Luto e Luta na esquerda

Share Embed


Descrição do Produto

Luta   e  Luto   na   Esquerda  por   Daniela   Mutchnik   e  Rodrigo   Gonsalves   (CEII) 

  O  momento  político  atual  do  país  embora  possa  parecer  para  olhares  desatentos  enquanto  tempos  de  mudanças,  tempos  que  acenam  para  algo  fundamentalmente  novo  que  se  desdobra  em nossa realidade ­ sob uma análise um pouco mais dedicada,  passa  a se parecer mais e mais com uma cena reprisada de uma novela ou um remake  de  um  filme  de  horror  e,  mais  sério  do  que  isto,  com  pouquíssimos  elementos  propriamente   novos  em  seu  horizonte.  Mesmo  que  os  personagens  em  questão  possam  parecer  diferentes  dos  tantos  outros  que  encenaram  essa  mesma  cena  ao  longo  da  nossa  história,  os  papéis  apresentados  diante dos olhos dos telespectadores,  nos  é  estranhamente  familiar.  No  18  de  Brumário  de  Louis  Bonaparte,  Marx  já  nos  alertara:  “Hegel  observa  em  uma  de  suas  obras  que  todos  os  fatos  e  personagens  de  grande  importância  na  história  do  mundo  ocorrem,  por  assim  dizer,  duas  vezes.  E  esqueceu­se  de  acrescentar:  a  primeira  vez  como  tragédia,  a  segunda  como  farsa”  (MARX,  2011).  Podemos  tomar  um  suspiro  estoico,  um  severo  olhar  crítico  diante  da  realidade  dada  e  investigarmos  alguns  dos  elementos  fundamentais  da  conjuntura  atual,  que  se  mostra  muito  mais  complexa  do  que  o  maniqueismo  moderno  que  é  moldado   pela   mídia.     Quando  pensamos  justamente  nos  elementos  centrais  da  nossa  cena  política  atual,  que  tem  um  quê  de  cena  de  cinema  hollywoodiano  de  horror  barato,  nessa  farsa  propagandeada  e  vendida  enquanto  tragédia,  enxergamos  muitos  personagens  compondo  esta  complexa  trama  em  seu  campo  político  ­  mas  existem  alguns  pontos  marcantes  que  compõe  esse  cenário  e,  este  artigo  busca  privilegiar  alguns  destes  pontos,  em  especial,  o  que  seria  essa  espécie  de  desnorteamento  do espectro político  dito  de  esquerda  da  atualidade.  Esse  “desnorteio”  parece  ter  uma  relação  importante  com  as  experiências  de  “fracasso”  tão  comumente  atribuída  aos  eventos  do  fim  da  União  Soviética  e  finalmente,  de  suas  decorrentes  implicações  nas  discussões  acerca  da  possibilidade  do  comunismo.  E  mais  especificamente,  investigar  dentro  desta  discussão,  esse  possível “divisor de águas” ideológico das construções da esquerda na  atualidade.     Esse  diagnóstico  embora  não  seja  propriamente  novo,  é  com  certeza  um  diagnóstico  ao  qual  não  está  nem  de  perto  próximo  de  encontrar  seus  limites  e  menos  ainda  suas  consequências.  Aqui  é  importante  falarmos  um  pouco  mais  sobre  essa  espécie  de  fantasma  que  paira  sobre  a  esquerda.  Quando  os  movimentos  dos  anos  70  e  80  convergiam­se  em  direção  de  um  fervilhar  do  momento,  uma  situação  que  parecia  estar  constituindo  força,  provocando  uma  abertura  de  espaço  para  uma transformação 

