MAESTRI, M. & SANTOS, J.Q & ESSELIN, P. (ORG). Peões, vaqueiros & cativos campeiros Estudos sobre a economia pastoril no Brasil. vol. 3

July 28, 2017 | Autor: Mário Maestri | Categoria: Brazilian Studies, Slavery, History of Slavery, Brazil, História do Brasil, Historiografía
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Descrição do Produto

Peões, vaqueiros & cativos campeiros

Estudos sobre a economia pastoril no Brasil

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

José Carlos Carles de Souza Reitor

Neusa Maria Henriques Rocha Vice-Reitora de Graduação

Leonardo José Gil Barcellos

Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

Lorena Terezinha Geib

Vice-Reitora de Extensão e Assuntos Comunitários

Agenor Dias de Meira Júnior Vice-Reitor Administrativo

UPF Editora

Simone Meredith Scheffer Basso Editora

CONSELHO EDITORIAL

Alexandre Augusto Nienow Alvaro Della Bona Altair Alberto Fávero Ana Carolina Bertoletti de Marchi Andrea Poleto Oltramari Angelo Vitório Cenci Cleiton Chiamonti Bona Fernando Fornari Graciela René Ormezzano Renata Holzbach Tagliari Rosimar Serena Siqueira Esquinsani Sergio Machado Porto Zacarias Martin Chamberlain Pravia

Mário Maestri Júlio Ricardo Quevedo dos Santos Paulo Esselin (Org.)

Peões, vaqueiros & cativos campeiros

Estudos sobre a economia pastoril no Brasil Paulo Esselin Elaine Cancian Solimar Oliveira Lima Mário Maestri Júlio Ricardo Quevedo dos Santos Mateus de Oliveira Couto

2010 Apoio:

Copyright © Editora Universitária Maria Emilse Lucatelli Editoria de Texto

Sabino Gallon

Revisão de Emendas

Alisson Gampert Spanemberg Produção da Capa

Sirlete Regina da Silva

Projeto Gráfico e Diagramação

En el corral acuarela sobre papel, 17,5 x 25,5 cm Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires

Imagem da Capa

Este livro no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do autor ou da editora. A exatidão das informações e dos conceitos e opiniões emitidos, bem como as imagens, tabelas, quadros e figuras, são de exclusiva responsabilidade dos autores.

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Associação Brasileira das Editoras Universitárias

Sumário Estudos sobre a economia pastoril no Brasil ............................................. 7 Mário Maestri

Tensões Brasil-Paraguai: o gado bovino mato-grossense e a guerra de 1865-1870 .......................................................................................13 Paulo Esselin

Velhas fazendas: escravidão, poder e violência - campos da vila de Santa Cruz de Corumbá - século 19.......................................................44 Elaine Cancian

Fortunas do gado: fraudes e acumulação subtraída nas fazendas pastoris do Piauí .................................................................................73 Solimar Oliveira Lima

Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino..............92 Mário Maestri

Atividades pastoril-missioneiras: imagens & textos .................................147 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

A demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859) ..................................................................................179 Mateus de Oliveira Couto

Estudos sobre a economia pastoril no Brasil Mário Maestri A produção pastoril acompanha praticamente toda a história do Brasil. Desde que, a partir da ocupação territorial, nos anos 1530, bovinos, equinos e muares foram introduzidos na América portuguesa para a produção de animais de corte, de transporte e de tração, até os dias de hoje, a criação pastoril constitui atividade de essencial importância sobretudo para a vida econômica e social do Brasil. Produção subsidiária das atividades primário-exportadoras, empurrada para o interior pela impossibilidade de proteção das plantações das bocas e das patas dos gados por cercas inexistentes praticamente até o século 20, o pastoreio constituiu vetor essencial de exploração-ocupação dos sertões do Brasil. Como a carne e a força animal, o couro também constituiu desde logo matéria essencial à produção de mobiliário, de vestimentas, de utensílios, etc. e, a seguir, rentável exportação ao Velho Mundo. Tamanha foi a importância da criação pastoril ao Brasil colonial que não houve cronista que não se debruçasse, às vezes longamente, sobre a atividade, com destaque para Gândavo, Brandão, Fernão Cardim, o frei Salvador, Gabriel Soares de Sousa.1 Trabalhos sucessivos sobre as riquezas coloniais 1

Cf. GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da província do Brasil. Rio de Janeiro: INL/ Ministério da Educação e Cultura, 1965; SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 4. ed. São Paulo: CEN; Edusp, 1971;

abordaram também detidamente o tema.2 Autores fundamentais, como Capistrano de Abreu, assentaram fortemente suas interpretações sobre a formação social brasileira na atividade.3 As leituras gerais clássicas da história econômica do Brasil também destacaram as práticas pastoris, alongando-se habitualmente sobre elas.4 Na sua germinal História econômica do Brasil, Roberto C. Simonsen registrou o temor de ter se detido, “talvez em demasia, sobre vários aspectos da indústria pecuária nos tempos coloniais, para melhor acentual o salientíssimo papel que desempenhou na formação econômica do brasileira”.5 Portanto, jamais houve dúvidas sobre a importância da produção pastoril em nossa história. Paradoxalmente, apesar do reconhecimento geral da importância da economia criatória à história social e econômica do Brasil e de vários autores terem abordado desde cedo tangencialmente essa questão,6 como apenas assinalado, são escassos os estudos historiográficos dedicados especificamente à atividade, mesmo em regiões em que desempenharam papel

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CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2. ed. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000; SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982; BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1977. Cf., por exemplo: ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e mina. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. Cf. CAPISTRANO DE ABREU, João. Caminhos antigos e povamento do Brasil. Rio de Janeiro: Briguiet, 1930; _____. Capítulos da história colonial. (15001800). 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976. Cf. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo – Colônia. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1953; FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Brasília: Edunb, 1963; SIMONSEN, Roberto C. (1889-1948). História econômica do Brasil. (1500-1820). 7. ed. São Paulo: CEN; Brasília: INL, 1977. SIMONSEN, R. C. Ob. cit., p. 85. Cf. por exemplo: GOULART, José Alípio. Transporte nos engenhos de açúcar (1959); Meios e instrumentos de transporte no interior do Brasil (1959); Tropas e tropeiros na formação do Brasil (1961); O cavalo na formação do Brasil (1964); Brasil do boi e de couro (1965); O ciclo do couro no Nordeste (1966). Mário Maestri, Júlio Ricardo Quevedo dos Santos, Paulo Esselin (Org.)

essencial, como, por exemplo, o Ceará, o Mato Grosso do Sul, o Piauí, o Rio Grande do Sul, etc. O caso do Rio Grande do Sul é paradigmático. Enquanto esta região não possui sequer uma história geral digna do nome sobre a atividade pastoril, o Uruguai e a Argentina, que compartilham com o meridião sulino a mesma realidade socioecológica, produzem há décadas vasta e refinada produção sobre o tema.7 Guilhermino César, fundamental intérprete da sociedade pastoril rio-grandense, não publicou em vida interpretação geral sintética que ensaiou sobre essa realidade.8 Mais comumente, a historiografia nacional e regional abordou a produção pastoril brasileira nos seus aspectos gerais, compreendidos como escassamente dinâmicos. São raros os estudos que apreendem a questão num sentido diacrônico, fixando a importante evolução da atividade através dos anos, no que se refere às técnicas, relações sociais, produtividade, etc. O caráter generalizante e sintético dos estudos historiográficos tradicionais sobre essa atividade, sobretudo referentes à Colônia e ao Império, ensejou a definição das práticas pastoris como atividade envolvendo quase exclusivamente a mão de obra livre, em geral a partir de deduções lógicas e dados limitados, realidade que a nova historiografia já desmentiu no que se refere a regiões de importantes raízes pastoris, como o Piauí e o Rio Grande do Sul.9 Em 2007, os historiadores Elaine Cancian, Helen Ortiz, Júlio Quevedo, Maria do Carmo Brazil, Mário Maestri (coor7

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Cf. MAESTRI, Mário. A escravidão nas fazendas pastoris de Soledade, no norte do RS. Espaço Acadêmico, ano 7, n. 75, abr. 2007. Disponível em: www.espacoacademico.com.br Cf. CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL; Corag, 2005. Cf., entre outros: ZARTH, Paulo A. História agrária do planalto gaúcho. 18501920. Ijuí: Ediijuí, 1997; MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior: trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EdiUPF, 2002; LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí (1822-1871). Passo Fundo: Editora UPF, 2005. Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil

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denador) e Paulo Esselin apresentaram proposta de pesquisa, “A produção pastoril no Piauí, no Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul, de 1780 a 1930: um estudo comparado”, gentilmente acolhida pelo CNPq, nos quadros de seu Edital MCT/CNPq 15/2007 – Universal. Esse acolhimento permitiu o desenvolvimento dos trabalhos que tiveram, como veremos a seguir, no número especial da revista História: Debates e Tendência e neste presente volume, apresentações parciais. O projeto propunha-se a estudar o processo de introdução, consolidação e desenvolvimento da produção pastoril, com destaque para o gado bovino, de 1780 a 1930, no Piauí, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, três regiões do Brasil onde a produção pastoril desempenhou papel singular e, comumente, dominante, ou seja, onde não constituiu atividade subsidiária, determinada fortemente por outras esferas da produção. A escolha das três regiões deveu-se também às suas diversidades bioecológicas e do fato de não haver interligação e influência direta entre as atividades criatórias das mesmas. No que se refere à data, definiu-se 1780 como o período inicial da análise particularizada do tema por ser nesse ano que, devido às grandes secas que se abateram então sobre o Nordeste, iniciou-se a produção intensiva charqueadora riograndense, a qual determinou a rápida e plena ocupação da Campanha por fazendas pastoris. O início da produção charqueadora no sul do Brasil, com destaque para o eixo saladeiril pelotense, desde os anos 1780 demarcou igualmente a superação nessas regiões da criação do gado vacum essencialmente pelo couro, dando origem a práticas criatórias voltadas à produção de animais pela carne e couro.10 Procurou-se definir espaço temporal que permitisse cotejamento harmônico das atividades nas três regiões. Previam-se, porém, descrições 10

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Cf., entre outros: GUTIERREZ, Ester. Negros, charqueadas e olarias. Um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPEL, 1993; CORESTTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no séc. XIX. Rio de Janeiro: UFF, 1983. p. 104. (Dissertação de mestrado). Mário Maestri, Júlio Ricardo Quevedo dos Santos, Paulo Esselin (Org.)

sintéticas sobre as práticas criatórias fundacionais, anteriores a esse período. A opção de 1930 como teto cronológico da investigação deveu-se a ser esse ano o marco político da superação relativa da crise que se abatia sobre a produção primária brasileira, que não poupou a produção pastoril, em refluxo desde a recessão dos mercados nacionais e mundial, após o fim da Grande Guerra, em 1918. A partir da Revolução de 1930, a reorientação da economia nacional para o mercado interno e políticas setoriais ensejaram que fossem superadas as práticas pastoris consolidadas depois da Abolição, em 1888, e dos cercamentos dos campos, com arames lisos e farpados, a partir dos anos 1875-1885, no que se refere ao Rio Grande do Sul. Efetivamente, é a partir daqueles anos que a produção pastoril, sobretudo sul-rio-grandense, começa a assumir, ainda que timidamente, um caráter capitalista-intensivo, com melhoria genética dos rebanhos, pastagens artificiais, banheiros, bebedouros, etc. Em uma eventual segunda etapa desta investigação, a pesquisa se desenvolverá até os dias de hoje. A compreensão da necessidade de interagir com pesquisadores envolvidos no tema ensejou convites para a produção de artigos sobre o tema, a serem apresentados nas publicações previstas como principais meios de apresentação dos resultados chegados. Em 2008, como parte das iniciativas do projeto, o volume 7 da revista História: Tendência e Debates, do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, apresentou dossier sobre “A fazenda pastoril e a escravidão”, sob a responsabilidade do historiador Mário Maestri, com artigos dos pesquisadores Elaine Cancian – “Cativos nas fazendas pastoris do sul do Mato Grosso”; Helen Ortiz – “Controle e uso da terra no norte do Rio Grande do Sul”; Maria do Carmo Brazil – “Terra e trabalho no sul do Mato Grosso”; Paulo Esselin & Tito Carlos de Oliveira – “Terra onde o gado criou o homem e definiu o latifúndio”; Solimar Oliveira Lima – “VaPeões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil

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queiro escravizado na fazenda pastoril piauiense”. O dossier contou, igualmente, com artigos da historiadora e arquiteta Ester Gutierrez – “Escravidão em estâncias e charqueadas”; de Maria Beatriz Eifert – “Os cativos do Botucaraí”; de Setembrino Dal Bosco – “Capatazes, peões e cativos da estância da Música”, todos do Rio Grande do Sul. Apresentou, também, trabalho do historiador paraguaio Ignácio Telesca – “Esclavos, estâncias y elite. Continuidades y rupturas em la administración de la estância jesuítica de Paraguarí trás la expulsión de los jesuítas (1760-1780)”. Além de artigos dos pesquisadores diretamente envolvidos no projeto, os três tomos de Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril apresentam colaborações do historiador Newton Carneiro e da historiadora e arquiteta Ester J. B. Gutierrez, ambos sul-rio-grandenses, e Eduardo Palermo, uruguaio (primeiro tomo); dos rio-grandenses Adelmir Fiabani, Andréia O. da Silva, Paulo Zarth (historiadores) e Fabiano Teixeira dos Santos (arquiteto); antropólogo paulista Luiz Mott (segundo tomo); historiador riograndense Mateus Couto (terceiro tomo). Registramos, finalmente, nossos agradecimentos ao CNPq, sem o qual, como já proposto, a presente iniciativa não teria se materializado.

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Mário Maestri, Júlio Ricardo Quevedo dos Santos, Paulo Esselin (Org.)

Tensões Brasil-Paraguai: o gado bovino mato-grossense e a guerra de 1865-1870 Paulo Esselin*

A Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai nas disputas do Prata O Paraguai possuía velhas disputas de fronteira com o Império do Brasil, que necessitava da plena liberdade de navegação no rio Paraguai, a via de comunicação mais rápida para ligar sua costa atlântica com importantes territórios ocidental do Império, com destaque para regiões da fronteira do Rio Grande do Sul, de Santa Cataria, do Paraná e, sobretudo, do Mato Grosso. O transporte de mercadorias pesadas e volumosas dessas regiões era possível apenas através dos grandes rios da bacia do Prata. Dessa via de comunicação dependia o relançamento da economia mato-grossense, fortemente estagnada após o ciclo do ouro. Fechada a saída ao mar, só era possível a vinculação com as demais províncias do Império basicamente através do comércio de caravanas, com as dificuldades conhecidas: transpor relevos acidentados, enfrentar a presença hostil de algum remanescente indígena, levar alimentos para atender *

Doutor pela PUCRS, Pós-Doutor pela USP. Professor Adjunto 4 da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]

os animais que compunham a tropa. Eram vias inseguras, trilhas de salteadores, impraticáveis para o grande comércio. O Império corria o risco de ver as terras em disputa com o Paraguai e a própria província de Mato Grosso gravitarem economicamente em torno dos círculos comerciais guaranis, com tendência a se desligar da precária unidade monárquica. O presidente do Paraguai, Carlos Antonio López, aproximou-se do Império, que reconheceu a independência paraguaia, diante da ameaça posta pelo ditador da Argentina Juan Manuel de Rosas, que insistia na submissão da ex-província. Com o eclipse do ditador portenho, após a batalha de Monte Caseros, em inícios de 1852, o Império surgiu como força hegemônica no Prata, exigindo do Paraguai a abertura de seus rios. Antônio Carlos Lopes não se negava a abrir a navegação do grande rio para os navios do Império, “desde que fosse em troca de um tratado que desse fronteiras seguras ao país guarani”. O Império tinha enormes apetites também no relativo às terras em disputa. Em fins de 1854, enviou poderosa expedição naval contra o Paraguai para impor, através da diplomacia das canhoneiras, seus desígnios no relativo às fronteiras e à navegação. Após o enorme fracasso da operação naval, o governo imperial teve de se contentar com acordo, selado em 1856, que liberava a navegação no rio Paraguai, sob controle estrito do país homônimo, e mantinha congelada, por cinco anos, a questão de limites, mesma data em que venceria um acordo semelhante firmado com a Argentina.1

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MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia sobre a provincia de Matto Grosso, seguida d’um roteiro de viagem de sua capital a São Paulo. São Paulo: Typ Henrique Schroeder, 1869.

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O sul do Mato-Grosso: do tratado de 1856 ao início da Guerra do Paraguai, em 1865 A assinatura do tratado de 1856 promoveu mudanças substanciais na região meridional de Mato Grosso, que, pelo franqueamento da navegação, ligou-se ao comércio mundial via o estuário do rio da Prata. A principal beneficiária do tratado foi a cidade de Corumbá, que teve possibilitada a abertura do seu porto a navios nacionais e estrangeiros. Já no ano de 1858, foi criada a Companhia Nacional de Navegação a Vapor, que manteve, a partir de então, uma viagem mensal entre Corumbá e Montevidéu.2 “Corumbá [...] pode dizer-se o depósito central das manufaturas que se distribuem pelos diversos pontos da província: Miranda, Villa Maria, Cuyabá, Albuquerque, etc. Estas localidades e muitas outras da província de Mato Grosso, enviam por sua vez para Corumbá os seus produtos de exportação, tornando-a assim o empório commercial dessa abençoada região.”3 A abertura da navegação pelos rios Paraguai e Paraná deu a Corumbá a condição de principal entreposto comercial da província e porta de acesso às mercadorias europeias da América do Sul e Europa. A princípio, não havia muito o que levar da região: apenas carne de sol, sebo, couro de gado vacum e penas de aves silvestres. A vida econômica da província passou a se desenvolver; ao longo das regiões ribeirinhas havia um crescente movimento de mercadorias e pessoas, quebrando assim uma rotina de profundo paradeiro e abandono. O mesmo decreto que habilitou o porto de Corumbá ao comér2

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BOSSI, Bartolomé. Viagem pittoresca pelos rios Paraná, Paraguai, São Lourenço e Arinos e notícia descriptiva da Provincia de Matto Grosso debaixo de seu aspecto physico, geographico, etnographico, minerologico e produções naturaes. 1863, p. 22-23. FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil. 1875-1878. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exercito, 1986. V. I e II.

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cio criou uma mesa de rendas. Em 1861, instalou-se a alfândega e, em 1862, o povoado foi elevado à categoria de vila.4 Depois de permanecer isolado pela conjuntura colonial portuguesa por mais de 150 anos, o Pantanal sul de Mato Grosso foi favorecido por fatores que provocaram a dinâmica do seu crescimento. Da abertura do porto ao início da guerra com o Paraguai, em 1865, passaram-se somente oito anos, período marcado pelo crescente crescimento da região. “O pantanal mato-grossense passou então a ser mais intensamente ocupado com a abertura de fazendas de gado cujo o núcleo inicial surgiu nos arredores de Cuiabá.”5 A população de Corumbá, que antes da abertura do porto era de cem habitantes, saltou para 1.315 em 1861, dos quais 1.187 eram brasileiros, 29 italianos, 26 franceses, dois alemães, seis espanhóis, seis argentinos, nove orientais, três bolivianos, três americanos e 44 escravos.6 Em 1864, a população de Corumbá atingia “1500 habitantes, na maior parte brasileiros, não excedendo o numero de estrangeiros a cem”.7 A população cresceu devido aos evidentes progressos do comércio: “Cada dia aumenta o numero de edifícios de modesta construção que servem de abrigo provisório aos habitantes que se preparam para entrar em uma vida de atividade e progressos.”8 Geralmente de origem europeia, muitos imigrantes estrangeiros, com a possibilidade de ampliar seus capitais, vieram para Corumbá na condição de mascates, acostumados ao comércio fluvial na foz do Prata pelos rios Uruguai e Para4

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CORRÊA, Lúcia Salsa. Corumbá: o comercio e o Casario do porto (1870-1920). In: CORRÊA, Valmir Batista; CORRÊA, Lúcia Salsa; ALVES, Gilberto Luiz. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Brasília: Gráfica do Senado, 1985. PORTO CARRERO apud FONSECA, op. cit., 1986, v. 1. MOUTINHO, op. cit., 1869, p. 245. BOSSI, op. cit., 1863, p. 22. CAVASSA, Manuel. Memorandum. (Apresentação e notas de Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa). Campo Grande: UFMS, 1997. p. 21.

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guai e entre os portos de Buenos Aires, Montevidéu e Assunção. Além de usufruir do grande comércio que se estabeleceu com as principais cidades do Prata, utilizavam pequenas embarcações com as quais singravam cada rio da planície pantaneira, levando os mais variados produtos aos fazendeiros e seus peões. Isso em uma região extremamente carente de meios para autoabastecimento. Retornavam com as embarcações prenhes de couros bovinos, de animais silvestres e outros produtos da região. O imigrante português Manuel Cavassa se estabeleceu em Corumbá em fins de 1857 e exerceu a atividade de mascate fluvial com pequeno capital inicial, conseguindo acumular, em curto período, considerável fortuna. “É verdade que, aqui tendo-me domiciliado, ganhei muito dinheiro e estava satisfeitíssimo, pois pelos balanços de 1864 as minhas casas representavam um capital de mil, quatrocentos e tantos contos de reis.”9 A abertura da navegação permitiu a alguns proprietários rurais, sediados nas proximidades de Corumbá, ampliar os seus negócios comercializando a carne verde na cidade e exportando o gado em pé via porto. Foi o caso do barão de Vila Maria, que “pode ele então dar saída ao gado e expandir ainda mais, fundando a Fazenda do Barranco Branco (Porto Murtinho) e Fazendas Firme e Palmeiras, entre os rios Taquari e Negro”.10 Antes do início da Guerra do Paraguai, em 1865, já era possível identificar grandes proprietários na posse de imensos rebanhos bovinos: “[...] João Faustino do Prado, da fazenda Rodrigo com 10.000 cabeças de gado; João da Costa Lima [...] da fazenda Chapema, com 10.000 cabeças de gado; Joaquim de Souza Moreira, na fazenda Piqui, João Alves de Arruda, 9

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PROENÇA, Augusto César. Pantanal, gente tradição e história. 3. ed., 1997, p. 82. SODRÉ, Nelson Wermeck. Oeste: ensaio sobre a grande propriedade pastoril. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941.

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na fazenda Rebojo; José Alves de Arruda na fazenda Jatobá; Joaquim Alves Correia, na fazenda do Taboco; Simplício Xavier Ribeiro, na fazenda Cutape; Leopoldino Lino de Faria, na fazenda Santa Voia; João José Pereira Filho na fazenda Monjolinho e Henrique Ferreira Mascarenhas, na fazenda Correntes, emigrado da Baía por obra da Sabinada, em que se envolverá.”11 Uma expedição de engenharia militar, que atravessou o sul de Mato Grosso em 1858, encontrou diversas fazendas do rio Paraná ao Miranda, algumas das quais alojavam grande rebanho. Aparentemente, uma, chamada Santa Gertrudes, próximo da fronteira do Paraguai, tinha dez mil cabeças de gado e duzentos cavalos, enquanto duas outras, duas mil e cinco mil cabeças cada.12 Embora os relatórios produzidos na região raramente mencionem o número do rebanho equino e bovino, Leverger estimou que, em 1863, o rebanho mato-grossense era de quinhentas mil cabeças. Considerando uma taxa de desfrute de 10%, era possível abater cinquenta mil; destas, apenas de dez a dezessete mil eram vendidas a tropeiros mineiros e dois terços, pelo menos, iam para o consumo local, o que registrava um muito baixo aproveitamento das possibilidades produtivas da região. O excedente bovino continuou a não ser totalmente vendido, fato que só ocorreu durante a 1ª Guerra Mundial, quando as exportações de carne cresceram enormemente graças aos frigoríficos estrangeiros estabelecidos em São Paulo.13 Embora o tratado de comércio e navegação estivesse em pleno vigor, com o porto de Corumbá recebendo não só navios 11

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SOUZA apud WILCOX, Robert. Cattle ranching on the Brazilian frontier: Tradition and innovation in the Mato Grosso (1870-1940). New York University, 1992. CORRÊA FILHO, Virgilio. Fazendas de gado no Pantanal Mato-Grossense. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/SIA, 1955. GUIMARÃES, Acyr Vaz. Mato Grosso do Sul, sua evolução histórica. Campo Grande: UCDB, 1999.

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brasileiros, de todas as demais bandeiras, a guerra entre o Império e a República parecia ser uma questão de tempo. Desde meados do século 19, o governo imperial, que até então pouca atenção dera ao sul da província de Mato Grosso, passou a tomar iniciativas visando assegurar o domínio das regiões em litígio com o Paraguai, instalando novas colônias militares ao longo da fronteira, enquanto promovia conversações com o governo daquela República para a abertura da navegação do rio homônimo. Encorajava, igualmente, o estabelecimento de colonos para manter permanente controle sobre a área, desenvolvendo atividades que pudessem, mais tarde, justificar a presença brasileira. Em maio de 1850, uma força de artilharia e infantaria imperial, a mando do presidente da província, Costa Pimentel, desembarcou na encosta do morro Pão de Açúcar, às margens do rio Paraguai, próximo de Coimbra (forte construído pela monarquia portuguesa em 1775 para assegurar a exclusividade da navegação no médio Paraguai e conter as incursões dos nativos) com a intenção de levantar ali um navio-forte. O governo paraguaio reagiu imediatamente, enviando uma frota com tropa de mais de seiscentos soldados, que cercaram a construção e expulsaram os militares imperiais. A segunda colônia militar foi Nioaque, instalada em 1850 com sucesso, à margem do rio Urumbeva, com 226 praças e respectivos oficiais.14 Em 1855, à margem do rio Brilhante, foi fundado outro pequeno forte, São José de Monte Alegre.15 Em 1860, foi construída uma nova colônia militar, que tomou o nome de Miranda, localizada junto à cabeceira do rio homônimo, à margem do seu afluente do lado direito, o córrego Atoleiro.16 Por último, foi criada a Colônia Militar de Doura14

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ALMEIDA, Mario Monteiro de. Episódios históricos da formação geográfica do Brasil: Fixação das raias com o Uruguai e o Paraguai. Rio de Janeiro: Pongetti, 1951. GUIMARÃES, op. cit., 1999. ALMEIDA, op. cit., 1951.

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dos, em 1861, à margem direita do primeiro e maior dos três braços que formam o rio Dourados.17 “Todos (os fortes) visavam, a defender e proteger os moradores estabelecidos nessa parte do território do Império, até as fronteiras do Iguatemi e do Apa, contra as incursões dos selvagens, e a chamar estes por meio de catequese à civilização.”18 Os fortes, na verdade, não foram construídos com o objetivo de proteger e defender os moradores dos ataques dos nativos, pois já não havia nações indígenas insubmissas que colocassem em risco qualquer iniciativa de fixação. O desejo do governo imperial era impedir que, no futuro, o governo paraguaio fizesse exigências sobre aquelas áreas e criar condições para a instalação de pioneiros nos territórios em litígio para, posteriormente, garantir a soberania baseada no princípio do uti possidetis. “[...] o Brasil nunca mudou suas exigências nos tratados lindeiros, e constantemente exigiu as fronteiras, ou mesmo menos do que essas, pelas quais havia combatido desde a Independência, limites que, embora resultassem principalmente de convenções antigas, reclamava exclusivamente, em nome de sua norma internacional, o utipossidetis.”19 O próprio decreto de criação da colônia militar de Dourados, no artigo 8º, dava ao presidente da província de Mato Grosso e, com a sua concordância, ao comandante da colônia, autorização para “fazer concessões gratuitas a colonos brasileiros, até uma légua quadrada (4300 hectares) cada uma e o total das concessões a 200 léguas, com a condição de serem habitadas imediatamente”.20 17

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CORRÊA FILHO, Virgilio. História de Mato Grosso. Instituto Nacional do Livro. Rio de Janeiro, 1969, p. 536. CALOGERAS, Pandia. Formação histórica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1945. p. 288. ALMEIDA, op. cit., p. 348. CAMPESTRINI, Hildebrando; GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. 4. ed. Campo Grande: Academia Sul Mato-Grossense de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 1995. p. 50.

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A colônia militar de Dourados, a mais importante das novas guarnições, foi construída no planalto arenítico basalto Campo Grande-Maracaju ou no nominado Campos de Vacaria, área disputada pelo Império e pela República do Paraguai, que engloba as bacias dos rios Brilhante, Vacaria e Dourados e que hoje abriga os municípios de Rio Brilhante, Sidrolândia, Maracaju, Dourados, Laguna Caarapã, Caarapó, Naviraí e Ponta Porã. Essa região tem uma peculiaridade: estende-se Paraguai adentro numa faixa de 100 km com a mesma uniformidade ambiental, o que leva a imaginar que são regiões irmãs. A própria população nativa guarani, que ali habitava, era a mesma que ocupava o interior do norte do Paraguai; portanto, tanto as condições ambientais como as humanas eram as mesmas; havia uma continuidade paisagística como também uma grande disponibilidade nativa da erva-mate. Até meados do século 19, o Estado imperial não tinha qualquer controle sobre essas áreas, as quais, aliás, eram frequentadas todos os anos por levas de paraguaios que chegavam para extrair a erva nativa e prepará-la, enviando a produção para Assunção. Eles devassavam esse território na crença de que as terras pertencessem ao solo pátrio. Em meados do século 19, o alferes João Crisóstomo, do exército brasileiro, deixou registrado que a área era um campo onde se fazia a extração da erva-mate para o consumo local. “Teriam os povoadores (brasileiros) aprendido com os paraguaios tal mister porque, vindos de outras províncias, não conheciam a planta, nem o seu uso. Os paraguaios adentravam essa e outras regiões para extrair a erva mate, sem contudo, se fixarem. Vinham e voltavam.”21 Seguramente, muitos dos rebanhos que foram encontrados pelos pioneiros brasileiros nos Campos de Vacaria eram 21

BARBOSA, Emilio Garcia. Panoramas do sul de Mato Grosso. Campo Grande: Editôra Empresa Correio do Estado, 1963. p. 13.

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gados remanescentes dos arranchamentos paraguaios para a colheita da erva. “Já escrevi alhures e repito o que meu pai contava com entusiasmo; Antônio Gonçalves Barbosa, subindo o rio que navegava, chegou aos campos do Erê à procura de local adequado para seu rocio e ai encantou cheio de deslumbramento ao avistar uma ponta de gado, só vacas, em verdadeiro éden de verdura.”22 Desde o início, estabeleceu-se uma pecuária incipiente nos fortes, em parte apoiada no gado introduzido pelos paraguaios. Em 1854, uma expedição que se dirigia da província de Cuiabá ao Paraná encontrou em Brilhante uma guarnição composta de 17 soldados, alguns cavalos e 22 touros de transporte e plantações de mandioca, não somente para a própria subsistência, mas para alimentar expedições que entravam na região. De acordo com seus comandantes, em 1862 Dourados tinha aproximadamente sessenta soldados e cinco famílias, enquanto Miranda tinha quarenta soldados e 15 famílias com 56 cabeças de gado, 11 cavalos e algum cultivo de milho e cana-de-açúcar para sua subsistência.23 A construção de fortes, o incentivo à abertura de fazendas, de criatórios, ao cultivo da terra eram manifestações da política lindeira dos gabinetes do governo imperial, no sentido de assegurar a propriedade das terras sulinas da província de Mato Grosso, pela aplicação de um único princípio – o uti possidetis. No mesmo sentido, a República vizinha não fazia muito diferente. O medo da expansão imperial no que era considerado território paraguaio, juntamente com os ataques dos índios guaicurus desde fins do século 18, levou ao estabelecimento de pequenos fortes ao longo do rio Apa, com estímulo permanente a colonos para se estabelecerem e manterem permanente controle sobre a região. 22 23

22

MENDONÇA apud WILCOX, op cit., 2000. (BENITES, 1929, p. 57); ROQUÉ, Julio R. C.; ROMAÑACH, Alfredo B. El Paraguay en 1857: un viaje inédito de Aimé Bonpland. Asunción: UNP/Servilibro, 2006. p. 71. Paulo Esselin

Em princípios dos anos 1860, a fortaleza de Humaitá foi concluída. Aquela posição no rio Paraguai fora artilhada, inicialmente, rápida e precariamente, quando da expedição naval imperial de 1855.24 O governo paraguaio comprou da Inglaterra canhões e grande quantidade de munições, sendo que a esquadra contava com 17 pequenos vapores.25 Aumentou, igualmente, os seus efetivos militares, evidenciando, assim, a ameaça de guerra com o Império. Em princípio de 1862, o presidente Solano Lopes enviou a Mato Grosso Isidoro Resquim, oficial do Exército, disfarçado de comprador de gado e terras, para fazer um levantamento do rebanho equino e bovino das propriedades que concentravam maior número de cabeças, dos armamentos de que dispunham as unidades fronteiriças, enfim, fazer o mapeamento da região.26 Outro espião foi o tenente Andrés Hererro. Em 1863, ele visitou o Mato Grosso com o pretexto de que desejava estreitar relações comerciais entre o Brasil e o Paraguai e anotou tudo que pudesse ser de interesse militar. Passou por Coimbra, Albuquerque e pelo estabelecimento naval de Dourados, à margem direita do rio Paraguai; subiu o rio São Lourenço e o Cuiabá e só não foi até a capital porque era estação da seca e as águas baixas não permitiam o tráfego de navios de alto calado. A guerra foi deflagrada em 1865. Em 1864, as tropas imperiais invadiram a República do Uruguai, sob o pretexto de proteger os proprietários rio-grandenses estabelecidos nos departamentos setentrionais daquela nação, como se vivessem em terras do Império. Apoiando a sublevação do colorado Venâncio Flores, pró-Império e próBuenos Aires, o governo imperial procurava restabelecer a hegemonia que gozara sobre o Uruguai, em razão dos trata24

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VERSEN, Max Von. História da guerra do Paraguai. Belo Horizonte. Itatiaia, 1976. GUIMARÃES, op. cit., 1999. MILLOT, J.; BERTINO, M. Historia economica del Uruguay. Montevidéo: Fundación de Cultura Universitaria, 1991. (1700-1860) Tomo 1. p. 149

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dos de 1851-1852, apenas expirados.27 A invasão do Uruguai e a deposição do governo autonomista pelas forças de Venancio Flores e do Império foram orquestradas por Batolomé Mitre, na cabeça do governo unitarista argentino, desde a vitória de 17 de setembro de 1861, no combate do arroio Pavón, sobre o federalismo argentino. Em associação com o Império, Bartolomé Mitre procurava pôr fim rapidamente aos dois aliados do federalismo provincial argentino – o Partido Blanco, no Uruguai, e o governo autonomista, no Paraguai.28 O governo paraguaio alertara o Império de que a invasão do Uruguai seria considerada casus belli. Isso porque um governo súcubo ao Império em Montevidéu cerraria definitivamente a saída ao mar ao Paraguai, pois Buenos Aires encontrava-se nas mãos do unitarismo argentino, que voltara a sonhar com a própria conquista da província desgarrada. Abandonar o aliado oriental significava enfrentar-se mais tarde com a Argentina e o Império, sem qualquer aliado. As hostilidades entre a República do Paraguai e o Império do Brasil foram anunciadas em novembro de 1864, quando o presidente Solano Lopes deu ordens para capturar o vapor brasileiro Marquês de Olinda, com a consequente prisão do presidente nomeado para Mato Grosso, o coronel Carneiro de Campos, que nele seguia como passageiro.29 No mesmo ano, o Paraguai lançou um ataque ao Mato Grosso com duas poderosas colunas, uma fluvial e outra terrestre. A coluna fluvial, comandada pelo coronel Vicente Barrios, era constituída de quatro batalhões de infantaria (6ª, 7ª, 10ª e 13ª), com 3.200 homens, e de 12 peças raiadas e foguetes à Congreve. Deixou Assunção em 24 de dezembro de 1864, 27

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Cf. PEÑA, Milciades. La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia. 3. ed. Buenos Aires: Fichas, 1975; BANDEIRA, op. cit. CUNHA MATOS apud VERSEN, op cit., 1976. FRAGOSSO, Augusto Tasso. Historia da guerra entre a tríplice aliança e o Paraguai. Rio de Janeiro: Imprensa do Estado Maior do Exercito, 1934. v. I.

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e, ao passar por Conceição, mais mil homens de cavalaria reforçaram a esquadra.30 Os navios que formavam a expedição eram os vapores Taquary, Paraguay, Igurey, Rio Branco e Iporá, escunas Independência, Aquidaban e Patacho Rosário e lanchões Humaitá e Cerro Leon. Mais tarde a ela se juntariam ainda o Salto de Guayra, o Rio Apa e o Marquês de Olinda.31 Dois dias após deixar Assunção, a esquadra paraguaia atracou a poucos quilômetros (do forte) de Coimbra e, após o desembarque, os soldados o sitiaram e tomaram posição para o início do bombardeiro. O forte estava guarnecido de 115 soldados, entre praças e oficiais, além de “10 índios cadiuéos, quatro vigias da Alfandega, três ou quatro paisanos de Albuquerque e 17 presos. Ao todo 150 homens”.32 Por ordem de Porto Carrero, que na ocasião comandava a fortaleza, foi enviada a lancha Jauru para Corumbá com o objetivo de dar a notícia da iminência do ataque paraguaio. Em 27 de dezembro, o coronel Vicente Barrios enviou uma intimação para a rendição do forte, por intermédio de um oficial de suas tropas. A notificação foi rejeitada, o que levou a que a tropa paraguaia iniciasse os primeiros bombardeios com o auxílio dos vapores e das baterias. A infantaria guarani, já estava em terra e avançou, aproveitando-se da alta vegetação que circundava o forte, sendo recebida por forte fogo, que reduziu a intensidade do assalto. A luta se estendeu até as primeiras horas da noite, quando foram suspensos os ataques sem que lograssem êxitos os atacantes. Na manhã seguinte, os paraguaios voltaram à ofensiva com a mesma intensidade, embora sem sucesso; no entanto, tornou-se impossível aos soldados imperiais resistir ao as30

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FRAGOSSO, Augusto Tasso. Historia da guerra entre a tríplice aliança e o Paraguai. Rio de Janeiro: Imprensa do Estado Maior do Exercito, 1934, v. I. BARÃO DO RIO BRANCO apud FRAGOSSO, op cit., 1934, p. 225, v. 1. PÓVOAS, Lenine C. História geral de Mato Grosso: dos primórdios à queda do império. Cuiabá, 1995, v. I, p. 266.

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sédio, em razão do esgotamento da munição. Porto Carrero convocou uma reunião com todos os oficiais, que se decidiram pelo abandono do forte de Coimbra. Na madrugada de 29 de dezembro, a bordo do vapor Anhambaí, a guarnição partiu rumo a Corumbá. “Ao amanhecer do dia 29 os paraguaios que se encontravam preparados para desfechar nova ofensiva, tiveram a surpresa de ver a fortaleza deserta e silenciosa. Pensando que se tratava de ardil dos brasileiros ainda bombardearam Coimbra com sua artilharia, por algum tempo.”33 Em pesquisa recente, Doratioto contesta a versão de que a munição se esgotara. Segundo ele, “na lista do armamento capturado pelos paraguaios em (Coimbra) constam 83.400 cartuchos de fuzil e 120 quilogramas de pólvora fina”.34 Com a queda de Coimbra, o exército paraguaio continuou o seu avanço. Por terra, partiu uma coluna para ocupar Albuquerque e a fazenda Piraputangas, do barão de Vila Maria, que reunia milhares de cabeças de gado bovino, e outra, pelo rio Paraguai, rumo a Corumbá. Tanto a vila de Albuquerque como a fazenda Piraputangas já haviam sido abandonadas: “[...] já o Barão de Vila Maria, partira, com a Baronesa, a cavalo, para a Corte, em viagem de sacrifício, a fim de transmitir ao Imperador a notícia da invasão.”35 Quando os retirantes de Coimbra chegaram a Corumbá, encontraram a vila tomada por um incontido pânico, em razão das notícias chegadas pelo Jauru. O coronel Carlos Augusto de Oliveira, responsável pela organização da defesa, resolveu pela evacuação da localidade, “em ato inopino de infâmia e covardia”.36 A lancha Jauru, comandada pelo tenente Balduíno, seguiu para Cuiabá em 2 de janeiro transportando o cofre da Alfândega e algumas famílias. Horas depois, o Anhambaí 33

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DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 101. SOUZA, Lécio Gomes. História de Corumbá: [s. d.], [s. ed.]. p. 53-54. SOUZA, op. cit., p. 50-51. CAVASSA, op. cit., 1997, p. 23. Paulo Esselin

partiu sob o comando de José Israel Alves Guimarães. A notícia da invasão e a fuga das autoridades responsáveis pela segurança da população fizeram com que o pânico tomasse conta de todos aqueles que ali viviam, dando início a desenfreada corrida em busca de lugares nos vapores disponíveis. Aqueles que não conseguiam lugar a bordo aventuravam-se a fugir em barcos e canoas a vela ou a remo, ou buscavam refúgio nas matas. A 3 de janeiro de 1865, as forças do Exército paraguaio tomaram Corumbá. Os seus vapores detiveram muitos daqueles que tentavam fugir sem contar com recursos para tal empreitada. “Às 8 horas da noite mais ou menos aqui (Corumbá) chegaram a canhoneira Taquary e parte das forças inimigas, que veio por terra, vindo já nomeadas as autoridades, que aqui vinham funcionar [...]. Parecia aquela uma noite de São João: vinham mortos de fome os invasores, pelo que tudo que encontravam, porcos, cabras etc., ia para o fogo, e começou o saque das casas de comercio que não tinha moradores.”37 A segunda coluna paraguaia, a expedição terrestre ou Divisão do Norte, partiu de Conceição em 29 de dezembro de 1864, sob o comando do coronel de cavalaria Isidoro Resquim, tendo como subchefe o major Martim Urbieta, com um contingente de 2.500 homens de cavalaria e um batalhão de infantaria com outros mil homens.38 A Divisão do Norte ganhou o território mato-grossense atravessando o Apa, em Bela Vista. Enquanto o grosso da tropa dirigiu-se para a colônia de Miranda, Nioac e vila Miranda, outro grupo, com duzentos cavaleiros e comandados por Urbieta, atacou a colônia de Dourados, onde, embora tenha encontrado pequena resistência, venceu facilmente uma corporação que reunia 15 homens, sob o comando do tenente Antônio João. 37 38

FRAGOSSO, op. cit., 1934, v. 1 GUIMARÃES, Acyr Vaz. Mato Grosso do Sul: história dos municípios. Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 1992.

