Machado de Assis como leitor de Poe : uma abordagem comparativa do sentimento de culpa nos contos \"O Enfermeiro\" e \"O Coração Denunciador\"

July 25, 2017 | Autor: Auricélio Fernandes | Categoria: Comparative Literature, Psychoanalysis And Literature
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O Simbolismo surge no fim do século XIX, mais precisamente em 1857, quando o poeta Charles Baudelaire publica sua obra As flores do mal. Essa obra [...] na realidade, reflete a tentativa de Baudelaire de registrar ao nível poético um descontentamento contra um modo de pensar o mundo e contra um modo de conceber a poesia e a arte em geral. Baudelaire será, portanto, o arauto desse desconforto com um estado de coisas e, com isso, dará início ao Simbolismo. Tanto a obra de Baudelaire quanto o Simbolismo surgem dentro da crise social, existencial e cultural do fim do século XIX. Para que a entendamos, contudo, temos de regressar aos meados do século XIX, quando houve, economicamente, grande desenvolvimento industrial e, culturalmente, o homem buscou explicar os fenômenos através de uma postura científica.
Periódico mensal com sede na cidade da Filadélfia, fundada por William Evans Burton (1804-1860), que mais tarde acrescentou seu nome ao título, estreia. A Revista apresentava artigos sobre arte, literatura, esportes, teatro, reedições e traduções de Inglês e outras línguas estrangeiras e contos. Edgar Allan Poe foi editor da revista de 1839 até 1840, quando ela se fundiu com a Atkinson'sCasket para se tornar então, a Graham´s Magazine. Poe contribuiu com alguns dos seus contos, incluindo "A Queda da Casa de Usher" e "William Wilson" (Fonte: ). Acesso em 19/03/14.
Foi um periódico também da Filadélfia1, considerado um dos periódicos americanos mais importantes dos anos 1840. A revista apresentava artigos de moda, música e literatura. Surgiu em 1840 com a incorporação da antiga Burton's Gentleman's Magazine por George Rex Graham. Entre as décadas de 1840 e 1850, alternou várias denominações, como Graham's Lady's and Gentleman's Magazine, Graham's American Monthly Magazine of Literature and Art, entre outros nomes.Edgar Allan Poe trabalhou como editor da revista em 1841 e nela publicou o seu primeiro famoso romance policial: Os Assassinatos da Rua Morgue.A revista, com sérios problemas financeiros em meados da década de 1850, inclusive com a queda acentuada do número de assinaturas, deixou de ser editada em 1858 (Fonte: ). Acesso em 19/03/14.

A histeria é encarada como uma neurose, podendo manifestar-se com sintomas diversos, estranhos, muitas vezes transitórios. Frequentemente, os pacientes apresentam alteração das sensações como cegueira, surdez, perda da voz, dores ou perda da sensibilidade (anestesia) em certos locais [...]. De uma forma geral, os sintomas que o apresenta são muito influenciados pelo seu meio cultural, já que estes indivíduos costumam ser muito sugestionáveis. Assim, embora a doença seja involutária (o paciente não controla o surgimento dos sintomas), parece que existe um componente intencional inconsciente. (AFONSO, Adalberto; REINAS, Cíntia ...[et al ]. A loucura no controle das emoções. Revista de Psicofisiologia, Minas Gerais, v. 1, n. 1 e 2.[n.p.].1997. Disponível na Internet em : http://www.icb.ufmg.br/lpf/revista/revista1/volume1_loucura.htm). Acessado em 05/15/09.
MACHADO DE ASSIS COMO LEITOR DE POE: UMA ABORDAGEM COMPARATIVADA CULPA NOS CONTOS O ENFEIMEIRO E O CORAÇÃO DENUNCIADOR
Auricélio Soares Fernandes (UFPB)