radical  da  realidade  social  em  parâmetros  mundiais,  até  então,  nunca  vista.  Com  o  caminhar  da  marcha  da  história,  vimos  um  colapso  e  mais  do  que  isto,  uma  triste  certeza:  o  totalitarismo.  Essa  certeza  histórica  da  esquerda,  elemento  central  da  experiência  ideológica  fora experimentada, mas parece que ainda não se dá como uma  questão  encerrada,  não  vem  com  ar  de  lição  superada  ­  há  algo  ainda  não  elaborado  desta   história.     Se  antes  dos  anos  80,  o  cenário  era  das  discussões  reflexivas,  do  trânsito  dos  movimentos sindicais que se expandiam, forças táticas em nome de um diálogo comum  ­  uma  voz  consonante  que  ecoava  de  distintas  partes  do  mundo  ­  convocando  um  futuro  radicalmente  distinto,  as  muitas  promessas  que  encontraríamos  concretizadas  pela  marcha,  o  que  emergiu  foi  um  amargo  ponto  de  certeza.  A  certeza  daquilo  que  qualquer  participante  do  espectro  ideológico,  nem  que  minimamente,  dito  de  esquerda  não  quer  se  identificar.  A  certeza  daquilo  que não se quer, foi um dos elementos chave  que  marcou o final dos anos 80. Este marco o simbólico da profundidade desta certeza,  que  parece  a  profundidade  de  um  abismo,  que  causa  vertigem  ao  não  enxergarmos  o  seu  fim  ­  se  demonstra  não  pela  quantidade  de  posicionamentos  dos  grandes  pensadores  radicais  da  esquerda  em  seus  profundos  questionamentos  acerca  do  episódio  em  questão  mas  sim,  na  árida  profundidade  de  seu  silêncio.  Os  radicais  pensadores  que  nesta  mesma  época,  estavam  se  debruçando  sobre  a  psicanálise  e  o  marxismo,  que  se levantaram prontamente contra todo o terror materializado nas ações  da  ascensão  do  nazismo,  se  calaram  diante  do  horror  provocado  pelas  notícias  da  queda  da  União  Soviética.  Como  coloca  Zizek,  salvo  Marcuse  em  alguns  poucos  parágrafos,  são  raros  os  momentos  que  os  famosos  frankfurtianos  se  pronunciam  diante  destes  acontecimentos.  Algo  da  dita  esquerda,  ali,  se  transformara  e  fundamentalmente,   não   mais   poderia   ser   a  mesma:   este   é  o  custo   de   uma   certeza.      Quando  T.J.  Clark,   versa   sobre  uma  esquerda  sem  futuro,  o  que  está  em  resumo  sendo  colocado  em  questão  é do problemático lugar da investigação política­ideológica  da  esquerda  que,  de  certo  modo,  ávidamente sempre sabia dos próximos passos, que  sempre  apontava  o  plano  geral,  que  possuia  uma  espécie  de  teoria  de  sujeito  revolucionário,  que  se  vangloria  de  ser  a  avant­guart  (vanguarda)  do  pensamento  político,  passa  depois  deste  episódio  histórico  a  encontrar  uma  nova  dificuldade.  Uma  dificuldade  que  sabiamente,  já  havia  sido  proposta  por  Lenin  e  que,  hoje  é  levada  de  maneira  seríssima  pelos  desenvolvimentos  de  Badiou:  as  condições  subjetivas  para  a  revolução,  ainda  não  estavam  lá.  E  a  história,  contou  justamente  o  marco  deste  capítulo.  Entretanto,  se  tomarmos  que  os  pensadores  da  escola  de  Frankfurt,  tiveram  uma  intuição  riquíssima  na  inversão  da décima primeira tese à Feuerbach de Marx (op.  cit,  1984)  e  também,  em  sua  articulação  com  outros  campos,  mesmo  que  de  maneira 