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No dia anterior ao ataque, a população civil abandonara a praça, embrenhando-se na mataria em busca de proteção. Como Urbieta, Resquim também não encontrou dificuldades para submeter os vilarejos do sudoeste de Mato Grosso. Em 7 de janeiro de 1865, comunicou ao comando superior de Assunção que na colônia militar de Miranda não havia soldados, mas apenas duas senhoras, que haviam se recusado a acompanhar a população fugitiva.39 Ao receberem notícias da proximidade das tropas invasoras, famílias inteiras que residiam em Miranda marcharam em direção aos morros das margens do rio Aquidauana, carregando o que podiam, a pé ou nas poucas carretas ali existentes, e avançando pelos pantanais com enormes sacrifícios até acampar, em caráter provisório, nos altos da morraria.40 Em Nioac, houve rápido entrevero com as tropas imperiais comandadas pelo coronel José Dias, que, após negar rendição, abriu fogo contra os inimigos. No entanto, o avanço das tropas paraguaias e sua superioridade numérica levaram a que o coronel se decidisse pela fuga. Assim, com o avanço das tropas paraguaias, Nioac e a vila de Miranda foram evacuadas, tendo a população procurado refúgio transpondo a serra de Maracaju. As tropas de López obtiveram pleno êxito na invasão de Mato Grosso: ocuparam com a primeira coluna as margens do rio Paraguai, o forte de Coimbra, Albuquerque, Corumbá e, com a segunda, a região entre o rio Apa, a serra de Maracaju e o Taquari, as colônias de Miranda e Dourados e as vilas de Nioac e Miranda, estendendo-se ainda até Coxim. Ao se referir à invasão, Pandiá Calógeras afirmou que López cometeu grande equívoco ao invadir Mato Grosso. Além da divisão das forças paraguaias, essa província não 39

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NANTES, Aglay Trindade. Morro Azul: estórias pantaneiras. Campo Grande, 1993. CALÓGERAS, op. cit., 1945.

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tinha nenhum objetivo militar, pois a conquista do território constituía mero alvo geográfico.41 Por outro lado, o general Tasso Fragosso afirmou que Lopez desfechou ataque à província de Mato Grosso porque “deseja apossar-se dos territórios em litígio, isto é, porque uma de suas principais fontes de inspiração guerreira é precisamente a que ele empresta com absoluta injustiça aos seus adversários. Essa conquista territorial fascina-o de tal maneira que não se preocupa com distrair nela uma parte de suas forças, a qual seria evidentemente mais útil na operação fundamental que iria empreender depois no rumo oposto, a saber, a invasão de Corrientes e do Rio Grande do Sul. Os seus propósitos ficaram registrados de modo indelével nos seus primeiros movimentos estratégicos”.42 Já Joaquim Francisco de Mattos afirmou que a “estratégia de Lopez condenara previamente seu empreendimento à catástrofe: lançando suas forças sobre Mato Grosso sob o comando de Barrios e Resquim que lhe deram sensação de facilmente conquistar um vasto território, ocupou apenas o deserto”.43 Por sua vez, o general Flamarion Barreto Lima destacou que, além da ocupação dos territórios contestados, a invasão paraguaia procurava neutralizar “as forças brasileiras existentes nesta região, assegurando a liberdade de ação para o desencadeamento da ofensiva do sul”.44 Segundo Rio Branco, em agosto de 1864, entre o EstadoMaior, engenheiros, corpo de saúde, eclesiásticos, infantaria, cavalaria e artilharia, havia 875 militares em toda a província. Desses, apenas 165 faziam parte do distrito do baixo Pa41 42

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FRAGOSSO, op. cit., 1934, p. 219, v. 1. MATTOS, Joaquim Francisco de. A Guerra do Paraguai. (história de Francisco Solano Lopes, o exterminador da nação paraguaia). Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1990. p. 122. LIMA, Flamarion Barreto Gal. A guerra do Paraguai. 5. ed. 1988, p. 29. RIO BRANCO apud FRAGOSSO, op. cit., 1934, p. 221-222, v. 1.

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raguai e da vila de Miranda.45 Portanto, a região não teria a menor expressão militar; estava desarmada e indefesa. De acordo com a maioria dos autores, a possibilidade da invasão do território sul-mato-grossense e das regiões em litígio para neutralizar os efetivos ali estacionados não parecia fazer parte da estratégia militar do Exército paraguaio. Entretanto, o próprio barão do Rio Branco assinala que a região mantinha em seus armazéns uma grande quantidade de armas e munições enviadas pelo governo do Império em 1862. Em Maldita guerra, de 2002, Francisco Doratioto propõe: “A negligência militar dos gabinetes que governaram o Brasil fez com que enviassem para Mato Grosso, desde 1862, grande quantidade de armas, munições e outros artigos bélicos, sem destinar a tropa necessária para utilizá-las. Para defender a província eram insuficientes aqueles 875 soldados, dispersos por cinco distritos militares, e os seis pequenos vapores da Marinha imperial, dos quais apenas um dispunha de dois canhões.”46 O armazenamento de abundante e moderno armamento no sul do Mato Grosso não constituía ato insensato do governo imperial, do ponto de vista militar. Ele teria permitido organizar rapidamente uma poderosa segunda frente de combate, aí sim dividindo as forças paraguaias, se a defesa da província não tivesse ruído pela falta de decisão de seus oficiais e defensores. Realidade que pode justificar a maciça intervenção preventiva das tropas paraguaias, que após a conquista se retiraram em sua maior parte da região. O armamento mantido em Mato Grosso foi capturado pelos paraguaios, fortalecendo o antiquado poder bélico dos seus exércitos. “[...] na lista do armamento capturado pelos paraguaios constam 83.400 cartuchos de fuzil e 120 quilogramas de pólvora fina. Na fortaleza de Humaitá, instalou-se a ‘bateria de 45 46

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DORATIOTO, op. cit., 2002, p. 98-99. Idem, p. 101. Paulo Esselin

Coimbra’, assim denominada pelo fato de os dez canhões que a compunham terem sido capturados no forte brasileiro.”47 O ataque pelas tropas paraguaias justificava-se também pela conquista de um espaço territorial em litígio, com a possibilidade de no transcorrer do conflito as autoridades imperiais solucionarem o problema fronteiriço a favor do Paraguai. Todos os autores anteriormente citados não consideraram o talvez fator principal, que era a atração que exercera sobre o governo paraguaio o rebanho bovino e equino, então apascentado nas extensas pastagens sul-mato-grossenses.

O gado sul-mato-grossense e a Guerra do Paraguai O sudoeste de Mato Grosso era uma região semideserta, pouco conhecida e separada dos grandes centros do Império por milhares de quilômetros, mas extremamente cobiçada pelos estrategistas paraguaios, sobretudo em virtude do rebanho equino e bovino que abrigava em seus extensos campos de pastagem natural. À época, a cavalaria constituía-se em um dos elementos mais importantes e necessários à guerra. Aliás, essa era uma preocupação que rondava os círculos dirigentes de Cuiabá. Em correspondência ao barão de Lajes, Gabriel Getulio de Monteiro e Mendonça afirmou “ser a cavalaria a tropa mais apropriada às excursões no território vizinho [...] e que, em caso de guerra, a primeira providência a tomar deveria ser a apreensão da cavalaria inimiga”. Ele “recomendava ainda, que se fizesse forte a guarnição na fronteira do Paraguai a fim de proteger nossa boiada e cavalhada [...]”.48 47

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MENDONÇA apud PROENÇA, M. Cavalcanti. No termo de Cuiabá. Ministério da Educação e Cultura. INL. Rio de Janeiro, 1958. p. 94. MACIEL, A pecuária nos pantanaes de Mato Grosso. Tese apresentada ao 3o Congresso de Agricultura e Pecuária. São Paulo: Imprensa Methodista, 1922. p. 16.

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Quanto ao gado bovino, era o principal recurso de boca para os exércitos em constantes deslocamentos: além de empregado também no transporte, era com ele que se transportava a artilharia. O alimento fundamental das tropas paraguaias e aliancistas durante toda a guerra foi precisamente a carne vacum assada. Os paraguaios tinham informações seguras de que o sul de Mato Grosso abrigava gado suficiente para manter os seus exércitos em guerra e, ainda, atender às necessidades da população assuncenha. Tão logo os soldados paraguaios ocuparam a região, foram destacadas tropas para reunir gado, cavalos e mulas. Foi construído um curral para a retirada dos animais, justamente nas fazendas Firme e Piraputangas, do barão de Vila Maria: “‘Curral do Soldado’ na fazenda Firme as margens do rio Negro, ‘O gado era transportado pela canhoneira Yaporá, e isso só foi possível devido a enchente que permitia a embarcação alcançar o porto da Manga para dentro do campo, numa distância de mais de duas léguas, até o capão que, depois dessa passagem, ficou batisado pelo nome de Yaporá’.”49 Há controvérsias quanto ao número de animais que foram retirados do sudoeste de Mato Grosso para serem enviados a Assunção e para alimentar as tropas estacionadas na província. Das propriedades do barão de Vila Maria, teriam sido retiradas vinte mil cabeças, todas conduzidas para o Paraguai.50 Segundo Thompson, “só o Barão de Vila Maria, o homem então mais rico da província, possuía cerca de 80.000 cabeças de gado em suas propriedades marginais do rio Paraguai. Todo esse gado foi assenhorado pelos paraguaios”.51 Mesmo tendo sido o seu rebanho saqueado pelos paraguaios, dez anos depois da guerra as atividades pecuárias eram ali retomadas, com o restante do gado alçado que os paraguaios 49 50 51

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BOSSI, op. cit., 1863. THOMPSON apud ALMEIDA, op. cit., 1951, p. 345. MACIEL, op. cit., 1922, p. 16. Paulo Esselin

não haviam conseguido reunir.52 Tudo isso comprova o grande volume de cabeças que estavam apascentadas naquela fazenda. No distrito de Miranda, das 150 mil cabeças existentes, segundo o testemunho de João Barbosa Bronzique, sessenta mil caíram em mãos dos exércitos paraguaios.53 “Estes mantêm ainda nesse distrito, mil soldados; creio que os conservam por causa da grande quantidade de carne seca que enviam todos os meses para Assunção.”54 Já nas proximidades da colônia militar de Dourados, foram imediatamente arrebanhadas 1.200 cabeças de gado bovino e oitenta éguas, mil em Nioaque, mais seiscentas em fazendas isoladas. O abate para a manutenção dos soldados paraguaios e da população civil brasileira de Corumbá era de trezentas a quinhentas cabeças por mês.55 “Muito mais ao sul entre os rios Pedra de Cal, também chamado ribeirão das Cruzes, ou Pirapocú, e o Caracol, afluentes da margem direita do Apá, e o espigão divisor das águas de pequenos formadores deste, estendiam-se longos campos de pastos nativos, em que se assinalavam pequenas elevações, como lombadas. Ai nesse território, Solano López, por aquela época do assalto ao núcleo de Taquari, mandou fundar uma estância pastoril, ponto de recuperação, por onde passaram a escoar-se, em descanso, as boiadas arrecadadas no solo matogrossense e destinadas pelo passo de Bela Vista ao interior da República. Os guaranis chamaram-na Machorra, e nela edificaram estabelecimentos, que se elevariam a

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TAUNAY, Visconde de. Campanha de Matto Grosso. Scenas de viagem. São Paulo: Livraria do Globo, 1923. p. 114. TAUNAY, Visconde de. Cartas da campanha de Matto Grosso 1865 a 1866. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, [s. d.]. p. 154. Documentos 12, 14 e 16, Colecion, Rio Branco apud WILCOX, op. cit., 2000, p. 25. ALMEIDA, op. cit., 1951, p. 346.

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oito, para abrigo de tropa e instalação de serviços, grandes currais, oficina de carrieiro e cortume.”56 O ataque ao sul de Mato Grosso consolidou a ideia de que o rebanho bovino, embora tenha se multiplicado à lei da natureza, com muitas perdas e sem trato algum, havia crescido vertiginosamente. “Representou estratégica retaguarda de abastecimento para as forças militares paraguaias.”57 Mesmo nas áreas dos Campos de Vacaria, onde a ocupação se iniciava, o bovino foi encontrado aos milhares, o que comprova que havia sido introduzido por colonos paraguaios que promoviam a colheita da erva-mate, como também por guarnições do exército imperial que se instalaram ao lado de alguns pioneiros, o que contribuiu para elevar o rebanho da região. Embora os soldados paraguaios tenham capturado muito gado bovino e equino para manter seus exércitos e enviálos para Assunção, a maior parte desse gado permaneceu no território sul-mato-grossense sem que pudesse ser retirado, devido à presença devastadora de uma doença fatal que atingiu a cavalhada, conhecida como a peste das cadeiras ou Tripanossomíase equina, “que da Bolívia penetrou, por volta de 1850, em Mato Grosso, cuja tropa de eqüinos foi terrívelmente dizimada”.58 “Transportada da Bolívia em 1857, começou aquela enfermidade a grassar entre os cavalos, com todos os caracteres de epidêmica. Hoje tornou-se endêmica [...]. A zona, em que atua esse mal, estende-se do sul do distrito de Miranda até Cuyabá, exatamente em todos os pontos, onde se dão as inundações periódicas e o alagamento dos campos.”59 Nos campos da planície pantaneira, os significativos estoques de cavalos constituíram motivo de atração aos para56

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CORRÊA, Lúcia Salsa. História e fronteira: o sul de Mato Grosso 1870-1920. Campo Grande: UCDB, 1999. p. 48. CORRÊA FILHO, op. cit., 1969, p. 531. TAUNAY, op. cit., 1923, p. 70. TAUNAY, A retirada da Laguna. São Paulo, [s. d.], p. 6. Paulo Esselin

guaios, quer para usá-los como montaria na região, quer para serem enviados a outras frentes de batalhas, sobretudo no sul, “pois a atenção geral das potências aliadas quase exclusivamente voltada para o sul, para as operações de guerra travadas em torno de Curupaity e Humaytá”.60 A doença, no entanto, comprometeu os planos dos oficiais paraguaios, que não tiveram animais sequer para formar tropas para tirar do território sul-mato-grossense os bovinos ali apascentados. No relatório de Joaquim Ferreira Moutinho ficou registrado que, nas fazendas públicas de Betione e Poeira, os paraguaios haviam deixado milhares de cabeças de gado bovino já marcados a ferro com as letras “LP” (das tradicionais fazendas públicas La Pátria), que se tornaram a maioria selvagem, visto que a região foi abandonada.61 Internamente, desde 1850 a província sofria com as consequências da doença, pois a arrecadação reduziu drasticamente as rendas, que em sua maior parte advinham da pecuária pela comercialização do gado em pé, feita via tropeiros mineiros e paulistas e que foi temporariamente interrompida pela falta de cavalos que pudessem fazer o manejo.62 A força expedicionária imperial que partiu de Uberaba com o propósito de libertar Mato Grosso e abrir uma segunda frente na guerra, ao norte, imortalizada no livro A retirada da Laguna, do futuro visconde de Taunay, sofreu todas as privações em grande parte precisamente devido à escassez de animais de sela. Durante a estada no Coxim, morreram quase todos os muares, não escapando um só cavalo, atingidos pela peste das cadeiras.63 O mesmo aconteceu com as tropas paraguaias que se dirigiram a Coxim quando da ocupação do território mato-grossense e terras em litígio em abril de 1865. “Se bem tivessem 60 61 62 63

MOUTINHO, op. cit., 1869. CORRÊA FILHO, op cit., 1969. TAUNAY, op. cit., 1923. Idem, p. 22.

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levado excelente cavalhada, voltaram muitos dos expedicionários a pé, pois que a peste, comum nestas localidades, incessantemente derribava os melhores animais de sela.”64 Destaque-se, igualmente, a baixa qualidade geral dos animais de monta da época. Quando a coluna brasileira destinada à invasão do Paraguai pelo norte transitou pelas terras sulinas do Coxim, dirigindo-se a Laguna, “pôde averiguar visualmente a extensão dos prejuízos da força da cavalaria dos invasores, estateada nas centenas de carcaças de animais mortos na região pantanosa, assaltados pela peste de cadeira”.65 Os memorialistas Campestrini e Guimarães afirmaram que a força expedicionária, marchando por terras goianas de poucas fazendas e, depois, pela província de Mato Grosso quase desabitada, teve alguns transtornos no tocante ao provisionamento da tropa, concorrendo para isso a pequena produção das roças por falta de chuvas no ano anterior. Além disso, o gado trazido de Goiás, saído gordo dos campos, chegava esquelético, em face das grandes distâncias percorridas.66 No que se refere ao Mato Grosso, sobretudo na planície do Pantanal, o gado bovino era abundante, mas sua obtenção foi se tornando difícil pela falta de cavalos. Taunay, que fazia parte da Força Expedicionária Brasileira como segundo tenente de artilharia, revela que, quando saíram do Coxim, com as provisões meio esgotadas, confiavam no muito gado que vagueava pelos campos. Eles eram vistos pastando em grandes manadas; no entanto, bravios ao extremo, fugiam rapidamente quando pressentiam a presença do homem, tornando difícil abatê-los, como a qualquer outro animal selvagem.67 Em grande parte da viagem, restou ao grupo alimentar-se dos frutos nativos que encontravam pelo caminho: chupavam o miolo de macaubeiros e comiam jatobás verdes, cujo sabor de64 65 66 67

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ALMEIDA, op. cit., 1951, p. 346. CAMPESTRINI; GUIMARÃES, op. cit., 1995. TAUNAY, op. cit., 1923. Idem. Paulo Esselin

sagradável sobrepuja ao cheiro nauseabundo, palmitos, cocos, mel de abelha e guavira.68 A epidemia, que praticamente dizimou o rebanho equino no Pantanal, aparentou a alguns criadores tratar-se de um problema insolúvel.69 Em 1870, no fim da guerra, o comandante das forças imperiais em Miranda relatou que não poderia cumprir as ordens de conduzir gado a Bela Vista porque a doença dizimara o rebanho equino da região. Essa empreitada foi confiada a tropeiros mineiros que estavam trazendo cavalhada por terra, vendendo-a a preços fabulosos.70 A doença fez avultar o preço dos cavalos, que chegou à cifra de 100 a 120$000 por cabeça, dez vezes o preço de um animal no Rio Grande do Sul da época. Os muares, embora não se prestassem ao serviço das fazendas, atingiram a mesma cifra, o que obrigou o mato-grossense a fazer uso do boi manso, tanto para o transporte de cargas (lenha, mantimentos) como para montaria. “[...] muitas vezes vê-se entrar pela cidade tropas de bois arreados com cangalhas e os tocadores de lotes montados n’outros que oferecem mais cômodo no andar.”71 Um fator que motivou a invasão de tropas paraguaias em Mato Grosso foi a oferta de bovinos e equinos disponibilizados em seus campos. Esperavam reunir milhares de cabeças para alimentar seus exércitos em combate e também a população assuncenha. No entanto, o plano dos militares paraguaios frustrou-se quase que completamente em razão da falta de animais de sela, o que os impedia de reunir os bovinos para conduzi-los a local desejado, como proposto. De certa forma, a doença que atacou a cavalhada, embora tenha desarticulado a nascente pecuária do Pantanal sul, acabou por se tornar benéfica para os interesses locais, 68 69 70 71

MACIEL, op. cit., 1922. TAUNAY, op. cit., 1923. MOUTINHO, op. cit., 1869, p. 34-35. BOSSI, op. cit., 1863, p. 21-22.

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na medida em que preservou os estoques bovinos da extração paraguaia. O mesmo não aconteceu com a mão de obra sulina. Os indígenas, sobretudo aqueles que eram objeto do intenso trabalho de catequese e que prestavam serviços em torno dos núcleos urbanos, fugiram, ou foram obrigados a prestar todo tipo de serviço às forças paraguaias. “Os índios guanás desse aldeamento (Mata Grande) foram levados prisioneiros pelo coronel Barrios e no Paraguay empregados nos trabalhos públicos como escravos; (Ainda) durante a ocupação os paraguaios abriram uma excelente estrada de rodagem, através de matas virgens, entre Corumbá e a vila de Santo Coração na Bolívia, em cujo trabalho empregaram os prisioneiros, especialmente indígenas, e no qual gastaram 152 dias de efetivo serviço.”72 O tratamento dispensado aos indígenas pelas tropas paraguaias não foi diferente daquele dado pelas brasileiras, como revela Taunay: “Estamos na mais extraordinária das situações; o comandante obriga os pobres índios Terenas e Quiniquinaus a trabalharem sem trégua, apesar da necessidade em que estão de ir cultivar suas terras e sustentar as infelizes famílias. Sem razão alguma retém estes pobres coitados despachando escoltas para os prender, desde que mostrem pouca vontade de vir submeter-se ao seu arbítrio.”73 Em julho de 1866, o presidente Solano López ordenou que toda a população masculina da província do Mato Grosso, sem distinção de nacionalidade, seguisse para Assunção. “[...] chegamos ao amanhecer a Albuquerque, em cujo porto estavam já reunidos todos os índios varões domesticados que também deviam embarcar e efetivamente embarcaram entre as comoventes lamentações de suas famílias, [...].”74 72

73 74

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TAUNAY, Cartas de Campanha de Matto Grosso 1865 a 1866. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, [s. d.]. p. 196. CAVASSA, op. cit., 1997, p. 33. TAUNAY, Visconde de. Entre os nossos índios. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1931. Paulo Esselin

O forte de Miranda, antes que as tropas invasoras chegassem, foi abandonado por sua população, e o depósito de artigos bélicos ficou entregue ao saque dos indígenas aldeados nas proximidades e, antes de cair em poder dos paraguaios, como fatalmente aconteceu, os terenas, laianas, quiniquinaus, guaicurus, cadivéus e baquilos trataram de se prover de espingardas, clavinas e de quanta pólvora e bala puderam angariar; munição de que dispuseram em abundância durante todo o tempo da ocupação do distrito, em seguida, alguns grupos transpuseram a serra para se juntar à população fugitiva; os terenas se isolaram e os kadiuvéus adotaram uma atitude contrária a qualquer branco, ora atacando os paraguaios na linha do Apa, ora assassinando famílias brasileiras inteiras.75 Os cadivéus, instigados e armados de fuzis pelos brasileiros, penetraram no rio Apa, assaltando as aldeias e os exércitos paraguaios.76 Os guanás, quiniquinaus e laianas participaram da guerra ao lado do Império. Já os terenas mantiveram-se esquivos; só depois de algum tempo é que acabaram se juntando à população fugitiva de Miranda e de seus entornos, lutando ao lado dessas forças contra os paraguaios.77 A transposição da serra de Maracaju permitiu a dispersão desses grupos e a ocupação, por eles, de uma extensa área, do rio Brilhante às nascentes do Vacaria e, destas, ao vale do Dourados. Esse foi um fator importante para a difusão do gado no planalto de Maracaju-Campo Grande. Os nativos não levaram todo o rebanho que possuíam, pois em momento de fuga isso era impossível, mas certamente conduziram parte dele, contribuindo decisivamente para o povoamento daqueles campos, aproveitando-se das ricas pastagens naturais, onde formaram uma colônia de refugiados que reunia uma série de ranchos vastos e cômodos, e pouco a pouco 75 76 77

BOGGIANI, Guido. Os Caduveos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 267. TAUNAY, op. cit., 1931. Idem.

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regularizou-se o modo de viver daquelas colônias híbridas de brasileiros e nativos aculturados.78 Tornou-se comum entre a população que transpôs a serra durante a ocupação paraguaia buscar o gado bovino espalhado pelos campos da vila de Miranda. “Por entre as rondas passavam, à noute, os índios quando desciam da serra para virem laçar reses na planície e ajoujá-las com bois mansos, tangendo-as assim para o alto dos acampamentos. E com estas expedições repetidas sempre com êxito, apesar da vigilância dos inimigos, abasteciam-se de carne fresca, ou então seca ao sol, e ao ar (o que se chama carne de vento) os moradores dos Morros. Só se podiam então queixar da falta de sal, esta mesma, até certo ponto, minorada pela exploração, embora imperfeitíssima, dos barreiros ou terrenos salitrosos, tão abundantes de matéria salina e numerosos nesse sul de Mato Grosso.”79 As nações indígenas haviam adotado muitos costumes da cultura europeia que lhes pareciam úteis, e nesses acampamentos, os bovinos desempenhavam importante papel: além de servir de alimento, eram utilizados como tração e transporte tanto para puxar carroça como para montaria. Taunay presenciou o uso do bovino pelos nativos quando esteve com as tropas imperiais que se dirigiam a Laguna. “[...] os índios da Boa Vista [...] montados em bois, marchavam uns atrás dos outros, com a lentidão grave daqueles ruminantes [...].”80 Quando da formação de novas lavouras, eram com eles que se derrubavam as matas, preparavam o solo, puxando arados de madeira ou de ferro e, por fim, transportavam a colheita; além do mais, com o couro eram feitas as portas dos ranchos, as camas, as cordas, o recipiente para carregar água e mel, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar rou78

79 80

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TAUNAY, Visconde de. Memórias. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948. p. 270-271. TAUNAY, op. cit., 1931, p. 23. CAPISTRANO DE ABREU, 3. ed., 1934 Paulo Esselin

pa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa de entrar no mato, as sacas para armazenar o sal.”81 Havia também as pelotas feitas com o couro e que portavam as cargas e as pessoas que não sabiam nadar. “Um dos modelos de pelotas mais usuais nos passos dos arreios ou rios de nado era preparado com o couro fresco de touro que, depois de franzido em roda, toma a forma de uma grande bacia ou de um cesto arredondado. A abertura da boca era mantida por meio de um travessão de pau, e antes do passageiro embarcar colocavam-se no fundo as suas bagagens, que serviriam de lastro; à frente nadava o condutor levando presa entre os dentes uma tira de couro: uma das extremidades das tiras era agarrada pelo viajante que, com outra mão, puxava o cavalo pelas rédeas.”82 No esforço para expulsar os paraguaios de Mato Grosso, em especial de Corumbá e Miranda, duas frentes foram formadas, uma das quais partiu do Rio de Janeiro, em julho de 1865, para Uberaba, Minas Gerais, onde se juntou a vários batalhões oriundos de Ouro Preto, São Paulo, Amazonas e Goiás, constituindo um contingente de aproximadamente três mil homens. Em setembro do mesmo ano, as tropas deixaram aquela cidade sob o comando do coronel Manoel Pedro Drago em direção ao noroeste até as margens do rio Paranaíba, daí tomaram o rumo de Coxim, descendo até Miranda, já sob o comando de Carlos de Morais Camisão. A coluna se internou pelo território paraguaio, onde ocorreu a epopeia da Retirada da Laguna. Uma segunda frente, formada para expulsar os paraguaios de Corumbá, foi organizada na cidade de Cuiabá com duas brigadas sob o comando do tenente-coronel Antônio Maria Coelho. Tendo arquitetado um ataque pela retaguarda e 81

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HOLLANDA, Sergio Buarque de. MONÇÕES. Coleções estudos brasileiros. Edições da C. E. B. Rio de Janeiro, 1945. p. 32. MOUTINHO, op. cit., 1869.

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de surpresa, em 13 de junho de 1867 o povoado caiu rapidamente em mãos das tropas cuiabanas. No entanto, parte dos habitantes da vila vinha enfrentando uma epidemia de varíola que grassava naquela região com bastante intensidade. No dia seguinte à retomada, sem qualquer cautela, foi enviado um mensageiro para comunicar na capital o êxito da expedição; como ele já havia contraído a doença, contaminou todos aqueles com quem havia se comunicado, morrendo assim que chegou a Cuiabá.83 Em 24 de junho, quando chegou a Corumbá o próprio presidente da província, José Vieira Couto de Magalhães, a doença já tinha atingido as tropas, alastrando-se com rapidez, o que as impossibilitava de ficar na vila; além disso, chegavam notícias de que os paraguaios desfechariam novo ataque. Diante da situação, o presidente deu ordens para a evacuação de Corumbá. Com o retorno da tropa para Cuiabá, sem os cuidados que se faziam necessários, a doença encontrou todas as condições para se alastrar por toda a província. “A epidemia foi assim trazida para a Capital, ceifando metade da população cuiabana.”84 “Na memória do povo, mais do que da ‘Retomada de Corumbá’, 1867 seria o Ano das Bexigas, da máxima provação a que se viu submetida a população cuiabana.”85 Embora não seja possível revelar com exatidão o número de pessoas atingidas pela varíola, pois o responsável pelo registro também faleceu vitimado pela epidemia, o ofício do doutor J. V. Couto de Magalhães, dirigido ao presidente da província de Mato Grosso em setembro de 1867, afirma: “Lutamos aqui com uma medonha epidemia de bexigas, a qual

83 84 85

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PÓVOAS, op. cit., 1995, v. 1. CORRÊA FILHO, op. cit., 1969, p. 551. MAGALHÃES, 1867 Paulo Esselin

do dia 14 de agosto a 17 do corrente nos arrebatou numero de vitimas superior a 1.500, só nesta capital.”86 Dessa situação se aproveitaram os paraguaios para retornar a Corumbá, ali permanecendo até o ano seguinte, quando as tropas brasileiras renderam Humaitá e dirigiramse para Assunção. Solano Lopes ordenou a evacuação de todos os efetivos militares estacionados em Corumbá, último reduto paraguaio em Mato Grosso, para fortalecer os seus exércitos que mantinham renhidos combates no sul, o que ocorreu em abril de 1868, pondo fim à guerra em solo mato-grossense, pelo abandono das tropas paraguaias. Foi somente em agosto de 1868 que as autoridades de Cuiabá conseguiram a confirmação de que Corumbá havia sido evacuada pelas tropas paraguaias, após enviarem uma patrulha de reconhecimento ao local. A partir daí, teve início um período de restauração das atividades comerciais que no passado haviam impulsionado o crescimento da região. As comunicações entre a província de Mato Grosso e o Rio de Janeiro, interrompidas desde o fim de 1864, foram restabelecidas em 1869, após a ocupação da capital paraguaia pelos exércitos imperiais. O fechamento do rio Paraguai, por quase cinco anos, comprometeu a economia de toda a província do Mato Grosso, atingiu duramente o Pantanal sul e se constituiu num verdadeiro desastre para a população pantaneira.

86

FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia, 1880. p. 160-161.

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Velhas fazendas: escravidão, poder e violência – campos da vila de Santa Cruz de Corumbá – século 19 Elaine Cancian*

Economia pastoril A leitura atenta da escassa historiografia sobre o antigo Mato Grosso, no que se refere à formação das fazendas e da produção da pecuária, tem auxiliado na identificação de alguns nomes de antigas fazendas e de proprietários. Sobretudo, a discussão sobre a utilização da mão de obra e dos conflitos no campo foi silenciada por gerações de historiadores. Contudo, a documentação existente nos arquivos regionais oferece registros do passado rural e escravista do território em questão. Neste trabalho, refletiremos sobre algumas antigas propriedades localizadas próximas à vila de Santa Cruz de Corumbá, na província de Mato Grosso, com o intuito de colaborar com o avanço do conhecimento regional. Também através da literatura dos viajantes, é possível obter informações sobre a existência de sítios e fazendas na província de Mato Grosso no final do século 19, bem como

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Mestra em História pelo PPGH da UFMS e professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

registro sobre alguns importantes fazendeiros da região. Em Viagem ao redor do Brasil (1875-1878), publicada em 1880, João Severiano da Fonseca, membro da comissão demarcadora dos limites do Brasil com a Bolívia, informa que as riquezas da província de Mato Grosso eram pouco exploradas. Para o viajante, exceto a poaia, os couros de onça e as favas de baunilha, nenhum outro produto era reconhecido pela importância ou qualidade como pertencente ao território. João Severiano deixou registrada sua indignação relacionada à pouca exploração das riquezas conhecidas na província em 1875: “Desgraçadamente, província tão opulenta de forças é a mais pobre de indústria. Fora dela ninguém a conhece por um produto seu que a represente, que lhe seja peculiar, que dela fale – pela abundância no mercado ou pela raridade na espécie, – a não ser a poaia, os couros de onça remetidos de mimo, ou algumas favas dessa baunilha, conquanto boa na qualidade, má no preparo.”1 Os possuidores de terras também foram alvo das críticas do viajante por se limitarem à criação do gado e não dominarem as técnicas de preparação de pastagens, por não fazerem açudes ou depósitos de águas para servir o gado nas épocas de estiagem. Para o viajante, o único trabalho dos fazendeiros era a obtenção das terras, pois a própria natureza encarregava-se das demais providências. Para mostrar como era a prática dos fazendeiros à época mencionou: “Com a seca o gado afasta-se, entra pelos bosques em busca da sombra e do fresco, indo ai lamber o terreno umedecido do relento das noites, ou da terra salitrosa e sempre úmida dos barreiros; alça-se pela sede, principalmente, indo procurar onde possa matá-la, e ai ficando por, além da umidade do solo, encontrarem o pacigo [sic] que ela entretém e que já falta nos terrenos crestados

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FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878, p. 162.

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da seca; e o resultado é a sua diminuição pela fuga, extravio e morte – tanto como pela dificuldade do reponteamento.”2 Antes da Guerra do Paraguai (1864-1870) e da devastação dos campos por tropas paraguaias, a exportação do couro assegurava riquezas aos criadores de gado. Cada couro era vendido pelo valor mínimo de sete mil-réis. Para garantir maiores lucros advindos da venda do couro, os fazendeiros sacrificavam até as vacas pejadas, prática que resultou na diminuição dos rebanhos e no empobrecimento de algumas fazendas. Após a guerra, poucos fazendeiros continuaram comercializando o gado com os compradores do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A exemplo, os fazendeiros Metello e Sant’Anna, importantes criadores da província de Mato Grosso, exportavam a cada dois anos cinco a seis mil reses; os demais proprietários conviviam com a desvalorização de suas posses.3 Para Severiano da Fonseca, as fazendas mato-grossenses não prosperavam porque as terras eram utilizadas exclusivamente para criação do gado, os fazendeiros não se preparavam para a escassez de água e alimentos, permitindo o avanço do gado além dos limites das suas posses e a perda de muitas reses, como apenas assinalado.4 A província de Mato Grosso consumia anualmente de 15 a 17 mil reses. Havia também as destinadas à preparação do charque. Em Corumbá e Ladário, 5.475 reses eram mortas por ano para atender às necessidades da população regional. De todo o couro retirado do gado, somente a décima parte era aproveitada.5 Tratava-se, efetivamente, de um consumo muito baixo para as possibilidades produtivas dos campos regionais. 2 3 4 5

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Idem, p. 163-164. Idem, p. 161-165. Idem, p. 164. MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Noticia sobre a província de Matto Grosso seguida d’um roterio da viagem de sua capital a São Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869. p. 246. Elaine Cancian

As observações de Severiano sugerem que, ainda no final do século 19, talvez grande parte dos proprietários das fazendas do antigo sul mato-grossense criava o gado ao léu. Portanto, não praticariam o rodeio ou a marcação das reses, influenciando negativamente na multiplicação dos animais. O viajante registra realidade precária da economia agropastoril regional, sem apontar as principais razões desses fatos. A imensidão das propriedades localizadas em solo pantaneiro, as especificidades naturais da região e a dificuldade encontrada na lida com o gado nos períodos de cheia resultavam no extravio dos animais. Mesmo assim, em meio às adversidades, os fazendeiros pantaneiros buscavam identificar seus animais. Em pesquisas recentes sobre as propriedades localizadas no Pantanal, identificamos marcas registradas em livros utilizadas por proprietários da região. A imagem construída por viajantes, do fazendeiro descuidado, dos recursos das terras minimamente explorados, do uso exclusivo da mão de obra livre, das relações paternalistas entre dominados e dominadores vai sendo problematizada através das pesquisas e do trabalho investigativo a partir das fontes documentais relativas ao passado de Mato Grosso. Proprietários de terras, de fazendas e de trabalhadores escravizados brotam da documentação. Conflitos gerados em torno da posse da terra, das relações de poder, da manutenção da submissão, etc., surgem em meio aos papéis amarelados e esquecidos no tempo à espera das indagações do pesquisador. Durante nossa pesquisa, identificamos importantes fazendeiros e fazendas e acontecimentos significativos relativos às relações sociais da região de Corumbá, antigo sul da província de Mato Grosso, no século 19. Material que fortalece um melhor entendimento sobre a economia pastoril nessa região e de suas principais determinações. Enriquece, igualmente, o conhecimento dessa realidade no Brasil.

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No século 19, fazendas particulares foram sendo formadas nas cercanias de Corumbá, nas longínquas terras do Império, nas fronteiras com os domínios da Espanha. Os protagonistas reconhecidos desse processo foram homens em busca da sobrevivência familiar e das melhores oportunidades oferecidas pela posse de terras e enriquecimento com a criação de gado, forma de produção que exigia poucos capitais para sua implantação, fora a mão de obra escravizada. Retratados na literatura mato-grossense como “pioneiros” do Pantanal, acumularam extensões de terras vultosas e, explorando a mão de obra cativa e livre, semidesconhecida pelas narrativas apologéticas, desenvolveram a criação de gado, fabricação de aguardente, plantações de alimentos. Os fazendeiros mais opulentos, donos das propriedades mais notáveis, eram aqueles que participavam do abastecimento do mercado regional.

As terras do barão de Corumbá Joaquim José Gomes da Silva, depois barão de Vila Maria, assim como os outros primeiros povoadores do Pantanal Sul, partiu do norte de Mato Grosso, região em que se localizam Cáceres, Cuiabá, Livramento e Poconé. Sua história de vida começa a ser desvelada partindo da notável fazenda Jacobina, de propriedade da família Pereira Leite, ocupante da região do Descalvado. Após se casar com a filha de João Pereira Leite, sua prima, ocupou a sub-região do Pantanal entre os rios Taquari, Paraguai e Negro. Em 1847, durante o período das posses livres, Joaquim José tomou posse de uma sesmaria localizada no vasto espaço entre os rios Negro e Taquari, em uma área próxima a Albuquerque e à vila de Corumbá. Em terras excelentes para a prática das atividades agropastoris, Joaquim da Silva fundou a fazenda Piraputangas, junto à serra do Urucum. Segundo o viajante Joaquim Ferreira Moutinho, que passou pela região em 1868, a fazenda do barão fornecia às 48

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aglomerações urbanas alimentos e produtos pecuários. “O melhor estabelecimento daquelas paragens era o riquíssimo engenho – as Piraputangas – pertencente ao sr. Barão de Vila Maria. Dai saia grande parte do sustento para Corumbá; acrescendo que a maior parte do gado que ali se consumia era tirado das fazendas do mesmo barão, próximas do Engenho, onde residia em riquíssima casa, perto da fábrica movida por água, entre ricos pomares, e belas e abundantes plantações, disposto tudo com muito gosto, regularidade, e até com luxo.”6 A importante fazenda de Piraputangas da província de Mato Grosso, com aproximadamente 4.356 ha de frente e 13.068 ha de fundos, dedicava-se à pecuária, à plantação de arroz, do feijão, do milho e da cana-de-açúcar e à produção do açúcar, da aguardente e da farinha. Sua qualidade diferencial deviase, sobretudo, à possibilidade de escoar sua produção para Corumbá, antes da guerra com uns 1.3157 habitantes. João Severiano anota ter sido a propriedade mais notável da província antes da Guerra do Paraguai. Registrou sobre a situação da fazenda que, durante a guerra, os paraguaios devastaram-na e arrebataram os gados. O barão de Vila Maria, desde 1870, empregava-se na restauração da propriedade, operação na qual colhia bons frutos quando, em 1876, sua “morte lhe assaltou no mar, recolhendo-se da Corte, aonde o tinham levado interesses da maior monta, quais os da mineração do ferro; mas o assassinato do seu filho José Joaquim, logo em junho seguinte, fizeram perder as esperanças de sua restauração ou pelo menos espaçá-la de muito”.8 Anteriormente à guerra e às investidas paraguaias, o cotidiano da fazenda Piraputangas prosseguia marcado pelo ritmo constante de funcionamento do engenho, lida com o gado e produção de alimentos praticados pelos trabalhadores 6 7 8

FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878, p. 299. Idem, p. 303. Inventário do barão de Vila Maria-1876. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS.

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escravizados e livres. Constituída de ferro com dois cilindros, movidos à tração animal, a máquina de moer cana ou engenho de Piraputangas localizava-se na casa de morada coberta de telhas. Além da moenda, as formas de tábuas de fazer açúcar, a caldeira, as fornalhas com tachos grandes de cobre e os gamelões faziam parte da complexa produção de açúcar e aguardente na fazenda do barão. No inventário do barão, entre os bens arrolados encontravam-se “uma casa de morada coberta de telhas na qual se acham colocadas quatro fornalhas, sendo três ocupadas por tachos grandes de cobre e uma por uma grande caldeira de cobre pesando todos 256 kg., uma casa de morada coberta de telhas na qual se acha colocado um engenho de ferro de três cilindros movidos por bestas, para moer cana e une assim dois gamelões de depositar garapa e uma casa de morada coberta de telhas no estabelecimento denominado São Domingos, situado na mesma sesmaria das Piraputangas tendo contígua uma casa coberta também de telhas na qual se acham colocadas trinta e duas formas de tábuas de fazer açúcar”.9 O caldo extraído da cana-de-açúcar plantada nas terras do barão por trabalhadores escravizados destinava-se à preparação do açúcar e da aguardente. A garapa a ser transformada em cachaça era armazenada em um depósito coberto de telhas e adjacente ao engenho. No local, eram mantidos sete recipientes usados para azedar o líquido retirado da cana e dois alambiques de cobre. Depois de preparada, a cachaça era armazenada dentro de quatro pipas de madeira que comportavam de 500 a 1.000 litros. A produção do açúcar acontecia num espaço coberto de telhas, no qual se achavam colocados o engenho de moer cana e os dois gamelões para aparar o líquido. O líquido retirado da cana era cozido nas quatro fornalhas, ocupadas por três ta9

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Jornal A Situação.Anúncios, ano VI, n. 314, 17 abr. 1873, p. 4. Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaías Paim. Campo Grande - MS. Elaine Cancian

chos grandes de cobre e por uma grande caldeira, também de cobre. Na fase final, o melado era colocado nas formas de madeira e, finalmente, o açúcar era armazenado em uma casa coberta de telhas, também usada para depositar os gêneros de lavoura. Foram arroladas no inventário trinta e duas fôrmas de tábuas de fazer açúcar. Plantações de mandioca cuidadas por cativos sustentavam a fabricação da farinha para consumo dos moradores da fazenda e regiões vizinhas. A farinha era preparada em dois fornos de cobre, pesando setenta quilos cada um e mantidos em um galpão coberto de palhas. Além disso, os trabalhadores se dividiam no cultivo de milho de demais plantações destinadas à subsistência. A fazenda Piraputangas ficou imortalizada na memória da região em razão da imagem emblemática do proprietário Joaquim José Gomes da Silva, marcada como herói de guerra, desbravador de terras, fazendeiro lavrador ou ocupante de uma das regiões mais conhecidas e prósperas do pantanal – a Nhecolândia. Essas narrativas comumente de cunho apologético pouco se detiveram sobre a força de trabalho livre e escravizada, reais produtores dos bens produzidos por essa propriedade.

