“M de Mérito ou M de Masculino?”, Público, 14 de Fevereiro 2014, p. 49.

July 13, 2017 | Autor: F. Lowndes Vicente | Categoria: Gender Studies
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PÚBLICO, SEX 14 FEV 2014 | 49

M de mérito ou M de masculino?

M

Indianos

Debate Mulheres e opinião pública ais uma grande conferência sobre o país. Mais uma grande conferência sobre o país onde a palavra é dada apenas a homens: Olhares Cruzados sobre Portugal (29 Jan.-19 Fev. 2014). Mais um grande ciclo de conferências e debates onde os organizadores — desta vez uma universidade de prestígio, a Universidade Católica, e um jornal de referência, o PÚBLICO — consideram “normal” não terem uma única mulher entre os 12 ilustres convidados. Provavelmente nem repararam, tal é a naturalização da ausência de mulheres no espaço público. Os oradores e moderadores são oriundos de vários mundos, da política à economia, da religião à ciência. São do género masculino. A escassez de mulheres em conferências tem sido recorrente. Foi assim nas conferências recentemente organizadas pelo jornal Expresso, pela Fundação de Serralves, pela Câmara Municipal de Cascais. A lista é longa e ilustra um fenómeno muito mais difuso. O acesso à voz pública em Portugal — na escrita de colunas de opinião em jornais, nos programas de televisão de comentário de actualidade, ou nas grandes conferências que pretendem, e bem, promover uma reflexão sobre o país — continua a ser dominantemente masculino. Os dados apresentados num estudo de Rita Figueiras, investigadora da Universidade Católica Portuguesa, mostram que a percentagem de mulheres é residual: em 2005, 87% dos comentadores eram homens e apenas 13% eram mulheres. Quase dez anos depois, mudou alguma coisa? O que está em causa não é o “mérito” de quem é escolhido. O que está em causa é o processo, consciente e inconsciente, que leva a que a voz masculina seja a voz pública dominante. O que está em causa é aquilo que esta e muitas outras conferências afirmam sem o dizer — que o mérito ainda é considerado um atributo masculino e que a consciência de género das nossas elites — homens, mas tantas vezes também mulheres — é, no geral, incipiente, quando não mesmo inexistente. O mérito e a qualidade serviram, historicamente, para excluir as mulheres do espaço público de uma forma assumida. Na Europa do século XIX (como continua a acontecer em muitos lugares do mundo em 2014), inúmeras instituições, tais como as universidades, impediam formalmente a entrada de mulheres, e o desempenho de inúmeras profissões estava vedado a pessoas do sexo feminino. Hoje, em Portugal, não existem leis que discriminem as mulheres. Mas sob a igualdade “oficial” esconde-se a desigualdade informal que, por não ser assumida, é mais difícil de identificar.

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Debate Economia e culturas José Miguel Pinto dos Santos Quando é que os espaços de opinião pública vão começar a incluir, espontaneamente, mulheres? Hoje, o mérito continua a servir para excluir as mulheres, mas de uma outra forma. Os argumentos de justificação são quase sempre os mesmos. Por um lado, “o nosso critério é somente o do mérito e nada tem nada a ver com questões de género. Assim, o facto de só escolhermos homens foi apenas uma coincidência ou um acaso”. Por outro lado, “existem mais homens notáveis do que mulheres”. No entanto, se fosse realmente o mérito o critério a imperar, então haveria (muitas) mais mulheres a falar nas grandes conferências que hoje as instituições organizam como uma forma de consolidar o seu prestígio na sociedade portuguesa. Quanto ao argumento de que existem “mais homens”, trata-se de um círculo vicioso que também já foi amplamente estudado: são mais conhecidos porque são mais escolhidos, são mais escolhidos porque são mais conhecidos. Saberão aqueles que escolhem — para as colunas dos jornais, para os painéis televisivos, para as grandes conferências — que a maioria dos “doutorados” em Portugal são “doutoradas”? Os “olhares femininos” não são necessariamente diferentes dos “olhares masculinos”. A diversidade dos olhares femininos é tanta como a dos masculinos. O gesto político e simbólico de uma escolha feita apenas no masculino é aquilo que questionamos. O que é que revela sobre um Portugal onde este ano se celebram os 40 anos do 25 de Abril? O que é que revela sobre um país que há quase 40 anos garantiu na sua Constituição a não-discriminação das mulheres? Revela que continuam a subsistir muitos sinais de exclusão evidente face às mulheres. Paradoxal é o facto desta exclusão das mulheres ser levada a cabo pelas mesmas elites de quem se esperaria uma maior consciência de género e um maior sentido crítico em relação à naturalização do sexismo. Quando é que os espaços de opinião pública vão começar a incluir, espontaneamente, mulheres? Quando é que a ausência de mulheres se tornará incómoda e inadequada a conferências que pretendem promover o diálogo, a democracia, e os direitos sociais, políticos e humanos? Só quando existirem muitos homens e