crítica,  como  por  exemplo  com  a  psicanálise:  é  também  possível  inferirmos  que,  filosoficamente,  eles  não  levaram de maneira radical as consequências das conclusões  de   suas   próprias   teses.    A  retomada  da  aposta  no  pensamento,  quando  a  prática  e  a  transformação,  não  permitiram  os  fins  revolucionários  da  derrubada  do  capitalismo,  foi  o  passo  dado  pela  primeira  geração  dos  Frankfurtianos,  uma  lição  aprendida  e  reformulada  por  pensadores  contemporâneos,  como  por  exemplo  Zizek,  Badiou,  Rancière,  que  diferente  dos  subsequentes  pensadores  da  própria  Escola,  encontram  formulações  diametralmente  distintas  e  radicais  para  a  atualidade. Encontramos nestes pensadores  elementos  investigativos  da  idéia,  sem  temer  discutir  o  fracasso,  sem  se  furtarem  em  pensar  a  União  Soviética  e,  menos  ainda  sem  problemas  em  questionar  a  esquerda  atual.  A  preocupação  central  do  horizonte  político  do  pensamento  destes  autores  é  clara,  trata­se  do  compromisso  com  a  hipótese  comunista.  Sendo  assim,  nos  valendo  da  leitura  de  Zizek  acerca  da  melancolia  e  o  ato,  podemos  lançar  luz  à  nossa questão  da   esquerda:     “O  “grande  Outro”  lacaniano  não  designa  apenas  as  regras  simbólicas  explicitas  que  regulam  a  interação  social,  mas  também  a  teia  intricada  de  regras  “implícitas”  não  escritas .  Uma  regra  deste  tipo,  na  academia  radical  da  atualidade,  diz  respeito  à  relação  entre  luto  e  melancolia.  Na  nossa  época  permissiva,  em  que  a  própria  transgressão  é  apropriada  ­  e  até  encorajada  ­  pelas  instituições  dominantes,  a  doxa  predominante  apresenta­se  em  regra  como  uma  transgressão  subversiva  ­  se  quisermos  identificar  a  tendência  intelectual  e  hegemônica,  devemos  simplesmente  procurar  a  tendência  que  afirma  representar  uma ameaça sem precedentes à estrutura  hegemônica  de  poder.  Com  respeito  ao  luto  e  a  melancolia,  a  doxa  predominante  é  a  seguinte:  Freud  opôs  o  luto  “normal”  (aceitação  bem­sucedida  da  perda)  à  melancolia  “patológica”  (em  que  o  sujeito  persiste  em  sua  identificação  narcisista  com  o  objeto  perdido).  Contra  Freud,  devemos  afirmar  a  primazia  conceitual   e  ética  da  melancolia:  no  processo  de  perda,  há  sempre  um  resto  que  não  pode  ser  integrado  pelo  trabalho  do  luto,  e  a  fidelidade  definitiva  é  a  fidelidade  ao  resto.  O  luto  é  um  tipo  de  traição,  o  “segundo  assassinato”  do  objeto  (perdido),  enquanto  o  sujeito  melancólico  permanece  fiel  ao  objeto  perdido,  recusando­se  a  renunciar  o  seu  apego  a  ele”  (Zizek,  p.101.,  2012)     Temos  nesta  breve  passagem  uma  articulação  importante  acerca  do  luto e melancolia,  ferramentas  originalmente  psicanalíticas,  que  mostram­se  vitais  para  pensarmos  o  caráter  da  instituição  política,  a  dificuldade  enfrentada  por alguns indivíduos com o dito  “fracasso”,  e  finalmente, com o enfrentamento deste fantasma que paira sob o espectro 

ideológico  da  esquerda.  Um  primeiro  questionamento  que  deveríamos  sustentar  é:  o  que  é  a  elaboração  de  um  luto,  se  esta  elaboração  se  fizer  em  nome da adaptação do  indivíduo,  resignando­o  ao  social  neo­liberalista,  logo  redirecionando­o  em  seu  próprio  sofrimento  e  delegando­o  para  uma  outra  instância?  Por  certo,  uma  espécie  de  luto  sem  filtro  crítico,  ou  então,  um  luto  em  termos  clássicos  na  psicanálise  é  eticamente  problemático,  pois  como  acena  Zizek:  “a  melancolia  oculta  o  fato  de  que  o  objeto  é  faltoso  desde o princípio, que seu surgimento coincide com sua falta, que o objeto  nada  mais  é  que  a  positivação  de  um  vazio/falta,  um  ente  puramente  anamórfico  que  não  existe  ”em  si””  …  “em  suma,  o  enlutado  faz  luto  pelo  objeto  perdido  e  “mata­o  pela  segunda  vez”  por  intermédio  da  simbolização  de  sua  perda;  já  o  melancólico  não  é  simplesmente  aquele  que  é  incapaz  de  renunciar  ao  objeto,  ao  contrário:  ele  mata  o  objeto  uma  segunda  vez  (trata­o  como  perda)  antes  que  o  objeto  seja  perdido  de fato ”  (Zizek,  p.102,  2012).  Desta  maneira,  observamos  por  esta  articulação  do  luto  e  melancolia,  alguns  elementos  dinâmicos  correlatos  ao  cinismo  político  e  ao  niilismo  passivo,  que  se  presentifica  naqueles  antigos  militantes  descrentes  na  viabilidade  da  esquerda,  classicamente  nostálgicos  pelo  esquerdismo  e  também,  daqueles  que  dão  tratamento  de  perda  nestes  “fracassos”;  entretanto,  o  que temos nessa articulação são  também,  os  passos  eficazes  para  uma  reflexão  diferente  desta  situação,  que  situa  o  Vazio  em  seu  núcleo,  logo,  permitindo  um  encontro  em  outros  termos  com  este  antigo  fantasma   ­  justamente,   na   aposta   da   criação   do   novo   da   hipótese   comunista.      Aqui  cabe  outro  ponto  vital  desta  discussão  está  na  resignificação  de  Badiou  (2012)  deste  “fracasso”,  ele  diz:  “Muitas  serviram  de  ponto  de  partida  para  desenvolvimentos  matemáticos  de  longuíssimo  alcance,  embora  não  tenham  conseguido  resolver  o  problema  em  si.  Mas  foi  fundamental  que  a  hipótese  não  tenha  sido  abandonada  durante  os  três  séculos  em  que  foi  impossível  demonstrá­la.  A  fecundidade  desses  fracassos,  de sua análise, de suas consequências, estimulou a vida matemática. Nesse  sentido,  o  fracasso,  desde  que  não  provoque  o  abandono  da  hipótese,  é  apenas  a  história  da  justificação  dessa  hipótese.”  Por  conseguinte,  compreendemos  que  o  que  está,  de  fato,  sendo  colocado  em  questão  diz  também  da experiência subjetiva. Diz de  alguns  elementos  hoje  componentes  centrais  do  cenário  ideológico  da  esquerda,  dos  seus  desgastes  e  dificuldades,  tropeços,  e  para  além  disto,  como  elementos  da  psicanálise  possuem  um  aporte  teórico  para  orientar  essa  espécie  de  “preparação  subjetiva”  ou  até  mesmo  desta  “implicação  subjetiva”,  no  trabalho  dessa resignificação  e   preparação   das   condições   de   um   possível   Novo   no   cenário   político.     Fruto desta equação, temos o que seria a possibilidade de pensar um modo de luta que  não  tampone  automaticamente  o  Vazio,  que  não  se  obriga  sempre  a  colocar  um  band­aid  sobre  a  angústia.  Há  uma  exigência  de  reinventar  a  modalidade  de  luta,  que 

