Madeira. Escritas e testemunhos com História

July 3, 2017 | Autor: Alberto Vieira | Categoria: Island Studies, Islands
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1.1. ILHAS E METRÓPOLES: Discursos, textos e contextos das relações financeiras e institucionais

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Alberto VIEIRA/ CEHA: Madeira. Escritas e testemunhos com História — (Madeira. Writings and testimonies with history)

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Odeta PEREIRA/ CEHA: As Finanças do Arquipélago da Madeira nos Debates Parlamentares: 1821-1828 — (The financial state of Madeira Archipelago in the Parliament sessions: 18211828)

135 Graça ALVES/ CEHA: Escritas(s) Sobre a Madeira: Vozes da Ilha na Literatura Portuguesa — (Writings about Madeira: voices of the island in the Portuguese Literature) 174 Cláudia FARIA/ Sandra GOMES/ CEHA: Madeira. Um olhar de fora — (Madeira. A glimpse from outside) 184 Ana Salgueiro RODRIGUES/ CEHA: Os imaginários culturais na construção identitária madeirense (implicações cultura/ economia/relações de poder) — [The cultural imaginary in the Madeira identity construction ( culture/economical/ power relations assumptions)]

Centro de Estudos de História do Atlântico

Região Autónoma da Madeira

Madeira. Escritas e testemunhos com História

Alberto Vieira CEHA_Madeira

Madeira. Writings and testimonies with history

ANUÁRIO N.º 3 Centro de Estudos de História do Atlântico ISSN: 1647-3949, Funchal, Madeira (2011)

pp. 30-38

ALBERTO VIEIRA. n.1956. S. Vicente Madeira. Títulos Académicos e Situação Profissional: 2008- Presidente do CEHA, 1999 - Investigador Coordenador do CEHA, 1991Doutor em História (área de História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa), na Universidade dos Açores. PUBLICAÇÕES (apenas os livros): O Bordado da Madeira, Funchal, Bordal (com edição em inglês), 2005- A freguesia de S. Martinho, 213pp, 2005-JOÃO HIGINO FERRAZ. Copiadores de Cartas (1898-1937), de colaboração com Filipe dos Santos, 418pp, 2005- Açúcar, Melaço, Álcool e Aguardente. Notas e Experiências de João Higino Ferraz (1884-1946), de colaboração com Filipe dos Santos, 636pp, 2005-A Vinha e o Vinho na História da Madeira. Séculos XV-XX, Funchal, CEHA,585pp, 2001: História da Madeira [coordenação de manual de apoio ao ensino], 399pp. 2001: Autonomia da Madeira. História e Documentos [cdrom], 2001:Associação dos Bombeiros Voluntários Madeirenses. Breves Apontamentos Históricos, ABVM. 131pp, 2001:A Nau Sem Rumo, NSR. 87pp, 1999: Do Éden à Arca de Noé - o Madeirense e o quadro natural, Funchal, 330pp, 1999: As Luzes da Festa, SIRAM, 119pp, 1998: CDROM: Obras clássicas de Literatura del Vino, compilação de livros e introdução, Madrid, Fundación Historica Tavera, 1998: Las Islas Portuguesas, compilação de livros e introdução, Madrid, Fundación Historica Tavera, 1998: O Vinho da Madeira (com Constantino Palma), Lisboa, 143pp, 1998:O Açúcar, Expo 98. Pavilhão da Madeira, 64pp, 1998: O Vinho, Expo 98. Pavilhão da Madeira, 64pp, 1998: Publico e o Privado na História da Madeira. II. As cartas particulares de João de Saldanha, Funchal. CEHA,  224pp, 1997: Vicente Um Século de Vida Municipal (1868-1974), Funchal. 167pp, 1997: CDROM: Elucidário Madeirense de Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes, coordenação da edição, Funchal, CEHA, 1997: Público e o Privado na História da Madeira. I. As cartas particulares de Diogo Fernandes Branco, Funchal. CEHA, 273pp, 1996: A Rota do Açúcar na Madeira, de Colaboração com Francisco Clode, Funchal, 220pp, 1995: Guia para a História e Investigação das ilhas Atlânticas, Funchal, 414pp, 1993: História do Vinho de Madeira. Textos e documentos, Funchal, 431pp, 1992: Portugal y Las Islas del Atlântico, Madrid, 316pp, 1991: Os Escravos no Arquipélago da Madeira. Séculos XV-XVII, Funchal, 544pp, 1989-1990: Breviário da Vinha e do Vinho na Madeira, Ponta Delgada, 79pp +115pp, 1987: O Arquipélago da Madeira no século XV, Funchal (de colaboração com o Prof. Dr. Luís de Albuquerque). 73pp, 1987:O Comércio Inter-Insular (Madeira, Açores e Canárias). Séculos XV-XVII, Funchal, 228pp.