RESUMO
O Simbolismo foi uma das vanguardas artísticas europeias mais expressivas do século XIX. Caracterizado por temáticas mais soturnas, o Simbolismo teve grande influência da literatura gótica do escritor americano Edgar Allan Poe e este, por sua vez, influenciou diversos escritores daquele século como Paul Valéry, Stephane Mallarmé e Charles Baudelaire e também Machado de Assis, responsável pela primeira tradução para a língua portuguesa de "O Corvo", poema clássico de Poe. Considerando a literatura de Edgar A. Poe como importante fonte inspiradora para o Simbolismo e para a escrita de Machado de Assis, o presente trabalho tem como principal objetivo apresentar um breve estudo comparativo da influência do escritor norte-americano Edgar Allan Poe na temática contística do autor brasileiro Machado de Assis e comparar o sentimento de culpa, a partir de uma visão psicanalítica freudiana, dos personagens nos contos "O Coração Denunciador", de Poe e "O Enfermeiro", de Machado de Assis. Para embasamento teórico utilizamos obras críticas e teóricas de Abdala Júnior (1995), Daghlian (2003), Gomes (1994), Freud (1996), Gonçalves (2006) entre outros.
Palavras- Chave: Edgar Allan Poe, Simbolismo, Machado de Assis, Culpa.

INTRODUÇÃO

A temática de alguns contos do escritor brasileiro Machado de Assis foi influenciada pelo surgimento do revolucionário movimento cultural, surgido na Europa no final do século XIX, denominado de Simbolismo. O escritor brasileiro passou a utilizar algumas das características mais obscuras daquela vanguarda europeia para desenvolver alguns temas dos seus contos, e através do contato com a literatura francesa de poetas simbolistas como Valéry, Mallarmé e Charles Baudelaire, estabeleceu sua magnificência na literatura brasileira. Machado não apenas manteve contato com os poetas malditos da França simbolista, mas também herdou do escritor e poeta norte-americano Edgar Allan Poe o gosto pela maldade, pela loucura e outras temáticas obscuras narradas nos seus contos.
Edgar Allan Poe popularizou a literatura gótica e de terror como nenhum outro escritor havia feito até a primeira metade do século XIX, período em que produziu amplamente histórias fantásticas, de terror e de detetive, tornando-se o maior representante do Romantismo Americano. A maioria de seus contos apresenta histórias de terror psicológico, personagens ambíguos e que geralmente sofrem de algum distúrbio mental. Com essa temática sombria, o americano foi ícone para o surgimento do movimento simbolista, que teve início, na literatura, com a publicação do livro de poesias As Flores do Mal, do francês Charles Baudelaire, em 1857, tradutor e admirador da obra de Edgar Allan Poe, e responsável pelo prefácio de Histoires Extraordinaires, na França, que enaltecia o americano como a principal influência para a ascensão do movimento simbolista.
Para melhor analisar a influência da literatura de Edgar A. Poe no surgimento do Simbolismo e então na obra de Machado de Assis, apresentaremos a seguir uma análise dos contos O Enfermeiro, de Machado de Assis, publicado em 1896 e O Coração Denunciador, de 1843, onde faremos uma comparação da temática dos contos e da estruturação dos personagens, através da teoria da psicanálise de Sigmund Freud.

