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May 31, 2017 | Autor: J. Pimentel Teixeira | Categoria: Mozambique, Imprensa, Moçambique
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Machado da Graça, “Até Mesmo Rouco” José Pimentel Teixeira (blog Courelas, 20.7.2016)

Até Ficar Rouco intitulou ele, afinal mentindo, pois apoucando-se, um dos livros com colheita das suas crónicas. Mentindo sim, e prova provada disso tive-a há tão poucos dias quando o amigo que sempre me contrabandeia a versão digital do “Savana” me enviou esta última edição. E lá estava a sua coluna de sempre, a “A Talhe de Foice“, a sua constante machamba de opiniões críticas, virulentas, tão destemidas num país onde se pode morrer pelo que se diz ou escreve. O Machado estava já muito doente, consciente do imparável destino, e da brevidade com que tudo ocorreria … estava já “rouco”. Mas nem assim se calou, com a réstia de energia que acoitava, o fio de voz que ainda lhe cabia,”Até Mesmo Rouco” continuou a bradar contra o “estado dos homens” e das coisas que estes vão fazendo acontecer – desta sua última vez afrontando a construção das dívidas públicas moçambicanas, o algoz que tanto afoga e afogará o desenvolvimento.

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Ao longo da vida, essa na qual tinha há pouco ascendido ao estatuto de septuagenário, o Machado fez muita coisa, e muitos muito mais disso saberão do que eu, “não posso mentir”, só posso partilhar a minha memória dele. Conheci-o no final dos anos 90s, sabia-o um radialista influente e também ligado ao teatro (e ao cinema), associando-o à “Casa Velha”, a qual já ia menos activa do que fora anos antes. Mas acima de tudo, para mim, era o tipo daquele “A Talhe de Foice” que tanto me chamava a atenção, até porque o “Savana” era então o único jornal não-oficial em papel no país. Logo à cabeça notara o nome da coluna, uma expressão tão idiomática, que eu associava (e assim a apreciei) a uma auto-piscadela de olho, uma forma simbólica de viver sem atritos o seu caminho biográfico – o Machado era moçambicano, assim optara, e morreu sem a “dupla” [nacionalidade], coisa que para nós é pacífica, pois sabemos como sempre é compósita a identidade, e também que o administrativo não é o seu barómetro. Mas essa questão da(s) nacionalidade(s) havia sido importante no percurso nacional moçambicano, e à época ainda subsistia tanto no discurso público como nas mentes das pessoas, e até nas atitudes. E ele vivia isso, a multiplicidade que é sempre nossa constituinte, de um modo plácido, sem complexos, como o mostrava daquele modo, sem sentir necessidade de a capear através de símbolos lexicais ou de costumes, entenda-se, sem trocar “foice” por “catana”, por exemplo. A muitos parecerá estranho este tipo de abordagem mas poderão crer que não é descabido, quando se observa e entrevive na sociedade moçambicana. Há uma boa década disse-lhe isto, a propósito de blogar eu sob o nome suaíli de “ma-schamba” e andar ele de “foice” no teclado. Ele só se riu, aquele riso casquinado que lhe era próprio.

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Já nessa época dos finais de XX o Machado não se coibia de ser voz crítica, ainda que viesse então menos caustico, menos desiludido digo-o agora eu. Pois os tempos eram de expectativa crente, vivia-se ainda o ressalto da pacificação, no entusiasmo de democratização. E ele disso partilhava, ainda que nunca tivesse sido sacerdote da plenitude da democracia liberal e deste nosso capitalismo. O ambiente mudou, moral e até politicamente, nos anos seguintes. Primeiro com o assassinato de Carlos Cardoso, traumático para todos – e como recordo as moles populares em torno dos transístores que transmitiam o julgamento dos assassinos em directo -, e muito mais para a gente da imprensa. E logo depois com o assassinato, nunca desvendado, de Siba-Siba Macuacua, o jovem economista que havia sido mandatado para proceder a uma investigação. E depois, entendam-no como quiserem, em meados da década passada, com a mudança presidencial e das modalidades de governação do país que isso provocou. Nesse percurso o Machado ergueu bandeira, não se adoçou, bem pelo contrário. Se a situação se tornara pior para o exercício da crítica então redobrou-a, e assim se manteve até ao final, como o mostrou, vulcânico, heróico até, aquando do recente atentado ao José Jaime Macuane. Ele era, pelo menos eu assim o entendi, num sentido amplo da imagem, um moralista, na versão surgida no Moçambique independente, um “samorista”, naquela adesão a um ideal, despojado, de construção de uma sociedade desenvolvida, implicando um tendencial igualitarismo. E crente que os “javalis”, para usar a retórica do próprio Machel, eram obstáculo a esse objectivo, a essa melhoria do povo. Eu chegara então de Portugal, com outra biografia, outro processo de constituição de consciência política. Foi com o Machado, e com alguns outros, que aprendi a compreender esse núcleo intelectual e histórico, a apartar as diferentes visões da política, afinal bem menos importantes do que parecem, daquilo que é o fundamental. A respeitar aquelas coerências patrióticas, a vontade e o sonho que haviam tido de um país muito melhor, feito para todos. Algo que havia apelado a esse moralismo, o do despojamento dos possidentes – um despojamento que o Machado seguiu até agora ao fim, ele e um punhado dos da sua geração que nunca utilizaram o conhecimento tido ou as redes havidas para acumularem quaisquer bens. E como lhe(s) teria sido fácil, como decerto foi fácil para outros, fazê-lo nestas tão profundas transformações que o país vem conhecendo nas suas décadas.

