." 62 Fonte: HARRY POTTER, 2007. 61

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Durante Harry Potter e a Ordem da Fênix, "Harry se sente isolado e acha que as pessoas não confiam ou não acreditam nele. Sente que lá não é seu lugar" (McCABE, 2011, p. 155). Por conta disso, outros ambientes que outrora tiveram um aspecto muito acolhedor, se transformam e ficam gélidos e melancólicos. Um dos lugares que marcam essa diferença bastante perceptível é a Sala Comunal da Grifinória.63 Stuart Craig [designer de produção] e o departamento de arte queriam tomar uma direção específica no desenho da sala comunal da Grifinória para garantir que fosse um lugar acolhedor, convidativo e seguro. "Harry vivia em um armário debaixo da escada", explica Stephenie McMillan [cenógrafa]. "Queríamos um contraste com aquela existência. É na sala comunal que ele se sente em casa pela primeira vez. É quente, com uma lareira enorme, sofá gasto e tapete surrado, um lugar que é tranquilo e seguro." (McCABE, 2011, p. 345)

Figura 37: Sala Comunal da Grifinória em "Harry Potter e a Pedra Filosofal".64

Assim como na cena do Natal mostrada anteriormente, na figura 37 também podemos ver luzes muito quentes e acolhedoras, e uma mistura de amarelo, vermelho e laranja, que, segundo Bellantoni (2005), é a cor perfeita para uma parada de descanso. A Sala Comunal é o lugar onde Harry e seus amigos passam o tempo quando não estão em aula, seja para estudar, descansar ou conversar. Durante todos os filmes, a Sala Comunal é um ponto de encontro. Entretanto, em Harry Potter e a Ordem da Fênix, até mesmo esse lugar perde o seu caráter acolhedor. Apesar de elementos como as tapeçarias vermelhas continuarem lá, a iluminação perde o calor e se torna muito mais fria, as cores perdem a saturação e tudo ganha um aspecto                                                                                                                 63

Existem quatro casas em Hogwarts, sendo elas Grifinória, Corvinal, Lufa-Lufa e Sonserina. Os estudantes são selecionados para uma dessas casas no seu primeiro dia na escola, e essas casas passam a ser como a família dos estudantes na escola. Harry é membro da Grifinória. 64 Fonte: HARRY POTTER, 2001.

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azulado e sombrio. Não há mais fogo aceso na lareira para esquentar o ambiente e os ânimos. Na Figura 38, Harry é confrontado por muito de seus colegas da Grifinória, que estão duvidando da veracidade de suas afirmações sobre a volta de Voldemort, fazendo-o se sentir muito reprimido em um lugar onde antes ele se sentia em casa.

Figura 38: Sala Comunal da Grifinória em "Harry Potter e a Ordem da Fênix"65

Coincidentemente ou não, ao final dos dois filmes, depois do confronto e do clímax, podemos encontrar cenas parecidas, mostrando uma conversa entre Harry e o diretor de Hogwarts, Alvo Dumbledore. No primeiro filme, figura 39, essa cena é situada na Ala Hospitalar da escola, onde Harry está se recuperando após enfrentar Voldemort em uma disputa pela posse da pedra filosofal. O diretor, então, aproxima-se de Harry para lhe explicar alguns acontecimentos e dizer que a pedra filosofal foi destruída, ou seja, que Voldemort não pode mais utilizá-la para recuperar suas forças. Neste momento, Dumbledore está usando uma veste de um vermelho escuro, cor essa que já vimos que denota poder. Aqui, o diretor é a figura sábia e compreensiva, que vem acalmar Harry depois dos perigos enfrentados. O filme termina com uma sensação de tranquilidade, pois Voldemort não conseguiu voltar ao poder e continua muito fraco. A cena volta apresentar uma luz alaranjada, acalentadora. Como nós nos sentimos ao pôr-do-sol não é apenas um clichê romantizado. Alguma coisa realmente acontece fisicamente conosco quando assistimos a claridade intensa e quase branca se transformar em um rico laranja brilhante no céu. Luzes laranjas brilhantes (e suas associações com o sol) podem nos conduzir a uma jornada visceral que aquece e expande nosso campo emocional. (BELLANTONI, 2005, p. 112)66

                                                                                                                65

Fonte: HARRY POTTER, 2007. Tradução nossa. Original: "How we feel at sunset is not just a romanticized cliché. Something actually happens to us physically when we watch the intense brightness of the near-white sun transform itself into a glowing rich orange in the sky. Glowing orange light (and its associations with the sun) can take us on a visceral ride that warms and expands our emotional field."

