MAESTRI, Mário & LIMA, S. O. (ORG). Peões, vaqueiros & cativos campeiros: Estudos sobre a economia pastoril no Brasil. V. 2

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Descrição do Produto

Peões, vaqueiros & cativos campeiros

Estudos sobre a economia pastoril no Brasil

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

Rui Getúlio Soares Reitor

Eliane Lucia Colussi Vice-Reitora de Graduação

Hugo Tourinho Filho Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

Adil de Oliveira Pacheco Vice-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários

Nelson Germano Beck Vice-Reitor Administrativo

UPF Editora

Simone Meredith Scheffer Basso Editora

CONSELHO EDITORIAL

Alexandre Augusto Nienow Altair Alberto Fávero Ana Carolina B. de Marchi Andrea Poleto Oltramari Angelo Vitório Cenci Cleiton Chiamonti Bona Fernando Fornari Graciela René Ormezzano Luis Felipe Jochins Schneider Renata H. Tagliari Sergio Machado Porto Zacarias M. Chamberlain Pravia

Mário Maestri Solimar Oliveira Lima (Org.)

Peões, vaqueiros & cativos campeiros

Estudos sobre a economia pastoril no Brasil Luiz Mott Adelmir Fiabani Andréia Oliveira da Silva Helen Scorsatto Ortiz Fabiano Teixeira dos Santos Paulo A. Zarth Mário Maestri

Universidade de Passo Fundo 2010 Apoio:

Copyright © Editora Universitária Maria Emilse Lucatelli Editoria de Texto

Sabino Gallon

Revisão de Emendas

Alisson Gampert Spannenberg Produção da Capa

Sirlete Regina da Silva

Editoração e Composição Eletrônica

El rodeo, 1861 (detalle) Óleo sobre tela, 76x166 cm Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires

Imagem da Capa

Este livro no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do autor ou da editora. A exatidão das informações e dos conceitos e opiniões emitidos, bem como as imagens, tabelas, quadros e figuras, são de exclusiva responsabilidade dos autores.

ISBN – 978-85-7515-450-2 UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO EDITORA UNIVERSITÁRIA Campus I, BR 285 - Km 171 - Bairro São José Fone/Fax: (54) 3316-8373 CEP 99001-970 - Passo Fundo - RS - Brasil Home -page: www.upf.br/editora E-mail: [email protected] Editora UPF afiliada à

Associação Brasileira d a s E d i t o r a s U n i ve r s i t á r i a s

Sumário Estudos sobre a economia pastoril no Brasil ............................................. 7 AS FAZENDAS PASTORIS E A ESCRAVIDÃO NO CEARÁ E NO TOCANTINS A pecuária no sertão do Piauí (1697-1818)...........................................15 Luiz Mott

Fazendas, cativos e gado na história do Tocantins ...................................53 Adelmir Fiabani

AS FAZENDAS PASTORIS NO RIO GRANDE DO SUL E SANTA CATARINA “Coitado do home”.O posteiro em fins do século 20 no norte do Rio Grande do Sul ...............................................................................89 Andréia Oliveira da Silva

A apropriação da terra no Brasil: da Lei de Sesmarias à Lei de Terras (1532-1850) ..................................................................................108 Helen Scorsatto Ortiz

Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19 ......................................................................147 Fabiano Teixeira dos Santos

Escravidão nas estâncias pastoris da província de São Pedro do Rio Grande do Sul .............................................................................181 Paulo A. Zarth

O cativo, o gaúcho e o peão:considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense (1680-1964) ..............................................................212 Mário Maestri

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Mário Maestri, Solimar Oliveira Lima (Org.)

Estudos sobre a economia pastoril no Brasil Mário Maestri Coordenador

A produção pastoril acompanha praticamente toda a história do Brasil. Desde que, a partir da ocupação territorial, nos anos 1530, bovinos, equinos e muares foram introduzidos na América portuguesa para a produção de animais de corte, de transporte e de tração, até os dias de hoje, a criação pastoril constitui atividade de essencial importância sobretudo para a vida econômica e social do Brasil. Produção subsidiária das atividades primário-exportadoras, empurrada para o interior pela impossibilidade de proteção das plantações das bocas e das patas dos gados por cercas inexistentes praticamente até o século 20, o pastoreio constituiu vetor essencial de exploração-ocupação dos sertões do Brasil. Como a carne e a força animal, o couro também constituiu desde logo matéria essencial à produção de mobiliário, vestimentas, utensílios, etc. e, a seguir, rentável exportação ao Velho Mundo. Tamanha foi a importância da criação pastoril ao Brasil colonial que não houve cronista que não se debruçasse, às vezes longamente, sobre a atividade, com destaque para Gandavo, Brandão, Fernão Cardim, o frei Salvador, Gabriel Soares

Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil

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de Sousa.1 Trabalhos sucessivos sobre as riquezas coloniais abordaram também detidamente o tema.2 Autores fundamentais, como Capistrano de Abreu, assentaram fortemente suas interpretações sobre a formação social brasileira na atividade.3 As leituras gerais clássicas da história econômica do Brasil também destacaram as práticas pastoris, alongando-se habitualmente sobre elas.4 Na sua germinal História econômica do Brasil, Roberto C. Simonsen registrou o temor de ter se detido, “talvez em demasia, sobre vários aspectos da indústria pecuária nos tempos coloniais, para melhor acentuar o salientíssimo papel que desempenhou na formação econômica do brasileira”.5 Portanto, jamais houve dúvidas sobre a importância da produção pastoril em nossa história. Paradoxalmente, apesar do reconhecimento geral da importância da economia criatória à história social e econômica do Brasil e de vários autores terem abordado desde cedo tangencialmente essa questão,6 como apenas assinalado, são escassos os estudos historiográficos dedicados especificamente 1

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Cf. GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da província do Brasil. Rio de Janeiro: INL/Ministério da Educação e Cultura, 1965; SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 4. ed. São Paulo: CEN; Edusp, 1971; CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2. ed. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000; SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982; BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1977. Cf., por exemplo, ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. Cf. CAPISTRANO DE ABREU, João. Caminhos antigos e povamento do Brasil. Rio de Janeiro: Briguiet, 1930; _____. Capítulos da história colonial. (15001800). 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976. Cf. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo – colônia. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1953; FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Brasília: EdUnB, 1963; SIMONSEN, Roberto C. (1889-1948). História econômica do Brasil. (1500-1820). 7. ed. São Paulo: CEN; Brasília: INL, 1977. SIMONSEN, op. cit., p. 85. Cf., por exemplo, GOULART, José Alípio. Transporte nos engenhos de açúcar (1959); Meios e instrumentos de transporte no interior do Brasil (1959); Tropas e tropeiros na formação do Brasil (1961); O cavalo na formação do Brasil (1964); Brasil do boi e de couro (1965); O ciclo do couro no nordeste (1966). Mário Maestri, Solimar Oliveira Lima (Org.)

à atividade, mesmo em regiões em que desempenharam papel essencial, como, por exemplo, o Ceará, o Mato Grosso do Sul, o Piauí, o Rio Grande do Sul, etc. O caso do Rio Grande do Sul é paradigmático. Enquanto essa região não possui sequer uma história geral digna do nome sobre a atividade pastoril, o Uruguai e a Argentina, que compartilham com o meridião sulino a mesma realidade socioecológica, produzem há décadas vasta e refinada produção sobre o tema.7 Guilhermino César, fundamental intérprete da sociedade pastoril rio-grandense, não publicou em vida interpretação geral sintética que ensaiou sobre essa realidade.8 Mais comumente, a historiografia nacional e regional abordou a produção pastoril brasileira nos seus aspectos gerais, compreendidos como escassamente dinâmicos. São raros os estudos que apreendem a questão num sentido diacrônico, fixando a importante evolução da atividade através dos anos, no que se refere às técnicas, relações sociais, produtividade, etc. O caráter generalizante e sintético dos estudos historiográficos tradicionais sobre essa atividade, sobretudo referentes à Colônia e ao Império, ensejou a definição das práticas pastoris como atividade envolvendo quase exclusivamente a mão de obra livre, em geral com base em deduções lógicas e em dados limitados, realidade que a nova historiografia já desmentiu no que se refere a regiões de importantes raízes pastoris, como o Piauí e o Rio Grande do Sul.9

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Cf. MAESTRI, Mário. A escravidão nas fazendas pastoris de Soledade, no norte do RS. Espaço Acadêmico, ano 7, n. 75, abr. 2007. Disponível em: www.espacoacademico.com.br Cf. CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL; Corag, 2005. Cf., entre outros, ZARTH, Paulo. A. História agrária do planalto gaúcho. 18501920. Ijuí: Edijuí, 1997; MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior: trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ediupf, 2002; LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí (1822-1871). Passo Fundo: Ediupf, 2005. Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil

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Em 2007, os historiadores Elaine Cancian, Helen Ortiz, Júlio Quevedo, Maria do Carmo Brazil, Mário Maestri (coordenador) e Paulo Esselin apresentaram a proposta de pesquisa “A produção pastoril no Piauí, no Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul – de 1780 a 1930: um estudo comparado”, gentilmente acolhida pelo CNPq nos quadros de seu Edital MCT/CNPq 15/2007 – Universal. Acolhimento que permitiu o desenvolvimento dos trabalhos que tiveram, como veremos a seguir, no número especial da revista História: Debates e Tendência e neste presente livro, apresentações parciais. O projeto propunha-se estudar o processo de introdução, consolidação e desenvolvimento da produção pastoril, com destaque para o gado bovino, de 1780 a 1930, no Piauí, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, três regiões do Brasil onde a produção pastoril desempenhou papel singular e, comumente, dominante, ou seja, onde não constituiu atividade subsidiária, determinada fortemente por outras esferas da produção. A escolha das três regiões deveu-se também às suas diversidades bioecológicas e ao fato de não haver interligação e influência direta entre as atividades criatórias das mesmas. No que se refere à data, definiu-se 1780 como o período inicial da análise particularizada do tema, por ser nesse ano que, em razão das grandes secas que se abateram sobre o Nordeste, iniciou-se a produção intensiva charqueadora rio-grandense, que determinou a rápida e plena ocupação da Campanha por fazendas pastoris. O início da produção charqueadora no Sul do Brasil, com destaque para o eixo saladeiril pelotense, desde os anos 1780, demarcou igualmente a superação nessas regiões da criação do gado vacum essencialmente pelo couro, dando origem às práticas criatórias voltadas à produção de animais pela carne e couro.10 Procurou-se definir 10

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Cf., entre outros, GUTIERREZ, Ester. Negros, charqueadas e olarias. Um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPEL, 1993; CORSETTI, Berenice. Mário Maestri, Solimar Oliveira Lima (Org.)

espaço temporal que permitisse cotejamento harmônico das atividades nas três regiões. Previam-se, porém, descrições sintéticas sobre as práticas criatórias fundacionais, anteriores a esse período. A opção de 1930 como teto cronológico da investigação deveu-se a ser esse ano o marco político da superação relativa da crise que se abatia sobre a produção primária brasileira, que não poupou a produção pastoril, em refluxo desde a recessão dos mercados nacionais e mundial, após o fim da Grande Guerra, em 1918. A partir da Revolução de 1930, a reorientação da economia do Brasil para o mercado interno e políticas setoriais ensejaram que fossem superadas as práticas pastoris consolidadas depois da Abolição, em 1888, e dos cercamentos dos campos, com arames lisos e farpados, a partir dos anos 1875-1885, no que se refere ao Rio Grande do Sul. Efetivamente, é a partir daqueles anos que a produção pastoril, sobretudo sul-rio-grandense, começa a assumir, ainda que timidamente, um caráter capitalista-intensivo, com melhoria genética dos rebanhos, pastagens artificiais, banheiros, bebedouros, etc. Em uma eventual segunda etapa desta investigação, a pesquisa se desenvolverá até os dias de hoje. A compreensão da necessidade de interagir com pesquisadores envolvidos no tema ensejou convites para a produção de artigos sobre o domínio, a serem publicados nas publicações previstas como principais meios de apresentação dos resultados chegados. Em 2008, como parte das iniciativas do projeto, o volume 7 da revista História: Tendência e Debates, do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, apresentou dossier sobre “A fazenda pastoril e a escravidão”, sob a responsabilidade do historiador Mário Maestri, com artigos dos pesquisadores Elaine Cancian – “Cativos nas fazendas pastoris do sul do Mato Grosso”; Helen Ortiz – “Controle e uso Estudo da charqueada escravista gaúcha no séc. XIX. Rio de Janeiro: UFF, 1983. p. 104. (Dissertação de mestrado). Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil

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da terra no norte do Rio Grande do Sul”; Maria do Carmo Brazil – “Terra e trabalho no sul do Mato Grosso”; Paulo Esselin & Tito Carlos de Oliveira – “Terra onde o gado criou o homem e definiu o latifúndio”; Solimar Oliveira Lima – “Vaqueiro escravizado na fazenda pastoril piauiense”. O dossier contou, igualmente, com artigos da historiadora e arquiteta Ester Gutierrez – “Escravidão em estâncias e charqueadas”; de Maria Beatriz Eifert – “Os cativos do Botucaraí”; de Setembrino Dal Bosco – “Capatazes, peões e cativos da estância da Música”, todos do Rio Grande do Sul. Apresentou, também, trabalho do historiador paraguaio Ignácio Telesca – “Esclavos, estâncias y elite. Continuidades y rupturas em la administración de la estância jesuítica de Paraguarí trás la expulsión de los jesuítas (1760-1780)”. O primeiro tomo de Peões, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril, além de artigos dos pesquisadores diretamente envolvidos no projeto, apresentou as colaborações dos historiadores Eduardo Palermo, Newton Carneiro e da historiadora e arquiteta Ester J. B. Gutierrez, o primeiro, uruguaio, os dois últimos, rio-grandenses. O presente segundo tomo, além de artigos de Helen Ortiz e Mário Maestri, do grupo de pesquisadores, apresenta a colaboração do arquiteto Fabiano Teixeira dos Santos; dos historiadores Adelmir Fiabani e Paulo Zarth e artigo sintético e atualizado do historiador e antropólogo Luiz Mott, sobre suas clássicas e pioneiras pesquisas abordando o pastoreio e a mão de obra escravizada no Piauí, preparado especialmente para o presente livro, pelo qual agradecemos sensibilizados. Registramos, finalmente, nossos agradecimentos ao CNPq, sem o qual, como já proposto, a presente iniciativa não teria se materializado.

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Mário Maestri, Solimar Oliveira Lima (Org.)

As fazendas pastoris e a escravidão no Ceará e no Tocantins

A pecuária no sertão do Piauí (1697-1818)1 Luiz Mott* O Brasil já possuía quase dois séculos de história, era o maior produtor de açúcar do mundo, e o território de mais de 250 mil km² hoje representado pelo Piauí, oito vezes a superfície da Bélgica, não fora ainda conquistado pelos colonizadores. Foi somente em 1674 que o português Domingos Afonso Sertão, o “Mafrense”, partindo da Bahia, entra pelos sertões acima do rio São Francisco e “descobre e povoa o Piauí, com grande risco de sua pessoa e considerável despesa, com o adjutório de sócios”.2 Os riscos a que se refere o conquistador eram representados sobretudo pela presença de inúmeras tribos indígenas, que, perseguidas no litoral pelos senhores de engenho da Bahia, Pernambuco e pelos colonos do Maranhão, encontraram nas margens dos rios piauienses um pouco da tranquilidade perdida. Eram 37 nações indígenas agressivas, * Professor Titular de Antropologia, UFBa. E-mail: [email protected] 1 Este artigo representa uma síntese, com abundantes modificações, de quatro ensaios por mim assinados: Fazendas de gado do Piauí: 1698-1762. Anais da Revista de História, p. 343-369, 1976; Descrição da capitania de São José do Piauí. Revista de História, n. 112, p. 543-574, 1977; Estrutura demográfica das fazendas de gado do Piauí colonial: um caso de povoamento rural centrífugo. Ciência e Cultura, v. 30, p. 1196-1210, out. 1978; O patrão não está: análise do absenteísmo nas fazendas de gado do Piauí colonial. Ciência e Cultura, SBPC, n. 34, p. 890-896, 1982. 2 CARVALHO, Miguel. Descrição do sertão do Piauí remetida ao Ilm° e Rvd.° Sr. Frei Francisco de Lima, Bispo de Pernambuco (1697). In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares. Rio de Janeiro: Editora Nacional; Brasiliana, n. 127, 1938. p. 362. A pecuária no sertão do Piauí (1697-1818)

Sec1:15

“tapuias comedores de carne humana, os mais bravos e guerreiros que se acham no Brasil”. Desde os seus primórdios, foram as fazendas de gado que definiram a forma de ocupação do solo e a distribuição dos colonizadores ao longo do sertão piauiense: já em 1697, apenas um ano após a criação de sua primeira freguesia, contavamse em 129 as fazendas de gados, situadas nas margens de 33 rios, ribeiras, lagoas e olhos d’água limítrofes com as terras dos gentios.3 A conquista e povoamento do Piauí e de outras zonas áridas do Nordeste foram motivados, sobretudo, pela expansão da economia açucareira, dependente do gado bovino e cavalar não só como alimento básico da população livre e escrava, mas, igualmente, como transporte e força motriz dos engenhos de açúcar, sem falar na enorme importância do couro bovino como matéria-prima para infinitos usos domésticos e como embalagem dos rolos de fumo exportados para a África e Europa. Com a grande expansão dos canaviais nos inícios do século 17, a criação de gado nas proximidades dos engenhos representava concorrência perturbadora à agroindústria açucareira, na medida em que desviava terras, capital e mão de obra da principal e mais lucrativa atividade, a fabricação de açúcar.4 Assim, a conquista de novas zonas até então desprezadas pela cana impôs-se como condição sine qua non para a continuidade e ampliação da principal fonte de riqueza do Estado do Brasil.5

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5

Idem, p. 370. Por Carta Régia datada de 1701, proibiu-se a criação de gados a menos de dez léguas da costa marítima, tentando-se dessa forma evitar que a pecuária competisse com a principal cultura exportadora, a cana-de-açúcar. SIMONSEN, R. C. História econômica do Brasil. Companhia Editora Nacional; Brasiliana, v. 100, 1944, tomo I, p. 230. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964. Cap. X, Projeção da economia açucareira: a pecuária; PRADO Jr., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1956. Cap. 8, A pecuária e o progresso do povoamento no nordeste.

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Luiz Mott

A partir de 1674, Domingos Afonso Sertão, em sociedade com os descendentes de Garcia d’Ávila, da poderosa Casa da Torre da Bahia, conquistou praticamente metade do território do Piauí. E ao retornar a Salvador, o Mafrense, onde mantinha opulenta residência na Jiquitaia, deixou atrás de si trinta fazendas de gado, administradas por vaqueiros de sua confiança. A fazenda de gado, por conseguinte, foi o germe do povoamento desta região, constituindo a partir daí o modelo dominante de ocupação deste território e, diferentemente das demais capitanias, que foram povoadas a partir do litoral, a conquista do Piauí iniciou-se a partir da hinterlândia. A proliferação destas fazendas incrementou-se ainda mais a partir do século 18, graças à crescente importação de boiadas pela rica e pujante região aurífera das Minas Gerais.6 Eis como cresceu impressionantemente o número desses estabelecimentos rurais no primeiro século da história regional: Tabela 1 - Número de fazendas de gado do Piauí: 1674-1772 Ano

No de fazendas de gado

1674 1697 1730 1762 1772

30 129 400 536 578

Fontes: 1674: Testamento de Domingos Afonso Sertão. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX, 1867, p. 140 et seq; 1697: CARVALHO, Miguel de. Descrição do sertão do Piauí; 1730: PITA, Rocha; SOUTHNEY apud BOXER, C. R., op. cit., p. 253; 1762: Resumo de todas as pessoas livres e cativas, fogos, fazendas da cidade, vilas e sertões da capitania de São José do Piauí. Arquivo Histórico da Secretaria de Estado das Relações Exteriores, Itamaraty, Lata 267, maço 2, pacote 1; 1772: Descrição da capitania de São José do Piauí, Ouvidor Antonio José de Morais Durão, Arquivo Histórico Ultramarino, Piauí, Cx. 3. In: MOTT, Luiz. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Secretaria de Cultura do Piauí, 1985.

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BUESCU, Mircea. História econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Apec, 1970. p. 188; BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Cap. IX, As vacarias.

A pecuária no sertão do Piauí (1697-1818)

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Reza a tradição popular que as fazendas do Piauí tiveram três novilhas e um tourinho como semente original de seus rebanhos.7 Felizmente, para o estudo da população humana destas fazendas podemos nos basear mais do que na tradição oral: apenas 23 anos após a conquista desses sertões, em 1697, o primeiro vigário da terra, o padre Miguel de Carvalho, escreveu a Dezcripção do Certão do Peauhy, fruto de quatro anos de contínuas viagens e visitas a todas as partes habitadas.8 Contava, então, o Piauí com um total de 129 fazendas de criatório, as quais se distribuíam ao longo de uma trintena de rios, lagoas e olhos d’água: “Compõe-se o Piauí de fazendas de gados, sem mais moradores. Estão situadas as fazendas em vários riachos distantes umas das outras ordinariamente mais de duas léguas. Em cada uma vive um homem (branco) com um negro (escravo) e em algumas se acham mais escravos e também mais brancos, mas no comum se acha um homem branco só.” Eis, de maneira sintética, a peculiar estrutura demográfica do Piauí nos primórdios de sua colonização, apresentada na Tabela 2.

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NUNES, Odilon. Economia e finanças (Piauí colonial). Teresina, Monografias do Piauí, 1972; Os primeiros currais (geografia e história do Piauí seiscentista), Teresina, Monografias do Piauí, 1972; Pesquisas para a história do Piauí. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1975. CARVALHO, op. cit., 1938, p. 387.

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Luiz Mott

Tabela 2 - Composição da população do Piauí: 1697 Sexo Homens Mulheres Total

398 40 438

Brancos Mestiços Negros Índios Total

Homens 154 (38,7%) 5 (1,3%) 203 (51,0%) 36 (9,0%) 398 (100,0%)

Solteiros Casados Total

428 10 438

Livres Escravos Total

(90,9%) (9,1%) (100,0%) Cor-etnia Mulheres 1 9 7 23 40 Estado civil

(97,8%) (2,2%) (100,0%) Condição jurídico-social Homens Mulheres 196 (49,2%) 33 202 (50,8%) 7 398 (100,0%) 40

155 14 210 59 438

Total (35,3%) (3,2%) (48,0%) (13,5%) (100,0%)

Total 229 (52,3%) 209 (47,7%) 438 (100,0%)

Tais dados evidenciam uma composição demográfica excepcional em vários aspectos estruturais: frente pioneira de homens-vaqueiros num habitat ainda muito hostil e austero, onde só havia lugar para o trabalho masculino, inexistindo um mínimo de segurança e conforto para se oferecer às mulheres e crianças. Trata-se de uma sociedade extremamente simples e isolada: predomínio quase exclusivo de homens celibatários (97,8%), apenas cinco casais constituídos e unicamente 2,2% de crianças. No que se refere à distribuição destes moradores nas 129 fazendas, temos como padrão dominante a presença de um vaqueiro branco, arrendatário do Mafrense ou da Casa da Torre, acompanhado de um ou dois escravos negros: 48% das fazendas do Piauí apresentavam esta composição elementar. Nas demais unidades residenciais, vamos encontrar desA pecuária no sertão do Piauí (1697-1818)

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de a situação ainda mais simples, em que um morador branco vivia sozinho (três fazendas), ou de dois brancos viviam sem mais ninguém, observando-se um total de 42 variações de composição residencial, representadas pela diferente presença das demais categorias étnico-sociais. Setenta por cento dos fogos (moradias) possuíam de um a três moradores, com 98,4% dos domicílios abrigando até sete indivíduos, incluindo-se neste total os escravos. A residência possuidora de maior número de pessoas – treze – estava na fazenda Mocaitá: além do fazendeiro e de um arrendatário, viviam quatro índios, quatro índias, um mulato e dois escravos negros. Do total dessas 129 fazendas, 126 possuíam ao menos um morador branco – vaqueiro ou proprietário. Os escravos negros aparecem em 109 unidades residenciais (84,4%), e os índios, incluindo-se mulheres e crianças, estão presentes em apenas trinta fazendas (23,2%). As mulheres, embora fossem em número de quarenta, incluindo as meninas, residiam em somente 18,6% das fazendas; destas, dezoito abrigavam apenas uma representante do sexo feminino e seis, mais de uma mulher. Tão excepcional era a presença de um casal branco nesta frente pioneira9 que, dentre as quarenta mulheres existentes nas fazendas, apenas uma, supostamente branca, tem seu nome revelado: “Na fazenda Belo Jardim de Santa Cruz está nela Domingos de Aguiar com sua mulher, Mariana Cabral: é o único homem branco que há casado nesta nova freguesia e dista da fazenda seguinte 3 léguas.”10 Eis como o padre Carvalho descreve o estilo de vida austero e cheio de privações desses vaqueiros, impelidos para os sertões distantes em busca de melhores pastagens para os rebanhos de seus patrões, que um dia seriam vendidos na dis9

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MARTINS, J. Souza. Frente pioneira: contribuição para uma caracterização sociológica. Cadernos do Centro de Estudos Rurais e Urbanos, USP, n. 5, p. 102112, 1972. CARVALHO, op. cit., 1938, p. 379.

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Luiz Mott

tante feira da Capoame, porta de entrada do Recôncavo da Bahia: “Comem estes homens só carne de vaca com laticínio e algum mel que tiram pelos paus. A carne ordinariamente se come assada, porque não há panela em que se coza; bebem água de poços e lagoas, sempre turba e muito assalitrada. Os ares são muito grossos e pouco sadios. Desta sorte vivem estes miseráveis homens, vestindo couros e parecendo tapuias.”11 Tais fazendas, segundo a Carta régia de 7 de dezembro de 1697, não deveriam ultrapassar três léguas de comprimento por uma légua de largura. Contudo, na prática, grande número das propriedades rurais piauienses ultrapassava em muito o máximo legal. De uma amostra de 33 das primeiras fazendas existentes no Piauí no século 17, 29 possuíam superfície superior ao limite regular, existindo uma propriedade no vale do Crateús que possuía a incrível área de trinta léguas de comprimento por vinte léguas de largura (21.600 km²), o equivalente a duas vezes a superfície do Líbano.12 A existência de fazendas tão extensas explicava-se não só pelas próprias limitações ecológicas regionais, como também pelo baixo nível técnico da pecuária tradicional. Possuindo o Piauí um típico clima tropical de savana, com 82% de seu território com altitudes inferiores a seiscentos metros, com vegetação predominantemente xerófila, popularmente conhecida como “catinga”, apresentando uma temperatura média anual de 24 , mas chegando frequentemente a 40 , com baixíssima pluviosidade e poucos cursos d’água perenes, nos longos meses de estio as pastagens escasseiam ou mesmo desaparecem, devendo o rebanho ser transferido constantemente para grandes espaços, à procura de alimento. Eis como o naturalista Joaquim José Pereira, “vigário de Valença”, autor do Discurso preliminar e histórico sobre o clima da capi11 12

Idem, p. 373. CANABRAVA, Alice P. A grande propriedade rural. In: História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960. Tomo I, v. 2, p. 102; MOTT, Luiz. Op. cit., 1976, p. 351-352.

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tania de Maranhão e Piauhy, descreveu o escaldante clima regional: “O ar he quente e humido, paudozo, e doentio [...] as carnes frescas se corrompem em 24 horas, e as que se goardão secas crião hum gusmo, ou moncozidade [...] os que viageam, e dormem no campo achão a ropas humidas quando as querem vestir de manhã [...] o calor he perpetuo, os corpos estão sempre em actual traspiração sencivel, e copioza.”13 A prática da pecuária extensiva levou a que os latifúndios, além de gigantescos, tivessem, consequentemente, suas sedes enormemente distantes umas das outros. Eis como o vigário da principal freguesia do Piauí, a Mocha, o padre Antônio Luiz Coutinho, descrevia o povoamento destes sertões já em 1757: “Nas beiradas dos riachos assistem os paroquianos, criando gados vacuns e cavalares, distantes uns dos outros de 3 a mais de 10 léguas, por morarem junto dos poços d’água que ficam nos tais riachos no tempo do inverno. Acha-se situada esta freguesia de Nossa Senhora da Vitória no centro do sertão do Piauí: não tem outra povoação, vila ou lugar mais que a vila da Mocha, que consta de 60 moradores, pouco mais ou menos, e poucos ou nenhuns permanentes, por serem os mais deles solteiros, e se hoje se acham nela, amanhã fazem viagem, e o que avulta nela são os oficiais de justiça. Tem circunvizinhos alguns moradores na distância de uma légua, que tratam de algumas pequenas roças de mandiocas, milhos, arrozes, que nem a terra admite agricultura abundante, por mui seca no tempo de verão, e não haver com que regar, e por serem muitas as enxurradas no tempo do inverno. Como a maior parte dos fregueses são criadores de gado vacum e cavalar e não podem comodamente morar junto da vila, se acham dispersos por vários riachos, morando com 13

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AHU, Maranhão, Cx. 127, doc. 9556, apud BONATO, Tiago. Estudo metodológico de relatos científicos e de viagem no iluminismo português: dois viajantes pelo sertão nordestino. In: JORNADA SETECENTISTA, VII. Curitiba, 3 set. 2000, CEDOPE/UFPR - PIBIC/CNPq. Disponível em: http://people.ufpr. br/~vii_jornada/BONATO_Tiago.pdf Luiz Mott

suas famílias para com comodidade tratarem da criação de seus gados.”14 Essa tendência de povoamento centrífugo e latifundiarista tinha duas razões de ser: não só respondia à cobiça dos sesmeiros, desejosos de grandes glebas, mas também à necessidade intrínseca à prática da pecuária extensiva, posto que, como observaram os naturalistas Spix e Martius, “na ocasião da seca se torna necessário movimentar as boiadas em grandes espaços, alternando pastos para que elas consigam achar capim seco e frutas, (daí) os grandes proprietários das grandes fazendas não quererem ceder porção alguma de suas terras (para moradia dos agregados), por considerarem indispensáveis as grandes extensões para atender à criação do seu gado”.15 Como se constata, um dos principais problemas que enfrentavam os povoadores do Piauí era a falta de cursos d’água perenes. Foi exatamente em vista de garantir o abastecimento regular e constante deste precioso líquido que os moradores tinham como prática solicitar doações de terra junto e à beira dos rios mais caudalosos. Tanto as Relações Nominais dos moradores da capitania, feitas pelos vigários regionais, como o principal documento setecentista relativo a esta região, a Descrição da Capitania de São José do Piauí, 1772, de autoria do ouvidor Antonio José de Morais Durão, tiveram como critério na enumeração das fazendas e sítios, sua localização à beira ou ao longo dos principais cursos fluviais. A este respeito, eis o que informa Pereira d’Alencastre, o ilustrado autor da Memória chronológica, histórica e corográphica da província do Piauhy: “As fazendas de gado vacum estão situa14

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Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Arq. 1.l.12, Ms. do Conselho Ultramarino, Relação da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória da Vila da Mocha do Sertão do Piauí do Bispado do Maranhão, pelo Vigário Antônio Luiz Coutinho, 11-4-1757, fl. 502-510. SPIX, J. B.; MARTIUS, C. F. P. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. p. 419-420.

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das sobretudo nas fraldas de vários olhos d’água que delas nascem. Para que no sertão uma fazenda mereça o nome de boa, deve ser primeiro bem provida de água, porque sendo o Piauí sujeito a secas, como todos os altos sertões do Brasil, as fazendas faltas de água são as primeiras que ficam despovoadas de seus gados.”16 Para as fazendas situadas distantes dos cursos fluviais perenes, a solução era levar o gado a beber “em lagoas e outras águas conservadas em tanques feitos por indústria dos habitantes, com muito trabalho e moléstia”.17 Escolhido o lugar para a instalação da nova fazenda, certificando-se da existência de boas aguadas, logo após levantar sua moradia, geralmente uma tapera de pau a pique coberta de folhas de palmeira, o vaqueiro logo construía um curral onde pudessem ser abrigadas as vacas paridas com seus bezerros logo que nascidos. As demais instalações vinham com o tempo e os progressos da criação. Charles Boxer diz que o primeiro cuidado ao se trazer o gado para uma nova propriedade era habituá-lo à novel localidade, evitando, dessa forma, que os animais se perdessem ou se extraviassem no meio do mato ou nos criatórios circunvizinhos.18 Não é difícil imaginar as dificuldades que deviam enfrentar os novos colonos ao chegarem ao Piauí, vindos do Maranhão, no primeiro quartel do século 18, trazendo consigo e tendo de supervisionar duzentas, trezentas e até seiscentas rezes de uma só vez.19 Embora o termo “curral”, segundo o ouvidor Durão, fosse a maneira como vulgarmente se chamavam as fazendas de gado no Piauí,20 há quem afirme o contrário, ou seja, que o 16

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PEREIRA D'ALENCASTRE, José Martins. Memória cronológica, histórica e corográfica da província do Piauí. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX, 1o trim., 1857. p. 69. Relação da freguesia de Nossa Senhora do Livramento do Parnaguá. BOXER, op. cit., p. 246. PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histórica do estado do Piauí desde os seus tempos primitivos até a proclamação da República. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1974. p. 37. Descrição da capitania de São José do Piauí, fl. 1.

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curral, ou melhor, os currais, eram apenas uma parte das fazendas: “Em cada fazenda devem haver pelo menos três currais, que tomam diversos nomes conforme o serviço que prestam. Chamam curral de vaquejada aquele em que se recebe o gado que tem de ser vendido, onde se tira o leite e onde se faz o rol de porteiras; curral de apartar o em que se recebe todo o gado indistintamente para ao depois ser distribuído pelas diferentes acomodações; curral de beneficio onde se recolhem os garrotes para serem ferrados e para se fazer as partilhas dos vaqueiros.”21 Escreveu José Alípio Goulart sobre a questão: “Antigamente, nas fazendas de criar do Nordeste, levantava-se primeiramente uma casa rústica de paredes de taipa e cobertura de duas águas. Para este mister preferiam-se as palmas da carnaubeira, muito abundantes na região. Os currais onde introduziam centenas de cabeças, eram armados com troncos de árvores deitados sobre forquilhas, formando losangos ou quadriláteros nas proximidades da casa.”22 Outro autor, Francisco Xavier Machado (1810), diz ter com toda a miudeza indagado in loco de um vaqueiro antigo a respeito do funcionamento das fazendas de gado, referindo-se aos retiros como sendo o estabelecimento maior, que compreendia inclusive os currais: “Retiro é uma certa porção de terras contíguas à mesma fazenda onde há currais e os necessários preparativos para tratar as crias nas ocasiões em que é preciso separá-las das mães.”23 Antonil, por sua vez, embora use indistintamente os termos “curral” e “fazenda”, parece, segundo a interpretação de Alice Canabrava, considerar o curral como uma parte da fazenda, local onde se reunia o gado uma vez por ano para sua 21 22

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PEREIRA D’ALENCASTRE, op. cit., p. 69. GOULART, J. A. Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: GRD, 1965. p. 122. MACHADO, Francisco Xavier. Memória relativa às capitanias do Piauí e Maranhão (1810). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVII, 3ª série, n. 13, 1º trim., 1854. p. 58.

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partilha. Casos havia de uma única fazenda de gado possuir vários currais.24 No que se refere aos tipos de terrenos aproveitáveis para a criatório bovino e equino, distinguiam-se no Piauí principalmente duas categorias de pastos: os do agreste e os de capim-mimoso, sendo este último o de melhor qualidade e que, por conseguinte, proporcionava maior rendimento aos fazendeiros: “Nas fazendas de pasto agreste, 300 vacas produzem 130 bezerros, sendo que as que parem em um ano, descansam o ano seguinte; nas fazendas de mimoso, em que o pasto é bastante suculento, 300 vacas produzem 250 bezerros anualmente, sem interrupção. O que se diz acerca do gado vacum é extensivo ao cavalar.”25 Não encontramos nos arquivos nenhum inventário setecentista que nos informasse a respeito do número de animais criados nas fazendas piauienses. Antonil diz existirem currais no sertão com duzentas até mil cabeças de gado vacum, de tal modo que, quando se reunia todo o gado dos vários currais de uma mesma fazenda, chegava a representar de seis a até vinte mil.26 Na falta de dados globais sobre todas as fazendas do Piauí, tomaremos como amostra as 31 de propriedade de Domingos Afonso Mafrense e que, conforme já dissemos, pertenceram em seguida, até o ano de 1760, aos Regulares da Companhia de Jesus, sendo após assumidas pela administração governamental, terminando sua complexa história como “dote” da princesa Isabel quando de suas núpcias.27

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ANTONIL, João Antônio. Cultura e opulência do Brasil, (1711). 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Introdução e vocabulário por A. P. Canabrava, p. 123, 307 et seq. PEREIRA D’ALENCASTRE, op. cit., p. 68. ANTONIL, op. cit., p. 309. PEREIRA D’ALENCASTRE, op. cit., p. 52 et seq. Luiz Mott

Tabela 3 - Número de bois e vacas por fazenda nº cabeças

Frequência

até 1000

8

1001 a 2000

8

2001 a 3000

10

3001 a 4000

3

5000

1

6000

1

A propriedade rural com o menor rebanho vacum possuía cem cabeças: era a chamada fazenda Caché, situada na Inspeção do Piauí, com a superfície de 2,5 léguas em quadra. A possuidora do maior número de reses era a fazenda do Castelo, com seis mil animais distribuídos em quatro léguas quadradas. Difícil é saber a área média de pasto necessária e disponível para cada cabeça de animal, em se tratando de área de capim-agreste ou mimoso. Aparentemente, não há uma correlação direta entre o número de léguas das referidas fazendas e o total de cabeças efetivamente possuídas: na fazenda do Julião, a mais extensa da Inspeção do Piauí, com setenta léguas em quadra, havia somente 1.200 reses, enquanto na citada fazenda do Castelo, com apenas quatro léguas em quadra, pastavam seis mil animais; havia outras duas fazendas, com idêntica extensão, que possuíam, uma quatro mil animais e outra, 2.500. Certamente, tamanha variação se explique pela maior ou menor disponibilidade de pasto nelas existente, independentemente da área total do latifúndio. Como dissemos alhures, em muitas fazendas, além da criação de bois e vacas, havia certo número de cavalos e éguas, geralmente em número inferior ao gado bovino. Tais animais eram criados com a finalidade de servirem aos vaqueiros no pastoreio e transporte das boiadas. Em 1782, por exemplo, enquanto os bovinos representavam nas extintas fazendas A pecuária no sertão do Piauí (1697-1818)

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dos jesuítas 50.670 cabeças, os cavalos e bestas atingiam apenas 2.870 unidades. Algumas fazendas se dedicavam exclusivamente à criação de cavalares, tais como as fazendas do Boqueirão, Cajazeiras, Espinhos; outras, embora possuindo sobretudo bovinos, abrigavam também algumas dezenas de cavalos e bestas.28 O gado bovino criado no Piauí pertencia à chamada raça “neoibérica”, recebendo localmente a denominação de “araçá”, “caracu” ou “laranjo”.29 Spix e Martius relataram que “o gado bovino é grande e bem formado, distinguindo-se pelos chifres compridos e pela diversidade do colorido”.30 Segundo vários autores, tanto do passado, como do presente, a animália oriunda das fazendas situadas em região mais úmida e habituada ao capim-mimoso era mais corpulenta, conseguindo melhor preço dentro e fora da capitania, muito embora, por ser mais delicada e sensível, era a que mais morria nos inóspitos caminhos que conectavam o Piauí à Bahia e ao Maranhão.31 Segundo avaliação de um tarimbado conhecedor da pecuária setecentista, “uma fazenda no seu estado florescente, não pode anualmente produzir mais de 800 até 1.000 crias. Destas, pelo cálculo que tem feito a longa experiência, não se pode extrair mais do que uma boiada de 250 ou 300 bois, deduzindo os dízimos e o quarto que é estipêndio do vaqueiro. As vacas, que pouco excedem no número, conservam-se sempre para a multiplicação, sustento e mais despesas que se fazem nas mesmas fazendas”.32 Embora contando com boas pastagens do capim-mimoso, que segundo especialistas no assunto se trataria talvez da melhor forrageira americana,33 vários fatores limitavam o 28 29

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PEREIRA D’ALENCASTRE, op. cit., p. 55. NEVES, Abdias. Aspectos do Piauí. Teresina: Tipografia “O Piauí”, 1926. p. 30. SPIX; MARTIUS, op. cit., p. 418. NUNES, Odilon. Op. cit., 1975, p. 199-200. Roteiro do Maranhão a Goiás, p. 80. MIRANDA, A. A. Estudos piauienses. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Brasiliana, 1938. v. 116, p. 142.

