LUTO, ANTROPOFAGIA E A COMUNIDADE COMO DISSENSO

July 4, 2017 | Autor: Roberto Zular | Categoria: Literature, Perspectivismo Amerindio, Antropofagia Brasil
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LUTO, ANTROPOFAGIA E A COMUNIDADE COMO DISSENSO

La “civilization” est perpective Paul Valéry

O escopo principal do presente ensaio é atravessar a leitura que Derrida faz dos psicanalistas Nicolas Abraham e Maria Torok tendo como norte as considerações tecidas em “‘Il faut bien manger’ – ou le calcul du sujet” e procurar mostrar o quanto essa travessia pode nos ajudar a pensar a antropofagia como teoria do luto. Nosso percurso partirá dos conceitos de introjeção de pulsões e incorporação de objeto que nos levarão ao gesto antropofágico como uma passagem possível para um discurso que aspira à comunidade. INTROJEÇÃO DE PULSÕES E INCORPORAÇÃO DE OBJETO Uma das particularidades que Derrida coloca em evidência na obra desses psicanalistas, o uso da primeira pessoa do plural, é uma introdução interessante ao problema que propomos, pelo questionamento da possibilidade mesma do uso da primeira pessoa do plural. Esse nós que não resume todas as vozes em uma única voz que diz nós, esse nós que não fala em nome de, um nós como dissenso instaurado na própria enunciação. Não é um coro gritando nós, nem a massa em movimento, é a instauração de uma diferença interna: isso é um nós, esse desvio na enunciação, seu paradoxo constitutivo, a comunidade que a atravessa. Esse nós se instaura a começar pelo fato de a obra desses psicanalistas, especialmente o “Verbier de l’homme aux loups”, não ter um autor, é uma obra conjunta de duas pessoas que se implicam em um nós que não é intersubjetivo, como faria sonhar uma certa fenomenologia, mas transubjetivo e transobjetivo – já que esse nós só pode aparecer no contato com o outro. Um devir-outro do eu construído por vários processos retroprospectivos – no espaço temporal que se abre continuamente entre o já não mais e o ainda não.

Quem diz nós? A pergunta aqui é de fato mais importante como apelo do que as possíveis respostas que poderíamos dar a ela. Ela instaura a demanda pelo outro como cerne da questão do comum implicada nesse nós. Maria Torok e Nicolas Abraham nos incitam a nos salvar... “de quê? De quem?”, pergunta Derrida. A estratégia de Derrida para responder a essa demanda parte da discussão sobre a transfenomenologia e seu desenvolvimento no conceito de anasemia, atravessa as noções de introjeção de pulsões e incorporação de objeto, para chegar ao magistral “Verbier” do homem dos lobos. Para o nosso objetivo aqui ficaremos nos dois primeiros tópicos e tendo como baixo continuo de nossa leitura o exemplar trabalho de Fabio Landa Ensaio sobre a criação teórica em psicanálise. De Ferenczi a Nicolas Abraham e Maira Torok1 que apresenta como anexo uma tradução do texto “Fora” de Derrida. A noção de anasemia implica em um modo de uso dos conceitos de forma que eles se esvaziem no movimento mesmo de sua utilização tornando-se assim formas de movimento, vetores em direção ao particular. Seu sentido instaura uma direção cuja semântica depende do modo como eles são colocados em funcionamento. Essa visada anasêmica implica, entre outras coisas, em uma dessubstancialização dos mitos fundadores da psicanálise – o complexo de Édipo, o narcisismo, o falo – que podem funcionar quase como uma ideologia que barra o acesso ao inconsciente (há uma função política extremamente conservadora em acreditar, por exemplo, que o menino deseja a morte do pai para ficar com a mãe quando o que isso esconde é a insuportável instabilidade do desejo sexual da criança, seu estatuto polimorfoperverso). Essa psicanálise social selvagem coloca em xeque a própria psicanálise já que, por exemplo, no caso da criança, “tomar literalmente seu discurso não seria ratificar a ordem social e moral em que se inscreve a expressão de seu falacioso desejo e condená-lo a sofrer inexoravelmente a sanção de seu próprio veredito? A psicanálise ultrapassaria então, em carolice, as religiões mais retardadas e, em conservadorismo, os partidos mais reacionários”2

1 2

São Paulo, Unesp/Fapesp, 1999. Abraham, N. apud Landa, Fabio. Op. cit. p. 190/191.

Essa percepção dos riscos regressivos da psicanálise – a substancialização de seus mitos fundadores: édipo, a castração, a lei – aproxima Abraham e Torok, embora de um modo diferente, da empreitada de um Anti-Édipo ou mais recentemente do inconsciente estético de Rancière. Seja como for, há uma força reificadora operando no interior da própria psicanálise e que tem a ver com a “mentira absoluta” como funcionamento padrão de nossas sociedades ocidentais3. Substancialização do mito, reificação da teoria, estagnação no sentido remetem a um modo de relação de objeto no qual a impossibilidade de introjeção das pulsões que se ligam aos objetos é substituída por uma fantasia incorporadora que, digamos assim, engole a coisa, vomita-a para dentro, estabelece uma relação de exterioridade – produz uma separação tanto quanto possível irredutível entre interior e exterior – gira em falso em torno da coisa, da coisa indizível, tumba de um desejo que não pode vir à luz nem morrer, não pode ser lembrado nem esquecido. Derrida mostra o quanto esse movimento de incorporação do objeto é na verdade uma introjeção mal realizada, ou realizada apenas em parte. Diante de um luto impossível, na impossibilidade mesma de rearticulação psíquica diante de uma perda, isto é, quando algo trava o fluxo do tocando-tocado da experiência dos lugares de corpo que abrem o contato com o mundo e suas formas infinitas de relação, instaura-se, por razões a serem explicitadas, um mecanismo de apreensão do próprio objeto: as palavras tornam-se coisas, há um processo radical de desmetaforização. Trata-se de uma fantasia que tenta manter o status quo psíquico a todo custo, ainda que para isso tenha de instalar em si, no próprio Ego, uma cripta que funciona como “um ‘falso inconsciente’, um inconsciente ‘artificial’ colocado como uma prótese, transplante no coração de um órgão, no ego clivado”4

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É o que Pierre Fédida traz para o primeiro plano ao concluir seu prefácio ao livro de Fabio Landa sobre Abraham e Torok: “O livro de Fabio Landa não busca polêmicas. Ele diz apenas – com Hannah Arendt e depois dela – que a psicanálise tem também a ver com esta mentira absoluta produzida pelos sistemas totalitários mesmo na vida cotidiana das sociedades liberais”. Op. Cit. p.6. 4 Derrida, J. “Fora”. In Landa, Fabio. Op. Cit. p.271.

