Machado/Shakespeare

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FOLHA DE S. PAULO – SÁBADO, 23 DE ABRIL DE 2016

Shakespeare

ANÁLISE JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ESPECIAL PARA A FOLHA

Um Machado de Assis sob influência Escritor brasileiro aprendeu com Shakespeare a cifrar o desconcertante em superfície serena *****

Em 1871 veio ao Brasil a companhia do italiano Ernesto Rossi. Pela primeira vez, em lugar de meras adaptações, encenava-se o texto de William Shakespeare. Machado de Assis não ocultou o entusiasmo no artigo “Macbeth e Rossi”, escrito no calor da hora: “Shakespeare está sendo uma revelação para muita gente”. No ano seguinte, no prefácio de Ressurreição, seu primeiro romance, ele esclareceu: “Minha ideia ao escrever este livro foi pôr em ação [um] pensamento de Shakespeare” – extraído de Medida por Medida. Em 1873, Machado redigiu seu ensaio mais conhecido, “Notícia da Atual Literatura Brasileira: Instinto de Nacionalidade”, e, para explicitar a noçãochave de certo sentimento íntimo, recorreu a argumento revelador: “E perguntarei mais se (...) Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês”. No conto “Tempo de Crise”, o personagem C. sintetizou o juízo do brasileiro: “Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia compô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano”. Shakespeare se beneficiou sistematicamente da especiaria alheia para a confecção do molho de sua fábrica – na saborosa expressão machadiana. Praticamente todas as peças shakespearianas resultam da combinação de fontes diversas, não de enredos “originais”. Somente quatro textos possuem uma história imaginada pelo dramaturgo, e, mesmo nesses casos, ele pilhou aqui e ali para compor as peças. O “método Shakespeare” é profundamente libertador para autores de culturas não hegemônicas, pois ele se apropriou com proveito dos clássicos e, ao mesmo tempo, estudou seus pares, tirando partido de suas ideias e soluções cênicas. Não surpreende que a história da cultura latino-americana possa ser escrita com base nas apropriações de A Tempestade, cujo exemplo mais agudo é o soneto de Machado, “No Alto”.

Machado aprendeu com Shakespeare nem tanto temas ou tramas, porém uma forma de lidar com a tradição e o contemporâneo. E ainda a arte de escrever para múltiplos públicos, cifrando, na superfície serena dos textos, possibilidades desconcertantes de leitura. Dom Casmurro constitui uma leitura radical nem tanto de Otelo quanto de Conto de Inverno. O Rei Leontes, enlouquecido pelo ciúme, é o modelo acabado de Bento Santiago. Leia-se a segunda cena do terceiro ato: a figura de Leontes – simultaneamente “vítima”, procurador e juiz – fornece a estrutura profunda de Dom Casmurro. No romance, no capítulo 9, “A Ópera”, menciona-se a teoria de Marcolino, um tenor italiano. No princípio dos tempos, o mundo foi uma ópera: “Deus é o poeta. A música é de Satanás. (...)”. Depois de muita insistência, Deus decidiu representar a peça, criando “um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira”. Eis o corolário da teoria, expresso numa dicção antecipadora de um Jorge Luis Borges:

O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.

O Shakespeare machadiano é um autêntico Pierre Menard de Deus! Claro, pois no dicionário de Shakespeare/Machado, “escritor” é assim definido: “sujeito que lê o tempo todo e, por isso, eventualmente, escreve”.

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJ

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