Ajunta o homem sem acabar,nem deixar de ajuntar, e não sabe para quem; adquire o avaro para desperdiçar o pródigo; ganham fiel para roubar e desbaratar o ladrão; edifica o benfeitor para derrubar o preguiçoso; plantam curioso para dissipar e cortar o desfadado e desasado; inventam ardiloso para contrariar o traidor; ajunta o ganhado para espalhar e deitar a perder o perdido. Espelho é não obscuro, exemplo é este mui claro, para que, vendo-se nele, só procurem os homens ajuntar boas obras e virtudes, que não se perdem, e entesourar somente no Céu seu tesouro, onde a ferrugem o não gasta, a traça não come, e o ladrão o não furta, e todo descanso e bem bem-aventurança se possui, sem nenhum sobressalto de a perder jamais em algum tempo, nem momento. 1590(?) Doutor Gaspar Frutuoso

Resumo Valorização dos testemunhos dos textos literários e literatura de viagens para o conhecimento das relações financeiras entre o Estado e a Madeira. Palavras-Chave:Literatura de viagens, impostos, finanças. Abstract Valuation of the testimony of literary texts and travel literature to the knowledge of financial relations between State and Madeira island. Keywords: Travel literature, taxes, finances

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H

oje quisemos dar voz aos diversos discursos e testemunhos da História e construi-la, ou melhor apresenta-la sob a forma do discurso direto ou indireto de alguns que nos legaram isso através de fontes documentais e narrativas. A História não se constrói apenas com a expressão testemunhal da documentação, dos discursos institucionais. Há História para além do discursos e documentação oficiais. A História daqueles que presenciaram diversos momentos e foram capazes de os transmitir, porque senhores do domínio da escrita, também devem merecer a nossa atenção. Porque, na verdade a História também se constrói com estas vozes, que muitas vezes em coro, reivindicam ou expressam certas situações e realidades. À memória fria da escrita da documentação oficial teremos de juntar o discurso mais intimista dos diversos escribas, sejam eles historiadores, aventureiros e cientistas. Depois o discurso da ilha completa-se com o coro de vozes que se levantam a partir de 1821 com a imprensa e a tribuna parlamentar. O aparecimento das primeiras tipografias permite uma divulgação das ideias e discurso a mais gente com capacidade de soletrar as palavras. Os jornais, mais do que informar são uma forma de reivindicar, de expressão de vozes dissonantes, muito reivindicativas de ideais sociais, políticos e económicos. Também o parlamentarismo foi mais uma oportunidade para a expressão e reivindicação dos interesses das regiões. Os deputados são tribunos que expressam em todos os seus discurso, não os interesses do grupo político a que pertencem, mas acima de tudo os das regiões que os elegeram e que representam. Desta forma as vozes da ilha ecoam de forma permanente junto dos centros de decisão e acabam por trazer, por vezes, de volta as soluções ou respostas à muito desejadas. Dar voz e procurar entender todas estas vozes que ganharam expressão na escrita documental, nos textos narrativas, nas cronicas dos jornais e nas tribunas parlamentares, é aquilo que pretendemos fazer neste momento, acompanhando para tal o discurso da História da ilha, desde os primórdios da sua ocupação até ao presente. 32