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pleno desenvolvimento da pecuária no sertão piauiense: morcegos, onças e cobras, ervas venenosas, etc. causavam grandes perdas aos rebanhos, sem falar que, notadamente, na época em que faltavam as chuvas, grandes epidemias infestavam os bovinos, morrendo rapidamente grandes quantidades de animais.34 O gado era geralmente criado solto, sempre com um badalo no pescoço para permitir sua localização na caatinga: como não havia cercas dividindo as fazendas umas das outras e existindo consuetudinariamente uma légua de terra de uso comum entre as mesmas, sucedia certamente que os animais de um proprietário se misturassem com os dos vizinhos. A maneira de se evitar tais perdas e descaminhos era marcar com ferro quente o dorso de todos os animais, além de fazerem certos talhos identificadores numa das suas orelhas, de maneira a distinguir as reses das diferentes fazendas. Nas propriedades dos jesuítas marcas distintas eram utilizadas para distinguir dois conjuntos de propriedades: os animais pertencentes à chamada Capela Grande eram ferrados com o sinal e os da Capela Pequena, com o sinal y.35 Variavam bastante, ao longo do ano, os trabalhos exigidos pela criação bovina: “Depende a criação do gado nessas regiões exclusivamente da chuva. Se no fim de dezembro entrar o tempo das águas, alcança até os fins de fevereiro o apogeu de sua abundância, começa então a diminuir de intensidade até fins de abril. Enchem-se de água naquela estação os inumeráveis açudes e covas, a terra amolece e o pasto cresce luxuriante. Durante este tempo as vacas que como todo o gado, vivem no campo, são tocadas para os cercados onde passam as noites, para serem mungidas de manhã e prepararem-se os queijos. Do mês de maio em diante, deixam-se de novo as 34 35

SPIX; MARTIUS, op. cit., p. 418. Arquivo Histórico Ultramarino, (doravante AHU), Piauí, Cx. 4, “Relação das boiadas que foram das fazendas pertencentes à Capela Grande e Capela Pequena”, 5-4-1773.

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vacas no pasto. Por vezes acontece passar o mês de fevereiro sem chuva, e torna-se então impossível a produção de queijos, porque o leite não chega a alcançar a quantidade e gordura necessária, e as manadas, a não serem algumas vacas para o serviço doméstico, precisam ficar sempre nos pastos.”36 Outro arguto observador, Pereira d’Alencastre, assim descrevia o ciclo anual dos pecuaristas do Piauí: “Os meses de novembro e dezembro (fim de verão) são as épocas mais abundantes de produção. Fazem-se as vaquejadas duas vezes no ano nas fazendas de grande criação, e isto sucede nos meses de janeiro e junho. Porém, nas pequenas fazendas, uma só vez. Os meses de janeiro e junho são o tempo mais feliz do fazendeiro e mais divertido para os vaqueiros que se empenham em provar muita perícia no exercício de suas funções. Nesses meses se fazem também as vaquejadas do gado grande, que tem de ser remetido para as feiras ou vendido nas porteiras dos currais aos negociantes ambulantes.”37 Vejamos o que os documentos sinalizam a respeito do valor representado pelo gado bovino no decorrer do século 18. Um boi “gordo e capaz de matalotagem” pesava entre nove e doze arrobas (132,2-176,3 kg) ao sair da porteira do curral.38 No caso de ser comboiado para a Bahia, a longa caminhada de mais de 22 léguas fazia-o perder muito peso. Não só as boiadas chegavam desfalcadas, já que vários animais se extraviavam ou morriam pelo caminho, como as rezes que conseguiam chegar à feira de Capoame, na porta de entrada do Recôncavo baiano, tinham perdido às vezes até um terço de seu peso ao iniciar a jornada de uma capitania para outra.39

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SPIX; MARTIUS, op. cit., p. 418. PEREIRA D’ALENCASTRE, op. cit., p. 68. Idem, p. 80. AHU, Piauí, Cx. 4, “Relação de todas as boiadas saídas das fazendas confiscadas aos regulares da Companhia de Jesus, enviadas à feira da Capoame na Bahia”, de 1770 a 1788, datado de 20-7-1789. Luiz Mott

Veniam petimus para citar uma página primorosa de Antonil, “Da condução das boiadas do sertão do Brasil, preço ordinário do gado que se mata e do que vai para as fábricas”, na qual se patenteia a acuidade etnográfica deste jesuíta italiano, reitor do Colégio da Bahia – que com igual expertise trata igualmente da cultura da cana-de-açúcar, do tabaco e da mineração, revelando-se também profundo conhecedor da pecuária sertaneja. “Constam as boiadas que ordinariamente vêm para a Bahia de 100, 150, 200 e 300 cabeças de gado; e destas, quase cada semana, chegam algumas a Capoame, lugar distante da cidade (Salvador) 8 léguas, aonde têm pasto e aonde os marchantes as compram; e em alguns tempos do ano há semanas em que, todo dia, chegam boiadas. Os que as trazem são brancos, mulatos e pretos e também índios, que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo uns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado, e outros vem atrás das rezes, tangendo-as, e tendo cuidado que não saiam do caminho e se amontoem. As suas jornadas são de 4, 5, 6 léguas, conforme a comodidade dos pastos aonde hão de parar. Porem, aonde há falta de água, seguem o caminho de 15 a 20 léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem paragem aonde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, põe uma armação de boi na cabeça, e nadando, mostra as reses o vão por onde há de passar. Quem quer que entrega a sua boiada ao passador, para que a leve das Jacobinas, v.g. até a Capoame, que é jornada de 15 ate 17 dias, lhe da por paga do seu trabalho um cruzado por cabeça da dita boiada. Porem, se no caminho algumas fugirem, tantos cruzados de diminuem quantas são as reses que faltam. Aos índios que das Jacobinas vem para Capoame se dão 4 até 5 mil reis, e ao homem que com o seu cavalo guia a boiada, até 8 mil reis. E por isso, do Rio de São Francisco acima, vindo para Capoame, alguns dos que trazem a sua conta trazer boiadas alheias, querem 6 ou 7 tostões por cada cabeça, e mais, se for maior a distancia. A pecuária no sertão do Piauí (1697-1818)

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Uma rês, ordinariamente, se vende na Bahia por 4 ate 5 mil réis; os bois mansos, por 7 para 8 mil reis. Nas Jacobinas, vende-se uma rês por 2.500 até 3 mil réis. Porem nos currais do rio de São Francisco, os que tem maior conveniência de venderem o gado para as minas, o vedem na porteira do curral pelo mesmo preço que se vende na cidade.”40 Uma arroba de carne bovina custava no açougue da vila da Mocha, em 1727, 80 réis,41 passando a valer, entre 1752 e 1754, aproximadamente 200 réis.42 De acordo com as Posturas e Taxas estabelecidas pela Câmara do Senado da vila de Campo Maior, tais eram, em 1764, os preços máximos dos animais: um vaca gorda, 1$500; uma vaca inferior, 1$200; um boi grande e gordo, 1$900 e um boiote, 1$600.43 Na Bahia, na feira da Capoame, o principal mercado pecuarista de todas as capitanias setentrionais, o preço dos animais parece ter se mantido bastante regular ao longo de quase dois decênios: tomando como exemplo as 34 boiadas das fazendas que foram dos jesuítas, pertencentes apenas à Inspeção de Nossa Senhora de Nazaré, notamos que entre 17701788 foram enviados 9.711 bois para a Bahia. Destes, quando os vaqueiros e tangedores vendiam alguns pelo caminho, seu preço importou, em média, 1$914. Na feira de Capoame, entretanto, os animais tiveram seu preço oscilante entre 3$000 e 4$500, sendo seu valor médio 3$641. As vacas, por sua vez, foram geralmente vendidas entre 2$300 e 4$700, apresentando o valor médio de 3$094.44 40 41

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ANTONIL, op. cit., p. 311 et seq. AHU, Piauí, Cx. 1, “Informação de Antônio Marques Cardoso a respeito da marchanteria da Vila da Mocha”, 1727. p. 23-29. AHU, Piauí, Cx. 6, “Preço de diferentes gêneros e fazendas do Piauí”, 17521754. AHU, Piauí, Cx. 3, “Posturas e taxas da vila de Campo Maior”, 24-8-1764. Esta lista de taxas encontra-se, com pequenas modificações, reproduzida igualmente em COSTA, Pereira da, op. cit., p. 79. AHU, Piauí, Cx. 4, “Mapa de todas as boiadas que têm saído das fazendas de gado do Real Fisco desta capitania desde o ano de 1770 até 1788 inclusive”, p. 2-3, 1789. Luiz Mott

Salvo erro, a última boiada enviada à Bahia partindo destas fazendas foi a do ano de 1788, pois os administradores dos criatórios reais decidiram, a partir de 1789, que era mais rentável aos cofres públicos vender as reses na porteira a quem as quisesse por conta própria revendê-las na Capoame, em vez de continuar a prática herdada ainda do tempo dos inacianos, de os próprios vaqueiros e tangedores das fazendas comboiarem os animais além do rio São Francisco. Assim, nos meados de 1789, nas porteiras das fazendas da Inspeção de Santo Inácio do Canindé vendiam-se bois dos pastos mimosos a 3$000 e os dos pastos agrestes, a 2$600; na Inspeção de São João do Piauí seu valor foi, indistintamente, de 2$800, enquanto que os animais procedentes da Inspeção de Nossa Senhora de Nazaré foram arrematados ao valor de 2$500 cada um.45 Se compararmos os preços do gado bovino com outros gêneros correntes no Piauí, notaremos que, efetivamente, a principal fonte de rendas desta capitania, tanto dos particulares, como dos cofres públicos,46 tinha baixa cotação no mercado interno. Entre 1752-1754, v.g., uma arroba de carne de vaca custava no Piauí, $200 réis, ou seja, aproximadamente $13 réis cada quilo. Três ovos de galinha custavam pouco mais do que um quilo de carne; com o valor que se pagava um queijo flamengo ou um chapéu “muito ordinário” podia-se comprar o equivalente a 73 quilos de carne bovina. Um par de meias de seda ordinária valia o exorbitante preço de 4$000, ou seja, quase a mesma quantia que se pagaria por dois bois dos mais corpulentos.47 Por volta de 1764, vemos que pelo mesmo preço de uma vaca gorda e grande podiam-se comprar 45

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AHU, Piauí, Cx. 7, “Consulta de Martinho de Mello e Castro ao rei a respeito do que fazer com as boiadas das fazendas dos proscritos jesuítas”, 7-1-1790. A respeito dos dízimos do gado vacum, consulte-se a lista das arrecadações de cada uma das vilas entre os anos de 1791 e 1804. In: PEREIRA D’ALENCASTRE, op. cit., p. 70-71. AHU, Piauí, Cx. 6, “Preço de diferentes gêneros e fazendas do Piauí, 17521754”.

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cinco galinhas, ou cinco patos, ou dois perus, ou ainda três frascos de aguardente comum; tratando-se de aguardente de boa qualidade, trocavam-se duas vacas das melhores por dois frascos e meio de tal bebida. Dois freios de cavalo ou dois pares de esporas valiam mais do que um boiote. Era preciso o equivalente ao valor de duas vacas das melhores para se mandar fazer a porta completa de uma casa. Para a confecção de um vestido, caso o tecido fosse ordinário, o oficial alfaiate cobrava o equivalente a duas vacas, subindo para três vacas das melhores se fosse um vestido de veludo ou seda. Um par de botas custava mais do que duas vacas inferiores.48 Afinal, “o que era um boi, para quem tinha 5 boiadas”? Voltemos à estrutura fundiária sertaneja. Infelizmente, os documentos por nós pesquisados pouco informam a respeito do tamanho das fazendas que existiam no Piauí espalhadas ao longo dos cursos d’água. As numerosas fazendas, sítios e datas de terra concedidas pelos governadores do GrãoPará e Piauí durante toda a primeira metade do século 18 especificam apenas a localização das doações em relação aos rios e lagoas, omitindo, porém, sua superfície. Tomando como amostra as propriedades que pertenceram a Domingos Afonso Sertão, e que depois de sua morte (1711) passaram a ser administradas pelos religiosos da Companhia de Jesus, podemos ter uma ideia aproximada da área média das fazendas existentes no Piauí no primeiro quartel do século 18:49 29 destes 33 imóveis rurais possuíam superfície superior ao limite máximo estabelecido por lei, sendo dezoito latifúndios com três a seis léguas, nove entre sete e dez, três propriedades na faixa de doze a dezesseis léguas e, finalmente, a já citada fazenda Crateus, com setenta léguas. Eram ropriedades enormes e com suas sedes muito distantes umas das outras. O citado primeiro vigário da Mocha 48 49

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AHU, Piauí, Cx. 3, “Posturas e taxas da Vila de Campo Maior”, 24-8-1764. PEREIRA D’ALENCASTRE, op. cit., p. 52-55. Luiz Mott

informava que em 1697 as fazendas de gado estavam ordinariamente situadas mais de duas léguas umas das outras.50 Nos meados dos setecentos, o arguto autor do Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania do Piauí relatava que, “pela mudança que há no Piauí tão sensível nas estações do tempo, chegando a faltar em muitas partes mesmo pasto seco, e toda a extensão do terreno muitas vezes não basta para que hajam lugares onde ele se conserve e se mantenham os gados, faz com que os moradores vivam pela maior parte dispersos e distantes três, quatro e cinco léguas uns dos outros”.51 Avaliação que coincide com a referida em 1757 pelo então vigário Antonio Luiz Coutinho, da mesma freguesia de Nossa Senhora da Vitória da Mocha: “Nas beiradas dos riachos assistem os paroquianos, criando gados vacuns e cavalares, distantes uns dos outros, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, dez e mais léguas, por morarem junto dos poços que ficam nos tais riachos do tempo do inverno.”52 Efetivamente, das 130 fazendas arroladas por este sacerdote, a maioria distava de seis a dez léguas uma da outra. Convém observar que nem todas as propriedades rurais existentes no Piauí eram latifúndios. Havia propriedades menos extensas, situadas geralmente nos brejos e em terras mais úmidas, onde parcela da população se dedicava à agricultura de subsistência. Muito embora a maioria dos moradores do Piauí “se interessava só na criação dos gados”,53 parcela dos rurícolas sempre se dedicou às imprescindíveis lides agrícolas. Já em 1697 referia o padre Carvalho que “nuns olhos d’água a que vulgarmente chamam brejos, nos quais está situado o Capitão Mor dos paulistas, Francisco Dias de Siqueira, com um arraial de tapuias, tem algumas plantas de farinha, arroz, milhos, feijões, frutas, como são bananas, batatas […]”. 50 51 52 53

Idem, p. 373. Roteiro do Maranhão a Goiás, p. 79. Relação da freguesia de Nossa Senhora da Vitória da Mocha. Roteiro do Maranhão a Goiás, p. 83.

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Os paulistas em questão eram bandeirantes que, juntamente com Domingos Jorge Velho, participaram das campanhas contra o Quilombo dos Palmares nas Alagoas.54 Todos os viajantes, memorialistas e autoridades que escreveram sobre o Piauí colonial são unânimes em referirse ao descaso com que os sertanejos tratavam este ramo de trabalho. Duas seriam, segundo eles, as principais causas do desprezo que relegavam o setor agrícola: a primeira de ordem ecológica, em razão das más condições climáticas, da ausência de chuvas regulares, da constância das secas, da pequenez dos cursos d’água, da natureza arenosa e lajeada da grande parte do território. De um total de 33 cursos d’água assinalados pelo padre Carvalho em 1697, apenas quatro ribeiras eram perenes, de modo que todos os demais riachos, nascentes e, mesmo, lagoas só possuíam água na estação chuvosa, tempo que era euforicamente chamado de “verde”.55 A segunda explicação para o menoscabo da agricultura remete-nos à vantagem econômica e excelência atribuídas pelos piauienses à pecuária. Com grande parte de seu território coberto pelo rico capim-mimoso – “62% das terras do Piauí são campos, catingas ou chapadas cobertas de pastagens extensas a se perder de vista”56 –, apesar das limitações advindas da seca e da falta de aguadas, o certo é que a pecuária representava para esta zona sertaneja não só uma saída, mas um grande negócio. Não eram, contudo, apenas os latifundiários que preferiam a pecuária, atraídos pelos lucros que auferiam pela sua prática em terras pouco propícias a outra atividade; desenvolveu-se também nesta área uma “ideologia pecuarista” que enaltecia a atividade criadora, depreciando o amanho da terra. Entre a gente do povo notava-se “uma tal inclinação para trabalhar nas fazendas de gados, que todos procuram 54 55 56

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ENNES, Ernesto. Op. cit., p. 379. DURÃO, Morais. Descrição da capitania de São José do Piauí, fl. 2. apud CASTELO-BRANCO, Renato. O Piauí: a terra, o homem, o meio. São Paulo: Quatro Artes, 1970. p. 41. Luiz Mott

com empenhos ser nelas ocupados, constituindo a sua maior felicidade em merecerem algum dia o nome de vaqueiro. Vaqueiro, criador ou homem de fazenda são títulos honoríficos entre eles e sinônimos com que se distingue aqueles, a cujo cargo está a administração e economia das fazendas”.57 Não obstante, não se conformavam alguns com tamanha preferência e exclusivismo pecuarista. O ouvidor Morais Durão assim opinava em 1772: “As negociações, manufaturas, tráficos e mais modos de florescer qualquer estado se reduzem aqui a desprezar tudo o que é ofício e trabalho, vivendo unicamente de gados e cavalos que os campos criam, dos frutos que o mato produz e de um pouco de mandioca que amestradamente plantam.”58 Consequência dessa extrema especialização pastoril é seu peculiar modus vivendi, refletido fortemente na rústica cultura material desta população sertaneja. Em sua Memória relativa às capitanias do Piauhy e Maranhão, o ilustrado viajante Francisco Xavier Machado, que percorreu esses sertões no ano de 1810, informou que a índole “d’estes povos é boa, e fáceis de levar aonde necessário for porem têm má educação, porque não tiveram de quem herdar: os mais ricos e abundantes vivem no sertão com caça, cães, espingardas, cavalos, enquanto os pobres são sujeitos à bebida da cachaça, a pitar, e ás danças e toques próprios do país, fáceis em cometer crimes, logo que a isso os induzam, desmazelados e preguiçosos: talvez a abundancia do país concorra para estes males, porque, atividade sem precisão, raras 59 vezes se encontra”. 57 58 59

Roteiro do Maranhão a Goiás, p. 88. Descrição da capitania de São José do Piauí, fl. 18. Roteiro do Maranhão a Goiás, p. 63. Para mais informações sobre aspectos socioculturais dessa região naquela época, cf. MOTT, Luiz. Inquisição no Piauí. Jornal Diário do Povo, 29 out. 1987; Conquista, aldeamento e domesticação dos índios Gueguê do Piauí: 1764-1770. Revista de Antropologia, USP, v. 30/31/32, 1987-1989, p 55-78; Um congresso de diabos e feiticeiras no Piauí colonial. In: BELLINI, Ligia et al. (Org.). Formas de crer. Ensaios de historia religiosa do mundo luso-afro-brasiloeiro, séculos XIV-XXI. Salvador: Corrupio, Edufba, 2206. p. 129-160.

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Vejamos na Tabela 4 como se desenvolveu a população do Piauí durante o primeiro século de sua história. Tabela 4 - População do Piauí: 1697-1799 Ano

Habitantes

1697

438

1762

12.744

1772

19.191

1777

26.094

1799

51.721

Fontes: 1697: CARVALHO, M. Op. cit., 1938, p. 370-389; 1762: Resumo de todas as pessoas livres e cativas…; 1772: Descrição da capitania de São José do Piauí; 1797: Investigações sobre os recenseamentos da população geral do Império e de cada província de per si tentados desde os tempos coloniais até hoje. SOUSA E SILVA, J. N. de. Rio de Janeiro, 1870. p. 37; 1799: idem, ibidem.

Certamente, os primeiros 438 habitantes do Piauí, aí vivendo em 1697, contando com apenas quarenta representantes do sexo feminino, não se multiplicariam a tal ponto que em um século perfariam um total de 51.721 indivíduos. O crescimento demográfico desses sertões, portanto, nas primeiras décadas que se seguem à conquista deveu-se mais à chegada de imigrantes do que ao crescimento vegetativo das primeiras famílias dos colonizadores ou à incorporação de contingentes populacionais autóctones (ameríndios). Diferentemente do que ocorreu, por exemplo, no extremo meridional do Brasil, onde a Coroa Portuguesa patrocinou significativa corrente imigratória vinda dos Açores a fim de povoar Santa Catarina e o Rio Grande do Sul, nos anos 1740, o Piauí nunca mereceu qualquer atenção governamental no sentido de trazer imigrantes para os seus sertões. Nem sequer houve imigração espontânea de europeus: o clima excessivamente quente, a aridez de grande parte de seu território, o espectro constante das secas periódicas, a falta de porto marítimo, além da temida ameaça do gentio brabo, tudo isso estava longe de fazer do Piauí o eldorado buscado pelos imigrantes europeus. 38

Luiz Mott

Destarte, a imigração para o Piauí, notadamente nas primeiras décadas do século 18, provém da zona açucareira nordestina. Se o século 17 fora particularmente benéfico para a agroindústria da cana, no final dos seiscentos e início do século 18, a concorrência do açúcar das Antilhas levou a que o preço desse produto sofresse dramática baixa no mercado internacional, levando à bancarrota grande número de senhores de engenho do Nordeste brasileiro e à decadência de significativa porção da área açucareira. “A estagnação da produção açucareira não criou a necessidade de emigração do excedente da população livre formado pelo crescimento vegetativo desta. Não havendo ocupação adequada na região açucareira para todo o incremento da população livre, parte desta era atraída pela fronteira móvel do interior criatório. Dessa forma, quanto menos favoráveis fossem as condições da economia açucareira, maior seria a tendência imigratória para o interior.”60 Os pedidos de doações de terra no Piauí durante o século 18 revelam, efetivamente, a presença de inúmeras famílias vindas quer do Recôncavo da Bahia, quer do Maranhão.61 Tais migrantes buscavam o Piauí não apenas para fugir do marasmo econômico decorrente da estagnação da economia canavieira, mas certamente atraídos por um verdadeiro “boon pecuarista” provocado pela crescente demanda de gado por parte das Minas Gerais. Um boi que os senhores de engenho estavam acostumados a pagar de £ 1 a £ 2 chegava a valer nas minas o exorbitante preço de £ 39!62 Assim, não apenas os brancos buscam os sertões piauienses, mas igualmente toda sorte de gentes, “evacuando todas as capitanias vizinhas dos maus humores que as alteravam: criminosos, insolentes, falidos… Vinham os pretos parte em cativeiro, parte fugitivos das mais comarcas e todos vieram a 60 61

62

FURTADO, C. Op. cit., 1964, p. 81. Sesmarias Piauienses. Revista do Instituto Geográfico e Histórico Piauiense, tomo II, p. 125 et seq., 1922. BUESCU, M. Op. cit., 1970, p. 188.

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misturar e confundir, tornando um só povo. Raríssimos são os reinóis que do Reino vieram dirigidos para estes sertões”, dizia o citado Ouvidor Durão.63 Após um século de sua descoberta, o panorama demográfico da capitania de São José do Piauí, que então adotara o nome do soberano reinante, era o apresentado na Tabela 5. Tabela 5 - Composição da população do Piauí quanto à cor: 1772 Homens

Mulheres

Total

Brancos

1.885

(17,7%)

1.320

(15,5%)

3.205

(16,7%)

Mestiços

4.372

(41,0%)

4.140

(48,6%)

8.512

(44,4%)

Negros

3.856

(36,1%)

2.487

(29,2%)

6.343

(33,0%)

575

(6,7%)

1.131

(5,9%)

8.522 (100,0%) 19.191

(100,0%)

Índios Total

556

(5,2%)

10.669

(100,0%)

Fonte: Idem, ibidem, Mapa geral da Capitania do Piauí.

Os brancos, que em 1697 representavam 35,3% da população, em 1772 diminuem para a metade, 16,7%: como dissemos, os luso-descendentes do Piauí vieram notadamente da Bahia e do Maranhão, capitanias, aliás, onde a população caucasoide igualmente era bastante reduzida.64 A grande massa populacional, 83,3%, era “de cor”: sendo o grupo dos “mestiços” o mais numeroso. Sob esta denominação se englobavam, então, as mais variadas combinações fenotípicas: mulato (branco e negro), mameluco (branco e índio), caful (preto e índio), cabra (preto e mulato), curiboca (mulato e índio).65 Parte desses mestiços era livre, parte vivia no cativeiro. Os índios representavam apenas 5,9% da população total; tudo faz crer que deviam existir ainda alguns grupos indígenas em estado tribal, vivendo distantes dos núcleos civilizados e, por 63 64

65

40

Descrição da capitania de São José do Piauí. GAYOSO, Raimundo J. S. Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Maranhão. Paris: P. N. Rougeron, 1818. p. 115 et seq.; AZEVEDO, Thales. Povoamento da cidade do Salvador. Bahia: Itapuã, 1969. Descrição da capitania de São José do Piauí. Luiz Mott

conseguinte, omitidos no recenseamento do ouvidor Durão.66 O importante, entretanto, é a revelação de que em 1697 os índios vivendo nas fazendas de gado representavam apenas 13,5% da população total do Piauí e que em 1772, em toda a capitania, os ameríndios não chegavam a 6%, portanto, o menor grupo étnico regional. Numa amostra de 30% das fazendas piauienses, em 1762, os índios representavam apenas 3,9% da população; apenas 19,2% desses imóveis rurais possuíam um ou mais índios, neste total incluídas as mulheres e crianças.67 Tais números nos obrigam a repensar as afirmações tradicionalmente repetidas por destacados historiadores econômicos, como Celso Furtado, de que “os indígenas se adaptavam facilmente à pecuária. Tudo indica que foi com base na mão-de-obra local que se fez a expansão da atividade criatória”.68 Os negros, que em 1697 representavam 48% da população, reduziram-se para 33% em 1772, sendo, na sua maior parte, escravos. “Da gente livre, a que pertence à classe dos pretos, é tão pouca, que com ela se não pode certamente formar um batalhão de cavalaria, porque nem ainda nas maiores freguesias haverá pretos livres para batalhão mediano”, informava ao rei o primeiro governador da capitania de São José do Piauí.69 Utilizando a mesma amostra das 130 fazendas que pertenceram à Companhia de Jesus (1762), constatamos que os escravos representavam 45,8% da população rural, estando presentes em 67,8% dos domicílios. Ora, se nos finais do século 18 para todo o Brasil calcula-se que cativos representa66

67

68 69

Diário dos mais notáveis acontecimentos da guerra aos pimenteiras, por Antonio do Rego Castelo Branco. Lagoa do Tabuleiro, 30-7-1779. In: OLIVEIRA, Ana Stela de Negreiros. O povoamento colonial do sudeste do Piauí: indígenas e colonizadores, conflitos e resistência. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006. Rol de desobriga do distrito da freguesia da Nossa Senhora da Vitória da cidade de Oeiras, Dionísio José de Aguiar, 29-5-1763, AHU, Cx. 3. FURTADO, C. Op. cit., p. 75-76. Carta do governador João Pereira Caldas, ao ministro do Ultramar, 25-6-1766. In: COSTA, Pereira da. Op. cit., p. 82.

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vam, aproximadamente, 38,6% da população total,70 concluise que o trabalho escravo também foi fartamente empregado na zona pastoril. Tais dados nos obrigam, igualmente, a rever o papel da escravidão na atividade criatória, pois até então ilustres historiadores econômicos, como Caio Prado Jr., Celso Furtado, Roberto Simonsen, dentre outros,71 foram unânimes em afirmar que “a extrema dispersão inerente ao pastoreio tornou incompatível o escravismo”,72 ou “o trabalho é em regra livre; nestes territórios imensos, pouco povoados e sem autoridades, é difícil manter a necessária vigilância sobre trabalhadores escravos”.73 Nossos dados evidenciam exatamente o contrário: que desde o início e ao menos durante todo os setecentos, a pecuária piauiense dependeu substantivamente da mão de obra escrava afro-descendente. Embora existindo lugar para o trabalho livre, inclusive indígena, o escravo negro sempre foi presença majoritária e indispensável nas fazendas de criatório, superior ao braço indígena, quiçá mesmo ao braço livre. Por meio da Relação dos róis de desobrigada freguesia de Nossa Senhora da Vitória da Mocha podemos reconstituir o perfil da estrutura demográfica das fazendas piauienses no ano de 1762. Tal Relação inventaria 162 unidades agropastoris, 30% das propriedades rurais da capitania, cobrindo um total de 302 fogos, quase 20% dos domicílios da zona rural, nos quais viviam 2.406 pessoas – 18,8% da população total da capitania. Trata-se, portanto, de uma amostra significativa e que cobre a área de colonização mais antiga.

70

71

72

73

42

ALDEN, Dauril. The population of Brazil in the late eighteenth century: a preliminary study. Hispanic American Historical Review, 43, 1963. PETRONE, Teresa S. As áreas de criação de gado. In: História geral da civilização brasileira, 1960, p. 218-227. História nova do Brasil, Vários autores, São Paulo: Editora Brasiliense, 1965. p. 201. PRADO JR., C. Op. cit., p. 45. Luiz Mott

Tabela 6 - Número de fogos por fazenda: 1762 No de fogos

Frequência

1 2 3 4 5 6 11 40 Total

113 27 10 5 2 3 1 1 162

Fonte: Relação dos róis de desobrigada freguesia de Nossa Senhora da Vitória da Mocha, em 1762.

Setenta por cento das fazendas piauienses possuíam apenas um domicílio. Embora os documentos não esclareçam por que em certas áreas predominavam fazendas com duas ou mais residências, poderíamos levantar algumas hipóteses. Certas fazendas possuíam mais de um domicílio como estratégia defensiva contra a ameaça dos silvícolas circunvizinhos; ou então, zonas mais propícias à lavoura, como dissemos anteriormente, atrairiam mais moradores; ou, ainda, fazendeiros com rebanho muito grande nas zonas de melhores pastagens permitiriam a fixação de “moradores de condição” e “agregados”, a fim de trabalharem no cuidado dos animais. Aliás, esta parece ser a opinião do ouvidor Durão, quando diz que nas fazendas, “além dos senhorios ou seus feitores, vaqueiros, escravos e mais pessoas que nelas moram como uma só família, há muitas outras que chamam agregados, e são de duas formas: uns que em algumas ocasiões servem como criadores inerentes às famílias, outros que nem servem, nem na família se incluem, antes têm fogo separado, posto que dentro da mesma fazenda”.74

74

Descrição da capitania de São José do Piauí.

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Chama a atenção no quadro acima a existência de uma propriedade rural com nada menos do que quarenta fogos: trata-se da fazenda da Canavieira, na Ribeira do Itaim. Se de fato havia plantações de cana em tal estabelecimento, como sugere seu topônimo, que justificasse a presença de tantos moradores, é dado que os documentos infelizmente omitem. Ao todo viviam nesta fazenda 152 pessoas (3,8 habitantes por casa) entre livres e escravos, população que, reunida, ultrapassava em número cada uma das seis vilas existentes no Piauí, já que apenas a capital, Mocha, congregava maior número de fogos. O arranjo residencial mais repetido é o que agregava três pessoas (14,2%), sendo que 43,4% dos fogos possuíam de um a cinco moradores; 32,5% de seis a dez; 19,9% de onze a vinte; 2,6% de 21 a trinta; 1,3% de 31 a quarenta; apenas uma fazenda ostentava o espantoso número de quarenta pessoas vivendo numa única habitação – moradia que devia parecer mais uma maloca tapuia do que uma casa grande senhorial. O número médio de pessoas por fogos, que em 1697 era de 3,3, passou em 1762 para 7,9; de acordo com o Mapa Geral do Piauí deste mesmo ano, havia uma média de 6,2 habitantes por fogos em toda a capitania, mantendo-se praticamente a mesma média, 6,3, no ano de 1772. A grande massa escrava concentrava-se nas propriedades rurais: dos 302 fogos do distrito da Mocha, 202 (66,9%) possuíam cativos, sendo que das 162 fazendas, 146 contavam com escravos, o que representa mais de 90% das propriedades rurais da área. No início da colonização do Piauí, das 129 fazendas existentes em 1697, 109 (85%) possuíam escravos, das quais 70% contavam com um a dois cativos. A fazenda possuidora do maior número de escravos abrigava então seis negros. Em 1762 o panorama se diversifica: 63,1% das fazendas possuía de um a cinco escravos; 26,9%, de seis a dez; 6,5%, de onze 44

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a quinze e, finalmente, 3,5%, mais de dezesseis escravos. A fazenda possuidora da maior escravaria dispunha de 29 indivíduos, sendo dezessete homens e doze mulheres, situação bem diversa da observada na zona açucareira, onde um engenho regular possuía, em média, cinquenta escravos, havendo vários deles com mais de “duzentas peças”, dados levantados pelo mestre Antonil.75 Nessa época, conforme dissemos anteriormente, os escravos representavam 45,8% da população distrital. Dos 1.102 escravos das fazendas, 706 eram do sexo masculino (64%), explicando-se essa alta relação de masculinidade pelo fato de a pecuária ocupar exclusivamente mão de obra masculina. Como em muitas fazendas, além do criatório de bovinos e cavalares, desenvolvia-se igualmente a agricultura de autossubsistência – “roças e engenhos” – conforme se expressa o ouvidor Durão, certamente o trabalho agrícola, assim como a fiação do algodão e tecelagem, deviam ser confiados às escravas. Como antecipamos, nem todos os imóveis rurais existentes no Piauí durante os séculos 17 e 18 eram latifúndios, nem se dedicavam exclusivamente à criação bovina. Havia propriedades menos extensas, geralmente situadas nos brejos e terras mais úmidas, onde se plantavam gêneros de subsistência. Enquanto se restringia o uso do termo “fazenda” àquelas propriedades onde se criava gado vacum e cavalar, “sítios” eram chamadas as terras onde se cultivava, sendo separadas das áreas de criatório. Para o ouvidor Durão, o termo “sítio” abrangia igualmente as roças e engenhocas de açúcar.76 Na freguesia da Mocha, por exemplo, relatava seu vigário que circunvizinhos à vila viviam “alguns moradores na distância de uma légua, que tratam de algumas pequenas roças de mandioca, milhos, arrozes”.77 Na freguesia de Parnaguá, por 75 76 77

ANTONIL, J. A. Op. cit., p. 140. Descrição da capitania de São José do Piauí. Relação da freguesia de Nossa Senhora da Vitória da Mocha.