A CRIPTA Ficamos assim entre a introjeção como um funcionamento que não se prende ao objeto, mas que, a partir dele, coloca em movimento as pulsões, e, do outro lado, uma operação egoica, um mecanismo operacional, uma gestão do eu que internaliza os objetos criando uma separação artificial, tabiques, muros, entre um mundo interior e o mundo exterior. Instala-se, pois, no própro ego, uma cripta. Ainda uma vez com Derrida: “O que é uma cripta? Uma cripta não se apresenta. Uma certa disposição dos lugares está lá para dissimular: alguma coisa, sempre, de alguma maneira, um corpo [...] A cripta não é, pois, um lugar natural, mas a história marcante de um artifício, uma arquitetura, um artefato: de um lugar compreendido em outro, mas rigorosamente separado dele, isolado do espaço geral por tabiques, muros, enclave. Para lhe subtrair a coisa. [...] No interior desse fórum, praça de livre circulação para as trocas de discursos e objetos, a cripta constrói um outro foro: fechado, porém no interior de si mesmo, interior secreto no interior da grande praça, mas ao mesmo tempo exterior a ela, exterior no interior [...] [Suas paredes] fazem do foro interior um fora excluído no interior do de dentro”5

Se o tempo aqui não permite irmos muito além dessas pequenas notas, apoiadas nas belíssimas descrições de Derrida, é porque a ideia é enunciá-las assim, quase indefinidas, é ver se, colocando-as em funcionamento, elas podem se mostrar como possibilidades interessantes para pensarmos uma caminho para a comunidade. Antes, ensaiemos algumas hipóteses do que a cripta dá a ver pelo seu segredo. Instaurada a cripta, congelado o luto por uma fantasia incorporadora, tudo se passa a partir de então sob a égide do processo secundário: há toda uma lógica, argumentos, palavras, que constroem as paredes desse foro excluído no interior. A cripta permite com facilidade falar-se de algo , justificá-lo sem estar de fato implicado no que se 5

In “Fora”. Op. Cit. p. 272.

diz. Ela instaura regras – regiões de normatividade – estranhas ao funcionamento da psique como um todo. Esse mecanismo de um foro excluído no interior, tal qual proposto na leitura de Derrida permitiria pensar os mecanismos subjetivos que produzem uma “comunidade operacional ou operante” (para aproveitar o título de Nancy), isto é, o mecanismo pelo qual a relação com o outro e sua dinâmica de apropriação opera por meio da produção de um inconsciente artificial que afasta o corpo e o inconsciente dinâmico, e funciona por uma série infinita de razões, explicações, justificativas, estatísticas, cálculos. Encriptada a própria política opera como mímesis desse funcionamento, como se o modelo, mesmo democrático, se substancializasse e tudo passasse a operar para a manutenção de um status quo, como se não tivesse mais nada a ser inventado: tudo está dado e todos os problemas se tornam problemas de gestão de pessoas, coisas, dinheiro, enfim, de operacionalização. A questão crucial da política passa a ser a de gerir o consenso, isto é, “o regime puro da necessidade econômica” como propõe Rancière a respeito do dissenso6. A tópica, a organização topológica dessa empreitada também é importante, pois a cripta, o lugar-não-lugar em que opera esse mecanismo está, ainda nas palavras de Derrida, excluída no interior, ela é um fora no interior do de dentro, ela inclui exluindo e exclui incluindo em uma dinâmica que lembra muito o funcionamento das demandas de nossas sociedades democráticas. Se a política instaura-se aqui como o cômpto dos não contados ou a parte dos que não tem partes como quer Rancière é ainda por uma semelhança gigantesca dessa operação de entricheiramento egóico descrito por Abraham e Torok. Não é estranho que a política tenha se tornado uma demanda por inclusão e que quanto mais a população é incluída mais estranhamente externa à política ela se torna? Nessa mesma dinâmica a relação com a lei e o contrato também adquire uma particularidade. Pois a regra como mecanismo constitutivo da cripta pelo processo secundário que a mantém está no sujeito como algo paralelo à própria relação com o 6

Rancière, Jacques. “O dissenso”. In: A Crise da razão. Novaes, Adauto. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

corpo e o mundo.

A regra produz formas de subjetivação (sujeitos políticos,

econômicos, jurídicos) que produzem por sua vez identificações cripticas – isto é, enterram a dinâmica do desejo que as constitui – e passam a funcionar em torno da regra como algo externo ao sujeito (embora no interior), como operacionalização defensiva. A regra como fundamento desse mecanismo de constituição da subjetividade torna-se uma espécie de guarda gestor daquele inconsciente artificial. Por isso, com tanta facilidade pode-se estar dentro e fora da regra, na verdade, a lei torna-se um cisto regulador excluído no interior da sociedade. Exclusão no interior, mecanismos de operacionalização, formas de agrupamento que se dão em torno da falta de algo, como se todos tivéssemos nos tornado pedintes no espaço público da restituição daquela fantasia incorporadora que nos exclui de um pedaço de nós mesmos ou que inclui em nós um pedaço exterior. Instaura-se assim um movimento de reunião de pessoas em que a falta é sempre de objetos numa dinâmica na qual capitalismo, democracia e estado de direito se juntam para formular direitos dos que não tem direitos, jurisdicionalizando as demandas e definindo limites em que apenas sujeitos (de direitos), portanto de demandas previamente estabelecidas, se tornam sujeitos válidos. Trata-se, como veremos, do sujeito restrito à sua constituição no campo do direito para Derrida, ou de modo ainda mais duro, “É a parte que se identifica ao todo exatamente em nome da injustiça que lhe é feita pela ‘outra” parte’”7 Ainda que se reconheça o pendor progressista desses direitos, a questão que se coloca é a forma como essa demanda se instaurou no cerne da sociedade de tal modo que o dissenso em torno da formulação dessas demandas e da forma de seu acesso, isto é, a discussão sobre o próprio funcionamento em que elas operam se tornou impossível. Na verdade, é a manutenção de um status quo que se dá por meio do reconhecimento dessas demandas que transformam a política em gestão distributiva de recursos em diversas instâncias.