Fazenda-grande, Palmeiras e São Domingos A documentação relativa à família Gomes da Silva faz referência a outras propriedades do barão. No arrolamento de bens realizado por ocasião do falecimento de Joaquim José, além da sesmaria denominada Piraputangas, foram registrados o engenho São Domingos e a sesmaria Fazenda-grande. Apesar das muitas referências, sabemos que nas terras de São Domingos havia animais colocados ao trabalho e na Fazendagrande, criação de animais. Palmeiras, a outra propriedade Velhas fazendas: escravidão, poder e violência – campos da vila de Santa Cruz de Corumbá

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do barão, situada na margem esquerda do rio Taquari, foi doada por escritura pelo casal Gomes da Silva, em 1873, ao filho Joaquim Gomes da Silva, conhecido por “baronete”, três anos antes do falecimento do barão, em 1876. Na ocasião José Joaquim recebeu também cinco trabalhadores escravizados para a lida no campo.10 A Viagem ao redor do Brasil 1875-1878, de João Severiano da Fonseca, permite-nos saber um pouco mais da fazenda Palmeiras. Nela havia açudes, canais, hortas, jardins, pomares e uma crescente criação de gado. Conforme o autor, a fazenda “prometia vir a ser o modelo das da província. Seu dono, jovem, ativo e empreendedor, inteligente e dócil aos sãos conselhos da experiência, empregava o melhor dos seus esforços em beneficiá-la […]. Sua vivenda não seria um rancho, um galpão, um miserável pardieiro como os de tantos outros muito superiores em meios da fortuna: ia sendo construída conforme suas posses atuais, mas com gosto e confortabilidade, e seguindo o adiantamento da época […]. Em pouco tempo seria ela o orgulho do seu laborioso dono e o espelho das da província”.11 Na fazenda Palmeiras as atividades eram executadas pelos trabalhadores escravizados. Por ocasião do falecimento do “Baronete”, foram arrolados os cativos Amélia, Anastácio, Francisca, Jacintha, João, Laurinda e Vicente. Destaque-se, conforme a Tabela 1, que se tratavam todos de jovens na flor da idade produtiva, portanto, de alto preço. Certamente, na fazenda havia homens livres e agregados, não registrados por esse tipo de documentação. Os poucos objetos inventariados demonstram certo grau de distinção do casal na sociedade regional da época. Desperta a atenção os botões de brilhante, relógio de ouro, salvas e talheres de prata em posse de uma 10

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FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878, p. 163-164. Inventário de Joaquim José Gomes da Silva. 1876. Arquivo do Fórum da Comarca de Corumbá - MS. Elaine Cancian

família incrustada no sertão pantaneiro. Além de bens de distinção, esses objetos eram tradicionais formas de entesouramento. Tabela 1 - Trabalhadores escravizados na fazenda Palmeiras Nome João Anastácio Vicente Jacintha Laurinda Francisca Amélia

Cor crioulo crioulo crioulo crioulo cabra cabra cabra

Idade 19 15 10 19 17 22 14

Fonte: Inventário do barão de Joaquim José Gomes da Silva - 1876. Arquivo do Fórum da Comarca de Corumbá - MS.

Havia na Palmeiras criação de gado vacum e cavalar em sociedade com o barão. Apesar de não constar a quantidade dos animais referidos no inventário do filho do barão, de 1876, estão registrados no inventário do barão de Vila Maria “45 cavalos mansos e pastores na Palmeiras, 52 poldros de ½ a 2 anos bravos nas Palmeiras, 90 poldros de 2, 3 e 4 anos bravos na Palmeiras, 104 éguas mansas e bravas nas Palmeiras e 12.000 reses de toda idade nas fazendas Palmeiras e São Francisco”.12 Os proprietários da fazenda Palmeiras possuíam como bens móveis de destaque um relógio de ouro, um par de canastras encouradas de sola, duas malas encouradas de sola, duas armas de fogo, dois botões de brilhante, dois pares de canastras, três salvas de prata e seis pares de talheres de prata.13

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Inventário do barão de Vila Maria-1876. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande - MS. Inventário de Joaquim José Gomes da Silva-1876. Arquivo do Fórum da Comarca de Corumbá - MS. Idem.

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Bens semoventes do barão de Vila Maria Por ocasião do falecimento do barão de Vila Maria, em abril de 1876, foram arrolados como bens semoventes 12.637 animais. Na Tabela 2 relacionamos a quantidade de animais espalhados nos campos de criação da família Gomes da Silva. Tabela 2 - Quantidade de gado vacum e cavalar Espécie gado Animais cavalares mansos de sela Bestas mansas de sela Bois de carro na Piraputangas Bois de corte Cavalos mansos e pastores na Palmeiras Éguas mansas e bravas nas Palmeiras Machos mansos de sela Mula mansa Poldros de ½ a 2 anos bravos nas Palmeiras Poldros de 2, 3 e 4 anos bravos na Palmeiras Reses de criar de toda idade e condição Reses de toda idade nas faz. Palmeiras e São Francisco Vaca mansa leiteira Total

Quantidade 11 3 199 30 45 104 4 1 52 90 47 12.000 40 12.637

Fonte: Inventário do barão de Vila Maria - 1876. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande - MS.

A escravidão nas terras do barão No inventário aberto no mesmo ano do falecimento do barão, 1876, foi arrolado um total de 33 trabalhadores escravizados. Desses, 14 homens, entre 14 e 56 anos de idade, e 19 mulheres, entre 9 e 58 anos. Apesar de o documento não informar quais escravizados eram colocados no trabalho do campo, sabemos que Joaquim José mantinha cativos na fazenda Piraputangas e também na vila de Corumbá. Na Classificação dos escravos para serem libertos pelo Fundo de Emancipa54

Elaine Cancian

ção, produzida em 1877, foi anotado um quantitativo de vinte cativos residentes na vila e 18 cativos existentes na Piraputangas. Destaque-se que todos os cativos se encontravam em idade produtiva e havia grande quantidade de trabalhadores escravizados na vila. Os escravizados rurais eram colocados na lida da roça e serviços domésticos. O serviço de roça era realizado pelos trabalhadores Antonio, Mariana e Theodora. Os cativos Anastacio, Antonio Congoió, Balthazar, Eustachia, Fillete, Gabriel, Gonçalo, João do Ouro, Raimundo e Tristão labutavam com a terra, plantando o arroz, a cana-de-açúcar, o feijão, a mandioca, o milho, entre outros víveres de subsistência, pois, como já mencionado, os gêneros alimentícios produzidos nas terras do barão abasteciam o comércio da vila de Corumbá. É possível o envolvimento dos mesmos cativos nas atividades específicas de produção dos subprodutos da cana. Na documentação existente não aparecem trabalhadores com profissões específicas de caldeireiro, mestre-de-açúcar, purgador ou tacheiro. Fica, porém, evidente o funcionamento de um engenho de ferro de dois cilindros de moer cana movido por água, bem como a produção de açúcar, aguardente, farinha e rapadura. No inventário do barão não há referência específica, a trabalhadores escravizados trabalhando em tarefas pastoris.

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Tabela 3 - Cativos rurais de propriedade da família Gomes da Silva Idade

Cor

Estado

Anastacio Antonio Antonio Congoió Antonio Nunes Balthazar Eustachia Fillete Gabriel Gonçalo João do Engenho João do Ouro Manoel

16 18 54 29 22 22 23 33 52 18 22 16

Preta Parda Preta Preta Parda Parda Parda Preta Parda Parda Preta Parda

Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro Solteira Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro

Aptidão ao trabalho Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante

Mariana Raimundo Rufina Theodora Tristão Vicente

21 32 39 40 34 12

Parda Parda Preta Preta Preta Parda

Solteira Solteiro Solteira Viúva Solteiro Solteiro

Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante Bastante

Nome

Profissão Lavrador Roceiro Lavrador Sapateiro Lavrador Lavradora Lavrador Lavrador Lavrador Copeiro Lavrador Serviço doméstico Roceira Lavrador Cozinheira Roceira Lavrador Serviço doméstico

Fonte: Classificação dos escravos para serem libertos pelo Fundo de Emancipação - 1877. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá. Corumbá - MS.

Entre os 18 trabalhadores rurais registrados em 1877, 78% eram do sexo masculino e 22% do sexo feminino. Nove cativos, com 10 a 54 anos, e uma cativa com 22 anos eram lavradores. Três escravizados, um homem com 18 anos e duas mulheres com 21 e 40 anos, eram roceiros, dedicados à agricultura. Notam-se também cativos mais jovens, de 12 a 18 anos, todos do sexo masculino e pardos, colocados nos serviços domésticos. A cozinheira Rufina, preta, em comparação aos demais trabalhadores da casa, tinha idade mais avançada, 39 anos. No geral, 78% dos trabalhadores escravizados na fazenda Piraputangas tinham entre 12 e 34 anos e 22%, com idade mais avançada, de 39 a 54 anos. 56

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Os cativos do barão descansavam da lida cotidiana nas senzalas. Na Piraputangas havia galpões pequenos cobertos de palha e sapé, reservados aos trabalhadores livres e escravizados da fazenda. No inventário do barão consta “sete galpões pequenos cobertos de palha e sapé, que servem de senzalas aos escravos e camaradas”.14 É interessante notar a condição desprezível dos camaradas – apesar de livres não eram tratados com distinção, pernoitavam nas senzalas de sapé elevadas próximas aos cercados, currais e galpões destinados às atividades de produção.

Cativo vaqueiro Na lida com o gado também estava presente o braço forte do cativo. A literatura regional nega a possibilidade da participação dos escravizados nas atividades relacionadas ao manejo do gado bovino. Os estudiosos são unânimes ao considerar que a labuta com o gado nas propriedades pantaneiras era exclusividade dos trabalhadores livres, os camaradas. Entretanto, encontramos arrolado no inventário do barão o cativo Gabriel, identificado como vaqueiro. Acreditamos terem existido outros escravizados vaqueiros, uma vez que o barão era proprietário de terras e possuía, antes da Guerra do Paraguai, o maior rebanho de bovinos da região. Destaque-se, porém, o aparente forte decréscimo na propriedade e exploração do trabalho escravizado na província ensejada pela guerra do Paraguai, questão ainda não objeto de estudos monográficos. Durante o conflito com o Paraguai (1864-1870), a fazenda Piraputangas foi ocupada. Apesar dos esforços do barão em resistir e proteger suas posses, traduzidos na disposição de agregados, camaradas, dois filhos e 12 escravos munidos de armas, sua propriedade foi arrasada e os animais, embarcados para o Paraguai. O rebanho bovino da Piraputangas foi 14

Inventário post-mortem do barão de Vila Maria-1876. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS.

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quase todo consumido ao servir de alimento às tropas paraguaias.15 Citando um “Relatório do Comando Geral de Corumbá” feito pelo coronel Carlos Augusto de Oliveira, Abílio de Barros destaca sobre o armamento dos cativos e a tentativa de resistência do barão: “[...] duzentas espingardas e cartuchame para armar seus camaradas e agregados ao mesmo tempo em que enviava ao Comando Geral de Corumbá 12 escravos por ele alforriados para assentarem praça, e seus próprios dois filhos. O mais velho, de nome Firmino, tido de um primeiro casamento, viria a ser morto pelos paraguaios. Desse ato o barão faz referência em seu testamento com visível sentimento de revolta e orgulho ao mesmo tempo, pois, no entrevero armado, o seu filho abatera três dos soldados paraguaios que foram ao seu encalço. Pelo relatório do cel. Carlos Augusto tomamos conhecimento de que partiu do barão o aviso final do desembarque, em Albuquerque, das tropas paraguaias que marcharam sobre Corumbá, bem como da passagem dos vapores inimigos rio acima. O barão atravessaria o rio Paraguai para sua margem esquerda, onde possuía fazenda de gado e, de lá, subiria o Taquari até Coxim, de onde, montado em burros, com família e alguns escravos, seguiu até o Rio de Janeiro para dar notícias ao rei, como consta da história.”16 O envolvimento no conflito dos cativos do sexo masculino colaborou para o decréscimo da quantidade de cativos nas posses do barão de Vila Maria. Identificamos, no geral, a existência em 187617 de uma quantidade maior de mulheres es15

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LEITE, Luis-Philippe Pereira. Vila Maria dos Meus Maiores. São Paulo: Vaner Bicego, 1977; PROENÇA, Augusto César. Pantanal. Gente, tradição e história. Campo Grande - MS, 1992. BARROS, Abílio Leite de. Gente pantaneira (Crônicas da sua História). Rio de Janeiro: Lacerda, 1998, p. 72-73. Ver Classificação dos escravos para serem libertos pelo Fundo de Emancipação - 1877. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá/Corumbá (MS); CANCIAN, Elaine. Escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza. O caso de Corumbá (MS). Passo Fundo: UPF, 2006, p. 252-261. Inventário dos bens do barão de Vila Maria/1876. Arquivo e Memorial Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. p. 77-80. 315 f.

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cravizadas. As mulheres representavam 58% do plantel, com idade entre 9 e 58 anos, e os homens, 42%, com idade entre 14 e 54 anos. Na Tabela 4 registramos os dados. Tabela 4 - Cativos pertencentes ao espólio do barão de Vila Maria Nome Antônio Antônio Congoió Antônio Nunes Belisário Clara Emília Esmília Eustáquio Filete Francillina Gabriel Gonçalo Gyna João d’Ouro Laurinda Luciana Lucinda Lusia Manoel Ferreiro Maria Cantidiana Maria das Dores Maria Eugênia Maria Magdalena Maria Magdalena Grande Maria Pequena Mariana Martinha Pedro Raymundo Theodora Theresa Tristão Vescesláo

Idade 17 anos 50 anos 29 anos 21 anos 58 anos 58 anos 32 anos 24 anos 25 anos 31 anos 38 anos 54 anos 58 anos 24 anos 19 anos 25 anos 25 anos 9 anos 56 anos 14 anos 36 anos 9 anos 36 anos 50 anos 48 anos 23 anos 34 anos 16 anos 35 anos 44 anos 34 anos 36 anos 14 anos

Cor parda preta preta preta parda parda preta parda preta parda parda preta parda preta parda preta parda preta parda preta preta preta parda parda parda parda preta preta preta preta

Profissão

sapateiro

vaqueiro

Fonte: Inventário do barão de Vila Maria - 1876. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS.

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A casa, os objetos e os instrumentos de trabalho A moradia da fazenda Piraputangas apresentava certo refinamento. Coberta com telhas, possuía, alcovas, corredor, cozinha, salas e varanda nos fundos. Conforme Joaquim Ferreira Moutinho, o barão de vila Maria “residia em riquíssima casa, perto da fábrica movida por água, entre ricos pomares, e belas e abundantes plantações, dispostos, tudo com muito gosto, regularidade, e até com luxo”.18 Elevada com três salas de frente, a moradia propiciaria certo conforto aos membros da família Gomes da Silva. O inventário arrola vários objetos indicadores de uma convivência familiar desfrutando de comodidade em meio à rusticidade característica das dificuldades impostas pela imensidão dos pantanais. Mesas redondas de cedro; mesas quadradas com gavetas de moldura e mesas quadradas com gavetas – escrivaninhas – eram usadas como mobiliário das salas. Baús, canastras, camas de jacarandá forradas com lona e couro e toucador eram utilizados nas alcovas da casa do barão. A família possuía armário grande de guardar livros e, portanto, possivelmente, livros, cadeiras de balanço, cadeiras de palhinha, cantoneiras de jacarandá, castiçais de prata e relógio de parede.19 No arrolamento, os utensílios domésticos merecedores de registro restringiram-se a duas salvas de prata. É, portanto, possível que fizesse uso de louças de baixo

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MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Noticia sobre a província de Matto Grosso seguida d’um roteiro da viagem de sua capital a São Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869. p. 246. CANCIAN, Elaine. Cativos nas fazendas pastoris do sul de Mato Grosso (18251888). História: Debates e Tendências. Dossiê: A fazenda pastoril e a escravidão. Passo Fundo: EdUPF, 2008, v. 7, n. 2, jul./dez. 2007. p. 119-134. CANCIAN, Elaine. Arquitetura e escravidão em Corumbá: gênese e desenvolvimento do núcleo justafluvial. In: MAESTRI, Mário; HORTIZ, Elen (Org.). Grilhão negro. Ensaios sobre a escravidão colonial no Brasil. Passo Fundo: EdUPF, 2009. Elaine Cancian

custo, necessárias às atividades diárias da cozinha, colocadas à mesa para servir os alimentos. O trabalho diário na fazenda exigia manutenção das ferramentas e instrumentos usados nas colheitas, no carregamento e armazenamento dos alimentos produzidos. As atividades relacionadas à produção do açúcar, aguardente e rapadura demandavam deslocamentos adequados. Na propriedade do barão, os transportes eram feitos com uso de carretão movido por animais. Nas oficinas de carpintaria e ferraria abrigadas em galpões com cobertura de telha, eram mantidas as ferramentas necessárias ao trabalho dos cativos especializados. Entre as ferramentas peculiares da oficina de ferreiro havia bigorna, fole, torno, certamente usados na produção e conservação dos instrumentos de trabalho agrícola e do engenho. Antes de falecer, o barão deixou redigido seu testamento.20 Nele registrou os herdeiros Maria da Glória – a baronesa – e seus dois filhos: Joaquim José Gomes da Silva, o “Baronete”, de 28 anos, e Joaquim Eugênio Gomes da Silva, “Nheco”, de 19 anos. O Baronete, proprietário da próspera fazenda Palmeiras, não pôde dar continuidade aos seus projetos de extração de minerais. Logo depois do falecimento do pai, foi assassinado na Fazenda Piraputangas, deixando a esposa Honorina Gomes da Silva e dois filhos, João com três anos de idade e Joaquim, nascido trinta dias após sua morte. Um crime de repercussão, devido ao destaque da vítima.

Poder e violência na Piraputangas No dia 7 de dezembro de 1876, o juiz municipal da vila de Corumbá sentenciou, condenando o responsável direto pela violência: “Vistos estes autos, julgo procedente a denun20

Testamento de Joaquim José Gomes da Silva. Barão de Villa Maria. 3 de novembro de 1875. Cópia anexa ao inventário. fl. 17.

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cia contra o réu Gabriel Ferreira da Silva em face do corpo de delito, testemunhas e informantes corroborados com a própria confissão do réu; e portanto o pronuncio incurso no Art. 193 do Código Criminal, como autor, e sujeito-o a prisão e livramento.”21 A condenação do réu Gabriel a vinte anos de prisão com trabalho concluiu o processo crime instaurado para apurar o assassinato de Joaquim Gomes da Silva, filho do barão de Vila Maria. Os fatos são, no geral, conhecidos. Na tarde do dia 22 de julho de 1876, na fazenda Piraputangas, enquanto a baronesa de Vila Maria e sua nora, Thereza Honorina, permaneciam no interior da casa grande, as cativas realizavam os serviços domésticos e os agregados, camaradas e cativos executavam os trabalhos do dia, preparando varas para bater o feijão mantido ao sol em processo de secagem. O feitor da fazenda, o português Antônio Vieira da Silva, acompanhava o movimento dos trabalhadores, dirigindo as tarefas. Foi nesse dia, em nada diferente aos outros quanto às práticas produtivas da fazenda, que o Baronete foi justiçado, com facada na barriga, segundo parece devido ao tratamento oferecido aos seus subordinados. Como tantas outras do período escravista, a fazenda Piraputangas possuía um tronco próximo à morada senhorial. O feitor servia-se desse instrumento de tortura para punir os escravizados e também, por paradoxal que possa parecer, os trabalhadores livres sob suas ordens, o que é importante depoimento sobre as eventuais condições semisservis do trabalho dito livre na fazenda e, possivelmente, na região. Conforme o camarada Gabriel, era comum José Joaquim dar “voz de prisão” e fazer uso do tronco para corrigir os seus camaradas e dependentes.22 21

22

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Sumário crime. Juízo Municipal do Termo de Santa Cruz de Corumbá. 1877. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. Corumbá -146/02. fl. 52. Idem, fl. 22. Elaine Cancian

Gabriel Ferreira da Silva, 28 anos, natural de Cuiabá, província de Mato Grosso, em 1873 foi contratado como camarada da fazenda Piraputangas “no serviço de roça ou outro qualquer mediante o ordenado anual de cento e vinte mil reis, comedoria, medicamento, e dista em caso de moléstia, perdendo os dias em que estiver doente […]”. 23 Além da comida, o salário era de dez mil-réis mensais – pouco mais do que o preço de um couro de boi. Em depoimento, acusado pelo assassinato de José Joaquim, o camarada Gabriel Ferreira registrou: “[...] no dia vinte e dois de julho do corrente ano […] o administrador do sítio dera várias ordens relativamente aos serviços que devia fazer no canavial e feijoal e que tendo ele, réu, cumprido exatamente a ordem na parte que lhe tocava, de volta para casa, recebera ordem do falecido Gomes para ele, réu, com seus companheiros irem cortar varas para bater feijão, e ele indo ao mato voltou com as referidas varas e tendo chegado adiantado a casa, procurou uma vasilha para beber água […] deparou um pouco distante com o referido Gomes que logo começou a dirigir-lhe insultos […].” Ainda registra o documento: “Sem a mínima relutância procurou a direção da prisão que é um tronco e que estando ali, parado à espera de se abrir a prisão, Gomes ordenara a seu administrador que procurasse um pau e este, satisfazendo a ordem, passara a mão em um ferro de cano e o referido Gomes em um outro pau […] na ocasião de receber as bordoadas ele, réu, procurando defender-se das agressões e, estando com uma faca na mão, […] fez com ela involuntariamente o ferimento no sobredito Gomes […].”24

23 24

Idem. Contracto. Barão de Villa Maria. fl. 61. Sumário crime. Juízo Municipal do Termo de Santa Cruz de Corumbá. 1877. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. Corumbá -146/02. fls. 11-12

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De acordo com Thereza Honorina, em queixa anexa ao processo crime,25 Gabriel Ferreira estava praticando desordens na fazenda desde o dia anterior ao assassinato do seu esposo, no ato do feitor português ministrar-lhe castigo que agredia, certamente, as leis do Império, pois um feitor – ainda mais português – não possuía autoridade legal para prender e, sobretudo, castigar fisicamente homem livre. Segundo a viúva do Baronete, a morte de seu esposo devera-se à tentativa de desarmar o camarada. A cativa Lucinda, 25 anos, solteira, moradora no engenho da Piraputangas e arrolada como informante no processo crime, narrou com detalhes a morte do seu sinhozinho: “[…] estando o réu Gabriel Ferreira da Silva no engenho das Piraputangas, onde ela informante é escrava, chegou com um feixe de varas de bater feijão […] e que então, vendo Joaquim José Gomes da Silva ao réu presente parado debaixo das laranjeiras, perguntou-lhe o que estava fazendo e ele lhe respondeu que tinha ido beber água, então Gomes chamou o feitor da fábrica de nome Vieira e disse-lhe que o reo presente (Gabriel) estava vadiando, ao que novamente respondeo que não.” E depois de esbravejar Gomes contra o réu que lhe respondeu com humildade recebeu este (Gabriel) daquele (Joaquim Gomes) uma bofetada com o que lhe caiu das mãos o feixe de seis varas mais ou menos, dando-lhe ordem Gomes a recolher-se à prisão, do que lhe disse o réu. ‘Patrãozinho deixa disso’.” E a escravizada expôs ainda: “Gomes então pegou em uma das varas e levantou para descarregar como descarregou sobre o réu que aparou a pancada com o braço, correndo uma facada sobre o dito Gomes, o que ela (Lucinda) viu por acharse ali perto em um forno que assava pão. Com isso Gomes recolheu-se para dentro da casa e o réu retirou-se de carreira para o mato […] nesse mesmo dia morreu sinhô moço […].”26 25 26

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Idem, fl. 17. Idem. fl. 23 e verso. Elaine Cancian

As fazendas Chané e Ipiranga De propriedade do alferes Firmiano Firmino Ferreira Candido, as fazendas Chané e Ipiranga, localizadas no termo de Corumbá, possuíam currais, moradas, ranchos, roças e extenso rebanho de animais bovinos e equinos. Na propriedade do Chané existia um porto, onde eram mantidas embarcações usadas para o deslocamento de Firmiano e sua família e de mercadorias. Isolados em território pantaneiro, mas servidos por rios, os moradores do Chané mantinham contato com a vila de Corumbá para se abastecer do que não produziam e evacuar a produção da propriedade. Tratava-se, como as propriedades da família do barão de Vila Maria, de explorações com acesso fácil ao mercado regional e internacional, através da vila de Corumbá. Também nas terras de Firmiano os trabalhadores escravizados eram colocados na lida do campo e nos serviços domésticos. As vaquejadas empreendidas nos extensos campos e as atividades da roça eram realizadas por cativos conduzidos por capatazes e auxiliados por trabalhadores livres, os camaradas. Os trabalhos domésticos parecem ser exclusivos de cativos, que se desdobravam nas atividades da cozinha, de lavagem das roupas, de limpeza geral, etc. Em boa parte esses cativos eram homens, como vimos. O inventário de Firmiano, de 1878, registra informações quanto à quantidade e às profissões dos escravizados. À época foram registrados 21 cativos, dentre os quais nada menos do que sete fugidos – 33% da escravaria!27 À exceção de três trabalhadores, os demais foram registrados com especialidade na lavoura. Cabe ressaltar que os cativos fugidos – Benedicto, José (preto) e Julião –, como se verá oportunamente, vaqueiros da fazenda Ipiranga, participaram do justiçamento do seu 27

Inventário de Firmiano Firmino Ferreira Cândido. Juízo Municipal do Termo de Santa Cruz de Corumbá. 1878. Arquivo do Fórum de Corumbá.

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senhor.28 Mais um registro positivo da inexatidão da historiografia regional sobre o antigo sul da província de Mato Grosso referente à inexistência de cativos vaqueiros nas fazendas da região. Firmiano Firmino Ferreira Cândido, grande proprietário na região, adepto dos castigos corporais aplicados como forma disciplinar para fomentar a produção e manter a disciplina entre seus trabalhadores escravizados, conduzia os cativos com pulso firme. Uma simples tentativa de fuga de sua propriedade significava castigo duríssimo. As cativas que praticavam pequenas faltas cotidianas eram punidas com castigos físicos. Dentre tantos castigos aplicados por Firmiano, provavelmente o mais longo e impiedoso deu-se contra o cativo Benedicto por tentar fugir. Benedicto, filho de Joaquina Maria, nascido em Mimoso, região de Cuiabá, capital da província de Mato Grosso, desde que comprado por Firmiano desempenhava-se como vaqueiro na fazenda do Ipiranga. Após tentativa frustada de fuga, em 1876, para a República da Bolívia, foi castigado com severidade. Benedicto foi mantido preso na fazenda do Chané por três dias, de pé, acorrentado ao teto de um rancho por coleira de ferro, com os braços atados para trás e diariamente ameaçado de morte. A tentativa de fuga seria igualmente punida com tradicional instrumento de castigo permanente. Benedicto referiria-se ao seu calvário no sumário crime de 1878. “[...] poucos dias depois, puseram aos pés dele […] uma barra de ferro de duas arrobas que conservou durante dois anos, até poucos dias antes da morte de seu senhor.”29 Além de ser mantido preso, colocado em ferros, ameaçado de morte, o cativo recebeu nada menos do que dois mil açoites em um só dia, efetuados pelo cativo José, capataz da fazenda, 28

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Sumário Crime. Juízo Municipal do Termo de Santa Cruz de Corumbá. 1878. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. Corumbá -147/03. Idem, verso da fl. 21 e fl. 22. Elaine Cancian

e pelo camarada João Ignácio. Destaque-se que a lei imperial não permitia castigo maior do que cinquenta chicotadas, restrição contornada pelo Estado e pelos proprietários ao castigarem os cativos com cinquenta chicotadas por dia. Duas mil chicotadas, mesmo espaçadas, significavam mais comumente a morte. Firmiano, sob a proteção dos seus capangas, de posse de espingardas, garruchas e espadas, exercia seu poder despótico de senhor sobre seus escravizados, camaradas, agregados e familiares. Possivelmente, tinha a certeza de reprimir as possibilidades de revolta nas suas propriedades com as punições severas, realizadas diante de todos. Certamente, as condições de trabalho e a aplicação de castigos despóticos fomentaram o ódio em escravizados, tornando Benedicto em justiceiro, anos depois de ser vítima de duríssima punição, por sua ânsia de liberdade.

Roubando gado, aumentando o rebanho Firmiano Firmino, grande proprietário de terras e de homens, além de despótico na submissão de seus subalternos ao trabalho, para aumentar seus rebanhos apropriava-se dos animais de outros proprietários da região. Em 1873, foi acusado de tentativa de posse ilegal de animais pertencentes à fazenda do Triunpho, propriedade do major José Caetano de Metello, e de atentado à vida de José Rodrigues do Prado, morador da referida fazenda. De acordo com os autos do processo, em 9 de outubro de 1873, o capataz José Rodrigues, acompanhado por Antonio Rofino, negociante de gado, natural de Minas Gerais e morador na região de São Lourenço, e de Antônio, cativo de aluguel, escravizado de Antônia de Arruda, encontraram a caminho do “retiro das Palmeiras”, a três quartos de léguas da fazenda do Triumpho, alguns camaradas do alferes Firmiano Velhas fazendas: escravidão, poder e violência – campos da vila de Santa Cruz de Corumbá

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Ferreira conduzindo grande quantidade de animais, entre estes cem reses com a marca do major José Caetano de Metello. Na ocasião, José Rodrigues tomou o gado dos camaradas de Firmino para reconduzi-los à fazenda do patrão. A reação de Firmiano foi imediata e característica das pessoas habituadas a exercício despótico sobre seus subordinados. “No dia seguinte (10) apareceram no mencionado retiro, dez homens montados e armados de espingardas e garruchas, achando-se nesse número o alferes Firmiano, que os capitaneava, pelas oito horas da manhã, e apeando-se ai o preto José, escravo de Firmiano, o mesmo preto armou a espingarda que trazia e passou a procurar pelo suplicante (José Rodrigues do Prado), para o assassinar, por ordem do seu senhor, em vingança por haver o suplicante tomado no dia anterior o gado furtado, o qual então vieram de novo conduzir; desafiando que fosse retomá-lo, se fosse capaz.”30 José Rodrigues não se encontrava no “retiro da Palmeiras” no momento em que Firmiano, acompanhado de nove homens armados, pretendeu assassiná-lo. Todavia, na presença do negociante de gado Antônio Rofino e de várias outras testemunhas, o alferes Firmiano Firmino Ferreira Candido declarou que seu cativo José tinha licença para matar José Rodrigues, que em trinta dias estaria morto. No auto de perguntas das testemunhas, Antônio Rofino afirmou: “[…] Firmiano descontente de não ter se encontrado com José Rodrigues, manifestara a ele, testemunha, sua contrariedade, dizendo estar marcado com o escravo, que já podia ter matado a Rodrigues, antes de lhe ter ido pedir licença na véspera, como aconteceu, pois que já lhe tinha dado ordem para essa morte.”31 30

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Sumário Crime. Juízo Municipal do Termo de Santa Cruz de Corumbá. 18731874. verso da fl. 2. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. Corumbá -146/01. Sumário Crime. Juízo Municipal do Termo de Santa Cruz de Corumbá. 18731874. verso da fl. 8. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. Corumbá -146/01. Elaine Cancian

O processo contra o alferes Firmiano Firmino e seu cativo José foi aberto em 8 de novembro de 1873 e prolongado até o ano seguinte. Após o arrolamento de várias testemunhas e documentos anexos, no dia 21 de março de 1874 o processo foi concluído e julgado nulo “por não se achar o crime de ameaças definido pelo Art. 207 do Código Criminal. ser da competência das autoridades policiais e sim da competência do Juízo Municipal […]”. No mesmo documento encontramos que os réus se refugiaram em Cuiabá na ocasião da abertura do processo. “Firmiano e seu escravo José, logo que tiveram noticia deste processo, ausentaram-se de sua fazenda para não serem citados, embarcando-se no vapor ‘Leocadia’ que daqui seguiu no dia 12 de novembro do ano passado (1873) para a cidade de Cuiabá, onde se refugiaram […].”32 Apesar das provas apresentadas contra Firmiano e seu cativo, os réus ficaram impunes. No dia 27 de abril, José Rodrigues em vão entrou com recurso contra a decisão, e em resposta o juiz de direito declarou existirem no processo várias irregularidades. No dia 24 de abril de 1874, o documento foi definitivamente encerrado, deixando livres da acusação Firmiano e o cativo José.

A morte do Onça No dia 15 de janeiro de 1878, o cativo José, capataz da fazenda do Ipiranga, reuniu os cativos vaqueiros e os camaradas de Firmiano Firmino para realização de uma vaquejada nos campos da fazenda do Triunfo. A caminho, os escravizados Benedicto, José e Julião e os camaradas João Ignácio e André Boliviano separaram-se da comitiva, tomando o rumo da fazenda do Chané, onde se encontrava o alferes Firmiano Ferreira Candido Firmiano. 32

Idem, 1873. verso da fl. 30. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. Corumbá -146/01.

Velhas fazendas: escravidão, poder e violência – campos da vila de Santa Cruz de Corumbá

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Firmiano foi surpreendido com a súbita chegada dos seus cativos e camaradas na morada do Chané, enquanto se encontrava deitado em uma rede armada em um canto da sala, diante da porta, distraído em conversa com a filha Gertrudes. Sem tempo para reagir, foi assassinado com quatro tiros de espingarda. O capataz José, quem primeiro descarregou dois tiros contra seu escravizador, ainda na cena do crime, pronunciou-se sobre o ocorrido: “[...] nada era, pois que acabaram de dar alívio a todos, destruindo uma onça.”33 Justificavam a morte do escravizador como o aniquilamento necessário de ser aparentemente humano que se comportava para com eles, sobretudo trabalhadores escravizados, como uma besta selvagem das selvas. Depois da morte de Firmiano ingeriram aguardente, apossaram-se das armas mantidas na morada do Chané, seguiram em direção à fazenda do Ipiranga, na qual assassinaram o capataz João Pedro com três tiros. Na abertura do sumário crime no dia 24 de janeiro de 1878, o promotor público Francisco Agostinho Ribeiro registrou sobre a fuga dos cativos e camaradas após o assassinato de Firmiano Firmino e do capataz João Pedro: “Em seguida a esta série de horrorosos atentados e todos convenientemente armados evadiram-se levando consigo algumas mulheres, todas as escravas e crianças da fazenda, muitos animais cavalares e muares, assim como cargueiros com provisões; tendo logo após que assassinaram a Firmiano, destruindo a machados todas as embarcações que estavam no porto do Chané e tocado todos os cavalos e burros mansos, que conduziram, deixando absolutamente sem recursos, para dar aviso e solicitar providencias, o genro do dito Firmiano, Joaquim Ferreira Nobre, que estava no referido porto […].”34 Tratavase, provavelmente, de movimento cuidadosamente pensado e 33

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Idem, 1878. verso da fl. 20. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. Corumbá -147/03. Idem, 1878. verso da fl. 2. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. Corumbá -147/03.

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Elaine Cancian

executado, fixado nos seus objetivos, que não se desmandara em excessos de violência contra a família dos escravizadores. Joaquim Ferreira Nobre, genro de Firmiano, arrolado no processo como testemunha, ao ser interrogado sobre as causas do assassinato deixou registrado que os motivos poderiam ser atribuídos aos castigos físicos aplicados aos escravizados da fazenda. “Respondeu que não sabe ao que atribuir, a menos que não sejam: castigos que seu sogro tinha infringido a algumas escravas, entre elas Germana, mulher de José, sendo que Benedicto havia poucos dias tinha sido solto de ferros que trazia aos pés desde a acasião em que fugira.”35 O assassinato de Firmiano Firmino engendrado e consumado por seus escravizados e camaradas mostrou o quanto os escravizadores das propriedades sul-mato-grossenses estavam suscetíveis às revoltas, sobretudo porque, em terras pantaneiras, de difícil acesso e próximas ao território boliviano, os justiçamentos seguidos das fugas tornavam-se mais fáceis aos cativos revoltosos. Em Fronteira negra, de 2002, ao estudar a resistência cativa em Mato Grosso, a historiadora sul-mato-grossense Maria do Carmo Brazil afirmou: “O fantasma da revolta servil nunca deu trégua a proprietários escravistas e autoridades. O temor de uma rebelião com a adesão de trabalhadores livres – camaradas- representou também um constante pesadelo na vida dos administradores escravistas […].” “Era intranquila e insegura a vida dos proprietários de escravos na região mato-grossense. Além das constantes fugas para o interior do sertão, os cativos urdiam planos de revoltas coletivas […].”36 Processos instaurados pela Justiça local mostram o envolvimento dos fazendeiros em conflitos e dos trabalhadores 35

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Sumário Crime. Juízo Municipal do Termo de Santa Cruz de Corumbá. 1878. fl. 9 e verso. Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Campo Grande - MS. Corumbá -147/03. BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira negra. Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso: 1718-1888. Passo Fundo: EdUPF, 2002. p. 119 e 122.

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escravizados e livres em assassinatos, deflagrados no campo devido ao poder ou à forma de tratamento praticada por senhores e feitores. A apropriação indevida de animais e couros foi o elemento intensificador de uma série de acontecimentos e abertura de processos. Assassinatos de proprietários, rebeldias de trabalhadores livres e escravizados resultaram em longos processos crimes. Nessas velhas fazendas, os senhores controlavam agregados, camaradas, escravizados e familiares com severidade e os problemas eram resolvidos com o uso das armas para, depois, a justiça sentenciar a reclusão dos envolvidos, e, apesar do uso das armas e da presença dos temidos administradores e feitores, muitos trabalhadores revoltaramse contra os fazendeiros.

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Elaine Cancian

Fortunas do gado: fraudes e acumulação subtraída nas fazendas pastoris do Piauí1 Solimar Oliveira Lima* Nas primeiras fazendas do Piauí, o desejo de domínio não poupava sequer as casas de deus, “até as igrejas”, como a de Nossa Senhora da Vitória, na então Vila da Mocha (Oeiras), a primeira freguesia, os proprietários “queriam fundada debaixo do título de sua”.2 Segundo a Descrição do sertão do Piaui, em 1697 dois sesmeiros partilhavam as propriedades “em meia” e faziam-se “donatários das terras”. A concentração da terra nas mãos de tão poucos por graças e favores reais, gerava elevada dependência dos sesmeiros à expansão do criatório. Não restava aos expansionistas sem terras outra alternativa senão se curvarem ao interesse do “povoamento com gados” através de arrendamento e parceria. No final do século 17, segundo a Descrição, o centro da ocupação do Piauí, constituído pelo entorno da vila da Mo*

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Doutor em História/PUCRS, professor do Departamento de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Piauí. Este texto resulta da pesquisa em andamento “A produção pastoril no Piauí, no Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul de 1780 a 1930: um estudo comparado”, coordenada pelo professor Dr. Mario Maestri/UPF e financiada pelo CNPq. No Piauí a pesquisa conta com o apoio da Fapepi. Dezcripção do certão do Peauhy Remetida ao Ilmo. e Rmo. Sr. Frei Francisco de Lima, bispo de Pernambuco. In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares: subsídios para sua história. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 370.

cha, contava com 129 fazendas. O autor, o padre Miguel de Carvalho, assegura ter visitado as propriedades e moradores, não tendo ficado nenhuma “que não tenha visto e andado”. Habitavam as propriedades “441 pessoas entre brancos, negros, índios, mulatos, e mestiços”. De acordo com a sistematização do historiador Luiz Mott, os brancos totalizavam 35,3% da população, os negros 48%, os índios 13,5% e os mestiços 3,2%.3 Na relação do pároco, havia apenas duas fazendas sem a presença de livres – nelas viviam apenas negros escravizados. Em uma, Sítio da Cobra, moravam dois negros; em outra, de Domingos Mafrense, dedicada ao criatório de éguas, residiam o escravizado Francisco, sua esposa – uma “índia” – e cinco filhos. Em cinco fazendas os moradores eram apenas livres, sendo em duas residentes solitários. Em 11 fazendas, os livres residiam apenas com “índios” e, em 37, viviam apenas um livre e um negro escravizado. No total de fazendas arroladas – com nome, localização e moradores – aparecem somente seis indicações sobre a presença dos proprietários. Todos contavam com o auxílio de um homem livre no comando da fazenda. As descrições fornecidas pelo religioso não deixam dúvidas quanto aos vínculos com a terra e entre os habitantes nas propriedades. Para a condição de proprietário é indicado “senhor da fazenda” e “seu dono”. Assim, torna-se possível conhecer os primeiros proprietários de terras residentes no Piauí. No riacho Guaribas, no sentido norte-sul, desembocando no rio Itaim, podiam-se encontrar: na fazenda Samambaia o alferes Francisco Bezerra Correia e, na fazenda Boqueirão, o capitão Alexandre Rebello de Sepulveda; no riachinho Corrente, do norte para o sul, desaguando no rio Canindé, na fazenda Corrente, o proprietário era o alferes Chistovão Alves da Palma; no riacho Santa Catarina, do sul para o norte, desembocando no São Vitor, encontava-se o 3

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MOTT, Luiz R. B. O Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: projeto Petrônio Portela, 1985. p. 75. Solimar Oliveira Lima

sítio Catarina, com André Gomez da Costa; no riachinho Buriti, do sul para norte, desaguando no rio Canindé, na fazenda Salinas, o alferes Silvestre da Costa Gomes; no richo Moicatá, na fazenda Moicatá, o proprietário era o capitão José Garcia Paz. Para os demais homens livres, o autor vale-se do apontamento inicial dos nomes precedido da expressão “está nela”, seguida da indicação “com” para o número de trabalhadores negros escravizados ou nativos. Inferi que a descrição denota não só uma relação subordinada ao proprietário da terra, como também a função de comando direto da lida nas fazendas. Agreguei nessa estrutura os arrendatários, os criadores e vaqueiros. As duas primeiras categorias vinculam-se à ausência dos sesmeiros e à exploração indireta de suas posses como estratégia de aferição de rendimentos e de controle sobre a terra. Nesse contexto da ocupação, a categoria vaqueiro estava tanto associada à ausência quanto à presença de proprietários nas fazendas e era vinculada à função de administrar ou auxiliar a administração da propriedade. A ocupação não foi tarefa fácil. O relato das dificuldades inclui a resistência da população nativa, apresentada como “gentio bravo”.4 Esses enfrentamentos eram necessários para assegurar o controle das terras e para a introdução e manutenção do pastoreio. Demandavam investimentos na montagem da infraestrutura de combate.5 Embora os embates fossem rotina no desbravamento dessas terras e desses povos, é pouco provável que arrendatários escolhessem terras com elevados riscos. Certamente, preferiam aquelas que se mostravam mais propícias. 4

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Dezcripção do certão do Peauhy Remetida ao Ilmo. e Rmo. Sr. Frei Francisco de Lima, bispo de Pernambuco. In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares: subsídios para sua história. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 379; CARVALHO, João Renôr F. de. Resistência indígena no Piauí colonial. Teresina: Edufpi, 2008. CHAVES, Monsenhor. Obra completa. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1998. p. 136-144.