Apropriação e Conquista do Paraiso A chegada a um novo espaço, nunca dantes ocupado por alguém do mundo cristão implicava um ritual de apropriação ou de conquista para o mundo cristão. Foi isso que fez João Gonçalves Zarco, mal desembarcou em Machico: ...depois de ver a terra quão fresca e viçosa era, deu muitas graças a Deus pela mercê que lhe fizera e, pelos padres, mandou benzer água, que andaram espargindo pelo ar e pela terra, como quem desfazia encantamento ou tomava posse, em nome de Deus, daquela terra nova, nunca lavrada, nem conhecida (senão, pouco antes, de Machim) desde o princípio do mundo até àquela hora. E, isto feito, mandou, dentro na árvore e casa que do tronco estava feita, armar um altar sobre a mesa de Machim, onde se disse missa com muita devação (sic) e solenidade, e disseram responso de finados sobre as sepulturas; e esta foi a primeira missa que se disse, dia da Visitação de Santa Isabel, dois dias de Julho do ano acima dito de mil e quatrocentos e dezanove, naquela ilha e lugar, onde se depois fundou a igreja de Cristo.1 Esta apropriação ritualística do espaço foi completada aquando da segunda viagem de reconhecimento e ocupação da Madeira. Um pouco por toda a ilha onde o percurso reconhecimento foi feito e as enseadas permitiram desembarcar foi-se procedendo a este ritual de apropriação através da colocação de cruzes2. Assim ficava reconhecido aos portugueses o direito de posse e fruição de tanta riqueza. Note-se que a primeira imagem que os portugueses retiveram da ilha foi a de Paraíso terreal. Esta impressão dos primeiros povoadores, como de muitos que só sucederam na visita ou partilha do espaço, persistiu no tempo. A ideia do Paraíso na terra está sempre presente na cultura mediterrânica e tem expressão distinta na Literatura. Por outro lado esta busca do paraíso entusiasmou navegadores desde tempos muitos antigos e chegou até Colombo3. O paraíso desenha-se em todos os recantos mais longínquos e a ilha parece ser o espaço ideal para a sua expressão4. Para os portugueses a Madeira foi a primeira esperança e expressão disso mesmo: .....disse um estrangeiro que parecia que, quando Deus descera do Céu, a primeira terra em que pusera seus santos pés fora ela.5 A ilha paraíso quererá dizer um espaço de deleite, onde tudo existe, é perfeito e pode ser usufruído em abundancia. Terra que por isso mesmo não precisa de receber mas de dar tudo aquilo que 1

FRUTOSO, Doutor Gaspar, 1979, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, s.n, p.42-43.

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“...Indo assim costeando a ilha ao longo do arvoredo, que, em partes, chegava ao mar, passando uma volta que faz a terra, . entraram em uma formosa angra, na praia da qual acharam um formoso e deleitoso vale coberto de arvoredo por sua ordem composto, onde acharam em terra uns cepos velhos derribados do tempo, dos quais mandou o capitão fazer uma cruz, que logo fez arvorar em um alto de uma árvore, dando nome ao lugar Santa Cruz, onde se depois fundou uma nobre vila,... E, chegados a uma ponta, que no dia dantes tinham visto, mandou o capitão pôr nela uma cruz, donde lhe ficou o nome Ponta da Cruz. FRUTOSO, Doutor Gaspar, 1979, p.46, 48

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O filme de Ridley Scott sobre a Saga de Colombo tem por título: 1492 - A CONQUISTA DO PARAÍSO (1492: Conquest of Paradise, ESP/FRA/ING 1992). Cf. Kirkpatrick Sale, 1992, A Conquista do Paraíso: Cristóvão Colombo e seu legado, Jorge Zahar editor.