A LITERATURA DE EDGAR ALLAN POE E O SIMBOLISMO

Geralmente referido na crítica mundial por ter criado e popularizado o conto policial e as histórias de detetive, o escritor norte-americano Edgar Allan Poe marcou os rumos e temáticas da literatura mundial. Com seus temas sombrios e insanos e seus personagens esquizofrênicos, sarcásticos, inteligentes e sadistas. Porém, a escrita de Poe não é apenas limitada a contos policiais. Há uma grande variedade de temas em seus textos: crimes, melancolia, referências à insanidade, morte, sadismo dentre outros. Ao lado do escritor de histórias góticas, Edgar Poe foi também proeminente crítico literário, poeta e editor de jornais e revistas.
O tipo de literatura escrito por Poe em sua época não era visto criticamente como gênero maior e não lhe rendeu muito dinheiro e reconhecimento crítico em vida. Apenas após sua morte em 1849, é que sua literatura alcançou sucesso literário internacional, principalmente na Europa, e serviu como influência direta para o florescimento do movimento cultural conhecido como Simbolismo, que surgiria alguns anos depois, em 1857. Mas, de acordo com Gonçalves (2006),
foi na França que a imagem de Edgar Allan Poe passou a tomar grandes dimensões. Louis Davis Vines, em livro intitulado Valéry and Poe: a literary legacy, faz várias considerações acerca da presença de Poe nas obras dos três grandes discípulos franceses do escritor norte-americano: Paul Valéry, Stephane Mallarmé e Charles Baudelaire. Aponta[ndo] que, segundo Valéry, a quem Poe era um "engenheiro da mente", o contista estaria totalmente esquecido, não fosse Baudelaire. Esses dois escritores – Valéry e Baudelaire – atraíram-se pela lucidez intelectual de Poe, o que levou Baudelaire a ocupar dezesseis anos de sua vida com o trabalho de tradução de Tales of the grotesque and arabesque, intitulando seu trabalho como Histoires extraordinaires. Mallarmé, inspirado no trabalho de Baudelaire, pôs-se a traduzir "[...] trinta e seis dos poemas de Poe, selecionados dos cinquenta que haviam sido publicados" (p. 32), ao passo que Baudelaire havia traduzido apenas quatro. Mallarmé admirava o uso calculado das palavras nas composições de Poe, a quem chamava de "mon grand maître" (p. 90).

Não é de se negar a influência de Edgar Allan Poe na França e na literatura mundial. Possivelmente isso se deva ao fato de a maioria de seus contos terem sido publicados em jornais e revistas americanas da época, o que de certa forma possibilitou uma maior acessibilidade a um número maior de leitores que se formou desde a primeira metade do século XIX. Aquele público de classes sociais mais baixas "consumia" avidamente a literatura sombria, violenta e fantástica do escritor através de jornais e revistas como Burton´s Gentleman´s Magazine e a Graham´s Magazine, ambas da década de 1830.
A influência da literatura de Poe foi muito grande no século XIX. Há referências ao autor em vários na literatura de
[...] escritores brasileiros que, como Machado de Assis (1839-1908), liam em inglês, puderam ler Poe antes do surgimento das traduções de Baudelaire dos Tales of the Grotesque and Arabesque em francês. Machado de Assis não se restringiu aos contos de terror, pois tinha interesses espirituais mais profundos (GONÇALVES, 2006, p. 94).

Machado de Assis não seguiu totalmente a mesma estética sombria de Poe em seus contos. Ele, que iniciou sua carreira literária logo na adolescência, teve contato com autores franceses de sua época e viu florescer em seu tempo de vida o nascimento do Simbolismo. Surgido na França em uma época de intenso desenvolvimento econômico - a Revolução Industrial - o Simbolismo ascendeu como uma tentativa de renovação dos padrões culturais e artísticos europeus da época. Sabe-se que seu maior expoente, Charles Baudelaire, foi preso e acusado de obscenidade, pois sua obra clássica abordava temas até então pouco populares em poesia, como o satanismo, o mal, o fracasso e a repugnância.
Na transição do movimento literário conhecido como Romantismo para o Simbolismo, viam-se ainda semelhanças temáticas e características comuns a ambos os movimentos. A representação do homem nacionalista e melancólico no Romantismo dá lugar agora ao homem calculista. Gomes (1994) sugere que
esse homem típico do fim do século, o decadente, o dandy, na realidade, tinha sido inventado durante a vigência do Romantismo, em sua fase mais extremada. Como se sabe, a estética romântica teve um momento em que os escritores procuraram levar às últimas consequências o culto da noite, dos sentimentos, dos prazeres doentios. É o que se convencionou chamar de "mal do século". Entre o poeta transtornado do "mal do século", que ama a vida boêmia, que procura a morte para aliviar a dor de viver, e o decadente do Simbolismo há evidente parentesco. Mas há também diferenças flagrantes. O primeiro é todo emotivo e, por vezes, procura na mulher, no suicídio, um lenitivo para a existência. Já o segundo é frio, racional e mesmo cínico: despreza o amor e vive artificialmente (p.14-15).