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Figura 39: Harry e Dumbledore em "Harry Potter e a Pedra Filosofal"67

Se compararmos essa cena com a outra cena correspondente do quinto filme, veremos uma evidente transformação. Quando, ao final de Harry Potter e a Ordem da Fênix, Harry e Dumbledore sentam frente a frente para conversar, a situação é totalmente diferente (Figura 40). Desta vez, a cena se passa no escritório de Dumbledore, onde os dois conversam após a batalha que houve no Ministério da Magia e resultara na morte do padrinho de Harry, Sirius. A luz é fria e azul, como em todo o filme. Para Bellantoni (2005, p. 48), "azul é frio, repressivo e inflexível"68. A maior diferença entre esses dois momentos da narrativa é a sensação de perigo. As sombras estão quase ocultando os dois personagens. Voldemort está de volta com toda a sua força e com todos os seus seguidores. Sirius está morto. Uma guerra está prestes a começar.

Figura 40: Harry e Dumbledore em "Harry Potter e a Ordem da Fênix"69

                                                                                                                67

Fonte: HARRY POTTER, 2001. nossa. Original: “blue is cold, repressive, and unyielding.” 69 Fonte: HARRY POTTER, 2007. 68  Tradução

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Podemos destacar a utilização das cores na personagem Dolores Umbridge, em Harry Potter e a Ordem da Fênix. Como já explicamos, ela é assistente-sênior do Ministro da Magia e é enviada para Hogwarts a fim de interferir na forma como Alvo Dumbledore dirige a escola e no que é ensinado aos alunos. A figurinista Jamy Temine, no livro "Harry Potter: Das Páginas Para a Tela", explica um pouco as escolhas de figurino dessa personagem, que sempre está de rosa (Figura 41). Umbridge é cor-de-rosa no livro, o que eu achava surpreendente. Ter todos de preto e ela de cor-de-rosa [...] Mas uso diferentes tons: rosa claro, rosa suave, rosa choque, rosa fúcsia, tudo depende do humor dela. Ela usa um cor-de-rosa frio com muito azul. Usa um que é muito mais ácido e forte quando começa a ficar cada vez mais poderosa. Umbridge se torna progressivamente mais cor-de-rosa com o transcorrer da história. No ato final, quando está completamente louca, sua roupa ganha um tom cereja bem forte. (McCABE, 2011, p. 158)

Figura 41: Dolores Umbridge em sua primeira aula, em "Harry Potter e a Ordem da Fênix".70

Conforme Umbridge vai se tornando mais poderosa, suas roupas vão se transformando em um tom mais fechado, sério e poderoso de rosa. Ao final, é algo entre o vermelho, que, segundo Bellantoni (2005), inspira poder, e o roxo, que é enigmático. Na figura 42, Umbridge está no seu ápice de poder, já tendo substituído Dumbledore na direção da escola. Nessa cena em específico, ela está castigando os alunos que vão contra as suas regras em um tipo de tortura: fazendo-os escrever com o próprio sangue, cortando fundas cicatrizes em suas mãos. Umbridge apresenta um semblante de satisfação por se encontrar nesta posição.

                                                                                                                70

Fonte: HARRY POTTER, 2007.