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sua vez, referia seu pároco que na “fazenda chamada Jacaré, tem uma capela de Nossa Senhora da Conceição e capelão, com dez moradores que vivem de suas lavouras. Mais adiante, a 10 léguas da fazenda Mimosa, tem um lugar chamado Brejo, que terá quinze moradores, terra de roças e fumos”.78 De um total de 56 propriedades rurais arroladas em 1757 na freguesia da Mocha, 53 eram referidas como sendo fazendas de gado, três como “terras de roça”.79 Dentre as 148 doações de terra feitas no Piauí entre 1728 e 1746, observamos que 99 sesmarias (mais de 66%) são referidas como “sítio”, dezenove como “fazenda” e trinta com denominações variadas, tais como “data de terra”, “lugar”, “uma sorte de terras”, etc.80 Do total de 81 propriedades rurais que possuíam os jesuítas no Piauí e que foram confiscadas em 1760, quando de sua expulsão, 32 eram denominadas como fazendas de gado, 49 como sítios.81 Sendo a Descrição da capitania de São José do Piauí, de autoria do ouvidor Morais Durão, o documento mais completo relativo à distribuição das fazendas e sítios desta capitania, vejamos então, baseando-nos nele, o que seu autor acrescenta sobre o tema. 1) As fazendas de gado representavam 62,2% do total das propriedades rurais, os sítios, 37,8%. Malgrado a afirmação constantemente repetida por viajantes, memorialistas e historiadores de que só a pecuária vingava no Piauí, tanto as doações das sesmarias, conforme vimos, como esta estatística

78

79 80 81

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Arq. 1.1.12. Ms. do Conselho Ultramarino, Relação da freguesia de Nossa Senhora do Livramento do Parnaguá, a última do bispado do Maranhão, pelo vigário Francisco da Costa Silva, 1757, fl. 530-536. Relação da freguesia de Nossa Senhora da Vitória da Mocha. COSTA, Pereira da. Op. cit., p. 37 et seq. Arquivo Histórico da Secretaria de Estado das Relações Exteriores (Itamarati), Lata 267, maço 2, pasta 1, Relação de todos os bens de raiz e por tais seculares, que possuíram e administraram os regulares da companhia denominada de Jesus nesta capitania de São José do Piauí, 25-1-1762.

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do ouvidor Durão revelam que os sítios de lavoura eram bem mais numerosos do que se propalava. 2) No que se tange à localização dessas propriedades rurais, notamos que, via de regra, as fazendas estão situadas fora do subúrbio das vilas, isto é, ao menos distantes uma légua em circunferência das mesmas, isso com exceção de Valença e Campo Maior, que inexplicavelmente constam como tendo quatro e sete fazendas, respectivamente, situadas dentro do próprio subúrbio do vilarejo. Os sítios, por sua vez, localizam-se mais perto das sedes administrativas: 35,7% dos sítios do Piauí estavam situados dentro da circunferência de uma légua em derredor das vilas da capitania. A única vila que não possuía sítio nem fazenda no seu “subúrbio” era a de Parnaguá, talvez pelo fato de ter “junto a si um lago com 5 léguas de circunferência”. É também Parnaguá a localidade que possuía o maior número de estabelecimentos dedicados à agricultura: 103, ou seja, 30% do total dos sítios da capitania; em contrapartida, era a freguesia possuidora do menor número de fazendas dedicadas à pecuária: apenas onze estabelecimentos consagravam-se com exclusividade ao criatório de gado vacum e cavalar. Antes de concluir, convém tratar de um tema fundamental nos estudos sobre a pecuária sertaneja: o propalado absenteísmo dos proprietários rurais. Raro foi o autor que ao escrever sobre o sertão nordestino não se referisse à figura do proprietário ausente. Euclides da Cunha, por exemplo, diz que, “ao contrário do estancieiro do Sul, o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem parasitariamente as rendas das suas terras, sem divisas fixas”.82 Caio Prado Júnior completa: “O que prevalece na pecuária é o grande proprietá82

CUNHA, Euclydes. Os sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929. p. 112.

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rio absenteísta, senhor às vezes de dezenas de fazendas, que vive nos centros do litoral, cujo contacto único com suas propriedades consiste em receber-lhes os rendimentos.”83 Maurício Vinhas compartilha da mesma opinião: “A maioria dos latifundiários não vive nas fazendas e estas são dirigidas por seus administradores, arrendatários ou empreiteiros, o que contribui para imprimir aos latifúndios o caráter antieconômico e anti-social!”84 Também Jacob Gorender: “No Nordeste e no Rio Grande do Sul o domínio da economia pecuária se concentrou em mãos de um punhado de grandes criadores, proprietários de várias fazendas e titulares de sesmarias de dezenas de léguas. No Nordeste, esses grandes proprietários eram absenteístas, pois entregavam os currais à administração dos vaqueiros e aforavam boa parte dos seus latifúndios.”85 O piauiense Odilon Nunes, o principal pesquisador da história desta região, também divulga essa mesma ilação: “Ricos sesmeiros, senhores de grande prestígio, viviam em Salvador e Olinda.”86 Os informes do primeiro missionário a percorrer tais paragens, o várias vezes citado padre Miguel de Carvalho, evidenciam claramente que, de fato, bem no início da atividade ganadeira, o senhor estava ausente: em 1697, dentre as 129 primeiras fazendas do sertão do Piauí, apenas doze eram zeladas por seus próprios donos, quer dizer: 90% das fazendas restantes tinham proprietários absenteístas. Porém, um século após a conquista – e daí por diante – a situação se revela completamente diversa daqueles tempos pioneiros: a população aumenta e se equilibra, surgem algumas vilas e povoações, a maior parte dos índios estava reduzida em missões, as comunicações com outras capitanias se tornam mais frequen83 84

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48

PRADO Jr., op. cit., 1957, p. 187. VINHAS, Maurício. Problemas agrários do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. p. 87. GORENDER, Jacob. 1978. O escravismo colonial. São Paulo: Ática. NUNES, Odilon. Op. cit., 1975, p. 72. Luiz Mott

tes. Dois documentos fundamentais, a Descrição da capitania de São José do Piauí, de 1772 e a Relação das fazendas e seus possuidores, de 1818, nos informam com precisão o número total das propriedades rurais da capitania e o número das propriedades cujos senhorios residiam fora da fazenda. Tabela 7 - Fazendas do Piauí (1772-1818) Distritos Oeiras Parnaguá Geromenha Valença Marvão Campo Maior Parnaíba Total

No de propriedades 1772 1818 285 167 77 274 115 339 104 459 89 283 140 670 123 268 931 2460

Absenteísmo 1772 1818 56 11 5 8 6 20 7 28 4 37 16 40 13 26 107 170

Porcentagem 1772 1818 19,6% 6,5% 6,4% 2,9% 5,2% 5,8% 6,7% 6,1% 4,4% 13,0% 11,4% 5,9% 7,9% 9,7% 11,4% 6,9%

Fonte: Descrição da capitania de São José do Piauí, de 1772; a Relação das fazendas e seus possuidores, de 1818.

Tais dados comprovam que as propriedades rurais (fazendas de gado e sítios de lavoura) cresceram entre 1772 e 1818 na razão de 2.6, saltando de 931 para 2.460 imóveis, aumento que se explica notadamente pela conquista de novas áreas territoriais até então ocupadas pelo gentio bravo87 e pelo retalhamento de antigos latifúndios através de herança partilhada e venda. Conclui-se, por conseguinte, que em 1772 11,4% dos fazendeiros do Piauí eram absenteístas; 46 anos depois, em 1818, seu número baixa para 6,9%, destronando, por conseguinte, o mito da predominância do absenteísmo na pecuária sertaneja. Nossos dados acima apresentados corrigem igualmente as opiniões de diversos historiadores e economistas, relati87

MOTT, Luiz. Os índios do Piauí e a pecuária nas fazendas de gado de período colonial. Revista de Antropologia (USP), v. 22, p. 61-78, 1979; Etnohistória dos índios do Piauí. Mensário do Arquivo Nacional, n. 7, p. 15-30, 1981.

A pecuária no sertão do Piauí (1697-1818)

49

vamente à presença indígena no Piauí Colonial e nas zonas pecuárias nordestinas, assim como sobre a importância do trabalho do escravo negro, a saber: 1) Aires de Casal equivocou-se quando supôs que “a redução ou repulsa das várias nações de índios do Piauí não custou tanto tempo nem fadigas e dispêndio de cabedal e gente como em outras partes”.88 A tenaz resistência dos índios, cristalizada em forma de fuga para outras regiões distantes, em assaltos e incêndio de fazendas, em constantes “guerras de corso” – isto até às vésperas da Independência – mostra de maneira cabal o quanto foi demorado, custoso e sangrento neutralizar a justa hostilidade dos primitivos donos da terra. A extrema violência e crueldade dos colonizadores podem, inclusive, ser interpretadas como resposta à braveza e indocilidade destes silvícolas, considerados então como “os mais bravos e guerreiros que se acharam no Brasil”. 2) A afirmação de Roberto Simonsen de que “os criadores estabeleceram um modus vivendi pacífico com os íncolas” não tem respaldo factual, pois a violência extremada foi a forma mais usual e diária de contato entre brancos e índios. Os episódios de genocídio das populações aborígines permeiam todo o século 18 e a raridade em nossos dias de remanescentes aldeias ou missões indígenas no Piauí reflete a violência exterminadora do contato dos brancos com os diversos povos tribais que ocupavam aquelas brenhas. 3) Celso Furtado enganou-se também ao afirmar que “o recrutamento de mão-de-obra para a atividade criatória não parece haver constituído problema, pois o elemento indígena se adaptava fácil e rapidamen-

88

CASAL, Aires de. Corografia brasílica. São Paulo: Ediusp; Itatiaia, 1976. p. 291.

50

Luiz Mott

te às tarefas auxiliares da criação”.89 A presença de numeroso contingente de índios “domesticados” nas aldeias, marginalizados e desprezados pelos fazendeiros, ratifica que os íncolas não eram tão desejados e indispensáveis como mão de obra. Além disso, nossos dados estatísticos comprovam enfaticamente que os índios sempre foram menos numerosos nas fazendas de gado do que os escravos negros e mestiços. Em 1697 os índios (do sexo masculino) estavam presentes em apenas 24% das fazendas de gado, representando somente 9% da mão de obra potencialmente empregada no pastoreio. Em 1762 são ainda menos numerosos: os aborígines aparecem em 13,9% das propriedades rurais estudadas, perfazendo tão somente 3,6%, da população potencialmente aproveitável no criatório.90 Infelizmente, não há informação precisa sobre de quais serviços eram encarregados os índios residentes nas fazendas de criatório. Azeredo Coutinho diz que eram os silvícolas excelentes peões, muito destros na arte de laçar e de trabalhar aqueles gados, apanhando-os (na catinga), recolhendo-os nos currais e conduzindo-os em boiadas para as povoações e cidades. Completa informando que índios eram empregados na preparação de carnes secas e salgadas, a principal indústria da vila de Parnaíba, no delta do rio do mesmo nome. Celso Furtado, como vimos, diz que os índios eram ocupados “nas tarefas auxiliares da criação”: Quais seriam essas tarefas? O que sabemos ao certo é que muitos índios eram empregados no comboio de boiadas das fazendas do Piauí para a feira de Capoame. Assim, entre 1770-1788, saiu das antigas fazendas da Companhia de Jesus um total de 34 boiadas. Encarregavam-se do comboio dos animais, além do vaqueiro-passador, os seguintes especialistas: guias, cargueiros e tangedores. 89 90

FURTADO, Celso. Op. cit., p. 75. Idem.

A pecuária no sertão do Piauí (1697-1818)

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Com exceção do passador, principal responsável pelas boiadas, as demais funções eram ocupadas ora por escravos, ora por livres assalariados. Os índios aparecem empregados apenas na função de tangedores, recebendo com estipêndio, no final do comboio, de 10 a 12$000, pelo transporte da boiada até a feira de Capoame. De um total de 210 tangedores ocupados nas sobreditas 34 boiadas, 51 eram índios (24%). 4) Finalmente, também incorreta é a afirmação de Caio Prado Jr. e de outros de que no sertão pecuarista “o trabalho é em regra livre. Nestes territórios imensos, pouco povoados e sem autoridades, é difícil manter a necessária vigilância sobre trabalhadores escravos”.91 Apenas 23 anos após a descoberta do Piauí, os escravos de ambos os sexos representavam 48% da população total, estando presentes em 84% das unidades residenciais. Em 1762, 55% dos habitantes das fazendas estudadas são pretos e mestiços vivendo no cativeiro, encontrando-se, então, um ou mais cativos em 90% das propriedades pastoris. 5) Se nos primórdios da colonização – 1697 – 90% das fazendas de gado tinham proprietários absenteístas, nossos dados não deixam dúvida de que a partir dos meados do século 18 o absenteísmo era exceção na estrutura fundiária do Piauí: 11,4% em 1772, apenas 6,9% em 1818. O erro da maior parte dos nossos historiadores econômicos foi generalizar para todo o período colonial e imperial uma realidade que se restringiu claramente apenas às primeiras décadas do criatório bovino. O pioneiro Capistrano de Abreu chegou a perceber essas duas fases na pecuária cearense, porém seus seguidores deixaram de explicitá-las.92

91 92

52

PRADO Jr., Caio. Op. cit., 1956, p. 45. ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800); Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Brasília: EdiUnB, 1963. Luiz Mott

Fazendas, cativos e gado na história do Tocantins Adelmir Fiabani* Em 1988, quando da Assembleia Nacional Constituinte, criou-se o estado do Tocantins, concretizando-se o antigo sonho da população tocantinense, de separação com o estado de Goiás. Portanto, quando nos referirmos ao norte de Goiás, estamos falando da história tocantinense anterior à emancipação. O mais novo estado da federação nasceu com um quadro ecológico privilegiado, dotado de muitos recursos naturais ainda preservados. O clima é tropical semiúmido; as chuvas são regulares de novembro a abril, permanecendo o restante do ano com dias ensolarados e quentes. O estado é irrigado por vários rios, destacando-se o Tocantins e o Araguaia, que se encontram na região do Bico do Papagaio, conhecida pelos enfrentamentos entre os fazendeiros e sem-terra. Nas margens dos rios que banham o estado encontram-se terras excelentes para a formação de pastagens e criação de gado, nas quais se iniciaram os primeiros núcleos criatórios da região. São importantes as dificuldades quanto às fontes para abordarmos a atividade criatória do Tocantins. Não há ainda no estado um arquivo público que reúna grande quantidade *

Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, professor Adjunto da Universidade Federal do Tocantins. Autor do livro Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004). 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

Fazendas, cativos e gado na história do Tocantins

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de documentos relacionados à sua história. A documentação referente ao Tocantins está dispersa em arquivos na Bahia, Goiás, Maranhão, Portugal, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, etc. Outra dificuldade encontrada foi a identificação dos nomes dos lugares. Por ocasião da criação do estado do Tocantins, o governador da época determinou a troca das denominações das localidades que apresentavam as expressões “do Norte” ou “de Goiás” por “do Tocantins”. Antes mesmo desse decreto, muitos lugares haviam mudado de nome. Portanto, apresentamos um quadro com os nomes antigos e suas atuais designações. Quadro 1 - Antigos nomes de localidades pertencentes a Goiás com a atual denominação Nome antigo Boa Vista Brejo Travessia do Brejo Cachoeira das Três Barras Santo Antônio da Cachoeira Carmo Chapada dos Negros Formiga Itaporé Livra-nos Deus Lontra Petrolina Paz Travessia dos Gentios Piabanha Piaus Porto Real Porto Real do Pontal Porto Imperial São Luís Traíras D’Ouro Duro São José D’Ouro São José do Duro Vila do Duro

54

Estado GO

Designação atual Tocantinópolis

Estado TO

GO

Taguatinga

TO

GO GO GO GO GO

Itaguatins Monte do Carmo Arraias Pindorama Cristalândia

TO TO TO TO TO

GO

Araguaína

TO

GO GO GO

Pedro Afonso Tocantínia Piuim

TO TO TO

GO GO GO

Porto Nacional Natividade Niquelândia

TO TO TO

GO

Dianópolis

TO Adelmir Fiabani

Apesar das dificuldades, realizaremos estudo exploratório, com base nos viajantes e na historiografia. Inicialmente, abordaremos como se deu a introdução da atividade pastoril no norte de Goiás e, na sequência, analisaremos o sistema de criação, sobretudo nos aspectos relacionados à fazenda: terra, trabalhadores e relações de trabalho, técnicas de criação. Posteriormente, apresentamos na ordem cronológica os relatos dos viajantes que visitaram o atual estado do Tocantins.

Terra, gado e o trabalhador São escassas as pesquisas relacionadas à origem da pecuária regional e as informações sobre a mão de obra envolvida nesta atividade. O norte de Goiás foi visitado inicialmente pelos criadores de gado. No século 18, com a descoberta do ouro, a região viveu novo ciclo de ocupação e desenvolvimento. Com o declínio da produção aurífera, a pecuária tornou-se a principal atividade econômica.1 São três as principais explicações sobre a gênese das atividades criatórias no atual Tocantins: • o gado teria entrado em Goiás procedente da Bahia, resultado da expansão das fazendas no sentido lesteoeste, ultrapassando o rio São Francisco e internando-se no sudeste do estado. Posteriormente, avançou pelas margens dos rios, no sentido sul-norte; • o gado teria chegado pelo norte do estado, através dos franceses que habitaram temporariamente a região dos atuais Maranhão e Pará e que teriam navegado pelo rio Tocantins procurando novas pastagens. No 1

Cf. APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Escravidão negra no Tocantins: vivências escravistas em Arraias (1739-1800). 2. ed. Goiânia: Kelps, 2007; PALACIN, Luiz et al. História de Goiás em documentos. I. Colônia. Goiânia: Editora da UFG, 1995; SALLES, Gilka Vasconcelos Ferreira de. Economia e escravidão na capitania de Goiás. Goiânia: Cegraf/UFG, 1992; SILVA, Otávio Barros da. Breve história do Tocantins e de sua gente: uma luta secular. Brasília: Solo Editores, 1996.

Fazendas, cativos e gado na história do Tocantins

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século 17, os religiosos adentraram pelo mesmo caminho em busca de nativos para o serviço agropastoril em suas missões; • o gado teria adentrado a partir do sul de Goiás. No tocante à pecuária regional, a historiografia registrou características que são comuns a outras partes do Brasil: grandes extensões de terras ocupadas por fazendas; criação extensiva; mão de obra mista – cativa e livre; pobreza e miséria da população não proprietária de terras; poucos trabalhadores envolvidos na atividade. A singularidade regional ficou por conta da relação com a atividade mineradora, pois os trabalhadores escravizados eram deslocados das fazendas para as lavras e vice-versa. A pecuária tornou-se atividade economicamente secundária e complementar após a descoberta do ouro. Conforme visto, o gado que chegou ao Tocantins pode ter vindo dos currais iniciados nos arredores de Salvador; gradativamente teria se alastrando para o oeste, tomando conta das terras mais distantes do litoral. Os criadores teriam ultrapassado o rio São Francisco, penetrado em terras goianas e descido aos poucos pelas margens dos rios Tocantins e Araguaia. Os registros sobre esta hipótese são escassos, mas não desprezíveis. Em 1659, foram doadas terras a Garcia D’Ávila, padre Antônio Pereira, Francisco Dias e mais dois homens não citados.2 Eram grandes extensões de terras que praticamente nada custaram aos requerentes. Segundo Capistrano de Abreu, em Capítulos da história colonial, de 1927, “para adquirir estas propriedades, (Garcia D’Ávila) gastou apenas pa-

2

Sesmaria concedida a Garcia D’Ávila e outros... Bahia, 1659: Livro Primeiro de Sesmarias, f. 123, Códice 155, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária e formação do mercado interno do Brasil-Colônia. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org. Acesso em: 20 maio 2009.

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Adelmir Fiabani

pel e tinta em requerimentos de sesmarias”.3 Nestas terras se iniciaram atividades criatórias que foram se expandindo para o interior do Brasil, no sentido leste-oeste. Em 1674, foi a vez de Domingos Affonso mafrense, o “Sertão”, receber doação de terras.4 Conforme o mesmo autor, “Sertão” “fundou numerosas e importantes fazendas nos rios Piauí e Canindé, legadas por sua morte à Companhia de Jesus, a quem a Coroa as confiscou em proveito próprio, por ocasião de suprir a Ordem”.5 Domingos Affonso Mafrense foi importante criador de gado no sertão nordestino. Outros próximos à administração colonial requereram terras nas margens do rio São Francisco. Conforme Otávio Barros da Silva, em Breve história do Tocantins e de sua gente: uma luta secular, de 1996, os Guedes de Brito, da Casa da Ponte, ficaram com terras a leste do rio até o centro de Minas Gerais. Os Garcia D’Ávila, da Casa da Torre, expandiram-se ao interior de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí, além de conquistar terras em quase todo o oeste baiano.6 Esses proprietários possuíram grandes extensões de terra no sertão, utilizadas principalmente para a criação extensiva de gado. Era simples o processo de aquisição da terra, bastando requerê-las às autoridades para obtê-las, desde que próximo ao poder. Parte das terras dos fazendeiros ficava ociosa durante longo período, como reserva. Entre os grandes fazendeiros da época, era recorrente arrendar terras a terceiros para a formação de currais. Conforme Francisco Carlos Teixeira da Silva, o fazendeiro “Sertão” arrendava parte das 3

4

5 6

ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial, 1500-1800. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Publifolha, 2000. p. 152. Sesmaria concedida a Domingos Affonso, o Sertão... em 1674. Livro Primeiro de Sesmarias, f. 123, Códice 155, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. In: SILVA, Pecuária e formação do mercado interno do Brasil-Colônia. ABREU, op. cit., p. 152. Cf. SILVA, Breve história do Tocantins e de sua gente: uma luta secular, p. 32. Obs.: A obra de Otávio Barros da Silva carece de muitas fontes de onde o autor retirou as informações.

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suas terras a outros criadores.7 Miguel do Couto afirmou que, por essa época, 153 exploradores de fazendas de gado não eram proprietários das terras.8 Quanto às regiões do atual Tocantins, sabe-se que a pecuária chegou ao norte de Goiás antes dos exploradores do ouro. Ainda no século 17, os criadores de gado adentraram pelo sudeste de Goiás e formaram currais na região, expandindo-se sobre as terras “livres” ou de nativos. Conforme o historiador David McCreery Jamenson Jr., no capítulo “A economia de Goiás no século XIX” do livro A (trasn)formação histórica do Tocantins, de 2002, a região recebeu bem a atividade criatória, já que “relativamente bem servida de água, servia de refúgio para o gado quando a seca atingia o sertão da Bahia e Piauí”.9 Segundo Silva, em 1662, o baiano Francisco Dias D’Ávila acompanhou o pai Garcia D’Ávila nas entradas do rio São Francisco e pelos “esquisitos sertões”, expulsando os nativos das Terras Novas (alto Tocantins) para expandir suas fazendas. No mesmo ano, “Sertão” comandou entrada e submeteu nativos nas serras do Ibiapaba e Duro, situadas no sudeste do atual Tocantins. “Sertão” fora rendeiro dos Garcia D’Ávila e fez guerras com comunidades nativas, submetendo algumas delas com o auxílio dos jesuítas. O mesmo ocorreu em Terras Altas, no Alto Tocantins.10 Em Histórias de Goiás, de 1995, o historiador Luiz Palacin revelou que durante o período colonial, na região, existiam apenas “ilhas” de pecuária. O gado destinava-se à exportação 7 8

9

10

Cf. SILVA, Pecuária e formação do mercado interno do Brasil-Colônia. COUTO, Miguel do. Descrição do sertão do Piauí. In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 371-372 JAMENSON Jr., David McCreery. A economia de Goiás no século XIX. In: GIRALDIN, Odair (Org.). A (trans)formação histórica do Tocantins. Goiânia: Ed. UFG; Palmas: Unitins, 2002. p. 215. Cf. SILVA, Tocantins: conhecendo e fazendo história. Palmas: Secon/SEC-TO, 1998. p. 7.

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Adelmir Fiabani

para a Bahia e ao consumo local. Segundo ele, “as primeiras boiadas vieram pelo rio São Francisco”,11 ou seja, os criadores ultrapassaram aquele rio em direção às terras goianas. É, portanto, plausível a hipótese da entrada do gado no Tocantins a partir das terras baianas, pernambucanas e piauienses, que se limitam com o leste do estado de Goiás. Entretanto, setor da historiografia trabalha com a hipótese da formação de currais no atual Tocantins, a partir da chegada dos franceses ao norte do referido estado. Podem ter ocorrido focos de criação de gado nas margens do rio Tocantins, no sentido norte-sul. Em 1610, o francês La Blanjartier descobriu o rio Tocantins, chegando à “Serra dos Pacajás”. Segundo Silva, trata-se das elevações que formaram a cachoeira de Tucuruí, no Baixo Tocantins.12 Esse autor não confirmou se durante o curto tempo de permanência dos franceses na região houve formação de currais. Pelo mesmo caminho, no século 17, adentraram os padres missionários com o intuito de conquistar e submeter autóctones para os serviços agropecuários dos redutos missionários.13 Não sabemos também se os padres formaram núcleos criatórios na região. O historiador Luiz Palacin descartou a hipótese da ocupação do gado desde o norte. “[...] a penetração durante o século XVII, partindo do Pará e subindo o Tocantins e o Araguaia, deveu-se principalmente, aos missionários. Como os bandeirantes, os jesuítas também iam à busca de índios. Como eles, tampouco se fixaram em território goiano.”14 Registra-se também a possibilidade do avanço dos currais a partir de Goiás, ou seja, os criadores no atual sul do estado foram aumentando as posses, ocupando terras ao norte. Seria a ocupação no sentido sul-norte. Segundo Gilka Salles, 11 12 13 14

PALACIN et al., História de Goiás em documentos, p. 85. SILVA, Tocantins: conhecendo e fazendo história, p. 3. SALLES, Economia e escravidão na capitania de Goiás, p. 53. PALACIN, Luiz. Goiás 1722-1822. 2. ed. Goiânia: Oriente, 1976. p. 20.

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para chegar a Goiás, as tropas “vinham pelo único caminho legal via Jundiaí, na Capinania de São Paulo, seguindo a rota dos rios Atibaia, Jaguari-Açu, Mogi, Sapucaí, Pardo, Granai, das Velhas, Paranaíba, Veríssimo, Aruribá, até meia Ponte”.15 É realmente provável que alguns fazendeiros do sul de Goiás, para aumentar as propriedades, avançaram sobre as terras novas do norte goiano. A relação entre a Bahia e os criadores do Tocantins foi intensa. O rebanho era exportado à Bahia e consumido na capitania. O médico viajante Emanuel J. Pohl, ao passar pela capitania do Goiás, registrou a presença de “fazendas de gado que mandam vender anualmente 6.000 cabeças na Bahia”.16 Quadro 2 - Distância aproximada entre os núcleos de criação de gado no norte de Goiás aos mercados da Bahia Localidades Região de Palmas (TO) a Salvador (BA) Região de Palmas (TO) a Feira de Santana (BA) Região de Palmas (TO) a Barreiras (BA) Dianópolis (TO) a Salvador (BA) Dianópolis (TO) a Feira de Santana (BA) Dianópolis (TO) a Barreiras (BA) Natividade (TO) a Salvador (BA) Natividade (TO) a Feira de Santana (BA) Natividade (TO) a Barreiras (BA) Paranã (TO) a Salvador (BA) Paranã (TO) a Feira de Santana (BA) Paranã (TO) a Barreiras (BA)

Distância em km 1.400 km 1.284 km 550 km 1.090 km 970 km 237 km 1.200 km 1.090 km 360 km 1.290 km 1.178 km 437 km

Fonte: http://maps.google.com.br/. Acesso: 13 ago. 2009.

Em Viagens pelo Brasil (1817-1820), os naturalistas Spix e Martius assinalaram que a “criação de gado é quase a única ocupação dos sertanejos, de Paranã; e eles despacham anualmente para a Bahia um considerável número de gado 15 16

60

SALLES, Economia e escravidão na capitania de Goiás, p. 68-69. POHL, op. cit., p. 123 e 272. In: PALACIN, op. cit. p. 111. Adelmir Fiabani

vacum e cavalos, sendo estes últimos os melhores de Goiás”.17 Paranã é município do sul do atual Tocantins, antes conhecido como São João da Palma. Em 1817, os fazendeiros da vila de Arraias venderam 2.700 rezes à Bahia, das quais mil eram destinadas a Salvador.18 Tabela 1 - Saída de gado para a Bahia (cabeças) Ano 1814 1815 1816 1817 1818 1819 1820 1821

Registro de São Domingos 1.058 979 1.143 1.157 1.539 2.471 4.126 2.446

Registro de Taguatinga 582 897 557 963 1.064 1.143 652

Total 1.640 979 2.040 1.714 2.502 3.535 5.269 3.098

Fonte: Saída de gado. Microfilmes Rolos 45 e 46. Setor de Documentação do Departamento de História da USP. In: FUNES, Eurípedes Antônio. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. da Universidade Federal de Goiás, 1986. p. 61.

Em Economia e escravidão na capitania de Goiás, tese de doutoramento, de 1983, a historiadora Gilka Salles analisou correspondências do período colonial e registrou que, em 1732, comboio vindo do São Francisco e da Bahia chegou ilegalmente a Meia Ponte (sul do atual Goiás), com escravos e gado.19 Em 1741, dom Luiz de Mascarenhas referiu-se a “Manuel da Costa Madureira, com gados que conduzia de Pernambuco, outros de Entre Rios, Palma e Peratininga, com 17 18

19

SPIX; MARTIUS, op. cit., p. 110. In: PALACIN, op. cit., p. 112. FUNES, Eurípedes Antônio. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. da Universidade Federal de Goiás, 1986. p. 61. Correspondência de dom Marcos de Noronha e do conde de São Miguel, para as autoridades diversas. Goiânia, S.D.E.G.Cod. 192. In: SALLES, Economia e escravidão na capitania de Goiás, p. 229.

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os gados que vem do Piauí e vão nas Terras Novas (minas do norte de Goiás), se conservando no descoberto abundantes carnes, que é o sustento de brancos e negros”.20 São fortes as evidências de que a criação de gado ocupou as terras do atual Tocantins, adentrando no sentido leste-oeste. Em busca de mais terras e pastagens, os criadores baianos, pernambucanos e piauienses inseriram-se no território ocupado pelos nativos na capitania de Goiás. Após a engorda, parte do gado era transportada às feiras da Bahia para comercialização. O restante abastecia o mercado interno da capitania.

A fazenda Em Capítulos de história colonial, de 1927, Capistrano de Abreu registrou com detalhes o início de unidade criatória. Segundo ele, primeiramente haveria a necessidade de adquirir “terra para uma fazenda”; depois, “acostumar o gado ao novo pasto”, que “exigia algum tempo e bastante gente”. Logo, “tudo ficava entregue ao vaqueiro”.21 Capistrano descreve como era a criação colonial de gado, sobretudo nas regiões da Bahia, Goiás, Pernambuco, Piauí atuais. Apontou três elementos fundamentais à pecuária da época: a terra, o gado e o trabalhador. Quanto à terra, o historiador Euripedes Funes, em Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária, de 1986, afirmou que a ocupação da terra em Goiás ocorreu de várias formas: “[...] a concessão de sesmarias, [...] a posse, [...] a compra, a herança e outras de menor importância.”22 20

21 22

62

Carta de dom Luiz de Mascarenhas para a Corte, 1741. Lisboa. AHU, Goiás, Maço I. In: SALLES, Economia e escravidão na capitania de Goiás, p. 69. ABREU, Capítulos de história colonial, 1500-1800, p. 153-154. FUNES, Eurípedes Antônio. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. da Universidade Federal de Goiás, 1986. p. 95. Adelmir Fiabani

No início da ocupação de Goiás, a posse e a concessão de sesmarias predominaram como acesso à terra. Passados alguns anos, “apesar da disponibilidade de terras, a compra de imóveis rurais era freqüente, principalmente nas regiões de povoamento mais antigo, e mesmo nas áreas de maior afluência de imigrantes”,23 ou seja, no sul de Goiás. Com referência ao atual estado do Tocantins, o acesso à terra não se deu exclusivamente por meio de compra. Provavelmente, esta forma foi a menos utilizada. As terras eram requeridas à Coroa, que concedia grandes extensões, não raro em lugares habitados por nativos. O processo de ocupação não foi tão pacífico como descreveu Capistrano, com importante resistência dos nativos. Segundo o antropólogo Odair Geraldin, “os Avá-Canoeiro resistiram ao avanço das fazendas de gado que tentavam se instalar na região”. Os primeiros conflitos datam de 1750. A situação agravou-se desde a segunda metade do século 18, com a intensificação do pastoreio na região.24 Nativos foram dizimados e sobreviventes, encurralados nas fronteiras da agropecuária. Desprovidos de recursos naturais, assaltaram fazendas para apropriar-se do gado. Também foram escravizados ou cooptados ao trabalho na pecuária, mineração e agricultura. Em Fundamentos históricos do estado do Tocantins, de 1999, a historiadora Temis Gomes Parente lembra que “o colonizador via no índio um bicho que deveria ser domado e domesticado para o servir; aquele que não se submetesse seria sumariamente eliminado, como qualquer animal selvagem”.25 Para Francisco Carlos Teixeira da Silva, “a terra era, sem dúvida, o elemento básico” para a formação da fazenda. No entanto, havia necessidade de que fosse provida “de água, 23

24 25

FUNES, Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária, p. 99. GIRALDIN, A (trans)formação histórica do Tocantins, p. 111. PARENTE, Temis Gomes. Fundamentos históricos do estado do Tocantins colonial. Goiânia: Ed. da UFG, 2007. p. 72.

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como rios, lagoas perenes, poços ou cacimbas, bem como os famosos lambedouros, jazidas de sal”.26 A terra como elemento básico na formação da pecuária não se enquadra na realidade do norte goiano, sobretudo quando da formação das primeiras fazendas. No norte de Goiás era mais fácil conseguir terras do que cativos e matrizes para reprodução. Conforme Jacob Gorender, em O escravismo colonial, de 1978, “a pecuária encontrou vastíssimo fundo territorial”, fator determinante para seu sucesso.27 Em Economia e escravidão na capitania de Goiás, de 1992, Gilka Salles assinalou que nos Julgados do Norte da capitania de Goiás, desde o início da exploração aurífera, a criação de gado fornecia carne à atividade mineradora. “As sesmarias para a criação poderiam ser obtidas em áreas de uma légua e meia por três em quadra” – 16.200 ha. Após o “declínio do ouro”, a Coroa decidiu desenvolver a atividade criatória em Goiás “concedendo sesmarias de 3 léguas por 1 em quadra”,28 uns 13 mil ha. Francisco Carlos Teixeira da Silva afirmou que “a Carta Régia de 27 de dezembro de 1695” limitou as doações de terras para dimensões de “4 léguas por 1”; em 7 de dezembro de 1697, estabeleceu “o padrão de 3 por 1 légua”.29 As fazendas do norte da capitania de Goiás obedeceram ao padrão três léguas por uma. No entanto, um mesmo fazendeiro podia ter fazendas em outros locais. O ato administrativo da Coroa deixou livre o caminho para a formação da grande propriedade. Liberato Povoa registrou que a fazenda Santa Brígida, de João Gomes Lagoeira, em Arraias, tinha mais de quatorze mil cabeças, com 174 quilômetros quadrados – uns 17.400 ha –, perfazendo a média de 1,2 ha por cabeça de gado. Também 26 27

28 29

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SILVA, Pecuária e formação do mercado interno do Brasil-Colônia. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6. ed. São Paulo: Ática, 2001. p. 422. SALLES, Economia e escravidão na capitania de Goiás, p. 68 e 260. SILVA, op. cit. Adelmir Fiabani

informou que o padre Manoel da Silva possuía seis fazendas, com duas mil cabeças de gado, além de mil rezes espalhadas em outros locais, apenas na capitania de Goiás e nas margens do rio das Almas, Santa Teresa e Cana Brava.30 Talvez naquele ano João Gomes Lagoeira, proprietário da fazenda Santa Brígida, reuniu gados de outras fazendas para venda, pois 1,2 ha por cabeça é média aquém para os padrões das unidades criatórias do norte goiano e de todo o Brasil. Eurípedes Funes pesquisou sobretudo a região sul de Goiás, ocupada antes do norte. “[...] nas regiões onde predominava a pecuária, em função da própria atividade pastoril, as propriedades geralmente eram de grande porte”, com mais de 1.500 ha. Nas regiões mais antigas, em que a ocupação deuse devido à mineração e posteriormente à atividade pastoril, “predominavam as propriedades de pequeno e médio porte”.31 Funes considerou propriedades pequenas aquelas com menos de 500 ha e médias as que possuíam de 500 a 1.500 ha. Funes analisou documentos sobre as áreas das propriedades da freguesia de Meia Ponte, do sul de Goiás. Constatou que, em 1818, havia 272 propriedades, sendo 101 pequenas, 98 médias e 73 de grande porte. Nas últimas, apenas oito ultrapassavam 10.000 ha.32 A historiadora Keile Aparecida Beraldo Magalhães fez importante levantamento dos pedidos de sesmarias de 1750 a 1800 em Natividade, no sudeste do Tocantins, importante núcleo de exploração aurífera no século 18. Apresentamos esses dados para ilustrar a aquisição de terras. Em cada pedido formulado, o requerente citou a intenção inicial caso recebesse as terras, o que nem sempre se concretizou. Infelizmente, não temos dados sobre o tamanho das áreas requeridas. 30

31

32

POVOA, Liberato. História didática do Tocantins. Goiânia: Kelps, 1999. p. 43-44. FUNES, Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária, p. 104. Idem, p. 105.

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Adelmir Fiabani

Povoar de gado vacum cavalar / plantar roças.

01/03/1753 – Criação de gado.

11/11/1751 – Fazer roças de plantação e pastos de gados

Data e finalidade 07/02/1750 – criação de gados vacuns

08/05/1752 – 03/01/1754 – 01/03/1755 Faz vários pedidos, alguns em nome de Domingos Rodrigues e Paulo Oliveira. 30/09/1763 Possuidor de fábrica e escravos e pede terras para fazer plantas. Distrito de Minas do Tocantins 26/05/1763 Pacote 23 Doc. 04 Homem mineiro pede terras para fazer roças para sua sustentação. Fazenda Riachão distante 9 léguas 19/09/1772 de Natividade Fazenda de gado. Pacote 30 Doc 08 Minas do Tocantins 20/08/1772 Pacote 30 Doc. 04 Tem bastante escravos, vive de roças e solicita terras. Distrito de Natividade 12/07/1779 Pacote 38 Doc. 02 Carece de terras para plantar e sustentação de sua fábrica as margens do Rio do Peixe. Arraial da Agoa Quente no Distrito 17/05/1779 do Tocantins Possui fábrica de minerais e pede terras para plantar Pacote 37 Doc. 03 mantimentos e poder se sustentar. Distrito de Natividade 30/01/1782 Pacote 39 Doc. 03 Uma fazenda de criar gado vacum e cavalar às margens do Ribeirão da Preguiça e Taquarasú.