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Cf. SILVA, José Manuel Azevedo e, 1995, «Eva Gomes e o Estado Nascente de um novo paraíso terreal no meio do Atlântico: a Madeira», in Actas do Congresso O Rosto Feminino da Expansão Portuguesa, Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, pp. 391-405.

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1590(?), Doutor Gaspar Frutuoso, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, pp.99-100.

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encerra aos que a procuram. A ilha da Madeira, (...) que Deus pôs no mar oceano ocidental (...) por ser tal e parecer nele um único horto terreal tão deleitoso, em tão bom clima situada ou criada, disse um estrangeiro que parecia que, quando Deus descera do Céu, a primeira terra em que pusera seus santos pés fora ela6. Esta imagem da ilha paraíso, mansão dos deuses, vem da Antiguidade Clássica e para o caso da Madeira perdura no tempo. São muitas as evidências desta relação da Madeira com o Paraíso. Apenas um testemunho mais recente a corroborar esta imagem: Não sei onde fica o paraíso terrestre, nem mesmo sei se ele existe. Se ele existe, porém, não pode ser noutra parte; tem que ser nesta ilha ridente, majestosa, de ciclópicas escarpas, de frescas levadas, de florilégios sem par, de contrastes que surpreendem, de quadros sem rival.7 Esta visão paradisíaca é uma insistência quase permanente no tempo, que por vezes nos leva a duvidar de tanto encantamento por parte da literatura. Assim António Montês que refere a ilha, “canto do Paraíso, obra de Deus que os homens, com seu engenho, sua bondade, seu amor à terra, vêm aperfeiçoando dia a dia para que nada falte aos que a visitam”8 A ideia de paraíso está sempre presente na memória de quase todos os forasteiros e funciona muitas vezes como motivo de apresentação da ilha e de apelo a novos visitantes. Em 1948, Edmundo Tavares sente esse pulsar da urbe cheia de turistas em busca deste mitológico e bíblico recanto, pois para muitos dos vistantes esta é “indiscutível maravilha da natureza pela sua incrível formosura, pelo pitoresco extraordinário da sua paisagem, pela graça dos seus costumes, e pelos primores das suas flores perfumadas e dos seus frutos saborosos, é um imenso rincão de magia e de sonho, verdadeiro Éden ou Paraíso Terrestre que encanta, embriaga e entontece o visitante9. Há muito tempo que a literatura greco-romana havia descoberta e criado esta visão mitológica do oceano Atlântico, onde o Bem se entrecruzava com o Mal. Em muitos textos a visões aterrorizadoras e contrárias à navegação anunciavam o fim do mundo terreal nas colunas de Hércules. Para disso ficava o desconhecido, como o paraíso terreal apenas de desfrute dos deuses e heróis mitológicos. Aquilo que para os antigos povos mediterrânicos era considerado inatingível tornou-se para os europeus dos séculos XV e XVI numa esperança. Os povos peninsulares ousaram enfrentar o oceano, o desconhecido e descobriram ilhas que se revelaram como espaços de grande valor económico. Esta oceano está polvilhada de ilhas cheias de lendas. As literaturas greco-romana e árabe dão-nos 6

1590(?), Doutor Gaspar Frutuoso, Livro Segundo das Saudades da Terra,

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Álvaro Valente, 1953, Viagem de Maravilhas (à Madeira), p.99. Já Manoel Thomaz no século XVII, na Insulana apresentava esta ilha paraíso:“O sítio que do Mar se descobria, Que um novo paraíso parecia” , ou então “ Mostram ser paraíso a nova Terra”. Depois Bulhão Pato («Paquita», in NEPOMUCENO, Rui Firmino, 2008, A Madeira vista por escritores portugueses (séculos XIX e XX), Funchal, Funchal 500 anos C.M.F.,p 226) a definira como Paraíso Terreal: Que anfiteatro, ó Deus! Que paraíso!

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MONTÊS, 1938, Terras de Portugal, p. 186.