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Figura 42: Dolores Umbridge como diretora de Hogwarts, em "Harry Potter e a Ordem da Fênix"71 Cor é um dos elementos que o público raramente reconhece como algo que o manipula. Essa qualidade subliminar pode ser como magia nas mãos do diretor - ou não. Isso é muito claro: se nós continuarmos a ignorar esse poder que está esperando pelo nosso comando, nós abandonamos uma grande parte do nosso controle ao acaso. Cores vão continuar a ressoar e enviar sinais, independentemente das nossas intenções. Então, quer seja dentro ou fora das telas, é essencial para nós que saibamos o que estamos fazendo. (BELLANTONI, 2005, p. xxviii)72

Outra utilização muito marcante de cor em Harry Potter e a Ordem da Fênix está no Ministério da Magia, onde Harry vai para seu julgamento sobre a expulsão de Hogwarts. Conforme vemos na figura 43, o saguão principal do Ministério da Magia tem muito verde. Para Bellantoni (2005), o verde é uma cor dicotômica, pois pode sinalizar tanto saúde e vitalidade, como em um vegetal fresco, como perigo e decadência, como em um pedaço de carne estragada. Não é à toa que líquidos verdes já foram utilizados incontáveis vezes no cinema como metáfora para veneno. A utilização tanto do poder do vermelho quanto do verde mostra uma estrutura governamental ainda poderosa, mas decadente. O verde no Ministério da Magia nos deixa atentos para algo podre que está acontecendo no mundo bruxo.

                                                                                                                71

Fonte: HARRY POTTER, 2007. Tradução nossa. Original: “Color is one of the elements rarely recognized by the audience as manipulating them. This subliminal quality can be magic in the director’s hands—or not. This much is clear: if we remain unaware of this power awaiting our command, we relinquish a large part of our control to chance. Color will continue to resonate, to send out signals, irrespective of our intentions. So, whether it’s on or off-screen, it’s essential for us to know what we are doing.

72

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Figura 43: Saguão principal do Ministério da Magia.73

Até aqui pudemos observar como as cores, na forma de luz ou até mesmo de figurino, objetos e design de cenários influencia na percepção emocional e até mesmo física que temos de um filme. Nos filmes Harry Potter, esses aspectos são utilizados com maestria para envolver o espectador na situação sombria e perigosa que Harry e todo o mundo bruxo estão vivendo. 4.2 Planos e ângulos Alguns planos ou ângulos são utilizados em momentos específicos da trama, de forma que ajuda a potencializar o envolvimento do público nesse mundo mágico. Em Harry Potter e a Pedra Filosofal, a primeira vez que vemos Hogwarts é em um grande plano geral que nos apresenta o castelo em toda a sua grandiosidade (Figura 44). Como vimos no segundo capítulo deste trabalho, grandes planos gerais são utilizados para situar o público e apresentálos a grandes cenários, e é por isso que esse plano é utilizado aqui. O interessante é que no quinto filme não temos um grande plano geral apresentando Hogwarts para os espectadores, pois eles já conhecem essa informação, já sabem onde a história se passa.

                                                                                                                73

Fonte: HARRY POTTER, 2007.

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Figura 44: Grande plano geral de Hogwarts, em "Harry Potter e a Pedra Filosofal".74 Outro ponto que podemos destacar é o uso de planos plongée e contraplongée nos filmes. Existe um personagem, chamado Rúbeo Hagrid, que é o guardião das chaves e das terras de Hogwarts e um meio-gigante. Harry e ele constroem uma amizade muito forte ao longo dos filmes e sempre que eles estão conversando, principalmente quando Harry ainda é uma criança, o diretor de fotografia escolhe usar os planos plongée e contreplongée para destacar a grande diferença de altura entre os dois: Harry está sempre olhando Hagrid de baixo para cima, enquanto Hagrid sempre olha Harry de cima para baixo, como podemos ver nas figuras 45 e 46.

Figura 45: Close de Harry em ângulo plongée75

                                                                                                                74 75

Fonte: HARRY POTTER, 2001. Fonte: HARRY POTTER, 2001.