Localização Arraial de Natividade Pacote 03 Doc. 09 N. S. da Natividade Pacote 05 Doc. 06 Natividade Pacote 07 Doc. 01 Natividade Doc. 07 Natividade Pacote 06,08,10 Doc. 04,01,02,04 Morador do Tocantins Pacote 24 Doc. 06

Fonte: Arquivo Histórico Estadual de Goiás. Cx. 01 a 05. In: MAGALHÃES, Keile Aparecida Beraldo. Cenários socioeconômicos do norte goiano no final do século XVIII ao início do século XIX. Palmas: UFT, 2002. (Monografia).

Joze Alvez Barboza

Antonio Barrozo

Manoel Ribeiro da Costa

João Pinto

Antônio de Oliveira

Diogo Gonsalves

Manuel Lucas da Cunha

Tenente Coronel Matheus Lopes da Silva

Tenente Coronel Matheus Lopes da Silva Gregório de Freitas Soares da Fonseca Ignácio da Sylva e Souza

Requerente Antonio Cardoso Lisboa

Quadro 3 - Pedidos de sesmarias na região de Natividade (1750-1800)

Percebemos que 50% dos pedidos são explícitos quanto à intenção de fundar fazendas criatórias – o que não quer dizer que as outras solicitações não tiveram o mesmo fim. A literatura consultada define “fazenda” como grande propriedade para a criação de gado que podia abrigar outras atividades – cultivo e beneficiamento da cana-de-açúcar, plantações de fumo, milho, mandioca, etc. Eurípedes Funes definiu a fazenda como a propriedade dedicada à agropecuária, diferente da atividade pastoril, muito comum na região goiana de Paranã e em Formosa. Para ele, no “sítio” prevalecia a agricultura e, em menor escala, a pecuária. Em 1734, iniciou-se a atividade mineradora em Natividade, que não durou muito tempo. Os pedidos de sesmarias ocorreram posteriormente ao ciclo do ouro e deduz-se que o tamanho das propriedades era de três léguas por uma. Alguns requerentes eram garimpeiros, como, por exemplo, Diogo Gonçalves, “homem mineiro” que pede terras para fazer roças para seu sustento.33 Também Antonio Barrozo se diz proprietário de “fábrica de minerais” e solicita terras “para plantar mantimentos e poder se sustentar”.34

Os trabalhadores e as relações de trabalho nas fazendas criatórias Otávio Barros da Silva, em Tocantins: conhecendo e fazendo história, de 1998, referiu-se à prática de conceder terras a terceiros para exploração.35 Os fazendeiros não conseguiam explorar diretamente toda a propriedade e entregavam partes das fazendas a homens incapazes de iniciar criação por conta ou com pouca terra, que trabalhavam por renda anual

33 34 35

Arquivo Histórico Estadual de Goiás. Cx. 01 a 05. Pacote 23 Doc. 04. Arquivo Histórico Estadual de Goiás. Cx. 01 a 05. Pacote 37 Doc. 03. SILVA, Tocantins: conhecendo e fazendo história, p. 7.

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resgatada no final do quarto ano. Podiam ser negros livres, brancos pobres, nativos destribalizados, etc. Silva afirmou também que a Casa da Torre, dos Garcia d’Ávila, tinha por prática escolher locais apropriados para construir currais, onde deixavam “um casal de escravos, dez novilhas, um touro e um casal de eqüinos”.36 Silva amparouse nos registros de Geraldo Rocha em “O Rio São Francisco: Fator Precípuo da Existência do Brasil”, sem fornecer muitos detalhes. Não sabemos se esta forma de exploração com cativos se efetivou no norte de Goiás. É provável que tenham ocorrido concessões de terras e matrizes a homens livres no sistema de “quarta”. Em Capítulos de história colonial, de 1927, Capistrano registrou que “depois de quatro ou cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazenda por sua conta”.37 Segundo ele, o vaqueiro era um homem livre, pois recebia pagamento pelo trabalho executado. Também podia ser arrendatário trabalhando nas terras do fazendeiro. O sistema de quarta foi largamente utilizado na atividade pastoril de Goiás. Eram trabalhadores livres que recebiam o pagamento em espécie, a partir das crias do gado que cuidavam – de quatro novas crias uma lhes pertencia, por sorteio.38 Francisco Carlos Teixeira da Silva realizou exaustiva investigação sobre a atividade pecuária no sertão brasileiro, concluindo que as fazendas utilizadas para tal fim não abrigavam gados de um único dono.39 Provavelmente, muitos proprietários de gado eram trabalhadores livres sem-terra a serviço dos fazendeiros. Os que haviam recebido a quarta continuaram cuidando dos animais do fazendeiro e dos seus. 36 37 38

39

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SILVA, Tocantins: conhecendo e fazendo história, p. 7. ABREU, Capítulos de história colonial, 1500-1800, p. 154. FUNES, Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária, p. 141. SILVA, Pecuária e formação do mercado interno do Brasil-Colônia. Adelmir Fiabani

Segundo Funes, em Goiás surgiram outras relações de trabalho com a “decadência do escravismo”. Na pecuária “empregava-se tanto o trabalho escravo quanto o livre, sendo que, este último, aos poucos foi se afirmando em detrimento do primeiro”. Para ele, com o tempo, os fazendeiros optaram pelo trabalhador livre, pois “não precisava ser comprado e nem estaria sujeito às tentações de fuga, fato que se tornava cada vez mais freqüente entre os escravos”.40 Os trabalhadores livres podiam morar na fazenda como agregados ou temporariamente, como camaradas. O agregado residia na fazenda e era despossuído dos meios de produção; geralmente, pagava renda ao proprietário, que podia ser em produto ou dias de trabalho. Segundo Funes, em Goiás, predominava “o agregado de cor parda, geralmente solteiro”. Muitos eram “ex-escravos [...] que preferiam ficar na propriedade”. O camarada era trabalhador livre requisitado para o ofício de vaqueiro; custava mais caro quando se alugava com seu cavalo. Funes apurou que um camarada recebeu por determinado tempo de serviço prestado $320 e que um cavalo alugado, pelo mesmo tempo, custou ao fazendeiro $240.41 Capistrano definiu as atividades desempenhadas pelo vaqueiro colonial: “[...] cabia amansar e ferrar os bezerros, curá-los das bicheiras, queimar os campos alternadamente na estação apropriada, extinguir onças, cobras e morcegos, conhecer as malhadas escolhidas pelo gado para ruminar gregariamente, abrir cacimbas e bebedouros.”42 Se a terra era fator básico, o trabalhador também era elemento imprescindível. Ainda mais que, se a primeira abundava, após a expropriação às populações nativas a mão de obra era questão problemática. Segundo Francisco Carlos Teixeira da Silva, “matrizes e escravos são, em conjunto, os investimentos básicos de um curral, a sua parte mais onero40

41 42

FUNES, Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária, p. 140. Idem, p. 135 e 142. Idem, p. 153-154.

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sa, sendo que, de longe, o escravo é mais caro e as reses podem ser conseguidas por mecanismos de pagamento de trabalho, de compadrio ou outros laços de clientelismo”.43 A pecuária exigiu menos trabalhadores escravizados que a produção de açúcar, mineração, etc. Mesmo assim, não teria tido êxito sem o cativo. Os trabalhadores custavam muito caro. A terra não se constituiu em grande problema para iniciar atividade criatória. Nas atividades criatórias foram empregados trabalhadores livres e escravizados. A historiografia registrou a presença de nativos, negros, brancos e mestiços pobres nos trabalhos das fazendas. Segundo Jacob Gorender, “o trabalho livre e trabalho escravo representam alternativas viáveis mais ou menos por igual, associando-se com freqüência”. No setor pecuário, “o trabalho escravo não obstaculizou a difusão do trabalho livre”.44 Portanto, “é improcedente a idéia de que a pecuária não se coadunava com a escravidão por dificultar a vigilância sobre os escravos. Dessa vigilância se encarregavam, em vários casos, não os proprietários, porém feitores escravos”.45 Segundo Gilka Salles, os nativos foram utilizados como mão de obra ocasional e de resultado impreciso na economia goiana colonial. A autora registrou que “muitos deles já se adaptavam bem ao serviço do pastoreio”. “[...] o pastoreio e a economia agrícola colocaram o índio em atividades compatíveis com sua configuração cultural.”46 Certamente Salles referia-se ao nativo livre destribalizado, não ao nativo escravizado. Sabemos que foram escravizados nativos em várias regiões do Brasil, sobretudo no Norte e Nordeste. No dia 2 de setembro de 1819, em viagem pelo norte de Goiás, Johann Emanuel Pohl passou pelo sítio São 43 44 45 46

70

SILVA, Pecuária e formação do mercado interno do Brasil-Colônia. GORENDER, O escravismo colonial, p. 433. Idem, p. 436. SALLES, Economia e escravidão na capitania de Goiás, p. 215. Adelmir Fiabani

Francisco. Segundo ele, “nos ofereceram à venda dois meninos índios. Pediam por um, de cinco anos, 30,00 réis e pelo outro, de dez anos, 100 gramas de ouro”.47 Com a instalação dos trabalhos missionários no Tocantins, nativos foram aculturados, facilitando a posterior utilização no trabalho das fazendas, como semiescravos ou sub-remunerados. Muitos nativos destribalizados, vítimas do avanço dos fazendeiros sobre suas terras, foram canalizados para os trabalhos criatórios. Em 2 de maio de 1819, ao passar pela aldeia do Carretão de Pedro Terceiro, a “22 léguas de Vila Boa”, Pohl assinalou que “os índios aqui residentes já abandonaram todos os usos e costumes do estado selvagem. Os homens são empregados nas roças, como se chamam as plantações onde são cultivados o milho, a mandioca, o tabaco, o algodão e o feijão. Estes índios são donos de pequenos rebanhos de gado. Alguns já possuem várias vacas, galinhas e outros animais domésticos. O excedente do que produzem é vendido e eles já conhecem bem o valor do dinheiro, que empregam na aquisição de espingardas, terçados, pólvora, chumbo, vacas, mantos azuis, etc.”48 Em Goiás, os escravos africanos foram utilizados em maior número na atividade mineradora e em menor quantidade nos demais trabalhos. Segundo Eurípedes Funes, “na pecuária, a diminuição do trabalhador escravo é mais intensa do que na agricultura”. Ele passou de “trabalhador isolado a membro de ‘equipe’, onde divide seu trabalho com o elemento livre”.49 Para Gilka Salles, em 1781, no norte de Goiás, havia “cerca de 106 fazendas de gado vacum e cavalar, onde trabalhavam 280 africanos, ao lado de vaqueiros assalariados”, uma média de dois a três cativos por fazenda. “[...] os campos 47 48 49

POHL, op. cit., p. 268. Idem, p. 181-182. FUNES, Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária, p. 130.

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produziam trigo, milho, cana, mandioca e arroz, abastecendo a região. A escravaria destinava-se ao pastoreio, porque os proprietários, desistiam da agricultura para eximir-se do dízimo sobre verduras, a uma oitava a cabeça, seja de escravos ou de habitantes da fazenda ou sítio.”50 Conforme Salles, “no Julgado de Traíras, uma das áreas mais produtivas do Norte da Colônia, em 27 engenhos trabalhavam, em 1783, 1.547 escravos. Incluídos nesse número, 154 empenhavam-se na pecuária e serviços domésticos”.51 Com uma média de 57 cativos, os engenhos produziam aguardente, açúcar e farinha. Havia significativo número de trabalhadores escravizados, desempanhando várias atividades, entre elas, a pecuária. Em 1783, no Julgado de Cavalcante havia 106 fazendas, nas quais se “reproduziam anualmente 15.000 cabeças de gado e 800 cavalos”. Nas fazendas trabalhavam, em média, 280 cativos,52 uma média de 2,6 trabalhadores escravizados por unidade. A quantidade de pouco mais de 140 animais por fazenda e por 2,6 cativos sugere que havia outras atividades além da pastoril. Neste julgado, o número de cativos continuaria a aumentar até 1808. No atual Tocantins, o número de cativos manteve-se com ligeiro declínio após o fim do ciclo do ouro. Na Tabela 4 percebe-se que o número de cativos diminui a partir de 1783, com exceção de Cavalcante e Natividade. Na região os cativos foram ocupados nas lides do campo, que incluíam roças, criação de gado, fabricação de farinha e de cachaça.

50 51

52

SALLES, Economia e escravidão na capitania de Goiás, p. 246. Cf. Notícia geral da capitania de Goiás. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Cód. 1.8.3.36. In: SALLES, op. cit., p. 246. TRINDADE, José Fonseca. Lugares de pessoas. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1948. v. 1. p. 80.

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Adelmir Fiabani

Quadro 4 - Trabalhadores escravizados nas minas do norte de Goiás Tocantins Traíras São Félix Natividade Cavalcante Arraias Porto Real Conceição Carmo Total

1741 2.666 432 730 3.169 6.997

1742 3.817 1.165 1.010 970 6.962

1748 2.936 926 701 239 4.856

1749 3.191 1.017 1.827 229 6.264

1783 3.790 648 806 923 363 6.530

1804 1808 1832 2.807 2.742 1.441 641 641 331 1.529 925 879 1.191 1.209 474 569 419 792 844 684 584 210 840 156 8.261 7.364 4.283

Fonte: FUNES, Eurípedes. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. da UFG, 1992. p. 275.

Analisando a tabela elaborada pelo historiador Eurípedes Funes, percebemos que o número de cativos diminui com o declínio da mineração. Certamente, os trabalhadores escravizados morreram, foram vendidos, deslocados para outros afazeres em diferentes lugares e alforriados. O autor apresentou cinco causas determinantes para essa diminuição: pouca importação de cativas e, assim, baixa reprodução, já que na atividade mineradora “não se empregava mão-de-obra feminina”; péssimas condições de existência – moradias precárias, alimentação insuficiente, maus-tratos, doenças, etc.; “pouco interesse dos senhores em incentivar o casamento” e a reprodução de cativos; as fugas, constantes na Capitania, e a diminuição das importações de cativos.53 A crise econômica que se abateu na capitania de Goiás com o esgotamento das minas retraiu a entrada de trabalhadores escravizados. Conforme Funes, os mercadores de cativos se afastaram dos escravistas goianos, pois recebiam o pagamento parcelado, preferindo vendê-los na Bahia e no Rio de Janeiro à vista.54 53

54

FUNES, Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária, p. 116-117. Idem, p. 118.

Fazendas, cativos e gado na história do Tocantins

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Gilka Salles confirma a redução de cativos em razão do declínio da mineração. Nos “Julgados São Félix, Natividade e Arraias, é muito reduzido o número de cativos: declinando o ouro, restavam as fazendas de gado, menos carentes de trabalhadores, já que a pecuária exigia menor esforço humano”.55 São Félix contabilizou em 1742 um total de 1.165 escravos, porém no ano de 1832 havia somente 331. Fato semelhante ocorreu em Natividade, que chegou a abrigar 1.827 cativos em 1749 e em 1832 registrou 879. Arraias, que no início da atividade mineradora contava com 3.169 cativos, chegou ao fim do ciclo aurífero com 792. Gilka Salles estimou a média de um cativo para 53 reses para as unidades pastoris. No caso das fazendas do Tocantins, a média de Salles não representa a realidade, já que seria fortemente improdutiva. O termo “fazenda” tinha sentido amplo, envolvendo roças, pequenos engenhos, alambiques, atafonas, ferrarias, pequenos garimpos, etc. No Sul do Brasil, no século 19, um cativo cuidava de seiscentos a novecentos animais.56 Os cativos exerciam diferentes funções na unidade produtiva. Em São Félix, “420 escravos dedicavam-se às lides rurais”, representando 65%. Em Natividade havia 626 cativos, “cerca de 68% nas lavouras, gado e serviço doméstico”. Em Arraias, “com 291 em seus sítios e fazendas, empregava 81% do total de seus mancípios na lavoura principalmente”.57

55 56

57

74

SALLES, Economia e escravidão na capitania de Goiás, p. 246. MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior: trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EdiUPF, 2002. Loc. cit. Adelmir Fiabani

Fazendas, cativos e gado na história do Tocantins

75

Nº de escravos nas minas 2.243 331 228 180 72 59% 35% 35% 19% 19%

Porcentagem

Nº de escravos na produção complementar 1.547 592 420 626 291 41% 65% 65% 68% 81%

Porcentagem

Fonte: Notícia Geral da Capitania de Goiás. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional. Cód. 1.8.3.36, Passim. In: SALLES, op. cit., p. 277-278.

Traíras Cavalcante São Félix Natividade Arraias

Julgado

Tabela 2 - Escravos nas minas e na produção complementar nos Julgados do Norte - 1783

3.790 923 648 923 363

Total

Segundo levantamento efetuado por Gilka Salles, nos Julgados do Norte, no final do século 18, as atividades complementares – criação e agricultura – ocupavam maior percentual de mão de obra escravizada em relação às minas. Deduz-se que no período de transição da atividade aurífera para as atividades de pecuária e agricultura, os escravizados foram deslocados de um setor para o outro. Conforme a atividade criatória foi se afirmando, parte dos cativos foi vendida e alforriada, pois não havia necessidade de tantos trabalhadores na pecuária. Quadro 4 - Algumas das profissões exercidas pelos escravos e forros no Arraial de Arraias Na mineração Faiscador Administrador Bateador Ferramenteiro Ourives

Na roça e fazendas de gado Roceiro Farinheiro Vaqueiro Administrador Boiadeiro Carreiro Ferrador Cozinheiro

Nas áreas urbanas Marceneiro Pedreiro Quitandeira Vendeiras Mucama Criada doméstica

Fonte: Autos de Inventários. (1739-1800). CCA Arraias - TO. In: APOLINÁRIO, op. cit.

O número de ocupações nas fazendas e roças excede as ocupações exercidas nas minas. Havia ofícios específicos da atividade criatória – vaqueiro, boiadeiro, carreiro e ferrador. É crível que a divisão de atividades determinava certa hierarquia entre os trabalhadores das fazendas. Outro dado importante diz respeito à qualificação dos cativos. Juciene Apolinário registrou a presença de administradores, marceneiros, ourives, quitandeiras e outros. Estas atividades exigem conhecimentos específicos, que determinariam preços mais altos para os cativos. Segundo Capistrano, determinadas ocupações eram mais valorizadas e davam status diferenciado. Os trabalha76

Adelmir Fiabani

dores “tem pelo exercício nas fazendas de gado tal inclinação que procuram com empenhos ser nela ocupada, consistindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o nome de vaqueiro”. Para o autor, “vaqueiro, criador ou homem de fazenda, são títulos honoríficos entre eles”.58

Técnicas de criação e transporte do gado Os primeiros criadores de gado que se instalaram no atual Tocantins utilizavam técnicas rudimentares. Conforme Eurípedes Funes, em Goiás o gado era criado solto, sendo reunido mensalmente para a marcação feita com ferro em brasa.59 O historiador Luiz Palacin, em História de Goiás em documentos, de 1995, afirma o mesmo para o norte da capitania.60 Para Jameson Jr., as propriedades goianas eram extensas, pois os fazendeiros mantinham “grande quantidade de terras em reserva, para futuras expansões ou simples substituição de áreas enfraquecidas por pastagens ou queimadas”. “[...] o gado andava à vontade e, num rodeio, os vaqueiros separavam os animais por marca, com as novas crias seguindo suas mães.”61 A ausência de cercas nas fazendas também determinou maior quantidade de terras por fazendeiro. Em sua viagem pelo sertão oeste do rio São Francisco, com características semelhantes ao norte de Goiás, Sait-Hilaire confirmou que o gado era criado solto. Para reconhecer o gado, os fazendeiros marcavam seus animais com ferro em brasa. Quanto às cercas, o naturalista francês afirmou que os fazendeiros que criam em larga escala “dividem as pastagens 58 59

60 61

ABREU, Capítulos de história colonial, 1500-1800, p. 154. FUNES, Eurípedes Antônio. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. da Universidade Federal de Goiás, 1986. p. 77. PALACIN et al., História de Goiás em documentos, p. 105. JAMENSON Jr., David McCreery. A economia de Goiás no século XIX. In: GIRALDIN (Org.). A (trans)formação histórica do Tocantins, p. 220.

Fazendas, cativos e gado na história do Tocantins

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em várias partes” por meio de fossos ou paliçadas, com a altura de um homem. As divisões serviam para separar as vacas leiteiras, os bezerros, as novilhas e os touros.62 Segundo Saint-Hilaire, os bezerros não desmamados eram guardados em um galpão; os que iam ao pasto, eram recolhidos à noite. Pela manhã, eram trazidas as vacas deixadas nos pastos cercados, enquanto que as que passaram a noite soltas se aproximavam espontaneamente da sede da fazenda.63 A descrição se assemelha às técnicas utilizadas pelas fazendas maiores na região do norte de Goiás. Os criadores de gado do norte de Goiás queimavam o capim seco quando se aproximava o período das chuvas (novembro) para que as gramíneas brotassem com mais vigor. A técnica, prejudicial ao ecossistema, ainda é praticada. Conforme Saint-Hilaire, os fazendeiros não gostam de confiar “as funções de vaqueiro a escravos, porque os que as exercem vivem ordinariamente longe das vistas do senhor”. Para o ofício de vaqueiro, eram escolhidos os “próprios filhos do proprietário”, ou, então, “homens livres a quem se dá o terço do produto do rebanho”.64 Sobre a condução das boiadas, sobretudo para a Bahia, era realizada por “brancos, mulatos e pretos, e também índios que com este trabalho procuram ter algum lucro”. Era um trabalho penoso, com cuidados para que a boiada não se dispersasse. “As jornadas são de quatro, cinco e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos onde vão parar”. Quando escasseava a água, seguiam “o caminho de quinze e vinte

62

63 64

78

Cf. SAIT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. p. 51. Loc. cit. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. p. 313. Adelmir Fiabani

léguas, marchando dia e noite, com pouco descanso, até que achem paragem onde possam parar.”65 Sobre o transporte e o comércio de gado, Sait-Hilaire afirmou que “é principalmente para a Bahia que se vende o gado. Os que conduzem os rebanhos de bois até essa província tem o costume de fazê-los caminhar um dia, e deixá-los pastar no dia seguinte”. “[...] um boi se vendia a 3$000 nos arredores da povoação de Pedras dos Angicos”.66

Terras, gado e trabalhadores escravizados pelos olhos dos viajantes No início do século 19, o atual Tocantins foi visitado por viajantes. O mineralogista John Mawe nasceu em Derbyshire, na Inglaterra, em 1764. Escreveu mais de dez trabalhos sobre mineralogia e geologia. Autorizado por dom João VI, visitou as jazidas de diamantes de Minas Gerais e do interior brasileiro entre 1809 e 1810. Em 1809, ao passar pela capitania de Goiás, identificou que Goiás “possui um comércio muito rudimentar”. Parte da produção de mais valor era vendida no Rio de Janeiro. “As mulas voltam carregadas de sal, ferro, estampados de algodão, pólvora e munição de chumbo, e diversas ferramentas de artífices.” Quando algum dos habitantes possuía “alguma coisa particularmente preciosa de que se queira desfazer, vai, em geral, ao Rio de Janeiro e emprega o lucro na compra de negros (eles constituem sempre o objetivo principal), ferro, sal e outras utilidades”.67 O relato revela como eram empregados os lucros obtidos com a venda da produção, com destaque para os cativos. 65 66 67

Loc. cit. Idem, p. 317. MAWE, John. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978, p. 195. In: PALACIN, op. cit., p. 106.

Fazendas, cativos e gado na história do Tocantins

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Os naturalistas Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Phillip von Martius chegaram ao Rio de Janeiro em 1817. No ano seguinte, viajaram por regiões do Brasil, entre elas Goiás. Em 1820, voltaram à Europa e, em 1823, publicaram na Alemanha Viagem pelo Brasil, publicado no Brasil em 1916. Em 1818, percorreram a região Centro-Oeste e concluíram que a “criação de gado é quase a única ocupação dos sertanejos, de Paraná”. Anualmente, os criadores despachavam “para a Bahia um considerável número de gado vacum e cavalos, sendo estes últimos os melhores de Goiás”. Os viajantes apuraram o preço dos animais nas fazendas: “[...] custa aqui conforme a condição: um boi, 3$000; uma vaca, até 4$000; uma égua, 5 até 8$000; um cavalo, 10 a 12$000. Somente o comércio de trânsito entre Bahia, Pernambuco e o interior da província anima este vale retirado.”68 Em 1816, o célebre botânico, geólogo, etnólogo, naturalista e humanista Saint-Hilaire chegou ao Brasil. Tendo o Rio de Janeiro como base e ponto de partida, passou pelo CentroOeste brasileiro em 1819 e na região de Lusiânia, pertencente a Goiás, verificou que “é a criação de gado que constitui anualmente a fonte de renda mais segura aos fazendeiros de Santa Luzia”. Concluiu que, mesmo sendo atividade segura aos criadores, não dava muito lucro, pois “eles precisam dar sal aos animais se quiserem conservá-los, mas principalmente porque as fazendas ficam distantes demais dos mercadores que poderiam comprá-los”.69 O austríaco, botânico, geólogo, médico e Conservador do Real e Imperial Gabinete de História Natural do Imperial Museu do Brasil, em Viena, Johann Emanuel Pohl esteve no Brasil entre 1817 e 1821. Ele empreendeu viagem de quatro anos pelo interior do Brasil, atravessando o Rio de Janeiro, 68

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SPIX; MARTIUS. Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981. v. 2. p. 110. In: PALACIN, op. cit., p. 112. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975. p. 26. In: PALACIN, op. cit., p. 110. Adelmir Fiabani

Minas Gerais e Goiás, publicando Viagem no interior do Brasil. Empreendida nos anos de 1817 a 1821 [...]. Nos anos de 1819 e 1810, em sua viagem pela capitania de Goiás, Pohl conheceu várias localidades, pernoitando em fazendas e descrevendo aspectos da plantação, criação, atividades dos trabalhadores, fauna, flora, etc. Para o presente trabalho, selecionamos dezesseis fazendas ou engenhos visitados pelo médico austríaco, que percorreu a região quando a atividade mineradora estava em franco declínio. Em algumas fazendas, eram praticadas diversas atividades econômicas, com o deslocamento da mão de obra para as que rendiam mais. Em todas as dezesseis fazendas, Pohl identificou a criação de gado como atividade principal, registrando também criação de cavalos e, em menor número, de cabras e ovelhas. Em algumas, a criação de gado era significativa, como na fazenda pertencente ao Ouvidor, em São João da Palma, com quatro mil rezes. No Engenho da Conceição, que pertenceu ao vigário de Natividade e que, por ocasião da visita, era propriedade do capitão Bernardino, “criam-se cerca de 5.000 cabeças de gado”.70 O autor não informou o tamanho da fazenda. Os trabalhadores das fazendas eram livres e cativos; moravam em rústicas cabanas e desempenhavam diversas atividades. As sedes das fazendas possuíam construções mais resistentes, como no engenho de dona Feliciana, onde a sede era grande e consistia “em sólidos edifícios e várias choupanas de negros, em volta dos quais os laranjais e bananais formavam um verdadeiro bosque”.71 Nas fazendas analisadas, contabilizamos 78 “cabanas de negros”, mas certamente havia mais, pois na fazenda de dona Feliciana o autor não especificou o número de construções, limitando-se a dizer que eram “várias cabanas”. Sobre a fa70

71

POHL, Johann Emanuel. (1782-1834). Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1976. p. 225. Idem, p. 222.

Fazendas, cativos e gado na história do Tocantins

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zenda do juiz ordinário Severiano afirmou: “[...] a fazenda é muito bem instalada. A residência, simples, mas solidamente edificada, é rodeada pelas cabanas de escravos.”72 O autor refere-se a “negros” e a “escravos” ao mesmo tempo. Sabemos que na época as duas palavras tinham o mesmo sentido, sendo negro sinônimo de escravo. Dessa forma, podemos concluir que havia menos trabalhadores livres ou libertos do que cativos. Chama também a atenção não citar a presença de senzalas. Deduzimos que os trabalhadores moravam em casas rústicas, onde se abrigaria uma, ou, eventualmente, mais unidades familiares. Ficou a certeza de que as habitações dos trabalhadores eram de qualidade inferior às dos fazendeiros. Quando se deslocava pela região sul de Goiás, Pohl visitou o povoado de Ribeirão da Anta, onde se deparou com “seis miseráveis cabanas cobertas de folhas de palmeira”. No lugarejo de Rio Macaco, encontrou “doze cabanas de barro” cobertas da mesma forma. Mais ao centro de Goiás, ao passar pela lavra de ouro na serra Garo, encontrou “oito choupanas de barro, onde vivem os negros que extraem ouro da argila”.73 As cabanas do norte de Goiás teriam características parecidas. Pohl visualizou a falta de cuidado dos fazendeiros para com os trabalhadores. Na fazenda Bem-Bom registrou que “estava em pé uma negra quase inteiramente nua, exceto por uma faixa da largura de uma mão”.74 Também o botânico inglês George Gardner, ao visitar a fazenda Mato Virgem, na região de Duro, assinalou o descaso dos escravizadores para com os cativos. Segundo o botânico, “nunca vi em parte alguma do Brasil escravos tão miseravelmente vestidos como aqui”.75 72 73 74 75

POHL, Viagem ao interior do Brasil, p. 268. Idem, p. 115 e 207. Idem, p. 225. GARDNER, George. (1812-1849). Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. p. 154.

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Adelmir Fiabani

Antes de viajar para o norte de Goiás, os médicos Pohl e Gardner conheceram o Rio de Janeiro, que era a cidade mais organizada e desenvolvida e que, em 1808, passou a ser a sede da administração imperial portuguesa. Quando conheceram em Goiás, a capitania estava decadente. Com o fim do ciclo do ouro retiraram-se os capitais e abandonaram-se as minas; os sinais de pobreza eram visíveis nas ruas, moradias, vestimentas, etc., origem da reação dos viajantes de perplexidade com a miséria da região. Em determinadas regiões do Tocantins a temperatura diminui durante a madrugada, sobretudo nas serras e arredores. Os trabalhadores escravizados sofreriam com a queda da temperatura durante a noite. Pohl registrou temperaturas de 3 graus na região do rio Traíras e de 7 graus em São João da Palma.76 A localidade de Duro, atual município de Dianópolis, possui altitude elevada, que proporciona baixas temperaturas em junho e julho. Pohl refere-se ao tamanho das propriedades. Os viajantes andavam várias léguas para chegar a uma fazenda. Significa dizer que as unidades criatórias eram grandes. O Engenho do Sumidouro, pertencente ao capitão Filipe Antônio Cardoso, era “propriedade” de “10 léguas de comprimento e 6 de largura”, uns sessenta quilômetros de comprimento por trinta e seis de largura. Pohl referiu-se ao comércio do gado, informando que as tropas de gado eram conduzidas à Bahia. Realizavam-se feiras de gado nas cidades baianas de Salvador, Feira de Santana e, posteriormente, em Barreiras. A distância média entre a cidade de Palmas – capital do Tocantins – e a cidade de Salvador é de 1.400 km. Em 10 de julho de 1819, passou por São João da Palma, descobrindo que o Ouvidor possuía umas quatro mil reses, “que dão boa renda”. O gado era “mandando [...] para a 76

POHL, Viagem ao interior do Brasil, p. 216-222.

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Bahia”, onde se pagava “8.000 réis por cabeça”. No próprio local, “2.000 réis é considerado bom preço de venda”.77 A antiga localidade de São João da Palma dista aproximadamente 1.290 km de Salvador. O custo para conduzir as boiadas às feiras da Bahia, somados à depreciação pela longa caminhada, elevaria o preço final do gado. Pohl registrou, uma única vez, que nas atividades criatórias eram empregados poucos trabalhadores. Na fazenda Santa Maria ou Zacarias, apenas “um negro cuida dos rebanhos a ela pertencentes, os quais pastam nos campos”.78 Gardner escreveu que na fazenda Santa Brida, “o dono” não residia na unidade produtiva e a única habitação encontrada “pertencia ao vaqueiro que cuidava do gado”.79 Em geral, Pohl e Gardner não informaram a quantidade de gado por fazenda. Em unidades exclusivamente criatórias com menos de uns seiscentos animais, não são necessários mais que um ou dois trabalhadores para o manejo. Entre 1836 a 1841, o botânico e médico inglês George Gardner passou dois anos no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, sertões do Ceará, de Minas Gerais e do Piauí. De volta à Europa, escreveu Viagens no interior do Brasil: principalmente nas províncias do norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1842, publicada em 1846, 1849 e 1973, em inglês e traduzida ao português em 1942, sendo reeditada em 1975.80 Gardner fez minuciosas descrições sobre os aspectos físicos e as produções das regiões por onde passou. Ao referir-se ao povo “brasileiro” em geral, mostrou-se preconceituoso ao qualificá-lo de indolente, segundo ele, devido ao cruzamento

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POHL, Viagem ao interior do Brasil, p. 220. Idem, p. 223. GARDNER, Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. p. 164. GARDNER, op. cit. Adelmir Fiabani

do europeu com o negro e com o nativo. Concluiu que o negro era intelectualmente inferior ao europeu. Por ocasião da visita a Goiás, registrou detalhes sobre as fazendas criatórias. Nas quatro fazendas analisadas visitadas por Gardner, há registros de criação de gado. Chamou atenção o tamanho da fazenda Sapé, com 64 milhas quadradas. Gardner visitou a fazenda Mato Virgem, trabalhada por “oito escravos, quatro homens e quatro mulheres”. O botânico impressionou-se com a exploração da força de trabalho pelo dono, que sequer dispensava o trabalho dos anciãos. O cativo mais velho possuía “mais de cem anos, inteiramente cego, o que não o impedia de trabalhar o dia inteiro em peneirar farinha”.81 Gardner também registrou como eram a criação e o comércio do gado no norte de Goiás. Na fazenda do Sapé, o gado seria criado em diferentes áreas, ou seja, a unidade criatória estava “dividida em várias fazendas de criação de gado, com cerca de quatorze mil cabeças, principalmente para venda a boiadeiros que as levam para a Bahia”.82 Os viajantes registraram em suas andanças aspectos sobre a região do norte de Goiás, no entanto ainda faltam informações sobre a criação de gado, moradia dos trabalhadores, transporte e comércio do gado, benfeitorias das fazendas, etc., para termos um quadro mais completo sobre a fazenda pastoril do Tocantins.

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GARDNER, George. (1812-1849). Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. p. 154. GARDNER, op. cit.

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As fazendas pastoris no Rio Grande do Sul e Santa Catarina

“Coitado do home”. O posteiro em fins do século 20 no norte do Rio Grande do Sul Andréia Oliveira da Silva* O posteiro é uma categoria social tradicional da economia pastoril sul-rio-grandense. Nos campos indivisos do Rio Grande do Sul dos séculos 18 e 19, o trabalhador posteiro era de muita serventia. Em geral, quando livre, era um homem de boa procedência e peão habilidoso que, ao casar-se, transferia-se para essa categoria social ao assumir no seio da fazenda, entre outras funções, a de evitar a fuga do gado e de cativos durante a escravidão, visto que naquele período não se difundira, ou pouco se difundira, o alambrado. Com as cercas de pedra, utilizadas sobretudo para os bretes e encerras, era impossível cercar as grandes estâncias. No artigo “O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense (1680-1964)”, de 2008, Mário Maestri descreve o posteiro, durante a escravidão, como “agregado que morava em geral com sua família nas franjas da propriedade, onde plantava uma horta e criava algum gado”. Para isso, tinha como “obrigação controlar o ingresso nas terras de intrusos, impedir a fuga de gado e de cativos”, além de auxiliar nas “atividades que requeriam maior esforço

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Graduada em História pela Universidade de Passo Fundo.

“Coitado do home”: o posteiro em fins do século 20 no norte do Rio Grande do Sul

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– rodeios, preparação de tropas, etc.” Apoiava, portanto, as atividades produtivas da estância.1 Em História agrária do planalto gaúcho, de 1997, o historiador Paulo Zarth resume de maneira sucinta o acordo selado entre estancieiro e posteiro: “Dependendo do acordo com o estancieiro, esse peão recebia salário regular ou, o que era mais comum, sua remuneração era o direito de fazer sua roça na estância [...].”2 Essa relação trabalhista é definida por Décio Freitas como “corveia”,3 ou seja, relação de produção na qual o trabalhador direto trabalha para o proprietário dos meios de produção, nesse caso, a terra, em troca do direito de morar e plantar/criar em uma pequena extensão de terras. Em O conde de Piratini e a estância da Música: administração de um latifúndio rio-grandense em 1832, de 1978, o historiador Guilhermino César faz um breve comentário sobre a pirâmide hierárquica das estâncias sulinas oitocentistas: “Os peões em baixo; o capataz, no meio; o estancieiro, no vértice da pirâmide. Hierarquia perfeita, voluntariamente consentida pelo grupo.” E acrescenta, referindo-se ao posteiro: “Na área da estância, tal estrutura admitia uma ação complementar – a do posteiro, mão-de-obra auxiliar condenada à vida na solidão, [...].”4 O autor destaca a forma de administração de uma estância, ou seja, as ordens do estancieiro deveriam ser sumariamente obedecidas, e os trabalhadores pastoris – cativos, posteiros, peões, capatazes – tinham cons1

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MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense (1680-1964). In: _______. O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2008. p. 173. ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho, 1850-1920. Ijuí: Ed. Unijuí, 1997. p. 169. FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980. 204 p. CESAR, Guilhermino. O conde de Piratini e a estância da música: administração de um latifúndio rio-grandense em 1832. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Instituto Estadual do Livro; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1978. p. 17.