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Dizê-lo moralista pode até confundir algum distraído. Um moralista mas não de costumes, censor ou hipócrita. Digo-o assim porque solidário, algo que transparece na ternura destes micro-contos, esta declaração de amor ao povo de Maputo (e não só), “A Cidade dos Meus Amigos“, textos lidos na rádio, um travo de humor com moral no fundo ou talvez mesmo vice-versa. Essa solidariedade para com o povo que o acompanhou até ao fim, e não só como recurso estilístico ou mera matéria-prima ideológica, lembro agora que há tão pouco lançou ele uma campanha de recolha de fundos para os pescadores da Macaneta – lá onde ele tinha a sua tão acarinhada “barraca” -, que haviam visto os seus barcos destruídos por um temporal.

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E também moralista humorista, sarcástico, atrevido – e ainda mais numa sociedade muito conservadora na expressão pública. O homem do “Sacana”, o suplemento humorístico do Savana, onde o cartoon e a “boca” eram implacáveis, desnudando-nos, não só aos políticos, mas a todos. Eu acho que a gente foi construindo uma amizade, não próxima ou íntima mas com um código próprio. Discordávamos em quase tudo e fazíamos gala em dizê-lo, sem verdadeiramente discordarmos (algo que arrastámos nestes últimos anos para os nossos murais de velhos distantes no facebook). Ele decerto que me considerava um reaccionário impenitente, eu invectivava-o de perigoso comunista. Apesar disso, ou talvez por causa disso, um dia mandou-me um envelope com este livro de sua autoria, avisando-me que só havia dois exemplares, o dele e aquele que ali me oferecia. Não posso garantir que fosse verdade mas se não o for ninguém mo diga, por favor, que fiquei ufano e quero manter-me assim. E é uma pérola, tão demonstrativo do Machado: o tipo pegou no álbum fotográfico do Santos Rufino, o “Lourenço Marques: Panoramas da Cidade” um dos dez daquela colecção que foi um ícone da iconografia colonial, e fez montagens fotográficas, espetando em cada uma daquelas plácidas paisagens urbanas, naturalizadoras do colonialismo, uma atrevida odalisca daqueles tempos recuados. Uma coisa radicalmente subversiva.

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Acho que a gente se tinha começado a dar por causa do cinema e da banda desenhada. Desta era ele um dos poucos cultores que eu conhecia em Maputo. O outro era o João Paulo Borges Coelho, cujos livros editados no início dos 80s estavam esgotados, e dos quais o Machado me deu raríssimos exemplares de dois deles e a fotocópia de um outro, do qual ele próprio tinha apenas um exemplar. Nessa época eu estive um semestre como director interino (e oficioso, claro) do Centro Cultural Franco-Moçambicano, uma situação excêntrica, e pouco bem vista pela comunidade francesa – concedo que, para além de outras questões, o estado enferrujado, para não dizer pior, do meu francês, que também nunca fora brilhante, não ajudava muito … Enfim, uma das coisas que se me meteu na cabeça foi animar as sessões de cinema. Na altura o Centro passava filmes franceses não legendados, era uma política linguística um bocado endocentrada, para não dizer pior. Eu pedi socorro ao Machado, que logo apareceu com os filmes que tinha – isto foi muito antes disto d’agora de “baixar” filmes da internet. Clássicos legendados, Chaplin, acho que Tati, esse tipo de coisas. Enfim, uma versão um bocado mais lata da “francofonia”. E com muito mais público, claro. O Machado fazia as folhas de sala, como se numa Cinemateca, fantástico. O que lamento tê-las perdido, no meio das andanças …Tudo feito por ele apenas por companheirismo, um pouco. E, muito mais, pelo Cinema, por essa ideia de partilhar o Bom, o Belo, com os outros. Se já havia estado na edição de BD ele tinha então uma actividade editorial crucial. A sua Promédia tinha conseguido um apoio da cooperação suíça e durante anos a fio publicou uma muito estimável colecção de livros de ciências sociais moçambicanas, as teses produzidos no estrangeiro por investigadores moçambicanos. Foram quase 40 livros, do escol daquela geração (Cruz e Silva, Alcinda Honwana, Covane, Rafael da Conceição, Ana Loforte, Yussuf Adam, Salim Valá, Chilundo, Isabel Casimiro, etc.). Quando os apoios estrangeiros acabaram a iniciativa cessou. E ninguém a substituiu, em moldes de uma colecção sistemática. Algo lamentável, até porque a produção académica nacional foi crescendo, com cada vez mais quadros a estudarem fora do país e também as pós-graduações a disseminarem-se no país. O certo é que passou uma década desde o final da colecção e sem o Machado ninguém avançou, com enorme prejuízo para a academia moçambicana. Depois, aquando da vaga internacional do bloguismo, meteu-se a blogar. Eu já andava maníaco no meu ma-schamba e ele convocou-me para lhe ir ensinar a usar o sistema [na altura na moda estava o blogspot]. Criou o Ideias Para Debate, um dos primeiros blogs moçambicanos. E isso foi um marco, pois ele não usou o blog como outro palco para botar o que entendia (para isso já tinha os jornais). O que fez foi único, abriu o blog para que vários começassem a escrever e a publicar, gente que lhe era muito mais nova, alguma até da imprensa, outra da academia. Muitos dos quais vieram a abrir blogs, vários deles ainda hoje activos nas “redes sociais”, no fervilhante facebook político moçambicano, e alguns também transumados para a imprensa. Este é um traço da actividade do Machado que muitos esquecem, esta suave indução, até pedagogia, da escrita política publicada e livre. Que teve efeitos vários, não só nessa consciencialização da possibilidade da escrita pública livre como também na 6