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No contexto da ocupação, a categoria arrendatário constituía-se do produtor direto pagando, em geral, “dez mil réis de renda por cada sítio em cada ano”.6 Embora não fosse “dono”, possuía autonomia diante do proprietário. Além disso, como forma de acesso à terra, a subordinação contratual não estava vinculada à ausência de posses. Entre o arrendatário e o sesmeiro, o vínculo se estabelecia pela honra ao contrato, pressuposto que requeria êxito na ocupação e lucratividade na produção. Na tessitura social da ocupação, o arrendatário autorrepresentava-se como senhor. O criador também era um produtor direto, despossuído da terra. Porém, sua inserção nas propriedades estava vinculada ao critério de confiança ou parentesco. Com poder de mando, possuía relativa autonomia diante do proprietário absenteísta, sendo uma exigência do vínculo a dependência através do sistema de parceria na produção do gado vacum e cavalar. Nessa relação não monetarizada, além da lida pastoril, cabia ao criador a administração da fazenda e dos bens da mesma, constituindo-se como uma representação do proprietário. Em rigor, diferentemente do arrendatário, o criador era um trabalhador a cargo do proprietário absenteísta. No cotidiano das fazendas, na ausência de criador devidamente nomeado, a adminstração da propriedade passava às mãos de um vaqueiro de confiança, também escolhido pelo proprietário. A categoria criador, embora na prática possa ser confundida com a de vaqueiro, apresenta uma diferença primordial. Funda-se num arranjo socialmente utilizado pela classe dominante latifundiária pastoril para acomodar e, ao mesmo tempo, manter diferenças sociais. Socialmente, criador não era vaqueiro, uma vez que este último estava associado diretamente ao trabalho, e aquele, à representação senhorial. 6

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PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histórica do Estado do Piauí: desde os seus tempos primitivos até a Proclamação da República. Rio de Janeiro: Artenova, 1974. p. 113. Solimar Oliveira Lima

A especificidade da categoria criador fica ainda mais explícita quando observada nas propriedades públicas que passaram a existir no Piauí a partir da segunda metade do século 18. Nelas, o criador era também utilizado como um recurso institucionalizado como resposta às pressões políticas. Com o falecimento de Domingos Mafrense, suas propriedades foram legadas aos jesuítas em 1711 e confiscadas pela Coroa portuguesa em 1760. Denominadas como fazendas do Real Fisco, foram divididas em três departamentos ou inspeções (Piauí, Canindé e Nazaré), contando cada um com um inspetor, e as fazendas, com um criador residente em cada uma das 33 propriedades. Os inspetores e criadores eram nomeados pela Coroa. Esta característica administrativa foi mantida na administração do Império, a partir de 1822, quando as propriedades passaram a ser nomeadas de fazendas da Nação.7 Nos anos do devassamento, pela exigência das condições materiais do processo de ocupação e produção, os poucos proprietários residentes, arrendatários e criadores realizavam tarefas de vaqueiros e de vigilância e manejo do gado nos campos e currais. Para proprietários, arrendatários e criadores, a lida constituía-se também em eficiente mecanismo de controle sobre a produção e a acumulação. No Piauí, desde o final do século 17, vaqueiro passou a ser também condição estratégica para a legitimação da concentração de riquezas. Assim, desde cedo a categoria não se mostrou homogênea, formando-se duas subcategorias distintas, a que denomino vaqueiro trabalhador e vaqueiro preposto. Embora ambas fossem essencialmente decorrentes da condição de trabalhadores e tenham uma mesma matriz geracional, ou seja, o domínio e a submissão, percebi mecanismos diferentes de inserção no contexto pastoril.

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LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí: 1822-1871. Passo Fundo: UPF, 2005. p. 23-25.

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A primeira, vaqueiro trabalhador, surge em razão da labuta diária nos diferentes serviços exigidos pela pecuária. Em geral, esse trabalhador era considerado desqualificado, podendo ser facilmente substituído. Consideravam-se os trabalhadores como detentores “de péssimos costumes”, cujas tarefas e serviços realizados não exigiam habilidades.8 Ainda assim, especialmente nos séculos 18 e 19, encontrava-se nas fazendas uma hierarquização interna que os diferenciava de acordo com as tarefas realizadas. O vaqueiro cabeça-de-campo, por exemplo, era responsável pelo rebanho e era auxiliado por vaqueiros guias, tangedores e peadores.9 É crível que na segunda metade do século 17, anos da ocupação das terras, essa estratificação fosse pouco praticada, em razão óbvia da reduzida disponibilidade de mão de obra. Nas descrições de 1697 aparecem como vaqueiro trabalhador negros escravizados, mestiços e “índios”. Vaqueiro preposto foi a alternativa de inserção predominante do branco pobre na dinâmica de acumulação das fazendas pastoris. Essa foi uma característica predominante nos anos da ocupação que permaneceu ao longo dos séculos 18 e 19. A função de vaqueiro, como a de criador, era ocupada por “homens de confiança”, não raro parentes do proprietário.10 Em rigor, como dito, tratava-se também de um trabalhador, mas com inserção diferenciada pelo exercício de funções de controle social nas fazendas pastoris. No final do século 17, segundo a Descrição, as seis fazendas com a presença do proprietário possuíam esta categoria de vaqueiros: Aleixo de Barros Galvão na fazenda Sambaiba, João de Souza na fa8 9

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APEP. Tesouraria de Fazenda. 1841-1846, códice 494. FALCI, Miridan Brito Knox. Escravos do sertão: demografia, trabalho e relações sociais. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. p. 177; LIMA, Solimar Oliveira. O vaqueiro escravizado na fazenda pastoril piauiense. In: MAESTRI, Mário (Org.). O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2008. p. 127. APEP. Registro de Ordens do Tesouro Nacional. 1863-1875, códice 097.

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Solimar Oliveira Lima

zenda Boqueirão, Manoel Roiz na fazenda Corrente, Antonio Gomez no sítio Catarina, Ignácio Gomes na fazenda Salinas e Manoel Leitão Arnozo na fazenda Moicatá. As condições materiais da ocupação impunham uma maior aproximação com os proprietários dos vaqueiros trabalhadores e prepostos. Eram poucos os habitantes nas fazendas e muitas as tarefas, em que pese à característica do criatório extensivo, onde o trabalho humano era, em grande parte, o de vigiar os animais. Segundo o padre Miguel, comiam “estes homens só carne de vaca com laticínios e algum mel que tirão pelos paus, a carne ordinariamente se come assada, porque não há panelas em que se coza, bebem água de poços, e lagoas, sempre turva, e muito asalitrada, os ares são muito grossos e pouco sadios, desta sorte vivem estes miseráveis homens vestindo couros e parecendo tapuias”.11 As condições de vida e trabalho dos ocupadores legaram à historiografia uma leitura particular sobre a formação da sociedade piauiense. Reproduziu-se a visão da fazenda desconhecedora da diferença de classe, do proprietário paternalista e do trabalhador fiel.12 O que esta historiografia omitiu é que esta suposta harmonia, se de fato existiu nos anos iniciais da ocupação na segunda metade do século 17, foi violentamente rompida com a emergência do século 18. Disputas pela apropriação e acumulação de riquezas passaram a fazer parte do cotidiano das fazendas, envolvendo, por um lado, os sesmeiros e, por outro, os foreiros e posseiros. A primeira metade dos setecentos foi marcada por lutas pela terra. Arrendatários, criadores e vaqueiros prepostos passaram a demandar a propriedade formal da terra, alegando que eram eles que 11

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Dezcripção do certão do Peauhy Remetida ao Ilmo. e Rmo. Sr. Frei Francisco de Lima, bispo de Pernambuco. In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares: subsídios para sua história. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 373. NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina: Imprensa Oficial, 1966; PORTO, Carlos Eugênio. Roteiro do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.

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residiam e cultivavam as propriedades. Foram atendidos, em parte, pela decisão real de 20 de outubro de 1753, que “oficializou a existência, a partir dos posseiros, de grandes proprietários residentes e domiciliados nas terras”.13 Criador e vaqueiro preposto, como visto, não se portaram com a mansidão necessária à harmonia das fazendas e à acumulação de riquezas. O vaqueiro preposto, por exemplo, não raro aparece na historiografia ao lado dos demais representantes do poder, desfrutando de virtuosidades do desbravamento, da prosperidade e da mobilidade social. É clássica e continuamente repetida a ideia do economista Celso Furtado de que o pastoreio “apresentava para o colono sem recursos muito mais atrativos que as ocupações acessíveis na economia açucareira. Aquele que não dispunha de recursos para iniciar por conta própria a criação tinha possibilidade de efetuar a acumulação inicial trabalhando numa fazenda de gado. À semelhança do sistema de povoamento que se desenvolveu nas colônias inglesas e francesas, o homem que trabalhava na fazenda de criação durante um certo número de anos (quatro ou cinco) tinha direito a uma participação (uma cria em quatro) no rebanho em formação, podendo assim iniciar criação por conta própria”.14 Não era, certamente, função para qualquer um ser preposto da ordem dominante. Exigia-se intimidade com a casa principal, ainda que poucos ultrapassassem os batentes e soleiras da mesma. O vínculo se fortalecia na estratégia ideológica manipulada pela classe dominante para manter criadores e vaqueiros em estado de disciplina, exploração e submissão. As relações de trabalho pré-capitalistas funcio13

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LIMA, Solimar Oliveira. Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí. In: MAESTRI, Mário; BRASIL, Maria do Carmo (Org.). Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril o Brasil. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009. p. 368. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1976. p. 59. Solimar Oliveira Lima

navam como amortecedores de pressão social entre estes e proprietários. Assim, por meio de recursos como a “quarta” estabelecia-se uma possibilidade de ascensão social, mesmo que poucos fossem efetivamente elevados através do trabalho realizado à categoria de proprietário. A mobilidade exigia um acúmulo contínuo de rezes e o acesso à terra. Essas exigências acarretaram dois processos comuns na zona de pastoreio piauiense ao longo dos séculos 18 e 19, levando a uma intervenção mais segura dos proprietários e do governo. O primeiro foi o enriquecimento ilícito de criadores e vaqueiros, com desvio e furto de animais, situação ainda mais comum nas propriedades públicas. O segundo, refere-se à ampliação das riquezas de criadores e vaqueiros pelo não pagamento de dízimos do gado, recurso também comum entre os proprietários. Essas práticas reforçaram o aumento da pressão pela propriedade da terra, uma vez que enriquecidos, criadores e vaqueiros prepostos passaram a reivindicar propriedades, nascendo disso sérios conflitos pela terra. Todavia, cabe ressaltar que essa trajetória não se tornou regra para criadores e vaqueiros. Até porque as ilicitudes tenderam a diminuir em razão de um maior controle governamental e dos próprios fazendeiros que passaram a residir nas propriedades, provavelmente movidos, fortemente, pelo dito de que “o olho do dono é que engorda o rebanho”. O percentual de proprietários presentes nas fazendas cresceu de 5%, em 1697, para 89%, em 1772, e 93%, em 1818.15 Também é certo que alguns criadores e vaqueiros que buscavam acumulação apenas com o trabalho não encontraram facilmente nas fazendas as condições necessárias para a formação de um rebanho inicial, mesmo nas fazendas públicas, consideradas de mais fácil aquinhoamento.

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MOTT, Luiz R. B. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Fundação Cultural do Piauí, 1985. p. 98.

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Em 1812, o criador Antônio Rabelo Pinto escreveu ao governador da capitania entregando o cargo. Segundo Antônio, “a fim de lucrar meios para sua subsistência aceitara o lugar de criador na fazenda da Gameleira do Real Fisco da Inspeção Nazaré, com o intuito de perceber o quarto do gado que criasse na forma do costume, e tendo passado na obrigação daquela fazenda há um ano, calculara agora o pouco lucro; e pois assim quer desistir daquela ocupação”.16 Tratava-se, em verdade, de uma fazenda pequena, que produzia cerca de trinta a cinquenta bezerros por ano. Em 1829, a ocupação parecia ser mais atraente. Segundo um levantamento nas fazendas públicas, embora persistissem fazendas com produção anual de 42, 62 e 86 bezerros, existiam aquelas que chegavam a produzir 650, oitocentos e 950.17 A ocupação de criador era objeto de muitos pretendentes, que, assim como Antônio, sem conhecer a realidade dos sertões, acreditavam em enriquecimento rápido. Este desejo não surgia à toa. Propagava-se, especialmente no litoral nordestino, o mito da disponibilidade de terras e da possibilidade da acumulação com pouco trabalho no interior.18 No enfrentamento da lida, o candidato precisava preencher alguns requisitos políticos e sociais. Segundo o governador Elias José Ribeiro de Carvalho, “para a boa administração das fazendas” os criadores precisavam: “Primeiro. Serem homens brancos. Segundo. Naturais desta Capitania. Terceiro. Lavradores abonados com bens. Quarto. Hão de servir pelo menos cinco anos.”19 O governador entendia, que se o criador tivesse já bens, permaneceria no cargo o tempo necessário para validar a relação de parceria, um quarto das crias, no caso depois de cinco 16 17 18

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APEP. Palácio do Governo. Oeiras. 1804-1854. APEP. Executivo. Registro de ofícios recebidos. Códice 497. Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhy. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. LXII, 1 e 2 sem, 1900. p. 88. APEP. Capitania do Piauí. Registro II, 1814-1829. Solimar Oliveira Lima

anos. Em verdade, as fazendas fiscais apresentavam ainda no final dos setecentos uma baixa produtividade, que se acentuaria no século 19. A descrição comum para algumas fazendas era de “deplorável ruína”. Exemplos eram as fazendas Gameleira, do criador Antônio, e a fazenda Genipapo. Esta fazenda era “muito atrasada, não só de gados, como mesmo de serviço, será difícil achar criador capaz para ela, salvo se for alguma pessoa que morar perto dela e nada possua a aceitará porque a necessidade o obrigará a isso”. A fazenda havia amansado apenas “cinqüenta e tantos bezerros e dois poldrinhos, e no passado trinta e tantos”.20 As reclamações de reduzida produtividade não eram exclusivas das fazendas públicas. Manoel de Pinho e Silva, de Parnaguá, em 1772 chamava atenção para um problema do criatório que reduzia sensivelmente a quantidade de animais a serem partilhados, fato também presente nas fazendas públicas. Segundo o criador, o sistema de quarta contemplava as crias “amansadas”, isto é, recolhidas em “tempo hábil aos currais”. A lida para cuidar dos “bois de era”, que eram de fato os comercializados pelos proprietários, retirava os vaqueiros do trabalho com os bezerros, que acabavam por ficar “desgarrados e criados soltos nas matas, amoitam-se que quando aparecem são crescidos e assim corredores”. Estes animais não eram computados como produção das fazendas. Manoel estimava que a metade das crias fosse perdida, incluindo-se as muitas que morriam por ataques de animais.21 Segundo autoridades, “uma fazenda pequena que se está povoando de novo” apenas fornecia trinta a quarenta, enquanto se podiam encontrar fazendas “grandes e antigas” com capacidade de “mais de” mil bezerros por ano. Entre as primeiras destacavam-se as propriedades da região de Oeiras, que produziram, em dois anos, 22.960 bezerros, distribuídos em 20 21

APEP. Executivo. Tesouraria da Fazenda. Códice 494. BN. Divisão de manuscritos. II. 32, 22, 015; APEP. APEP. Executivo. Tesouraria da Fazenda. Códice 494.

Fortunas do gado: fraudes e acumulação subtraída nas fazendas pastoris do Piauí

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871 fazendas,22 ou seja, 13 bezerros por fazenda. A Tesouraria da Fazenda considerava que “em regra no Piauí a fazenda de gado que dá 200 bezerros em um ano, calcula-se que possui 800 cabeças, porque um quarto é quase sempre produtivo.” As autoridades contabilizaram no período de 1851-1852, entre os 6.197 fazendeiros, a produção de 123.518 bezerros, 11.411 poldros, 82 burros e nove jumentos, ou seja, em torno de vinte bezerros anuais por propriedade. No período 1853-1854 foram registrados 126.589 bezerros, 11.337 poldros, 62 burros e dez jumentos. 23 A produção era certamente pouco significativa. Em 1829, somente as 33 fazendas públicas produziram, segundo os inspetores, 11. 263 bezerros e 796 poldros.24 O principal motivo das exigências do governador Elias José Ribeiro de Carvalho para a função de criador pautavase, entretanto, no desvio da produção de animais das fazendas públicas. Os “queixumes” atingiam também as fazendas particulares, que costumavam perder continuamente bois e cavalos. Nas fazendas públicas instalou-se, de acordo com as autoridades, um “procedimento de roubo de gado” que independia de a fazenda produzir poucos ou muitos animais. Era comum criador de uma fazenda que possuía pequena produção furtar animais de uma fazenda pública e mantê-los como seus na fazenda em que era o administrador. No início do século 19, segundo as autoridades, “tem custado reprimir este abuso de quererem aumentar alguns criadores as fazendas em que estão a custa de outros parceiros”.25 Em 1845 era denunciado o criador da fazenda Lagoa de São João, da inspeção Nazaré, por uso “particular” e venda de animais.26

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23 24 25 26

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APEP. Executivo. Registro de ofícios recebidos. Códice 497; BN. Divisão de manuscritos. II.32,22. BN. Divisão de manuscritos. II. 32,22. APEP. Executivo. Registro de ofícios recebidos. Códice 497. APEP. Tesouraria da Fazenda. Códice 494. APEP. Tesouraria da Fazenda. 1841-1846. Solimar Oliveira Lima

A prática dos administradores das fazendas públicas parecia antiga. Em 1776, o inspetor das fazendas do departamento do Piauí e os criadores foram acusados, em devassa, de vários “procedimentos irregulares”. A lista incluía maus-tratos, castigos, abuso sexual, ameaças, prisões de escravizados e moradores e de “declararem um número menor de bois que o verdadeiramente enviado nas boiadas para a Bahia, ficando, portanto, com a diferença dos ganhos com a venda na feira; pagarem suas dividas dispondo de gados e cavalos do Real Fisco; venderem gado das fazendas para viajantes e tropeiros; escolherem para si os melhores gados nas partilhas”.27 A venda de animais das fazendas públicas e particulares parecia ser uma oportunidade ótima para os prepostos desviarem parte da “boiada”, bem como para se apropriarem de parte do valor pago pela declaração de preços menores. Sobre esses procedimentos nas fazendas públicas no período da gestão portuguesa, o historiador Odilon Nunes afirma que “aquela gente, nem sempre idônea, torna-se gananciosa, estróina, desonesta. Firma mesmo um pacto com as autoridades que a ela se acumpliciam. E ao abandonar os páteos dos currais, onde outrora dominou a austeridade jesuítica, começava a malbaratar por meios preestabelecidos o patrimônio que deveria ser exclusivamente de interesse público. Na feira de Capuame, o ministro encarregado da venda, em conluio com uma caterva de gananciosos, via arrematarem-se a baixo preço os melhores gados do Piauí, enquanto fazendeiros das ribeiras do Canindé vendiam os seus a bom preço.”28 De acordo com uma diligência procedida para averiguação dos preços dos “gados de açougue”, constatou-se, de fato, a venda dos animais das fazendas públicas por preço inferior ao das particulares, tanto na “porteira do curral” como na feira 27

28

APEP. Palácio do Governo. Oeiras. 1700-1821; LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí: 1822-1871. Passo Fundo: UPF, 2005. p. 119. NUNES, Odilon. Depoimentos históricos. Teresina: Comepi, 1981. p. 76.

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de Capuame (atual Dias D’Ávila), na Bahia. Em 1794, o fazendeiro Antonio Borges Marim, de Bocaina, vendeu, na própria fazenda, “sem despesas”, a “seis mil e quatrocentos réis”. Na feira, desde 1774, o preço do boi variava entre sete e nove mil réis. Em 1794, um boi da fazenda pública era vendido em Capuame por 4.800 mil-réis. Em 1795, segundo uma autoridade, “sendo nos constante, que a dita inferior reputação tem procedido de se arrematarem os mencionados gados a certo número de marchantes aprovados pela Câmara da Cidade, e que estes fazendo entre si uma espécie de concerto sobre o preço, talvez por ser, como se deve presumir, o negócio comum, não havendo ou não se admitindo outros lançadores para os peitarem, os arrematam os referidos marchantes pelos preços que eles querem, em prejuízo da Fazenda de sua Majestade”.29 O negócio era mesmo promissor para os criadores das fazendas públicas e para os compradores dos animais. Em verdade, parecia haver uma série de personagens dispostos a lucrar com a venda dos animais, não apenas das fazendas públicas. O transporte das “boiadas” para a Capuame levava, saindo da região de Oeiras, cerca de quarenta dias, o que exigia dos tropeiros condutores alguns cuidados. Muitos animais eram mortos por ataques de animais, outros “desgarravamse” ou ficavam fatigados, sendo “refugados” para a comercialização.30 Para evitar maiores perdas eram necessários, durante o longo percurso, alguns entrepostos para descanso dos animais e homens condutores. Um deles era em Jacobina, já na Bahia. Uma denúncia contra Gabriel Gonçalves, de 1790, é exemplar. Além de vender mantimentos mais caros para os condutores dos animais, “mandava dormir as boiadas nos currais do vigário da mesma Jacobina, para os quais é ne29 30

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BN. Divisão de manuscritos. II, 32, 21, 004. APEP. Palácio do Governo. Oeiras. 1790-1799. Solimar Oliveira Lima

cessário o passar-se pelo meio do arraial, com cuja passagem acontece o espantarem-se e ficarem muitos bois fugidos, que depois os apanha e não dá conta deles; e outro sim, que quando os passadores das boiadas lhe não deixam bois refugados, manda de noite tirar paus dos mesmos currais para sair o gado, como aconteceu a um dos passadores no ano de (1784) que fugindo de noite a boiada que conduzia, pela manhã não deu adjutório para se ajuntar”.31 Também eram comuns os furtos de animais diretamente das fazendas e a incorporação às propriedades particulares. Nas fazendas públicas, as denúncias foram frequentes; algumas, após “averiguações”, eram confirmadas, como no caso do capitão Aleixo Vieira de Sá, que se apropriava de animais das fazendas Guaribas e Algodões, da Inspeção Nazaré.32 Nas fazendas particulares acontecia o mesmo – bois, vacas e cavalos eram frequentemente furtados. Além de serem incorporados ao patrimônio de fazendeiros e vaqueiros, alguns serviam para “matalotagens”, especialmente as vacas; outros, para a venda, no caso bois e cavalos.33 Das fazendas públicas furtavam-se até trabalhadores escravizados. Em 1852 denunciava-se o fazendeiro Manoel Francisco Maciel, de Pernambuco, por ter furtado dois irmãos trabalhadores escravizados, Florêncio e Miguel, ainda crianças, da fazenda Poções, da inspeção Canindé, quando estavam procurando “uns cavalos” no campo. O fazendeiro, que viajava pelo Piauí, informou às crianças que os animais “estavam mais adiante” e pediu que o seguissem por um vaquejadouro, “depois de muito adiantado, não lhes foi permitido voltar”.34 Os patrões davam exemplos a seus vaqueiros. As fazendas públicas possuíam comumente demarcações naturais, havendo problemas de limites “por falta de confrontações”, 31 32 33 34

BN. Divisão de manuscritos. II, 32, 21, 005. APEP. Tesouraria da Fazenda. Códice 494. APEP. Poder Judiciário. Caixa 0034. APEP. Fazendas Nacionais. 1800-1877.

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o que fazia com que proprietários vizinhos avançassem os limites de “suas propriedades em cima das extremas”, não respeitando a distância, definida por lei, de uma légua (seis quilômetros) entre as propriedades.35 Nesse espaço, os animais podiam ser criados livremente e nele “entram igualmente os vizinhos a procurar os seus gados”.36 Porém, os vaqueiros de fazendas particulares aproveitavam-se para furtar e “matar bois na roça comum”, criando “sérios prejuízos em razão deste mal uso” da área37. Prepostos costumavam mesmo seguir os passos dos patrões. José Pedro Gouveia de Pina Castelo Branco, criador, “funcionário” de Porciano Ferreira de Oliveira, devia “dízimos reais” de arremate de gados na freguesia de Parnaguá. Em 1787, autoridades tentavam, em vão, receber o débito. Do “triênio 1770 até 1772, se acha a dever de pagamentos atrasados e vencidos até o dia 26 de dezembro de 1785 a quantia de dois contos e quatrocentos mil reis” e ainda “dois contos, quinhentos e nove mil, novecentos e noventa e oito réis”, relativos ao triênio 1776 a 1778. Alegava-se ser “prolongada espera que se lhe tem facilitado, passando com conhecido dolo a dificultar a entrada no cofre respectivo das somas, contendo em si as perdas de Sua Majestade, pelos seus particulares interesses; porque pela parte que pertence ao primeiro contrato, tem o rematante João Pedro desfrutado e esgotado por sua vez e pelo que pertence ao segundo já o ano passado próximo pretérito extraíram gados dos mesmos dízimos e o seu produto o empregaram em moleques (escravizados), sem contribuir coisa alguma por conta dos pagamentos vencidos”. Cobrado, José Pedro, “homem que se fazia considerável nas suas astú35

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PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histórica do estado do Piauí: desde os seus tempos primitivos até a Proclamação da Republica. Rio de Janeiro: Artenova, 1974. p. 121-123. Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania do Piahuy. Revista do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro, t. LXII, 1 e 2 sem, 1900. p. 79. APEP. Palácio. Oeiras. 1800-1813. Solimar Oliveira Lima

cias”, ameaçou fazer a “extração dos gados por outra parte, a fim de ficarem as nossas diligencias frustradas”.38 O não pagamento de impostos certamente favoreceu o crescimento de muitas fortunas. No século 19 são frequentes as citações aos devedores. Em 1854, eram cobrados outros devedores, como Castelo Branco, Miguel Lopes Castelo Branco, em Barras, devedor de imposto relativo ao exercício de 1850 a 1851; e José Gonçalves Teixeira, pelo exercício de 1852 a 1853. Em Parnaguá, Antônio Joaquim Pimenta, em 1874, era cobrado pelos dízimos dos anos de 1821 a 1823 e 1827 a 1829.39 Em 1854, segundo a Tesouraria da Fazenda da província, o sistema de arrecadação do imposto não era o mais eficiente. De acordo com as autoridades, “as cifras são por demais inferiores as que se vão aparecer se o sistema de arrecadação oferecesse mais garantias para a fazenda, se os fazendeiros dessem com mais exatidão os assentos das crias”.40 O sistema era o de lançamento, procedido por juntas em cada município, tendo como base as declarações dos produtores sobre o número de bezerros apanhados em cada ano. Do tal se reduzia a metade, “sobre o qual, regulado o preço de cada cabeça pelo termo médio do valor que goza o gado no município, calcula o imposto que é de dez por cento sobre a importância”. Segundo a mesma autoridade, “o preço porque as juntas lançadoras estimam o gado, está sempre muito aquém daquele reputado” por fazendeiros e vaqueiros.41 A sonegação era recorrente, além de prática “secular na província”. A maior parte da receita provincial derivava da atividade pastoril. Em 1855, o vice-presidente da província Baldoino José Coelho, por exemplo, defendia regularizar a cobrança do dízimo e dividir responsabilidades da arrecadação 38 39 40 41

BN.Divisão de manuscritos. 32, 22, 015. APEP. Poder Judiciário. Caixa 0011. BN. Divisão de manuscritos. II, 32, 22. BN. Divisão de manuscritos. II, 32, 22.

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com os municípios. Para tanto, exigia maior responsabilidade, compromisso e rigor por parte dos inspetores e propunha que não pertencessem ao município em que atuavam. A autoridade acreditava que assim seriam evitados subornos e coação, pois muitos dos inspetores pertenciam a famílias de fazendeiros.42 Fazendeiros, criadores, vaqueiros, condutores, marchantes, junta de lançamento de impostos formavam uma sólida rede de acumulação ilícita em torno da criação e comercialização de gado no Piauí. Mas não estavam sozinhos, todos queriam lucrar, gerando e ampliando “pequenas fortunas” às custas do erário público, inclusive os funcionários encarregados dos impostos, os “escrivães do Juízo dos Feitos da Fazenda”. Uma correspondência do presidente da província, Zacarias de Góes e Vasconcelos, de 1867, retrata o problema. Dizia o presidente: “Antônio Manuel de Fritas fragoso, mudada a capital desta Província de Oeiras para este lugar, nunca veio tomar conta do seu ofício, e assim desde 1852 é este servido por escrivães interinos, alguns deles bastante traficantes e descarados para haverem das partes os dinheiros que estes recolhiam nas próprias mãos de tais escrivães, e ficaram-se com eles. Tenho proclamado que o escrivão dos feitos é incompetente para constituir-se procurador das partes, recebendo destes dinheiros públicos, mas o escândalo e a imoralidade de tais funcionários, neste ramo de comércio já são de tão subido relevo que poucos devedores ultimamente caem vitimas destas coisas, e desejando-se livres de questões com a fazenda entregão ao escrivão as quantias que este diz montar o débito, sendo o mal. O processo fica no mesmo ser, e passados meses e anos, o escrivão representa ao Juiz dos Feitos que o processo está paralisado que convém prosseguir na execução. O despa42

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APEP. Relatório apresentado à Assembleia Legislativa provincial do Piauí na abertura de sua sessão ordinária, no dia 1º de novembro de 1855, pelo Exmo. Sr. Vice-Presidente da província Baldoino José Coelho. São Luiz: Typhografia Progresso, 1856. Solimar Oliveira Lima

cho do juiz é sempre mandando que se cumpra o despacho, poucos são os processos que findam.”43 O comércio em torno do gado no Piauí foi mesmo intenso e relevante, pelo menos para a formação das fortunas da elite piauiense.

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AN. Série Justiça. IJ 1623 rel. 1.

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Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino Mário Maestri* El drama de la historia argentina seguía en pie: no había ninguna clase con interés en hacer del país una gran nacion capitalista. La historia no brindava ninguna salida pera este circulo de hierro. Milcíades Peña, El paraíso terrateniente.

O caráter da colonização ibero-americana De forma explícita, dois autores marxistas, Décio Freitas, no Rio Grande do Sul, em 1980, e Milcíades Peña, vinte anos antes, na Argentina, defenderam o caráter capitalista da produção pastoril da bacia do Prata. O primeiro, em polêmica marginal ao centro de sua produção e investigação historiográfica, relacionado com a escravidão colonial brasileira, o segundo, em uma interpretação geral sintética da formação social argentina. Um debate de certo modo suspendido com a regressão das pesquisas sobre o caráter das estruturas socioeconômicas das formações sociais no contexto do descrédito lançado sobre esses estudos pela maré neoliberal triunfante de fins dos anos 1980.

Décio Freitas e o capitalismo pastoril sul-rio-grandense Em 1980, polemizando com parte da historiografia tradicional sul-rio-grandense, que defendia, de forma acanhada, a importância do trabalhador escravizado na produção pastoril, o historiador Décio Freitas apresentou o ensaio “O capitalismo pastoril”, introdutório a livro homônimo. Nele publicou textos históricos referentes ao debate e sua defesa do caráter capitalista do pastoreio extensivo sul-americano e dos estancieiros como “burguesia pastoril” no período colonial e póscolonial.1 No trabalho, assinalou que inúmeros autores latinoamericanos compartiam a mesma visão, citando a Sérgio Bagú, em Estructura social de la colônia, de 1952; Ruben H. Zorrilla, em Extracción social de los caudillos: 1810-1870, de 1972, que se apoia em Sérgio Bagu; e Nahuel Moreno, em Quatro tesis sobre la colonización española y portuguesa, de 1954.2 No geral, o último autor reproduziu, de forma reducionista, as propostas do historiador Milcíades Peña para a Argentina. Décio Freitas apoiou sua tese em passagens de O capital, de Marx.3 Décio Freitas nasceu no Rio Grande do Sul, em 1922, e faleceu em Porto Alegre, em 2004. Quando estudante, em meados dos anos 1940, militou no PCB, mantendo-se a seguir como intelectual marxista, politicamente próximo ao trabalhismo. Nos anos 1940, trabalhou como jornalista nos periódicos sul-rio-grandenses Correio do Povo, Diário de Notícias e Tribuna Gaúcha, este do PCB. Formou-se em Direito pela UFRGS, dedicando-se à advocacia. Participou do governo 1

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FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. _______. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: Est, 1980. p. 9-52. BAGÚ, Sergio. Estructura social de la colônia: ensayo de historia comparada de América Latina. Buenos Aires: Ateneo, 1952; ZORRILLA, Ruben H. em Extracción social de los caudillos: 1810-1870. Buenos Aires: La Pleiade, 1972. FREITAS, op. cit., p. 11.

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João Goulart (1961-1964). Foi cassado pelo regime militar e refugiou-se por breve tempo em Montevidéu, após 1964, onde escreveu estudo historiográfico sobre a confederação dos quilombos de Palmares, publicado em 1971 e 1973, respectivamente, naquela cidade e em Porto Alegre.

Escravidão e luta de classes A edição em português de seu livro, Palmares: a guerra dos escravos, conheceu diversas edições, corrigidas e ampliadas, e repercussão historiográfica, cultural e política. De forma relativamente original, o estudo destacava o caráter escravista da sociedade brasileira e os quilombos como forma de luta de classes.4 Nos anos seguintes, Décio Freitas publicaria outros livros sobre a escravidão e sobre a luta de classes na Colônia e no Império, sem igual repercussão.5 Freitas foi fortemente marginalizado e hostilizado por ideólogos conservadores e pela historiografia acadêmica, sobretudo sulina, que consolidara sua institucionalização e se profissionalizara durante a ditadura militar. Veto ideológico que se apresentou comumente como crítica a uma narrativa historiográfica dirigida ao grande público. Freitas escrevia de forma elegante, sintética e despreocupado com as normas da historiografia acadêmica, como a citação em notas das fontes que apresentava, de forma geral, na conclusão do trabalho. Em O capitalismo pastoril, Freitas citou exaustivamente, em notas, suas referências, restritas à documentação primária e secundária publicada. Sob a pressão da maré neoli4

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FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973. Cf., entre outros: FREITAS, Décio. Insurreições escravas. Porto Alegre: Movimento, 1976; Escravos e senhores-de-escravos. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: UCS, 1977; Escravidão de índios e negros no Brasil. Porto Alegre: EST/ ICP, 1980; O escravismo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980; O capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980. Os guerrilheiros do imperador. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

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Mário Maestri

beral de fins dos anos 1980, como tantos outros intelectuais, rendeu-se às posições conservadoras na historiografia, na sociedade e na política. Então, como editorialista e colunista do jornal Zero Hora, da RBS, tornou-se um dos mais ativos, destacados e criativos pensadores conservadores sulinos. Nesses anos publicou livros de pouco valor, de forte cunho ficcional, memorialístico e conservador, que apresentava como historiografia. Em 1980, em Capitalismo pastoril, Décio Freitas deduzia o caráter capitalista da produção pastoril sulina dos séculos 18 e 19 apoiado em dois grandes argumentos. Primeiro, o latifúndio pastoril era propriedade “alodial” e, portanto, “isenta de quaisquer vínculos ou dependência, podendo o dono dispor dela como bem entendesse, para a compra e a venda, [...] etc.” Nisso tinha absoluta razão, ainda que esta não fosse condição suficiente para a definição de produção rural capitalista. Segundo, pelo fato de a fazenda pastoril, segundo ele, apresentar “aquilo que” era o “traço específico do capitalismo: não apenas a produção de mercadorias, de resto presente em outros sistemas, mas a transformação da própria força-detrabalho em mercadoria, como outra qualquer”.

Trabalhadores livres Décio Freitas defendia que, nos séculos 18 e 19, no Sul, a “massa de trabalhadores rurais” fosse composta “de homens juridicamente livres que, não possuindo a nenhum título os meios de produção”, tinham “que vender sua força-de-trabalho para prover à sobrevivência”. Afirmava que o trabalho “escravo ou semi-servil” apareceria de forma “esporádica e isoladamente nessa produção pecuária”, onde preponderava “em forma absoluta” o “trabalho assalariado”. Definia os “posteiros”, categoria social secundária da exploração pastoril, como relação semifeudal, pelo fato de não receberem salários Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

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por suas funções, mas apenas o direito de explorar a terra, e por dependerem do arbítrio dos proprietários. A fazenda pastoril sulina seria “sistema de produção social baseado no trabalho assalariado, o que importa dizer sistema capitalista”. Ainda que “impuro, dependente e subdesenvolvido”.6 O próprio esforço de Freitas para enquadrar a produção pastoril extensiva sulina nas categorias analíticas marxianas referentes à produção capitalista circunscreve a fragilidade da sua proposta. Nesse trabalho, define o “gado alçado”, “pilhado” nas “arreadas ou vacarias”, como “capital constante e circulante”, que teria constituído a base inicial do desenvolvimento da “empresa pastoril capitalista”, e apresenta o mesmo gado como “mercadoria-boi”, surgida no processo da produção.7 Tenta, inutilmente, superar a contradição de produção pastoril extensiva determinada fortemente pelo “tempo de produção [sic] natural” diante do baixo aporte do “tempo de produção social”.8 Maior ainda é a dificuldade de adequar a mão de obra pastoril extensiva sulina desse período ao leito de Procustro da proposta “mão de obra livre e assalariada”. Freitas reduz a contribuição do trabalhador escravizado na estância às tarefas domésticas, agrícolas e auxiliares, descartando-o das funções pastoris propriamente ditas por razões lógicas – o cativo custava caro; fugiria, se tivesse um cavalo à disposição; o africano não conhecia o pastoreio e era caro treiná-lo nessa atividade, etc.9 Reserva as funções pastoris exclusivamente para os trabalhadores assalariados, com destaque, nos primeiros tempos, para a população indígena ou de origem indígena, vista como “trabalhadores ideais para a produção pecuária”.10

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FREITAS, O capitalismo pastoril, p. 10-11. Idem, p. 16. Idem, p. 18. Idem, p. 35. Idem, p. 29. Mário Maestri

Relações pré-capitalistas Ao discutir a informação sobre os trabalhadores livres no pastoreio que reúne, Freitas foi obrigado a registrar objetivamente as características pré-capitalistas dessa força de trabalho. Destaca, por um lado, o emprego não permanente do produtor direto nas estâncias e, por outro, sua remuneração sob a forma de alimentação, de moradia, etc., complementada por “algum salário” monetário. “[...] o estancieiro não pagava totalmente em dinheiro o salário. Parte deste era pago em espécie, ou seja, diretamente em meios de subsistência.”11 Meios de subsistência dos trabalhadores provenientes, por um lado, da esfera de produção natural da estância e, por outro, de parte da produção da esfera mercantil da mesma propriedade que não era escoada ao mercado. O fato de que o gaúcho, na função de peão, pudesse se empregar e se afastar periodicamente das tarefas pastoris assinalava já não estarem dadas as condições de separação plena dos produtores diretos da reprodução autônoma dos seus meios de existência, ou seja, não existiam as condições necessárias para a formação de exército de trabalhadores de reserva.12 A própria documentação primária editada consultada por Freitas sugeria e assinalava que as grandes estâncias se serviam necessariamente da mão de obra escravizada nas tarefas auxiliares e pastoris propriamente ditas – “cativos campeiros” –, devido à incapacidade dos estancieiros de garantir de forma ininterrupta a produção apoiando-se em homens livres, sem se servir de meios coercitivos usados no Prata. Realidade comprovada exaustivamente por investigações posteriores apoiadas, sobretudo nos inventários post11 12

FREITAS, O capitalismo pastoril, p. 31, 44. MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril sul-rio-grandense. MAESTRI, Mário (Org.). O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: EdiUPF, 2008. p. 169-271.

Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

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mortem das grandes fazendas pastoris dos séculos 18 e 19.13 A importância do cativo campeiro fora proposta, apoiada em documentação primária, por membros da historiografia tradicional quando da polêmica com Décio Freitas que originou o ensaio “O capitalismo pastoril”, como assinalado.