Esses dois tipos de personagens masculinos estão presentes nas obras de Edgar Allan Poe e Machado de Assis. O primeiro, em obras como Berenice, que explora a melancolia, o amor, e, consequentemente, a morte como maior tema poético. Machado de Assis, por sua vez, mistura diversas representações de homem em seus contos. Nele, podemos observar personagens esquizofrênicos, calculistas, cínicos e ambíguos, como no conto O Enfermeiro. Ainda relacionando os personagens de ambos os autores, Abdala Júnior (1995, p.41) reforça que esses podem ser definidos como "personagens complexos", pois seus papéis nas obras sempre são imprevisíveis e agem de diversas formas, confundindo e representando diversas formas ao mesmo tempo.
Para o autor, esse mesmo personagem pode ser o "mocinho" e o "bandido" da história e este, quanto mais ambíguo for, mais complexidade será sua personagem. Essa complexidade da estrutura dos personagens desses autores é confirmada ao permanecer a dúvida e ambiguidade na ação deles no enredo das narrativas desses escritores. Tanto em Poe quanto em Machado, é possível identificar influências semelhantes em características dos personagens e temáticas. Não é difícil perceber que Machado, "além da bela tradução que fez de O Corvo, inspirou-se em Poe para escrever pelo menos dois contos humorísticos (O Alienista e O Cão de Lata ao Rabo)" (DAGHLIAN, 2003, p. 46).
POE E MACHADO DE ASSIS: UMA QUESTÃO PSICANALÍTICA NA LITERATURA

Depois de várias revoluções econômicas e culturais que houve na Europa, Eagleton (2003) sugere:
haver uma relação entre a evolução da moderna teoria da literatura e a agitação política e ideológica do séc. XX. Essa agitação, porém, nunca é apenas uma questão de guerras, de depressões econômicas e de revoluções: ela é sentida pelos que nela estão envolvidos também de maneira profundamente pessoal. Ela é tanto uma crise das relações humanas e da personalidade, quanto uma convulsão social (p. 2009).

Por volta do fim do século XIX, Sigmund Freud começou a desenvolver o campo sistemático de conhecimento e exploração do inconsciente humano, conhecido como psicanálise. Contradizendo muitos pensadores da época, Freud defendia que a sociedade humana não era motivada pela economia. Para ele, a necessidade de trabalhar devia estar aliada à necessidade de reprimir algumas de nossas tendências ao prazer e à satisfação. A teoria de Freud sobre o estudo analítico da alma humana serviu de base teórica para explicar diversos comportamentos e personalidades em vários campos do conhecimento, inclusive o da literatura. Entre os grandes "mistérios" até então desconhecidos pela sociedade, Freud tentou explicar os sonhos, a sexualidade, os comportamentos agressivos e as manias, fobias e, mais precisamente, as doenças psicológicas.
Muitas interpretações de textos artísticos e literários foram utilizadas por Freud no desenvolvimento e execução de sua teoria. Praticamente todos os conceitos que conhecemos hoje acerca de doenças psicológicas e comportamentos anormais foram objeto de estudo da Psicanálise freudiana e foi [...] "na trama da criação literária [que] Freud encontrou sua fonte e seu método. Muitos de seus grandes conceitos: complexo de Édipo, sadismo, masoquismo, narcisismo, ele os tirou da Literatura" (SÁ, 2007, p.1).
Para a autora, Sigmund Freud, mesmo não sendo um profundo conhecedor de arte, sempre se deixou fascinar pelas obras, principalmente no âmbito da literatura e da escultura. Freud passava longo tempo observando-as e tentando explicar a razão delas dos efeitos nele próprio e também nas outras pessoas. No campo literário, Freud pretendia analisar a intenção do autor ao escrever determinada obra de arte.
Expressa na obra, essa intenção deve despertar em nós a mesma constelação mental que no artista produziu o ímpeto de criar. Assim, a intenção do artista concretizada na obra, no texto, poderia ser compreendida e comunicada em palavras, como todos os outros fenômenos da vida mental. Daí, segundo Freud, seria impossível compreender uma obra de arte, sem aplicar-lhe a Psicanálise, isto é, interpretá-la, descobrir-lhe o significado e o conteúdo. Freud declara não ser atraído pelas qualidades formais e técnicas da arte, embora essas tenham mais valor para o artista. Interessa-lhe saber de que fontes o artista – esse estranho ser – retira seu material e desperta em nós emoções que desconhecíamos. Somos também incapazes, por mais explicações que encontremos, de tornar-nos poetas ou escritores (SÁ,2007, p. 1-2).