mulheres incomodados com a ausência de vozes femininas nos mais prestigiados e influentes espaços da opinião pública; só quando um número substancial de pessoas (nomeadamente as elites intelectuais, políticas, académicas, económicas) considere que este é um sinal de uma cultura democrática deficitária; só quando a crítica ao sistema invisível de prioridade masculina também vier de dentro — daqueles que têm acesso à palavra e não são mulheres — é que poderá aumentar a consciência em relação ao significado político, social e cultural destas escolhas. Só quando se tiver presente que o predomínio das vozes masculinas conduz à naturalização do sexismo, é que as desigualdades de género deixarão de existir no espaço público português. Ana Nunes de Almeida (socióloga, ICS-ULisboa), Ângela Barreto Xavier (historiadora, ICS-ULisboa), Anne Cova (historiadora, ICS-ULisboa), António Araújo (historiador e jurista), António Costa Pinto (politólogo, ICS-ULisboa), Clara Raposo (professora de Finanças, ISEG-ULisboa), Cícero Pereira (psicólogo social, ICS-ULisboa), Cristiana Bastos (antropóloga, ICS-ULisboa), Cristina Nogueira da Silva (historiadora, FD-Univ. Nova de Lisboa), Elsa Peralta (antropóloga, ICS-ULisboa), Elizabete Azevedo-Harman (politóloga, Chatham House), Filipa Lowndes Vicente (historiadora, ICS-ULisboa), Filipe Carreira da Silva (sociólogo, ICS-ULisboa), João Ferrão (geógrafo, ICS-ULisboa), João Pedro George (sociólogo, Univ. Nova de Lisboa), Jorge Vala (psicólogo social, ICS-ULisboa), Karin Wall (socióloga, ICS-ULisboa), Luísa Schmidt (socióloga, ICS-ULisboa), Luis Mah (politólogo, ISEGULisboa), Mafalda Soares da Cunha (historiadora, Universidade de Évora), Magda Nico (socióloga, CIES-IUL), Marzia Grassi (cientista social ICSULisboa), Maria Alexandre Lousada (historiadora, FLUL-ULisboa), Marina Costa Lobo (politóloga, ICS-ULisboa), Marta Pedro Varanda (socióloga, ISEG-ULisboa), Miguel Jerónimo (ICS-ULisboa), Nuno Domingos (antropólogo, ICS-ULisboa), Olívia Bina (cientista política e geógrafa, ICS-ULisboa), Paulo Trigo Pereira (economista, ISEG-ULisboa), Pedro Lains (historiador, ICS-ULisboa), Pedro Magalhães (politólogo, ICS-ULisboa), Riccardo Marchi (historiador, ICS-ULisboa), Ricardo Roque (antropólogo, ICS-ULisboa), Rita Almeida Carvalho (historiadora, ICS-ULisboa), Sara Falcão Casaca (socióloga, ISEG-ULisboa), Sofia Aboim (socióloga, ICS-ULisboa), Susana Matos Viegas (antropóloga, ICS-ULisboa), Steffen Hörnig (economista, FE-UNL)

Índia tem uma cultura rica e colorida, milenar mas vibrante. O seu potencial humano e económico é imenso. Os seus matemáticos são brilhantes e os seus médicos excepcionais. Tem empresários inovadores e persistentes, e burocratas minuciosos e legalistas. É rica em espiritualidade e tolerância. E tem das ruas mais sujas do mundo. Já me deram muitas explicações para esta sujidade. No entanto, só recentemente, ao regressar de avião com o Executive MBA AESE/IESE da semana internacional no Indian Institute of Management-Ahmedabad, é que percebi como é que, sendo os indianos tão conscienciosos com a higiene pessoal e doméstica, conseguem levar a sujidade pública a extremos dificilmente igualáveis. Do meu assento na coxia podia observar os passageiros sentados do outro lado. Eram homens e mulheres de meiaidade, indianos exteriormente aparentando abastança, alguns dos quais tinham tirado os pés das sandálias. Eis que passa a hospedeira distribuindo toalhetes. São usados para limparem a cara e as mãos antes de caírem aos pés dos seus utilizadores. E aí ficam. São distribuídos bebidas e acepipes. Assim que os copos se esvaziam, vão parar ao chão. E o mesmo acontece aos invólucros dos cajus assim que estes são consumidos. Vêm as refeições. À medida que deixam de ter uso, garfos e guardanapos, ossos e pacotes vários, seguem o mesmo caminho. Note-se que nada disto era de molde a incomodar os vizinhos, pois o lixo ficava aos pés do seu dono. No entanto, o mais curioso começou logo depois de recolhidos os tabuleiros. Lenta, mas inexoravelmente, os pés esquerdos dos meus vizinhos do outro lado da coxia começam a mover-se. A pouco e pouco, toalhetes e copos, garfos e pacotes, ossos e guardanapos, são sistemática e implacavelmente movidos para o corredor. Ao fim de alguns minutos, o chão debaixo de cada assento fica limpo de todo e qualquer detrito e o corredor transformado numa verdadeira lixeira. Ainda estava a ponderar as implicações sociológicas desta observação quando fui apoderado por uma inconfortável sensação de déjà-vu. Onde é que teria já visto este processo a funcionar? Onde é que todos são, pessoal e individualmente, encantadores e asseados, competentes e honestos, mas que fazem da vida pública uma grande chafurdice? E recordei-me de S. Bento. Ou seria a Rua do Ouro? Compreendi então que os portugueses também são indianos.

Professor de Finanças, AESE

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