Milcíades Peña: um esboço geral de crítica da formação social argentina Milcíades Peña passou meteoricamente pelo cenário cultural argentino. Nasceu em 1933, em La Plata, falecendo em 1965, aos 32 anos. Com mãe mentalmente doente, de saúde frágil na infância, foi criado por tios mais velhos, descobrindo acidentalmente aos 11 anos seu nome de batismo, sua verdadeira mãe, seus três irmãos mais velhos. Sofrendo, possivelmente, de depressão, realizou tentativas autocidas na adolescência. Casou-se e teve um filho, em 1964, morrendo no ano seguinte por ingestão de pílulas.14 Em seu breve tempo de intervenção social, política e cultural, militou na corrente marxista-revolucionária morenista, da qual se afastou, sem jamais romper com o marxismo-revolucionário (trotskismo), para se dedicar à historiografia, desenvolvendo refinada interpretação da história argentina, da colonização ao peronismo. Disposto a escrever uma história geral da Argentina, Milcíades Peña alcançou apenas a apresentar o esboço de 13

14

Cf., entre tantos outros: ZARTH, P. A. História agrária do planalto gaúcho. 1850-1920. Ijuí: Edijuí, 1997. DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul. (1780-1889). Programa de Pós-Graduação em História da UPF. Passo Fundo, novembro de 2008 (mestrado); EIFERT, Maria Beatriz Chini. Marcas da escravidão nas fazendas pastoril de Soledade: 1867-1883. Passo Fundo: EdiUPF, 2007; PALERMO, Eduardo Ramón Lopez. Tierra esclavizada: el norte uruguaio en la primera mitad del siglo 19. PPGH, Passo Fundo, 2008. (mestrado). D’AMICO, Ernesto. Milcíades Peña: una história trágica. Disponível em: http:// www.tomasabraham.com.ar/ seminarios/ 2008damico.pdf. Acesso em: 10 abr. 2010.

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sua interpretação, em seis breves livros, redigidos nos anos 1955-1957: Antes de Mayo: formas sociales del transplante español al Nuevo Mundo (1500-1810); El paraíso terrateniente: federales y unitarios la civilización del cuero (1810-1850); La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia (1850-1870); De mitre a Roca: consolidación de la oligarquia anglocriolla. (1870-1885); Alberdi, Sarmiento y el 90 (18851890); Masas, caudillos y elites (1890-1955).15 A partir de curso que ministrou na Escola de Engenharia de Buenos Aires, em 1958, foi publicada sua Introducción al pensamiento de Marx, de importante caráter renovador.16 A leitura de Milcíades Peña, mais de meio século após a sua morte, revela escritor e pensador de invulgar sensibilidade e talento. Os inevitáveis limites de sua interpretação, em parte devidos ao breve tempo de sua produção e ao desenvolvimento da historiografia e das ciências sociais de então, sobretudo latino-americanas e argentinas, não diminuem a enorme importância dessa literatura. Ainda mais porque uma das características de sua reflexão é que desnudava, de forma consciente ou inconsciente, as suas grandes contradições analíticas, não raro sugerindo possíveis soluções para as mesmas. Milcíades Peña é considerado por muitos como um dos mais argutos historiadores marxistas argentinos. No Brasil é autor praticamente desconhecido, não contando, salvo engano, com traduções, mesmo que parciais. Em sua pátria, suas obras não foram reeditadas nos últimos anos, segundo parece por proibição de seu filho, político tradicional menor, que porta o mesmo nome que o pai. Seus trabalhos são facilmente 15

16

PEÑA, Milcíades. Antes de mayo: formas sociales del transplante español al nuevo mundo. 1500-1810. Buenos Ayres: Fichas, 1973; El paraíso terrateniente: federales y unitarios la civilización del cuero. 1810-1850. Buenos Aires: Fichas, 1972; La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia. 18501870. 3. ed. Buenos Aires: Fichas, 1975; De mitre a Roca: consolidación de la oligarquia anglocriolla. 18701885. 2 ed. Buenos Aires: Fichas, 1972. D’AMICO, Milcíades Peña: una história trágica.

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disponíveis em reproduções na internet. É difícil imaginar os avanços interpretativos a que esse autor chegaria se não tivesse desaparecido tão jovem.

Antes de maio O primeiro ensaio de Milcíades Peña, Antes de Mayo: formas sociales del transplante español al Nuevo Mundo, dedicado ao período histórico sobretudo argentino que vai de 1500 a 1810, aborda, com certo vagar, os acontecimento da Revolução de Maio, realizando dessacralização das apologias historiográficas que apresentaram e apresentam aquele evento como “revolução social”, “revolução democrático-burguesa” e “movimento de base popular”. O autor lembrava que a “Revolução de Maio” foi processo que se materializou sobretudo na esfera política, não revolucionando minimamente a organização social e econômica regional, que se manteve no essencial idêntica à colonial, ao igual do que ocorreu no Brasil em 1822, quando do rompimento com Portugal.17 Peña assinala: “El movimiento que independizó a las colonias latinoamericanas no traia consigo un nuevo régimen de producción ni modificó la estructura de clases de la sociedade colonial. Las clases dominantes continuaron siendo las terratenientes y comerciantes hispano-criollos, igual que en la colonia.”18 As primeiras grandes iniciativas da “Revolução de Maio” foram o defenestramento do vice-rei Baltazar Hidalgo de Cisneros e a extinção da burocracia administrativa ibérica que governava o vice-reinado em nome do soberano espanhol, deposto pela intervenção napoleônica. Peña lembra que o movimento sequer fora inicialmente autonomista e republicano, 17

18

MAESTRI, Mário. A escravidão e a gênese do Estado nacional brasileiro. In: Seminário Internacional “Além do apenas moderno”, 2001, Recife. ANDRADE, Manuel Correia de (Org.). Além do apenas moderno. Brasil séculos XIX e XX. Recife: Massangana, 2001. v. 1. p. 49-77. PEÑA, Antes de mayo, p. 75.

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sendo fortes os carlotistas entre os principais líderes crioulos. A declaração cabal de independência da Argentina seria feita apenas em julho de 1816, no congresso de Tucumán. Em O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na bacia do Prata, o historiador brasileiro Moniz Bandeira assinala que a pretensão de Carlota Joaquina, esposa de dom João 6º, ao vice-reinado do rio da Prata, após a abdicação de seu pai e a prisão de seu irmão, recebera o “apoio de vastos setores das classes dominantes de Buenos Aires, tradicionalmente ligadas aos interesses do comércio português, e alguns líderes, como Juan Martín Pueyrredon, Manoel Belgrano, Saturnino Rodrigues Peña”, que a “quiseram proclamar Regente [...] ou a coroar imperatriz da América”.19 Milcíades Peña destaca que os sucessos de Maio foram obra, sobretudo, das classes proprietárias, com destaque para a “burguesia comercial”, ou seja, para os comerciantes portenhos crioulos, associados aos grandes criadores bonaerenses. Assinala que a revolução não contou com a participação ativa dos subalternizados, mesmo livres, que nada tinham a ganhar e, não raro, algo tinham e perder com a iniciativa.

Produzindo para vender Milcíades Peña propõe, igualmente, que os gauchos, o principal segmento plebeu da campanha bonaerense e do Prata, foram mantidos e mantiveram-se estranhos ao movimento, e que a radicalização da liberdade comercial, sobretudo em proveito da oligarquia mercantil crioula, ligada ao comércio britânico, tendeu a destruir o artesanato e a produção pequeno-manufatureira das províncias de Buenos Aires, do litoral e do interior, com graves sequelas sociais. Quanto aos cativos negros, foram enviados um grande número para os exércitos 19

BANDEIRA, L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na bacia do Plata: Argentina, Uruguai e Paraguai. Da colonização à guerra da Tríplice Aliança. 2. ed. Brasília: EdUnB, 1995. p. 58.

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revolucionários, a fim de substituir os patriotas poucos dispostos a morrer pela liberdade. Essa seria uma das razões da forte queda da população afro-descendente nessa região. A proposta de Milcíades Peña sobre a inexistência de classes populares modernas, capazes de influenciar a direção política dos sucessos, mantida sob o controle dos segmentos dominantes crioulos, que dessem eventualmente um caráter democrático àqueles acontecimentos, apoia-se numa das maiores contradições analíticas de sua interpretação da antiga formação social argentina: a caracterização da colonização hispânica como capitalista, em razão do seu “conteúdo” e das seus “objetivos”, que eram, segundo ele, essencialmente, “producir en gran escala para vender en el mercado y obter una ganancia”.20 A produção para o mercado, com o objetivo do lucro, não é determinação suficiente para a definição do caráter econômico do mundo colonial como capitalista, como lembravam, nos anos 1960, ao questionar essa tese, ideólogos ligados ao Partido Comunista Brasileiro, ao se referirem ao Brasil, pois aquela caracterização e polêmica abarcavam a América Ibérica como um todo. Marxista sensível, Milcíades Peña intuiu o limite e a contradição de sua proposta. Procurou superar a contradição da dedução do caráter da colonização de esfera não atinente à produção com a definição dos criadores de Buenos Aires como classe burguesa produtora completa, ainda que de caráter colonial, proposta que estendeu a toda a América ibérica. “Clase productora más importante de la colônia - estancieros en la Argentina, y en general, en toda América Latina, productores para el mercado mundial – son a no dudarlo capitalista, sus intereses son capitalista, pero un capitalismo colonial [...].”21

20 21

PEÑA, Antes de Mayo, p. 22, 23. Idem, p. 87.

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Raízes e sentidos político de um debate historiográfico Desde antes da II Guerra, a historiografia marxista ortodoxa apoiava no proposto caráter feudal ou semifeudal da colonização americana a necessidade de etapa democrático burguesa da revolução na América Latina. Isso exigiria a subordinação dos trabalhadores à “burguesia nacional progressista” em frentes populares para, apenas cumprida a etapa democrático-burguesa da revolução, ser avançado o programa socialista. Uma orientação que teve importância determinante na vida política da América Latina. No Brasil, a política de revolução democrático-burguesa contribuiu para o desastre das propostas populistas e nacional-desenvolvimentistas, quando do golpe militar de 1964, apoiado por toda a “burguesia progressista” nacional. Segundo o receituário proposto pelos partidos comunistas, esta última deveria ter se mobilizado contra o latifúndio semi-feudal e o imperialismo e não comandar o ataque geral aos trabalhadores e ao padrão de desenvolvimento capitalista autônomo. A mesma proposta de revolução por etapas, democráticoburguesa e a seguir socialista, foi enfatizada pelos partidos comunistas e seus intelectuais nas décadas pós-stalinistas. No Brasil, a interpretação foi defendida por importantes pensadores ligados direta e indiretamente a essa orientação política, entre os quais se destacaram Alberto Passo Guimarães (1908-1993) e Nélson Werneck Sodré (1911-1999).

Capitalista desde a origem Em fins dos anos 1940, a interpretação feudal do passado latino-americano e a consequente proposta de necessária etapa democrático-burguesa anterior às tarefas socialistas, avançadas pelos partidos comunistas, foram impugnadas por Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

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estudiosos de orientação socialista revolucionária. De forma mais ou menos desenvolvida, eles propuseram a definição do caráter capitalista das formações coloniais americanas, em alguns casos, desde a origem da colonização europeia! Entre esses autores destacaram-se os sociólogos argentino Sérgio Bagú (1911-2002),22 teuto-estadunidense André Gunder Frank (1929-2005)23 e brasileiro Ruy Mauro Marini (1932-1997).24 No Brasil, essa interpretação seria também perfilhada pelo célebre historiador marxista dissidente Caio Prado Júnior, antigo integrante do PCB, em, entre outros trabalhos, A revolução brasileira.25 Entretanto, o debate sobre o caráter feudal ou capitalista da colonização não surgira inicialmente determinado pelo confronto político-ideológico assinalado. Em História econômica do Brasil, de 1937, o economista Robert C. Simonsen (1889-1948) criticara a ênfase no “aspecto feudal do sistema das donatarias” luso-brasileiras e definira a clara orientação capitalista da colonização lusitana, precisamente em virtude da orientação das atividades para o lucro.26

Orientação mercantil Aos defensores da tese das origens capitalistas à América, o corolário indiscutível da definição de uma colonização capitalista desde os primeiros tempos, devido à sua intencionalidade e orientação mercantis, eram a vigência e a urgência na América Latina da revolução socialista. A partir dos anos 1940, quando se estabeleceu essa polêmica, era indiscutível 22

23

24

25 26

Cf., sobretudo, Economía de la sociedad colonial, de 1949, e Estructura social de la colonia, de 1952. Cf., sobretudo, FRANK, A. G. Capitalismo e subdesarrollo en la América Latina, de 1967. Cf., sobretudo, MARINI, R. M. El subdesarrollo y la Revolución, de 1969, e Dialéctica de la dependencia, de 1973. PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966. SIMONSEN, R. C. História econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.

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que sobretudo as principais formações sociais latino-americanas – Argentina, Brasil, Chile, México, etc. – conheciam organização socioeconômica capitalista dominante. Porém, era certamente arbitrariedade recuar essa definição para o início da colonização. Além da proposta de sociedades que teriam conhecido, do século 16 a inícios do século 20, apenas crescimento quantitativo e jamais qualitativo, a definição capitalista das formações latino-americanas coloniais propunha contradições epistemológicas insolúveis. Entre elas destacava-se o desenvolvimento capitalista das colônias americanas antes das metrópoles europeias, ou seja, a transposição para as Américas, por classes dominantes europeias ibéricas feudais e mercantilistas, de formas de produção superiores e em contradição com as que se apoiavam nas metrópoles. Nesse sentido, tinha razão um dos mais brilhantes críticos da proposta de Sérgio Bagú sobre o “capitalismo colonial”, abraçada por Milcíades Peña, quanto à Argentina, e Décio Freitas, no relativo ao Brasil, entre outros autores. Em 1963, em Quatro séculos de latifúndio, Alberto Passos Guimarães escrevia que a orientação e a produção para a venda no mercado eram “peculiares, em proporções crescentes, a toda a longa história vivida pela economia mercantil [...]”. Defendia, pertinentemente, que, se tomássemos “como ponto de referência, para definir e classificar os regimes econômicos, os fenômenos inerentes à circulação”, teríamos de aceitar a “absurda igualdade entre todos os sistemas sociais por que passou a Humanidade, a contar do momento em que abandonou a vida primitiva”.27

27

GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. In: STEDILE, J. P. A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 41.

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O criador e a criatura Eram igualmente pertinentes os reparos avançados por Passos Guimarães sobre a transposição feudal de ordem capitalista. “Percebe-se o conteúdo apologético dessa concepção errônea, pois com ela se admite que o sistema colonial, em vez de transportar para o território conquistado os elementos regressivos do país dominante [...] selecionaria os fatores novos determinantes da evolução social e deles se serviria para fundar [...], sociedade de um tipo mais avançado que as metropolitanas.”28 Porém, Passos Guimarães incorria em crasso erro analítico ao propor, em vez da transposição capitalista precoce, instalação regressiva, ainda que ad hoc. Arrancando de pressuposto epistemológico correto, a impossibilidade da transposição de modo de produção superior, Passos Guimarães defendia, contra as evidências históricas, que à Metrópole “não” teria restado “outra alternativa política senão a de transplantar para a América Portuguesa o modo de produção dominante no além-mar” – o modo de produção feudal. Para o autor, tal transposição teria sido feita, sobretudo, com a concessão do “monopólio feudal da terra” para os homens bons. Estabelecida a propriedade feudal no Brasil, sempre segundo Passos Guimarães, teria faltado o servo para explorála. Assim, os novos feudalistas apoiaram a transposição superestrutural da forma de produção, em superação na Europa, na mão de obra escravizada, primeiro indígena, a seguir africana, em verdadeira regressão histórica à escravidão clássica, no que se refere à força de trabalho. “Na impossibilidade de contar com o servo da gleba, o feudalismo colonial [sic] teve de regredir ao escravismo [...].”29

28 29

GUIMARÃES, quatro séculos [...], op. cit., p. 36. Idem, p. 43.

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Construção arbitrária A proposta interpretativa de Passos Guimarães constituía construção arbitrária, do ponto de vista factual e metodológico. As sesmarias eram propriedades de cunho alodial, como assinalara Décio Freitas, podendo os proprietários vendê-las, alugá-las, doá-las, etc. Os sesmeiros não possuíam direitos eminentes e restritos sobre elas, como no feudalismo. Passos Guimarães criticava corretamente a dedução de modo de produção da orientação e circulação mercantil, mas deduziu a forma de produção de inexistente instância superestrutural, o feudalismo. O próprio Passos Guimarães lembrara que, em interpretação marxista, o “básico num regime econômico é o sistema de produção, isto é, o modo por que (ou seja, pelos quais), numa determinada formação social, os homens produzem os bens materiais de que necessitam viver e que determina todos os demais processos econômicos e sociais, inclusive os processos de distribuição ou circulação de bens”.30 Em A ideologia alemã, Marx e Engels lembravam que o que os homens são depende “das condições materiais de produção”, refletindo-se tanto no que “produzem quanto” na “maneira como produzem”.31 Na leitura marxiana da sociedade defendida formalmente por Passos Guimarães, a forma de propriedade constitui decorrência tendencial da forma de produção. Como na tese capitalista da colonização ibero-americana, a contradição essencial do proposto caráter feudal ou semifeudal encontravase na esfera da produção, em geral, e nas relações sociais de produção objetivadas, em particular. Incorriam em contradição insolúvel as propostas de ordem feudal ou capitalista funcionando, respectivamente, em trabalhadores escravizados e 30 31

GUIMARÃES, quatro séculos [...], op. cit., p. 42. MARX; ENGELS. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 12.

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assalariados, ou seja, em relações sociais de produção escravistas e capitalistas.

Salto regressivo A contradição mais gritante da interpretação feudal da produção americana era seu apoio substantivo na mão de obra escravizada. Quanto à interpretação capitalista, sua contradição mais aparente era a inexistência de produtor direto, produtor de mais valia, no uso de maquinarias e métodos de produção modernos. Trabalhador obrigado a vender, de forma tendencialmente ininterrupta, a totalidade de sua força de trabalho como mercadoria, devido à incapacidade de produzir seus meios de subsistência. Marx era claro sobre as determinações essenciais do trabalhador subsumido ao modo de produção capitalista. “Ci voglion secoli perchè il ‘libero’ lavoratore si adatti volontariamente, in conseguenza dello sviluppo del modo capitalístico de produzione, cioè sai socialmente costreto a vender per il prezo dei suoi mezzi di sussistenza abitualia l’intero suo período attivo di vita, anzi, la sua capacita stessa di lavoro [...].”32 Ainda após a Revolução de Maio (1810), por longas décadas, os estancieiros do Prata lançaram mão da compulsão extraeconômica para manter o gaucho como peão na estância, ou serviram-se da mão do trabalhador escravizado, como em boa parte do Uruguai, com destaque para os departamentos setentrionais.33 No relativo ao Rio Grande, as fazendas pastoris começaram a substituir os trabalhadores escravizados por livres apenas nos últimos anos da escravidão, abolida em 1888.

32 33

MARX, K. Il capitale. Roma: Riuniti, 1994. p. 306. Cf. PALERMO, Tierra esclavizada: el norte uruguaio em la primera mitad del siglo 19, 2008.

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Falsa disjuntiva Se, por um lado, a historiografia stalinista e pós-stalinista defendia a dominância do feudalismo colonial na origem da colonização, em boa parte com trabalhadores escravizados e sem servos, em propriedade de claro caráter alodial, para impugnar a luta pelo socialismo, por outro, historiadores marxistas defendiam capitalismo colonial sem operariado, para avançar o programa socialista. No frigir dos ovos, nos dois casos negavam a determinação do modo de produção pela forma específica de produzir os bens sociais, condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas materiais e das relações sociais de produção que se estabeleciam a partir das mesmas, base essencial numa interpretação social marxista. Apenas nos anos 1960 seria superada a vulgata stalinista e pós-stalinista do necessário e consecutivo trânsito de todas as sociedades dos cinco grandes modos de produção, definidos por Marx e Engels quando do estudo das formações sociais europeias – “comunismo primitivo”, “escravismo clássico”, “feudalismo”, “capitalismo” e “socialismo”. Uma superação em boa parte devida a retorno à leitura livre da literatura marxiana, que facilitou às ciências sociais reconhecerem as múltiplas formas e modos de produção conhecidos pela humanidade.34 Essas investigações revelariam o caráter sui-generis da colonização nas Américas, sem as transposições mecânicas feudal e capitalista propostas. Um movimento que, no Brasil, com destaque para as investigações de Jacob Gorender e Ciro Flamarión Cardoso, abriu caminho à compreensão do caráter dominante do escravismo colonial na constituição da antiga formação social do Brasil. Muito forte a partir dos anos 1960, 34

Cf., entre outros, SOFRI, Gianni. Il modo di produzione asiático. Torino: Einaudi, 1969; SOFRI, O modo de produção asiático: história de um controvérsia marxista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; GODELIER/MARX/ENGELS, Sobre el modo de producción asiatico. Barcelona: Martínez Roca, 1977.

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esse movimento científico praticamente se interrompeu após a maré neoliberal de fins dos anos 1980, como assinalado. 35 Em razão do seu falecimento, em 1965, Milcíades Peña não pôde participar dessa verdadeira revolução epistemológica.

A estância pastoril colonial e pós-colonial como forma de produção pré-capitalista No Uruguai, equipe de historiadores ligados ao Partido Comunista Uruguaio, numa ampla e sistemática investigação historiográfica, terminaria dissociando-se das teses sobre o caráter feudal ou semifeudal da produção pastoril para enfatizar seu caráter pré-capitalista. Em de La oligarquia oriental en la Cisplatina, de 1967, Rosa Eloy, Lucia Sala Touron, Nelson De La Torre e Julio Carlos Rodrigues foram explícitos no relativo a essa definição da produção pastoril ao lembrar que, “en las regiones ganaderas”, “al expirar la dominación colonial no se había completado todavia la apropriación de los medios de producción ni el sometimiento al peonazgo de las masas rurales”.36 Em El Uruguay comercial, pastoril e caudillesco, esses autores descrevem situação que se manteve décadas após o fim da colônia, não apenas na Banda Oriental, realidade que dificultou a transformação do gaucho em peão, ou seja, do campeiro sem posses em trabalhador assalariado permanente: “Dueños de caballo, lazo y cochillo, no estaban privados de sus instrumentos de trabajo y tampoco de médios de vida, ya que podrían porporcionárselos com facilidad faenando ani-

35

36

Cf. MAESTRI, Mário. O escravismo colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender. A gênese, o reconhecimento, a deslegitimação. Cadernos IHU, São Leopoldo: Unisinos, ano 3, n. 13, 2005, 42 p. ELOY, Rosa; TOURON, Lucia Sala; TORRE, Nelson de la; RODRIGUES, Julio Carlos. La oligarquia oriental en la Cisplatina. Montevidéu: Pueblos Unidos, 1970. p. 10.

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males que poblaban la campana casi deserta, sin cercos ni custodia efectiva.” É uma situação que, no Uruguai dos inícios dos anos 1830, levou don Fructuoso Rivera (1784-1874), em resposta à reivindicação dos criadores orientais (em boa parte, sulrio-grandenses estabelecidos no norte desses territórios), a realizar ampla campanha militar e policial para reprimir a população rural independente – changadores, faeeneros, gaúchos, posseiros, charruas, guaranis, etc. – a fim de obrigá-la a se assalariar como peão. Um processo que seria concluído apenas décadas mais tarde, no final do século 19.37

Na Europa e nos Estados Unidos Esses mesmos autores lembravam que, em inícios do século 19, a produção capitalista, ainda reduzida às “zonas atlánticas europeias” e aos Estados Unidos, buscava “colocar sus producciones em América Latina”, onde predominavam “en las distintas formaciones relaciones sociales de producción precapitalistas”. Avançam no mesmo sentido que, nas duas margens do Prata, nas décadas posteriores à Independência, dominavam ainda as oligarquias comerciais, os estancieiros, os charqueadores “basicamente precapitalistas”. Realidade que permitiu “acumulación originaria” que apoiaria a constituição e dominância posterior de relações capitalistas de produção a partir de inícios do século 20.38 Foi importante passo analítico a definição geral da fazenda pastoril, como forma de produção mercantil pré-capitalista, a partir de suas características essenciais, sobretudo no que se refere às forças produtivas materiais e às relações sociais de produção. Esse processo superou, nesse domínio, o 37

38

TOURON, Lucia Sala de; ELOY, Rosa Alonso. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco. Tomo II: sociedad, política e ideologia. Montevidéu: Banda Oriental, 1991. pp. 83, 139. TOURON, ELOY, op. cit., p. 18 et seq.

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impasse posto pela disjuntiva feudalismo & capitalismo, nascida de forte acomodação de realidades sociais singulares a esquemas teóricos estranhos a elas, em boa parte devido a pressupostos político-ideológicos, como proposto. É uma caracterização geral daqueles autores que não elide a ainda necessária definição categorial-sistemática das formas de produção assumidas pela produção pastoril extensiva pré-capitalista, de importante dinamismo e longevidade no sul da América. Definição que precise de forma mais acabada as leis internas tendenciais dessa forma de produção, por séculos hegemônica nesses territórios. Neste ensaio nos limitaremos a descrever apenas algumas características essenciais da produção pastoril pré-capitalista extensiva.

Algumas características essenciais Após o ciclo extrativista do couro, durante anos, as estâncias chimarrãs, orientadas sobretudo à produção do couro, organizaram-se com a apropriação-expropriação extraeconômica: 1) da terra, meio de produção sem valor, mas desde sempre com preço, devido à sua monopolização privada garantida pelos Estados coloniais ibéricos; 2) do gado chimarão, nascido da reprodução selvagem dos rebanhos introduzidos na região sobretudo pelos espanhóis. Terra e gado expropriados em boa parte ao domínio de comunidades nativas. Um movimento apoiado na força de trabalho dos estancieiros e de seus familiares e, sobretudo, de peões e de trabalhadores escravizados. A fazenda chimarrã, comumente de grandes dimensões, exigia pouco trabalho, em geral limitado à reunião dos animais para a produção do couro, realizada em geral sur place. Mantinha, habitualmente, um número de trabalhadores superior às necessidades produtivas, que protegiam a propriedade dos ataques e garantiam a posse da mesma. Essa mão de obra excedente era paga, em boa parte, pela produção das 112

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estâncias não transformada em mercadoria – carne, couro, sebo, etc. Nos anos 1780, com o advento das charqueadas no Rio Grande do Sul e na Banda Oriental, a fazenda chimarrã deu lugar, de forma crescente, à fazenda crioula ou de rodeio, em geral de menor porte em relação à anterior, dedicada à criação do gado mais ou menos costeado, pelo couro, carne, sebo, graxa, cabelo. Apesar de exigir trabalho mais intensivo – castração, marcação, rodeio, etc. –, essa forma de produção expulsou tendencialmente a população excedente, devido à valorização dos gados, ainda que transformados não totalmente em mercadoria. As fazendas chimarrãs e de rodeio utilizavam a força de trabalho dos proprietários e seus familiares, de cativos, de posteiros, de moradores, de agregados, de peões permanentes ou temporários. Essa mão de obra era remunerada com os meios de subsistência (trabalhadores escravizados), com os meios de subsistência e algum salário monetário (peões), com o direito ao uso da terra (posteiros e moradores), etc. Durante décadas, a coerção social foi importante meio de submeter os homens livres ao trabalho nas estâncias.

Renda fundiária A renda do estancieiro, obtida sobretudo pela venda do couro, carne, sebo, etc. dos animais, subdividia-se em renda da terra e renda do trabalho. A primeira, de caráter pré-capitalista, originava-se de outras esferas da produção e era apropriada pelo estancieiro, devido ao monopólio da terra, condição especial de produção de caráter finito. Ao contrário, a renda do trabalho provinha do trabalho excedente produzido pelos produtores diretos – trabalhadores escravizados; trabalhadores livres remunerados; posteiros e moradores, etc. As tarefas pastoris eram realizadas por trabalhadores livres e escravizados, através de atos produtivos isolados ou Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

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coordenados, apoiados na habilidade do manejo de meios de produção (cavalo, laço, etc.) e instalações produtivas (galpões, bretes, etc.) muito simples, de fácil confecção e, durante longo tempo, de fácil apropriação. Na fazenda de rodeio, as principais práticas produtivas limitavam-se à domesticação, à marcação, à castração, à cura rudimentar dos animais. A maturação do produto dependia fortemente das condições ambientais – chuvas, temperatura, aguadas, pastos nativos, etc. Nessa forma de produção, eram limitadas as possibilidades de aumentar o sobretrabalho dos produtores diretos estendendo o tempo e a intensidade da jornada produtiva. De forma geral, por longo tempo a expansão da produção das fazendas chimarrã ou de rodeio deu-se quase exclusivamente pela incorporação de novas áreas produtivas, novos rodeios e novos trabalhadores. As grandes, médias e pequenas propriedades pastoris praticamente não diferiam no relativo às práticas produtivas e à produtividade. No Rio Grande do Sul, apenas em inícios do século 20, em atraso em relação ao Uruguai e a Argentina, a atividade pastoril começou a introduzir-se na esfera de produção capitalista. Então, no contexto de uma crescente divisão do trabalho (cabanha; criadores; invernadores, etc); desenvolvimento das forças produtivas (banheiros; pastagens artificiais; cercas de arame; centro de manejo; inseminação artificial, etc.); especialização dos trabalhadores (peões; alambradores; inseminadores; veterinário; tratoristas, etc.), a renda do capital começou a se sobrepor à renda da terra, que se manteve e mantém, porém, seu peso significativo. Esse processo se realizou lentamente, tanto que ainda hoje subsistem estâncias dedicadas à criação semiextensiva, através do pastoreio contínuo. A fazenda pastoril propiciou parte importante da acumulação originária de capitais que na Argentina, no Uruguai e no Rio Grande embasou o processo diferenciado de industrialização conhecido por essas regiões, 114

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hegemônico apenas a partir das primeiras décadas do século 20. Mesmo que a estância tenha alimentado a produção manufatureira e industrial capitalista, os estancieiros não foram os principais protagonistas dessa metamorfose.

Milcíades Peña: impasse da formação nacional Argentina Em El Paraíso terrateniente, Milcíades Peña retomou a crítica à proposta feudal e semifeudal para a Argentina, propondo que o peão fosse já um assalariado claramente capitalista. “Feudal, o de rasgos feudales, podía ser la modalidad con que el patrón estanciero castigaba o recompensaba a sus peones. Pero la esencia económica de essa relación era capitalista, era la relación contractual entre el proletario carente de medios de producción y el propietario de la estancia que alquilaba la fuerza de trabajo del peón a cambio de un salario.”39 Destaque-se que formas de coerção física à produção caracterizam relações servis ou semisservis de produção, não necessariamente escravistas ou feudais. E não podemos esquecer que uma característica básica do gaucho era sua capacidade de subsistir por longos períodos sem vender sua força de trabalho. Isso devido à incapacidade dos proprietários da Argentina, do Uruguai e do Rio Grande de separá-lo radicalmente das condições necessárias à produção dos seus meios de subsistência – o cavalo, o laço, as boleadeiras, o gado chimarrão, os campos não cercados, etc. Naquele trabalho, lembra que, mesmo no relativo aos vice-reinados, a unidade da América Hispânica colonial era exterior e artificial, produto de ação política determinada pelas necessidades da defesa e do monopólio comercial metro39

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 59.

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politano. O próprio vice-reinado do rio da Prata (1778) reunia um enorme território, transpassado social e economicamente por fortes tendências centrífugas – atuais Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. Peña define como mito histórico a narrativa sobre a unidade hispano-americana perdida, que propõe como inevitável, devido à falta de laços econômicos comuns. Porém, lembra que, no processo de independência, poderiam ter nascido nações mais portentosas. Propõe a gênese de um Estado federativo poderoso, os Estados Unidos da América, quando da ruptura das colônias britânicas da América, como produto dos interesses de uma “indústria” que, mesmo incipiente, criara mercado interno que necessitava conservar e expandir.40 A essa razão juntaríamos outras, como a necessidade de suas classes dominantes de defrontar a poderosa ex-metrópole e subjugar as classes subalternizadas.41 Segundo Milcíades Peña, na América Hispânica, ao contrário, dominavam “interesses capitalistas” orientados ao mercado mundial – a oligarquia comercial e os produtores de matérias-primas: couros, minerais, etc. Porém, lembra que os grandes comerciantes portenhos (que define como “burguesia comercial” em sentido estrito) interessavam-se, sim, pela formação de mercado nacional, para uma mais ampla introdução de bens estrangeiros, não para a realização da produção nacional de qualquer tipo. “Lo trágico [...] era que los elementos del desarrollo capitalista baseados en el mercado interno, es decir, en el desarrollo interior de la nación, eran nulos, ya que todos los intereses capitalistas se orientaban hacia la exportación y eran esencialmente portuários.”42 Uma visão da impossibilidade de construção de uma grande nação iberoamericana, devido à “inexistência de las bases materiales y

40 41 42

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 7 et seq. Cf. MAESTRI, A escravidão e a gênese do Estado nacional brasileiro, ob. cit. PEÑA, op. cit., p. 17.

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espirituales” concorrente com a dos historiadores uruguaios Lucia Sala de Touron e Rosa Alonso Eloy.43 As classes ibero-americanas interessadas no mercado interno seriam, sobretudo, “pequeños productores atrasados, destinados a desaparecer ante la competencia de las muy superiores industrias europeas”, como era o caso da “industria artesanal del interior argentino”. Uma das teses centrais do brilhante ensaísta foi a inexistência até o século 20 de classe apontando para a industrialização da Argentina.44 Ele criticava, igualmente, a tese de independência ibero-americana prematura, em vista da incapacidade das nações surgidas da ruptura com a metrópole de se industrializarem. Propunha que a ordem colonial era já parasitária, nada mais tendo a oferecer às colônias. Segundo ele, em 1810 a Independência ensejaria a única forma como a Ibero-América “podia evolucionar”, ou seja, como “apéndice económico da Europa, abastecedor y consumidor de la industria inglesa”. Propunha que haveria progresso na transição de “colônia” em “semicolonia económica”.45 Milcíades Peña liquida a possibilidade de desenvolvimento autônomo, apresentando a dependência da ex-colônia à indústria inglesa como avanço histórico, mesmo sendo esta agente da destruição da produção artesanal, doméstica e pequeno-manufatureira americana. Uma leitura que define como marxiana: “Marx consideraba progresiva esa subordinación.” Lembra que os EUA conheceram tal dependência, para superá-la, a seguir. Apoia-se nas páginas clássicas onde Marx descreve o processo avassalador, no plano humano, mas progressivo e inevitável, em sentido histórico geral, da penetração dos tecidos ingleses no mercado indiano, com a consequente destruição da produção artesanal tradicional do país, 43 44 45

TOURON; ELOY, El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco, 1991. p. 45. PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 15. Idem, p. 16.

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incapaz de concorrer com os produtos industrializados.46 Mais tarde, como veremos, Milcíades Peña matiza sua proposta sobre a inexorabilidade da dependência como caminho para a independência econômica.

Progresso e regresso Milcíades Peña defende que, devido ao “primitivismo de sus métodos de producción”, o artesanato e a pequena manufatura tinham “escasa posibilidad de supervivencia” diante das mercadorias importadas, que realizaram obra progressiva ao destruí-la.47 Propõe que uma política de defesa alfandegária seria nociva ao desenvolvimento social e histórico regional; que não existia na América Ibérica “indústria moderna”, quando da Independência, mas apenas “indústria doméstica”, como a do interior argentino e da província de Buenos Aires. E ela não seria um “resorte propulsor de cultura sino de atraso, ya que sólo podia sobrevivir a condición de frenar el desarrollo capitalista de las industrias agropecuárias del litoral, las únicas que en las condiciones de entoces podían permitir una rápida acumulación de capital nacional”.48 Destaque-se que sua proposta se apoia e se sustenta na caracterização como capitalista da produção agropecuária dos anos da Colônia e da Independência, como já destacado. Milcíades Peña liquida, inapelavelmente, com a proposta protecionista da produção artesanal e pequeno-manufatureira do interior argentino: “La protección a las industrias artesanales del interior hubiera sido ajustar el galope tendido del litoral hacia la acumulación capitalista al lento paso de mula de la industria del interior.”49 Desqualifica a valorização dessa produção, empreendida pelo historiador Abelardo Ra46 47 48 49

PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 17. Idem, p. 18. Idem, p. 17. Idem, p. 18.

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mos, em América. “[...] no hay ni una molécula de verdad en la afirmación de que la industria artesanal del interior tendía ‘a crear un estado histórico y económicamente nacional’”. 50 Apesar do sentido demiúrgico dado à produção pastoril do litoral, não realiza apologia desta última e enfatiza a importância da industrialização propriamente dita. Para ele, a “función de la industria” como “resorte propulsor de la cultura moderna” não necessitava ser demonstrada. Critica a apologia do mundo rural de José Hernandez no célebre poema Martín Fierro.51 Para Milcíades Peña, as classes que, mesmo limitadas historicamente, realizaram a “acumulação capitalista” no litoral, que defendia como progressista, em relação à produção “artesanal do interior”, historicamente regressista, eram, como proposto: a “burguesia comercial” e a “burguesia ganadera”. Na Argentina, na visão de Milcíades Peña, a “burguesia comercial” era formada pelos grandes comerciantes portenhos, após a Independência sobretudo crioulos, que lutavam para manter, na nova ordem, o monopólio do porto de Buenos Aires sobre o Prata, antes assegurado pelo exclusivismo colonial. Seria uma classe voltada para o exterior, pois dependente da venda dos manufaturados que interiorizava e das matérias-primas que exteriorizava. Porém, a ela, interessava a formação de mercado nacional, através da submissão das províncias argentinas do litoral e do interior ao porto de Buenos Aires, para mais ampla e rendosa distribuição das mercadorias inglesas e exportação das nativas. Era um segmento social incondicionalmente liberal e livre cambista, sem vinculações com a produção, como já visto.

50 51

PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 21. Idem, p. 17.

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Capitalismo pastoril Para Milcíades Peña, era sobretudo a “burguesia ganadera” que impulsionava a acumulação capitalista, ligada estreitamente à produção. Portanto, não se tratava de mera “acumulação originária de capitais”, de cunho pré-capitalista, mas de produção capitalista propriamente dita. A “burguesia ganadera”, mesmo participando das visões livre-cambistas da “burguesia comercial”, não comungava a proposta desta última de conformação de mercado nacional, insatisfeita com os gastos que a política exigiria, sem lhe trazer vantagens, pois vendia seu charque e couros no exterior. “Pero aquella (burguesia comercial) pretendia unificar a todo trapo el país para ensanchar así el mercado interno con el cual ella lucraría colocando las mercadorias que importaba de Europa, sin preocuparse demasiado de la suerte de los ganaderos bonaerenses. Los estancieiros, en cámbio, no tenían interés en ariesgar un solo centavo de sus ganancias en prol de la unificación nacional.” Estavam mais interessados em reprimir os índios pampas, para expandir suas estância em direção ao interior.52 Em oposição à burguesia comercial e pastoril-charqueadora da província de Buenos Aires, definidas como capitalistas, levantavam-se, sobretudo, as classes ligadas às formas de produção pré-capitalista do interior, com destaque para a produção doméstica, artesanal e pequeno-manufatureira e para as populações gaúchas, que se mobilizavam contra o liberalismo portuário e a produção charqueadora que destruíam suas formas de produzir e viver. “La política de la oligarquía porteña era, en síntesis, ampliar y profundizar su acumulación capitalista, mientras que todo el resto del país deseaba proseguir tranquilamente reproduciendo el modo de producción y de vida existentes.”53 52 53

PEÑA, La era de Mitre, p. 23. PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 28.

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Segundo Milcíades Peña, os grandes estancieiros do Litoral, com destaque para os de Entre Rios e Corrientes, apoiavam e se apoiavam nas facções sociais do interior, contra a oligarquia comercial e pastoril de Buenos Aires, que impunha o monopólio portuário e se negava a nacionalizar as rendas alfandegárias. O privilégio portuário valorizava a produção charqueadora da província de Buenos Aires, em detrimento dos charqueadores das províncias do litoral. O monopólio das rendas portuárias deixava literalmente as províncias do interior à mingua, pois o export-import era a única grande renda pública. A contradição entre as principais classes sociais do litoral-interior e de Buenos Aires, por um lado, e entre criadores-charqueadores e comerciantes desta última província, por outro, originaria as duas grandes correntes políticas que determinaram, no essencial, os confrontos sociais e a formação do Estado argentino: os Unitários e os Federalistas. Em 1810, a Revolução de Maio nasceu e se consolidou sob a hegemonia da oligarquia comercial portenha, que se mobilizou, como assinalou Juan Bautista Alberdi (1810-1884), para se libertar da autoridade metropolitana de Espanha e de seus tributos e contra a “autoridad de la Nación Argentina”, que pretendia substituir o “coloniaje español” pelo portenho. Milcíades Peña assinala igualmente que a Revolução de Maio fora literalmente uma “doble declaración de guerra”: pela independência, contra a Espanha e pelo domínio do vice-reinado do rio da Plata, contra as províncias, como assinalado.54 Durante o primeiro período pós-1810, a “burguesia comercial” portenha comandou o processo de conformação do Estado nacional, contra os interesses provinciais, que exigiam a proteção da produção doméstica, artesanal e pequenomanufatureira e a nacionalização das rendas portuárias. Ela contou com o apoio dos estancieiros e saladeiristas bonaerenses, igualmente favoráveis ao livre câmbio e ao monopólio do 54

PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 21.

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grande porto. “Había [...] un claro antagonismo entre Buenos Aires y el Litoral por un lado, interesados en exportar los productos de su ganaderia y comprar en cambio los productos extranjeros, y por lo tanto librecambista, y del outro lado el Interior, carente de productos exportables, pero poseedoer de una rudimentária industria abastecedora del mercado interno, para quien la libre introduccion de productos extranjeros significab a la ruína.”55

O advento do Rosismo Para Milcíades Peña, durante esses anos de convergência, “burguesia comercial” e “burguesia ganadera” de Buenos Aires impulsionaram a acumulação e a estrutura capitalistas argentinas nascentes, fazendo recuar as sobrevivências pré-capitalistas. “La oligarquia porteña, comerciantes y estancieros coincidían – con diferencias de táctica – en afiançar la estructura capitalista de la nación a costo de todos los elementos precapitalista. Su proposito era liquidar al gaucho privandolo de libre usufructo de la carne y obligandolo por la fuerza a proletarizarse, empleándose en estancias o saladeros.”56 Portanto, reconhece que a proletarização do gaúcho, transformado em peão, era um objetivo perseguido pela “burguesia ganadera” e ainda não consumado. Essa orientação histórica, ou seja, a destruição da produção pré-capitalista das províncias do interior, pela produção dita capitalista do litoral, apesar de ser, na visão do autor, historicamente progressista, causava imensos sofrimentos à população do interior: “[...] la política de la oligarquía porteña era la política de la ‘civilización’ es decir, tendía a construir una civilización basada en la producción de alimentos y materias primas para el mercado mundial, con todas las restantes 55 56

PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 22. Idem, p. 28.