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Rancière, J. “O Dissenso”. Op. Cit. p 371.

Tenho insistido há algum tempo que esses mecanismos têm relação com aquilo que se vem tratando como cinismo embora com um modo de operar um pouco diferente. A questão agora seria pensar as formas pelas quais algo como uma comunidade seria possível diante da constatação desse mecanismo críptico como um traço significativo de nossa experiência contemporânea.

A ÉTICA DO BEM COMER

Tentaremos responder a essa questão por um desvio no interior do texto que nos levará de “Fors” à conhecida entrevista de Derrida a Jean-Luc Nancy, “ ‘Il faut bien manger’ – ou le calcul du sujet”. Por diversas razões, entre elas a morte de Nicolas Abraham, não chegou a ser formulada uma terapêutica para a criptoforia ou a doença de incorporação de objeto. Sabemos que ela passa pela voz, por uma política da escuta, por um certo modo de fazer sonhar, mas sabemos também que, no limite, como o luto, a questão da incorporação importa em modos de se lidar com ela, como se aceitá-la como limite fosse recusar o paradigma da subjetivação absoluta (contra a qual se volta continuamente Derrida na entrevista citada). Engolir o objeto, engolir o outro é uma dimensão canibal incontornável. Mas por aí podemos entrever que a ausência mesma de cura instaura na relação das formas, no modo da configuração dessa relação, na atuação sobre a borda de sua constituição a possibilidade produtiva de se lidar com ela. Nossa hipótese será ler os pressupostos de “‘Il faut bien manger’” como uma forma de instauração de uma outra dinâmica a partir da própria incorporação (o que nos levará também à questão da antropofagia): na impossibilidade de se desdobrar sobre a própria possibilidade (que é a cripta da cripta), no limite mesmo da irredutibilidade do outro e de sua incorporação, instaurase uma complexa determinação: é preciso comer, é preciso comer bem, é preciso comer “o bem”. Lida à luz do artigo sobre a criptoforia, a afirmação de Derrida na entrevista concedida a Jean-Luc Nancy aparece como um modo instigante de pensar a relação entre incorporação e introjeção, como se a invitabilidade da incorporação trouxesse

em seu limite possibilidades introjetivas e trouxesse de volta para o centro desse debate a antropofagia. “Il faut”. Este “é preciso” instaura um viés ético no qual a possibilidade de incorporação se dá no limite da irredutibilidade do outro ao mesmo e, por outro lado, a irredutibilidade desse funcionamento à ideia de sujeito, isto é, como um funcionamento que resiste também à subjetivação. É preciso comer: ato canibal pelo qual internalizamos o outro, mas há sempre um resto ético nessa operação que implica nas frestas pelas quais as pulsões ligadas ao objeto coloquem-no em um funcionamento (lembremos que Nicolas Abraham fala de introjeção de pulsões). Seria possível aqui pensar a resposta de Derrida a Jean-luc Nancy como uma resposta à questão da incoporação? A seqüência na qual ela aparece na entrevista deixa um rastro interessante: 1) primeiro a questão da comunidade inoperante e da comunidade inconfessável vista como o problema do “Quem” sem resposta, do “quem indefinido” aquém e além de um sujeito, pautada pela voz do amigo e no limite mesmo de uma dignidade humana mantida por uma certa inumanidade, “pelo rigor de uma certa inumanidade” ; 2) em seguida a pergunta de Nancy a respeito da questão da animalidade em Heidegger cuja resposta – passando pela negação de uma responsabilidade em relação aos viventes que acompanharia toda a metafísica ocidental – leva Derrida a afirmar a estrutura sacrificial de um certo tipo de discurso que envolve um ato de matar não criminal, “com ingestão, incorporação ou introjeção do cadáver. Operação real, mas também simbólica quando o cadáver é ‘animal’ (e quem acreditaria que nossas culturas são carnívoras porque as proteínas animais são insubstituíveis?), operação simbólica quando o cadáver é ‘humano’”8 Pensando menos na crítica ao humanismo de Heidegger e Levinas (mas assumindo como limite a irredutibilidade do outro ao mesmo), e desdobrando a questão a Abraham e Torok parece que nos deparamos aqui com essa passagem vertiginosa dos modos pelos quais incorporação e introjeção9 se engancham: essa colocação em um 8

Derrida, J. In Points de suspension. Entretiens. Paris: Galilée, 1992, p. 293. Derrida não deixa de enfatizar o mecanismo político da incorporação, reforçando o que dissemos acima, ao afirmar a relação entre o chefe de estado, o político, e o homem branco carnívoro: “o chefe deve ser um comedor de carne (em vistas dele também poder ser [...] ‘simbolicamente’ comido)”. Idem, 295. 9

funcionamento simbólico do ato canibal de “inúmeros modos, infinitamente diferentes, de concepção-apropriação-assimilação do outro” 10 ; mas no qual o assimilado difere, a apropriação se ex-apropria, a incorporação abre possibilidades introjetivas. Nessa generalização da relação de objeto –deixemos de lado neste momento a questão da animalidade em Derrida (menos do que um humanismo, um devir animal do homem, ou o animal como uma vestimenta do humano ( “comme si l’animal restait um homme enveloppé”) – o que salta para o primeiro plano é o imbricamento do ato de comer–falar–interiorizar, a relação de concepção-apropriação-assimilação do outro: “Por tudo o que passa em torno aos orifícios (da oralidade, mas também da orelha, do olho – e de todos os ‘sentidos’ em geral) a metonímia do ‘comer bem’ seria sempre a regra. A questão não é tanto saber se é ‘bom’ ou se está ‘bem’ ‘comer’ o outro e qual outro. Come-se de todo jeito e deixa-se comer por ele. As culturas ditas não antropofágicas praticam a antropofagia simbólica e constroem o seu lugar social mais elevado, seja o sublime de sua moral, de sua política e de seu direito, sobre essa antropofagia. Os vegetarianos também comem animais e mesmo o homem. Eles praticam um outro modo de denegação.”11