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Figura 46: Close de Hagrid em ângulo contraplongé76

Com a utilização do plongée e contreplongée nas conversas entre Harry e Hagrid, conseguimos nos colocar no ponto de vista dos personagens, visualizando a cena de um modo mais próximo como cada um deles veria. Não podemos dizer que vemos através nos olhos dos personagens pois aqui a câmera ainda é subjetiva, então os atores não olham diretamente para a lente, como se fossem os olhos de seu colega de cena. Aqui, o close e os ângulos diferenciados servem para trazer o público cada vez mais para dentro dos filmes, imergindo na história. O ângulo oblíquo, como vimos no segundo capítulo, é utilizado para cenas de cargas muito dramáticas e instáveis, demonstrando desequilíbrio. Em Harry Potter e a Ordem da Fênix esse ângulo é utilizado quando Harry se vê sendo ameaçado por dois dos mais fiéis seguidores de Lord Voldemort, Lucius Malfoy e Bellatrix Lestrange (Figura 47). Também podemos observar que a inclinação parte do canto superior esquerdo para o canto inferior direito, denotando o declínio e perigo da situação em que Harry se encontra. Para Mascelli (2010, p. 71), “uma vez que estabelece uma relação direta com as emoções dos espectadores, a inclinação de câmera para efeitos psicológicos é uma das armas mais poderosas de que dispõe o fotografo para contar uma história.”

                                                                                                                76

Fonte: HARRY POTTER, 2001.

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Figura 47: Lucius Malfoy e Bellatrix Lestrange em ângulo oblíquo.77 Como pudemos observar neste capítulo, a fotografia tem uma importância muito grande nos filmes Harry Potter e no cinema como um todo, e não apenas de forma puramente técnica. De acordo com Martins (2004), o diretor de fotografia traduz o roteiro em imagens, ajudando o público a alcançar as emoções necessárias, se envolver na história e alcançar o clímax do filme junto com os personagens. O diretor de fotografia, trabalhando próximo do diretor de arte, verá como os cenários foram construídos, observando sua estrutura e suas cores para melhor avaliar fotograficamente filmagem em preto e branco ou em cores, podendo opinar sobre as cores de mobília, cortinas, carpetes, etc. Mas a grande essência do seu trabalho será, sem dúvida, o cuidado com a iluminação, que é uma parte da fotografia freqüentemente realizada separadamente. (MARTINS, 2004, p. 55)

A fotografia auxilia a expressar emoções, sejam elas quais forem, por meio das técnicas que vimos até então. O diretor geral e o diretor de fotografia trabalham juntos para decidir quais as melhores formas de traduzir as cenas do roteiro em imagem, de modo que o público possa se envolver com aquilo mais facilmente. Segundo Martins (2004, p. 82), "a iluminação faz com que o filme possua sua ação dramática mais expressiva quando, em colaboração, cineasta e diretor de fotografia preocupam-se em adequar a estética fotográfica à narrativa do filme".