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actividades del país subordinadas a esta. La mayoría del país no tenía nada que ganar y sí mucho que perder con el advenimiento de tal civilización, y es comprensible su oposición a ella.”57 O que ensejaria, para Milcíades Peña, por longas décadas, uma oposição histórica verdadeiramente regressista das massas populares do interior, sobretudo através das montoneras, forma de luta das massas gaúchas subalternizadas. “La montonera conjugó en su seno al gauchaje del litoral, privado de su tradicional modo de vida por la valorización de la carne que trajo consigo el comercio libre, con los más variados sectores de la población del interior, destruidas sus fuentes de subsistencia por la competencia inglesa.” Dirigidas por caudilhos das classes dominantes, as montoneras seriam, para Peña, movimentos restauradores que, apesar de democráticos, por representar a maioria do país na luta contra a oligarquia de Buenos Aires, não possuíam cunho democrático-burguês, ao não se mobilizarem pelo domínio e expansão da ordem capitalista. Uma contradição entre “movimento democrático” e “democrático-burguês” que se deveria, para o autor, ao fato de que a “estrutura de la colônia había sido decisivamente capitalista (Buenos Aires), pero con grandes sectores precapitalista (Interior)”. Portanto, deduzia também o caráter não progressista da luta das classes subalternizadas da definição como capitalistas das oligarquias comercial e pastoril da província de Buenos Aires.58 Milcíades Peña não via qualquer possibilidade de superação social das massas urbanas do interior, incorporadas à pequena produção mercantil doméstica, artesanal e manufatureira dos pequenos burgos, ou às comunidades gaúchas da campanha. “Las masas montoneras querían, desde luego, pan. Y precisamente engrosaban la montonera porque las 57 58

PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 28. Idem, p. 24.

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antiguas modalidades de producción estaban destruidas y no podían ya ganarse su pan como tradicionalmente lo hacían. Pero ‘tierra’ no buscaban ni les interesaba. A los gauchos del Litoral ofrecerles una parcela hubiera sido insultarlos.”59 Uma proposta que se justificaria, ainda que muito parcialmente, se consideramos “parcela de terra” como um lote destinado exclusivamente à agricultura, produção relativamente à margem da experiência social de parte da população gaúcha. Efetivamente, uma pequena horta de subsistência fazia parte comumente do “modo de produção gaúcho”.60 Porém, a proposta de Milcíades Peña mostra-se profundamente contraditória, considerando-se o dinamismo social que poderia ter assumido a mobilização das massas gaúchas, no caso do oferecimento não de um “lote de terra”, mas de uma “suerte de estância”, como proposto, em fins do século 18 e inícios do século 19, na Banda Oriental, quando do chamado “arreglo de los campos”.

Revolução artiguista A proposta democrática de legalização e distribuição de terras entre a população subalternizada (gaúchos, índios, crioulos pobres, negros livres, etc.) objetivava estrutural produção pastoril de subsistência, capaz de produzir o suficiente para o consumo e para a venda para a manutenção de uma unidade familiar. Ela foi avançada pela administração colonial e implementada, de forma limitada, no fim do período colonial, sobretudo na Banda Oriental. O principal agente desse projeto reformista da administração hispânica foi o militar, engenheiro, naturalista e geógrafo espanhol Félix de Azara (1742-1821). Esse projeto pretendia criar um cinturão de pequenos proprietários que pusesse fim à expansão luso59 60

PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 27. TOURON; ELOY, El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco, p. 75.

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brasileira. Quando da luta pela Independência, por longos anos essa proposta galvanizaria de forma radical e ampla os deserdados dos campos na Banda Oriental. A democratização da propriedade da terra foi parte integrante da luta pela independência federativa das províncias do Prata. Combate dirigido por José Artigas (1764-1860) contra a oligarquia comercial e fundiária oriental e portenha, até ser derrotado pela conjugação das forças dos grandes proprietários da Banda Oriental, da Argentina e do Império. Lamentavelmente, Milcíades Peña não aborda essa questão, amplamente desenvolvida em um sentido inovador no outro lado do rio da Prata, pelo grupo Práxis, formado por brilhantes historiadores ligados ao Partido Comunista Uruguaio. Em Artigas: tierra y revolución, trabalho sintético de 1967, aqueles autores propõem sobre o célebre “Reglamento provisório de la Província Oriental para el fomento de su campaña y segurida de sus hacendados”, de 10 de setembro de 1815: “El reglamento aparece pues, como el programa económico-social de la revolución, enderezado a cortar el nudo principal de las contradicciones que atenazaban la sociedad criolla: el problema de la propriedad de la tierra y el de la producción ganadera. Y al mismo tiempo, se dirige a asentar sobre la tierra a los pobres del campo, creándoles las condiciones para su benestar y trabajo libre, y a erradicar las viejas y ahora parasitarias y contrarrevolucionárias formas de existencia marginales de la producción: bandidismo, contrabano, corambre, etc.”61 “[...] el Reglamento Provisório de 1815 fue la más avançada y gloriosa ley que tuvieron los orientales. La confluencia en un solo haz de la revolución nacional anticolonial, democratica, republicana y federalista con la revolución social dispoensadora de tierras y enaltecedora de la dignidad humana transformó a la montonera oriental en el más formi61

TORRE, Nelson de la; RODRÍGUEZ, Julio C.; TOURON, Lucía Sala. Artigas: tierra y revolución. Montevideo: Arca, 1967. p. 56.

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dable y peligrosos de los ejércitos: el de los hombres que viven y mueren por un ideal.”62 Uma revolução nacional-democrática que, ao se apoiar nas necessidades objetivas de amplos segmentos sociais subalternizados – gaúchos, negros, cativos, índios, etc. –, soubelhes ganhar a confiança e o apoio, acaudilhando-os na longa e dolorosa resistência diante das classes proprietárias (précapitalistas) associadas da Banda Oriental, de Buenos Aires e do Império do Brasil.63 Em La oligarquia oriental em la Cisplatina, os autores citados lembram, precisamente, que a síntese entre uma liderança consequente, o programa democrático-burguês de distribuição de terras aos deserdados do campo e às camadas sociais plebeias, aos quais interessavam aquelas medidas revolucionárias, resultaria num outro “modelo de montonera”. Uma montonera que estabeleceria um “novo modo de relaciones entre caudillos y massas: las relaciones libres entre hombres livres trabajadores directo de la tierra”.64 As razões da derrota de revolução democráticoradical na Banda Oriental e da sua frustração na Argentina são históricas, não havendo empecilho ou impasse estrutural para esse movimento. Segundo os autores uruguaios citados, essa derrota fez retroceder a revolução democrática radical, impondo a hegemonia sobre a Banda Oriental dos setores oligárquicos comerciais de Montevidéu, representantes dos grandes capitais europeus e dos grandes proprietários fundiários, impedindo a hegemonia de sociedade e produção capitalista por décadas.65

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ELOY; TOURON; TORRE; RODRIGUEZ, La oligarquia oriental en la Cisplatina, 1970. p. 19. TOURON; TORRE; RODRÍGUEZ, Artigas y su revolución agraria: 1811-1820. México: Siglo XXI, 1978. ELOY; TOURON; TORRE; RODRIGUEZ, La oligarquia oriental en la Cisplatina, 1970. p. 19. TOURON; ELOY, El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco, tomo II, p. 43.

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Para Milcíades Peña, tamanho seria o caráter retrógrado da produção artesanal, doméstica e pequeno-manufatureira interiorana que ameaçaria a própria unidade argentina em formação. Visão que deixa nas mãos da burguesia comercial e pastoril o futuro nacional argentino, apesar do alcance historicamente restritivo dos projetos dessas classes. No contexto da interpretação que desenvolveu, Milcíades Peña não encontra saída dialética para a história da antiga formação social argentina, pois a ordem capitalista que propõe não produzia e reproduzia antagonicamente a classe que explorava, destinada historicamente a lhe servir de coveira. Em momento algum o autor aponta o proletariado rural, ou seja, os peões, na sua interpretação surgidos da produção capitalista pastoril, como classe protagonista na história argentina e portadora de projeto democrático e revolucionário. “Era una verdadera tragedia que las industrias criollas, notoriamente atrasadas, para conservar sus reducidos mercados locales, debieron fragmentar al país renunciando así a construir el gran mercado nacional. Porque éste debía fatalmente ser controlado por la burguesía porteña, y ello significaba el librecambio, es decir, entregar el mercado nacional a la industria inglesa.” “La historia no brindaba ninguna salida para este circulo de hierro.”66 Já no século 19, quando se estabeleciam objetivamente tais contradições, haveria plena consciência da oposição entre os interesses do interior e das classes liberais importadoras. Ideólogos federalistas lembravam que a vitória de Buenos Aires sobre o interior significaria a estagnação e “miles y miles” de indivíduos sem nenhuma ocupação. Entretanto, para Milcíades Peña, não havia solução para essa contradição: “[...] el desarrollo de la acumulación capitalista – de la civilización capitalista en la única forma en que podía darse en aquel momento en la Argentina, es decir, como capital semi-colonial, atrasado y agropecuario 66

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 24.

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y comercial, determinaba fatalmente una política oligárquica y antidemocrática. El desarrollo capitalista en la Argentina no conducía a la democracia, sino a la oligarquía.”67 Como lembraria Marx, “Inglaterra aspiraba a ‘convertir a todos los demás países en simples pueblos de agricultores, reservándose ella el papel de fabricante’”. Seria a profunda concordância de interesses entre a indústria e as finanças inglesas e esse padrão de desenvolvimento capitalista semicolonial argentino, meramente importador de manufaturados e exportador de matérias-primas, que permitiria a “penetración y la influencia británica en el país”.68 Movimento interpretado diretamente por Bernardino Rivadávia (18261827), primeiro, e por Juan Manual de Rosas (1793-1877), a seguir. Milcíades Peña assinala o caráter explorador dessa fase pré-imperialista do capitalismo, na qual a dominação se dava pela venda de manufaturados e compra de matérias-primas, por meio de trocas desiguais. Os couros argentinos eram comprados, nos campos, por uns 3,5 peniques por libra, para serem vendidos em Buenos Aires por 5,5, três meses mais tarde. Passado meio ano da produção, o produto era arrematado, em Londres, curtidos, por 9 a 10 peniques. No torna-viagem, uma bota, feita com o couro bonaerense, custava, em Buenos Aires, em torno a vinte novilhos!69

Couros e charques Os criadores bonaerenses, ligados à produção, exportavam couros e charque e importavam manufaturados e alimentos, em parte do interior. Eram livre-cambistas e não possuíam visão nacional. Os comerciantes portenhos, representantes do capital comercial e industrial inglês, desligados da produção, mobilizaram-se desde 1810 pela reconstrução do 67 68 69

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 22 e 30. Idem, p. 31. Idem, p. 33.

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vice-reinado, para restabelecer o monopólio da exportação e importação de mercadorias. Portanto, necessitavam unificar o país. Representante dessas forças, o unitarista Rivadávia, na presidência do país, pretendeu colonizar o pampa e desenvolver a agricultura para impulsionar o comércio interno, pois a fazenda pastoril pouco consumia. Ele sempre respeitou religiosamente os interesses ingleses, entregando imensas terras públicas em enfiteusis, para garantir o emprestado pelos banqueiros ingleses. 70 A política geral de Rivadávia desagradava aos criadores bonaerenses. Ele se voltava para o futuro, enquanto, no presente, os “indios conquistaban la provincia de Buenos Aires y el gauchaje se alzaba más que nunca contra la obligación de conchabarse en estancias y saladeros”. Porém, nesses anos se acelerou a apropriação privada das terras públicas. Entre 1822 e 1930, “538 proprietarios obtuvieron por lo menos 8 millones seiscientos mil hecares”, pagando ao Estado pouco mais de cinco mil pesos, ao todo. No frigir dos ovos, lembra Milcíades Peña, o “unitarismo significaba disponer de los fondos de la aduana porteña para una política nacional manejada desde Buenos Aires. [...] aumentar los impuestos que recaían sobre los estancieros. Por otra parte, el programa de centralización, en la medida en que prometía eliminar las aduanas interprovinciales y hacer accesible a los artículos extranjeros todo el mercado interno, expresaba en términos políticos los intereses de todos los vinculados a la expansión del comercio interno y externo”.71 Ao ditar a lei da capitalização, o unitário Rivadávia ensejou que os estancieiros se transformassem em federalistas. “Y los estancieros y saladerista bonaerenses eran enemigos irreductibles de los impuestos en general y de los impuestos a la exportación en particular.” “Además, era probable que en 70 71

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 40. Idem, p. 41-44.

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un régimen unitario el gobierno central dedicaria su tiempo y recursos al desarrollo del interior”, isso para “expandir los mercados internos y ligarlos a Buenos Aires y a otros puertos”, “más que a continuar el programa de expansíon territorial hacial el Sur”, como necessitavam os criadores de Buneos Aires, sob a impulsão da produção charqueadora. Os criadores opunham-se também à imigração colonial-camponesa.72 As províncias do interior defenderam-se do exclusivismo portuário estabelecendo tarifas especiais, alfândegas de trânsito, taxas diferenciais, etc. Essa ação autonomista foi apoiada pelos estancieiros bonaerenses, que queriam o federalismo para manter sob controle o porto e a oligarquia comercial. A aliança entre os estancieiros bonaerenses e as províncias poria fim ao governo quase exclusivo da oligarquia bonaerense, que procurava mercado nacional e empobrecia o interior. As classes subalternizadas, entre elas os gaúchos, que resistiam à proletarização e ao arrolamento militar, apoiavam a resistência federalista ao liberalismo portuário invasor. Milcíades Peña lembra que, nessa aliança, dominaram os estancieiros de Buenos Aires, segundo ele, capitalistas.73 Desse processo surgiria a ditadura. “Rosas constituye una etapa decisiva en el desarrollo del capitalismo argentino, tal cual es, vale decir, capitalismo atrasado, semi-colonial, esencialmente agropecuario.” “Rosas pertenecía – y era uno de los más poderosos integrantes – a esa clase capitalista nacional; capitalista, pese a toda la charlatanería que pretende asignarle un carácter ‘feudal’.” “[…] Rosas contribuyó a desarrollar e hipertrofiar – como convenía a su clase – la principal actividad capitalista del país, es decir, la estancia y el saladero.”74 Haveria, portanto, unidade essencial entre os períodos da história argentina, antes, durante e após o rosismo – todos seriam etapas do desenvolvimento do capitalismo no país. 72 73 74

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 42-44. PENA, La era de Mitre, p. 47 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 58-60.

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Preocupados com o que interessava Segundo Milcíades Peña, Rosas e os estancieiros não se preocupavam em criar um mercado nacional, mas em desenvolver, como apenas proposto, a produção capitalista pastorilsaladeira dominante. Não havia razão para seguirem outro caminho. O governo rosista impulsionou a monopolização do gado para o saladeiro; impediu tributação da propriedade fundiária; escorraçou os nativos pampas, para permitir a expansão da fazenda; acelerou a transformação do gaúcho em peão. O primeiro saladeiro de Rosas iniciou seus trabalhos em novembro de 1815. No mesmo ano, ditava-se o decreto: “Todo hombre de campo que no acredite tener propiedades legítimas o tierras de qué subsistir, será reputado sirviente, y obligado a llevar papeleta de conchabo de su patrón, visada cada tres meses por el juez de paz, so pena de declarársele vago y castigado con cinco anos de servicio militar obligatorio, o, si no sirviera para ese destino, con dos años de conchabo obligatorio a cargo de un patrón, la primera vez y de diez anos la segunda, en caso de reincidencia.”75 Medida orientada a criar, pela coerção extraeconômica, mercado de trabalho livre, devido à falta de condições históricas para que os produtores diretos fossem obrigados a vender a força de trabalho por razões meramente econômicas, como assinalado. Para manter o monopólio do porto de Buenos Aires, que produzia rendas e vantagens diferenciais para os saladeiros bonaerenses, Rosas lutou contra a França, que pretendeu impor seu poder mercantil desde Montevidéu. O bloqueio francês do porto de Buenos Aires favoreceu a economia das províncias litorâneas e a produção manufatureira do interior. Em 1849, Rosas acertou com os ingleses o respeito ao monopólio de Buenos Aires e à navegação dos rios interiores, lançan-

75

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 63.

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do o litoral na miséria.76 Milcíades Peña assinala que “Rosas fue el primer gobernante argentino que sustentó su poder con una hipertrofia de ejército de línea, que es el enemigo nato del gaucho, de sus correrías y sus montoneras. Las rentas de la aduana porteña le permitieron mantener en pie de guerra cuatro ejércitos de línea”.77 Isso permitia aos criadores bonaerenses uma administração menos contemporizadora em relação às populações gaúchas da província que se refugiavam, numerosas, entre os nativos pampas e na Banda Oriental. Peña destaca, igualmente, o “temperamento cavernícola” de Rosas, definindo-o como reacionário até a medula, lembrando sua militância contra “la enseñanza libre, contra el divorcio, contra el liberalismo, [...]”.78 Um perfil que destoa fortemente de líder burguês-capitalista, mesmo colonial. Para o autor, o “antiliberalismo, el clericalismo, el oscurantismo” de Rosas era, sobretudo, “política ideológica para mantener el orden y evitar trastornos a lo poseyentes”.79 Intuindo a contradição de sua proposta, procura impugnar os argumentos daqueles que estranhavam governo capitalista que não apoiava minimamente a indústria. “Y si sólo calificásemos como capitalista a los gobiernos que contribuyeron a desarrolar el capitalismo industrial, entonces resultaría que hasta 1900 no hubo entre nosotros ningún gobierno que estimulase el desarrollo capitalista del país”,80 o que, diga-se de passagem, para além da data apenas referencial, é correto para a Argentina assim como para o Brasil.

76 77 78 79 80

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 74. Idem, p. 64. Idem, p. 69. Idem, p. 70. Idem, p. 60.

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Mercado interno e industrialização Milcíades Peña polemiza com a historiografia que via a oligarquia comercial portenha como uma classe que se esforçava para industrializar o país e, na enfiteuses, estratégia para controlar o avanço dos estancieiros. Lembra que, para os comerciantes, industrializar o país era se liquidar como importadores. Uma solução de caráter lógico para uma questão histórica. Nas Américas, comerciantes usaram comumente o controle dos mercados e a acumulação mercantil de capitais (pré-capitalista) para produzir e vender as mercadorias que antes importavam. Aquele historiador ajunta que os comerciantes queriam unificar o país apenas para melhor introduzir monopolicamente os produtos estrangeiros, não lhes interessando “conquistar o deserto”, pois a expansão da produção pastoril pouco lhes seria vantajosa. Para Peña, se o viés nacional da “burguesia comercial” era anti-industrialista, o industrialismo da “burguesía estanceril” seria antinacional: “[...] los estancieros y saladerista bonaerense, clase indudablemente nacional por su vinculación a la producción del país [sic], en la cual se basaba su poderío, era cerradamente localista y en tanto conservaba su puerto único con su correspondiente aduana privilegiada, se desentendía del resto do país siempre y cuando éste vegetara pasivamente sin pretender quebrar el monopolio porteño del puerto y de producto de la aduana.”81 Por sua vez, os “productores artesanales”, a única classe que almejaria o desenvolvimento da produção interna, mobilizavam-se pelo “estancamiento protegido de sus atrasadas empresas”. Uma situação que teria determinado, segundo o autor, verdadeiro impasse histórico: “El círculo estaba cerrado y no había dentro del país ninguna fuerza que tendiera a romperlo, aunquando el interés en la producción nacional a 81

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 50.

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la creación de un mercado interno nacional.” Porém, o autor propõe salto para a frente da produção capitalista pastorilcharqueadora com o fim do rosismo, que teria expressado a autonomia dos grandes criadores, já capitalizados. O porto e a campanha de Buenos Aires, cada vez mais inseridos e submetidos ao mercado mundial, exigiriam avanços significativos na produção pastoril, além dos exigidos e permitidos pelo saladeiro. “La ganadería se diversifica, apareciendo nuevos intereses al margen de los vinculados al saladero.”82 Em 1845, inicia a introdução do alambrado, que primeiro é usado para proteger as chácaras e plantações e, a seguir, para cercar as estâncias.83 Os banheiros carrapaticidas, a melhoria genética, as invernadas, as áreas de manejo, a ovinocultura, a construção de ferrovias e, finalmente, o advento dos frigoríficos deixavam para trás a “fazenda crioula”, o peão agauchado e o saladeiro, formas de produção que sustentavam a ditadura rosista. Já controlando a terra, os estancieiros abriam-se, igualmente, para a colonização, que valorizava as propriedades, tornava mais baratos os meios de subsistência, fornecia a mão de obra crescentemente exigida pelos avanços produtivos, com destaque para a ovinocultura, sequiosa de mão de obra especializada. Milcíades Peña assinala a própria transformação nos costumes, fortemente influenciada pelos ingleses, realidade muito visível, já que as modificações produtivas se impunham de forma desigual. Em 1847, Mc Cann escrevia: “Los propietarios de campos pueden dividirse en dos categorías: los que quieren adoptar hábitos europeos, cuyas modalidades imitan, y los que prefieren conservar las costumbres del país.”84 As transformações profundas que ocorriam na produ82 83

84

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 78, 50, 97. SBARRA, Noel H. Historia del alambrado en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1964. MAC CANN, William. Viaje a caballo por las provincias argentinas. Buenos Aires: Hyspamerica, 1986. p. X.

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ção exigiriam novas formas de domínio político, superando, inexoravelmente, a ditadura rosista, que regera o país durante décadas: “Al llegar Caseros, lo único que restaba del frente rosista de 1830 eran las masas bonaerense y los caudillos mediterráneos, quiénes, por si solo nada podían decidir [...].” Milcíades Peña propõe que, se Rosas não tivesse caído, haveria, possivelmente, a separação do litoral, como ocorrera com o Paraguai.85

Nova ordem Para Milcíades Peña, a nova ordem político-social que nascia em uma Argentina ainda mais ligada ao comércio exterior ensejava uma ainda maior dependência ao capital mundial, situação que radicalizava, e não contraditava, movimento construído durante a ditadura rosista. “El saladero era menos dependiente del capital extranjero que el frigorífico [...] pero se trata de la diferencia que media entre la crisálida y la mariposa, es decir, la economía ‘independiente’ del rosismo llevaba todos los gérmenes de la economía dependiente sin comillas que se estructuró después.” 86 Ou seja, havia avanço de quantidade, mas jamais salto de qualidade nessa transposição. La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infâmia, denso e original momento da interpretação de Peña sobre a formação histórica argentina. O trabalho aborda o candente período que vai da queda de Rosas, em 1852, à intervenção da Argentina de Mitre na Guerra do Paraguai, em 1864-70. Para o autor, essa guerra constitui momento conclusivo da imposição pela “burguesia comercial” portenha da conformação estatal liberal-unitária à nação argentina. O ensaio retoma a proposta da queda de Rosas, derrotado pelo 85 86

PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 96 et seq. Idem, p. 102.

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unitarismo, da “burguesia comercial portenha”, sob a direção de Mitre, unida ao federalismo das províncias do litoral e do interior, comandadas pelo general José Justo Urquiza (18011870). A fácil vitória de Monte Caseros, em fevereiro de 1852, expressaria a dissolução do rosismo, com a perda de sua base de sustentação, a estância e o saladeiro capitalistas tradicionais, como visto. Milcíades Peña aponta o programa federalista de Urquiza como “aportes progressivos” importantes à “organización definitiva del país para facilitar su desarrollo capitalista”: supressão das aduanas internas, nacionalização das aduanas exteriores, livre navegação dos grandes rios, criação da Bolsa de Comércio, fundação de Departamento de Estatística, abolição da pena de morte, fim do confisco por razões política, etc.87 Não discute a contradição posta por programa nacional avançado defendido por forças sociais e políticas das províncias do interior, segmentos, segundo ele, regressivos. Programa progressivo em contradição direta com as propostas localistas e atrasadas defendido pela “burguesia comercial” portenha e pelos “criadores” e “saladeiristas” de Buenos Aires, que definia como os segmentos capitalistas de ponta da nação. Foi um projeto democrático nacional abortado, em 11 de setembro de 1852, com o rompimento com a Confederação Argentina da província de Buenos Aires, comandada pelos unitários de Mitre, expressão da “burguesia comercial” portenha, dos criadores bonaerenses e dos interesses ingleses. Rompimento nascido da negativa de nacionalizar as rendas portuárias de Buenos Aires, que avantajavam a província em relação ao resto do país e à bacia do Prata, movimento que Juan Bautista Alberdi definiu como retorno “ao rosismo sem Rosas”. Foi política imposta pela violência e pela força que levaria o mitrismo a prever a constituição da província de

87

PEÑA, La era de Mitre, p. 9.

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Buenos Aires em nação independente, caso não se impusesse à nação – República del Plata.88

Fracos e fortes Milcíades Peña analisa detidamente a fragilidade econômica da Confederação Argentina, mesmo após a liberdade de navegação dos grandes rios, diante de Buenos Aires, centro inconteste do capital mercantil, que recebia o apoio indiscutível do grande comércio mundial, com destaque para o inglês. Aponta, sobretudo, como responsável pela vitória portenha a fragilidade do bloco político-social que sustentava a Confederação, que teria nos “ganaderos entrerrianos”, representados pelo general Urquiza, o único setor “capaz de enfrentar a la oligarquia perteña”. Peña lembra que não haveria contradições essenciais entre criadores e saladeiristas de Buenos Aires e do litoral que impedissem uma acomodação final entre eles.89 A vitória indiscutível de Urquiza sobre Mitre na batalha de Cepeda, em 23 de outubro de 1859, sem impor definitivamente a unificação e o poder nacional à província de Buenos Aires, expressaria o impasse social, político e histórico do federalismo, vergado mais tarde também devido à defecção do grande caudilho provincial na batalha de Pavón, em 17 de setembro de 1862. “[...] Urquiza representaba a los estancieiros entrerrianos” aliados da oligarquia portenha durante a ditadura de Rosas, até que se inimizassem com ele devido ao “monopolio aduanero y de los ríos”, inaceitáveis pelos proprietários das províncias do litoral diante das novas oportunidades oferecidas pelo comércio mundial. Fora devido a essa contradição que se acaudilharam as forças sociais provinciais do interior, com contradições essenciais com a ditadura por88 89

PEÑA, La era de Mitre, p. 12, 19. Idem, p. 25.

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tenha, com destaque para a indústria artesanal e pequenomanufatureira e as massas gaúchas. Não havia questão essencial que impedisse que os criadores entrerrianos abandonassem à sua sorte os antigos aliados plebeus na busca de acordo com as forças portenhas e bonaerenses, sobretudo diante de impasse que os prejudicasse economicamente.90 Eles, como os criadores de Buenos Aires, abominavam o protecionismo industrial e a independência econômica.91 A vitória em Pavón e a acomodação das classes hegemônicas litorâneas permitiram a imposição da ditadura unitarista ao federalismo das províncias do interior. Movimento no qual Mitre associou a força das “bayonetas porteñas” ao apoio fornecido pelos núcleos raquíticos das oligarquias liberais locais, apesar da forte oposição da população, com destaque para as classes plebeias urbanas e sobretudo rurais, que comumente se sublevaram através das montoneras. Para Peña se manteria o impasse histórico vivido pela Argentina na época: “Dentro del país no existían clases capazes de imprimir outra orientación a la evolución nacional.”92 A inconsequência histórica da “indústria doméstica” e do modo de viver e produzir gaúcho ensejariam que a oposição à penetração da ditadura liberal-mercantil portenha, sobretudo sob a forma das montoneras, que reconhece como movimento popular de resistência, não tinha “absolutamente ningún porvenir”. Isso porque essa oposição carecia de “conteúdo social progresivo” ao não aportar “la posibilidade de ningún orden social novo”. Tratar-se-ia de “defensa moribunda de una estructura social sin posibilidades de evolución acendente”, como visto. O progresso estaria, ao contrário, com a “oligarquia porteña”, mesmo não democrática, pois sua “política” “elevaba la economía nacional a una etapa superior en la cual a las masas que integraban las montoneras habría de tocarles 90 91 92

PEÑA, La era de Mitre, p. 31. Idem, p. 39. Idem, p. 40.

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la peor parte”. Isso porque “aportaba algunos escasos elementos de civilización industrial, con cuenta gotas y para beneficiar en primer término al capital extranjero y en segundo termino a la oligarquía porteña y sus socias menores del resto del país, con entera desidia por la creación de los cimientos de una gran nación”.93 O unitarismo dominou o país com a liquidação da Confederação Argentina, impondo a ordem liberal-mercantil às províncias do litoral e do interior e às suas populações, massacrando as montoneras e seus caudilhos. Porém, tratava-se de uma hegemonia frágil e instável, sobretudo devido à oposição essencial à dominação liberal-comercial portenha dos blancos da ex-província oriental e da enorme, poderosa e rebelde exprovíncia do Paraguai. O governo daquele país, dependente de uma saída para o mar e, portanto, contrário à hegemonia portenha ou imperial sobre o Prata, era um aliado do federalismo argentino capaz de desequilibrar a correlação de forças apenas construída. Milcíades Peña lembra: “La guerra contra el Paraguay fue la continuación lógica y la última etapa de la guerra de a oligarquía mitrista contra el Litoral e las provincias interiores argentinas […].”94

Destruição geral Ponto alto do ensaio La era de Mitre, sobretudo devido ao momento em que foi produzido, é a análise, ainda que sintética, da formação social paraguaia e do sentido da intervenção do governo imperial brasileiro naquele conflito, intervenção que ensejou que os exércitos da Argentina mitrista e do Império destruíssem aquele país “con una minuciosidad que el mismo Hitler no logro hacer con ningún pueblo”.95 Nesse processo, Milcíades Peña discute os resultados sociais profun93 94 95

PEÑA, La era de Mitre, p. 44-45. Idem, p. 47. Idem, p. 49.

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dos do processo de resistência paraguaio e retoma a discussão sobre os grandes objetivos da Revolução de Maio, analisados nos dois primeiros ensaios: “[...] emancipar el país de Espana y someter todo el virreinato a Buenos Aires.”96 O autor lembra que a luta paraguaia pela independência ensejara a repressão dos segmentos oligárquicos antinacionais espanholistas e portenhistas, com destaque para a aristocracia administrativa, para os grandes proprietários espanhóis e para os comerciantes ligados ao comércio de Buenos Aires e inglês. Em nome da “clase dominante del Paraguay integrada por medianos propietarios agrários”, o movimento capitaneado por José Gaspar de Francia (1776-1840) se materializaria em uma “economía defensiva, basada en el monopolio estatal de la propiedad del principal instrumento de producción – la tierra – y de la comercialización de los productos fundamentales de exportación [...]”. Solução que ensejaria à nação guarani, apesar da pobreza do país e da expropriação imposta pelo porto de Buenos Aires, “capitalizarse acelerdamente”.97 Milcíades Peña assinala que, por não possuir o país classes tão ricas como os “estancieiros e a burguesia comercial porteña”, surgira um “Estado que por su poderio económico y centralización política” competiria com aqueles segmentos sociais, entre os “más poderosas y prósperas de América del Sur”. Em sensível interpretação de cunho materialista, assinala que a “sociedad paraguaya, pesa a la dictadura estatal personalizada y de formas casi monárquicas”, era um país democrático, já que não era “un Estado parasito, sino ligado íntimamente a la producción y la comercialización de la producción”, em que “todas las clases eran realtivamente débiles e iguales”.98 Uma debilidade e fragilidade das classes proprietárias que, agregaríamos, resultou no Estado interpretando 96 97 98

PEÑA, La era de Mitre, p. 49. Idem, p. 50. Idem, p. 51.

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fortemente os interesses dos médios e pequenos camponeses proprietários e arrendatários, dos pequenos comerciantes, do artesanato e produção pequeno-mercantil, etc. Concordando com o autor, ajuntaríamos que essa realidade manteve-se muito presente durante a ditadura francista (1813-1840) e passou a conhecer gradual, mas inexorável transformação, em favor dos grandes proprietários nos dois governos seguintes, de Carlos Antônio López (1844-1862) e Francisco Solano López (1862-1970). Movimento que não alcançou a realizar salto de qualidade, interrompido pela Guerra Grande, que realizaria radical metamorfose liberal-mercantil do país, sob a hegemonia do capital exterior e o tacão da ocupação militar.

Uma saída inesperada Apoiando-se em Juan Bautista Alberdi e em outros autores coevos, Milcíades Peña assinala, sem os exageros então já habituais, o desenvolvimento relativo em que se encontrava o Paraguai nos anos 1860 – ferrovias, manufaturas, metalurgia, telefone, telégrafo, etc. Iniciativa de modernização apoiada essencialmente em capitais estatais, enquanto o Império e a Argentina, muito mais ricos, eram obrigados a se endividar para tal junto ao capital mundial. Nesse processo interpretativo, conclui, em clara contradição com teses sobre a Argentina defendidas anteriormente: “Paraguay, en cambio, en virtud del poderío capitalista [sic] de su estado y de la homogeneidad de su clase gobernante demostró inmediatamente que era capaz de asimilar la civilización industrial y orientarse hacia ella, pero bajo su contra, sin perder su soberanía.” “Paraguay evolucionaba independientemente hacia la civilización capitalista industrial [...].”99 Ao encerrar discussão muito sintética sobre a formação social paraguaia, Peña recapitula sua tese central sobre a Ar99

PEÑA, La era de Mitre, p. 53.

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gentina do período em análise: as províncias do interior não tinham proposta alternativa superior à do liberal-mercantilismo portenho. A organização social das principais classes das províncias do litoral era igual no essencial às da província de Buenos Aires, o que configurava o impasse, ou anel de ferro, nas suas palavras. Entretanto, agrega apontando em outra direção: “Paraguay, en cambio, ofrecía una alternativo distinta a la de la oligarquía porteña y superior a ella, como que se basaba en el desarrollo autónomo de la economía nacional en base a todas las conquistas da civilización, industrial y capitalista.”100 Uma economia nacional que se dera à margem das trocas internacionais e apoiada fortemente na produção artesanal, pequeno-manufatureira e camponesa, produção que enfatizara e desqualificara, respectivamente, no relativo à Argentina. Na segunda parte do ensaio, Milcíades Peña explica a guerra como iniciativa do liberal-mitrismo para, por um lado, “liquidar aquel foco que en cualquier momento podía aglutinar a las derrotadas provincias del Interior y a los estancieros de lo Litoral” e, por outro, “extender su influencia hasta el mercado paraguayo, rompiendo las barreras de su monopolio estatal y su rígida centralización”. Quanto ao Estado e às classes dominante imperiais, lembra que sua economia se sustentava no “trabalho esclavo”, padecendo das crises desse sistema de produção, “cada vez más costoso e ineficiente”, necessitando para tal de “expansión territorial a expensas de los vecinos, con tendencia a dominar toda la zona del Plata”.101 Em outra sensível interpretação, nega terminantemente que a Argentina mitrista e o Brasil Imperial fizeram “la guerra del Paraguay por encargo de Inglaterra, aun que al terminar la guerra el principal beneficiario [...] fue el capital londinense.”102 100 101 102

PEÑA, La era de Mitre, p. 57. Idem, p. 63. Idem, p. 61.

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Lembra que o ataque do Império, associado à Argentina, contra o Paraguai começou efetivamente com a agressão orquestrada por aqueles países ao Uruguai, “el último aliado que le quedaba” à nação guarani, “después de la derrota del Interior argentino y la neutralización del Litoral por el acuerdo de Urquiza con Mitre”.103 Destaca as ambições mais amplas do Império na República Oriental, da qual parte de seu território era “una prolongación del Estado brasileño do Rio Grande do Sul”, com grande “cantidad de estacieros (riograndenses)” estabelecidos nas regiões setentrionais do país oriental, que sonhavam com sua anexação ao Império. Assinala a vontade dos criadores sulinos de continuarem se comportando no Uruguai como em sua terra, despachando o gado livremente para o Rio Grande, recebendo de volta os cativos homiziados no Uruguai, que abolira a escravidão.104

O sentido da guerra Milcíades Peña assinala o apoio de Mitre e do Império à invasão do Uruguai por Venancio Flores (1808-1868) até a deposição do governo independente e legal blanco. Cita carta de Mitre a Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) comprovando a utilização da necessária travessia das tropas paraguaias de Corrientes como forma de levar o Paraguai à guerra contra a Argentina: “Por aquí son (los paraguayos) impotentes. Por tierra tendrían que violar el territorio argentino y se encontrarán en guerra contra nosotros aliados con el Brasil.”105 Citando o jornal mitrista Nación Argentina, de 3 de fevereiro de 1865, assinala o projeto de destruição da ordem autonômica em vigor no Paraguai, em nome do liberalismo mercantil, portanto, também dos interesses ingleses, antes da declaração de guerra entre a Argentina e este país. 103 104 105

PEÑA, La era de Mitre, p. 63. Idem, p. 69. Idem, p. 71.

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“La República Argentina [...] está en el imprescindible deber de formar alianza con el Brasil a fin de derrocar esa abominable dictadura de López y abrir al comercio del mundo esa expléndida región.”106 Desnuda a retórica patriótica argentina e imperial, servindo-se de declaração do próprio Mitre, sobre a guerra como orientada a derrubar a ditadura bárbara paraguaia. Quando a guerra terminava, Mitre escrevia: “Los soldados aliados, y muy particularmente los argentinos, no han ido al Paraguay a derribar una tiranía [...]. Han ido [...] sirviendo intereses argentino y lo mismo habrían ido se en vez de un gobierno monstruoso y tiránico [...] hubiéramos sido insultados por un gobierno más liberal y civilizado.”107 Assinala o atraso militar paraguaio diante dos antagonistas e a defesa intransigente da sua população da liberdade.108 Milcíades Peña chama a atenção para que, mesmo sendo a guerra contra o Paraguai parte fundamental da ofensiva final contra as forças federalistas das províncias do litoral e do interior, como assinalado, sobretudo diante da resistência guarani, “debilitó el frente interno de la oligarquía y permitió un último estertor de las masas” daquelas regiões “contra a oligarquia porteña”. Assinala que a população plebeia argentina “votó contra la guerra del Paraguay desertando em masa, insurreccionándose, cooperando con los paraguayos donde pudo y resistiéndose pasivamente al mitrismo en todas partes”.109 Destaca como parte desse movimento as montoneras do interior, dirigidas por Felipe Varela, parte mais significativa da situação de insurreição intermitente que dominou os seis anos de governo de Bartolomé Mitre.110 Conclui o trabalho ressaltando o pouco entusiasmo dos estancieiros bonaerenses pela guerra, devido, sobretudo, aos 106 107 108 109 110

PEÑA, La era de Mitre […], p. 72. Idem, p. 77. Idem, p. 80. Idem, p. 86. Idem, p. 90.

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gastos financiados com os impostos de exportação, ao contrário da oligarquia comercial portenha, a grande interessada no conflito, que conformou a nação no sentido liberal pretendido, estendendo seu raio de ação e lhe garantindo negócios fabulosos. Grande defensor do comércio, Mitre afirmaria: “En la guerra del Paraguay ha triunfado no solo la República Argentina sino también los grandes principios del libre cambio, que son los que vivifican al comercio. Para el comercio se han derribado las fortalezas que amenazaban las costas; para el también se han roto la cadenas que obstruían el rio Paraguay; para él se ha conquistado también la paz presente y futura de estas regiones [...].”111 Termina narrando a situação de destruição e saque do Paraguai após a guerra, sob o tacão da ocupação militar. Assinala que já em 1870 o país contraía seu primeiro empréstimo, de um milhão de libras, que terminou integralmente nas mãos dos vencedores. Lembra que a oligarquia portenha não alcançou plenamente seus objetivos, pois o Império defendeu a integridade territorial do Paraguai, para que a região não escapasse para as mãos argentinas, assim como os ingleses protegeram o status nacional daquele país contra os dois grandes agressores, preocupados na recuperação de seus empréstimos.112 “De todo esto o único que queda en pie es que la oligarquía porteña, contra la voluntad de toda la Nación Argentina, entró por derecho propio en la historia universal del impudor con una de las más épicas canalladas que registra la historia del mundo. Con semejante hazaña Mitre impuso el predominio indiscutido de la oligarquía porteña sobre el resto del país, incluso sobre los otrora rebeldes ganaderos entrerrianos, y destruyó también, en beneficio de la burguesía europea y de su servil intermediario cita en las orillas del Plata, el primero 111 112

PEÑA, La era de Mitre […], p. 101. Idem, p. 104.

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y único intento de evolución independiente hacia el capitalismo industrial que conoció América Latina hasta hoy.”113 Uma valorização de processo que não se materializou na Argentina e no Uruguai, não por destino histórico, mas pela força e vitória das classes mercantis e pastoris pré-capitalistas da província de Buenos Aires, em processo que atrasou substancialmente a gênese da produção capitalista e das classes trabalhadoras fabris, processo que valorava como único caminho em direção a emancipação social e política regional.

113

PEÑA, La era de Mitre […], p. 106.

