“Luuanda”: uma casa na areia, fundada sobre a rocha

July 7, 2017 | Autor: Francisco Topa | Categoria: Literatura Angolana
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In VIEIRA, José Luandino – Luuanda. 3.ª ed., comemorativa dos 25 anos da 1.ª edição. Lisboa: Caminho, 2015. ISBN 9789722127424. pp. 177-186.

Luuanda: uma casa na areia, fundada sobre a rocha

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O material gráfico incluído no presente volume constitui (mais) uma excelente surpresa da atribulada história de Luuanda, cujo cinquentenário continuamos a celebrar neste ano de 2015. Para além de um jogo de provas, já muito limpo, da 1.ª edição (a do jornal luandense ABC, lançada em 1964), esse material engloba o datiloscrito da 2.ª e definitiva edição (a de 1972, de Edições 70) e ainda – com o sorriso trocista do acaso – uma espécie de versão intermédia representada pelas emendas feitas por José Luandino Vieira sobre um exemplar da edição contrafeita de 1965. Dos três conjuntos é este o mais interessante, na medida em que nos permite entrever a forma como o seu autor enfrentou um problema que, a avaliar pelos dados que o material nos faculta, deve ter representado para ele uma espécie de segundo Rubicão. Como se vê pela folha de rosto, essa revisão foi feita em 1968, ano em que Luandino estava preso no oficialmente designado Campo de Trabalho de Chão Bom, em Tarrafal de Santiago, Cabo Verde. Olhando de longe para o trabalho, a primeira coisa que se nota é o cuidado com o aspeto gráfico: as expressões a suprimir esmeradamente cobertas a marcador negro, as palavras a introduzir escritas com letra bem desenhada, a modificação da ordem dos elementos na frase assinalada quase a regra e esquadro. Em lugar de folhas muito riscadas e cheias de garatujas, assustadoras para o tipógrafo e para o crítico genético, temos uma sucessão de páginas ordenadamente pintadas, numa intensidade que vai diminuindo à medida que nos afastamos do início, como se o seu autor tivesse cedido ao cansaço ou se tivesse rendido à versão original. E essa constitui portanto a segunda observação que surge quando se olha de longe: a média de 15 alterações por página do começo reduz-se para uma ou duas quando nos aproximamos do fim. -1-

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As restantes observações já requerem um olhar mais próximo e mais paciente: trata-se de ver em concreto aquilo em que Luandino decidiu mexer, o que implica a consideração do que estava antes, mas também aquilo que acabou por ficar na versão definitiva dada ao prelo quatro anos depois, em 1972. E ambos os olhares – para trás e para a frente – trazem conclusões surpreendentes: o primeiro revela que a maioria das muitas centenas de alterações é de tipo por assim dizer menor, incidindo em regências verbais e questões de ordem gramatical; o segundo mostra que elas foram maioritariamente abandonadas. A título exemplificativo, vejamos a seguinte passagem da primeira estória: 1.ª edição: Mas ele já tinha vestido outra vez a camisa, bonita camisa amarela e florida, todas as miúdas olhavam em Zeca Santos quando lhe usava, diziam o rapaz era um galã e outras coisas; virado para vavó Xíxi, empurroulhe devagar para ir no caixote dela, depois, sentando o comprido corpo magro na mesa pequena, começou falar, triste: Na revisão de 1968, Luandino efetua oito alterações, quatro delas relativas sobretudo a questões gramaticais: olhavam em Zeca Santos] olhavam Zeca Santos1 quando lhe usava] quando a usava empurrou-lhe] empurrou-a para ir no caixote dela,] para a sentar no caixote dela; As restantes emendas têm um valor mais estilístico: camisa amarela e florida] camisa de cor amarela virado para vavó Xíxi] Virado para a avó sentando o comprido corpo magro] com o comprido corpo magro começou falar, triste:] começou falar triste, disse:

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Aqui como nos casos seguintes o parênteses reto separa as duas versões, neste caso a de 1964 e a emenda de 1968.