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TAVARES, 1948, Terra Atlântica (Impressões da Madeira), p. 21.

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conta de várias ilhas fantásticas que a partir do século XIV despertaram a atenção dos navegadores. À Atlântida juntou-se a ideia de ilhas Afortunadas, Hespérides, Antília (ou Sete Cidades), S. Brandão e Brasil. A Atlântida é a versão mais conhecida e divulgada da tradição mitológica sobre o Atlântico10. Esta era identificada muitas vezes como a mansão dos deuses, o destino dos heróis da mitologia grega, sendo conhecida como Makaron Nesoi (= ilhas afortunadas)11. A literatura divulgou os relatos das primeiras expedições atlânticas em que surgem as primeiras referências a ilhas, definidas como Campos Eliseos, dos Bem Aventurados, Afortunadas, Jardim das Delícias, Hespérides. Plauto, no séc. I a.C., apresenta-as como o destino de todos os que haviam passado honradamente a vida. Esta tradição literária do Paraíso iniciada com Homero persistiu até ao século XVI. O clima primaveril, o denso arvoredo e a abundância de águas são inconfundíveis atributos da Madeira e estão presentes em muitos relatos. Diodoro da Sicília na Biblioteca Histórica refere a descoberta no século V a.C. de uma ilha descrita pelo ambiente paradisíaco e denso arvoredo. Estrabão situa em 100 a.C. o encontro de uma outra que espantou os seus descobridores pela abundância de água e madeiras. Plutarco, cerca de 80 a.C., na narrativa da História de Sertório, diz-nos que este, ao ser perseguido pelos romanos, refugiou-se numa ilha, identificada com a Madeira. Plínio, o velho, na História Natural apelida-a de Conuallis e Planaria. O Paraíso esta aí bem perto e reservado para a sua revelação e fruição pelos portugueses e castelhanos, aqueles que ousaram enfrentar o desconhecido e abrir-lhes as portas ao mundo cristão.

A ILHA DO TESOURO A minguem restará dúvidas que o tesouro nem sempre se encontra escondido e que quase sempre é apenas usufruto de alguns. A ideia da ilha do Tesouro é tardia na literatura mas muito antiga no imaginário ocidental12. A muitas ilhas foi dado este epíteto e a Madeira pode muito bem o receber. São múltiplas as vozes que em uníssono reclamam desta ideia de ilha do Tesouro para Madeira, mas de um tesouro construído pelo próprio homem e nunca fruto de um acaso ou sorte. Associada a esta ideia podemos enumerar diversos epítetos. João de Barros13 usa o epíteto de princesa: ...e ela tão nobre fértil e generosa em seus moradores, que (…) se pode chamar Princesa de todas”. Entretanto em meados da centúria quatrocentista, um dos primeiros navegadores estrangeiros a pisar o solo madeirense revela-nos o seu encanto pelo ouro que a ilha a todos distribui: 10

Vidal-Naquet,Pierre, 2006, La Atlántida: pequeña historia de un mito platónico, Ediciones AKAL

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Cf. Martínez, M., 1992, Canarias en la Mitología. Historia mítica del Archipiélago, Santa Cruz de Tenerife; Martínez, Marcos, 1996, Las Islas Canarias de la antigüedad al renacimiento: nuevos aspectos Nuevos estudios de historia canaria, SCT, Centro de la Cultura Popular Canaria.

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A ideia da ilha Tesouro (1883) com o romance de Robert Louis Stevenson. Esta última ideia parece ter encantado os escritores, pois o número de títulos é neste momento de 450. Veja-se a esta propósito: “the treasure island illustrated editions collection”, University of Minnesota Libraries – Special Collections and Archives, disponivel online em url: http://special.lib.umn.edu/clrc/treasureisland/index.php. consulta em 22 de Julho de 2009.

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Barros, João, 1998, Ásia – Primeira Década, Imprensa Nacional, p. 17.