Assim, para Freud não era a obra de arte em si que era avaliada, mas sim o artista e as influências que o fizeram desenvolver tal forma de arte. Freud desejava investigar as fontes de onde o artista retirava a inspiração para a produção de seus trabalhos e assim, provavelmente concluiria a ligação entre autor e obra.

3.A CULPA EM O CORAÇÃO DENUNCIADOR E O ENFERMEIRO

A psicanálise encontrou na literatura gótica de Poe um vasto campo para análise, uma vez que seus personagens quase sempre ambíguos e complexos jazem nos extremos do humor e da sanidade/insanidade. Semelhantes aspectos são também percebidos nos contos de Machado de Assis, que mesmo não sendo considerado como autor de contos fantásticos ou góticos, foi profundamente influenciado por Poe e também teve contato com a vanguarda simbolista francesa, da qual sofreu forte influência temática para escrever um de seus contos mais cruéis: O Enfermeiro.
Nesse conto, publicado em 1896, Machado narra a história de Procópio Valongo, um jovem que estudava documentos latinos e fórmulas eclesiásticas de um padre. Um dia, esse mesmo padre recebe uma carta de um vigário que morava no interior, perguntando-o se ele conhecia alguém paciente e disposto para trabalhar como enfermeiro do temeroso coronel Felizberto, que se encontrava muito doente. O pároco mostra a carta a Procópio, que, necessitando de dinheiro, aceita a oferta imediatamente, sem imaginar que dores de cabeça o intolerante coronel lhe causaria. Chegando à casa do coronel, Procópio de início teve uma boa aceitação para com o velho, mas "A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias". (Assis, 1994, p. 33).
No conto, após uma semana, o personagem Procópio começa a perder a paciência com o coronel, que o xingava e o maltratava demasiadamente. O comportamento de paciência e pena da situação do coronel foi aos poucos se transformando em raiva e perversidade:

O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão (Idem, 1994, p. 33).

Com o passar do tempo, e cada vez mais humilhado e maltratado pelo velho, Procópio chega ao limite e de vez perde toda sua paciência. Numa noite, o coronel, em um de seus ataques de histeria arremessa sobre o homem uma moringa, que o atinge no rosto. Procópio, por sua vez, desprovido de qualquer sentimento de afeto e paciência, esgana-o:
Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo (Idem, 1994, p. 33 - Grifos nossos).

A partir das palavras destacadas acima, percebemos claramente que o personagem começou a sentir medo de ser punido e consequentemente culpa de seu ato, depois que assassinou o velho coronel. Após tal ato, o narrador-personagem afirma sentir um

[...] atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!"(Idem,p. 1994, 33-34).