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Andréia Oliveira da Silva

ciência dessa hierarquia, sempre estando à mercê da ordem e vontade de seu patrão. O papel do posteiro é citado como “complementar”, já que não trabalhava diretamente em funções como marcação, abate, rodeio... O fato de viver nas franjas da fazenda, sem contato diário com a sede/administração da estância, caracterizava-o como um “peão solitário”. Nessa compilação documental das orientações do proprietário João Francisco Vieira Braga, o conde de Piratini, a seu capataz, registra-se, inclusive, a existência de três posteiros na referida estância – Belizário, Felipe e Santa Anna. No artigo oitavo de suas instruções, relata a existência dos postos e as atribuições do posteiro: “Estabelecerem-se 3 ou 4 postos nos lugares que indiquei, e haverem repontes todos os dias para que o gado não sai do Campo: em cada hum dos ditos postos haverá huma manada de Egoas manças para o Serviço necessario; 4 Vacas para Leite, 1 Escravo para ajudar o Posteiro, e o mais que possão por Conta da Estancia, dando-se-lhe para isso o mantimento necessario, além do que devem plantar.”5 Em Tapera, de 1911, de Alcides Maya,6 é ressaltada a importância do posteiro nas terras sulinas. No conto “Por vingança”, Maya descreve a triste sina do posteiro Chico Pedro, que, ao votar contrário às ordens de seu patrão – o capitão Lopes –, recebe ordem de deixar o posto no prazo de três dias. Ao Rodrigues, capataz da estância, coube a missão de transmitir a ordem do estancieiro, com pesar, pois sabia as dificuldades que Chico Pedro encontraria para encontrar outra morada para abrigar seus filhos e esposa em tão curto prazo, mesmo sendo um trabalhador exemplar: “Se era assim que se tratava a quem sabia estar no cepo o dia inteiro, trabalhando por quatro e topando tudo sem nunca se lastimar, entonces melhor seria acabar de uma vez aquela vida de reúno.” Ao 5

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CESAR, O conde de Piratini e a estância da música: administração de um latifúndio rio-grandense em 1832, p. 39. MAYA, Alcides. Tapera: cenários gaúchos. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1962. 155 p.

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mesmo tempo, resignava-se com a teimosia do posteiro em não cumprir a ordem do patrão – votar para os conservadores, que tinham em Osório Cruz (inimigo de vários anos de Chico Pedro) o chefe do partido local: “Ou a gente aceita o laço, bufando mesmo, e se deixa dessocar, no mais, ou é corrido campo fora como bagual matreiro...”7 Cumprir ordens era sinônimo de sobrevivência na estância. Ter vontade própria, agir de acordo com a ideologia político-partidária, ser contrário à vontade do estancieiro custou a Chico Pedro a estadia no posto, pois, como se nota, além das obrigações (da lida campeira) cotidianas do posteiro, estava também, e não menos importante, a obediência às ordens do patrão. O posteiro Chico Pedro, constrangido, perdido e alienado, deixou a morada e, no ápice de sua raiva, destruiu o posto e o que havia em seus arredores: “A destruição começou pelo potreiro, verde e fofo de pasto entre rapadas planícies amarelentas em torno [...].” Até então, mantivera-se fiel ao estancieiro, mas o sentimento de injustiça tomou conta de seu ser, e a destruição até mesmo do que cultivara (visto que não haveria como levá-la) foi efetuada: “Levara o dia de vencida; aproximava-se do termo o plano que traçara: do Posto nenhum torrão ficaria incólume, nenhuma ripa ilesa; e quando, afinal, saísse, abandonaria aos intrusos, não um estabelecimento limpo, hospitaleiro, bem provido, mas um rancho em ruína, em cujos restos viriam se rascar livremente os animais e em cujo solo medrariam cardos, urtigas bravas...”8 Assim, Alcides Maya conta a triste sina dos trabalhadores pastoris, que, sem acesso à terra, tinham de se dobrar às ordens do estancieiro, vivendo no anonimato, calados, deixando “o tempo passar”. Na sua maioria, as estâncias sulinas possuíam mais de um “posto” – lugar estratégico da fazenda, onde ficavam 7 8

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MAYA, Tapera: cenários gaúchos, p. 41. MAYA, op. cit., p. 53-55. Andréia Oliveira da Silva

o posteiro e sua família. No livro O capitalismo pastoril, de 1980, Décio Freitas refere-se ao “posto”: “Situava-se este nas divisas dos campos, especialmente nas proximidades dos passos e dos rios.” O autor caracterizou o posteiro como “um índio ou mestiço da inteira confiança do estancieiro”.9 O caráter idôneo do posteiro referido por Freitas também é citado por Cyro Martins no conto “Tesouros”, em Campo fora, de 1934,10 onde descreve o posteiro Bernardo como “homem de confiança do patrão”, um trabalhador em que “todos estimavam nele a honradez, a disposição para o trabalho, a maestria campeira, e mais do que tudo a conformação com o destino caipora de pobre”. Tais características são citadas adiante, nas entrevistas realizadas com posteiros/agregados de fins do século 20. Dessa maneira, confirma-se a descrição apresentada por Cyro Martins, a quase nula perspectiva de mudança social-econômica e a conformidade com sua situação de pobreza: “[...] seu Bernardo nunca se queixava das suas penas pra ninguém, nem tampouco contava as suas alegrias. Nem mesmo estando no trago, o que acontecia lá de ano em ano.”11 Entretanto, essa conformação era mascarada por um forte desejo (para não usar a palavra “loucura”) de encontrar tesouros enterrados no pampa: “Porque ele cultivava com fervor, e ocultava ferozmente de todos, uma mania velha e amada que era o tormento e o alívio do seu espírito.” Para o posteiro Bernardo, essa era a chance de obter dinheiro e encontrar o que seu imaginário tanto desejava. A busca por tesouros tornou-se uma obsessão: “Vivia na procura permanente e torturada de tesouros enterrados pelos padres e pelos fazendeiros ricaços, donos de sesmarias, do tempo antigo.”12 O posteiro, “que não era como parecia um resignado com a 9 10 11 12

FREITAS, O capitalismo pastoril, p. 42. MARTINS, Cyro. Campo fora. 5. ed. Porto Alegre: Movimento, 1981. 75 p. MARTINS, op. cit., p. 41. MARTINS, op. cit., p. 41-42.

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sorte”,13 fez da sua loucura, uma motivação para continuar levando sua vida “caipora de pobre”. Para obter a permissão para morar em um dos postos da fazenda, era preciso se conformar com a situação de submissão, ser de boa procedência e obedecer indubitavelmente às ordens do patrão. Além de reparar o gado, evitando fuga ou extravio, com permissão do patrão, o posteiro cultivava sua roça, podendo possuir algum gado. Para o estancieiro, essa era uma relação trabalhista interessante e cômoda. Por um lado, como o fazendeiro tinha excesso relativo de terra, trocava o seu uso por trabalho e serviços, que remunerava monetariamente. Por outro, como tinha ao seu lado as forças policiais e a legalidade, quando o trabalho do posteiro não era mais do seu agrado, ordenava apenas sua retirada. A vontade discricionária do proprietário em relação à permanência do posteiro é registrada em O Conde de Piratini e a estância da Música, de Guilhermino César. Nesta obra, como referido, em julho de 1832, o proprietário João Francisco Vieira Braga, monarquista, rico e próspero latifundiário sulino, passa instruções ao capataz, João Fernades da Silva, da estância da Música, localizada na atual cidade rio-grandense de Dom Pedrito. Entre essas instruções, o conde ordenava a retirada do posteiro Santa Anna: “Recomendei ao mesmo meu afilhado Zeferino praticasse com o Santa Anna o Seguinte. Que ele sahisse da Estancia com a sua família, e animaes, dentro em 30 dias; por tanto se elle ainda lá estiver deverá por-se em execução a minha ordem. Dar-lhe 4 arrobas de Sebo para Sabão e velas, e hum pouco de milho, sendo que elle queira receber o meu favor. Não aceitar os Porcos, Galinhas, e qualquer outra ave que elle queira deixar pois me satisfaço mais que levem tudo.”14 13 14

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MARTINS, Campo fora, p. 42-43. CESAR, O conde de Piratini e a estância da música: administração de um latifúndio rio-grandense em 1832, p. 45. Andréia Oliveira da Silva

Na sua instrução, o conde não relata o que motivara a “demissão” do posteiro, mas deixa claro que Santa Anna possuía família, animais e pequena criação, sem mencionar, porém, a existência de plantação, que eventualmente cultivava. Se havia plantação, com a ordem da retirada o posteiro a deixaria para a estância da Música. O pouco que o conde oferecia poderia ser aproximado a uma multa rescisória, inexistente na época, concedida, porém, majestaticamente. O conde não mostra se preocupar com a sorte da família. Nos dias atuais, a forma contratual de prestação de serviço acontece em todos os setores da sociedade – tanto urbana como rural – e o cancelamento do mesmo por parte do empregador envolve, além da multa rescisória, a liberação do FGTS e o seguro desemprego, para que o empregado se sustente e à sua família até conseguir um novo emprego. Entretanto, no campo brasileiro, ainda comumente, o desconhecimento da legislação ou o temor de desagradar o proprietário levam a que posteiros, moradores, etc. abandonem uma propriedade sem reivindicar os direitos reconhecidos pela Justiça. No conto “Por vingança”, de Alcides Maya, em Tapera, de 1911, fato semelhante ao registrado nos papéis da estância da Música acontece ao posteiro Chico Pedro, que tem o prazo de três dias para sair do posto das terras do capitão Lopes, com os filhos e a mulher grávida. A ordem é transmitida por Rodrigues, capataz da estância: “O dono do campo, o velho Lopes, queria o Posto desatravancado em três dias para pôr ali o Pedro Borges com a família.” O fato aconteceu porque, como relatado, Chico Pedro negara-se a votar nas eleições para o candidato do patrão. “Divulgara-se a frase e, transmitida ao velho Lopes, fôra a causa real da expulsão.”15 Assim, o posteiro estava sempre à mercê da ordem do proprietário de abandonar as terras que explorava. Porém, mesmo se a deixasse por sua vontade ou no caso de desenten15

MAYA, Tapera: cenários gaúchos, p. 39 e 46.

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dimento com o estancieiro, perdia, em geral, as benfeitorias e plantações que desenvolvera.

O cercamento e o posteiro O trabalhador posteiro é uma figura que perde gradativamente espaço e identidade no universo pastoril rio-grandense com o cercamento dos campos. Como assinalado, seu trabalho era imprescindível nas indivisas terras do Rio Grande do Sul, uma vez que era incumbido de impedir a fuga do gado, cuidar da fazenda contra invasão de intrusos, auxiliar nos trabalhos pastoris, como rodeio, marcação, invernada, castração, abate, dentre outros. A partir de 1870, iniciou-se o cercamento perimetral das fazendas sulinas, processo que se concluiria, segundo parece, apenas nas primeiras décadas do século posterior. No trabalho citado, o historiador rio-grandense Maestri relata que “as cercas impediam ou dificultavam o pastoreio clandestino de gados dos pequenos criadores nas terras dos latifundiários; a migração dos gados para outras fazendas quando das secas e tempestades; o roubo de gados, etc.”, levando a que os posteiros e suas famílias começassem a desaparecer das grandes fazendas.16 O posteiro via sua categoria social esfacelar-se diante da modernidade produtiva de sua época, já que o alambrado dispensava os postos nas divisas da fazenda, incumbindo-se de cumprir a tarefa de controlar a fuga do gado, etc., como proposto. Também no Uruguai e na Argentina o cercamento dos campos causou enorme desemprego entre os posteiros. O historiador Barrios Pintos refere-se também à desocupação

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MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense (1680-1964). In: _______. O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil, p. 262. Andréia Oliveira da Silva

nos campos uruguaios em virtude da introdução dos alambrados.17 Em sua monografia “O peão de estância, um tipo de trabalhador rural”, realizada em 1969, o sociólogo Laudelino Medeiros previa o desaparecimento por completo do posteiro em poucos anos, o que registra a subsistência daquela categoria social, ainda que marginalmente, nas próprias fazendas cercadas. “Nas estâncias com grandes extensões de campo os posteiros se faziam necessários. Com a diminuição do tamanho das estâncias esse tipo de empregado se torna cada vez mais dispensável.”18 Com o cercamento, a rotina produtiva, as relações de trabalho e a necessidade de mão de obra da fazenda mudaram. Mário Maestri lembra: “O cercamento das fazendas não impedia apenas a fuga dos gados”; diminuía igualmente “o trabalho de ronda dos peões”, pondo fim à necessidade imperiosa de posteiros.19 Embora não houvesse mais a necessidade de cuidar o gado para que não fugisse da estância, o posteiro sofreu metamorfose no início do século 20: tornou-se um agregado, adaptando-se às transformações das fazendas sulinas surgidas pelo cercamento dos campos. No trabalho citado, Laudelino Medeiros denomina o posteiro de “agregado”, pois essa denominação expressaria “melhor a sua situação”, já que era “colocado pelo estancieiro nos limites do campo mais afastados da sede do estabelecimento”, recebendo “autorização para plantar certa área, da qual retira alimentos e vende o produto excedente [...]”.20 Essa mudança ocorrida na vida do posteiro/agregado em razão do cercamento e/ou da diminuição em extensão das fazendas, é 17

18

19

20

PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado: contribuición a la historia rural uruguaya. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 253. MEDEIROS, Laudelino T. O peão de estância: um tipo de trabalhador rural. Porto Alegre: Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969. p. 12. MAESTRI, O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense (1680-1964). In: _______. O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil, p. 259. MEDEIROS, op. cit., p. 12.

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motivo de nosso estudo, baseado em entrevistas realizadas no espaço das pequenas fazendas do norte do estado, sobretudo nos municípios de Arvorezinha, Itapuca e Soledade, nos anos de 1940 a 1990.

Trabalhador posteiro/agregado Em História agrária do planalto gaúcho, de 1997, o historiador rio-grandense Paulo Zarth assinala: “A pecuária representou durante todo o século XIX a principal atividade econômica do planalto gaúcho. Mais especificamente, as estâncias típicas do planalto criavam gado bovino, cavalar, muar e ovino.” Nessa paisagem social, a figura do posteiro era tão comum como na Campanha. Zarth define o posteiro como “agregados que cuidavam do gado em pontos estratégicos longe da sede da propriedade, em troca do direito de plantar e de alguma remuneração”, como já proposto.21 O posteiro/agregado de meados do século 20, objeto de estudo do nosso trabalho, tem algumas funções semelhantes às exercidas pelos posteiros do século 19, inícios do século 20, embora as estâncias sejam menores e o cercamento já uma realidade completa. Entretanto, essa categoria social assume outras funções e conteúdos. Nascido em 25/5/41, na cidade de Itapuca, F. Macedo22 comenta que a vida de posteiro/agregado nunca foi novidade, visto que seu pai sempre trabalhara neste ramo e somente deixou o emprego quando um dos filhos comprou um pedaço de terra e o levou para morar junto, como afirma o depoente: “Tuda vida agregado. Depois o pai voltô a morá lá cum nóis.” Era comum os filhos seguirem os passos dos pais. Não tendo outra perspectiva de trabalho, objetivavam fazer o que seus pais sempre haviam feito. 21 22

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ZARTH, História agrária do planalto gaúcho, 1850-1920, p. 107-108 e 115. Entrevista realizada no dia 26/4/09, em sua residência, na cidade de Itapuca. Andréia Oliveira da Silva

O mesmo aconteceu com O. Felício.23 Nascido em 16/5/32, na comunidade de Campo Bonito/Itapuca, o depoente relata que seus pais sempre foram agregados/posteiros, sem jamais conseguir comprar seu pedaço de terra. Na velhice, foram morar com ele, quando não tinham mais forças para o trabalho na lida campeira e no roçado. Como se vê, no mundo pastoril rio-grandense os filhos seguiam comumente a profissão dos pais, como proposto por Laudelino Medeiros em 1969, ao se referir aos peões e capatazes no estudo citado: “Os capatazes são originários do próprio meio rural e, na grande maioria, da população ocupada na pecuária.”24 Porém, aos se casarem, os peões precisavam procurar uma fazenda para se agregar, já que as pequenas fazendas, quando nasciam nelas, não comportavam duas famílias para dali tirarem seu sustento. A. Silva,25 nascido em 1o/9/50, na cidade de Arvorezinha, comenta sobre o momento em que casou: “[...] eu fiquei um ano em casa, daí fiz uma safra em casa, daí eu me empreguei já, no tipo... duma fazenda, nas terras du Pedro Ferrera Sobrinho.” Em geral, os posteiros/agregados ficavam muitos anos na mesma fazenda e, quando saíam, era sobretudo em virtude das dificuldades postas pela pouca, baixa qualidade ou localização da terra, como descreve o depoente O. Felício, ao comentar a saída de uma fazenda em que morou com a família, neste caso pelo breve espaço de tempo de dois anos: “Eu saí de lá purque o lugá era brabo, era ruim de trabaiá, era longe, longe, fazia muito sacrifício [...].” A. Silva ressalta que a motivação para a troca de propriedade foi a pouca extensão de terras – cerca de dezoito hec23

24 25

Entrevista realizada no dia 27/4/09, em sua residência, na comunidade de Campo Bonito - Itapuca MEDEIROS, O peão de estância: um tipo de trabalhador rural, p. 17. Entrevista realizada no dia 16/9/07, em sua residência, na comunidade de Linha Capinzal - Itapuca.

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tares: “[...] daí apareceu otra propriedade, que era propriedade grande e eu já tava começando, daí já tava apertado o lugá, né.” Já F. Macedo trabalhou em apenas uma fazenda durante 23 anos, com 280 ha, sendo 140 ha de mato e 140 ha de campo. Em ambos os casos, os agregados/posteiros não recebiam remuneração monetária para cumprir as tarefas, não existindo igualmente um contrato formal e legal que selasse o acordo. Tudo se dava na “palavra”, como afirma o depoente A. Macedo: “Não tinha nada, só no peito mesmo, na palavra, contrato de home pra home, não tinha nada. Não tinha documento, não tinha nada, nunca tivemo. Trabaiemo assim direito cum ele, se acertemo, sumo amigo, nunca encrenquemo.” Não registramos nos depoentes ressentimentos pelo tipo de contratação imposta. Pelo contrário, eles se sentem lisonjeados, consideram-se homens honrados, “de bem”, pois nunca criaram “problemas” ao seu patrão/estancieiro, nem nunca tiveram problemas com eles. Ao invés de salário, o patrão-proprietário cedia uma pequena parte das terras da fazenda para que plantasse e criasse gado. Não raro, exigia um terço da plantação ou até mesmo “as meias”, dependendo da quantidade de terra destinada, como comenta A. Silva, referindo-se ao acordo feito na primeira fazenda em que trabalhou durante oito anos: “Era a terça parte. De treis eu ficava cum duas e ele cum uma.” O mesmo acontecia com F. Macedo, em que o acordo era “a meia, sempre, sempre, sempre. Ingordava as vaca dele lá, mas aquela é dele, eu tinha a meia da roça: de mio, fejão, arroiz, soja [...]”. Portanto, o gado que engordava, sob os cuidados do agregado/posteiro e de sua família, era todo do proprietário, que participava, igualmente, do resultado da plantação, produto do trabalho do seu arrendatário com sua família, tudo obtido sem qualquer investimento, a não ser a terra cedida. Durante o acordo “de palavra” feito com o proprietário/patrão, o postei100

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ro e sua família tinham suas atribuições diárias acertadas no decorrer da conversa. Entre as tarefas contratadas pelo posteiro/agregado e sua família estavam a de cuidar do gado – contagem diária, chamar para o rodeio, vacinação, marcação, castração, ajuda na transferência do gado para fazendas maiores de propriedade do mesmo patrão, etc. O depoente A. Silva lembra: “[...] já fui cum contrato de repará o gado pra ele.” Porém, se o serviço se dividia entre a lida campeira e o roçado, as primeiras tarefas, em favor exclusivo do proprietário, tinham predominância, como comenta o depoente F. Macedo: “[...] se nóis fosse banhá o gado aí ficava direto, dois, treis dia só lidando com o gado, despois quando nóis terminava ia pra roça.” Em alguns casos, a família dependia fortemente do patrão, já que os “ranchos” e as “compras” eram feitos na cidade pelo estancieiro, e depois “acertados” com o agregado. No mesmo sentido, se houvesse necessidade de contratar um peão para a colheita do roçado, era o agregado quem pagava o seu salário, com dinheiro emprestado, eventualmente, pelo patrão. Por isso, era muito comum a ajuda comunitária em forma de “puxirum”, quando se reuniam amigos/vizinhos para realizarem tarefas na fazenda (plantar, colher,...). Não havendo remuneração monetária nessas atividades, a ajuda em geral era recompensada com um almoço festivo, lembrada assim pelo depoente F. Macedo: “Os peão pagava eu da minha parte, ele só me emprestava dinhero. Se tocasse de pagar um peão, dois, treis... naquele tempo nóis fazia muito pixurum, nos meu pixurum era trinta e cinco, quarenta peão que eu arrumava, mas daí por minha conta, carneava um porco, né...” Era muito forte a dimensão patriarcal do proprietário. O patrão era visto como um “homem bom”. O depoente O. Felício agrega neste sentido: “[...] eu considerava uma pessoa boa, viu... sobre duença, quarque coisa ele sempre me atendeu [...]. “Coitado do home”: o posteiro em fins do século 20 no norte do Rio Grande do Sul

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Até se demo com ele que tá loco, até hoje!” A mesma visão é compartilhada pelo depoente F. Macedo – “mais muito bom! Mais se acertemo, morei lá vinte e treis ano e saí de lá porque quis [...]”. O posteiro acomodava-se na condição de viver “nas franjas da fazenda”. Mantinha a ilusão de liberdade, de poder migrar quando não se sentisse mais à vontade de trabalhar na terra que lhe haviam cedido. Sem forma contratual explícita, sua chegada ou saída de uma fazenda consistia numa operação rápida e sem burocracia. Tratava-se apenas de um acordo em conversa entre patrão e agregado.

A esposa do posteiro Em geral, ao contratar um posteiro/agregado, o proprietário subentendia que os compromissos assumidos por ele estendiam-se igualmente a sua família, ou seja, mulheres e filhos. Era difícil que um posteiro/agregado solteiro se desincumbisse sozinho das tarefas contratadas. O posteiro coordenava o trabalho a ser feito, delegando em geral, sem discussão, tarefas aos filhos e à mulher. Sua esposa tinha um papel importante no serviço braçal, mas quase nulo nas decisões familiares, como citado pela depoente M. Silva,26 nascida em 28/8/47, em Arvorezinha: “[...] nunca falava nada [discutia], ele fazia tudo como ele pensava.” Em geral, as mulheres de posteiros/agregados tinham um número considerável de filhos, como a depoente A. Macedo,27 nascida no dia 23/4/51, na cidade de Nova Alvorada, que teve seis filhos, todos de parto normal, realizados em sua casa. Ela descreve a parteira como uma acompanhante no momento do parto: “Só companhera, assim que nem eu e tu tamo prosian-

26 27

Entrevista realizada em 30/9/07, na cidade de Marau. Entrevista realizada em 26/4/09, em sua residência, na cidade de Itapuca.

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do, mas não precisava botá a mão em mim.” E acrescenta: “Era sempre a mesma, a tal da Alexandra Ferrera.” A depoente M. Soares,28 nascida em 4/9/35, na cidade de Guaporé, relatou que teve oito filhos, igualmente de parto normal, também em casa. Entretanto, por causa da distância, não mandava chamar parteira; era o seu marido quem a auxiliava no parto e cortava o cordão umbilical: “Tudo em casa, era o Mário que cortava [o cordão umbilical].” A depoente M. Silva relata que nos dois primeiros partos teve o auxílio da parteira, chamada às pressas pelo seu esposo: “Nos dois primero eu comecei a senti dor, aí foi chamado a partera, daí feiz uma afumentação na gente e daí nasceu”; esta afumentação “fazia cum remédio quente lá, chá, dava chá pra tomá tumém, chá de mangerona pra dá as dor”. A parteira ficava na casa da depoente “um dia mais u menos”, e o pagamento “ela cobrava argum que quizesse dá, né”. A partir do terceiro filho, a parteira era chamada após o término do parto, para, então, cortar o cordão umbilical: “[...] a genti trabaiava até na úrtima hora, quando cumeçava as dor dava um jeito de deitá na cama e ganhá”, a(s) parteira(s) que auxiliava “era essa mesma véinha, dona Mara. Otra veiz, foi a dona Santa. Eu não cortava purque tinha medo, né”. Embora as depoentes soubessem da existência de contraconceptivos, não tinham cuidados em evitar a gravidez. Entre as possíveis razões desse comportamento destacamos o pouco contato com a cidade, já que raramente iam ao médico e que era comum e desejável que tivessem muitos filhos para, principalmente, auxiliar na lida campeira e no roçado. Assim relata a depoente A. Macedo: “[...] naquela época não se interessava muito nisso né, achava que a vida era bela, né (risadas).” Sobre o número considerável de filhos, comentou:

28

Entrevista realizada em 27/4/09, em sua residência, na comunidade de Campo Bonito - Itapuca.

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“[...] naquela época era um atrás do outro, hoje as pessoa tem um, dois e para por ali.” Como assinalado, a esposa do posteiro/agregado trabalhava diariamente no roçado, rotina descrita pela depoente A. Macedo: “[...] fazia o serviço em casa e ia pra roça. Levantava cedo, fazia o serviço de manhã cedo, depois tratava as criança e ia pra roça. Daí pelas onze, onze e poco vinha pra casa fazê armoço, ia pro tanque lavá ropa pra depois í pra roça denovo.” Algumas mulheres de posteiros, como a depoente M. Silva, obtinham uma renda mensal com a produção e a venda de queijos, única forma que havia para ser remunerada monetariamente: “É só quando vindia quejo as veiz, daí eu pegava pra comprá ropa pros filho,compra cumida.” Pelo acordo tido com o estancieiro, o esposo da depoente M. Silva podia criar seu gado no campo do patrão, assim lembrado por ele: “Teve uma época que tinha... sete a oito vaca sempre, junta de boi cinco, seis e ternerada e animal sempre eu tinha cinco, seis de cavalo.” Para a esposa do posteiro, o domingo era o único dia de folga. Esse dia era aproveitado para ir à missa, para raras visitas aos parentes e para se organizarem para a nova semana (lavar roupa, procurar lenha...). Quando questionada sobre essa cansativa rotina de trabalho, a depoente A. Macedo disse que sentia saudades “daquele tempo”, pois era “um lugá calmo, abençoado. Gostava do gado, porco, da liberdade! [...] daquela minha roça que eu andava com a gurizada, até do mato eu tenho saudade [...]”. Em geral, nos depoimentos femininos não há queixas, reclamações, ressentimentos. As mulheres resignavam-se com o destino, com a lida e, como assinalado, expressam a saudade da “liberdade” (ou ilusão de liberdade) do campo. Certamente registram também nos depoimentos a saudades da juventude.

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O estancieiro e sua esposa eram verdadeiramente endeusados pelas depoentes. Eram vistos como “salvadores”, pois haviam dado “oportunidade” às suas famílias de morarem em suas terras e terem, assim, condições de criarem os filhos. A depoente A. Macedo define o proprietário/patrão como “mais que um pai”, com quem mantém contatos “até hoje, se eu precisá de uma opinião dele e ela também”.

Os filhos Para conseguir dar conta da lida campeira e do roçado, eram necessários muitos braços. Para isso, como assinalado, o posteiro/agregado contava com os filhos. As famílias tinham em torno de seis a dez filhos, que estudavam geralmente até a quarta série. Os filhos homens auxiliavam nas tarefas desde pequenos – roçavam à beira da estrada, capinavam a lavoura e, por volta dos onze anos, trabalhavam na lida campeira. O depoente A. Silva destaca sobre as obrigações dos seus filhos na estância: “[...] trabaiá na roça, depois que vinho do colégio.” Por sua vez, o depoente F. Macedo ressalta: “[...] criei tudo eles indo pra roça, no campo, o mesmo que eu tive, eles tiveram também.” Com as filhas mulheres, o cotidiano de trabalho era igual, variando apenas algumas funções: aos oito anos, aquelas que não ficavam fazendo serviços domésticos iam trabalhar na plantação. Nos depoimento, fica evidenciado que o mesmo modo de vida mantinha-se através das gerações, reafirmado na manutenção da mesma conduta e das mesmas visões de mundo, ensinadas de pai para filho e de mãe para filha, em reafirmação de práticas produtivas que reafirmavam as relações de subordinação, sem um horizonte de transformação. Destaque-se, porém, que entrevistamos apenas famílias que permaneceram arraigadas a essa forma de existir.

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Todavia, em fins do século 20, o panorama mudou: o acerto por “palavra” tende a desaparecer, diante da extensão ao campo da legislação trabalhista e da possibilidade de se recorrer à Justiça, e o apelo que a cidade exercia sobre os filhos de agregados, que em geral não tinham mais espaço no universo pastoril, em razão das transformações na estrutura produtiva, como pastoreio intensivo, granjas, etc. Tudo isso tendeu a mudar a rotina diária do trabalhador posteiro/agregado, levando a que gradativamente desistisse da lida. A independência crescente dos filhos, cada vez menos numerosos, foi também um rude golpe nessa forma de produção. A família do posteiro esfacelava-se e ele perdia mão de obra imprescindível à agrícola-pastoril, impossibilitando que levasse adiante sua atividade. O depoente Macedo lembra a justificativa dada ao patrão sobre a sua vontade de ir embora: “[...] os piá tão saindo tudo, eu acho que vô comprá um pedaço de terra, um terreno, vô pra argum lugá, os piá tão saindo.” Diante da insistência do proprietário para que ficasse, prossegue: “[...] mas não adianta, os piá tão saindo, tuda vida prantei as meia contigo, sempre a metade, to cansado, vô saí.”

A desistência da profissão Para o sociólogo Laudelino Medeiros, além das causas já citadas – cercamento e a perda da mão de obra familiar –, outro elemento dissolvente dessa forma-relação de produção foi a “mudança na organização social da vida rural”, que ensejou, como assinalado, o surgimento de “relações racionais-contratuais”, fundamentais no “desaparecimento do posteiro”.29 A remuneração em dinheiro e o controle na execução das tarefas cotidianas corroeriam a confiança recíproca, desestimulando este tipo de profissão. 29

MEDEIROS, O peão de estância: um tipo de trabalhador rural, p. 12.

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Embora resignado com seu destino, afirmando que gostava da lida campeira e, sobretudo, do seu patrão, o posteiro/ agregado tinha consciência da sua situação e das implicações para o futuro. O. Felício justifica a sua desistência da profissão e a aquisição de seus dois hectares de terra dizendo: “[...] aqui é meu, né. Comprei este cantinho e lá o que eu fazia não tava fazendo pra mim, tava fazendo pros outro, né.” A felicidade do depoente por ter sua propriedade era tanta que, antes da construção da casa, primeiro fez uma capela para Nossa Senhora, agradecendo a graça alcançada através de longos e duros anos de trabalho na propriedade de seu patrão. O mesmo desejo de ter o seu “chão” era compartilhado pelo depoente F. Macedo, que ressalta a melhora de vida: “[...] melhorô porque aí trabaio pra mim, lá eu trabaiva as meia, o que coio é meu.” Mesmo com a concepção/ideia implícita de captação/expropriação de parte do trabalho pelo patrão/estancieiro, em razão da propriedade da terra, o proprietário é ainda visto como um homem a quem se devem favores. Quando questionado por um amigo se iria “dar parte” (na Justiça Trabalhista), por direitos não respeitados, o depoente F. Macedo responde: “[...] mas que jeito, coitado do home, sempre nos demo bem, ele não me mandô embora, é eu que quero.”

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A apropriação da terra no Brasil: da Lei de Sesmarias à Lei de Terras (1532-1850) Helen Scorsatto Ortiz* Com relação à apropriação das terras, a primeira normalização da Coroa portuguesa dirigida ao Brasil foi o regime de concessão de sesmarias, oficialmente introduzido com as capitanias hereditárias. Entre os estudiosos do assunto, é consenso que a Lei de Sesmarias representou a transposição da legislação portuguesa nascida no século 14 para a América, onde assumiria características muito particulares. Em Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, Lígia Osório Silva destaca que “as concessões de sesmarias [...] não representaram o resultado de um processo interno de evolução de formas anteriores de apropriação. Resultaram da transposição para as terras descobertas de um instituto jurídico existente em Portugal”.1 As condições históricas dominantes nas colônias luso-americanas forçaram a metamorfose na Lei das Sesmarias. De caráter claramente feudal, ao ser aplicada à realidade colonial do Brasil, a lei promoveu a formação de um tipo de propriedade e de relações sociais não feudais.

* 1

Doutoranda no PPGH da PUCRS. E-mail: [email protected] SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: EdiUnicamp, 1996. p. 21.

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O regime de sesmarias foi criado no final do século 14, quando Portugal passava por um período de grandes crises e transformações. Chegada à península Ibérica no meio do século, a Peste Negra matou milhares de pessoas, provocou forte queda na oferta de mão de obra, sobretudo rural, fazendo subir o valor dos salários. Ao mesmo tempo, as duras condições sociais do trabalho nos campos, o comércio, a prática de novos ofícios e a esperança de uma nova realidade atraíram parcelas da população às cidades, deixando a produção rural cada vez mais necessitada de braços para a lavoura. O êxodo rural contribuiu para a elevação dos salários no campo e para a falta e encarecimento dos alimentos de uma forma geral. Em Portugal, as crises alimentares que se sucediam havia décadas somaram-se à peste para delinear um quadro de profunda carestia. Além disso, havia a luta entre a agricultura e o pastoreio, atividade que exigia menor número de trabalhadores, menos dispendiosa e mais lucrativa do que o cultivo de alimentos.2 A crise no campo favoreceu sobremaneira aos trabalhadores feudais. Como assinalado, uma conjuntura delineada por forte queda na oferta de mão de obra rural, juntamente com a elevação dos jornais miseráveis e com a existência de significativas parcelas de terras improdutivas, permitiu a extinção da servidão da gleba, já no século 13. Desde então, como lembra Jacob Gorender em O escravismo colonial, o “camponês ficou livre para mudar de senhorio, mas sempre submetido ao complexum feudale dos encargos ou tributos senhoriais”.3 Com base na análise desses diversos aspectos, podemos entender o porquê da criação da Lei das Sesmarias. Os inúmeros problemas enfrentados pela economia e pela sociedade 2

3

Cf. RAU, Virgínia. Sesmarias medievais portuguesas. Lisboa: Presença, [s. d.]. p. 76-88. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6. ed. São Paulo: Ática, 2001. p. 106.

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levaram o Estado feudal português a pensar em alternativa que sanasse não só a escassez de cereais, mas também a falta de gado e de trabalhadores para a lavoura, e que estancasse o crescimento da população tida pelos proprietários como ociosa e pedinte, sobretudo nas cidades.4 Na lei baixada por dom Fernando fica clara a intenção de, por um lado, impedir que as terras continuassem incultas e, por outro, manter e reproduzir o caráter feudal da expropriação do trabalho e da apropriação da terra. De acordo com a autora Virgínia Rau, em Sesmarias medievais portuguesas, um “fato curioso de registrar é que na lei se empregou dezenove vezes o verbo coagir e nem numa só foram usados os termos sesmaria e sesmeiro”.5 Podemos dizer que para resolver a crise da produção agrícola feudal portuguesa, a Lei das Sesmarias preocupouse em forçar os proprietários a cultivar alimentos; estabelecer prazos para a efetivação desses cultivos; facilitar a aquisição de bois àqueles que tivessem lavouras; compelir ex-lavradores, seus parentes e outros a trabalhar na terra; estabelecer o valor máximo do salário de um trabalhador rural.6 Para a infração de cada uma dessas regras foram impostas penalidades, que confirmam o caráter coercitivo da lei: perda da posse da terra, multas, açoites e degredos. Como exemplo, o proprietário que deixasse sua terra inculta ou não respeitasse o prazo estipulado ao seu aproveitamento, a perderia para outro que a cultivasse; seria multado quem pagasse a um trabalhador salário maior do que o fixado.7 A Lei das Sesmarias caracterizou-se como regra econômica e social, objetivando reforçar o padrão de propriedade e de exploração feudal da agricultura e da nação portuguesa 4 5 6

7

Cf. RAU, Sesmarias medievais portuguesas, p. 90. Cf. Idem, p. 92. Vide Ordenações afonsinas. Livro IV. Título 81. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Idem.

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da época. Foi instrumento jurídico que visou à ocupação produtiva das terras ociosas, ao mesmo tempo em que coagiu a reprodução das relações feudais de produção. Virgínia Rau lembra: “Enquanto se procurava promover o aproveitamento da terra, punindo com a expropriação o proprietário que a deixasse inculta, tentava-se fornecer-lhe os braços necessários para o seu amanho, coagindo o maior número de indivíduos ao mester da lavoura, e entravava-se o encarecimento da mão-de-obra taxando os salários máximos.”8 No Brasil, o regime de concessão de sesmarias perseguiu objetivos diferentes e, ao longo dos quase trezentos anos em que vigorou (1532-1822), resultou em situações também bastante diversas daquelas vividas pela Metrópole. Em Nas fronteiras do poder, a historiadora Márcia Motta explica que, na América, a aplicação da Lei das Sesmarias portuguesas deveria principalmente ser capaz de assegurar e regularizar a colonização. Para além de promover o cultivo e aproveitamento do solo, aquele instituto jurídico serviria na ocupação e exploração das terras do Brasil, enquanto área colonial. “[...] pressuposto inicial da implantação do sistema de sesmaria era regularizar institucionalmente a colonização; a ocupação do território brasileiro significava o cultivo de produtos de exportação, configurando assim a clássica relação entre colônia e metrópole.”9 Entretanto, o estabelecimento de processo de colonização das terras americanas supunha, igualmente, a introdução e reprodução de sociedade de classes sobre a qual se assentava a Coroa lusitana. A concessão de sesmarias com extensões, em geral, de treze mil hectares mostrava claramente o desejo de promover uma colonização dominada por grandes proprietários de terra, tendo sob suas ordens inúmeros traba8 9

RAU, Sesmarias medievais portuguesas, p. 86. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura; Arquivo Público do estado do Rio de Janeiro, 1998. p. 122.