                                                                                                                77

Fonte: HARRY POTTER, 2007.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Filmes nos influenciam de vários modos, muito dos quais não conseguimos perceber ou analisar enquanto estamos envolvidos com o enredo que é nos apresentado. Com este trabalho, observamos a importância do uso das técnicas de cinematografia para expandir e explorar as possibilidades de transmitir e contar histórias pelo cinema. O audiovisual, por ser áudio-visual, gera outras sensações que não só o imaginário. Todavia, ele induz o imaginário, até tornando, para algumas pessoas, a experiência audiovisual mais satisfatória que a experiência literária. Claro que, para outras pessoas, a experiência de ler um livro é melhor, no entanto essa não foi a discussão proposta neste trabalho. Aqui buscamos entender a forma como foram utilizadas as técnicas cinematográficas e como elas possibilitaram a releitura, a transposição do livro para o filme, e de que forma foram feitas as transferências de significações do filme para o espectador. De acordo com Martins (2004, p. 182), “a iluminação faz com que o filme possua sua ação dramática mais expressiva quando, em colaboração, cineasta e diretor de fotografia preocupam-se em adequar a estética fotográfica à narrativa do filme”. Utilizando-se as técnicas corretas, o espectador pode ser afetado tanto visualmente quando emocionalmente, com as emoções sendo transferidas para ele de forma visceral. Assim como a iluminação, o uso de planos e ângulos planejados para ajudar a contar a história faz com o que o público consiga ter um envolvimento maior com a trama, sendo trazido para dentro do filme se sentindo parte daquele momento ou se colocando no lugar dos personagens, criando uma relação de empatia. Os filmes da saga Harry Potter são exemplos de como essas diferentes nuances proporcionadas pelas técnicas cinematográficas nos ajudam a contar uma história, criando seus altos e baixos, situações de conforto e de perigo, felicidade ou ansiedade. Pelo fato de ser uma série onde cada livro equivale a um ano de vida dos personagens, o conteúdo se transforma e amadurece na mesma medida em que o protagonista e seus amigos crescem, fazendo com que isso se reflita claramente como imagem nos filmes. Logo no início a série é sobre crianças descobrindo um mundo novo, mágico e aprendendo conceitos sobre amizade, coragem e lealdade. Com o passar do tempo, a série evolui junto com os personagens até chegarmos à abordagem de assuntos mais sérios como preconceito, discriminação e morte, sendo este, talvez, um dos temas mais recorrentes da série. Sendo assim, a fotografia do filme passa por uma grande transformação para se adaptar a diferentes fases do enredo, ficando muito mais escura, fria e tenebrosa, conforme a tensão e os perigos aumentam.

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Fluxos de cores que acompanham os arcos emocionais de uma história estão aparecendo nas paredes dos departamento de arte dos estúdios. Cada vez mais, cores estão sendo alteradas digitalmente para enfatizar emocionalmente uma cena. Então, sim, muitas vezes é planejada não apenas no set de filmagens, mas também na pré-produção e pós-produção. Considerar como uma cor irá se manifestar em um filme é essencial. (BELLANTONI, 2005, p. xxxi)78

O objetivo deste trabalho foi mostrar as várias camadas de uma obra audiovisual, sendo cada uma delas possível de ser preenchida de significação. No campo da comunicação nada é por acaso, pois absolutamente tudo comunica. Por conta disso, não podemos deixar elementos tão importantes como luzes, cores, ângulos e planos soltos ao acaso, pois eles continuarão induzindo emoções, mesmo que não sejam planejadas por nós. Com este trabalho entendemos a importância de nos apropriamos desses elementos cinematográficos, com o intuito de contar melhores histórias, que possam tocar o público em vários níveis, induzindo pensamento, opiniões, sensações e, principalmente, emoções.

                                                                                                                78

Tradução nossa. Original: “Color-flows that track the emotional arcs of a story are appearing on walls of studio art departments. More and more, colors are being digitally altered in order to emotionally emphasize a scene. So, yes, it is often planned, not just on the set but also in both preproduction and postproduction. Consideration of how a color will manifest in a film is essential.”

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REFERÊNCIAS

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MASCELLI, Joseph V. Os Cinco Cs da Cinematografia: técnicas de montagem. São Paulo: Summus Editorial, 2010.     MICHAUD, Philippe-Alain. Filme: por uma teoria expandida do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. OLIVEIRA, E. M. O pioneiro da fotografia no Brasil. Covilhã, Portugal: Universidade da Beira Interior, 2007. Disponível em: . Acesso em 13 fev. 2016. RIBEIRO, Milton. O dia em que os irmãos Lumière apresentaram o cinema ao mundo. 2013. Disponível em: . Acesso em 14 abr. 2016.     ROWLING, J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.     _______. Harry Potter e a Câmara Secreta. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.     _______. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.     _______. Harry Potter e o Cálice de Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.     _______. Harry Potter e a Ordem da Fênix. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.     _______. Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.     _______. Harry Potter e as Relíquias da Morte. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.     _______. Perguntas frequentes e rumores. Disponível em: . Acesso em 25/05/2016.     SALLES, Filipe. Breve História da Fotografia. 2008. Disponível em: . Acesso em 30 jan. 2016.    

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