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...há nela muitos homens ricos, para a região; porque toda ela é um jardim, e tudo o que colhem na dita ilha é ouro14. Nos dias de hoje, como em dias passados, a ilha era a mina de ouro que fornecia o dinheiro para as operações políticas de Portugal, para a receita do Rei e os prazeres dos seus compatriotas do continente. Pobre Madeira que tem vindo a ser constantemente sangrada pelos sucessivos governos de Portugal que abasteciam dinastias em fase de falecimento, instituições governamentais em queda, e políticos que nos Estados Unidos são conhecidos como praticantes de extorsão. […] sem a interferência internacional, e a introdução de um regime que considere em primeiro lugar os habitantes e todos aqueles que lá trabalham, para ganhar o seu sustento neste maravilhoso lugar, e em segundo a preguiçosa burocracia15. Estámos perante um tesouro partilhado por muitos mas que a poucos madeirenses beneficia. Na ilha parece que ficaram apenas as escórias deste proclamado ouro branco que foi o açúcar ! ...he huma das principaes e proveitozas couzas que noz, e real coroa de nosso reynos temos para ajudar, e soportamento de estado real, e encargos de nossos reynos16. A Madeira, Senhores, he uma fonte de riqueza para Portugal. Em todos os tempos tem contribuído com avultadas sommas para as precisões do Estado17.

Na verdade a partilha não é equitativa, pelo que este tesouro não é de fruição comum, entre os residentes e não residentes. A imagem que o devir histórico enuncia é a de uma riqueza não partilhada de forma equitativa entre os distintos intervenientes. Daí a ideia muitas vezes de um tesouro a saque e que os ilhéus raras ou nenhumas vezes vislumbra os reflexos de tão reluzente metal no quotidiano. Será talvez por força disso que para muitos este tesouro tem dono e ele tem direito à sua fruição, porque criou as condições para a sua existência: ...esta ilha era uma horta do Senhor Infante e ele pôs e trouxe a semente e plantou estas canas e a deu a toda a ilha à sua própria custa...18 Entretanto outros são confrontados com esta realidade por herança e reafirmam a sua posse e usufruto: ...he huma das principaes e proveitozas couzas que noz, e real coroa de nosso reynos temos para 14

1450(?), Cadamosto (c.1432/1488), in ARAGÃO, António, 1982, A Madeira vista por Estrangeiros. 1450.1700, Funchal, p.37.

15

LETHBRIDGE, Alan, 1924, Madeira impressions and associations, p. 74

16

1497-Abril-27: Carta régia de El-Rei D. Manuel revertendo para a Coroa a posse da ilha da Madeira, in 1973, Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVII, p.363.

17

Deputado Manuel Caetano Pimenta de Aguiar, Diário nº 47, 05-III-1827, p.514-515.

18

Carta de Simão Gonçalves da Câmara, AN/TT, Corpo Cronológico, I, Maço 27 - nº52, 25 Junho.