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lhadores, responsáveis por produzir diretamente, promover o sustento e gerar renda aos detentores da sesmaria. Em Portugal, a Lei das Sesmarias não permitia o acréscimo de rendas, às que já gravavam, anteriormente, as terras abandonadas, ao serem redistribuídas. Nessa construção ideal, os trabalhadores seriam homens livres, ao igual que em Portugal. Contudo, essa vontade encontrou obstáculos na realidade prática da Colônia. Por um lado, as terras conquistadas às populações nativas não eram gravadas por rendas feudais. Portanto, as sesmarias distribuídas em solo luso-americano foram entregues sem ônus e rendas feudais aos seus proprietários. Por outro lado, inexistiam na colônia condições para a formação, mesmo que por transposição, de uma classe de camponeses livres, disposta a trabalhar como produtores diretos nos latifúndios, pagando direitos e rendas, como acontecia na Metrópole e em grande parte da Europa da época. Na América, a formação de uma classe de trabalhadores livres dispostos a trabalhar em propriedade alheia foi impedida pela abundância de terras. Com essa disponibilidade, é fácil imaginar que um camponês livre trazido da Europa optaria, como em geral optou, nos primeiros tempos, por criar lavouras próprias ao invés de se submeter às duras condições de produção na agricultura mercantil. Normalmente, esse pequeno produtor independente, chamado posseiro, estabeleciase às margens das sesmarias. Não agraciada com as concessões sesmeiras, boa parte da população livre subalternizada viu na posse a forma de se apropriar não oficialmente da terra necessária para plantar e viver. Quando contestada su ocupação e expulsa do terreno, deslocava-se para outra região, enquanto existiu esta oportunidade. A exploração agrícola foi a solução encontrada pelas classes dominantes portuguesas para promover a ocupação e defesa das novas possessões. Dadas as condições da época, do ponto de vista social e econômico da Coroa e dos grandes 112

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proprietários lusitanos, somente era lucrativa a grande exploração, com produção voltada para o mercado externo. Assim, eles optaram por adotar um sistema ancorado na monocultura, na escravidão e no latifúndio, já instalado na ilha da Madeira, em São Tomé, na costa da África, etc., sistema conhecido como plantation pela historiografia e que Jacob Gorender denominou de “plantagem”.10 A plantagem apresentava vantagens em relação às explorações menores no tocante à taxa de lucro, já que se caracterizava por um alto número de trabalhadores concentrados e subordinados, que produziam em larga escala, utilizando a divisão de tarefas – que acelerava a produção e permitia economia de materiais. Essa forma de produção era permitida pelo desenvolvimento do mercado internacional, dos meios de transporte, da maquinaria da época, etc. A opção pela plantagem determinou que a colonização de base açucareira na posse portuguesa na América se desse em grandes extensões de terra. Afinal, nessa perspectiva, havia necessidade de solo para o cultivo da cana e de outros gêneros alimentícios, consumidos localmente; para a pastagem dos animais, para obtenção de lenha aos engenhos e para as chamadas áreas de reserva, futuramente utilizadas para a agricultura em substituição às terras “cansadas” e já exploradas durante algum tempo. Analisando a realidade da grande produção, o historiador Mário Maestri destacou que, “do ponto de vista da plantagem, o latifúndio não é uma excrescência, mas uma necessidade”.11 Em palavras de Jacob Gorender, a “própria forma plantagem já continha a tendência ao monopólio da terra pela minoria privilegiada dos plantadores. Cada plantador trataria de se apossar da maior extensão possível, antes que o 10 11

GORENDER, O escravismo colonial, cap. 3. MAESTRI, Mário. Breve história da escravidão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

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fizessem os concorrentes”.12 O autor ainda destaca o papel do status e aplicação do instituto das sesmarias como fatores que contribuíram para a formação da estrutura latifundiária na América portuguesa, embora sem influência primordial. Como visto, a abundância de terras livres em solo americano impossibilitou a formação de classe de trabalhadores livres e sem terra, portanto, obrigados a vender a força de trabalho por remuneração vil, em razão da impossibilidade de produzirem seus meios de subsistência. Assim, o funcionamento da plantagem, com a consequente produção de gêneros para exportação, ancorou-se na escravização do trabalho. Durante séculos, milhares de trabalhadores escravizados formaram plantéis que labutaram quase sem descanso nos latifúndios coloniais. A princípio, os cativos foram os próprios nativos americanos; posteriormente, escravizaram-se os africanos, trazidos à América em navios negreiros pelo tráfico transatlântico. Definidas nas Ordenações portuguesas, sesmarias eram, originalmente, “propriamente as dadas de terras, casais, ou pardieiros que foram ou são de alguns Senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são”.13 Cabia aos sesmeiros desapropriar as posses incultas e redistribuí-las àqueles que as pudessem semear. Esses funcionários eram escolhidos entre os “homens bons” de cada cidade ou vila, devendo conhecer todas as terras e pessoas do lugar e zelar para que o solo fosse lavrado e aproveitado. Oneravam as terras distribuídas os antigos encargos feudais que sobre elas pesavam, ou seja, como vimos, quem as recebia, ao distribuí-las para a exploração, receberia as antigas rendas que pesavam sobre as propriedades, sem poder acrescer novos encargos a elas. 12 13

GORENDER, O escravismo colonial, p. 376. Ordenações manuelinas. Livro IV. Título 67. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [s. d.]. p. 164; Ordenações Filipinas. Livros IV e V. Título 43. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [s. d.]. p. 822.

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Tamanho poder deu margem a contestações, considerando que a decisão de desapropriar a terra e repassá-la a outrem recaía nas mãos de poucas pessoas. Em História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV, o historiador português Henrique da Gama Barros chamou atenção para esse fato: “[...] [ficaria] ao critério de um só homem a apreciação das circunstâncias, em que a perda do direito de propriedade se dizia justa, e é esse mesmo homem que tem autoridade para escolher quem há de ganhar com a condenação. Embora dos atos do sesmeiro se pudesse recorrer para as justiças ordinárias [...] é fácil conjeturar os sacrifícios de tempo e de dinheiro a que muitas vezes havia de dar motivo a reparação do ato, ainda nos casos em que viesse a ser obtida.”14 Mas não nos enganemos. Jacob Gorender destaca que essa disposição da lei de redistribuir a terra inculta não teve tão efetiva aplicação prática quanto o dispositivo de recrutamento forçado de jornaleiros, que deveriam trabalhar em troca de salários tabelados.15 Contudo, o que interessa aqui é ressaltar a diferente conceituação do termo “sesmeiro” usado na Metrópole e na Colônia. Em Portugal, sesmeiro era o juiz que distribuía as terras, ou seja, o funcionário encarregado de dar as sesmarias, ao passo que no Brasil o termo referia-se àquele que recebia a sesmaria.16 O termo “sesmaria” seria também inapropriado para o caso brasileiro, pois as terras ocupadas pelos colonizadores não eram incultas ou desaproveitadas. O historiador Mário Maestri, ao escrever Os senhores do litoral, esclarece: “No início do Quinhentos, comunidades tupinambás ocupavam, com 14

15 16

BARROS, Henrique da Gama. História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, [s.d.]. Tomo VIII. p. 326. GORENDER, O escravismo colonial, p. 109. Ver PORTO, José da Costa. Sistema sesmarial no Brasil. In: Encontros da UnB terras públicas no Brasil – documento. Brasília: EdiUnB, 1978. p. 25; GORENDER, O escravismo colonial, p. 390.

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diversos nomes, a maior parte da faixa litorânea que ia da foz do rio Amazonas à ilha de Cananéia, no litoral paulista [...]. Eles viviam em comunidades aldeãs não classistas que praticavam [...] a horticultura, a caça, a pesca e a coleta [...] produziam sobretudo tubérculos (mandioca-brava, mandiocadoce, batata-doce), leguminosas (feijões, vagens) e cereais (milho).”17 Destaque-se, portanto, que essas terras não eram gravadas por direitos feudais, como já proposto, apesar de, em geral, conhecerem ocupação e exploração por comunidades nativas. Em Portugal, a concessão sesmeira estava carregada de ônus e encargos senhoriais. Inversamente, no Brasil, a distribuição das sesmarias aos sesmeiros deu-se de forma gratuita, embora houvesse a obrigatoriedade do pagamento do dízimo de Cristo – que no Brasil representou um imposto, não renda feudal.18 No entanto, seguindo as normativas iniciais da lei, a posse estava condicionada ao aproveitamento da terra, que deveria ser realizado em um prazo determinado (cinco anos), sob pena de reverter à Coroa, tornando-se devoluta. Como explica o professor e advogado José da Costa Porto, em artigo sobre o sistema sesmarial no Brasil: terra “devoluta na origem, na natureza primitiva é aquela que, dada de sesmaria, e não cumprida uma das exigências fundamentais, voltava à Coroa”.19 No Brasil, posteriormente, o entendimento de terras devolutas como sendo as sesmarias não aproveitadas, portanto, devolvidas à Coroa, ou seja, resgatadas por ela, foi substituído por nova significação. Embora a lei continuasse a mesma, usualmente “as cartas de doação passaram a chamar toda e 17

18 19

MAESTRI, Mário. Os senhores do litoral: conquista portuguesa e genocídio tupinambá no litoral brasileiro. [século XVI]. 2. ed. Porto Alegre: EdiUFRGS, 1995. p. 43-44. Cf. GORENDER, O escravismo colonial, p. 382-384. PORTO, José da Costa. Sistema sesmarial no Brasil. In: Encontros da UnB..., p. 27.

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qualquer terra desocupada, não aproveitada, vaga, de devoluta; assim consagrou-se no linguajar oficial e extra-oficial, devoluto como sinônimo de vago”.20 Tal definição foi legalizada em 1850 no texto da Lei de Terras. Na prática, para o caso brasileiro, são raros os exemplos de sesmarias resgatadas pela Coroa, mesmo diante do descumprimento das recomendações de prazo e possibilidade real de cultivo. Não constituía interesse da administração colonial penalizar os sesmeiros, pois eles eram o vetor da imposição e extensão da autoridade e da riqueza do Estado, em detrimento das comunidades nativas e das possessões de Castela. Assim, continuou-se a abrir espaço para a formação de latifúndios, comumente semi ou muito escassamente explorados. Foram comuns doações de quatro, cinco, dez e vinte léguas quadradas; também não havia restrição quanto ao número de sesmarias que uma pessoa poderia requerer, ao menos até o século 18.21 Jacob Gorender destaca que, se “a plantagem, por si mesma, implicava a grande exploração, a verdade é que, de modo geral, as propriedades fundiárias dos plantadores ultrapassavam de muito a extensão estritamente imposta pelas normas técnicas habituais”.22 Essa prática a Coroa não via como problema. A principal causa da tolerância do Estado estava ligada ao fato de que a apropriação sesmeira, efetuada legal ou ilegalmente, representava expansão da ocupação e exploração das terras americanas. O sesmarialismo teve papel fundamental na formação da economia colonial, que se caracterizou pela monocultura latifundiária, com base no trabalho escravizado e no latifúndio, buscando atender às necessidades do comércio externo. Ao distribuir terras somente àqueles que já possuíam recursos, a Coroa portuguesa promoveu a formação de extensas pro20 21 22

SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 39. Cf. Id. ib., p. 45. GORENDER, O escravismo colonial, p. 375.

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priedades particulares na América e vedou o acesso ao solo a qualquer outro sujeito social. “O nativo, o trabalhador escravizado, o lavrador nacional ficaram à margem do processo de acesso à terra.”23 De acordo com Alberto Passos Guimarães, em Quatro séculos de latifúndio, para “os poderosos de então, tivessem o prestígio da nobreza ou do dinheiro, as concessões não encontrariam limites, além dos confinados pela força das armas nas lutas pela expropriação do indígena”.24 Atente-se que a realidade não correspondeu a uma colonização aristocrática, pois o que interessava à Coroa era a valorização econômica do território. À exceção de algumas restrições, como a de ser súdito lusitano livre, à Metrópole importava doar as sesmarias àqueles que dispunham de recursos para explorar a terra e, assim, manter o domínio sobre a região e reproduzir as relações de exploração, fosse qual fosse seu status estamental. Importantes extensões de terra foram cedidas a “cristãos novos de judeus”, que se estabeleceram como engenheiros no Brasil. Com propriedade, Jacob Gorender destacou que “o principal critério seletivo estava na própria lei que condicionava a extensão das sesmarias às possibilidades de cultivo dos pretendentes”.25 Não houve qualquer interdição quanto à concessão de sesmarias a indivíduos com ascendência nativa e africana, quando ingressavam nos extratos sociais dominantes. A concessão sesmeira foi o padrão dominante de apropriação da posse da terra na época colonial. Em contraponto aos sesmeiros, os posseiros ocupavam pequenas parcelas de terra, produzindo gêneros para atender a sua necessidade. Por sua vez, pequenos plantadores, apoiados por alguns ca23

24

25

FIABANI, Adelmir. Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004). São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 354-355. GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 52. GORENDER, O escravismo colonial, p. 393.

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tivos, produziram para a subsistência e para suprir as necessidades dos latifúndios exportadores. Enquanto o posseiro não se opôs à expansão geográfica do latifúndio, subsidiando, eventualmente, em gêneros alimentícios e mão de obra, o Estado colonial também não se opôs à propriedade dos posseiros, ou seja, permitiu sua existência, enquanto foi acessória à grande exploração escravista. Tentando caracterizar a propriedade sesmeira no Brasil, a historiadora Helen Osório concluiu que “juridicamente a propriedade não é plena por estar condicionada às exigências de cultivo, confirmação e demarcação, sendo revogável em caso de descumprimento. No entanto, sabe-se que, a não ser episodicamente, as sesmarias não foram anuladas por esse motivo. Também a limitação da extensão não se deu na prática. O uso da propriedade não era absoluto: o sesmeiro era obrigado a conservar certas árvores, como a peroba e o pau-brasil; no caso de se descobrir um rio nas terras, meia légua devia ser reservada na margem para serventia pública e no caso de minas de qualquer gênero de metal, perdia-se o terreno onde estavam localizadas. Tampouco concretamente a propriedade era plena e absoluta; era antes instável, incerta e indivisa”.26 Na teoria, a Lei das Sesmarias não supunha um direito pleno à terra. Entretanto, a própria autora concorda que, na prática, a revogação da concessão e a limitação de sua extensão não se deram efetivamente. Isso mostra “a impotência das barreiras legais à tendência inerente ao escravismo no sentido do princípio do direito pleno à propriedade privada da terra” e o domínio que os interesses dos latifundiários exerciam na sociedade colonial, ainda que subordinados às classes metropolitanas feudais e mercantis.27 Devemos relativizar o caráter “instável”, “incerto” e solidário da concessão sesmeira, 26

27

OSÓRIO, Helen. Regime de sesmarias e propriedade da terra. Biblos, Rio Grande, 5. p. 109-110. GORENDER, O escravismo colonial, p. 395.

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que, precisamente por sua estabilidade, certeza e liberdade de qualquer trava feudal, garantiu a expansão incessante da ocupação do território pela expansão da produção escravista mercantil. O caráter plenamente mercantil das sesmarias foi característica marcante do regime da propriedade no Brasil. Lígia Osório Silva esclarece que “surgiu na colônia [a prática] de se demandar sesmarias imensas para vendê-las retalhadas. [...] [e essa prática] era facilitada pelo fato de que a legislação não impedia que uma pessoa recebesse mais de uma sesmaria, pelo menos até o século 18. Assim, houve casos de várias sesmarias concedidas a um mesmo indivíduo, e casos de indivíduos que as requeriam em nome ‘das mulheres, dos filhos e filhas, de crianças que estavam no berço e das que ainda estavam por nascer’”.28 O caráter mercantil das sesmarias estava em sintonia com a dinâmica própria do escravismo, que, como refere Jacob Gorender, “não se adequava à vinculação perpétua, porém a desvinculação, a alienabilidade plena da terra”.29 O autor destaca que desde inícios do século 17 há notícias sobre a venda de terras na Colônia luso-brasileira. Essa prática parece efetivamente ter sido comum no período colonial, fosse motivada por falta de recursos a investir na propriedade, fosse pela busca de terras mais férteis, para saldar dívidas, para lucrar com terras que se valorizavam...30 Desde o início da colonização, as concessões sesmeiras no Brasil estavam isentas de tributos feudais. No final do século 17, a exigência burocrática de pagamento de um foro tentaria modificar a gratuidade. Segundo Alberto Passos Guimarães, “viria a Real Ordem de 27 de dezembro de 1695 inaugurar a cobrança de um tributo até então inexistente. Instituía-se assim, ‘além da obrigação de pagar dízimo à ordem de Cristo, e as mais costumadas, a de um foro, segundo a grandeza e a 28 29 30

SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 44-45. GORENDER, O escravismo colonial, p. 388. Cf. Id. ib., p. 388-389.

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bondade da terra’. Não se conhecem, entretanto, provas de que tal determinação fosse cumprida antes do ano de 1777, quando Manoel da Cunha e Menezes, governador da Bahia, começou a cobrar, de foro, 1$ e até 2$ por nova sesmaria concedida”.31 Considerando que a cobrança do foro incidiria sobre a terra, não sobre a produção; que o critério de “grandeza e bondade da terra” era vago demais, permitindo inúmeras interpretações; que se desconhecia ao certo a localização e o tamanho das concessões, fica fácil compreender por que a aplicação e cobrança do imposto caracterizaram-se pela irregularidade e ineficiência.32 Além dessas peculiaridades, é preciso destacar a resistência dos latifundiários em aceitar o pagamento – principal razão da pouca aplicabilidade prática da lei. Do ponto de vista jurídico, o pagamento de um foro representava uma grande alteração no sistema de sesmarias, ao acabar com a cláusula da gratuidade das concessões.33 Ainda assim, ao estabelecer a cobrança, parece que o objetivo maior da Metrópole era “desestimular os sesmeiros a manterem sob seu domínio terras improdutivas”; a Coroa procurava também “coibir os abusos verificados em torno da venda de sesmarias”.34 Ancorado na exposição de Jacob Gorender, ressalte-se que esse foro não representou a reprodução do foro enfitêutico português em terras americanas. Na opinião do autor, o que se estabeleceu na Colônia foi “um foro a ser cobrado pelo Estado, em seu beneficio, e não por sesmeiros particulares, na condição de pessoas privadas”.35 Instituído em 1695 e abolido em 1831, o foro a que o autor denominou de “estatal” “era cobrado pelo poder concedente das sesmarias e incidia sobre os 31 32 33 34 35

GUIMARÃES, Quatro séculos de latifúndio, p. 54. Cf. SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 49-52. Cf. SILVA, op. cit., p. 48. SILVA, op. cit., p. 49. GORENDER, O escravismo colonial, p. 384.

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titulares delas. Diferenciava-se do foro cobrado pelos próprios titulares aos foreiros estabelecidos em suas sesmarias”.36 No século 18, começaram a surgir medidas mais precisas de controle sobre as concessões de sesmarias. Com elas, a Metrópole procurava conhecer a situação real das terras das colônias luso-americanas e coibir os abusos extremos praticados pelos sesmeiros, sobretudo quanto à extensão de seus domínios.37 Por isso, uma das novas exigências relacionava-se aos limites das doações, que deveriam ficar em três léguas de comprimento por uma de largura. Também a quantidade das concessões passou a ser limitada a uma por pessoa. O caráter obrigatório dessas restrições não garantiu que fossem postas em prática. A desorganização na doação das sesmarias, assim como a falta de vontade e compromisso dos sesmeiros em acatar as ordens vindas da Metrópole, provocou a elaboração e um regimento próprio, “que a Coroa pretendia constituísse uma Lei de Sesmarias aplicada ao Brasil [...]”.38 Esse regimento foi o alvará de 5 de outubro de 1795, que destacava, sobretudo, a obrigatoriedade da demarcação e medição das sesmarias. Também a normalização “preocupava-se com a necessidade de não doar terras nas áreas já ocupadas por colonos, desejando com isso que se evitassem conflitos de terras”.39 O alvará “não somente reconhecia a figura do posseiro, como reintroduzia os princípios da implantação do sistema de sesmarias em Portugal [sic], para a colônia brasileira, ou seja, a necessidade do cultivo. E [...] obrigava os sesmeiros de terras ociosas a transferi-las para os reais cultivadores”.40 Entretanto, não devemos cair no engano de confundir os produtores diretos, ou seja, sobretudo os trabalhadores escravizados, como “reais cultivadores”, destinatários da legislação. 36 37 38 39 40

GORENDER, O escravismo colonial, p. 386. Cf. SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 48. GORENDER, O escravismo colonial, p. 394. SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 37 e 123. Idem, p. 124.

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Estes últimos eram sempre homens livres que exploravam as terras em questão através de trabalhadores sobretudo escravizados. De acordo com Jacob Gorender, nesse mesmo alvará a Coroa “colocou a extensão da terra concedida na dependência do número de escravos, indo ao ponto de, no parágrafo 12, exigir a venda ou alienação das sesmarias, no prazo de dois anos, por parte daqueles que, vindo a adquiri-las por herança ou de outra maneira, não tivessem ‘possibilidades e escravatura’ para cultivá-las”.41 Uma vez mais, impunha-se o caráter seletivo do acesso à terra por meio da legislação, capaz de excluir desse processo a maioria da população colonial, ao restringilo, nos fatos, à classe dos escravistas. Da mesma forma, a obrigatoriedade da medição e da demarcação das terras era fator de exclusão, já que dependia de recursos e poder para firmar divisas. Sabe-se que os métodos de medição, demarcação e controle eram muito rudimentares e que havia falta de profissionais competentes para o trabalho. Entretanto, essas não constituem as causas explicativas da resistência dos sesmeiros em proceder à medição e definição exata dos limites de suas propriedades. É preciso entender que, fundamentalmente, não havia interesse nessa tarefa. Márcia Motta lembra que, para “os fazendeiros, ser senhor e possuidor de terras implicava a capacidade de exercer o domínio sobre as suas terras e sobre os homens que ali cultivavam (escravos, moradores e arrendatários). Implicava ser reconhecido pelos seus vizinhos como um confrontante. E relacionava-se também à possibilidade de expandir suas terras para além das fronteiras originais, ocupando terras devolutas ou apossando-se de áreas antes ocupadas por outrem [...]. Medir e demarcar, seguindo as exigências da legislação sobre as sesmarias, significava, para os sesmeiros, submeterse à imposição de um limite a sua expansão territorial, sub41

GORENDER, O escravismo colonial, p. 394.

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jugar-se – nestes casos – aos interesses gerais de uma Coroa tão distante”.42 A incerteza quanto à localização e ao tamanho das propriedades, realidades vagamente definidas, contribuiu para delinear um quadro de violência no qual as fronteiras eram mantidas pela força. As exigências do reino chocaram-se com as pretensões dos grandes fazendeiros, que resistiram, desconsideraram e burlaram constantemente as determinações legais. De forma clara, percebe-se que havia um conflito latente, mas não essencial, entre os latifundiários e a Coroa portuguesa. Em vão, a Coroa tentava estabelecer obrigatoriedades e controle mais rígido no acesso às terras procurando estender a extensão da terra realmente explorada, nos marcos da sociedade de classes determinada, e, assim, perceber maiores tributos. Os grandes sesmeiros ignoravam, desconsideravam ou burlavam as determinações legais impostas pelo Reino. Os decretos e alvarás não detiveram a expansão territorial praticada por grandes fazendeiros, apoiada na apropriação de grandes áreas não exploradas imediatamente. Na prática, continuou-se concedendo sesmarias de enormes extensões, agraciando a mesma pessoa com mais de uma doação e postergando seus prazos de medição e demarcação. Afinal, não havia oposição essencial entre os dois grupos e não interessava à administração portuguesa criar atritos com os sesmeiros, figuras-chave de seu domínio na América. Diante da “letra morta” da lei, as determinações do alvará de 1795 foram suspensas um ano após entrarem em vigor. Fracassavam os objetivos da Coroa de “reestruturar o sistema de sesmarias [...] [e] manter para si a responsabilidade na concessão das terras devolutas”.43 No entanto, isso não foi buscado com afinco, visto existirem, sobretudo, contradições 42

43

MOTTA, Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX, p. 38. Idem, p. 124.

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não antagônicas em um processo de colaboração no qual a Coroa era o polo dominante, e os sesmeiros, o polo subordinado. Com o passar do tempo, tornou-se crescente o abismo entre a teoria ditada pela Metrópole e a prática efetivada nas colônias luso-americanas. No início do século 19, era visível o crescimento desmesurado dos apossamentos à revelia da lei e evidenciou-se o fracasso de manter a concessão de terras americanas nas mãos da Coroa portuguesa. Realmente, o problema havia iniciado séculos antes, quando a Coroa buscara organizar a ocupação territorial do Brasil com a simples transposição de sistema jurídico feudal, incapaz de assentar raízes em território de terras não ocupadas e sem a existência de comunidade camponesa sem terras. Aplicada à realidade socioeconômica colonial, a Lei das Sesmarias gerou um padrão de ocupação singular, exigido pela exploração escravista colonial, diferente do objetivado inicialmente pela Metrópole, mas sem antagonismo com esta última. A extensão das sesmarias e a exigência do cultivo, inúmeras vezes reafirmada, contribuíram para o surgimento de outras figuras sociais ligadas à terra, que não os sesmeiros. Conforme Alberto Passos Guimarães, parece óbvio que, “mesmo as menores sesmarias eram, contudo, domínios imensos comparados com a capacidade de utilização de cada colonizador ou de cada família e longe se acham daquilo que razoavelmente estava ao alcance de um homem de posses cultivar”.44 Assim, para auferir uma renda e cumprir com a obrigatoriedade do cultivo, sesmeiros adotaram como saída o arrendamento parcial ou total de suas concessões. Por sua vez, os arrendatários podiam arcar com as responsabilidades de produção agrícola ou, ainda, sublocar a terra a outros trabalhadores de menor condição econômica e social.45 44 45

GUIMARÃES, Quatro séculos de latifúndio, p. 52-53. Cf. MOTTA, Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX, p. 121-122.

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Essas práticas de repasses de uso e direitos sobre parcelas do território multiplicavam categorias de exploradores e produtores diretos explorados e complicavam o controle realizado – ou tentado – pela Coroa portuguesa. Tornava-se mais difícil verificar o cultivo e demarcação das propriedades. Por outro lado, essa “incapacidade da Coroa de efetivamente controlar o cumprimento de suas exigências estimulava o crescimento da figura do posseiro, ou seja, aquele que se apossava de terras, pretensa ou realmente devolutas”.46 Tentando alargar suas concessões, também os sesmeiros ocupavam parcelas de terras por meio do apossamento. Contudo, esses “sesmeiros-posseiros” integravam-se harmonicamente no padrão produtor escravista mercantil, produzindo mercadorias para a exportação e importando cativos, o que garantia a extensão da renda colonial. Em verdade, jamais houve campanha geral da administração contra os “sesmeiros-posseiros”. Ao contrário, a posse era mais comumente um dos principais caminhos para a introdução de um pedido e a posterior legalização de uma sesmaria. Márcia Motta propõe que, a partir do século 18, as resoluções que reconheciam os “sesmeiros-posseiros” estavam longe de significar que a Coroa estivesse saindo de cena no controle das concessões de terras.47 Ela apenas “deixou de ignorar a existência de uma ampla camada de colonos que lavrava [sic] a terra, preenchendo um dos requisitos da colonização. Ou seja, apesar de não estarem cumprindo as determinações régias referentes às sesmarias, estes homens estavam – efetivamente – impedindo que as terras ficassem ociosas”.48 Uma proposta correta caso não confundamos o “sesmeiro-posseiro”, detentor da posse, agraciado com a liberalidade da administração, com o agente direto da exploração da terra, submetido ao primeiro. 46

47 48

MOTTA, Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX, p. 122. Loc. cit. Loc. cit.

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A ocupação pela posse generalizou-se de tal forma que tornou insustentável a manutenção do instituto sesmarial no Brasil. Para a própria Márcia Motta, o processo de apossamento “corroía o que restava do sistema de sesmarias, tornando-se uma prática recorrente nos diversos processos de interiorização do território. Mesmo à revelia da lei, a realidade da posse transformava-se num costume, compartilhado por todos aqueles que ansiavam pelo acesso a uma parcela de terra ou que desejavam expandir a extensão de suas sesmarias, para além dos limites originais”.49 Em disputas territoriais, a própria administração portuguesa concedeu sucessivos ganhos de causa a diversos posseiros, em detrimento de sesmeiros. Em verdade, a ocupação e exploração efetiva da terra, mesmo sem reconhecimento legal, era preferível à administração, à propriedade legalizada, mas não explorada, já que apenas a primeira lhe auferia lucros e estendia, de fato, a sua autoridade sobre territórios não ocupados pela economia mercantil colonial. No Brasil, mais de uma vez, na reta final do regime de sesmarias – e da fase colonial – a Coroa reafirmou direitos de antigos posseiros sobre as terras que posteriormente fossem dadas em sesmaria.50 Esse caso se repetiu no Rio de Janeiro, levando dom Pedro I a suspender definitivamente as concessões de sesmarias. Era o reconhecimento de uma legitimidade entre a exploração efetiva da terra e o direito sobre ela. Essa relação entre cultivo e ocupação seria mantida para as legitimações feitas posteriormente com base na Lei de Terras de 1850. No entender de Lígia Osório Silva, em Terras devolutas e latifúndio, “a suspensão do regime de concessão de sesmarias, quase que simultaneamente à declaração da Independência, não pode ser vista como uma coincidência. As contradições 49

50

MOTTA, Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX, p. 123. Idem, p. 125.

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entre o senhoriato rural da colônia e a metrópole em torno da questão da apropriação territorial contribuíram significativamente, também para a ruptura definitiva dos vínculos coloniais”.51 O ano de 1822 marca o início de um Brasil “independente”, controlado plenamente pelos grandes escravistas, e de um regime de apossamento de terras caracterizado pela “posse livre”, ou seja, da apropriação, por aquela classe, das terras devolutas que pudessem explorar. A fase conhecida como de “posses livres”, entendida a posse como terra adquirida por ocupação pelo grande proprietário, em nenhum caso deve ser compreendida como o direito de acesso à posse da terra pelo produtor livre pobre. O estatuto jurídico das sesmarias foi apenas revogado, sem ser substituído por outro. A vacância de leis deu lugar ao apossamento da terra por quem quisesse e pudesse efetivá-la. Lígia Osório Silva lembra que esta foi a “fase áurea do posseiro”, desde que não confundamos esta categoria com o produtor rural familiar, explorando um naco de terra à margem de sua propriedade efetiva.52 É necessário entender que a posse já se constituía como forma de aquisição de terras desde o início da colonização do Brasil, convivendo concomitantemente com o regime sesmarial. Conforme Ruy Cirne Lima, em Pequena história territorial do Brasil: “Apoderar-se de terras devolutas e cultivá-las tornou-se cousa corrente entre os nossos colonizadores [sic], e tais proporções essa prática atingiu que pode, com o correr dos anos, vir a ser considerada como modo legítimo de aquisição do domínio, paralelamente a princípio, e, após, em substituição ao nosso tão desvirtuado regime de sesmarias.”53 A partir de 1822, excluídas a compra e a herança, a posse passou a ser a única forma de obtenção de terras, na falta 51 52 53

SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 75. Idem, p. 81. LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p. 51.

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de qualquer lei que normalizasse seu uso e exploração. Livre de entraves burocráticos, a posse generalizou-se e tanto os grandes proprietários, donos de engenhos de açúcar, quanto os camponeses e outros despossuídos livres enquadraram-se, aparentemente, na mesma condição de “posseiros”.54 Porém, essa aproximação era apenas formal – a posse do grande proprietário abria caminho ao reconhecimento da propriedade do latifúndio e a posse do pequeno produtor direto era incessantemente questionada, a partir da expansão da fronteira agrícola mercantil. Nesse contexto geral, o termo “posseiro” deixou de referir-se apenas a pessoas de classe social subalternizada – que detinham pequenas extensões e produziam para subsistência – e a pequenos plantadores que participavam subsidiariamente da produção para exportação, passando a significar todo aquele que ocupava a terra sem precisar de doação ou concessão prévia e que não possuía um título legal referente à sua possessão. Incluía, com destaque, os grandes proprietários, com produção voltada para comércio internacional, detentores de grande escravaria. As propriedades continuavam sendo demarcadas de forma precária, com base em acidentes geográficos naturais ou marcos construídos pelo homem, uns e outros passíveis de alterações e bastante imprecisos. Embora não houvesse um estatuto legal para essas aquisições, elas eram compradas e vendidas normalmente. A tendência para a grande propriedade manteve-se e se fortaleceu: “Se as sesmarias formavam verdadeiros latifúndios [...] mais extensas, porém [...] ainda eram as posses, cujas divisas os posseiros marcavam de olho nas vertentes, ou onde bem lhes aprazia.”55

54

55

LIMA, Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas, p. 58. SMITH, Roberto. Propriedade da terra & transição. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 304.

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Conforme Roberto Smith, em Propriedade da terra & transição, o período das posses livres “põe em evidência um processo de amplo apossamento de terras, que caracterizará, no país, a formação do latifúndio, na sua forma mais acabada. O latifúndio avançará sobre as pequenas posses, expulsando o pequeno posseiro em algumas áreas, num deslocamento constante sobre as fronteiras de terras abertas”.56 No artigo “Imigração italiana, colonização e ocupação da terra no Brasil”, o historiador João Carlos Tedesco lembra que “é nesse hiato legislativo em torno da terra [...] que se consolida a estrutura o marco da grande propriedade territorial no Brasil e, em especial em algumas regiões de ocupação tardia como é o caso do Rio Grande do Sul”.57 O hiato em questão compreendeu o período de 1822 a 1850, o que equivale a dizer, da extinção das sesmarias à promulgação da Lei de Terras. Em Nas fronteiras do poder, Márcia Motta relata que, em 1822, “terminara o instituto jurídico da sesmaria, e não a categoria social dos sesmeiros. Como grandes fazendeiros, senhores e possuidores de grandes extensões de terras, esses homens não seriam derrotados por uma nova política de terras do nascente Império. A partir daquela data [...] a decisão sobre o direito à terra esteve nas mãos dos grandes fazendeiros de cada região do país, imprimindo, em cada localidade a expressão dos poderes particulares dos senhores e possuidores de terras”.58 Portanto, pode-se propor que “a nova política do nascente Império” surgia das necessidades diretas dos grandes proprietários, que fizeram retroceder o poder mediador do Estado na apropriação da terra.

56 57

58

SMITH, Propriedade da terra & transição, p. 58. TEDESCO, João Carlos. Imigração italiana, colonização e ocupação da terra no Brasil: uma análise a partir da teoria de Wakefield. História: Debates e Tendências – Brasil-Itália travessias. Passo Fundo: EdiUPF, v. 5, n. 1, jul. 2004. p. 68. MOTTA, Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX, p. 126.

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Apesar de projetos redefinidores da legislação agrária terem sido rascunhados em 1823, quando da primeira Constituinte, nada de novo foi estabelecido sobre as posses e o direito à terra na Constituição de 1824, surgida do golpe militar de dom Pedro. Aquele documento “garantiu em ‘toda a sua plenitude’ o direito de propriedade, sem fazer nenhuma referência aos problemas decorrentes do sistema de sesmarias e à ocupação das terras devolutas”.59 Em Terras devolutas e latifúndio, Lígia Osório Silva entende que isso se deu em virtude de que o “momento político não era propício à discussão do ordenamento jurídico da questão da terra porque o afastamento dos ‘nacionais’ deixara o imperador circunscrito ao apoio do ‘partido português’, que sozinho não tinha condições de governar o país, nem muito menos, condições de impor ao senhoriato rural uma definição sobre um tema de tamanha importância”.60 De qualquer forma, como destacou Roberto Smith em Propriedade da terra & transição, o período de posses livres foi uma fase em que “o Estado praticamente sai de cena, na questão do ordenamento legal da apropriação de terras”, consubstanciando-se, portanto, vitória das classes terra-tenentes das diversas províncias.61 O domínio dos grandes proprietários de terras e de escravizados sobre as terras públicas ampliou-se. Novamente, as pequenas posses somente seriam toleradas se acessórias ao latifúndio. O período de posses livres acabou quando da promulgação da Lei de Terras, em 1850. Esta foi a primeira lei agrária “nacional”, de suma importância para a generalização da apropriação da terra como mercadoria e a posterior superação do escravismo e consolidação de economia mercantil apoiada no trabalho livre. Fruto de disputas entre várias correntes políticas, ela deveria disciplinar a apropriação territorial do 59 60 61

Loc. cit. SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 84. SMITH, Propriedade da terra & transição, p. 239.

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país e pôr freio aos apossamentos, ao mesmo tempo em que serviria na discriminação, medição e venda das terras devolutas. Há tempos, a ocupação territorial do Brasil preocupava certos setores da sociedade, aparecendo inclusive em algumas propostas legislativas.62 Porém, somente na conjuntura dos anos 1840 foram efetivamente discutidos os projetos que resultariam na Lei de Terras. No entender de Ligia Osório Silva, em Terras devolutas e latifúndio, na década de 1840, em síntese, “as alterações que produziram condições favoráveis à retomada da questão da terra foram ocasionadas, de um lado, pelo rearranjo das forças políticas novamente reunidas em torno do Imperador e, de outro, pela riqueza econômica gerada pelo ciclo do café no vale do Paraíba”.63 Segundo a autora, foi nesse período que se organizou a hegemonia Saquarema, ou seja, “a base política e ideológica do Estado imperial, concentrada sobretudo no Partido Conservador”.64 Nos anos 1840, ganharam destaque no Parlamento brasileiro as discussões em torno da cessação do tráfico internacional de trabalhadores africanos escravizados e das possíveis formas e alternativas para solucionar o problema da substituição de mão de obra feitorizada. A essa discussão, corresponderam debates sobre as formas de apropriação da terra. Afinal, como propõe Emilia Viotti da Costa em Da Monarquia à República, “a política de terras e a de mão-de-obra estão sempre relacionadas, e ambas dependem, por sua vez, das fases do desenvolvimento econômico”.65 A vinculação entre terra e trabalho nasce do fato de que apenas o trabalho dá à terra a possibilidade de ser um meio de produção de riquezas. 62

63 64 65

Ver MOTTA, Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX, p. 130. SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 86. Idem, p. 88. COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 139.