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Na versão definitiva de 1972, a passagem foi objeto da operação sintagmática da supressão: introduzindo um ponto final depois de camisa, Luandino eliminou tudo o que se seguia (bonita camisa amarela e florida, todas as miúdas olhavam em Zeca Santos quando lhe usava, diziam o rapaz era um galã e outras coisas;). Além disso, fez duas outras alterações, uma por substituição, outra por adição, esta última resultante da revisão de 1968: caixote dela, depois, sentando] caixote dela e sentando começou falar, triste:] começou falar triste, disse: Sintetizando o que acabámos de ver, pode dizer-se que, em pouco mais de cinco linhas de texto da edição princeps, Luandino fez, quatro anos depois, oito emendas, que viria a abandonar na sua quase totalidade passado outro quadriénio, optando pela rasura de cerca de duas linhas. Que significa isto? Não é fácil responder, até porque não dispomos dos elementos todos, desconhecendo nomeadamente as condições que rodearam as revisões de 1968 e de 1972. Podemos contudo reconhecer que o exemplo mostra um padrão que consiste no seguinte: muitas das emendas de 1968 são abandonadas em 1972; esta, no essencial, confirma a edição original, eliminando contudo elementos acessórios, sobretudo advérbios e complementos circunstanciais de vário tipo. Apesar desse padrão, o relacionamento entre as três versões de Luuanda – a de 1964, a de 1968 e a de 1972 – comporta muitas possibilidades, mostrando assim a complexidade do processo de (re)criação. Vejamos um outro exemplo, relativo ao fragmento final do primeiro período do livro: 1.ª edição: ventos dos jipes das patrulhas passando na zuna, no meio das ruas e becos que a desarrumação das cubatas desenhava à toa. Sobre este enunciado, Luandino, na revisão de 1968, começa por fazer três emendas, todas envolvendo substituição de lexemas: passando na zuna] zunindo no meio das] no meio de a desarrumação] a arrumação -3-

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A última modificação acaba contudo por ser anulada, ainda em 1968, dado que o prefixo des- aparece acrescentado na entrelinha superior. Na versão definitiva de 1972, são incorporadas as duas primeiras emendas e é modificada a lição abandona da terceira: que a desarrumação das cubatas desenhava à toa.] de cubatas arrumadas à toa. Contra o que possa parecer à primeira vista, estas alterações têm bastante significado e mostram o cuidado posto por Luandino Vieira na revisão de Luuanda. De facto, no contexto em que é usado, zunindo mantém o significado de velocidade da expressão angolana na zuna, mas acentua uma dimensão auditiva que, identificando a movimentação da guarda com a de um inseto, reforça a impressão de incómodo e mesmo de agressão experimentada pelos habitantes do musseque sujeitos a estes raides. Também a última emenda revela uma diferente perceção da realidade que está a ser descrita: na versão inicial, o desenho à toa das ruas e becos resultava da desarrumação das cubatas; na versão de 1972, as cubatas estão arrumadas, ainda que à toa, o que significa que há um método na desordem. Por outro lado, muda a forma de representar os raides policiais, dado que os jipes zunem «no meio de ruas e becos, de cubatas arrumadas à toa», sugerindo-se assim a intrusão da polícia nas próprias casas dos habitantes do musseque. Em muitos outros casos, a sugestão contida na revisão de 1968 acaba por não ser aproveitada na edição de 1972. Veja-se esta ocorrência, ainda da estória «Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos»: 1.ª edição: os sapatos furados puseram um barulho mole no barro do chão Na revisão de 1968 ocorre a seguinte substituição: puseram] sugaram Em 1972, a proposta anterior é desconsiderada, voltando-se à forma mais popular de puseram e acentuando-se a notação realista do chão da cubata: -4-

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no barro do chão] no chão de barro Não faltam contudo exemplos em que a revisão de 1968 aprofunda a linguagem literária criada por Luandino, havendo assim lugar ao seu acolhimento na 2.ª edição do livro. Vejamos um: 1.ª edição: [os pardais vão] apanhar os jingunas para encher os papos Na revisão de 1968, Luandino corrige a gralha de género e, com uma simples mudança de preposição, imprime no enunciado o ponto de vista dos pardais, mostrando magistralmente a plasticidade da língua: os jingunas para encher os papos] as jingunas de encher os papos Outras vezes, o aproveitamento da emenda vem acompanhado de novas modificações, sobretudo supressões. Veja-se a seguinte ocorrência: 1.ª edição: [Maneco a comer] tudo isso arreganhava a barriga de Zeca Santos Na revisão de 1968, Luandino substitui apenas o verbo: arreganhava] desafiava Quatro anos depois, mantém-se a nova forma verbal, mas muda o objeto, desfazendo-se a sinédoque e acentuando-se assim o sofrimento da personagem: arreganhava a barriga de Zeca Santos] desafiava Zeca Santos Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas creio que o essencial já ficou claro: embora numerosas, as emendas – tanto as de 1968 como as de 1972 – não modificam de forma substancial o texto original. Como já foi observado por Pires