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Atividades pastoril-missioneiras: imagens & textos Júlio Ricardo Quevedo dos Santos*

Considerações iniciais A compreensão das atividades pastoris das comunidades de trabalhadores “missioneiros” que atuavam como peões, vaqueiros, vaqueanos, carreteiros, tropeiros, curtidores e charqueadoras – trabalhos ligados às atividades pecuaristas – na Região Platina colonial tem ocupado diversas narrativas históricas. No entanto, ancorados em Jacques Leenhardt, elaboramos nossa premissa de que, se “a história do olhar sobre as populações e as culturas extra-europeias começa no continente sul-americano”, é possível perceber as atividades supramencionadas a partir de alguns olhares consagrados em imagens do passado que nos chegam até o presente, as quais podem ser ressignificadas.1 Compreendemos como “missioneiro” uma categoria histórica construída no âmago das Missões Jesuíticas, pertinente a parcialidades de populações originárias da região do Rio da Prata. Essas parcialidades viviam naquele espaço ante*

1

Professor Associado do Departamento de História e do PPG; mestrado profissionalizante em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa Maria; Doutor em História Social pela USP. E-mail: [email protected] LEENHARDT, Jacques. Do documento naturalista ao documento social: JeanBaptiste Debret e os pintores viajantes. In: RAMOS, Alcides et al. (Org.). Imagens na história. São Paulo: Hucitec, 2008. p. 17.

riormente à a chegada dos ibéricos que, em meio aos conflitos da conquista e da colonização espanhola, negociaram o movimento e a permanência na Missão com os agentes da fé e membros da Companhia de Jesus, comumente denominados jesuítas. A maioria dessas parcialidades era constituída por guaranis, compreendidos aqui como missioneiros, articulados ao projeto de missionarização proposto pelos jesuítas, os missionários. 2 Ao retomarmos as leituras sobre atividades agropastoris missioneiras na região platina, em particular as empreendidas nas áreas das Missões Jesuítico-Guaranis do século 18, deparamo-nos com um amplo e complexo conjunto de fontes históricas, entre as quais se destacam as imagens como depoimento visual de um momento histórico. As imagens que retomamos têm por temática o missioneiro, considerado pela Companhia de Jesus como o cristão fiel, não imune às contradições do momento em que foram construídas/produzidas pelo jesuíta. O autor das imagens em questão, Florián Paucke (17191780), jesuíta alemão (ou polonês) que desembarcou em Buenos Aires em 1749 e missionou em San Javier (província de Santa Fé), entre 1752 e 1767, entre os índios mocobis, serve de âncora para este capítulo. O grupo mocobi era uma parcialidade étnica guaicuru, habitante do Grande Chaco. Esse gru2

Análises recentes mais aprofundadas sobre a questão podem ser encontradas em: NEUMANN, Eduardo S. O trabalho guarani missioneiro no Rio da Prata colonial, 1640-1750. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996; NEUMANN, Eduardo S. Uma fronteira tripartida: a formação do continente do Rio Grande – século XVIII. In: GRIJÓ, Luiz A. et al. Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EdUFRGS, 2004; NEUMANN, Eduardo S. Os guaranis e a razão gráfica: cultura escrita, memória e indentidade indígena nas Reduções – séculos XVII & XVIII. In: KERN, Arno A. et al. Povos indígenas. Passo Fundo: Méritos, 2009. (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul, V); LANGER, Protasio P. Os guarani-missioneiros e o colonialismo luso no Brasil Meridional: projetos civilizatórios e faces da identidade étnica (1750-1798). Porto Alegre: Martins, 2005; GARCIA, Elisa F. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América Portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.

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po de caçadores, coletores e guerreiros vivia em conflito com os guaranis. Ele ocupou as terras ao oeste dos abipones e parte da província de Santiago del Estero. Quando da ocupação castelhana, passou a utilizar o cavalo introduzido pelos espanhóis e chegou a dispor de grandes cavalhadas. A iconografia de Paucke constitui-se de 104 figuras, as quais retratam a vida cotidiana e as suas impressões dos núcleos urbanos hispânicos de Buenos Aires, Córdoba e Santa Fé. A sua observação atenta sobre a botânica, a flora e a fauna, a indumentária, as máscaras, os diversos instrumentos de trabalho, as boleadeiras, os laços, os arcos e flechas, as lanças, utilizadas pelos grupos indígenas, entre eles os mocobis e guaranis, são de extrema importância na reconstituição e interpretação que possibilitam a leitura do passado colonial platino. Peter Burke3 sinaliza para a importância do uso de imagens como evidência histórica, no entanto superando os limites do sentido estrito do termo, deixando fluir o impacto da imagem na imaginação histórica. Deve-se, portanto, se possível, buscar no passado histórico aquelas imagens que nos permitem “imaginar” o passado de forma mais vivida. No caso, tratamos de recortar algumas imagens sobre as atividades agropastoris que nos permitem compreender as ações cotidianas dos guarani-misioneiros que protagonizaram as suas próprias evidências históricas. Mas por que iniciamos com as imagens do padre Paucke, que representou tanto o guarani quanto o mocobi, ambos missionados, evangelizados, ou seja, conquistados? Por concordarmos com Paiva em que, “[...] desde os primeiros tempos do cristianismo, a imagem e as representações foram instrumentos pedagógicos poderosos e eficazes. O convencimento, a legitimação, o conhecimento e a própria fé sempre

3

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Trad. de Vera Maria X. dos Santos, revisão Daniel Aarão Reis Filho. Bauru: Edusc, 2004. p. 16.

Atividades pastoril-missioneiras: imagens & textos

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foram devedores da iconografia”.4 As imagens traduzem o universo simbólico cristão, a palavra, o ritual, a mística, os valores, a moral, construídos, criados a partir da realidade histórica. Nesse sentido, a nossa análise está circunscrita a partir da imagem enquanto evidência histórica, depoimento visual de um momento histórico, porém articulada a outras fontes históricas, que servem para reconstituir o passado histórico missioneiro em suas práticas pastoris. São esses nexos entre as imagens construídas dos trabalhadores rurais missioneiros e as representações do padre Paucke que servirão de âncoras ao nosso itinerário de análise. Ao optarmos por determinadas linguagens de representações iconográficas, evidenciamos nossas escolhas atentas aos vestígios do passado guarani-missioneiro e platino, sem deixar de levar em conta nossas parcialidades, subjetividades, nossas experiências no tempo presente, o que nos leva a perceber, compreender, a existência de um conjunto complexo de códigos que podem ser decodificados, decifrados, filtrados para o melhor entendimento do conteúdo. Assim, compreendemos o quanto “a imagem, bela, simulacro da realidade, não é a realidade histórica em si, mas traz porções dela, traços, aspectos, símbolos, representações, dimensões ocultas, perspectivas, induções, códigos, cores e formas nela cultivadas”.5 Assumimos, nesse momento do nosso itinerário de análise e da construção desta narrativa, a situação de decodificador dos ícones, identificando seus filtros que subsidiam nossas versões aos eventos, aos momentos distantes do passado. A respeito das gravuras de Paucke, remetem à origem de muitas técnicas que perpassaram a construção das identidades da sociedade rural rio-platense e sul-brasileira, consagradas modernamente sob o signo do gauchismo. 4

5

PAIVA, Eduardo França. História & imagens. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 35. Idem, p. 19.

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As fontes históricas consultadas sinalizam uma discussão instigante de ser retomada e devidamente restituída: a organização das Vacarias na província do Rio da Prata, em momentos particulares das atividades pastoris do século 18, e os seus diversos desdobramentos. Ao construirmos essa premissa nos propomos problematizá-la, levando em conta as situações de consenso, de conflitos, os tensionamentos, as negociações que nos permitem compreender qual era o sentido histórico das imagens, das representações contidas nas fontes históricas previamente selecionadas. Devido aos limites deste capítulo, evitaremos o diálogo sobre a trama historiográfica – nos pautaremos apenas em alguns fios que conduzem à premissa. Dessa maneira, acrescentamos que as imagens selecionadas reunidas na obra Iconografia colonial rioplatense podem ter servido tanto para a persuasão, a transmissão de informações sobre o cotidiano das atividades pastoris, da ação dos vaqueiros, dos peões, dos vaqueanos, dos jesuítas, quanto para o registro histórico de um dado momento das vacarias. Os desenhos de Florián Paucke foram publicados fragmentados por diversos autores em momentos históricos diferentes, quase sempre com objetivos meramente ilustrativos. Guillermo Furlong organizou e sistematizou as ilustrações facilitando o seu uso como fonte histórica de relevância na leitura e tradução dos diversos atores sociais que viviam nas regiões do Prata e do Chaco coloniais.6 Conferir também a autobiografia do padre Paucke em Pe. F. Paucke, SJ, traduzido pelo jesuíta Arthur Rabuske.7 Ancorados em Burke, compreendemos que as ilustrações “registram atos de testemunho ocular”,8 sendo portadoras de

6 7 8

Buenos Aires: Viau y Zona, 1935. São Leopoldo: EdiUNISINOS, 2005. BURKE, Testemunha ocular: história e imagem. Trad. de Vera Maria X. dos Santos, revisão Daniel Aarão Reis Filho. Bauru: Edusc, 2004. p. 17.

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“uma tensão entre evidência e representação”.9 Trata-se, portanto, de representação construída socialmente pela própria Companhia de Jesus durante o período colonial hispânico, com um conjunto de intencionalidades, entre as quais a propaganda da instituição visando convencer e traduzir o mundo missioneiro aos mais variados leitores. Afinal de contas, as pinturas de Paucke foram feitas para serem lidas, para motivar possível interpretação, conhecimento, percepção do mundo colonial hispânico e platino, onde estavam articuladas as Missões Jesuítico-Guaranis.

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Figura 1 - “Cavalaria Guarani” por Florián Paucke

9

NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais: a história depois do papel. In: PINSKY, Carla (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 240.

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Iniciamos o nosso itinerário a partir dos recortes e compreensões, com o que procuramos perceber os elementos do mundo cultural hispânico alcunhado pela Companhia de Jesus. A representação não se limita à cavalaria guarani, mas expõe o cotidiano de um povoado missioneiro a partir de sua organização interna, os elementos característicos da ordem moderna, como o projeto de urbanização, a arquitetura civil e religiosa. O entorno próximo também merece destaque. O olhar de Paucke está direcionado à disciplina dos guaranimissioneiros. Os cavaleiros – tanto vaqueiros, peões, quanto guerreiros – assumem a centralidade dos eventos, perfilados, disciplinados. Ao decifrarmos esta imagem percebemos que, enquanto agente da fé, da evangelização, da conquista espiritual, Paucke parte de uma realidade concreta para construir a imagem que a definisse na melhor ótica jesuítica, ou seja, que definisse a imagética do mundo ocidental cristão a partir de seus códigos próprios, em cuja linguagem simbólica o jesuíta assume a liderança, a referência para o mundo guarani-missioneiro, substrato do processo de ocidentalização. É possível inferir que a mensagem do conteúdo é a de que os jesuítas são os agentes ordenadores daquele mundo, no entanto os guarani-missioneiros também são responsáveis por essa ordenação. Dessa maneira, no discurso jesuítico destacaram-se as possibilidades de conflito interno, presumindo-se o triunfo da “paz evangélica” de forma harmônica, sem contradições. A partir dessa premissa, a ordem e organização do mundo missioneiro, seguem as demais representações.

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Figura 2 - “Passagem de um rio por jesuítas e índios” por Florián Paucke

Várias situações estão aqui representadas, denotando que a construção do espaço de missionarização era antecipada pela peregrinação de um mundo para outro. Para superar as dificuldades, estão atestadas as capacidades físicas e

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culturais dos indígenas conquistados, que, ao conduzirem o gado, organizavam a vida econômica e venciam qualquer adversidade, como a de trasladar o rio. Afirmações que serviam de referência tanto para o guarani como para o macobi – grupos que viviam nas Missões Jesuíticas platinas. Entre os códigos da cultura cristã-ocidental, essa cena tão bem pode lembrar e aproximar a “saga” do índio cristão à do povo hebreu no episódio sagrado da passagem do Mar Vermelho, quando, guiados por Moisés, os hebreus seguiam à procura de Canaã, a terra da promissão. Veja-se que os índios cristãos, conduzidos pelo agente da fé, o jesuíta, iam ao encontro da possível terra sagrada: a Missão Jesuítica. É possível essa conotação com base na afirmativa de Sandra Pesavento: “As imagens são fruto da ação humana, que interpreta e recria o mundo como representação, exercendo grande fascínio.”10 No caso, ao representar os índios cristãos atravessando o rio, Paucke está no lugar cristão, imbuído e intencionado de representá-lo da melhor forma possível. Aspectos externos à representação, como o trabalho, o gado, as plantações, etc., completam as imagens, as quais são traços de uma experiência sensorial e emotiva. Ainda nessa gravura, chama atenção o nítido uso do estrivo (ou estribo), herança beduína no elemento colonizador da América platina colonial. É possível estabelecer analogia entre essa imagem e diversos outros textos que narram a mesma situação. Outras fontes históricas jesuíticas, as escritas, estão permeadas por essas dificuldades, quase sempre superadas pelos esforços dos índios cristãos e seus padres, cujas narrativas conduzem o leitor a perceber o quanto eram árduos não só os processos de conquista espiritual das diversas populações indígenas, mas também a organização da vida comunitária sob o signo do cristianismo. Em um momento de semelhança 10

PESAVENTO, S. J. Imagem, memória, sensibilidades: território do historiador. In: RAMOS, Alcides F. et al. (Org.). Imagens na história. São Paulo: Hucitec, 2008. p. 18.

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entre a imagem e o texto, o irmão Silvestre Gonzalez, no seu conhecido Diario de viaje que hacen a la Vaquería del Mar de 1705, nos narra sobre as dificuldades naturais que teve de enfrentar, como atravessar o rio Negro e outros, proteger-se de tormentas e temperaturas, que oscilavam do frio ao calor extremos. Recolhemos do relato um trecho que se aproxima da imagem construída por Paucke: “El dia ocho vinimos a parar a unas pampas cerca del arroyo Cuaragatá. El dia nueve vinimos al rio Negro: este dia nos llovió todo el dia, llegamos al rio Negro, e iba creciendo y los indios temian de pasarlo, y querian hacer pelotas; y pareciéndome era mucha flema, lo pasé a caballo, llegando el água hasta el cojinillo: fue pasando la gente y al hombro, encima de los caballos, las cargas; no hubo avería que haberme dejado caer en el rio las árganas en que vênia la escribania, papeles y ropa; todo se puso cual digan duelos, y algunos trastecillos se perdieron, porque se abrieron las árganas.”11 Nesse evento da passagem do rio é possível aproximar a imagem construída por Paucke e o texto de Gonzalez, que, apesar de serem construídos em momentos distintos, são leituras da realidade platina que tentam persuadir os demais leitores das ações empreendidas pela Companhia de Jesus na salvaguarda do patrimônio cristão, como se o ato de peregrinar constituísse e desse sentido a tal ação. Por fim, na imagem e no texto, elementos da ocidentalização, como a carreta, o ferro, o gado, os arreios, se misturam ao mundo indígena, aos indígenas, às florestas, à flora, ao rio, à paisagem natural, dando diversos informes da paisagem cultural. No entanto, ao interpretar essas duas imagens é visível que o missionário destaca o quanto os missioneiros dominavam a domesticação dos equinos, ensinada às popula11

Diario del viaje que hacen a la Vaqueria del Mar el Padre Juan Maria Pompeyo y el Hermano Silvestre Gonzalez, estrambos de la Compañía de Jesús, 1705 (Museo Historico Nacional, tomo 194, Montevideo). Editado por CAMPAL, Esteban. La cruz y el lazo. Montevideo: Banda Oriental, 1994. p. 196.

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ções tradicionais da terra pelo próprio colonizador ibérico. No continente americano anterior à ocupação ibérica não existia cavalos – no mínimo, é surpreendente o quanto o guarani e o mocobi haviam domesticado em pouco tempo os animais por eles desconhecidos. Os primeiros cavalos foram trazidos da península Ibérica por Cristóvão Colombo, em 1493, ocasionando impacto nas populações nativas. Gradativamente, conforme os espanhóis se expandiram para o sul do continente, até atingirem a região do Rio da Prata, o cavalo foi acompanhando os ibéricos e utilizado nesse processo. Os conquistadores avançavam com as patas dos seus cavalos. Arysinha Affonso ressalva que não havia nenhum vocábulo em quaisquer dos idiomas indígenas americanos para designar o cavalo.12 Ainda no século 16, em 1535, don Pedro de Mendoza chegou ao Rio da Prata com 72 cavalos e éguas. Posteriormente, Alvar Nuñez Cabeza de Vaca e Pedro Mendoza aportaram com 26 equinos no litoral de Santa Catarina, em 1541. Muitos desses cavalos fugiram. Pouco a pouco, foram formando os plantéis iniciais das numerosas tropilhas que mais tarde se espalhariam por todo o sul do continente americano.13 Se os momentos especiais para as atividades pastoris estão aqui representados, os diversos atores sociais o constituem. O vaqueiro, o vaqueano, o peão, o cavaleiro, o carreteiro e o tropeiro compõem esse cenário agropastoril. Cruzar a imagem com os textos de Souza e de Sepp possibilita a compreensão do que está sendo representado. Souza evidencia que “os peões Guarani missioneiros foram, assim, os primeiros tropeiros platinos de gado,” integrando os diversos espaços econômicos das Missões, bem como circulando saberes, ideias,

12

13

AFFONSO, Arysinha. Cavalo crioulo: 70 anos de raça. Porto Alegre: Edigal/ Martins, 2002. Idem, p. 42.

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práticas culturais.14 Na imagem (Fig. 2) está evidenciada a carreta, sobre a qual o padre Sepp assim se manifesta: “[...] sem carretas não se faz nada nas Reduções. Para essas carretas não é necessário que as rodas sejam altas e grandes, mas grossas para que durem. Fazem-se de quaisquer madeiras, que ainda se encontram nas orlas dos matos e nas margens do Uruguai. São lenhos grossos que não serviram e nem podem servir para construções. Só prestam para fabricar carretas.”15

Figura 3 - “Captura de cavalos mediante boleadeiras” por F. Paucke

14

15

SOUZA, José Otávio C. A influência do tropeirismo na formação humana dos Campos de Cima da Serra. In: SANTOS, Lucila M. S.; BARROSO, Vera L. M. Bom Jesus na rota do tropeirismo no Cone Sul. Porto Alegre: EST, 2004. p. 483. SEPP, Antonio SJ. Algumas instruções relativas ao governo temporal das Reduções em suas fábricas, sementeiras, estâncias e outras fainas (13/6/1732). Pesquisas, São Leopoldo, v. 2, p. 50, 1958.

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Em meio à provável abundância, o controle do gado nas diversas vacarias da região platina, na Banda Oriental do Uruguai ou nos campos de Santa Fé, os missioneiros tinham papel relevante, exercendo várias atividades. Na imagem fica a certeza de que a atividade econômica predominante na região do Rio da Prata era a pecuária, cujas práticas de laçar, caçar, alçar o gado eram predominantes. Paucke evidencia o papel do cavaleiro, do vaqueiro, como tarefas desenvolvidas pelos índios cristãos. O centro da figura não é ocupado pela manada, mas pelos seres humanos capazes de domesticar os animais, que, além da habilidade com o cavalo, também usam seus materiais e técnicas tradicionais, como as boleadeiras, com o seu domínio comum. A cena nos permite observar a divisão e o domínio das tarefas, como o de alçar e encurralar a manada.

Figura 4 - “Captura a laço do gado” por F. Paucke

Os missioneiros andavam nus pelas Vacarias? Esta problematização nos permite algumas decodificações, tais como evidências do trabalho do índio cristão no mundo colonial Atividades pastoril-missioneiras: imagens & textos

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platino, como a pecuária, o laço, o couro, as técnicas e os instrumentos de trabalho, a captura do gado. Para empreender tais atividades, Paucke evidencia a necessidade de diversos homens, que de forma coletiva executavam as tarefas de laçar o gado. Convém notar que nessa ilustração o vaqueiro usa o laço em couro, diferentemente da anterior, em que ele usava basicamente a boleadeira. Provavelmente, para cada atividade o utensílio se diferenciava, bem como as práticas culturais. A imagem está associada à representação do índio cristão pelo padre, onde o mesmo é representado nu. Essa pista nos permite algumas considerações. Primeiro, o fato de estar nu pode ser uma forma de apresentar a precarização das atividades, como fez Gonzalez em seu texto. O irmão Silvestre Gonzalez narra que a riqueza econômica da região não se fazia sem as dificuldades, em vista da penúria de muitos: “Estos dias que anduvieron las cargas a su albedrío han hecho los indios lo que han querido a la yerba, y siendo asi que era poça qué quedaria, y en los corrales están pareciendo, y es fuerza darles. Eso, y otras más que han menester, algunas en particular, algunos enfermos que están desnudos.”16 Segundo, trata-se de uma representação do índio, ou seja, uma leitura cifrada, circunscrita aos códigos da cultura cristã-ocidental, na qual o padre lia o índio, porém nem sempre o enxergava como de fato ele era. O imaginário do selvagem mistura-se com o do civilizado. Nas suas andanças pela região platina, Paucke manifesta-se sobre os índios: “[...] seguimos novamente nossas ocupações costumeiras. Cooperava nisto muito a disposição inteligente e dócil dos índios. Da mesma forma como um dia se mostraram preguiçosos para os trabalhos no campo, agora se evidenciavam prontos para a

16

“Diario del viaje que hacen a la Vaqueria del Mar el Padre Juan Maria Pompeyo y el Hermano Silvestre Gonzalez, estrambos de la Compañía de Jesús, 1705.” Museo Historico Nacional, tomo 194, Montevideo; CAMPAL, Esteban. La cruz y el lazo. Montevideo: Banda Oriental, 1994. p. 199.

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aprendizagem de alguma arte ou de algum ofício manual.”17 Dessa maneira, compreendemos que o imaginário desse jesuíta estava permeado de imagens que percebiam o índio como dócil, preguiçoso, portanto estereotipadas. Ao construir suas representações, elas não estavam isentas dessas leituras de mundo. Num outro texto do mesmo missionário encontramos algumas expressões que, ao fazer referência ao processo de conversão, elucidam a significação atribuída aos indígenas: “Nadie hubiera imaginado que esa tolderia súcia, primitiva y maloliente, se transformase en uno pueblo ordenado, limpio y prospero. Centenas de índios trabajaban en las mas diversas actividades.”18 Na ótica de Paucke, o descrédito da vida comunitária anterior à evangelização é neutralizado pelo processo de conquista espiritual. Outros jesuítas, ao produzirem textos sobre os guaranimissioneiros, como os padres Antonio Sepp e José Cardiel, por exemplo, alcunham que os índios vestiam roupas em toda e qualquer situação. Nesse caso, vestir o índio era uma das tantas formas de tirá-lo do “pecado da nudez”, confirmandoo como cristão, missionado, conquistado espiritualmente. Quando o índio é representado nu, pode-se depreender que Paucke aciona um dispositivo mental que o considera pecador, sem qualquer pudor, como se, apesar de todo o esforço da Companhia de Jesus em torná-lo “civilizado”, ainda residia algo de selvagem, de uma provável “libertinagem”, como se fosse imanente no índio. No entanto, ele combina nessa representação a nudez, o pecado, as tarefas de laçar o gado com cordas de couro (práticas introduzidas pelos jesuítas), cuja mensagem tão bem poderia ter alguns desdobramentos, tais 17

18

PAUCKE, Florián. O grande missionário dos macovis: no Chaco argentino de 1751 a 1768 – autobiografia. Traduzido pelo Pe. Arthur Rabuske, SJ. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2005. p. 111. FURLONG, Guillermo S. J. Florián Paucke S. J. y sus cartas al visitador contucci (1762-1764). Buenos Aires: Casa Pardo, 1972. p. 57.

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como: apesar de selvagens, pecadores, da sua força de natureza, eles são capazes de aprender certas técnicas a fim de suprir suas necessidades. A provável leitura era a de que a Companhia ainda teria que empreender muitos esforços no processo de transformá-los em cristãos. Sendo a realidade construída, pensada, dada a ler por diferentes grupos sociais,19 no caso, trata-se da leitura de um agente da fé cristã, que, ao defender essa ideia e propagá-la no âmago da sociedade colonial platina, acaba fornecendo pistas para a compreensão do hibridismo cultural,20 quando nos leva a compreender que a organização social, econômica, política e cultural das Missões Jesuíticas platinas era miscigenada, transcultural, na qual as práticas culturais das populações indígenas se compunham com o processo de ocidentalização. Esse processo não se fez sem os diversos conflitos, onde as negociações se fizeram necessárias. Em síntese, ao lermos a representação de guarani-missioneiros, compreendemos que, para o grupo estar aí representado, ocorreram várias formas de interferência dessas comunidades para exercerem as tarefas de laçar o gado, em que, mesmo “nus”, estão expressas as vontades, os desejos, combinados com a experiência sensorial e emotiva de Paucke. Outra peculiaridade a ser interpretada nessa imagem é que tanto o caçador guarani quanto o macobi, antes de serem missionados, laçavam os animais. Portanto, conheciam tradicionalmente o laço confeccionado de embira, tipo de arbusto timeleáceo que produz boa fibra, ou seja, um cipó usado para amarrar. A maioria dos caçadores confeccionava seus laços com a embira – fibra vegetal –, que é uma casca resistente, trançando-a com os intestinos e os couros dos animais (onça, tigre, veado) cortados em tiras. Nas Missões Jesuíticas, os 19

20

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 17. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2008. p. XIX.

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diversos missioneiros passaram a usar sistematicamente a corda de tiras de couro trançadas para laçar os animais, que podiam variar de 17 a 40 metros. O laço divide-se em ilhapa, parte mais grossa, que tem na ponta uma argola de metal, corpo do laço e presilha. Provavelmente, os missioneiros usavam um laço que reunia as duas técnicas. Dessa maneira, o laço e o seu uso se constituíram nas tantas heranças guaranis fundidas às formas artesanais de trançar o couro ensinadas pelos jesuítas, inflexionando a hibridação. Para o missioneiro, o laço não era o mesmo de sua ancestralidade. Mas a forma e a maneira de usá-lo continuavam vivas na memória dos vaqueiros, que, ao laçarem os animais, reportavam-se às suas tradições, costumes e ensinamentos transmitidos pelos antepassados. Ao descrever a confecção do laço, Ítala Becker chama a atenção que era feito “de cuero de toro. Cortan una correa alrededor de la piel, la retuercen, la dejan flexible a fuerza de engrazarla, la estiran, y la alargan hasta que no queda más ancha que médio dedo, y pese a ello, un toro no puede romperla”.21 Gradativamente, esse instrumento adquire sentido no mundo rural, com significado simbólico pertinente às identidades dos platinos e dos sul-rio-grandenses, vinculado a valentia, a honra, a poder do gênero masculino nas composições identitárias. Assim, o laço, além de servir à caça, à doma, ao trabalho, era também usado na disputa, na luta. Atualmente, é irônico e paradoxal o fato de a identidade gaúcha, vinculada ao masculino, à valentia, ao astuto, ao independente, sem pontos fracos pelos quais possa ser aprisionado, manifestarse através do laço: a mais contundente manifestação. Dessa maneira, ao decodificar o signo laço e seu significado, buscado no passado, podem-se compreender a origem, os nexos culturais e identitários de representações no presente. 21

BECKER, Ítala I. Basile. El índio y la colonización: charrúas y minuanos. Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, v. 37, p. 136, 1984.

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Figura 5 - “Índio caçando aos cavalos com boleadeiras” de F. Paucke

No entanto, o “cavaleiro caçador” é representado com a boleadeira e veste o chiripá. Neste caso, o índio não está nu. Qual seria a intenção de Paucke em representar o cavaleiro vestido? A provável leitura indica distinção social. Seria ele mais importante que os vaqueiros? Deve-se levar em consideração que o cavaleiro conduzia o gado. Parece, então, haver destaque à ação do indivíduo na caça ao cavalo. A premissa se completa no texto do padre Cardiel ao relatar: “Ahora (na Missão Guarani) usan camisa, calzoncilhos de lienzo de algodón, jubón de lana, montera o sombrero, o birrete o gorro, polainas, y [...] que también los más usan, llaman Poncho, y es de algodón o de lana de varios colores.”22 Confirma-se, assim, que os missioneiros foram vestidos segundo a moral cristã. Segundo Antonio Augusto Fagundes, a partir da pesquisa no Diário de José Saldanha (1786-1787), os índios cavaleiros usavam o chiripá e o cayapi. O primeiro se constituía 22

CARDIEL, José. SJ. Carta y relación de las misiones de la província del Paraguay (1. ed. 1747). Publicada por Guillermo Furlong. Buenos Aires: Libreria del Plata, 1953. p. 145.

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“numa espécie de saia, constituída por um retângulo de pano de enrolado da cintura até os joelhos”. Esse pano era tecido de algodão produzido na missão. Já o cayapi era feito de “couro de boi, inteiro e bem sovado, que se usava às costas, como manto ou capa, com o pelo para dentro e carnal para fora, pintado com listas verticais e horizontais”.23

Figura 6 - “Caça aos cavalos com boleadeiras” de F. Paucke

O registro dos cavaleiros vestindo chiripás coloridos e utilizando as suas tradicionais boleadeiras para conduzir a tropa para o curral, lugar de prender os animais, representa o cotidiano dos trabalhos dos peões. A boleadeira era comumente usada por alguns grupos humanos de caçadores na região platina anteriormente à chegada dos espanhóis, como o charrua, minuano, guenoa e guarani. Com a introdução do 23

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária gaúcha. 2. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 1985. p. 9.

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gado, os antigos caçadores permaneceram usando seus instrumentos de caça, porém dominando a técnica de montaria equestre para laçar, caçar, prear os bovinos e demais equinos. Nesse ato permeado de permanência e ruptura, semelhança e diferença, é possível reconhecer as práticas culturais híbridas ou a hibridação, como esclarece Canclini: “[...] processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.”24 Nesse conjunto de trocas culturais, os grupos de caçadores não abdicaram de suas tradicionais boleadeiras, construindo e efetivando as “múltiplas alianças fecundas”, em que suas práticas e seus imaginários se combinaram com o “novo-hispano”. Ao analisar as heranças dos beduínos na cultura platina, Manoelito de Ornellas reconhece a importância da boleadeira no passado histórico sul-rio-grandense, ancorado nas anotações dos cronistas e dos viajantes que construíram narrativas de viagens do século 19. Esse instrumento e a sua técnica podem ser uma possibilidade de interpretação cultural: “[...] diferente da ociosidade tropical – sensual e sedentária – a opulência e a liberdade criaram aqui hábitos viris, rudes e sóbrios. Apanhava-se, nas boleadeiras ou nos laços, o cavalo chimarrão e a rês alçada.”25 Com base nessa interpretação, articulando o presente com o passado platino, a partir das gravuras de Paucke tornam-se compreensíveis as práticas cotidianas em que o guarani-missioneiro mantinha vestígios de sua tradição e cultura (anterior ao passado colonial), na formatação dos “gaudérios”, tipo social do qual se originou o gaúcho campeiro. No ato de captura ao couro do gado, o vaqueiro usava a violência no tratamento com o animal: “Surgem, então, os 24

25

CANCLINI, Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, 2008. p. XIX. ORNELLAS, Manuelito. Gaúchos e beduínos (1. ed. 1948). Porto Alegre: Martins, 1999. p. 84.

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cortadores que usavam lanças de taquara encimadas por uma lâmina na forma de meia lua, com que, em plena corrida, no pampa, desgarronavam as rezes ou cavalos, vibrando-lhes um golpe na perna traseira, com tal destreza – diz o Padre Cattaneo (missionário do século 18) – que lhe cortan el nervio sobre la juntura; la pierna se encoje al instante, hasta despues de haber cojeado alguns pasos, cae la bestia, sin poder enderezarse [...]. Em seguida, sangravam o animal, tirando-lhe apenas o couro, o sebo e a língua, e abandonavam o resto aos urubus e aos cachorros chimarrões.”26 É significativo que o padre Paucke produzisse imagens de indígenas a cavalo preando o gado chimarrão, valendo-se, assim, de recursos imagéticos para comunicar e tornar inteligível a ação dos missionários, legitimando as imaginadas verdades cristãs ocidentais, ancoradas nos paradigmas do Concílio de Trento do século 16.

26

ORNELLAS, Manuelito. Gaúchos e beduínos (1. ed. 1948). Porto Alegre: Martins, 1999. p. 84.

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Figura 7 - “Curral de pau a pique para o gado” por F. Paucke

Após a caça do gado solto, seguiam-se o aparte e a domesticação. Do ponto de vista da organização social missioneira, os diversos trabalhos desempenhados pelos vaqueiros, cavaleiros, peões estavam direcionados à manutenção, preservação e continuidade do projeto político missioneiro. Afinal, para que e onde guardar o principal meio de produção – o gado? Para que: basicamente, para autossuficiência e consumo interno da comunidade de missioneiros. Onde guardar: nos diversos currais espalhados pela Banda Oriental do rio Uruguai, pela região do Rio da Prata, pela província Jesuítica do Paraguai. A imagem demonstra que o curral era um lugar seguro, no caso cercado por madeira (paus fincados na terra). Podia ser também cercado por pedras. Era necessária uma porteira, por onde se recolhia cotidianamente o gado. Mas o curral aqui representado era redondo, para facilitar a ação de pialar os animais. 168

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A construção de currais facilitava o cuidado do animal, protegia dos ataques de feras, predadores, contrabandistas e impunha limites aos missioneiros para não abaterem o gado indiscriminadamente. Essa imagem tão bem se concilia com o texto do irmão Gonzalez ao narrar o dia a dia dos trabalhadores rurais de um curral: “[...] cuando conté el ganado, que la puerta del corral se pusieron solos tres de ellos (peões) para ayudar y que fué menester que viniessen mi gente a atajar y a espantar, y ellos se estaban en sus fogones, y porque los reni, unos se fueron a la pampa y otros se metieron al curral, [...] Preguntome cuántas había contado, dijele que quince mil y quinientas.”27 A imagem também nos leva a refletir que os peões missioneiros separavam os bovinos dos cavalos, cercando-os para a sua domesticação. Os eventos nas Vacarias, nos currais, nas estâncias missioneiras, todas de ação coletiva, propiciaram a dinâmica e a formação de substratos das atividades sociais e econômicas das diversas sociedades platinas (entre elas a dos Sete Povos das Missões Orientais – no oeste do atual Rio Grande do Sul). Essa formação foi mediada e perpassada pela ocupação territorial sob égide da Corte de Espanha, da Companhia de Jesus e das autoridades hispano-platinas. Dessa maneira, cercar o gado é uma forma de ocupar, marcar e disputar espaços. Essas situações correspondem a momentos, conflitos e consensos diferenciados. Cada momento tem a sua própria dinâmica, cabendo-nos aqui reconstituí-lo, ressignificá-lo, na medida do possível. O gado separado no curral também era usado para arar a terra, conforme o próprio Paucke escreve: “Dispuse primeramente que algunos de los índios ayudasen a atar los bueyes al yugo y luego, tomando yo mismo el arado, empece a labrar la tierra, ordenando a todos los indios que se colocaran a mi 27

GONZALEZ, Silvestre. Diario del viaje que hacen a la Vaqueria del Mar (1705). In: CAMPAL, Esteban. La cruz y el lazo. Montevideo: Banda Oriental, 1994. p. 202.

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lado y que si pusiesen toda su atención en lo que yo hacía, para que, de este modo, pudieran ellos a su vez aprender cómo debían ejecutar esta labor.”28 Dessa imagem do curral é possível depreender que se tratava de um momento difícil, no qual a escassez do gado xucro ocasionava a crise de abastecimento. O aumento da comercialização do couro, do contrabando, os avanços dos luso-brasileiros da América Portuguesa na região platina, das tropeadas praticadas pelos tropeiros, são indícios da crise real da exploração do gado e de seus derivados, os quais afetavam a economia pastoril missioneira. A Companhia de Jesus orientou os padres e os missioneiros a intensificarem a construção de currais, de estâncias, num momento delicado de crise de abastecimento a partir das Vacarias. No detalhamento das diferenciações de currais exposto por Sepp encontram-se as disposições da Companhia articuladas aos devidos cuidados que deveriam ser tomados: “Todos os dias ao meio dia, devem-se por as éguas no curral grande [...] as crias nascidas devem ser postas no curral pequeno à parte, para tirar das crias os bichos que causam moscas em tempo de calor.”29 O sentido desses cuidados pode ser entendido nesse momento de crise de abastecimento, como ele próprio expõe: “Como as Vacarias do Mar já se acabaram, cumpre cuidar bem dos bois novilhos e touros, para que os poucos existentes nas Reduções bastem ao menos para fazer chácaras dos Tupambaé e dos pobres índios.”30 Em última análise, quando Paucke está representando determinado curral, todas essas questões estavam presentes na elaboração da ima28

29

30

FURLONG, Guillermo S. J. Florián Paucke S.J. y sus cartas al Visitador Contucci (1762-1764). Buenos Aires: Casa Pardo, 1972. p. 45; PAUCKE, Florián. Hacía allá y para cá. Traducción castellana por E. Wernicke. Buenos Aires: Universidad Nacional de Tucumán, 1942-1944. tomo II. p. 95. SEPP, Antonio S.J. Algumas instruções relativas ao governo temporal das Reduções em suas fábricas, sementeiras, estâncias e outras fainas (13/6/1732). Pesquisas, São Leopoldo, v. 2, p. 48, 1958. Idem, p. 53.

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gem: a necessidade, os cuidados, a manutenção, a diminuição do gado solto nos campos.

Figura 8 - “Preparação do charque” por F. Paucke

Por fim, o nosso itinerário se conclui com essa imagem e suas particularidades, que merecem destaques. Trata-se do momento da preparação do charque, prática costumeira nas Missões guaranis, que ocorria como a última fase da produção econômica pecuarista. A imagem sinaliza que o produto servia à subsistência da população missioneira, portanto tinha valor de uso, consumo, não valor de troca. Após os vários momentos demonstrados anteriormente, que iam da caça ao gado até o aparte, quando era conduzido para o curral, os homens abatiam o animal e o carneavam, compreendendo-se essas tarefas como masculinas. Posteriormente, a carne era distribuída à comunidade, quando então as mulheres assumiam a tarefa de preparar o charque. Dessa maneira, pode-se perceber a atuação das mulheres na execução das tarefas e os diversos momentos da produção do charque. Ao que tudo indica, tratava-se de tarefas coletivas, com a predominânAtividades pastoril-missioneiras: imagens & textos

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cia feminina (todas vestiam tipoy). Fagundes define o tipay como “um longo vestido formado por dois panos costurados entre si, deixando apenas sem costurar duas aberturas para os braços e uma para o pescoço. Na cintura, era apertado por uma espécie de cordão, chamado ‘chumbe’. O tipoy era feito de algodão”.31 Cardiel descreve que “las mujeres llevan una camisa desde el cuello hasta cerca de los pies, y un ropón encima algo más largo, de algodón o lana, que llaman tipoy, al modo que pintan a la Virgen de Loreto”.32 Ainda é possível observar que nessa atividade havia missioneiros de todas as faixas etárias. A mulher preparando o charque nos permite buscar no passado histórico as origens de um dos pratos da culinária platina que faz parte do universo simbólico sul-rio-grandense no tempo presente. O modo, a maneira, de fazer o charque desde as suas primeiras e incipientes práticas de produção mantém com a contemporaneidade continuidades/descontinuidades e rupturas. Em suma, o jesuíta representa a divisão social das tarefas e várias pessoas empenhadas na atividade, julgando, assim, que a comunidade considerava importante a produção desse alimento, o qual servia para o consumo interno. Essas tarefas eram exercidas de forma coletiva somente por mulheres da comunidade missioneira, cujo trabalho era livre, dirigido pelo jesuíta e pelo cabildo indígena. Convém destacar que se tratava de um conjunto de atividades que exigiam concentração e eram exaustivas, como se supõe pela observação do semblante das mulheres, que estão atentas às suas funções. Não tão relevante, mas é possível ler que as charqueadoras são representadas frontalmente, ao contrário dos vaqueiros,

31

32

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária gaúcha. 2. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 1985. p. 9. CARDIEL, José S.J. Carta Relación (1. ed. 1747). Carta y relación de las misiones de la província del Paraguay (1. ed. 1747). Publicada por Guillermo Furlong. Buenos Aires: Libreria del Plata, 1953. p. 145.

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boiadeiros, peões, que foram representados de perfil nas imagens anteriores. A regulamentação do trabalho feminino para as atividades missioneiras foi sempre pautada pelos jesuítas. No caso, Paucke nos aponta para uma situação em que ele convoca “a todos los caciques de la reducción y les hizo comprender cuán conveniente sería que persuadiesen a sus esposas e hijas, que (para) tomaran parte en la labor común [...] (ele descreve como resultado que as mulheres) pronto se desengañaron y deploraron vivamente no haber ellas aportado su esfuerzo a la labor común”.33 A mulher exercia diversas tarefas nas Missões Jesuíticas, como preparar o charque, plantar, colher o algodão, fiar tanto o algodão quanto a lã das ovelhas. Nessa perspectiva, o padre Sepp remete a uma outra situação nas “Advertências” ao comentar sobre a tarefa de fiar: “Este é um trabalho impertinente, mas necessário. As índias se dará uma libra de algodão, ou lã partida em duas meias libras, e as fiadeiras devem devolver dois novelos partidos.”34

Considerações finais Consideramos assim que as imagens produzidas por Paucke podem ser entendidas como fontes de compreensão e representação dos acontecimentos históricos. As ilustrações selecionadas neste capítulo podem ser compreendidas no sentido de contribuir para a compreensão das diversas formas de construção da narrativa jesuítica que se propõe a ler tanto o passado histórico – quando a instituição religiosa introduziu 33

34

FURLONG, Guillermo S. J. Florián Paucke S.J. y sus cartas al Visitador Contucci (1762-1764). Buenos Aires: Casa Pardo, 1972. p. 53; PAUCKE, Florián. Hacía allá y para cá. Traducción castellana por E. Wernicke. Buenos Aires: Universidad Nacional de Tucumán, 1942-1944. tomo II. p. 271-275. SEPP, Antonio S.J. Algumas instruções relativas ao governo temporal das Reduções em suas fábricas, sementeiras, estâncias e outras fainas (13/6/1732). Trad. de Mansueto Bernardi. Pesquisas, São Leopoldo, v. 2, p. 53, 1958.