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No Brasil, ao longo do século 19, as lavouras de café – principal produto da economia à época – expandiram-se consideravelmente e prosperaram, crescendo, em consequência, a necessidade de terras e trabalhadores. O problema tendeu a se agravar com a certeza futura do fim do tráfico negreiro internacional, sobretudo pela pressão externa inglesa, derivada de seus interesses econômicos. A Inglaterra, que já havia abolido o tráfico em suas colônias desde 1807, passou a impô-lo ao resto do mundo, diplomática ou militarmente.66 Durante quarenta anos, a Inglaterra empenhou-se em abolir o comércio de trabalhadores escravizados para o Brasil, pressionando incessantemente os governos português e brasileiro a aceitá-lo. Cedendo às pressões inglesas, em acordos assinados em 1810, 1815 e 1817, Portugal condenou o tráfico de trabalhadores escravizados, comprometeu-se a restringir sua prática ao norte do Equador e estabeleceu medidas que estancariam parcialmente aquele tráfico. Analisando os efeitos desses tratados em Os últimos anos da escravatura no Brasil, o historiador Robert Conrad propõe que essas concessões “legalizaram, finalmente, a abordagem britânica de navios mercantes portugueses suspeitos de transportarem escravos comprados ilegalmente e criaram tribunais internacionais ou comissões mistas no Rio de Janeiro e em Sierra Leone, para onde os navios deviam ser enviados para julgamento”.67 Contudo, contrariamente aos desejos ingleses, o próprio autor complementa que o “resultado destes acordos não foi uma redução ou limitação do tráfico de escravos, mas sim um súbito surto no seu volume, bem como o aparecimento de um contra-

66

67

Cf. PRADO, Júnior Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1977. p. 145. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Trad. de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 31.

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bando de escravos que se desenvolveu até atingir proporções enormes”.68 Em 1826, já formalmente independente, contrariado, o Brasil assumiu novo compromisso com os britânicos no sentido de abolir definitivamente o tráfico internacional de trabalhadores africanos. Conforme tratado, essa disposição entraria em vigor três anos após a ratificação do compromisso. É ainda Robert Conrad quem esclarece: “Como resultado deste acordo, que incorporava as provisões contidas nos tratados de 1815 e 1817 entre britânicos e portugueses, o comércio de escravos legal terminava, para os cidadãos brasileiros, em 13 de março de 1830 e, em 7 de novembro do ano seguinte, um novo governo liberal no Rio confirmou esta decisão com legislação que declarava a liberdade de todos os escravos que entrassem no Brasil a partir daquela data.”69 À revelia da lei, entretanto, o tráfico continuaria sendo realizado, abastecendo e repondo a mão de obra cativa necessária sobretudo às plantagens cafeicultoras, em expansão. Segundo Robert Conrad, as “estimativas britânicas colocam, de um modo moderado, o número de escravos ilegalmente importados pelo Império durante esses anos (1831-1850) em quase meio milhão”.70 Essa realidade persistiu até 1850, quando, pela promulgação da Lei Euzébio de Queirós, o governo brasileiro suspendeu definitivamente o comércio de africanos ao país. Tal atitude não foi reflexo da pressão de abolicionistas nacionais, senão resultado da imposição da Inglaterra, após drásticas retaliações daquele governo ao Brasil: “Completamente humilhado pelas incursões britânicas nos portos do Império e a captura e destruição de navios negreiros brasileiros até mesmo em águas territoriais brasileiras, enfrentando ameaças à navegação legal do Império, com conflitos mili68 69 70

Loc. cit. CONRAD, Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888, p. 32. Idem, p. 32-33.

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tares e mesmo um bloqueio de portos brasileiros, o governo do Império foi obrigado, em julho de 1850, a ceder ante as exigências britânicas em troca da promessa de suspender os ataques navais.”71 A conjuntura delineada na metade do século 19 representou um duro golpe para a classe dominante brasileira, plantacionista e dependente da escravidão. A princípio, tornava-se urgente efetuar a transição do trabalho escravizado para o livre. Nesse intuito, grandes plantadores passaram a incentivar a vinda de trabalhadores rurais europeus para trabalhar nas fazendas de café, não mais apenas para a colonização em pequenas propriedades, como vinha acontecendo desde os anos que antecederam a Independência. Entretanto, com a abundância de terras à disposição, na ótica da classe dominante, seria necessário criar mecanismos que impedissem ou, ao menos, dificultassem a aquisição de terras devolutas pelos imigrantes, compelindo-os a trabalhar nos cafezais alheios, ainda que fosse por alguns anos. Esses mecanismos foram possibilitados pela Lei de Terras também promulgada no ano de 1850 e visando à modificação nas relações de trabalho. O fato de ter sido promulgada em espaço de tempo tão próximo – apenas questão de dias – à Lei Euzébio de Queiroz, que extinguiu o tráfico negreiro, reforça a tendência geral na historiogafia de concebê-las como leis complementares. Assim, para Roberto Smith, em Propriedade da terra & transição, a Lei de Terras “obedeceu a um processo emanado das iniciativas de elites políticas postadas no Conselho de Estado e era um apêndice da imposição à abolição do tráfico, que vinha colocar o fim da escravidão num horizonte não remoto”.72 Em Da Monarquia à República, Emília Viotti da Costa destacou o interesse que tinham os defensores do projeto da 71 72

Idem, p. 34. SMITH, Propriedade da terra & transição, p. 328.

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Lei de Terras de com ela “resolver o torturante problema da força de trabalho”.73 Reforçou essa ideia afirmando que a lei “expressou os interesses desses grupos [setores dinâmicos da elite brasileira] e representou uma tentativa de regularizar a propriedade rural e o fornecimento de trabalho, de acordo com as novas necessidades e possibilidades da época”.74 Da mesma forma, para Lígia Osório Silva, em Terras devolutas e latifúndio, a Lei de Terras foi necessária porque “o fim do tráfico colocava no horizonte, ainda que longínquo, o fim do trabalho escravo e a transição para o trabalho livre, e na visão do governo imperial a solução para que essa transição se operasse sem traumatismos era a imigração estrangeira, que por sua vez precisava ser financiada [...]. Mais uma vez [...] era necessário pôr ordem na apropriação territorial, e em especial demarcar as terras devolutas”.75 De 1843 a 1850, os parlamentares brasileiros discutiram as diferentes ideias que resultaram na Lei de Terras. Inicialmente, inexistia concordância entre eles em todos os pontos do texto, assim como inexistia uma única proposta para regularizar a propriedade da terra e a política de trabalho. Contudo, não eram contradições entre classes antagônicas, mas, sobretudo, entre facção das classes proprietárias, sobretudo agrícolas, havendo, portanto, concordância em itens fundamentais, como a recusa geral à criação de um imposto territorial e à limitação à extensão de suas propriedades. A mesma classe que detinha o monopólio político esperava garantir-se o monopólio da terra. Os setores da economia agrária periférica opuseram-se ao projeto da Lei de Terras, antevendo que beneficiaria apenas os cafeicultores do Sudeste. Por sua vez, os cafeicultores insistiam no fato de que a lei criaria trabalhadores livres em substituição aos escravizados e que a valorização das terras 73 74 75

COSTA, Da Monarquia à República: momentos decisivos, p. 148. COSTA, Da Monarquia à República: momentos decisivos, p. 145-146. SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 124-125.

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seria boa para todos.76 Precavendo-se, segmentos sociais proprietários aproveitaram o “interregno entre o fim das concessões de sesmarias e a futura lei de terras para se apossar fraudulentamente de grandes extensões”.77 “O problema [...] era a enorme disparidade entre as diferentes regiões do país no tocante à necessidade de um ou outro dos benefícios que a aprovação da lei lhes poderia trazer.”78 Nessa discussão, os parlamentares brasileiros sofreram influência de ideias externas. Dentre elas, conheciam/discutiam, sobretudo, as de Edward Wakefield, teórico inglês do neocolonialismo. Seus pensamentos serviam aos interesses dos grandes fazendeiros do café, pois “inspirava-se na suposição de que, numa região onde o acesso à terra era fácil, seria impossível obter pessoas para trabalhar nas fazendas, a não ser que elas fossem compelidas pela escravidão. A única maneira de obter trabalho livre, nessas circunstâncias, seria criar obstáculos à propriedade rural, de modo que o trabalhador livre, incapaz de adquirir terras, fosse forçado a trabalhar nas fazendas”.79 Das ideias de Edward Wakefield devemos destacar ainda a referência ao “preço suficiente”. Sua proposta era de que o governo deveria fixar o preço da terra em um certo patamar que não fosse tão alto, a ponto de pouquíssimos adquiri-la, nem tão baixo, acessível a todos. Segundo Wakefield, a intenção era “prevenir os trabalhadores de virem a se tornar proprietários de terras, de imediato: o preço precisa ser suficiente para esse propósito e não outro”.80 Como explica João Carlos Tedesco, quem “garantiria um preço suficiente que possibili76 77

78 79 80

Cf. COSTA, op. cit., p. 148. TEDESCO, Imigração italiana, colonização e ocupação da terra no Brasil: uma análise a partir da teoria de Wakefield. História: Debates e Tendências – BrasilItália travessias, p. 74. SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 108. Idem, p. 146. WAKEFIELD, E. G. The art of colonization. Apud: SMITH, Roberto. Propriedade da terra..., p. 278.

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tasse a aquisição da terra pelo trabalhador, sem desvalorizar e nem supervalorizar o mercado de terras, seria o Estado”.81 No entender de Marx, esse “preço suficiente não era outra coisa senão um eufemismo para designar o dinheiro do resgate que o trabalhador paga ao capitalista pela permissão para sair do mercado de trabalho e ir cultivar a terra. Primeiro o trabalhador tem de criar o capital para o capitalista, a fim de que esse possa explorar mais trabalhadores e, em seguida, tem de colocar no mercado de trabalho um substituto que o governo faz vir de além-mar às suas custas, para servir a seu ex-patrão”.82 De acordo com Lígia Osório Silva, em Terras devolutas e latifúndio, para o caso brasileiro, “tanto na proposta do Conselho de Estado, quanto no projeto enviado e aprovado na Câmara, havia uma cláusula proibindo os imigrantes de comprarem, arrendarem, aforarem ou de qualquer modo obterem o uso da terra [...]”.83 Entretanto, isso não significava a impossibilidade permanente de um trabalhador chegar a ser proprietário de terras, já que se pensava atrair a mão de obra, sobretudo europeia, acenando com a possibilidade da terra. A ideia é de que a terra não seria obtida a princípio, podendo vir a sê-lo depois de um certo tempo – curto, médio ou longo, dependendo de várias condicionantes. A possibilidade da propriedade da terra era imprescindível, na medida em que foi ela que atraiu e trouxe milhares de imigrantes europeus ao Brasil, interessados em ter um pedaço de chão próprio. Foram eles ainda que representaram a existência de mão de obra disponível aos grandes cafeicultores, quando, finalmente, sentiu-se a falta dos cativos, no final do século 19. Entretanto, a carência de braços escravizados não se fez da forma premente como temiam os grandes escravistas. Durante quase quarenta anos, o tráfico interprovincial 81 82 83

TEDESCO, op. cit., p. 67. MARX, K. O capital apud SMITH, Propriedade da terra & transição, p. 282. SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 104.

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de trabalhadores escravizados e o desenvolvimento dos meios de transportes, que liberavam braços cativos para a produção agrícola, permitiram que a transição do trabalho escravizado para o livre fosse postergada, efetivando-se somente a partir de 1888. Num processo de “nacionalização” das ideias de Wakefield, as classes proprietárias brasileiras “retiveram o aspecto de que era preciso pagar pela imigração de trabalhadores pobres, para trabalhar nas fazendas, uma vez que não se pudesse mais dispor dos escravos”.84 Entretanto, no Brasil, quem arcaria com as despesas devidas ao transporte desde a Europa dos trabalhadores seria o governo, não os proprietários, como propunha o teórico inglês. A venda das terras devolutas deveria gerar parte do dinheiro necessário ao financiamento da imigração – sempre uma perspectiva ao final do escravismo. Com a Lei de Terras, havia a preocupação em estabelecer normas para a propriedade e a intenção de regularizar as sesmarias e posses, discriminando-as das terras públicas. A demarcação das propriedades era necessária para diminuir as disputas pela terra, facilitar sua comercialização e dotar o Estado de maior conhecimento sobre a quantidade e localização das terras devolutas – condição primeira para a posterior venda. Como propõe Roberto Smith em Propriedade da terra & transição, a “Lei de Terras também deve ser entendida como uma necessidade do próprio Estado em recobrar o controle sobre as terras devolutas [...] cujo estoque deveria ser objeto de um controle social vinculado ao interesse tanto da sua utilização produtiva, quanto da substituição de escravos por trabalhadores livres”.85 Com vinte e três artigos, a Lei de Terras foi promulgada em 18 de setembro de 1850. Era um texto relativamente breve se comparado com seu posterior regulamento, concluído 84 85

Loc. cit. SMITH, Propriedade da terra & transição, p. 336.

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quatro anos mais tarde. O artigo primeiro, proibindo novas posses e determinando que a partir daquela data as terras somente seriam adquiridas por compra, é, sem dúvida, o mais comentado na historiografia.86 Lígia Osório Silva credita o fato “à importância social que adviria da sua aplicação”.87 Afinal, conforme análise do historiador rio-grandense Paulo Zarth em História agrária do planalto gaúcho, “o acesso à terra, do ponto de vista legal, ficou difícil para as camadas pobres da população camponesa, mas nem tanto para as elites locais, que além de regularizar suas propriedades procuravam avançar ou incorporar novas áreas onde viviam muitos posseiros pobres sem poder para reagir”.88 Em relação às terras já possuídas, a nova lei determinava que fossem regularizadas, ou seja, medidas e demarcadas, até a emissão de títulos legítimos de propriedade. Criada com o Regulamento da Lei de Terras de 1854, a Repartição Geral das Terras Públicas seria o órgão responsável para pôr em prática as determinações daquela legislação. À Repartição caberia fazer o registro e/ou revalidação das terras já possuídas, assim como dirigir e fiscalizar a medição, descrição e distribuição das terras devolutas.89 As terras devolutas foram definidas por exclusão: eram aquelas que não estavam sob uso público, nem sob domínio particular. Em hasta pública poderiam ser vendidas pelo governo, sendo os recursos direcionados a novas demarcações e à importação de colonos livres. Como o problema futuro de falta de mão de obra havia influenciado a revisão na política de terras do Brasil, o tema da colonização ganhou quatro artigos na lei de 1850. Ficou explícito que o governo subven86

87 88

89

Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Governo do RS/Secretaria da Agricultura/Diretoria de Terras e Colonização, 1961. p. 5-8. SILVA, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, p. 152. ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho 1850-1920. Ijuí: EdiUnijuí, 1997. p. 60. Cf. Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul, p. 8-9.

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cionaria a vinda anual de colonos livres para trabalhar como empregados ou formar colônias. Nos processos de revalidação de sesmarias ou outras concessões e legitimação de posses, determinou-se a necessidade de provar o uso da terra – com cultivos ou criação de animais; a morada habitual do requerente ou de seu(s) representante(s) e a “posse mansa e pacífica” do local. Todos os procedimentos legais obedeceriam a prazos, marcados pelo governo e só por ele passíveis de alteração ou prorrogação. Em janeiro de 1854, o governo imperial baixou o decreto que mandava executar a Lei de Terras. Em seus nove capítulos e 108 artigos, entre outras questões, a lei definia questões de estrutura, funcionamento e competências da Repartição Geral das Terras Públicas, tratava da medição, revalidação e legitimação de domínios públicos e particulares, assim como da venda e conservação das terras devolutas, e determinava como se proceder ao registro das terras possuídas. A Repartição Geral das Terras Públicas subordinava-se ao Ministério e Secretário de Estado dos Negócios do Império, sendo chefiada por um diretor geral das Terras Públicas. Nas províncias, com autorização de seus presidentes, funcionava uma Repartição Especial de Terras Públicas, dirigida por um delegado do diretor geral. Dentro das províncias criaram-se distritos de medição, tantos quanto a quantidade de terras devolutas existentes exigisse. O governo imperial nomeava um inspetor geral das medições para cada um desses distritos, que era auxiliado por outros funcionários: escreventes, agrimensores, etc. Responsável pela exatidão das medições em sua jurisdição, o inspetor geral deveria produzir mapas de cada um dos terrenos anteriormente medidos pelos agrimensores. Cópias desses mapas seguiriam para a Repartição Geral das Terras Públicas e para o delegado da província respectiva. Ao final, era tarefa do inspetor montar um mapa geral de seu distrito. A apropriação da terra no Brasil: da Lei de Sesmarias à Lei de Terras (1532-1850)

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Grande poder sobre a medição das terras devolutas estava depositado em suas mãos. Os processos de revalidação e legitimação das terras eram também controlados pelos juízes comissários, cargo criado com o regulamento de 1854. Os presidentes das províncias nomeavam esses funcionários, os quais, posteriormente, deveriam encaminhar-lhes os requerimentos dos sesmeiros e posseiros de sua região, dentro do prazo estabelecido. Os juízes comissários tinham competência para proceder à medição e demarcação das sesmarias e outras concessões, assim como a legitimação das posses. Eles próprios formavam sua equipe, nomeando escrivães e agrimensores. Os juízes comissários eram figuras-chave, a quem cabia marcar o dia das medições, torná-las públicas por editais, verificar a cultura efetiva e a morada habitual nas terras em questão. Suas decisões só estavam sujeitas a recursos dirigidos diretamente ao presidente da província, sem suspensão da execução feita. Inspetores gerais e juízes comissários estavam subordinados aos chefes dos governos provinciais que oficialmente eram os que dirigiam e decidiam acerca de todos os processos de legitimação de terras. Os presidentes tinham poder para nomear funcionários, prorrogar prazos, aprovar ou não as medições feitas e assinar ou não a finalização dos processos, concedendo títulos de propriedade. Entretanto, suas decisões baseavam-se nas inúmeras informações prestadas pelos funcionários das repartições de terras de cada província, que chegavam prontas à mesa presidencial. A partir de 1854, determinou-se que, para regularizar as terras já possuídas, todos os proprietários e posseiros seriam obrigados a fazer o registro de suas possessões, respeitando trâmites e prazos, sob pena de pagamento de multas. O registro consistia em fazer uma declaração ao vigário de sua freguesia que contivesse o nome do possuidor da terra e o nome particular da situação, assim como sua localização. 142

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Eram facultativas informações sobre a forma como a terra fora adquirida, sua extensão e limites. Sendo os vigários das freguesias responsáveis por proceder e receber as declarações para o registro das terras, o ato passou à história como Registro Paroquial de Terras, ou Registro do Vigário. Sobretudo durante as missas, os padres deveriam informar a comunidade acerca da existência da lei, seus prazos e suas penas. As declarações por eles recebidas seriam lançadas em livros numerados e rubricados, que, após encerrados os prazos, seriam remetidos ao delegado do diretor geral das terras públicas da província respectiva, visando à execução do registro geral das terras possuídas na região. Também os arquivos das paróquias armazenariam cópias das declarações. As declarações prestadas não formam fontes homogêneas, sendo umas mais completas em informações, outras nem tanto, e outras, ainda, extremamente imprecisas. “Decidir registrar sua terra podia implicar ou não uma opção por uma declaração detalhada da área ocupada ou apenas um rápido e sucinto registro, capaz de salvaguardar o domínio de sua fazenda [...].”90 O fato de não ser obrigatório informar extensão e limites, por exemplo, contribuiu negativamente no intuito de organizar a situação da terra e discriminar possessões particulares das terras públicas e também entre si, como previa a legislação. Além disso, muitas das informações dadas a registro sequer eram verdadeiras, já que não havia necessidade de provar nada ao fazê-lo. Apesar da obrigatoriedade, muitos proprietários sequer fizeram o registro paroquial. Em Nas fronteiras do poder, a autora Márcia Motta discute o porquê dessa resistência dos posseiros em cumprir a legislação. Aponta que posseiros não registravam as terras temendo limitar o seu poder e a extensão das terras; eventualmente, temiam não ser reconhecidos 90

MOTTA, Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX, p. 167.

A apropriação da terra no Brasil: da Lei de Sesmarias à Lei de Terras (1532-1850)

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pelos seus vizinhos; achavam que, sendo reconhecidos por todos, não havia necessidade da declaração, etc. Muitos alegaram morar longe da sede da paróquia, falta de conhecimento da legislação ou de recursos, já que o registro deveria ser pago por letra, o que tendia a acrescer o seu caráter sucinto.91 O artigo 103 determinava que os vigários e seus escreventes lançariam nos livros competentes “as declarações que lhes forem apresentadas, e por esse registro cobrarão do declarante o emolumento correspondente ao número de letras que contiver um exemplar, à razão de dois reais por letra, e do que receberem farão notar em ambos os exemplares”.92 Ainda que o valor não fosse elevado, era um obstáculo principalmente aos pequenos e médios posseiros. Acertadamente, Jacob Gorender comentou que a “tramitação burocrática, por si só favorecia os poderosos”.93 A imprecisão do registro paroquial mostra que não buscava efetivamente organizar a situação da terra no Brasil. Dificilmente, por meio daqueles registros, se conseguiria conhecer a situação das posses em determinada região e a sua aplicação poria fim aos litígios de terra. Na prática, vê-se que a Lei de Terras de 1850 não discriminou o público do privado como previa em seu texto. O fato de que o registro paroquial não significava propriedade garantida e legitimada também contribuiu para o descaso dos detentores de terras. Em seus artigos 93 e 94, o regulamento de 1854 estabelecia que as “declarações para o registro serão feitas pelos possuidores, que as escreverão, ou farão escrever por outrem em dois exemplares iguais, assinando-os ambos, fazendo-os assinar pelo indivíduo que houver escrito, se os possuidores não souberem escrever”.94 E 91

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MOTTA, Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX, p. 166-169. Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul, p. 20. GORENDER, O escravismo colonial, p. 397. Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul, art. 93, p. 19.

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as “declarações para o registro das terras possuídas por menores, índios, ou quaisquer corporações, serão feitas por seus pais, tutores, curadores, diretores, ou encarregados da administração de seus bens e terras”.95 Entretanto, para os dois casos ficava explícito que as declarações “não conferem algum direito aos possuidores”.96 Márcia Motta reafirma que “os registros paroquiais inauguravam o processo de legitimação das posses e revalidação das sesmarias em situação de comisso, mas, em ambos os casos, ele não significava que o mero registro se tornaria prova de domínio – não era ainda um título de propriedade”.97 Na prática, também não significava que os reais ou possíveis confrontantes reconhecessem automaticamente o domínio pretendido pelo declarante. O segundo passo na busca das revalidações e legitimações era a abertura de processos denominados “autos de medição”, em que o proprietário ou posseiro deveria provar sua posse – mansa e pacífica –, seu cultivo e sua morada habitual; deveria delimitar a extensão e limites da propriedade. Nesses processos evidencia-se a importância do papel das testemunhas e a rede de relações pessoais e influência daquele que pretendia legitimar a terra.98 A forma como se conduziram e se efetivaram os processos de medição e demarcação das posses e propriedades pela lei de 1850 permite concluir que, por meio dela, foi reafirmada a concentração fundiária no país, anteriormente instaurada com as sesmarias. A Lei de Terras não só deixou de impor limites às grandes propriedades, como excluiu o imposto territorial e permitiu o absenteísmo, ao determinar que as

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Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul, art. 94, p. 19. Loc. cit. MOTTA, Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX, p. 171. Idem, p. 53.

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posses pudessem ser legitimadas mediante morada habitual do respectivo posseiro ou de quem o representasse. Teoricamente, havia espaço para que pequenos e médios posseiros legitimassem ocupações anteriores à lei. Na prática, ter informação sobre a lei, realizar e pagar a declaração de posse, custear a medição, ser reconhecido pelos confrontantes, contar com o apoio de testemunhas, resistir à pressão e força de grandes proprietários foram fatores que impediram o direito à terra por parte das camadas sociais mais despossuídas.

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Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19 Fabiano Teixeira dos Santos*

Apresentação Entende-se por Planalto Serrano a extensa área ocupada por campos de altitude e matas de araucária situada junto ao rio Pelotas, na divisa dos estados de Santa Catarina1 e Rio Grande do Sul, que desde seus primórdios, em um e noutro estado, recebeu, respectivamente, as denominações de Campos de Lages e Campos de Cima da Serra.2 Nessa porção de território remanescem antigas sedes de propriedades rurais oriundas da fase áurea do ciclo das tropas e da pecuária, atividade ainda fortemente presente e grande

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Arquiteto e urbanista formado pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul); chefe da Divisão Técnica da Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Santa Catarina (IPHAN-SC); mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF). A margem norte do rio Pelotas, hoje catarinense, pertenceu até 1820 à então capitania de São Paulo, cujo território incluía o estado do Paraná e todo o Planalto, Meio-Oeste e Oeste de Santa Catarina, a quem, por sua vez, cabia apenas a faixa litorânea, entre Guaratuba (PR) e Torres (RS). No estado de Santa Catarina, abrangendo os municípios de Lages, São Joaquim, Curitibanos e Campos Novos, bem como outros municípios de criação recente, cujos territórios foram desmembrados dos quatro primeiros, e no estado do Rio Grande do Sul, abrangendo os municípios de Vacaria, São Francisco de Paula, Lagoa Vermelha e Bom Jesus, bem como outros municípios de criação recente, cujos territórios foram desmembrados dos quatro primeiros.

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responsável pela estruturação social e econômica local. Tais propriedades, fazendas de criação de gado, apresentam complexos construtivos que abrangem, de uma maneira geral, a casa-grande, moradia do fazendeiro, bem como galpões e conjuntos de mangueiras (currais), com a particularidade de serem totalmente erguidas em alvenaria de pedra de junta seca, as denominadas “taipas de pedra”, em proveito dos afloramentos de rocha basáltica abundantes. O estudo dessas construções, particularmente das residências, que se passa a apresentar é o primeiro resultado de pesquisa iniciada há alguns anos e que, embora sucinto, busca refletir sobre o processo histórico da região serrana riograndense e catarinense nesse período inicial, a partir da produção arquitetônica no meio rural. Dois aspectos fundamentais relacionados a essa arquitetura devem ser considerados: primeiramente, a simplicidade de feições vernaculares luso-brasileiras, que denuncia a origem e o modo de vida das populações pioneiras; segundo, de certa forma como se contraponto à característica anterior, a implantação destacada e organizadora do conjunto edificado – e da própria fazenda, quanto unidade produtiva –, o que atesta a condição socioeconômica abastada dos proprietários de terra, de gado e de escravizados. Partindo de sucinta contextualização histórica e apoiada em revisão bibliográfica, o presente estudo identifica as casas de fazenda remanescentes, bem como algumas já desaparecidas, das quais se encontrou alguma documentação e iconografia, analisadas quanto aos aspectos arquitetônicos (materiais, técnicas e sistemas construtivos, definição do programa de necessidades e das plantas, elementos estéticos, entre outros), relacionando-as com construções similares às de outras regiões, apontando para possíveis origens, tentando identificar generalidades e originalidades e buscando definir tipologias. 148

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Almeja, por fim, contribuir com subsídios para o aprofundamento do conhecimento referente à fazenda pastoril, em particular da casa rural serrana do meridião brasileiro nos séculos 18 e 19.

A fazenda serrana Ocupação do território e desenvolvimento da pecuária Até o final do século 19, a região formada pelos Campos de Lages e de Cima da Serra foi cortada pelo caminho Viamão-Sorocaba, a Estrada Geral das Tropas, aberta na primeira metade do século 18: “Fugindo do Litoral inóspito, com muitas barreiras que interceptavam o caminho da praia (rios Tramandaí, Mampituba e Araranguá), foi aberto por Cristóvão Pereira de Abreu, por volta de 1734, um caminho que, vindo do sul, saía na altura do atual município de Palmares em direção ao interior. Atravessando os Campos de Viamão, enveredava rumo ao rio Rolante, afluente do Sinos (área de Santo Antônio da Patrulha), e seguia depois perseguindo a serra (São Francisco de Paula e Bom Jesus). Após atravessarem o rio Pelotas e ali pagarem os direitos no Registro de Santa Vitória (RS), os tropeiros alcançavam os Campos de Lages e os de Curitibanos, no Planalto catarinense, ingressando depois no território paranaense ao transporem o rio Negro.”3 Principal rota de um complexo sistema viário, este caminho conectou o Rio Grande do Sul a São Paulo por via terrestre antes do término do período colonial, interligando regiões como o Litoral, o Planalto e as Missões. Foi o grande responsável pelo desenvolvimento do ciclo tropeiro, abastecendo os mercados consumidores do Sudeste com milhares de tropas 3

BARROSO, Vera Lucia Maciel. O tropeirismo na formação do Sul. In: BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau (Coord.). História do Rio Grande do Sul – Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006. v. 1. p. 181. (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul).

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de gado vacum, cavalar e, sobretudo, muar, provenientes das regiões criadoras platinas. Mais do que isso, assegurou a integração definitiva do sul ao centro do Brasil, consolidando os domínios territoriais luso-brasileiros disputados com os espanhóis.4 Nos campos serranos, junto às vias por onde se transportava o gado, o predomínio de pastagens naturais levou naturalmente à exploração da terra por meio da pecuária extensiva e do latifúndio, apoiados na mão de obra do trabalhador negro escravizado.5 As primeiras propriedades rurais, somando milhares de hectares, ou, na forma usual da região serrana para expressar unidade de medida de área de terra, muitos “milhões de campo” – equivalente a um milhão de metros quadrados –, estabeleceram-se às margens do caminho pioneiro Viamão– Sorocaba, o que se deu pela concessão de sesmarias ou pela apropriação informal.6 Para isso houve a gradual expulsão e extermínio das populações nativas, seus primeiros habitantes. Multiplicaram-se as fazendas à medida que passaram a ocorrer desmembramentos dos latifúndios pioneiros e que outras áreas foram sendo ocupadas, tendo havido grande desenvolvimento da atividade pastoril. Simultaneamente, novos caminhos foram abertos e povoações fundadas, dentre as quais São Francisco de Paula de Cima da Serra (1761),7 Nossa Senhora dos Prazeres das Lages (1766)8 e Nossa Senhora da

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FONSECA, Pedro Arí Veríssimo da. Tropeiros de mula: a ocupação do espaço, a dilatação das fronteiras. Passo Fundo: Berthier, 2004. p. 55. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História de Santa Catarina. Florianópolis: Lunardelli, 1994. p. 211. OLIVEIRA, Sebastião Fonseca de. Aurorescer das sesmarias serranas – história e genealogia. Porto Alegre: EST, 1996. ALVES, Luiz Antônio. Os fundadores de São Francisco de Paula. Caxias do Sul: Edição do Autor, 2007. p. 10. PELUSO JÚNIOR, Victor Antônio. Estudos de geografia urbana de Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC/Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte, 1991. p. 40.

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Oliveira da Vacaria (1768),9 em apoio ao processo de ocupação e expansão territorial empreendido pela Coroa Portuguesa. Entre os caminhos abertos destaque-se o de ligação entre as vilas de Lages e Laguna, definido entre 1771 e 1772, a estrada de Lages e Desterro (atual Florianópolis), inaugurada em 1787, e o caminho Novo da Vacaria, ou Vereda das Missões, inaugurado após a tomada definitiva da região missioneira, em 1816. Diferindo de grande parte dos estabelecimentos pastoris sul-rio-grandenses, que usualmente se denominaram “estâncias”, talvez por influência platina, as propriedades rurais nos Campos de Cima da Serra e nos campos catarinenses de Lages, mais próximas da concepção paulista, denominaramse “fazendas”,10 tendo surgido na sequência da abertura do caminho Viamão–Sorocaba,11 concomitantemente à concessão de sesmarias para legitimação da posse sobre o território.12

Arquitetura da fazenda serrana Tradição arquitetônica luso-brasileira No contexto de uma sociedade cuja economia se baseava na atividade pastoril e no latifúndio, surgiu uma arquitetura de soluções simples, na qual os elementos ostensivos cederam lugar, quase que por completo, a uma estética que partia da necessidade de adaptar-se ao meio e ser funcional.13 9 10

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OLIVEIRA, José Fernandes de. Rainha do planalto. S. l.: Editora São Miguel, 1959. p. 25. PINTO, Lourdes Noronha. Antigas fazendas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: GraficOffset, 1989. p. 13. COSTA, Licurgo. O continente das Lagens – sua história e influência no sertão da terra firme. Florianópolis: FCC, 1982. p. 1565. Oliveira (OLIVEIRA, Sebastião Fonseca de. Op. cit., p. 27) e Piazza (PIAZZA, Walter Fernando. Santa Catarina: sua história. Florianópolis: Editora da UFSC/Lunardelli, p. 173) apresentam listagens com os primeiros sesmeiros nas regiões serranas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, respectivamente. DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da província de São Pedro do Sul (1839). Porto Alegre: Nova Dimensão, 1990. p. 92.

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Contrapondo-se à arquitetura dos centros maiores, nos quais a presença intensa da mão de obra escrava e a maior disponibilidade de recursos financeiros permitiram a construção de residências mais amplas e sofisticadas – caso das fazendas cafeeiras do Vale do Ribeira ou das charqueadas de Pelotas –, tal rusticidade não passou despercebida ao viajante europeu Robert Avé-Lallemant, que durante sua estada numa fazenda a caminho de Lages, no inverno de 1858, relatou: “[...] examinando-se a casa do milionário Juca Velho, não se compreende que nela possa reinar tanta simplicidade, tanta sobriedade, um modo de vida tão perfeitamente espartano. Só a convicção de que até às últimas fontes do Uruguai o modo de vida europeu ainda não pôde penetrar deita alguma luz sobre aquela condição.”14 A narrativa segue registrando, entre outras precariedades, a incompreensão do estrangeiro diante do fato de, apesar do frio intenso, não haver artifícios para o aquecimento das habitações.15 Essa austeridade parece estar atrelada a uma forte tradição construtiva, tornando a arquitetura encontrada no Planalto Serrano muito similar à de edificações erguidas, por exemplo, em São Paulo, no Rio de Janeiro, no litoral catarinense ou em outras localidades do Rio Grande do Sul à época. O arquiteto Haas Luccas, em seu estudo sobre a arquitetura da pecuária no Rio Grande do Sul, escreve: “A ocupação riograndense dos primeiros tempos vincula-se à Laguna e São Paulo, mais precisamente com Sorocaba, centro da atividade tropeira. As procedências restantes [...] foram de outras regiões brasileiras, de Portugal, Açores e Madeira, basicamente. Há uma unidade destes diferentes grupos em torno do que denominou-se cultura luso-brasileira, com uma 14

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AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo (1858). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980. p. 58. AVÉ-LALLEMANT, op. cit., p. 80.

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arquitetura comum correspondente, ressalvadas suas variações regionais.”16 De fato, essa arquitetura tem suas raízes na tradição construtiva portuguesa, que, embora também possua seus regionalismos, em função de diferentes condicionantes culturais, geográficos e econômicos que operaram em conjunto e com maior ou menor intensidade na definição dos modelos arquitetônicos em território português, em períodos diversos, apresenta-se, sobretudo quanto à forma, relativamente homogênea. Tal característica foi definida, certamente, em função de uma forte expressão vernacular transmitida ao longo do tempo pelo conhecimento popular e pelo trabalho habilidoso dos mestres construtores e que, até meados do século 19, foi absorvida ou, de certa forma, aperfeiçoada pelo academicismo decorrente da larga atuação em Portugal e nas colônias de engenheiros militares e arquitetos, formados dentro das concepções arquitetônicas renascentistas e barrocas.17 Ao tratar das moradias rurais da região de Lisboa no século 18, João Vieira Caldas teceu o seguinte comentário: “Na verdade, até na permanência e simplicidade de desenhos e modos de construir, os esforços parecem antes conjugar-se pois à constante passagem de testemunho de arquitectos e construtores vem juntar-se a tradicional ‘imutabilidade’ das formas populares.”18 Nas vilas e cidades, a normatização imposta pelos antigos códigos de postura municipais, que, dispondo sobre os mais variados aspectos da vida comunitária, regularizavam também o construir e o habitar nos espaços urbanos, teve importante papel na afirmação dessas características, con16

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LUCCAS, Luís Henrique Haas. Estâncias e fazendas: arquitetura da pecuária no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997. p. 78. CALDAS, João Vieira. A casa rural dos arredores de Lisboa no século XVIII. Porto: FAUP Publicações, 1999. p. 51. CALDAS, op. cit., p. 55.

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solidando aquilo que há gerações já havia sido assimilado e desenvolvido como arquitetura. Em Lages, o primeiro de uma série de códigos de posturas da Câmara Municipal, instituídos ao longo do século 19, se deu por meio da lei no 213, de 5 de maio de 1845. Prova do apenas afirmado são as casas de fazenda estudadas, que, embora não seguissem nenhuma legislação para sua feitura, apresentavam praticamente as mesmas características presentes nas casas urbanas, externa ou internamente. Além disso, inspirada nas Ordenações Régias, essa legislação municipal servia como instrumento para impor uma expressão comum à arquitetura colonial, nos moldes da Metrópole, o que permaneceu após a Independência (1822) e deu origem a uma identidade arquitetônica luso-brasileira.19 Percorrendo o interior do município de São Francisco de Paula, nos Campos de Cima da Serra, ou a região da Coxilha Rica, no município catarinense de Lages, de um e outro lado do rio Pelotas encontram-se as mesmas fachadas brancas e austeras, emolduradas por cunhais20 e cimalhas,21 ou simplesmente arrematadas por beirais de telha (beira-seveira)22 e cachorros.23 Destacam-se, igualmente, os volumes das coberturas de duas ou quatro águas, cujas telhas capa-e-canal e a

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REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 24. Cunhal: canto externo formado pelo encontro de duas paredes da construção, podendo ser ressaltado pela presença de pilastra em massa, madeira ou cantaria. Cimalha: também chamada de cornija, consiste em moldura saliente que remata a parte superior da fachada de um edifício, servindo de beiral ao telhado e impedindo que as águas escorram pela parede. A expressão “beira-seveira” consiste numa corruptela de “beira-sobre-beira”, técnica tradicional corrente na arquitetura luso-brasileira, que consiste em sobrepor uma ou mais fiadas de telhas preenchidas com argamassa ao longo das fachadas de uma edificação, a fim de se obter a projeção necessária para os beirais dos telhados. Cachorro consiste na peça, geralmente confeccionada em madeira, que encaixada no frechal, em balanço, projeta-se externamente para além do alinhamento das paredes, servindo de sustentação ao beiral do telhado.