A questão crucial se torna o comer bem, sendo o “bem” a questão de determinar a melhor maneira em termos de generosidade e reconhecimento de se relacionar com o outro e de relacionar o outro consigo mesmo, isto é, como se deve comer e partilhar, aprender a comer e a dar de comer: “não se come nunca sozinho, eis a regra do ‘é preciso comer bem’. É uma lei da hospitalidade infinita”12. A questão da comunidade torna-se, portanto, a questão dos muitos modos, infinitamente diferentes, de comer bem13, isto é, os infinitos modos pelos quais o sujeito cede às formas de relação do que é inapropriável, inassimilável, incontornável no outro e que ao mesmo tempo o coloca em um processo infinito de ressignificação, como se estivéssemos o tempo 10

“‘Il faut bien manger”’. Op. Cit. p. 295. Idem 296. 12 Idem 297. 13 Do humano, do animal, do vegetal, das coisas. Ou mais: de uma ética ou política do vivente, mas isso nos levaria longe demais. 11

todo tendo de voltar à questão do vivo – no limiar da morte – para reinstaurar o que no simbólico é carne, boca, pulsão. Derrida aponta, ao sublinhar os orifícios, para o lugar das pulsões, para as zonas erógenas por onde o corpo se apropria – carnal e simbolicamente – do outro. Se voltarmos nesse ponto a “Fors” veremos como esse é o ponto crucial das questões levantadas por Abraham e Torok especialmente no que diz respeito à linguagem como esse não só humano, como um modo apenas - com sua marca, seu traço, sua iterabilidade, sua diferonça – como um modo apenas do funcionamento simbólico no limite ente incorporação e introjeção. A forma pela qual a literalidade do comer se metamorfoseia em metáfora onde interno se diferencia de si-mesmo na forma da relação com o outro. Essa diferença interna que se produz e da qual o sujeito é apenas um resto. A introjeção torna-se então um funcionamento. Dentro do paradigma oral, Derrida assim descreve essa transformação do corpo do outro em linguagem: “A autonomização eventual da linguagem propriamente dita, da linguagem verbal, é compreendida, então limitada desde o início, desde as premissas gerais com o momento oral do processo de introjeção. O vazio da boca começa por dar lugar aos gritos, aos choros, ao ‘preenchimento adiado’, depois o apelo da presença materna, para tender, segundo o progresso da introjeção ou da auto-afeição, ao ‘autopreenchimento fonatório, pela exploração línguo-pálato-glossal do vazio’. Assiste-se assim a uma ‘substituição progressiva parcial’ (eu sublinho): as ‘satisfações da boca, cheia do objeto maternal’ seriam substituídas, parcialmente, por aquelas da boca vazia do mesmo objeto, mas preenchida de palavras endereçadas ao sujeito... Aprender a preencher de palavras o vazio da boca, eis um primeiro paradigma da introjeção... É assim que a absorção alimentar, no sentido próprio, se torna a introjeção no figurado. Operar essa passagem é conseguir que a presença do objeto ceda lugar a uma auto-apreensão de sua ausência. A linguagem que supre essa ausência, figurando a presença,

só pode ser compreendida no seio de uma “comunidade de bocas vazias”14. Algumas questões aqui são cruciais: primeiramente, é claro que essa autonomização das linguagem, essa pura figuração, nunca acontece, ela é sempre parcial, um jogo contínuo de mecanismos de incorporação e a produção de formas de introjeção, os infinitos modos pelos quais os corpos produzem linguagem e negociam pontos de vista. A voz é traço como a escrita – não é una, nem idêntica a si mesma, nem presença– ela é desde sempre diferonça. Na introjeção ressalte-se que a precedência da comunidade (de bocas vazias) – falamos sempre a partir de um outro – desse outro que transforma em sentido, palavras, afetos, gritos, choros e de cuja boca aprendemos a comer juntos, a colocar em um funcionamento o corpo do outro a partir do nosso corpo. A precedência intrínseca da comunidade – nunca se conheceu e é possível que nunca se conheça uma língua que não tenha sido transmitida de uma geração anterior a uma geração posterior, de boca em boca, como proposto pelo próprio Saussure – coloca no horizonte toda a questão do endereçamento, essa resposta a um chamado, esse chamado que diz “o que você quer que eu te queira” ao questionamento desse chamado, do ser chamado ao chamar, ao produzir uma voz que desloca a direção da demanda. Do desejo do outro ao desejo ao outro. Um chamado e um desvio15. “Uma resposta que já demanda”. No funcionamento introjetivo pela borda da linguagem, dentro e fora funcionam como vasos comunicantes, como se a linguagem fosse uma espécie de casca produzida no contato entre o estranho interno e o estranho externo e suas infinitas formas de relação. A soleira da porta no dizer de Agamben.

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In A Casca e o núcleo. Trad. Maria José R. Faria Coracini. São Paulo: Escuta, 1999, pp.245-246. A incorporação também tem a ver com tornar-se surdo à voz, com o ouvir apenas as palavras, um perder-se em meio a palavras mudas. Ao contrário, encher de palavras o vazio da boca é torna-la uma caixa de reverberação instaurada pelo próprio desejo de ouvir. Há uma invocação que supõe que uma “alteridade possa advir, de onde o sujeito, pura possiblidade, seria chamado a tornar-se”. 15