No trecho acima, percebemos a presença da psicose, que, de acordo com Eagleton (2003, p. 219), acontece quando "[...] o ego não é capaz de reprimir parcialmente o desejo inconsciente, passando a ser dominado por ele". Quando isso acontece, o elo entre o ego e o mundo exterior (a sociedade) é interrompido e o inconsciente perde contato com a realidade, adquirindo uma alucinação, assim como a paranoia e a esquizofrenia. Devido a um sentimento de culpa, o narrador passa a imaginar coisas, ao esganar o velho coronel.
"A paranoia refere-se a um estado mais ou menos sistematizado de alucinação, sobre o qual Freud não só inclui a mania de perseguição, mas também o ciúme excessivo e a mania de grandeza" (EAGLETON, 2003, p. 219). Ainda com medo de que alguma pessoa desconfiasse que o coronel Felizberto não teria falecido de causas naturais, o protagonista do conto resolve fazer os preparativos finais para o sepultamento do morto, escondendo ao máximo os sinais de assassinato para diminuir suas suspeitas. Por ironia, sete dias após o sepultamento, o enfermeiro recebe uma carta do vigário cidade com o testamento do coronel, anunciando que ele era seu único herdeiro. O enfermeiro, que a princípio pensara em doar toda a fortuna provida do velho volta atrás e resolve aceitá-la. O homem então converte todos os bens do velho em dinheiro, guardando uma boa parte para si próprio. Ajudou as construções em uma igreja, doou uma parte da quantia aos pobres e, por último, mandou "levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, [...] foi morrer, creio eu, no Paraguai" (ASSIS, 1994, p. 35).
A construção desse túmulo seria uma maneira de amenizar a culpa pela morte do coronel? Vejamos, para Freud, a definição de culpa:

Conhecemos assim as duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo da autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso, exige punição, uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego (FREUD, 1996, p. 179).

Para Freud, esse denominado medo da autoridade é semelhante ao medo que os filhos sentem dos pais. Ao renunciar a esse medo, ele se transforma em fonte de consciência para o surgimento e amadurecimento do indivíduo como homem pensante, racional, enquanto para o medo do superego, uma autoridade interna, apenas a renúncia não é suficiente, pois esse desejo continua vivo, mas não escondido em nosso superego. Essa renúncia não é capaz de nos libertar do sentimento de culpa ainda persistente, que é a consequência do desejo proibido, tornando-se fonte do sofrimento definitivo.
Essa teoria supostamente explica o sofrimento do personagem através da culpa e do remorso ao assassinar o velho coronel, uma vez que esse aspecto psicológico está presente no conto. Em outras ações do personagem Procópio, narradas no conto, ele realiza vários procedimentos a fim de amenizar a gravidade desse atormentador sentimento.
Para Rissá e Bittencourt (2007, p.1), Machado de Assis, um grande nome do realismo brasileiro, bebeu de fontes poeanas e muitos de seus elementos na construção de contos podem ser referidos à Poe. As autoras sugerem que tais elementos variam desde a semelhança na escolha dos temas até a construção verbal, como personagens e ambientação das histórias. Uma das mais fortes semelhanças entre ambos os autores é o conto "O Coração Denunciador", do escritor americano, escrito em 1843, no qual Machado de Assis provavelmente se inspirou para escrever seu conto "O Enfermeiro".
O conto de Poe inicia-se assim como o de Machado, com o narrador-personagem nos contando a sua história a partir de seu ponto de vista. O mesmo ainda sugere um diálogo com o leitor, onde este deve julgá-lo e decidir sobre sua sanidade/insanidade:

É verdade tenho sido nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno eu ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção! E observai quão lucidamente, quão calmamente posso contar toda a história (POE, 1997, p. 37).