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ajudar, e soportamento de estado real, e encargos de nossos reynos. 19 Com o tempo outros mais foram se aproximando e conseguindo entrar na partilha do tesouro, que acaba desaparecendo sem deixar rasto na ilha: “O paíz que pode enriquecer um grande número de cazas inglezas, não tem meios para alimentar e dar os mais simples commodos da vida a tantos dos seus habitantes! Um paíz que tem as suas estradas, os seus aqueductos, os seus diques por fazer, as suas culturas por melhorar e estender, não tem trabalho que dar aos desgraçados que lh’o imploram e que deixam aos centos uma pátria deliciosa para correr as aventuras e riscos de uma emigração mercenária e, muitas vezes, cruel.”20 Foi por isso que levantaram inúmeras vozes, em diversas formas e tribunas, a reclamar o retorno deste tesouro: Sabemos que fazemos parte do reino de Portugal, única e exclusivamente para aquinhoarmos nos encargos que se renovam ou baptizam com nomes diferentes, mas que sempre se acrescentam. Para os benefícios, para melhoramentos materiaes é o mesmo que não existíramos. Somos filhos espúrios.21 Estamos perante um tesouro que se derrama pelo mundo mas que manifestamente foi ingrato e negado aos ilhéus. Esta ingratidão é uma constante do sentimento dos madeirenses em situações de dificuldades e ganha expressão na voz daqueles que a documentação permitiu registar, dos outros perde-se no silêncio das montanhas. Inúmeras vezes nos temos perguntado se esta insistente exaltação das riquezas da ilha não poderá ser uma forma indireta de responder aos apelos dos madeirenses e de negar os apoios que se solicitam. Sim, porque na verdade que convive com tamanha riqueza não precisa de ajuda, de intervenção e apoios de fora. Antes pode e deve partilhar e ser magnânimo perante a pressão fiscal do Estado. Tal como acabamos de ver a ilha aparece nos escritos literários e de viagem quase sempre identificada como o paraíso na terra, o espaço de deleite dos deuses, de descanso e usufruto para os heróis. Se na Antiguidade esta opção/visão da ilha aparece de forma não intencional, atitude que se repetirá em certa medida no século XV com os descobrimentos atlânticos. Já para épocas posteriores poderá ser um fator a ter em conta na análise e relação da ilha com o continente próximo que a domina e subjuga. A ideia de Paraíso conduz-nos à visão de um espaço onde tudo existe e tudo é perfeito, não sendo necessária a intervenção do Homem. Também a exaltação da riqueza poderá ser uma forma de dizer que a mesma não precisa de ajuda, de intervenção de fora, por força dos elevados excedentes, que por isso mesmo, pode partilhar através da sempre presente pressão fiscal do Estado continental. Ambas as situações, que muitas vezes definem no discurso literário a imagem da ilha, atuam de forma desfavorável para a ilha. Terá sido de forma inocente que durante muito tempo se manteve o discurso e a visão histórica da Madeira em torno desta exaltação paradisíaca e das riquezas geradas pelo vinho e açúcar? 19

1497-Abril-27: Carta régia de El-Rei D. Manuel revertendo para a Coroa a posse da ilha da Madeira, in 1973, Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVII.

20

Francisco BARRAL, 1854, Notícia sobre o clima do Funchal e a sua influência sobre no tratamento da phthisica pulmona, p. 114.

21

VIEIRA, Manuel José (1883), Discurso Pronunciado na Câmara dos Senhores Deputados, Funchal, pp. 7

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Pensamos que isso, embora por vezes possa parecer uma postura inconsciente e não intencional, subjaz a ideia de não retorno, de ilusão de uma realidade distinta e de carências. Dir-se-á que quem gera riqueza não necessita de apoios. Um poço que está cheio não necessita que se canalize a açudada da levada para ele, mas antes precisa de uma porta/comporta para o seu vazamento. Por outro lado esta imagem de uma ilha rica, tão propalada na literatura em momentos específicos identifica picos de prosperidade da mesma, o gerar de riqueza que estará na mira do executor fiscal e das múltiplas formas de tributação. Esta imagem cobre as falhas documentais, a ausência de dados contabilísticos. É por isso mesmo que fizemos apelo a estes textos e que lhes atribuímos importância. Serão mais um testemunho maioritariamente insuspeito e definidor da importância económica e fiscal do espaço da ilha no momento em apreço. Se estamos perante uma produção e exportação elevada de um determinado produto, mesmo que faltem dados contabilísticos minguem duvidará que a maquia do Estado foi vantajosa. Ainda não podemos esquecer que na ausência de dados oficias de carácter quantitativo para nos elucidar sobre a evolução das finanças públicas e a riqueza do arquipélago os escritos e testemunhos de viajantes e memorialistas que em todos os tempos registaram o quotidiano madeirense poderão ser um elemento a ter em conta nesta avaliação de carácter qualitativo da realidade que nos ocupa.

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