Veja-se que Derrida, ao pressupor a voz do amigo como uma diferença interna à própria voz que recoloca o problema da comunidade “desouvrée”, opera um deslocamento da cripta como modo operacional para um diferir interno anterior à própria voz, como se a incorporação dessa outra voz na voz que ele chama de amizade, delineia-se, assim, no cerne da incorporação outras modalidades introjetivas, inclusive como via possível para se pensar a comunidade. Daí porque a recusa da ideia de sujeito como sutura, fechamento, e a necessidade de sua desconstrução: “é então uma certa clausura – saturada ou suturada – da identidade a si [a cripta, diríamos nós], uma estrutura demasiadamente estreita da identificação a si que confere hoje ao conceito de sujeito seu efeito dogmático”16. A cripta se identifica aqui não só a esse fechamento do sujeito, mas a tudo que ele implica de cálculo, controle, programa, causalidade, imperativo hipotético, racionalidade operacional. A essa calculabilidade política (do consenso econômico mesmo democrático), jurídica (da barganha dos direitos) e moral, só pode se opor uma democracia por vir e – no cerne do que nos interessa aqui – a resposta a um chamado de outra ordem que instaura toda possibilidade de voz no limiar do incalculável e do indecidível, pois, “não há responsabilidade nem decisão éticopolítica que não deva passar pela prova do incalculável ou do indecidível”17. Ao colocar a crítica da cripta instaurando esse lugar de indeterminação Derrida aponta para uma política da incorporação em que as modalidades introjetivas estão continuamente a se fazer e colocam em questão não só ato de sua constituição (e sua própria constituição) como os contextos (mundos) em que se dá seu funcionamento. A questão que se colocaria a partir daí não é a lei ou o contrato, mas o mundo: donde a responsabilidade que a acompanha. Essa responsabilidade com o que carrega de incalculabilidade e indecidibilidade (e também como produção de contexto que nunca é simplesmente dado) atua também pela possibilidade de contato. E o que é contato, pergunta-se Nicolas Abraham, nada mais que a potencialidade de “sentir com”. Não a tolerância que separa cripticamente o interior e o exterior, um eu e um outro, mas a casca que produz essa potência de 16 17

“Il faut…”. Op. Cit. p.287 Idem Ibidem.

diferir que o contato instaura. São os corpos e os mundos (os contextos) que diferem aqui na borda da linguagem.(“A profundidade está na pele”, diria Valéry). Sentir com, o contato, a diferença entre os corpos é o próprio das formas de dissenso compartilhadas, como procuraremos mostrar um pouco adiante. É fazer ruir o próprio solo do comum pela particularidade desse encontro: “o dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É a divisão no núcleo mesmo do mundo sensível que institui a política”18. Esse questionamento do comum seria o próprio da comunidade (sua potência política, de pressionar a política a partir de um outro funcionamento) e a possibilidade de produzir outros mundos a partir desse questionamento: eis o que propomos como um grande desafio antropofágico que a dupla implicação de incorporação e introjeção como uma ética do bem comer deixa entrever.

A ANTROPOFAGIA COMO TEORIA DO LUTO

Se o modo ocidental do luto é constantemente assombrado pela possibilidade de encriptamento e sua forçosa separação entre sujeito e objeto, vimos com Derrida o quanto a alteridade resiste a essa redutibilidade lógica, tanto da subjetivação quanto da “interiorização-idealização”. Esse resto irredutível da alteridade que desloca o lugar do sujeito deixa como rastro não-subjetivável uma dimensão canibal, ou seja, um pedaço do objeto que precisa encontrar outros modos de simbolização. Esse outro modo de lidar com o problema aponta para a conhecida questão do luto impossível, mas que encontra aqui uma formulação de outra ordem, menos reconhecível na figura da melancolia do que na possibilidade de pensarmos a antropofagia como uma teoria do luto19. 18

19

Rancière, J. “O dissenso”. Op. cit. p. 368. Para tanto, atravessamos nós também Oswald de Andrade, a dinâmica do “complexo oral canibal”, o

antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, para pensar essa questão como uma espécie de solução singular para o dilema do luto interminável (o que poderia explicar um pouco o súbito sucesso dessas ideias antropológicas para além da própria antropologia). Trata-se, de pronto, de um luto cultural do próprio lugar dos índios no imaginário ocidental (e especialmente no caso brasileiro) em face de um

Trata-se aqui de uma teoria do luto – que reconhece de pronto um resto não subjetivável, carnal, bucal – que se dá em uma relação na qual a morte, a perda, o outro, se formulam conjuntamente. O gesto é ainda oswaldiano e - com todo o risco da perda da especificidade – há muito o que aprender com os índios sobre o luto como alteridade e formação de comunidade, como tentaremos elaborar aqui a partir de Viveiros de Castro. No contexto deste ensaio, se acompanharmos O nascimento da clínica de Foucault no qual a anatomopatologia desempenha um papel central – isto é, o conhecimento do corpo vivo se produz a partir da relação com o corpo morto – não seria difícil imaginar que a dissecação encontra no gesto antropofágico um fascinante contraponto. Se na anatomopatologia o homem se torna objeto de si mesmo, se ele se torna sujeito e objeto do seu próprio conhecimento, experiência essa que para Foucault está na base da lírica moderna (e de todo o movimento romântico, do poeta que fala de suas emoções e de si mesmo como objeto), a antropofagia repropõe o lugar do morto como sujeito, não mais numa relação sujeito-objeto, mas numa relação em que o objeto se desdobra em um jogo de perspectivas, de pontos de vista, de posições. O que implica uma outra antropologia, outra teoria da enunciação, outra concepção das relações (sic) de objeto. Ou em uma só frase-verso-manifesto: “e sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais”. Uma das grandes questões da antropofagia é a dificuldade de lidar com o corpo depois da morte. O que é um corpo morto? O que é o corpo do morto? No universo ameríndio, como tudo é dotado de subjetividade, essa questão se torna crucial e o ato canibal uma hipersubjetivação daquele que está em vias de morrer20.

passado que se reproduz dentro dos esquemas greco-latinos e judaico-cristãos. Daí porque apenas repropor a forma da relação com esse passado (além de fazer circular outros mitos) já seja uma contribuição fundamental.

20

O que tem um paralelo interessantíssimo com a ideia de morte como quase acontecimento.