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Laranjeira2, Luandino preocupou-se sobretudo em eliminar o excedentário, aprofundando algumas sugestões da primeira versão. É o caso da representação verbal da gravidez. Na 1.ª edição, Miguel – o marido de Zefa da «Estória da galinha e do ovo» –, referindo-se a Bina, diz que a senhora está prenha. Na revisão de 1968, que passará para a 2.ª edição, o predicativo do sujeito é substituído pelo belíssimo concebida. Noutro momento da estória, Bina declara: Muitas de vocês que pariram já. Quatro anos depois, o verbo é substituído por uma expressiva metonímia perifrástica, mantida na edição definitiva: tiveram suas barrigas. Num caso e noutro, creio que estamos perante o mesmo processo: uma espécie de afinar da tradução. Explico-me: prenha e parir, embora estejam provavelmente adequados à realidade social das personagens, são percebidos fora desse meio com um valor diferente, como termos grosseiros, o que terá forçado o autor a buscar outras expressões que, mantendo o tom concreto e preciso das palavras originais, conservassem também o valor que têm no meio social em causa. A par das mudanças no texto das três histórias, houve outras importantes alterações. Parte delas já foi comentada pelas Prof.as Laura Padilha e Rita Chaves no texto de introdução a este volume e diz respeito sobretudo a elementos de tipo paratextual. A outra alteração é de tipo estrutural e acabou por não se concretizar: na versão de 1968, na página final correspondente ao índice, definiu Luandino Vieira que a nova versão de Luuanda seria algo de muito diferente. Compor-se-ia de oito capítulos, assim intitulados: 1 - Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos 2 - O romance da menina Santa 3 - Mestre Gil, o Amaral e o barril 4 - O último quinzar do Maculusso 5 - Estória do ladrão e do papagaio 6 - Estória da galinha e do ovo 7 - O regresso do arcanjo Gabriel 8 - João Vêncio: os seus amores Nesta proposta – escrita a lápis e anulada por uma cruz que atravessa a lista de novas estórias –, são acrescentados cinco textos que acabariam por integrar dois outros livros: Velhas Estórias, publicado em 1974, e João Vêncio: os seus amores, 2 Na comunicação – prestes a sair em volume coletivo – que apresentou no colóquio De ‘Luuanda’ (1964) a Luandino (2014): veredas, realizado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a 10 e 11 de novembro do ano passado.

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dado ao prelo em 1979 mas escrito precisamente em 1968. Este último corresponde ao capítulo 8 da lista acima apresentada, ao passo que Velhas Estórias inclui os restantes quatro, embora com títulos um pouco diferentes: Estória da menina Santa; Muadiê Gil, o Sobral e o barril; O último quinzar do Makulusu; Manana, Mariana, Naninha (neste último caso a correspondência é hipotética, não sendo certo que se trate da estória identificada com o título «O regresso do arcanjo Gabriel»). Uma forma de interpretar este esboço de 1968 para a nova edição de Luuanda seria considerar que se tratava do retomar do plano inicial, sinalizado na advertência contida na 1.ª edição: «A matéria deste livro faz parte de um conjunto de cerca de uma dezena de estórias, a publicar, sob o título “Luuanda”. Esta edição de apenas três das estórias, é devida ao regulamento do prémio “D. Maria José Abrantes Mota Veiga”, com que as mesmas foram distinguidas.». A hipótese é contudo desmentida por aquilo que sabemos sobre as datas de escrita dos textos: as quatro narrativas de Velhas Estórias são de 1965-66, ao passo que João Vêncio, como já foi dito, data de 1968. Tratava-se pois de um projeto novo, para uma nova Luuanda. Não sabendo o que terá levado o autor a voltar atrás, resta-nos a especulação, com base nos elementos disponíveis: o confronto das versões de Luuanda de 1964, 1968 e 1972 revela que Luandino chegou a ter dúvidas e hesitou sobre o caminho a seguir, mas que acabou por optar pela continuidade da travessia que iniciara com a 1.ª edição. A integração das cinco novas estórias não teria posto em causa essa opção, mas teria de algum modo destruído a dimensão monumental, histórica, da travessia. Notando que Luuanda tinha adquirido vida própria, Luandino Vieira terse-á visto forçado a aceitar que a obra já não era sua. Ao reconhecê-lo, percebeu que atravessara pela segunda vez o Rubicão (ou o Kuanza) e que a casa que discreta e modestamente julgara ter erguido no chão de areia do musseque estava afinal construída sobre a rocha. E que acontecera com ela o que se lê no Evangelho de Mateus: «Caiu a chuva, engrossaram os rios, sopraram os ventos contra aquela casa; mas não caiu, porque estava fundada sobre a rocha.».

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