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as primeiras cabeças de gado na região platina – quanto o presente em que foram produzidas, em meados do século 18. Essa narrativa histórica – a visual – estava afinada com o discurso da Companhia de Jesus, qual seja, de que sempre construiu e participou da riqueza e da valorização da região platina, principalmente pelo desenvolvimento da pecuária e da transformação dos grupos indígenas em trabalhadores articulados ao sistema de criação de gado. O uso dessas imagens de índios cristãos, que suscitam a analogia com os guarani-missioneiros, adquire sentido na compreensão de que “imagens nos fascinam, imagens povoam nossa memória que rememora o passado, imagens se oferecem a nossos olhos na cotidianidade da vida”.35 Portanto, podem ser concebidas pelos agentes da Companhia de Jesus como as melhores possibilidades de propaganda da conquista espiritual do guarani, bem como para divulgação das informações e afirmações acerca das atividades pecuárias praticadas pelos missioneiros, baseadas nos eventos representados, com o objetivo de influenciar positivamente a opinião pública. Deve-se também levar em consideração que essa propaganda da fé faz parte da comunicação persuasiva com fins ideológicos, políticos, que justifica o poder da Companhia de Jesus. No conjunto, as leituras das imagens nos possibilitam o conhecimento da riqueza das Missões Guaranis platinas. No entanto, trazem consigo omissões e silenciamentos, como as constantes fugas dos índios cristãos das Missões, posto que as imagens nos levam a perceber o grande número de indígenas empenhados no projeto de missionarização, como se a maioria convergisse para o espaço reducional. A invisibilidade da fuga, como forma de contestação, rebeldia, não aceitação, ruptura de acordos, sempre foi uma constante no processo histórico missioneiro. Ao analisar o momento de crise das 35

PESAVENTO, Imagem, memória, sensibilidades: território do historiador, p. 17.

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vacarias, Carbonell de Masy registra que “la fuga de los pueblos guaraníes (que) adquiro dimensiones muy preocupantes en el período 1734-1739, sobre todo en 1735 con un éxodo de 3.094 fugitivos. Dentro del declive demográfico entre 1732 (con 141.182 almas) y 1740 (con 73.910)”.36 A imagem construída busca a positividade da experiência missioneira, sendo possível perceber que em todas aqui selecionadas, existe um sentido de direção, a da Missão. Ao analisar as fugas, Neumann toma por referência às mudanças ocorridas na região platina colonial, particularmente na virada do século 17 para o 18, “momento em que o interesse ibérico foi revitalizado em função da exploração dos couros, que ocasionou um afluxo de novos agentes sociais para essas terras”.37 Nessa virada de século, ocorre um incremento econômico da região, dentro da estrutura colonial, despertando os interesses tanto das autoridades quanto dos conquistadores espanhóis e portugueses, propiciando às diversas populações locais novas possibilidades de interferência na realidade, a partir de novos acordos. O irmão Gonzalez no seu “Diário” faz alusões sobre os vaqueiros missioneiros que preferiam fazer comércio com os portugueses do que conduzir gado às estâncias missioneiras. Convém destacar que o padre Paucke aporta na região platina em um outro momento histórico, meados do século 18, marcado pela diminuição das manadas como herança do período imediatamente anterior, quando ocorreram as caças ao gado, na maioria das vezes seguidas de matança, de forma indiscriminada, sem a preocupação com a preservação e a procriação dos animais. Portanto, no momento em que o padre 36

37

CARBONELL DE MASY, Rafael S.J. La Gênesis de las Vaquerias de los pueblos Tapes e Guaraníes en la Banda Oriental del Uruguay a luz de la documentación inédita, apenas conocida. Pesquisas, São Leopoldo, v. 27, p. 47, 1989. Esta questão o autor retoma em outra obra: CARBONELL de MASY, Rafael. Estrategias de desarollo rural en los pueblos Guaraníes (1609-1767). Barcelona: Antonio Boch-editor, 1992. NEUMANN, Eduardo S. O trabalho guarani missioneiro no Rio da Prata colonial, 1640-1750. Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 1996. p. 73

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Paucke produz as suas imagens, usa representações do passado – quando os rebanhos eram numerosos – e do presente – a escassez – demonstrando as ações efetivas da Companhia de Jesus e do guarani e mocabi, no sentido de preservar o número reduzido de animais. Ele narra o presente atualizando o momento histórico anterior. As imagens tão bem podem se inserir nesse contexto de crise do século 18, seguindo a análise de Heloisa Reichel e Ieda Gutfreind: “[...] durante o século XVIII, aumentou a preocupação em organizar a maior riqueza econômica do Prata que era a pecuária [...] uma das medidas tomadas foi a de aumentar o controle do monopólio comercial pela metrópole, impedindo o contrabando.”38 Essas preocupações estavam na ordem do momento da Companhia de Jesus e as gravuras de Paucke são fios que conduzem à interpretação da realidade. No conjunto, as imagens e os textos contribuem para a compreensão das transformações que ocorriam na região do Rio da Prata desde o final do século 17,39 em seus diversos momentos, como: • o avanço português na região, após a fundação da Colônia do S. Sacramento; • o recrudescimento da ação das autoridades coloniais e da Companhia de Jesus, ocupando efetivamente áreas consideradas importantes ao projeto político colonial e indígena, do que decorreu a fundação 38

39

REICHEL, Heloisa J.; GUTFREIND, Ieda. As raízes históricas do Mercosul: a Região Platina Colonial. São Leopoldo: Edunisinos, 1996. p. 125. As obras de REICHEL, Heloisa J.; GUTFREIND, Ieda. As raízes históricas do Mercosul: a região Platina Colonial. São Leopoldo: Edunisinos, 1996; MONTOYA, Alfredo Juan. Cómo evolucionó la ganadería en la época del virreinado. Buenos Aires: Plus Ultra, 1984; FRADKIN, Raúl O. El mundo rural colonial. In: TANDETER, Enrique (Dirección de tomo); SURIANO, Juan (Coord. geral). Nueva historia argentina. Buenos Aires: Sudamerica, 2000. tomo 2; são bastante elucidativas para a compreensão desses sucessivos momentos da região platina no século 17. LEVINTON, Norberto. Guaraníes y charruas: una frontera exclusivista-inclusivista. Revista de História Regional, v. 14, n. 1, p. 49-75, 2009.

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de povoados missioneiros – entre eles os Sete Povos Orientais do Uruguai; a crise das Vacarias devido ao esgotamento predatório, ocasionando a criação de currais, estâncias e a Vacaria dos Pinhais nos Campos de Cima da Serra do atual Rio Grande do Sul; as crises políticas na Corte de Espanha, em sua Guerra da Sucessão, que teve como desdobramento os tratados de Utrecht,40 os quais previam o reordenamento político e econômico para a região platina; a construção das imagens ocorre durante a formatação, deliberação e tentativa de aplicação do Tratado de Madri (1750) por parte das Cortes ibéricas, num momento singular e paradoxal de definições de fronteiras políticas no continente sul-americano, quando os Estados ibéricos aplicavam seus projetos e programas políticos de reformas; os desdobramentos desse tratado, que se constituíram no desgaste e disputas políticas entre a Companhia de Jesus, as Cortes ibéricas e os guaranimissioneiros da Banda Oriental do Rio Uruguai (interessados na manutenção de seus interesses econômico, político, social e cultural); dessa complexa rede de intenções e tensões resultam a Guerra

São chamados tratados ou paz de Utrecht os acordos que, firmados na cidade de Utrecht, nos Países Baixos, (1713-1715), puseram fim à guerra da sucessão espanhola (1701-1714), na qual entraram em conflito interesses de várias potências europeias. As negociações se abriram em 29 de janeiro de 1712, mas só em 11 de abril de 1713 foram assinados os principais acordos, dos quais o último é de 1714. A questão da sucessão na Espanha foi solucionada em favor de Filipe V, que conservou a Coroa da Espanha (1700-1746) e as respectivas colônias, mas renunciou ao direito de sucessão ao trono francês. A Inglaterra obteve conquistas navais, comerciais e coloniais significativas, assumindo posteriormente um papel preponderante no que diz respeito às questões de ordem internacional. Em 1713 foi reconhecida a soberania de Portugal sobre as terras brasileiras, compreendidas entre os rios Amazonas e Oiapoque. Em 1715 acordou-se a restituição aos portugueses da Colônia do Sacramento.

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Guaranítica,41 cujo palco se constituiu tanto no espaço urbano dos Sete Povos Orientais como no das estâncias, vacarias, ervais, lavouras, chácaras, postos – esses conflitos, apesar de estarem presentes na consciência de Paucke, são omitidos de forma inconsciente, preservando, assim, a imagem da paz evangélica, da harmonia, do consenso; • a intensa movimentação das populações indígenas, missioneiros ou não, que buscavam outras alianças, que não se restringiam à Companhia de Jesus, mas com espanhóis, portugueses, tropeiros, praticando comércio, contrabando. Em meio a esse conjunto de acontecimentos, o padre Paucke produz registros iconográficos, entendidos como propaganda institucional da Companhia de Jesus, cuja mensagem deveria atingir os diversos públicos, constituídos por letrados e iletrados, e tinha por evidências históricas as práticas ligadas à preservação e ampliação das atividades pecuaristas na região platina. As compreensões dessas leituras tornam-se pertinentes quando associadas com outras fontes históricas, como os fragmentos de textos aqui selecionados.

41

Sobre este tema ficam as indicações recentes: MAEDER, Ernesto J. A. Misiones del Paraguay: conflicto y dissolución de la sociedad Guaraní (1768-1850). Madrid: Mapfre, 1992; GOLIN, Tau. A Guerra guaranítica. Como os Exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos Jesuítas e índios guaranis do Rio Grande do Sul (1750-1761). Porto Alegre: EdUFRGS, 1999; QUEVEDO, Júlio. Guerreiros e Jesuítas na utopia do Prata. São Paulo: Edusc, 2000; NEUMANN, Eduardo. Práticas letradas guarani: produção e usos da escrita indígena (séculos XVII e XVIII). Tese (Doutorado em História Social) - UFRJ, 2005; WILDE, Guillermo. Religión y Poder en las misiones de Guaraníes. Buenos Aires: [s. ed.], 2009; QUARLERI, Lia. Rebelión y guerra en las fronteras del Plata: Guaraníes, jesuítas e impérios coloniales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009; GARCIA, Elisa F. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América Portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.

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A demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859) Mateus de Oliveira Couto* O trabalhador escravizado sulino foi empregado nas mais diversas atividades econômicas no território sul-riograndense, contribuindo para o desenvolvimento da província como sociedade de classe e para a sua inserção no cenário nacional. Sua presença marcante, sobretudo a partir de 1780, com o advento das charqueadas e a expansão da produção pastoril, foi crescendo, principalmente ao longo do século 19. Fosse no mundo rural, fosse nos centros urbanos, o cativo procurou se adaptar à dura realidade de labuta e buscou meios para sobreviver. Na charqueada, nas fazendas pastoril e de plantação, nas cidades como ganhadores ou alugados, expressaram sua resistência consciente, semiconsciente e inconsciente diante da realidade que viviam, mesmo quando procuravam se acomodar a ela. A resistência e o descontentamento aberto ou surdo fizeram parte do seu cotidiano. Fugas, aquilombamentos, agressões, sabotagem, apropriação, desamor ao trabalho, etc. foram algumas formas que expressaram essa realidade.

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Mestre em História pelo PPGH da UPF e professor do Instituto Federal Farroupilha.

A demografia da mão de obra servil sul-rio-grandense é uma temática pouco abordada pela historiografia sulina. Os dados demográficos dessa população apresentam alterações ao longo dos anos, com um destacado crescimento sobretudo a partir de meados do século 19. Em 1846 o número de cativos na província era de 30.846 e, em 1858, de 71.911, um aumento de 133,12%. Com base nos registros de batismo e de óbito dos cativos dos municípios de Herval e Pelotas, entre 1840-59, arquivados na Cúria Metropolitana de Pelotas, analisaremos comparativamente aspectos demográficos atinentes a essas populações feitorizadas. O município de Herval conheceu ao longo do século 19 atividade pastoril-extensiva dominante, abastecendo e contribuindo para a dinâmica econômica provincial e, particularmente, das charqueadas. O município de Pelotas desempenhou papel relevante no desenvolvimento do Brasil meridional, em decorrência de ser o principal polo charqueador, onde se praticavam duras condições de trabalho. A vila, e a partir de 1835, a cidade, Pelotas era uma das principais do sul do Brasil. Propõe-se que as condições médias de existência eram muito diversas nas cidades, nas charqueadas, nas fazendas. Procuramos sentir isso nas fontes utilizadas dessa proposta, já que nos dois municípios a presença dos labutadores cativados foi essencial às atividades econômicas. O recorte temporal estabelecido foi de 1840-59, duas décadas que foram marcadas por alterações nas características do trabalho cativo no Brasil e no Rio Grande do Sul. Durante esses vinte anos ocorreram transformações fundamentais na sociedade escravista do Brasil e do Rio Grande do Sul, com destaque para o fim do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados em 1850. Isso se refletiu fortemente na província sulina, uma vez que o cativo era empregado em 180

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praticamente todas as grandes atividades produtivas – nos transportes, nas olarias, nas plantações, nos trabalhos domésticos, nas estâncias, etc. Como assinalado, o ano-chave dessa conjuntura foi 1850, marcado pela Lei Euzébio de Queirós, que proibiu o comércio transatlântico de trabalhadores feitorizados para o Brasil. A província de São Pedro era qualificada até esse ano como importadora de mão de obra servil, tornando-se, entretanto, a partir de 1851, exportadora de trabalhadores escravizados. Por meio dos batismos e óbitos procuramos caracterizar elementos referentes aos cativos sul-rio-grandenses. Os registros de batismo podem conter o nome do cativo, de seu escravista, sua cor e procedência, as datas do nascimento e do registro, os nomes, principalmente da mãe, a cor e procedência, os padrinhos e, se esses forem cativos, a cor e procedência e os proprietários (Figura 1).

Fonte: Livro de batismo de escravos 2 (1835-52) – igreja São Francisco de Paula – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Figura 1 - Registro de batismo – igreja São Francisco de Paula

“Aos nove de Agosto de mil oitocentos e quarenta e oito nesta Matriz de São Francisco de Paula de Pelotas, batizei e pus os santos óleos a Maria preta idade de vinte anos escrava

A demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859)

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de José Antônio de Freitas, forão padrinhos Manoel Pereira de Oliveira e Francisca Luiza Pereira [...].”1 Os registros de óbito podem apresentar o nome do trabalhador feitorizado, sua cor, procedência e idade, a data do decesso, indicação sobre os pais, com destaque para a mãe, sua cor e procedência, o nome do escravista e a enfermidade (Figura 2).

Fonte: Livro de óbitos de escravos 1 (1823-60) – igreja São João Batista – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Figura 2 - Registro de óbito – igreja São João Batista

“Aos oito dias do mes de Outubro de mil oitocentos e cinquenta e oito nesta freguesia do Herval, faleceu de espasmo Antonio africano, escravo dos herdeiros do finado Antonio Valim de Azevedo, tinha de idade cinqüenta e oito anos [...].”2

Gênese dos municípios O município de Herval tem suas origens no final do século 18 (1791), quando o rio-grandino Rafael Pinto Bandeira, nascido em 1740, organizou um acampamento militar para 1

2

Livro de óbitos de escravos 1 (1823-1860) – igreja São João Batista – Cúria Metropolitana de Pelotas. Livro de óbitos de escravos 1 (1823-1860) – igreja São João Batista – Cúria Metropolitana de Pelotas.

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dilatar as fronteiras portuguesas estabelecidas pelo Tratado de Santo Ildefonso. Por esse tratado, assinado em 1777, o território do município de Herval ficou do lado espanhol. Porém, Rafael Pinto Bandeira, que era encarregado de guarnecer a fronteira estipulada pelas determinações, insistiu em fazer avançar até o rio Jaguarão o domínio lusitano. Com esse objetivo, em meados de 1791, na margem direita do arroio do Herval, iniciou a construção de uma igreja, um quartel e um quadro de trincheira. Em virtude desse estado de beligerância e das disputas pela região entre as nações ibéricas, os instrumentos de trabalho agrícola, como arado, a foice, a enxada, a aguilhada, o laço e as boleadeiras, foram trocados pela lança, pelo arcabuz e pela espada. Em História do Herval, de 1980, Manoel da Costa Medeiros observou: “O distrito de Herval, antes da fundação das freguesias de Jaguarão e Piratini, isto é, nos fins do século XVIII, devia se alongar por todo o território limitado entre o arroio Grande, Lagoa Mirim e São Gonçalo até a barra do Piratini.”3 Após alguns conflitos que envolveram os portugueses e espanhóis, os quais invadiram o acampamento militar de Pinto Bandeira em virtude da violação das determinações contidas no Tratado de 1777, o comandante lusitano abandonou a região e dirigiu-se para a Guarda da Lagoa, atualmente município de Jaguarão. Quando as fronteiras já haviam sido asseguradas pelas forças portuguesas, o sesmeiro Antônio Rodrigues Barcelos tentou uma restituição de posse contra os habitantes do povoado. Contudo, “sob iniciativa de Bonifácio José Nunes, que servira às ordens de Pinto Martins com o posto de sargento, José da Silva Tavares, Francisco Teixeira Pinto, Antônio Francisco dos Santos Abreu e Antônio Madru3

MEDEIROS, Manoel da Costa. História de Herval: descrição física e histórica. Caxias do Sul: UCS, 1980. p. 76.

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ga Bittencourt, resolveu-se adquirir por compra o terreno e manter a posse de todos os seus habitantes”.4 A igreja construída por Bandeira foi destruída por um incêndio em 1823, sendo outra edificada acerca de um quilômetro da antiga povoação, sob a invocação de São João Batista. Em 18 de janeiro de 1825, por um alvará real, tornou-se a 20 freguesia da província, com a denominação de São João Batista de Erval. Em 1881, Herval, que, contava com aproximadamente sete mil habitantes, conquistou sua emancipação política de Jaguarão. Fundamental salientar que, originalmente, de um importante ponto estratégico-militar, Herval contribuiu a seguir, essencialmente, com a sua pecuária para o entrosamento dessa região com o restante do Brasil. As suas fazendas pastoris, principalmente com a ovinocultura, geraram matéria-prima para a indústria têxtil, tanto no mercado interno como, principalmente, visando ao Velho Continente, uma vez que a sua lã era exportada. O desenvolvimento das atividades econômicas de Herval contou com a participação do trabalhador escravizado, chegando a ter fazendas que possuíam cem cativos, segundo Manoel da Costa Medeiros. Nesse caso se trataria de fazenda com charqueada, olaria, plantações.5 A origem da história do município de Pelotas está intimamente relacionada com o desenvolvimento da fabricação saladeiril. A freguesia de São Francisco de Paula, como era chamada na época, fundada em 7 de julho de 1812, era pertencente à vila de Rio Grande e recebeu essa denominação em virtude de ser o dia 7 de abril (de 1776) a data da expulsão dos espanhóis de Rio Grande. Como nesse dia era de São Francisco de Paula, o santo ficou como padroeiro para proteger a nova freguesia.6 4 5 6

Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. IBGE, 1959. p. 181. MEDEIROS, História de Herval, p. 77. Cf. MAGALHÃES, Mário Osório. História e tradição da cidade de Pelotas. 2. ed. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1981. p. 18-19.

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Segundo a arquiteta e urbanista Ester Gutierrez em seu livro Negros, charqueadas & olarias, de 2001: “Na sesmaria do Monte Bonito, os saladeiros apresentavam dois ou mais terrenos: o terreno da charqueada, propriamente dita, tinha as instalações destinadas à fabricação da carne salgada e à produção de tijolos e telhas, além do conjunto reservado à residência do charqueador, com prédios de apoio e um pomar; os outros terrenos serviam a criação de gado. Configurava-se, mais uma vez, a tipologia do complexo saladeiril, composto por um trinômio que compreendia, principalmente, as funções de criação, de produção de charque e de elementos cerâmicos.”7 O trabalho do cativo na salga da carne foi fundamental e, conforme a dilatação do número de trabalhadores escravizados e livres, o desenvolvimento urbano impulsionou-se, pois com a prosperidade das charqueadas vários moradores da região que enriqueceram com a comercialização da carne charqueada construíram luxuosos imóveis na localidade, onde residiam principalmente no período da entressafra da atividade, ou seja, de maio a outubro.8

Os registros dos trabalhadores escravizados Nos dados demográficos do município de Herval encontrados na igreja São João Batista constam 724 registros de batismo (Tabela 1) entre 1844 e 1859 e 182 registros de óbito (Tabela 2) entre 1847 e 1859.

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GUTIEREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. 2. ed. Pelotas: EDUFPEL, 2001. p. 71. Cf. SIMÃO, Ana Regina Falkembach. Resistência e acomodação: a escravidão urbana em Pelotas, RS (1812-1850). Passo Fundo: UPF, 2002. p. 62.

A demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859)

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Tabela 1 - Cativos de ambos os sexos batizados na igreja São João Batista Herval (1844-1859) Ano Cativos 1844 22 1845 55 1846 20 1847 30 1848 35 1849 43 1850 41 1851 26 1852 35 1853 63 1854 79 1855 43 1856 57 1857 77 1858 46 1859 51 Total 724 Fonte: Livro de registros de batismo – igreja São João Batista – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Segundo os nomes dos 724 batizados, 327 (45,47% dos legíveis) eram do sexo feminino e 392 (54,52% dos legíveis), do sexo masculino. Em cinco registros os nomes são ilegíveis. Há, portanto, desequilíbrio de 10% em favor do sexo masculino. A média anual dos cativos batizados em Herval foi de 45,25 entre 1844 e 1859. Entre esses batizados observam-se 18 cativos trazidos da África. A procedência dos africanos sugere apenas a região de origem ao indicar o porto de embarque. Desses trabalhadores escravizados vindos do continente negro, um foi assinalado como moçambique, outro como mina, cinco da costa (da África) e 11 apenas como “africanos”. Os “africanos” foram batizados até 1851, ano do fim do tráfico transatlântico de cativos. É pouco crível que cativos africanos eventualmente introduzidos no Rio Grande do Sul após esse ano não estivessem já batizados.

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Tabela 2 - Registros anuais de óbito – igreja São João Baptista – Herval Ano 1847 1848 1849 1850 1851 1852 1853 1854 1855 1856 1857 1858 1859 Total

Número de cativos 5 4 18 6 4 5 18 19 18 20 19 20 25 181

Fonte: Livro de registros de óbitos de escravo 1 (1823-60) – igreja São João Batista – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Os números contidos dos registros de óbito não permitem inferir epidemias ou mortandade entre 1847 e 1859. Foram registrados os decessos de 113 do sexo masculino e 67 do feminino, com dois registros ilegíveis. A média anual de registros de óbito dos trabalhadores cativados em Herval foi de 14 durante o período analisado. Porém, nos seis primeiros anos, de 1847 a 1852, os óbitos se mantêm estáveis, com quatro a seis mortes, com a exceção de 1849, com 18 mortes. Foras 27 cativos africanos registrados no obituário da Igreja São João Batista entre 1847 e 1859, representando 14,83%; todos esses decessos foram apontados na década de 1850, evidenciando uma extinção dessa população. Nos últimos sete anos, de 1853 a 1859, o número de mortes manteve-se constante, 18 a 20, com um acréscimo em 1859 para 25. Nos batizados houve uma elevação da média anual durante o mesmo período, ou seja, de 1847-1852, a média foi de 35 batizados por ano e, de 1853-1859, elevou-se para 59,42. É lícito, portanto, trabalhar com a hipótese de que houve um aumento da população escravizada no segundo período, com A demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859)

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consequente maior número de nascimento e mortes. A taxa bruta de mortalidade dos cativos de Herval em 1858 era de 15,87. Na comparação entre a média anual de óbitos (14), os dados atinentes aos batismos são de 3,44 para uma mortalidade.9 A população escravizada de Herval em 1858 era de 1.260, correspondendo a 37,63% do total do município e, com os 46 batismos realizados nesse ano, a taxa bruta de natalidade foi de 36,50. No município de Pelotas os dados demográficos da igreja São Francisco de Paula apontam que foram registrados 2.360 batismos (Tabela 3), 1.237 do sexo masculino e 1.102 do sexo feminino. Tabela 3 - Batismos de ambos os sexos da igreja São Francisco de Paula – Pelotas (1840-1859) Ano Número de cativos 1840 29 1841 20 1842 27 1843 26 1844 88 1845 63 1846 127 1847 131 1848 104 1849 201 1850 146 1851 179 1852 155 1853 156 1854 169 1855 163 1856 141 1857 165 1858 135 1859 135 Total: 2360 Fonte: Livros de batismos de escravos – igreja São Francisco de Paula – Cúria Metropolitana de Pelotas.

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Essa média é calculada a partir de 1847, pois não há registros de óbito anteriores a este ano.

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A média anual entre 1840 e 1859 foi de 118 trabalhadores cativados registrados na igreja São Francisco de Paula. A média de década de 1840 foi de 81,6 batizados; até 1845, foram apontados 253 cativos batizados, numa média de 42,16 Entretanto, a partir de 1846, a média de batizados até o fim dos anos de 1840 foi de 140,75. Essa dilatação nos números de batismos pode ser atinente ao fim da Guerra dos Farrapos (1835-45). Em 1849 foram verificados 201 batismos, o que pode estar vinculado à necessidade de mão de obra servil nas atividades ligadas à charqueação da carne em Pelotas. Na década de 1850 a média nos registros de batismos foi de 154,4 trabalhadores feitorizados. O ano em que houve menos foi 1856, com 141, e o ano em que houve mais foi 1851, com 179 registros. A diferença nas médias das décadas de 1840 (81,6) e 1850 (154,4) pode estar relacionada, como visto anteriormente, com a característica exportadora de trabalhadores escravizados que a província adquiriu a partir de 1851. Dos 2.360 batizados, 105 eram africanos e 2.255 crioulos. A procedência dos africanos foi especificada em 16, um congo, cinco nagô e dez mina (Figura 3). Os demais africanos foram caracterizados de nação (53), africano (19) e da costa (17). Desses africanos, 99 foram registrados na década de 1840 e seis, no ano de 1850. Esses dados podem estar relacionados com o fato de a província importar mais cativos até 1850.

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Fonte: Livros de batismos de escravos – igreja São Francisco de Paula – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Figura 3 - Origens dos batizados de Pelotas (1840-59)

Nos dois municípios, em alguns casos, ao receber os santos óleos na pia batismal havia a doação ou a venda dos trabalhadores escravizados, como apresentado na Figura 4. Os trabalhadores cativos libertos no batismo foram mais frequentes, percentualmente, em Herval (oito - 1,1%) do que em Pelotas (oito - 0,33%). As doações foram verificadas em vinte batismos de Herval (2,76%) e em 39 de Pelotas (1,65%).

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Fonte: Livro de óbitos de escravos 1 (1823-60) – igreja São João Batista – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Figura 4 - Registro de batismo – igreja São João Batista - Herval

“No primeiro dia do mes de Setembro do ano de mil oitocentos e cinqüenta e dois, nesta freguesia do Herval, batizei solenemente a Carolina innocente, nascida a quinze de julho deste ano, filha de Romana crioula solteira escrava de Rafael Antônio de Souza. Padrinhos: Bonifácio crioulo solteiro liberto e Invocada Nossa Senhora da Conceição. Declarou seu senhor que dava esta crioula para sua filha Joaquina no valor correspondente a sua idade [...].” Em ambos os municípios observou-se um vínculo considerável dos batizados com as mães, pouco constatado, porém, nos registros de óbito. Em Herval, a indicação de pais ocorreu em 705 batismos, correspondendo a 97,27% dos registros. Nos óbitos, esse índice foi de 54 registros, equivalente a 29,67% do total. Em Pelotas, dos 2.360 batismos, 2.178 tinham indicativos de pais; no obituário, os pais foram visualizados em 46 registros, referente a 2,25% do total. Portanto, há uma considerável diferença de vinculação dos trabalhadores escravizados com seus pais nos registros de óbitos, percentualmente favorável a Herval. A demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859)

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Nos registros de batismo na igreja São Francisco de Paula (Pelotas) foram registradas 1.420 mães, com uma média de 1,51 filhos por mãe; em Herval, a média foi de 1,46 filhos por mãe, sendo notificadas 482. No obituário da igreja São Francisco de Paula foram arrolados 2.038 trabalhadores feitorizados entre 1840 e 1859, sendo 1.279 eram do sexo masculino e 759 do feminino. Do total de baixas, foram apontadas 262 de africanos (12,85%) e 1.776 de crioulos (87,14%) A Tabela 4 apresenta a divisão anual dos registros de óbito da igreja São Francisco de Paula (em 15 registros não constou a data do óbito). Os registros de óbito da década de 1840 foram 557 e, na de 1850, 1.466. Tabela 4 - Registros de óbito - igreja São Francisco de Paula (Pelotas) Ano Número de cativos 1840 7 1841 2 1842 1843 1 1844 92 1845 80 1846 49 1847 62 1848 140 1849 124 1850 140 1851 107 1852 144 1853 150 1854 157 1855 256 1856 187 1857 107 1858 107 1859 111 Total: 2023 Fonte: Livro de registros de óbito de escravos – igreja São Francisco de Paula – Cúria Metropolitana de Pelotas.

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Comparativamente, a igreja São João Batista do Herval apontou 724 registros de batismos de 1844 a 1859 e 182 óbitos de 1847 a 1859, enquanto na igreja São Francisco de Paula foram arrolados 2.360 batismos e 2.038 óbitos entre 1840 e 1859. Apenas por esses dados, podemos mencionar que a população cativa de Herval entre 1847 e 1859 cresceu em 445 e a de Pelotas, 322, entre 1840 e 1859. Nos batismos de Herval observamos que foram registrados 18 africanos (2,48%) e 706 crioulos (97,51%) entre 1844 e 1859. Em Pelotas, entre 1840 e 1859 foram apontados nos registros de batismo 105 cativos do continente negro (4,44%) e 2.255 crioulos (95,55%). No obituário de Herval foram registrados 27 africanos (14,83%) entre 1847 e 1859 e, em Pelotas, 262 (12,85%) de 1840 a 1859. Portanto, nos batismos, percentualmente, os africanos foram mais registrados em Pelotas, entretanto nos óbitos, mais em Herval. Esses dados foram condicionados pela população geral cativa desses municípios. Na igreja São João Batista, dos 724 cativos registrados, 327 eram do sexo feminino (45,47%) e 392, do masculino (54,52%); na igreja São Francisco de Paula, foram 1.102 do sexo feminino (46,69%) e 1.237 do masculino (52,41%). A média anual dos batismos de Herval foi de 45,25 e a de Pelotas, 118. Todavia, nos óbitos, a média de Herval foi de 14 e a de Pelotas 101,1; na década de 1850, foi de 146,6. Nos óbitos de Herval constaram 113 do sexo masculino (62,08%) e 67 do feminino (36,81%) e, em Pelotas, 1.279 masculinos (62,75%) e 759 femininos (37,24%), ou seja, em Herval, percentualmente, havia menos cativas do que cativos e, em Pelotas, os do sexo masculino foram registrados mais nos óbitos do que nos batismos.

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Idade dos cativos mortos Percebemos que nas duas regiões os mais frequentes decessos foram de crianças cativadas (até dez anos), que na faixa etária produtiva (11 a 40 anos), percentualmente, morreram menos em Herval e que, em Pelotas, dos 11 aos 40 e acima de quarenta tiveram um equilíbrio, com 112 e 111 baixas, respectivamente. A Figura 5 apresenta a divisão etária dos decessos de Herval entre 1847 e 1859.

Fonte: Livro de registros de óbitos de escravo 1 (1823-60) – igreja São João Batista – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Figura 5 - Idades dos mortos de Herval (1847-1859)

É relevante o número de crianças escravizadas que morriam de um a dez anos – 43,31% dos registros que apresentam idade.10 Entretanto, não são numerosos se comparados aos batizados 724, mesmo se considerando que os natimortos e mortos antes de serem batizados não tiveram registros. Os idosos estão representados com aproximadamente 30%.

10

Foram consideradas crianças oito registros que indicaram inocente.

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Entre 11 e 40 anos, faixa etária mais produtiva da mão de obra cativada, temos 23,56% dos registros. Em Pelotas, as indicações de idade foram notificadas em 990 registros de óbito entre 1840 e 1859, representando 48,57%. A Tabela 5 e a Figura 6 apresentam a divisão etária dos trabalhadores cativados em Pelotas. De 0 a 5 anos,11 691, 69,79%; de 6 a 10 anos, 31; de 11 a 15, 19; 16 a 20, 50; de 21 a 25, 12; 26 a 30, 40; 31 a 35, 10; 36 a 40, 35; 41 a 45, 19; 46 a 50, 23; 51 a 60, 18; 61 a 75, 15; 80 a 90, 5, e idade avançada ou velho, 32. Tabela 5 - Divisão etária dos óbitos de cativos em Pelotas (1840-1859) Divisão etária O a 5 anos 6 a 10 anos 11 a 15 anos 16 a 20 anos 21 a 25 anos 26 a 30 anos 31 a 40 anos 41 a 45 anos 46 a 50 anos 51 a 60 anos 61 a 75 anos 80 a 90 anos Idade avançada ou velho Total

Número de cativos 691 31 19 50 12 40 10 25 19 23 18 15 32 990

Fonte: Livro de registros de óbitos de escravos – igreja São Francisco de Paula – Cúria Metropolitana de Pelotas.

A eventual ausência de cuidados, a falta de higiene das moradias dos cativos e o escasso desenvolvimento da medicina, etc. ocasionaram a mortandade de 691 cativos de zero a cinco anos (69,79% das idades indicadas). A Figura 6 apresenta a divisão etária dos óbitos de Pelotas. 11

Consideramos de zero a cinco anos os cativos “inocentes”, recém-nascidos e “menor de idade”.

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Fonte: Livro de registros de óbitos de escravos – igreja São Francisco de Paula – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Figura 6 - Pirâmide etária dos mortos de Pelotas (1840-1859)

As enfermidades As enfermidades registradas nos óbitos de Herval não indicaram surto endêmico entre a população feitorizada. Dos 182 registros, as causas das mortes constavam em 134, sendo um deles ilegível. Na Tabela 6 registramos as doenças aparentemente responsáveis pelas mortes em Herval. Dois registros eram ilegíveis.

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Tabela 6 - Causas das mortandades – Herval (1847-1859) Quantidade Causas de morte 1 afogado; apapalexia fulminante; ataque espasmádico; ataque repentino; cancro no útero; chagas na cabeça; desinteria; hidropezia; enforcada; espasmo; de repente; febre lenta; febre maligna; foi socorrido com sangramento da penitência e extrema unção; horopezia do peito; hidrotorax; indigestão; inflamação; inflamação nos bofes; inflamação no estômago; inflamação no útero; inflamaria dos pulmões; laringites; lombrigas; moléstia; moléstia contagiosa; moléstia de úrina; morreu a rastro de um cavalo; morte espontânea; ozagre; pacalexia; paralisia; pneumonia; picada de cobra; pontada de pleuris; quebradura; soropezia; suicídio. 2 alucinação mental; desastre; doença interna; efermidade interna; eferminada crônica; febre; hidropezia; ignorada; mal de sete dias; morte natural; parto; pleuria; tétano; tosse coqueluche. 3 ataque da garganta; decrepta; efermidade; pasmo; queimada; velhice. 4 Moléstia natural. 6 Constipação. 8 Tosse. 14 Moléstia interior. 16 Enfermidade natural. Fonte: Livro de registros de óbitos de escravo 1 (1823-1860) – igreja São João Batista – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Foram apontadas oito mortes causadas por fatores externos, o que representa 6,06% das 132 registradas; suicídio (dois), a rastro de um cavalo (1), enforcamento, afogamento, picada de cobra e três queimaduras. Das doenças endógenas, as do aparelho respiratório destacam-se, com 25 casos. Enfermidade natural e moléstia interior atingiram 22, 72% do total das doenças, entretanto não permitem apontar doenças específicas. Dois acidentes foram relacionados a animais, uma picada de cobra e outro com problemas com cavalo, morrendo “a rastro de um cavalo”.

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Ter dois suicídios entre as 134 causas dos decessos dos cativos em Herval em treze anos (1847-1859) é um índice alto, equivalente a 1,49% das enfermidades apontadas. Em comparação com Pelotas, segundo pesquisa de Ana Simão, foram seis atos autocidas entre 1832 e 1849, sendo que 50% dos casos não ocorreram as mortes. Em cinco suicídios foram utilizados instrumentos cortantes, possivelmente por ser a faca instrumento de trabalho na produção charqueadora, embora o enforcamento seja o recurso mais frequente usado pelos suicidas.12 Em Calabouço urbano, de 2002, a historiadora Valéria Zanetti abordou os autocídios: “Nos suicídios, deve ser analisada a real autoria da morte. Por razões óbvias, a causa do decesso podia ser ocultada. O monopólio da denúncia do autocídio pelo senhor deve ter sido utilizado por escravistas que eventualmente eliminaram propositalmente ou não, um cativo. As notícias da imprensa periódica registram estranhas evidências. Em alguns casos, ao se proceder ao exame de corpo de delito dos suicídios, verificaram-se marcas de castigos e maus-tratos.”13 As principais enfermidades que causaram os decessos de trabalhadores escravizados em Pelotas constam na Tabela 7: “moléstia reinante” (200), “moléstia interna” (88), afogamento (14), moléstia do peito (13), gastro colite (13), Pneumonia (13), velhice (11), tétano (dez), “hidropisia” (sete), mal dos sete dias (seis), assassinato (seis), moléstia cerebral (seis), tosse (seis), hepatite (cinco), tísica (cinco), apoplexia (quatro), constipação (quatro), desastre (quatro), desinteria (quatro), espasmo (quatro), febre (quatro), repentina (quatro), convulsão (três, diarreia (três), espontaneamente (três), inflamação (três) e parto (três). 12 13

Cf. SIMÃO, Ana Regina Falkembach. Resistência e acomodação, p. 109. ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860). Passo Fundo: UPF, 2002. p. 209.

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Tabela 7 - Principais enfermidades dos óbitos de Pelotas (1840-1859) Número de decessos 200 – 37,17% 88 – 16,35% 14 – 2,60% 13 – 2,41% 11 – 2,04% 10 – 1,85% 7 6 5

Enfermidades “moléstia reinante” (cólera) Moléstia interna Afogamento Moléstia do peito; gastro colite e pneumonia Velhice Tétano “hidropisia” Mal dos sete dias; assassinato; problemas cerebrais; tosse. Hepatite; tísica.

4

Apoplexia; constipação; desastre; desinteria; espasmo; febre; natural; repentina.

3

Convulsão; diarreia; espontaneamente; inflamação; parto.

Fonte: Livro de registros de óbitos de escravos – igreja São Francisco de Paula – Cúria Metropolitana de Pelotas.

A “moléstia reinante” (cólera) matou duzentos cativos de novembro de 1855 a abril de 1856. A Figura 7 apresenta a divisão mensal das mortalidades causadas pela “moléstia reinante” (cólera). Nos três primeiros meses, novembro e dezembro de 1855 e janeiro de 1856, foram registrados 165 cativos coléricos.

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Fonte: Livro de registros de óbitos de escravos – igreja São Francisco de Paula – Cúria Metropolitana de Pelotas.

Figura 7 - Decessos causados pela cólera em Pelotas (1840-1859)

A “moléstia interior” (88) não especifica as doenças. A historiadora Ana Regina Falkembach Simão abordou as mortandades em Pelotas entre 1822 e 1846 e descreveu a respeito da moléstia interna: “Das doenças registradas, a que foi comum em todas as idades e que mais ocasionou óbitos foi a moléstia interna, compreendida como doença em geral grave e sem manifestações aparentes. Tal descrição revela grande ignorância a respeito dos males em questão e, logicamente, do seu tratamento. Em geral, os cativos eram encaminhados para tratamento hospitalar quando as doenças se encontravam em avançado estágio de desenvolvimento – doenças hepáticas, renais, etc. –, com poucas possibilidades de cura.”14 Todavia, para aqueles cativos que geravam mais proventos para os seus escravistas o senhor arcava com as despesas de internação, pois tinha um retorno assegurado. O afogamento foi registrado em 14 óbitos. A forma muito alta de mortes por tal motivo provavelmente se relaciona com o estuário hidrográfico de Pelotas, assim como com a locali14

SIMÃO, Resistência e acomodação, p. 139.

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zação das charqueadas, às margens do canal São Gonçalo e de seus afluentes, o que facilitou esta forma de resistência, já que afogamento sem água é impossível. Os digestivos e a pneumonia causaram a baixa de 13 trabalhadores feitorizados; possivelmente, a má alimentação, a umidade e as condições de existência dos cativos contribuíram para a que adquirissem essas enfermidades. O tétano foi uma doença que causou a morte de dez cativos, na década de 1840 (nove); “hidropisia” (sete) e assassinato (seis). A “hidropisia” era a retenção de líquidos nos tecidos e órgãos do corpo. Sobre o “mal de sete dias”, que levou à morte seis trabalhadores cativados, segundo a historiadora Simão, era uma “infecção do umbigo proveniente do corte do cordão umbilical com objetos não esterilizados”.15

Considerações finais Como discutido anteriormente, a razão entre os batismos e óbitos de Herval apontam para 3,44 batismos por óbito. Em Pelotas, esse índice é de 1,15 batismos por óbito, ou seja, em virtude principalmente da quantidade de óbitos registrados na igreja São Francisco de Paula, possivelmente a região de Pelotas tenha utilizado o recurso do comércio intermunicipal para suprir as suas necessidades de mão de obra servil. Com base na presença das mulheres cativadas de Pelotas e de Herval no censo de 1859,16 outros índices que corroboram com a hipótese de comércio intermunicipal de cativos entre Herval e Pelotas foram as taxas de natalidade e de mortalidade da população cativada em 1858-1859. Em Pelotas essas taxas foram de 28,19 de natalidade e as de mortalidade, de 22,34 em 1858 e de 23,18 em 1859. Em Herval, em 1859, 15 16

SIMÃO, Resistência e acomodação, p. 139. FEE: De província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – censo do RS (1803-1950). Porto Alegre, 1981. p. 61.

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a taxa de natalidade foi de 36,50 e de mortalidade, de 15,87. Isso significa que, proporcionalmente, morreram menos cativos em Herval e nasceram mais. A diferença dos índices demográficos dos cativos em Herval e Pelotas pode estar inserida nas condições menos penosas e mais brandas de sobrevivência dos trabalhadores empregados nas atividades pastoris do que as dos dedicados à charqueação da carne.

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