Quando Abraham e Torok deslocam a questão do luto para gravitar em torno da questão da cripta, é evidente que a sepultura, o túmulo, o caixão são os correlatos objetivos dessa relação. Uma tumba no seio do ego é uma imagem quase literal desse invólucro que se produz e que fica no lugar do morto para tentar suturar o espaço vazio deixado pela sua perda. Esse fechamento do objeto da perda, claro, é sempre problemático e os infinitos filmes de terror feitos das falhas nessa sutura estão aí como exemplos de como acolher as pulsões que foram (mal) enterradas junto21. Voltaremos depois a esse ponto. A questão é que no mundo ameríndio a morte, o enterro, o luto, estão fortemente ligados à questão da alteridade. Digamos que é para manter a identidade intocada que a forma clássica ocidental do luto como formação críptica se coloca. Mas e quando a própria identidade é pensada a partir do outro e, sobretudo, na complexa situação em que o outro que estabelece a dinâmica subjetiva é também o inimigo que é preciso ao mesmo tempo matar e mantê-lo vivo fora do sujeito? O matador-morto que me vê como inimigo e que, portanto, não me deixa morrer mesmo na morte e que alimenta infinitamente esse dar vida à morte por uma cadeia de pontos de vista em que me vejo pelo olhar do outro que me vê. O trabalho de luto seria o longo processo de encorporação da posição do outro como parte irredutível da pessoa. Como não há outro do outro (um deus que apaziguasse as remissões infinitas) as posições são valências (radicais livres) a serem ocupadas. Esse ex-apropriar-se dessas posições é o ritual mesmo que estamos chamando aqui de trabalho de luto ou simplesmente um modo de lidar com o inimigo, o corpo, morto. Manter o morto como inimigo é uma forma de não apaziguá-lo, isto é, mantê-lo vivo, manter sua alteridade radical (esse devir outro do eu, essa parte não subjetivável, a possibilidade de se ver como outro) como motor da própria vida continuamente ritualizada e reatualizada. Nós escolhemos as criptas, os túmulos, os cemitérios, os museus, as datas comemorativas dos centenários de nascimento e morte. Ficamos do lado de Antígona 21

Haveria toda uma pesquisa a fazer a partir desse ponto de vista dos dráculas, lobisomens, frankensteins que, cada um com sua particularidade, assombram o luto não realizado. Eles são respostas culturais ao monopólio sobre a morte que a religião ainda exerce no mundo contemporâneo.

e transformamos a morte em questão legal: dos homens ou da natureza, particular ou geral é ainda a lei que vem para o primeiro plano. Embora se trate de uma outra ontologia, se fosse possível descrever a questão da cripta a partir do ponto de vista dos índios tal como descrito por Viveiros de Castro, poderíamos dizer que o complexo antropofágico (anti-edípico e anti-narcísico) pensa as relações de objeto ligadas à alteridade como um moto contínuo a impedir que o morto se instale dentro da pessoa, da tribo, o que permite a revitalização infinita das energias ligadas a essa relação. Não existe o vivo e o morto, mas uma relação em que manter o morto vivo é tão vital quanto matar o corpo para que outros mais sutis se produzam. Pode-se estar mais ou menos morto, mais ou menos vivo: há graus de vida. O ritual seria aqui nada mais do que a produção de um amálgama das relações entre o que entendemos por objeto e pulsão a partir de uma linha de fuga na qual o objeto funciona como objeto e como sujeito, corpo e pulsão, presença e ausência. No ritual antropofágico estamos na situação limite de indiscernibilidade entre essas posições e a variação contínua das posições de matador e vítima, devorador e devorado: “o devir do par matador-vítima envolve um confronte de sujeitos – não, certamente, ao modo hegeliano de um combate de consciências, até porque nesta dialética só há mestres -, que trocam pontos de vista e que alterna momentos de subjetivação e de objetivação”22(g.n.) Claro que aqui seria preciso entender de que corpo falamos. Embora seja uma questão fundamental, ela ficará em suspenso. Retenhamos por ora que se trata do corpo como conjunto de afecções. O corpo como uma espécie de roupa: o que se produz em diferentes formas de comer, ver, sentir, cheirar, relacionar-se. Mas a questão pode ficar em suspenso porque o que importa no ritual antropofágico não é a carne do outro, mas o modo como ela se perspectiva – o que se come no ritual antropofágico é a transcendência dos deuses dos outros - poder apropriar-se do lugar onde ele se atualiza como sujeito, especialmente como matador.

22

Viveiros de Castro, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: CasacNaify, 2002, 291.

“No canibalismo amazônico, o que se visa é precisamente a incorporação [veja-se que a palavra é usada no sentido que falamos em encorporação] do aspecto subjetivo do inimigo, que é, por isso, hiper-subjetivado, e não sua dessubjetivação, como é o caso dos corpos animais”23 “Se – por uma lado - morrer é se transformar em animal” 24 , por outro, essa hispersubjetivação do ritual antropofágico aciona o complexo oral canibal como seu duplo enunciativo. O ritual antropofágico agenciado pelo complexo oral canibal atualiza-se pela ecolalia enunciativa das canções. O matador ganha o nome do matador-morto e pode falar a fala de várias pessoas: das vítimas do matador, do matador e dele próprio em um mesmo ato. Em outro contexto, Viveiros de Castro afirmará que “em meu modelo do ‘sacrifício’ canibal tupinambá, os elementos em jogo são o grupo dos devoradores, a vítima e o grupo do inimigo; ‘o morto’ é uma posição vicária assumida alternativa ou sucessivamente pelos três actantes do rito, e é ela que conduz as forças circulantes no processo”25. Como manter o morto vivo senão pelas palavras, a fala, o canto? Falar é um processo de luto (aprender a falar, como vimos, é já uma estrutura sacrificial) que se encena na relação com o outro e com a perda naquilo que Viveiros de Castro chama de “complexo da oralidade canibal”. O prolongamento contínuo do ritual (que muitas vezes durava anos), suas formulações verbais, são a encenação dessa necessidade paradoxal de matar e deixar viver para poder ver a si mesmo como inimigo (e talvez pudéssemos dizer para não encriptar) e produzir a temporalidade da vingança. “No universo Tupinambá o diálogo parecia inverter as posições dos protagonistas. Anchieta se espanta: o cativo ‘mais’ parecia estava para matar os outros que para ser morto’. E Soares de Souza registra essa outra inversão agora temporal: os cativos diziam que já estavam vingados de quem os iriam matar. O combate verbal dizia o ciclo temporal da vingança: o passado da vítima foi o de um matador, o 23

Idem p.392. Ibidem p.395. 25 A inconstância da alma selvagem. Op. Cit. P. 465. Esse falar do outro na própria voz como um discurso indireto livre generalizado instaura uma outra antropologia da linguagem, um outro modo de compreensão de seu funcionamento que lembra, e muito, as propostas de Meschonnic, especialmente em “Crítica do ritmo – uma antropologia histórica da linguagem”. 24

futuro matador será o de uma vítima; a execução iria soldar as mortes passadas às mortes futuras, dando sentido ao tempo (...)”