hoje  vai  em  linha  com  a  potência  transformadora  da  ação  do  pensar  e  da  crítica  ideológica,  sem  se  cristalizar  ou  petrificar  frente  às  dificuldades  da  atualidade.  Uma  modalidade  de  luta  advinda  da  Idéia,  que  consiga  pensar  na  possibilidade  de  organização,  sem  se aterrorizar com o fantasma de Stalin brotando no canto da sala de  reuniões  dos  coletivos  ­  justamente,  por  se  mostrarem  abertos  a  pensá­lo.  E  gostaríamos  de  encerrarmos  essa  fala,  citando  a  obra  de  Badiou:  “Em  primeiro  lugar,  dar  uma  sólida  existência  subjetiva  à  hipótese  comunista.  Essa  é  a  tarefa  que  nossa  assembleia  de  hoje  cumpre  à  sua  maneira.  E,  eu  quero  dizer,  é  uma  tarefa  exaltante.  Combinando  as  construções  do  pensamento,  que  são  sempre  globais  e  universais,  e  as  experimentações  de  fragmentos  de  verdades,  que  são  locais  e  singulares,  mas  universalmente  transmissíveis,  podemos  garantir  a  nova  existência  da  hipótese  comunista,  ou  melhor,  da  Ideia  comunista,  nas  consciências  individuais.  Podemos  inaugurar   o  terceiro   período   de   existência   dessa   Ideia.   Nós   podemos,   logo   devemos”.       Referências   Bibliográficas     BADIOU,   A.   A  hipótese   comunista.   Boitempo,   São   Paulo,   2012.   FREUD,   S.   Luto   e  Melancolia.   Cosac   Naify.   São   Paulo,   2011.  MARX,  K.  A  ideologia  alemã:  1.  capítulo  seguido  das  teses  sobre  Feuerbach.  São  Paulo:  Moraes,   1984.  MARX,   K.   O  18   de   Brumário   de   Louis   Bonaparte .  Editora   Boitempo.   São   Paulo,   2011.   MARX,   Karl.   Sobre   a  questão   Judaica.   São   Paulo,   Editora   Boitempo,   2010.  ZIZEK,   S.   Alguém   disse   totalitarismo?.   São   Paulo,   2011.   ZIZEK,   S.   O  mapa   da   ideologia.   ???.   São   Paulo,   1994.   ZIZEK,   S.   Primeiro   como   tragédia   e  depois   como   farsa.   Boitempo.   São   Paulo,   2013.  

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.