O narrador começa a questionar e tentar convencer o leitor de sua sanidade, ocasionando por sua vez distúrbios e confusões de seu próprio pensamento. O conto de Poe, assim como o de Machado de Assis, narra a história de um homem que também cuidava de um velho. Para o narrador da história, o velho, diferente do conto de Machado, nunca o havia mal tratado. Entretanto, o narrador, sem motivo algum declara como resolveu tirar a vida do velho: "É impossível dizer como a ideia me penetrou primeiro no cérebro, uma vez concebida, porém, ela perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca fizera mal" (idem, ibidem).
Não havendo qualquer motivo aparente para o narrador decidir assassinar o velho, ele resolve colocar o motivo do assassinato no olho do velho, que para o ele era semelhante ao de um urubu e o causava medo e repulsa:

Penso que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos parecia com o de um abutre... um olho de cor azul pálida, que sofria de catarata . Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre mim; e assim, pouco a pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele olho para sempre (POE, 1997, p.38 - Grifos nossos).

Neste último trecho do conto de Edgar Allan Poe, percebe-se o que Freud chama de transferência, que em outras palavras é quando um indivíduo transfere algum sentimento, que ele mesmo já tem, para outra pessoa a fim de não acarretar o sentimento de culpa para si próprio. Este sentimento de culpar alguém é claro quando o narrador utiliza verbos que dão ideia de dúvida como pensar, no qual o autor direciona a razão da morte para sua suposta loucura. Ele queria assassinar o velho, mas conseguiu convencer o leitor que esse ato não foi de maldade e sim de uma suposta cisma ocasionada pelo olho do velho.
Em outro trecho da história, o cinismo e a frieza do narrador também se tornam presentes: "Eu nunca fora mais bondoso para com o velho do que durante a semana inteira, antes de matá-lo. todas as noites, por volta da meia-noite" [...] (POE, 1997, 38). Novamente, em outro trecho do conto o narrador personagem recorre à tentativa de convencer o leitor sobre sua inocência no assassinato, transferindo mais uma vez o motivo de determinada ação ao olho do personagem, misturado ao calculismo do personagem nos dias anteriores em que ele preparava a morte do velho homem:
E isto eu fiz durante sete longas noites... sempre precisamente à meia-noite... e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossível fazer minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas seu olho diabólico (idem, 1997).

Exatamente na noite que o narrador-personagem resolve assassinar o velho, novamente ele confirma sua psicose, não sabendo associar suas próprias ideias e ainda desviando para o olho do homem, o motivo do assassinato dele:
Ele estava aberto; todo, plenamente aberto. E, ao contemplá-lo, minha fúria cresceu. Vi-o, com perfeita clareza; todo de um azul desbotado, com uma horrível película a cobri-lo, o que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face, ou do corpo do velho, pois dirigira a luz como por instinto, sobre o maldito lugar (idem,ibidem).

Nos trechos finais do conto de Poe, depois que o personagem assassina, esquarteja e esconde o corpo do velho no assoalho de sua casa, passa a desenvolver sentimentos de orgulho e poder, misturados a frieza dos seus próprios atos e ainda seguidos da certeza que nenhuma pessoa jamais descobriria o seu crime:
Depois recoloquei as tábuas, com tamanha habilidade e perfeição, que nenhum olhar humano, nem mesmo o dele, poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia a lavar, nem mancha de espécie alguma, nem marca de sangue (idem,ibidem).
Depois de esconder o corpo e as provas do assassinato, o narrador tenta convencer os policiais que foram à casa do senhor investigar o paradeiro do mesmo, de sua inocência: "Mostrei-lhe suas riquezas e [...]os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam convencido" (idem,1997). No clímax do conto, o narrador, vai aos poucos misturando sinais de psicose, confirmada em um ataque de histeria com sintomas de perda da sensibilidade auditiva e alterações das sensações:
Mas, dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça me doía e parecia-me ouvir zumbidos nos ouvidos; eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto. Continuou e tornou-se ainda mais distinto: eu falava com mais desenfreio, para dominar a sensação: ela, porém, continuava a aumentava sua perceptibilidade, até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro dos meus ouvidos (POE, 1997, p. 38).