progressiva transformação do estilo de escrita na imprensa, muito mais moderno e robusto (e como era “acaciana” a forma de tanta da prosa jornalística nos anos 1990s!). Um dia o trabalho desse trampolim estava cumprido, disseminado que estava o bloguismo moçambicano (fundamentalmente político; mas também cultural, numa outra área trans-machadiana, versando o hip-hop), que teve alguns anos muito pujantes naquela era pré-facebook. E ele encerrou o seu blog. Há dois anos vim-me embora de Moçambique. 16 anos antes a minha mulher mandara fazer e ofertara-me umas estantes de umbila, magníficas, para que acumulasse eu os meus livros. O sonho de as trazer para Portugal tornou-se um pesadelo, como as fazer caber nestes tão mais acanhados “flats”, ainda para mais já preenchidos de mobílias? Há gente que se preocupa com o destino dos carros, ou dos cães, ou sei lá do quê, que ficam para trás. Eu tinha a angústia das estantes. Sosseguei com o facto do Machado as ter querido, senti que as acarinharia, encheria, como poucos. Outras, que havia mandado fazer depois, ficaram para o meu querido Paulinho Gentil, que também já partiu. Um gajo vai ficando sozinho no mundo … Agora vão dizer que a perda com a morte do Machado é terrível, que ele é insubstituível no jornalismo moçambicano, na sociedade, que o exemplo perdurará, etc., que ele é um “embondeiro”, essas coisas. Não sei, a gente que o conheceu vai envelhecer e morrer, os livros dele vender-se-ão amarelecidos pelo sol nos alfarrabistas de rua, o conselho municipal dará o seu nome a uma rua, os jornais e as revistas em que botou já foram para o lixo. É assim, nenhum de nós faz, realmente, muito falta. Pouco tempo antes de partir andava eu, desasado, num fim de tarde. Cruzei aquele restaurantezito português, o “Esquina”, ali na Polana. O Machado estava na esplanada, deve ter percebido o meu desrumo, chamou-me à mesa, apresentou-me a filha e o neto. A este, que levou a graça de Bilal, assim homónimo do mestre BD, já conhecia eu, pois o Machado era um avô encantado, uma paixão decerto continuidade da paixão paternal que o nutria. Por isso partilhava, militantemente, o surgimento e crescimento do Bilal através do seu mural de facebook. Fiquei ali, à mesa, a petiscar os enchidos, um qualquer queijo e uma garrafa de vinho. Em alguma conversa mas acima de tudo a ver como o avô se desvanecia com o neto, coisa que não é, garanto, de todos, pelo menos àquela dimensão. E é isso que lamento, muito mais do que a desaparecida sombra do “embondeiro”. Isso de não estar ele cá para passar ao seu Bilal aquela malícia, o humor, sarcástico, irreverente, mais a meia dúzia de valores, e ainda as “ideias para debate”, tantas delas com as quais eu discordo, e a infinita coragem de não se calar. Quero acreditar que a família contará tudo isso ao Bilal. E que nós, os amigos, os admiradores, enquanto cá estivermos também o faremos.

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