Essa irresolução é parte fundamental do problema a ponto de transformar-se na própria forma de temporalização que o ritual instaura. Daí porque se tratar menos de estabelecer o que é da ordem do corpo e o que é da ordem da palavra do que se perguntar como questão antropofágica: como o corpo e linguagem produzem pontos de instersecção? Como a linguagem é encorporada? O ritual é o lugar de produção dessas territorializações e desterritorializações entre corpo e linguagem. Ou nomeando de outro modo: um contínuo trabalho de luto. Como desenhar a linha em que se produz a forma dessa relação? Ela se dá em muitos níveis na relação da palavra com a voz que a imanta, da voz com o corpo que a atravessa, do corpo com seus muitos corpos (como a forma humana que ele veste), o corpo a corpo com o inimigo, o morto e a morte, o corpo-morto-canibalizado, o corpo-morto-ritualizado, o corpo tornado o limite, a borda do ato – de matar, matar a morte, conquistar a eternidade pela infinita possibilidade de reatualização da vingança – levá-la até a borda da linguagem como os lábios para o aparelho fonador. Não engolir: partilhar a introjeção26. Habitar o lugar mesmo em que se desmaterializa o corpo e a palavra se encorpora: esse lugar da pura diferença, do inapreensível devir, isto é, a perspectiva. Apropriar-se da forma dessa relação é o seu trabalho, trabalho de luto. A possibilidade do porvir pela memória. Antropofagia: a forma não melancólica da saudade. Devorar, ser devorado é ir até o limite em que se desconstitui o objeto para repropô-lo na dinâmica das pulsões. Repropor a perda não como falta de objeto mas como agenciamento das pulsões que essa perda obriga. A morte como futuro permanente, isto é, matar e morrer acionam o dispositivo da vingança: acionamento contínuo em um jogo retro-prospectivo que faz “enlouquecer o subjétil”. 26

Como lemos no final de “O Mármore e a murta” a realização efetiva do ritual antropofágico foi abondanada por uma certa aversão dos próprios índios: tratava-se mais da possibilidade de tornar coletiva – pelo consumo de uma sopa rala – as possibilidades introjetivas.

Luto: habitar a experiência limite de zonas de indeterminação, de indiscernibilidade, entre morte/vida, corpo/linguagem, etc.. Produzir nessa zona pontos de inflexão que ao mesmo tempo configuram formas de relação e produzem corpos como potência de expansão da particularidade. Isto é, habitar um outro lugar entre o que não está formado (que ainda não é) e a forma (que já não é mais). Colocar em funcionamento o campo de forças, energias, tensores, vetores que essas zonas de indeterminação deixam como resto produtivo. O resto não é o resto, isto é, neste contexto em que a encorporação do outro depende de um sair de si, em que “o exterior estava em processo incessante de interiorização, e o interior não era mais que um movimento para fora”27, o resíduo indigerível longe de uma substância identitária é essa relação ao fora como relação e devir: “o outro não era um espelho, mas um destino” que possibilita repensar o lugar da comunidade pelo modo com que ela coloca em questão o próprio fundamento do que se entende por comum.

A COMUNIDADE COMO DISSENSO

Retomemos um pouco nosso percurso. Partindo da cripta como uma “doença-de-sipara-si” e atravessando-a pelo limiar da incorporação como rito antropofágico, chegamos até um ponto de indiscernibilidade, de variação contínua de posiçõessujeito cujo resto indigerível foi se evidenciando cada vez mais como esse primado do outro, do devir, da relação. Neste ponto, tentaremos desdobrar algumas consequências para pensarmos a noção de comunidade quando a transformação do outro em um “eu” - a cripta - desloca o acento para a possibilidade de um “devir outro do eu”. Isso implica em pensar a antropofagia como trabalho das forças corpóreas sob as formas ou, mais ainda, a zona de indiscernibilidade entre corpo e linguagem que o luto instaura como possibilidade de transformação contínua de posições-sujeito. Nessa zona de indeterminação, implica-se a incalculabilidade e indecibilidade que Derrida propõe como o avesso da cripta e que coloca a ética do comer bem em um 27

A inconstância. Op. Cit. p.320.

movimento que atravessa metáfora/metonímia, interpretação/técnica, língua/fala, mito/rito, totemismo/sacrifício, contínuo/descontínuo: ela é o lugar de onde se torna pensável essa relação, onde uma pode ser trabalhada pela outra (o luto); onde é possível produzir pontos de articulação. O que é o mundo depois do morto estar morto, o que é esse regatear contínuo morte/vida, o que é dar forma a essa relação e destravar o complexo de forças que essas formas implicam? Trata-se de saber qual mundo está em vigor no campo de forças das perspectivas. A dimensão mais fortemente política desse trabalho é colocar em questão o próprio mundo (o contexto para Derrida) e não apenas o “ponto de vista dos índios”. A questão se torna saber qual é o mundo que se ex-apropria da perspectiva (e para nós também do perspectivismo). Por isso o ritual é interminável porque atualiza continuamente outros mundos a essas perspectivas, produzindo a possibilidade mesma de haver ponto de vista. No ponto de inflexão da perspectiva como um ponto de vista a ser ocupado (uma posição-sujeito) e como um ponto de vista produzido pelo corpo e pelos diferentes corpos, a morte torna-se o lugar mesmo de indiferenciação, podendo ser pensada como a possibilidade de variação dos pontos de vista, assim como o luto torna-se uma produção de mundos que sucede a esse “quase” acontecimento28. Voltando a Derrida, seria uma hipótese interessante pensar que no mundo do luto como incorporação do objeto – veja-se que canibais no sentido comum e “selvagem” do termo de engolir literalmente o outro somos nós - o impensável do mundo comum partilhado é a construção de uma cripta e sua tópica identitária que transforma o mundo no segredo inconfessável que divide os lugares de fala e os corpos que falam. O paradigma da introjeção, do “il faut bien manger”, seria a possibilidade mesma de por em questão o mecanismo pelo qual algo do mundo é apreendido como realidade. Seria a possibilidade de divergir, de produzir funcionamentos que atuassem sobre a forma mesma pela qual um pedaço do mundo se faz linguagem. O ritual 28