No penúltimo trecho da história, o personagem assassino ainda sob um ataque histérico, começa a imaginar que os policiais já sabiam que ele tinha assassinado o velho e estavam apenas caçoando dele e esperando o momento certo para culpá-lo. Este é também um momento de paranoia, onde o personagem passa a desconfiar de todos ao seu redor, perdendo assim a ligação com o mundo externo:
Qualquer coisa era mais tolerável que aquela irrisão! Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que devia gritar ou morrer, e agora de novo...escutai...mais alto... mais alto... mais alto…mais alto!…(POE, 1997, 39).

Finalmente no último parágrafo do conto, o assassino, em um momento de perturbação mental, trai a si mesmo e confessa o crime: "Vilões! - trovejei. - Não finjam mais! Confesso o crime! Arranquem as pranchas! Aqui, aqui! Ouçam o batido do seu horrendo coração! (POE, 1997, p. 39). Percebe-se que no conto de Poe, o narrador nos mostra vários sintomas de doenças psicológicas das quais a Psicanálise freudiana definiu e analisou. Nessa história, o narrador de Poe pode ser definido como um psicopata, frio, calculista e que tenta convencer o leitor de sua sanidade mental e inocência. Esse jogo é característico dos personagens do escritor americano, onde eles sempre narram histórias em primeira pessoa. Poe utiliza bem as técnicas de sua própria critica literária e consegue prender o leitor no conto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao apresentar um breve estudo sobre as influências de Edgar Allan Poe na obra machadiana e também no movimento Simbolista percebemos a importância do escritor americano não apenas na literatura americana do século XIX, mas também em toda literatura mundial. Poe revolucionou a temática e a técnica da narrativa de contos. Machado de Assis, por sua vez não seguiu totalmente os temas de Poe em sua obra, porém vários dos seus contos, como "O Enfermeiro" constituem um intertexto da obra de Edgar Poe. Por estar em contato com a literatura dos escritores europeus simbolistas da época e escrever sua obra justamente no período de maior reconhecimento de Poe na Europa, é clara a influência de Poe na literatura de Machado de Assis. A nova e revolucionária literatura de Poe abriu as portas para uma ciência que também estava surgindo na mesma época do Simbolismo: A psicanálise, teoria de investigação teórica da personalidade que também se destacou no campo da literatura por tentar definir as características ou problemas mentais e psicológicas dos personagens de inúmeras obras.

REFERÊNCIAS:

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BITTENCOURT, Ana Lúcia e RISSÁ, Kelly. Confluências literárias: Machado de Assis e Edgar A. Poe. São Paulo: [s.n.] 2007.
DAGHLIAN, Carlos. A recepção de Poe na Literatura Brasileira. Florianópolis:[s.n], 2003.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Editora, 2006.
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id. Trad. Jaime Salomão. Rio De Janeiro: Imago, 1996.
GOMES, Álvaro Cardoso. O Simbolismo. São Paulo: Ática, 1994.
GONÇALVES, Fabiano Bruno. Tradução, Interpretação e Recepção Literária: Manifestações de Edgar Allan Poe no Brasil. 2006. 141 p. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), Porto Alegre.
POE, Edgar Allan. Ficção Completa, Poesia e Ensaios. Organizados, traduzidos e anotados por Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
SÁ, Olga de. Psicanálise e Literatura: A interpretação. In: Encontro Regional da ABRALIC, 2007. São Paulo:[s.n], 2007.
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Auricélio Soares Fernandes: Mestrando em Letras na Universidade Federal da Paraíba (2012), na área de Estudos Comparados (Literatura e Cinema) e graduado em Licenciatura em Língua Inglesa (2011). Atualmente é professor de Língua Inglesa do Ensino Médio no Governo do Estado da Paraíba e da Universidade Estadual da Paraíba. Pesquisa na Área de Literaturas Estrangeiras Modernas, Estudos Comparados, Estudos Culturais, com ênfase na Tradição Gótica das Artes. E-mail para contato: [email protected].


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