É nestes termos que em palestra acessada na internet Viveiros de Castro qualifica “a morte como quase acontecimento”.

antropofágico como partilha do dissenso: “as aparências enganam porque nunca se pode estar certo sobre qual é o ponto de vista dominante, isto é, que mundo está em vigor quando se interage com o outro” (g.n.)29. Diante da possibilidade da antropofagia como transformação ritual entre corpo e perspectiva, o que seria a comunidade senão esse lugar de troca de perspectivas, essa possibilidade de habitar a perspectiva do outro por outros corpos, a potência antropofágica da enunciação? Essa possibilidade instauraria o dissenso – a dúvida quanto a saber que mundo está em vigor quando interagimos com o outro – como cerne da vida coletiva: “É isso que chamo dissenso: não um conflito de pontos de vista nem mesmo um conflito pelo reconhecimento, mas um conflito sobre a constituição mesma do mundo comum, sobre o que nele se vê e se ouve, sobre os títulos dos que nele falam para ser ouvidos e sobre a visibilidade dos objetos que nele são designados (...) não podem ser a confrontação de parceiros já constituídos sobre a aplicação de uma regra geral a um caso particular”30 Do cinismo em que vivemos à produção pela fala de um outro mundo sensível (da distorção enunciativa à antropofagia): “a contradição performativa não funciona porque a própria cena da fala é contraditória – [não porque redunde em cinismo, mas porque ela é o] - resultado da conjunção de dois mundos heterogêneos”31. Como diz Derrida o que se costuma chamar de “referência” nada mais é do que uma cripta, o segredo guardado de sua própria ilegibilidade, segredo compartilhado por mais de um grupo constituído em torno de um consenso quanto ao que é a realidade. A realidade, nesse caso, nada mais é do que o duplo externo do segredo. A política da antropofagia seria retirar o segredo e a mentira como cerne da política e reinstaurar uma política do luto – do trabalho antropofágico – de produção de corpos e realidades. 29

Viveiros de Castro, Eduardo. Op. cit. p. 397. Rancière, J. Op. Cit. p.374. 31 Idem p. 377. 30

Em uma frase-devir a ser infinitamente retrabalhada: a comunidade como uma transversalidade ativada pelo modo como os sistemas de forças trabalham os sistemas de formas. Resto indigerível de um eu que não é mais e um mundo que ainda não é. Essa potência de enunciação que ativa corpos pelas perspectivas32 é o modo pelo qual podemos fazer falar o outro pela nossa própria voz, diferindo-a assim a partir dela 32

Pensar o poema a partir dessas questões é um desafio fascinante. Pois na relação com o poema se

colocam todas essas questões submetidas a uma dupla torção: do próprio poema, daquilo que ele faz, seu caráter ambíguo funcionando como objeto e como sujeito. E também como projeto: “subjétil”. O poema tem algo dos artefatos na cultura ameríndia que “possuem essa ontologia interessantemente ambígua: são objetos, mas apontam necessariamente para um sujeito, pois são como ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade não material”. O poema demanda outra ontologia, mais próxima da ambiguidade dos objetos no mundo ameríndio. Ele é objeto e é sujeito: eu o leio, suas operações, sua escritura, sua materialidade (e aí ele é presa); mas enquanto objeto ele produz pontos de vista que como que exigem que eu ceda meu corpo à perspectiva que ele impõe (e se torna predador). Cedo minha voz para a fala do poema e às distintas posições que se pode ocupar. Ler o poema é atravessar esse jogo de perspectivas e produzir outros corpos no corpo a corpo que ele instaura. O poema é já corpo, contexto, mundo mas que enquanto perspectiva produz outros contextos e mundos. Como as vítimas que o matador carrega e que serão reatualizadas pelo matador que o matar. O poema é já em si corpo e linguagem, mas é também virtualidade que clama por vozes que o ritualizem. Sua virtualidade é o ritmo: o ritmo que toda relação com o outro instaura, principalmente no que há de inapreensível nessa relação. “Um outro ritmo e uma outra forma”, como diria Derrida ao fim da entrevista a Nancy, ou o ritmo como “forma do tempo que a linguagem retém do corpo” de Meschonnic. Reclama-se muito hoje que poetas escrevem para poetas, mas a leitura de poesia não seria esse devir do poema?

32

Esse ceder o corpo para a perspectiva do poema, fazê-la escrever-se com o corpo do outro,

leitor, poeta? A leitura é essa operação antropofágica de encorporação do dom do texto. Do debate sobre a autonomia da obra ou sua heteronomia, da leitura imanente à supremacia do leitor, o que talvez não suportamos é essa ambigüidade do poema às vezes objeto, às vezes sujeito, às vezes traço de outras infinitas pulsões. Uma ética da leitura a partir daqui seria a possibilidade de se passear por todos esses pontos de vista, re-encenar seus atos, perseguir sua materialidade até fazê-la falar, re-enunciar seus enunciados, ouvir suas enunciações, imaginar sua cenografia enunciativa, ex-apropriar-se dele pelo

mesma. Uma espécie de discurso indireto livre generalizado e potencializado ao extremo. Nos apropriamos de outras vozes pela nossa própria voz, de falas dentro de falas, de outros modos de dizer “nós”, em uma espécie de ecolalia enunciativa onde as falas reverberam cruzadas no vazio das bocas vazias. Atravessar a voz nas palavras (produzir ritmos), outras vozes na voz (produzir corpos) e outros mundos nesses corpos. Trazer todos esses duplos para o mesmo plano, colocá-los em variação contínua. O vazio como presença da possibilidade mesma de produzir perspectivas, isto é, criar relações entre pontos de vista e os corpos por meio de alianças demoníacas. Partilhar os infinitos modos de comer bem, partilhar o dissenso no chão do comum como vetor da comunidade.

conceito, antropofagicamente colocá-lo em funcionamento. Atravessar o poema pela comunidade e suas formas de dissenso.

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