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curvatura elegante, proporcionada pela presença de galbos,24 evidenciam a ancestralidade lusitana. Não devem ser desconsideradas outras possíveis influências, também resultantes de modelos arquitetônicos de origem ibérica, porém introduzidos no Brasil ainda nas primeiras décadas do povoamento e aí adaptados, com destaque para a casa bandeirista (paulista) dos séculos 16 e 17.25 O fato é que, em decorrência do regime de chuvas diferenciado, da incidência de ventos e de temperaturas mais baixas, tornando os invernos serranos mais longos e rigorosos, essas arquiteturas se reinventaram. Prova disso é o desaparecimento das varandas e alpendres, elementos característicos das residências coloniais da maior parte das regiões brasileiras e mesmo presentes em Portugal. Diante do fato de os aspectos socioeconômicos, culturais e geográficos interagirem na determinação das edificações, a população que a produziu também soube se apropriar de materiais e recursos naturais disponíveis no meio para, no caso do presente estudo, reproduzir sua tradição construtiva portuguesa. Assim o comprovam as originais casas luso-brasileiras de “araucária”, produzidas nos planaltos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, como será visto a seguir.26

Materiais e sistemas construtivos Casas de araucária e alvenaria Se, quanto à forma, percebe-se com clareza terem predominado modelos arquitetônicos de origem portuguesa, com relação ao emprego de materiais construtivos, o aproveitamento daquilo que o meio físico local disponibilizava parece 24

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Galbo: perfil resultante da introdução do contrafeito, peça em madeira componente da estrutura da cobertura e característica das construções tradicionais portuguesas, cuja finalidade é suavizar o ângulo formado pelos caibros do telhado. LUCCAS, Estâncias e fazendas: arquitetura da pecuária no Rio Grande do Sul, p. 9. LUCCAS, op. cit., p. 78.

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ter sido amplamente utilizado, até mesmo em razão do distanciamento em relação a outras regiões, principalmente do litoral, onde poderiam ser obtidos materiais de uso mais generalizado, como a cal. Fica evidente, no entanto, ao analisarmos as antigas sedes de fazenda, que essa assimilação ocorreu no sentido de substituir, não de criar algo novo. A abundância de materiais, como as rochas basálticas e areníticas (principalmente o basalto, que se encontra solto nos campos, portanto de fácil obtenção), assim como a madeira proveniente das matas de araucária (pinheiro brasileiro), levou a que se construíssem moradias com um e outro material, porém sempre obedecendo aos padrões formais tradicionais correntes até o século 19. Comumente utilizada na confecção de forros e soalhos, a madeira de araucária também foi corrente como divisória interna (tabique) e cobertura, na forma de telhados de tabuinha: “Nos campos de cima da serra, a abundância de araucária punha em evidência a sugestão de se aproveitar o material de mais fácil obtenção, a madeira. Por isso, não raro, nas sedes de fazendas da região, até as coberturas eram realizadas com tabuinhas [...].”27 A região serrana de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul trata-se da única área de ocorrência da tradição construtiva luso-brasileira em que houve residências, muitas das quais abastadas, confeccionadas totalmente em madeira. Tal fato consistiu numa excepcional apropriação deste material aos padrões da arquitetura de origem lusa, com a substituição da alvenaria por tábuas dispostas verticalmente, vedando a estrutura independente, também confeccionada em madeira. Em 1858, Robert Avé-Lallemant fez valiosa observação com relação às casas de fazenda construídas em araucária 27

CURTIS, J. N. B. de. Arquitetura e economia do gado na Região Sul. In: BICCA, Briane Elisabeth Panitz; BICCA, Paulo Renato Silveira. Arquitetura na formação do Brasil. Brasília: Unesco/ Iphan, 2008. p. 183.

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que conhecera em Lages: “Aqui encontrei a completa expressão do planalto de Santa Catarina. A construção interior da casa era genuinamente nacional, de madeira de araucária. Soalho, portas, paredes, teto, mesas, bancos, tudo, asseado e variadamente ornado, feito de tábuas e traves de pinho. [...] me pareceu a casa ideal numa serra de araucária, sólida, simples e limpa, com a expressão de uma certa abastança.”28 Atualmente restam poucos destes exemplares, uma vez que foram sendo gradualmente substituídos, dadas a menor durabilidade da madeira e a exigência de manutenção constante em relação à alvenaria. São remanescentes as sedes das fazendas Capão do Posto, Cajuru – há duas fazendas de mesmo nome, do século 19, em madeira e alvenaria –, São Luís e Santo Cristo, em Lages, da Palma, em São Joaquim, do Socorro, em Vacaria, e Caraúno, em Bom Jesus. Neste conjunto destaca-se a Capão do Posto, construída por volta de 1860 e que, sem dúvida, trata-se do mais notável edifício do gênero pela qualidade arquitetônica e dimensões generosas, rivalizando com qualquer residência abastada de pedra e cal da época. As construções em alvenaria são encontradas em maior número, tendo sido suas robustas paredes externas, algumas atingindo quase um metro de espessura, erguidas em pedra e tijolos rejuntados com barro e rebocados com cal. Diante da distância das povoações e da precariedade das estradas, instalaram-se olarias junto às fazendas para a confecção de tijolos, empregados basicamente nos peitoris de janelas e arremates dos vãos, e de telhas do tipo capa-ecanal, usuais nos telhados luso-brasileiros. Nas proximidades da sede da fazenda Cajuru, em Lages, ainda podem ser encontrados vestígios da olaria que serviu à construção da residência, na segunda metade do século 19.

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AVÉ-LALLEMANT, Viagens pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo (1858), p. 63.

Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19

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Ingrediente fundamental para as pinturas e argamassas de reboco, a cal era trazida do litoral a pesados custos, em sacos acomodados sobre o lombo de mulas, sugerindo que o apelo de sua utilização, em razão da eficiência e durabilidade que conferia à construção, era superior às dificuldades que sua obtenção acarretava.29 Explica-se assim o porquê da escassez e do uso racionado, destinando-se basicamente ao acabamento dos rebocos e pintura. Também o vidro era trazido do litoral, destinado ao fechamento de esquadrias, e só apareceu na segunda metade do século 19, quando seu uso vulgarizou-se em todo o Brasil. Em Lages e São Joaquim, não raro, as vidraças das janelas de residências mais abastadas, incluindo-se aí as casas de fazenda, apresentavam delicados caixilhos ornamentais compondo losangos de diferentes formatos e tamanhos, resultando em interessante efeito estético. Isso quando não eram a única ornamentação presente nas austeras fachadas das moradias. Este modismo ainda é encontrado em inúmeras moradias de Laguna e região,30 de onde deve ter provindo, juntamente com os próprios vidros, podendo ser visto em Lages nas sedes das fazendas Cajuru e Capão do Posto.

Ausência do pau-a-pique e da taipa de pilão Técnica construtiva que parece ter sido rara na região serrana, ao menos na construção de paredes externas, é a taipa, tanto em suas versões pau-a-pique como taipa de pilão. O pau-a-pique consistia na montagem de uma estrutura em madeira, à semelhança das casas de araucária, com pila-

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Apud PELUSO JÚNIOR, Estudos de geografia urbana de Santa Catarina, p. 93. BROOS, Hans. Construções antigas em Santa Catarina. Blumenau: Cultura em Movimento; Florianópolis: UFSC, 2002.

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res enterrados no chão (origem da expressão “pau-a-pique”),31 vedada com tramas de fibra vegetal amarrada ou pregada (lascas de taquara, palmeira ou sarrafos de madeira), por sua vez revestidas com barro aplicado manualmente (daí o fato de também ser denominada “taipa de mão”). Foi bastante usado nas paredes internas das residências, onde ao final recebia uma fina camada de revestimento de cal, para efeito de acabamento e pintura, sendo vulgarmente denominado de estuque. Já a taipa de pilão era realizada a partir do apiloamento de barro dentro de caixas de madeira, com a altura e espessura desejáveis para as paredes, entaipando-se (levantando-se) a construção. Assim como a alvenaria de pedra e cal, é muito provável que a taipa e suas variantes também tenham tido origem nas construções tradicionais portuguesas, sobretudo na região do Alentejo e nas áreas do norte, na divisa com a Espanha. Ocorreu com frequência em Minas Gerais e em São Paulo, particularmente no Planalto de Piratininga, onde, em razão da escassez de pedra e de outros recursos para a construção durante o período colonial, foi aperfeiçoada e amplamente difundida.32 No entanto, apesar da intensa relação mantida entre o planalto serrano rio-grandense e catarinense com São Paulo até o século 19, por conta do ciclo tropeiro e das trocas culturais que proporcionou entre o sul e o centro do país, foi possível identificar apenas três exemplares arquitetônicos em 31

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Há uma importante diferenciação entre as estruturas desse tipo de construção com relação às casas em enxaimel, de tradição construtiva germânica, embora apresentem forte semelhança no que diz respeito à técnica. Enquanto nas edificações de origem alemã, os pilares são sustentados por apoios em pedra ou alvenaria de tijolos, na casa luso-brasileira de taipa ou madeira os pilares também fazem o papel de fundações, assentando-se diretamente sobre o solo. As bases destas peças, estando enterradas, apresentam-se rústicas, sem falquejamento, denominando-se burros ou nabos. LEMOS, Carlos A. C. Casa paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo: Edusp, 1999. p. 39.

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pau-a-pique e nenhum em taipa de pilão. Trata-se das sedes das fazendas do Matemático, em Bom Jesus, Cruz de Malta e do Cadete, em Lages, tendo as duas primeiras já desaparecido. A fazenda do Cadete, situada na região da Coxilha Rica e tendo pertencido à família Ramos, foi construída na primeira metade do século 19. Na década de 1930, foi reformada e recebeu um segundo pavimento, assumindo a característica de sobrado. Porém, respeitaram-se as características originais, incluindo a manutenção da técnica do pau-a-pique. Curiosamente, ao norte de Lages, basta atravessar a Serra do Espigão e o rio Negro, atingindo-se os Campos Gerais (área originalmente pertencente a São Paulo), que é possível encontrar ao longo da antiga Estrada das Tropas dezenas de fazendas dos séculos 18 e 19 erguidas em taipa, inclusive de pilão, nos municípios paranaenses de Lapa, Palmeira, Castro, Ponta Grossa e Tibagi.33 É possível afirmar que o fato da durabilidade inferior em relação à alvenaria, aliado à abundância de pedra e madeira, pode ter sido determinante para a escassez, desaparecimento ou substituição destas construções.

Complexo construtivo da sede da fazenda Implantação A implantação da sede da fazenda serrana obedeceu principalmente a uma necessidade estratégico-defensiva, característica presente, diga-se de passagem, na maioria das estâncias e fazendas pastoris do Sul do Brasil, em razão dos conflitos pela delimitação de fronteiras, e hierárquica, como casa senhorial e núcleo organizador da propriedade. Em razão disso, situaram-se em sítios elevados, geralmente em co33

Consultar LYRA, Cyro Corrêa. Guia dos bens tombados, Paraná. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1994; SOUZA, Alcídio Mafra de. Sesmarias, velhas fazendas e quilombos – Campos de Castro. Castro: Museu do Tropeiro/Secretaria de Estado da Indústria, do Comércio e do Turismo – Governo do Paraná, [s. d.].

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xilhas (colinas) mais destacadas, a fim de que se pudesse vislumbrar amplo visual das áreas de entorno, controlando-se de certa forma o que se passava ao redor, a grande distância. Por outro lado, sobretudo na medida em que se aproxima do final do século 19, estando definidas as questões de fronteira e em função de uma maior estabilidade política e social, a preocupação defensiva, presente nos primeiros anos de ocupação do território, deixa de ser fundamental para a escolha do local de construção da sede da propriedade. Datam deste período as fazendas implantadas de forma menos exposta, à meia encosta de terrenos acidentados, ainda mantendo vistas privilegiadas – fazendas Cajuru e São Domingos, em Lages - SC – ou no fundo de pequenos vales, ficando cercadas por morros – fazenda Morrinhos, em Lages. A casa de fazenda é o centro de um complexo de construções e espaços de apoio formado pelo jardim fronteiro ou lateral à casa, horta, pomar, terreiro (onde são criados porcos, galinhas e outros animais domésticos de pequeno porte), roças (situadas nas imediações da moradia para fornecimento de gêneros alimentícios), o galpão, construção essencial à atividade pastoril, implantado em uma das laterais ou atrás da moradia, e as mangueiras (currais), de dimensões e formatos diversos, igualmente fundamentais à lida com o gado e suas atividades específicas – recolhimento e aparte dos animais, marcação e castração, doma de cavalos, etc. A interligação entre esses elementos é obtida pelos muros erguidos em pedra de junta seca, conhecidos na região serrana como taipas de pedra e destinados ao cercamento dos diferentes espaços livres que compõem o complexo da sede da fazenda (jardins, hortas, roças e mangueiras).

Fachadas Destaca-se obviamente, como, aliás, usual na arquitetura luso-brasileira, a fachada frontal, que segundo um princíFazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19

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pio de identidade e hierarquia, apresenta os melhores acabamentos e alguma ornamentação, diga-se de passagem, singela – cunhais, enquadramento das aberturas, sobrevergas, caixilhos trabalhados e cimalha em lugar do simples beiral de telhas que ocorre nas demais fachadas.34 Podem ocorrer ainda gravações na própria alvenaria ou em cartelas de cantaria afixadas sobre a porta principal, contendo as iniciais do proprietário e a data de construção (caso da fazenda Morrinhos, que pertenceu ao coronel Belisário José de Oliveira Ramos). A presença de uma calçada pavimentada com pedras em toda a extensão da fachada também era empregada a fim de valorizar a frente da residência, além, é claro, do jardim fronteiro, cercado por taipas de pedra, onde aparecem canteiros com flores e árvores ornamentais, principalmente camélias, siqueiras, butiazeiros e carvalhos. Outro artifício utilizado no sentido de reforçar a imponência da construção foi, quando da ocorrência de fachada simétrica e cobertura em quatro águas de formato piramidal, arrematar-se a cumeeira com pinha ou pináculo em cantaria – fazendas Santa Teresa, Morrinhos e Igrejinha – modismo usual em edifícios palacianos até meados do século 19. A sede da fazenda Igrejinha, reformada há alguns anos, hoje apresenta telhado de duas águas, embora tenha se conservado o pináculo em pedra que originalmente coroava a cobertura.

Planta baixa O programa de necessidades que definiu as plantas baixas das casas de fazenda serranas consistia basicamente em destinar a parte anterior da moradia, por onde se dava o acesso principal aos espaços de receber e de uso social, como salas 34

PEIXER, Zilma Isabel; SARTORI, Sérgio; VARELA, Iáscara Almeida; TEIXEIRA, Luiz Eduardo; ISHIDA, Americo; MIRANDA, S. L.; BORNHAUSEN, O. R. Fazendas da Coxilha Rica, Lages, SC – estudo de arquitetura. In: Levantamento do patrimônio ambiental e socioeconômico do caminho das tropas (relatório de pesquisa). Lages (SC), 2005. p. 21.

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de visitas e quartos de hóspedes, ao passo que as partes ao centro e posterior da casa serviam exclusivamente aos usos íntimos e de serviço doméstico, como dormitórios da família, sala de jantar e cozinha. Este programa é uma constante na arquitetura luso-brasileira, rural ou urbana, ficando a variação maior por conta das dimensões e quantidade de cômodos, o que geralmente está relacionado ao poder aquisitivo do proprietário, havendo pouca variação quanto ao arranjo dos espaços internos. Basicamente, duas tipologias de planta baixa, com formato retangular ou quadrangular, ambas térreas e obedecendo ao programa apresentado, aparecem entre as construções analisadas: uma em que não existem circulações especializadas, fazendo-se o acesso externo através de uma sala central, à qual a maior parte dos demais ambientes está diretamente conectada; e outra em que o acesso externo é feito por um corredor que interliga a parte anterior e posterior da moradia, estruturando-a. A primeira tipologia ocorre principalmente nas edificações mais antigas, entre o século 18 e a primeira metade do século 19. São, em geral, moradias de menores dimensões, com a fachada frontal apresentando na maioria dos casos quatro vãos, sendo, portanto, assimétrica. A assimetria revela uma menor preocupação estética e formal com a composição da fachada, que desta forma assume um aspecto marcadamente vernáculo e primitivo, reforçado pela frequente ausência de cunhais, cimalha ou qualquer outro ornamento. As sedes das fazendas Pinheirinho e São Domingos, em Lages, e do Socorro, em Vacaria, exemplificam esse tipo de construção. Apresentam dimensões modestas, o que é evidente no tamanho dos cômodos internos, além de pé-direito baixo, em torno de 2,5 m. Dos quatro vãos da fachada frontal, os dois mais ao centro destinam-se à porta de entrada e à janela da sala de visitas, enquanto os demais, um em cada Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19

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extremidade, destinam-se às janelas de dormitórios frontais, quase sempre destinados a hóspedes e acessados diretamente pela sala. A partir desta, chega-se a um pequeno ambiente de circulação, espécie de vestíbulo, que acessa de um e de outro lado dormitórios, além de fazer a transição para a sala de jantar, disposta ao longo da parte posterior da casa, junto à cozinha. A segunda tipologia é caracterizada pela presença marcante de um extenso corredor que liga o exterior, na fachada frontal, à sala de jantar, nos fundos, organizando em torno de si todos os espaços da moradia. Funcionando como um eixo de simetria, tendo em cada uma das laterais praticamente os mesmos ambientes rebatidos – salas e alguns dormitórios na frente, alcovas, pequenos quartos sem janelas, característicos das residências luso-brasileiras de até o século 19 – e no centro e ambientes de serviço atrás, esse corredor aparece na maioria das residências brasileiras do século 19, mesmo nas mais modestas moradinhas urbanas de porta e janela, resultando em ganho considerável para a melhor estruturação da casa e setorização de seus diferentes espaços, de uso social e íntimo. Tal planta foi largamente utilizada no meio urbano por facilitar a ocupação dos lotes estreitos e compridos. Na cidade de Lages, a antiga residência que pertenceu ao coronel José Antunes Lima, o “Juca Antunes”, situada na esquina das ruas Coronel Córdova com Benjamin Constant e construída por volta de 1860, exemplifica a planta caracteristicamente urbana de “morada inteira” que acabou disseminada no meio rural. Como na fazenda a restrição de tamanho do lote não existia, as construções, dependendo dos recursos financeiros do fazendeiro, tendiam a se configurar como “morada inteira”, ou seja, fachada frontal apresentando uma porta central e duas ou mais janelas de cada lado – caso das fazendas São 164

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João, Santa Teresa, São José, Morrinhos e Limoeiro, em Lages, Branca, em Vacaria, e Chimarrão, do Guirra, Capão do Alto e Capão de Fora, em São Francisco de Paula. Importante inovação difundida entre as residências do século 19 e geralmente associada à planta do tipo “morada inteira”, estando, portanto, também presente nas casas de fazenda, foi o porão alto. Consistia em apoiar os assoalhos sobre porões mais ou menos elevados, sendo o desnível em relação ao exterior vencido por meio de uma pequena escada posicionada após a porta de entrada, conduzindo ao corredor central da habitação. Ao longo de todo o nível inferior das paredes abriam-se óculos ou gateiras de ventilação, solução simples e de grande importância para a salubridade da madeira do barroteamento e dos assoalhos. Além de minimizar os problemas com umidade, que tornavam as casas baixas insalubres, o porão alto proporcionava imponência à residência, conferindolhe aspecto mais nobre. Além das duas tipologias principais apresentadas, é possível encontrar algumas variações de planta decorrentes ou associadas a estas, sendo, porém, de ocorrência incomum e carecendo de uma análise mais aprofundada: incluem-se aí a casa de sobrado com dois pavimentos (fazendas do Cadete e Guarda-mor, em Lages, e Estrela, em Vacaria), casa com quarto de hóspedes de acesso externo independente (fazenda Cajuru, Lages) e casa dotada de pátio interno avarandado (fazenda dos Novilhos, São Francisco de Paula). Com relação à fazenda do Cadete, tratava-se originalmente de edificação térrea, tendo sido o pavimento superior acrescido já na década de 1930.

Cozinha A cozinha, por sua função fundamental para o funcionamento da habitação, é, indiscutivelmente, um dos principais elementos para a caracterização de tipos na arquitetura Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19

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doméstica de origem portuguesa, mesmo que, em razão das questões climáticas, o forno e a chaminé ancestral acabaram não se mantendo na casa luso-brasileira.35 Segundo um critério hierárquico de configuração dos espaços e volumes construídos, tanto nas residências rurais como urbanas, mais ou menos abastadas, lhe era reservada a parte posterior, nos fundos, junto ao terreiro ou quintal. Primitivamente, foram concebidas em separado da moradia, com o intuito de prevenir incêndios, já que o fogo ficava exposto, facilitando a ocorrência. Já a partir da popularização do uso de fogões, no século 19, foram incorporadas à casa, paralelamente, compreendendo uma continuação da água posterior do telhado e ficando consequentemente com pé-direito inferior em relação ao restante da residência, à semelhança do que ocorre em grande parte das construções rurais luso-brasileiras do litoral catarinense, às quais se atribui influência açoriana, dada a colonização predominante de contingentes populacionais oriundos do Arquipélago dos Açores durante o século 18; ou perpendicularmente, ocupando um volume distinto e menor, coberto por telhado de uma, duas ou três águas, compondo com o volume principal uma planta em “L”. Este segundo arranjo foi o mais empregado, conforme se deduz pela observação das construções remanescentes e da iconografia antiga, certamente por liberar parte da fachada dos fundos e permitir a abertura de vãos, melhorando, assim, a salubridade do interior da habitação. Curiosamente, sua larga utilização ocorreu proporcionalmente nas cidades e no meio rural, sendo provável que nas fazendas tenha se dado por influência das construções urbanas, onde consistia em inteligente solução diante das limitações impostas pela falta de recuos laterais, permitindo a existência de aberturas. Isso à 35

LEMOS, Carlos A. C. Cozinhas, etc. Um estudo sobre as zonas de serviço da Casa Paulista. São Paulo: Perspectiva, 1978.

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semelhança do uso generalizado das plantas urbanas do tipo “morada inteira” nas casas de fazenda, conforme já tratado. Há ainda casos incomuns, em que a cozinha está completamente inserida no corpo da residência, a exemplo das sedes das fazendas São José e Cajuru, em Lages. O uso primitivo de um espaço com função similar à da cozinha, em separado do restante da casa, manteve-se com a existência da “cozinha de fora” ou “cozinha suja”,36 por vezes denominada de “fogo de chão”, por ser o local onde o fogo é mantido no próprio chão, sobre o qual se coloca uma trempe ou se fixam ganchos para suporte de tachos e preparo de alimentos, sobretudo o beneficiamento de animais recém-abatidos, derretimento de banha e preparo de doces e embutidos. Pode eventualmente apresentar subdivisão de espaços destinados à fabricação de queijo, charque e local do forno, como ocorre na fazenda Caraúno, em Bom Jesus; ou aparece também contínuo à cozinha propriamente dita, caso das fazendas São João, em Lages, e Estrela, em Vacaria. Este recinto de pequenas dimensões, erguido em alvenaria de pedra sem reboco ou em madeira, é geralmente coberto por telhado de duas águas, sempre desprovido de forro, de forma a permitir a saída da fumaça, e pavimentado com terra batida ou pedras irregulares, o que evidencia sua rusticidade e o tipo de função a que se presta.

Ornamentação interna e outros elementos Seria redundante falar que numa arquitetura tão austera e funcional houve pouco ou nenhum espaço para a ornamentação interna. De fato, alguns exemplares são de uma singeleza tal que, mesmo tendo pertencido a fazendeiros donos de muita terra e gado, não apresentam ornamentos se36

SILVA, Nery Luiz Auler da. Velhas fazendas sulinas: no caminho das tropas no planalto médio – século XIX. Passo Fundo: Edição do Autor, 2003. p. 225.

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quer em suas fachadas principais, como seria usual, na representação da condição abastada do proprietário. No entanto, de forma ainda que contida, aparecem em algumas residências mais abastadas forros do tipo encabeirado, fugindo do usual saia-e-camisa, elementos decorativos como flores, estrelas e figuras geométricas entalhadas em madeira, embelezando os cantos e o centro dos tetos das salas, rodatetos, rodapés, faixas em madeira a meia altura contornando as paredes dos ambientes mais importantes, molduras delicadamente trabalhadas em madeira para os vãos de portas e janelas das salas de visitas. O forro ou soalho “encabeirado” é guarnecido/emoldurado por cabeiras, tábuas que de fato servem para criar uma moldura de acabamento para as demais peças. Forro “saia-e-camisa” ou “saia-e-blusa” é aquele em madeira, no qual as tábuas são presas sobrepostas umas às outras, formando reentrâncias e saliências. Pinturas decorativas, do tipo escariola ou estêncil apareceram somente com o ecletismo, já no início do século 20, diga-se de passagem, de gosto sempre muito ingênuo e simples. O ecletismo consiste em tendência artística fundada na exploração e conciliação da estética de diversos estilos antigos, tendo sido empregado na arquitetura, sobretudo, a partir de final do século 19. Da mesma forma, diferentemente de outras regiões do Brasil, não existiram capelas externas ou anexas à residência, ocupando construção específica para essa finalidade. Aparecem, sim, oratórios móveis e capelas instaladas internamente, em uma das alcovas junto à sala de visitas, como se vê nas fazendas Cajuru e São João, em Lages. Nestes recintos, completamente despojados de maior esmero artístico, as imagens dos santos de devoção da família, por vezes invocados como orago das fazendas, eram abrigadas e veneradas. Aliás, a ausência de luxo e maior refinamento interno das residências é constatada também pela simplicidade do mobiliário, o que, 168

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diga-se de passagem, é uma constante em todo o Brasil, com raras exceções, pelo menos até o final do século 19. Uma particularidade das casas de fazenda lageanas relacionadas à tipologia “morada inteira” é o fato de praticamente todas apresentarem, na conexão do corredor com a sala de jantar, em lugar de uma porta convencional, um grande arco em madeira desprovido de fechamento, sustentado por colunas ou pilares também em madeira. Assim, embora não haja uma obstrução física – porta – entre os setores social e íntimo da moradia, a transição entre um e outro é destacada pela presença do imponente arco. Este elemento parece ter sido pouco empregado em construções de outras regiões, ocorrendo muito raramente em sedes de fazendas cafeeiras do Sudeste e em algumas charqueadas da região de Pelotas, no Rio Grande do Sul (caso da Estância da Gruta). Sua presença é mais recorrente em algumas fazendas e em casas urbanas dos Campos Gerais do Paraná, especialmente em moradias abastadas do século 19 na cidade da Lapa, onde também aparecem os pináculos em pedra coroando as cumeeiras dos telhados de quatro águas de formato piramidal.

Construções utilitárias e de apoio à produção Galpão Tão rústico quanto o fogo de chão é o galpão, porém de grandes dimensões, por vezes com área construída superior à da própria residência. Rodeado pelas “mangueiras” para a lida com os animais, destina-se a estábulo dos cavalos e vacas de leite, guarda e manutenção dos artigos de montaria e dormitório dos peões, sendo o seu principal espaço de convivência e trabalho. Daí o fato de ser um espaço de uso quase que exclusivamente masculino, tendo em função disso um local semelhante ao fogo de chão, porém não destinado ao preparo Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19

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de alimentos e, sim, ao convívio social dos trabalhadores homens, que antes e após as lidas de campo nele se reúnem para conversar e tomar chimarrão. É interessante notar, com base na análise de fotografias antigas e das construções remanescentes, que no início do século 20 as novas influências arquitetônicas que incidiram sobre as casas-sede, alterando suas feições originalmente lusobrasileiras, também se fizerem sentir nos galpões. Não em termos estéticos, é claro, uma vez que se trata de construções essencialmente utilitárias e, portanto, muito singelas, mas em termos de dimensões e materiais empregados. De forma a acompanhar os avanços e melhorias introduzidas para qualificação dos rebanhos e das técnicas de pecuária, o rústico galpão primitivo, erguido em alvenaria de pedra sem reboco ou em madeira, coberto por telhas capa-e-canal ou tabuinhas e que em dimensões reduzidas concentrava todo um universo de lidas e usos, foi substituído por construções maiores, ou complexos formados por mais de um galpão com funções especializadas, por vezes adotando soluções construtivas inglesas e alemãs que refletiam na melhora substancial dos serviços e da produtividade da fazenda. Complementa o conjunto edificado da sede da fazenda uma série de pequenas construções igualmente muito rústicas, em madeira, destinadas às mais variadas atividades domésticas e implantadas em torno da casa-grande e do galpão, como galinheiros, chiqueiros, abrigos para o poço de água e tanque de lavar, latrina, etc.

Senzala A raridade de se encontrar remanescentes de antigas senzalas nas propriedades rurais não deve levar à conclusão precipitada de que a escravidão negra nos campos serranos tenha sido insignificante, ao ponto de não justificar a necessidade de construção de locais específicos para abrigar os tra170

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balhadores negros. Do contrário, existem evidências de que a presença do escravo foi, sim, relevante e fundamental para a sustentabilidade da economia pastoril nos Campos de Lages e de Cima da Serra, embora, obviamente, em menor número, se comparado a outras regiões. Quadro da evolução populacional de Lages entre 1777 e 1808 revela que a porcentagem de escravos em relação à população livre nestes primeiros anos após a fundação da vila foi considerável, chegando mesmo a ultrapassá-la em 1778.37 Estes números, embora possam não estar isentos de erros, no mínimo indicam que o número de trabalhadores escravizados não é desprezível, o que é reforçado por outras estatísticas realizadas ao longo do século 1938 e por dados retirados de inventários, que demonstram uma importante participação do elemento de origem africana na constituição da população serrana.39 Sendo o negro escravizado em tudo empregado, desde os serviços domésticos e cultivo das roças, até os trabalhos mais dificultosos e que exigissem habilidade, como a construção civil, também foi incumbido das lidas de campo e das tropeadas,40 além da árdua tarefa de levantar os muros de taipa de pedra, elemento hoje marcante na paisagem serrana.41 O fato é que, com a abolição da escravatura em 1888, houve a preocupação em se demolir ou adaptar as senzalas, uma vez que se tratava de construções modestas, quando não precárias.42 37

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PIAZZA, Walter Fernando. A escravidão negra numa província periférica. Florianópolis: Garapuvu/Unisul, 1999. p. 114. PIAZZA, op. cit., p. 111. OLIVEIRA, Aurorescer das sesmarias serranas – história e genealogia, p. 159. ATAÍDE, Sebastião. O negro no planalto lageano. Lages: Prefeitura Municipal de Lages, 1988. p. 40. MAESTRI, Mário. O escravo gaúcho: resistência e trabalho. Porto Alegre: UFRGS, 1993. p. 38. MACEDO, Francisco Riopardense de. Arquitetura luso-brasileira. In: WEIMER, Günter (Org.). A arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. p. 77.

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Conforme observado pelo arquiteto e historiador Günter Weimer, os vestígios de senzalas que chegaram aos dias atuais não apenas comprovam a presença do trabalhador escravizado, como evidenciam, nos partidos construtivos que adotaram, a submissão e os maus-tratos a que estavam sujeitos os cativos nas fazendas do sul.43 Na fazenda Cajuru (casa de alvenaria), atribui-se a um cômodo de dimensões muito pequenas, com acesso externo independente e originalmente isolado do restante da habitação, a função original de senzala. Hoje adaptado para banheiro, apresentava ainda há alguns anos, antes da abertura de uma porta, pequena abertura a meia altura da parede que o divide com a cozinha e que teria a função de “passa-pratos”, fornecendo refeições aos escravos e aos peões que o acessavam pelo galpão. Em outro caso, fazenda da Estrela, teria servido como senzala compartimento disposto atrás da cozinha, também com acesso externo próprio, tendo sido posteriormente utilizado como quarto para peões. Já numa das sedes da fazenda dos Novilhos, percebe-se que a grande ala com cobertura de quatro águas contígua à residência, que conforma na sua implantação o pátio interno apresentado anteriormente, consistia na origem em antiga senzala. Esse ambiente coberto, atualmente abandonado e em avançado estado de arruinamento, aparentemente não possuía divisória interna, tendo uma única porta de entrada, interna, pela cozinha, junto à saída para o terreiro e o galpão. A grande área construída era iluminada por apenas três janelas, dispostas uma em cada fachada, que apresentavam robustas grades de madeira em lugar de caixilhos. Na fazenda do Guirra, em São Francisco de Paula, o espaço que muito provavelmente tenha sido utilizado como senzala é o porão, com pé-direito de aproximadamente 1,8 m, que

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WEIMER, Günter. A arquitetura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992. p. 36.

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ocupa toda a parte inferior da moradia, sendo abrigado por paredes em pedra com espessura média de 2 m.

Corredores, muros e mangueiras de taipa de pedra Vestígios materiais dos mais importantes que se relacionam aos antigos caminhos de tropas do Planalto Serrano Sul-rio-grandense e Catarinense são os muros erguidos manualmente em alvenaria de pedra de junta seca, técnica conhecida na região como “taipa de pedra” ou simplesmente “taipa”, guarnecendo as estradas – corredores – e facilitando a condução das tropas de gado por entre as fazendas. Popularmente denominados de “corredores de taipas”, esses caminhos murados beiram à monumentalidade ao atingirem em alguns trechos dezenas de quilômetros lineares ininterruptos. Sua construção, por certo, deu-se mediante o emprego da mão de obra escravizada, à custa dos fazendeiros locais, em aproveitamento da rocha basáltica que aflora em abundância nos campos, na forma de pedras soltas. “Mais do que igualmente notáveis, em Santa Catarina, são os quilométricos ‘corredores’ de taipa, com cerca de 12 m de largura e 1,2 m de altura, que mantinham embretado o gado conduzido pelos tropeiros e, ao que tudo indica, funcionavam também como calha coletora de pequenos contingentes de animais que se incorporavam às tropas quando adquiridos nas fazendas do percurso. Sua presença física remanesce em vários trechos do planalto de Lages, com alargamentos estrategicamente espaçados para, quando necessário, atender às funções de mangueiras, onde se realizavam o descanso, o aparte e o tratamento dos animais.”44

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CURTIS, Arquitetura e economia do gado na Região Sul. In: BICCA; BICCA, Arquitetura na formação do Brasil, 2008, p. 171-172.

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Mediante o emprego dessas estruturas, cuja origem deve remontar às construções murárias primitivas de Portugal,45 também marcantes na paisagem do arquipélago dos Açores,46 configuravam-se as estradas, divisas de propriedade e invernadas de criação do gado (áreas de pastagens), além de utilizadas nas mangueiras e no cercamento dos cemitérios rurais.47 Tanto para os corredores, divisas de campo e mangueiras, emprega-se para a construção da taipa uma seção de desenho trapezoidal, cuja altura é proporcional às larguras da base, maior, de forma a garantir a sustentação da estrutura, e do topo, menor. A medida da largura do topo geralmente é metade ou cerca de um terço da medida da largura da base. Há de se destacar com relação aos muros de taipa a existência de drenos, empregados em terrenos baixos onde seja necessário dar vazão ao acúmulo de água da chuva ou a pequenos córregos. Outro elemento presente é o “subidor”, pedra saliente na taipa, mais plana, que serve como degrau para facilitar a subida e descida de um e outro lado. Ocorrem com frequência nas taipas das mangueiras, que, por serem altas, algumas ultrapassando os dois metros, são mais facilmente transpostas durante a lida com o rebanho. Quando no sítio não havia abundância de pedras para a construção de taipas, as mangueiras eram confeccionadas com pinheiros lascados, no formato de pranchas rústicas, que eram fixadas em troncos de madeira e resultavam num tipo de cerca denominado “varejão”, de pouca durabilidade.

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CASELLA, Gabriella. Gramáticas de pedra – levantamento de tipologias de construção murária. Porto: Centro Regional de Artes Tradicionais, 2003. CALDAS, João Vieira (Coord.). Arquitectura popular dos Açores. Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 1999. HERBERTS, Ana Lúcia. Arqueologia do caminho das tropas: estudo das estruturas viárias remanescentes entre os rios Pelotas e Canoas, SC. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009.

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Considerações finais Certamente, há muito que se levantar sobre a história da casa de fazenda serrana, deduzindo-se pela existência de outros exemplares remanescentes não estudados, sobretudo nos municípios de São Joaquim, Campos Novos e Curitibanos, no estado de Santa Catarina, e de Lagoa Vermelha, no Rio Grande do Sul, que carecem de um aprofundamento das pesquisas. Importa ainda pesquisar a documentação primária, composta principalmente por inventários, e ampliar a revisão bibliográfica, sobretudo no que diz respeito à arquitetura doméstica luso-brasileira e portuguesa. Diante do que já pôde ser analisado e considerando-se as construções remanescentes, é possível deduzir que, quanto aos materiais e sistemas construtivos empregados, houve, de forma geral, a manutenção da alvenaria de pedra e tijolos ou sua substituição pela madeira, em detrimento da taipa de pilão e do pau-a-pique, ao contrário do que defendera Carlos Lemos, que teria havido na arquitetura do período colonial, durante o ciclo tropeiro, trocas relevantes entre São Paulo e o Sul do Brasil, especialmente com relação ao uso da taipa.48 Reforça este indicativo o trabalho do arquiteto e historiador Nery Auler da Silva,49 que, ao estudar a arquitetura das antigas fazendas rio-grandenses estabelecidas ao longo do caminho Novo da Vacaria, desde a região das Missões, demonstrou que das quatorze construções identificadas, apenas em uma aparece a taipa, do tipo pau-a-pique e sendo utilizada em paredes internas (o que, aliás, ocorreu largamente), sendo a maioria das residências analisadas em alvenaria de pedra e tijolos. Esse dado levou o pesquisador a concluir que principalmente a taipa de pilão, muito utilizada em São Paulo, não 48 49

LEMOS, Carlos A. C. Arquitetura brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1979. p. 58. SILVA, Velhas fazendas sulinas: no caminho das tropas no planalto médio – século XIX, 2003.

Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19

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teve influência no Planalto Médio gaúcho, tampouco alcançou a área da Fronteira, conforme sugeriu Carlos Lemos. Essas construções pioneiras predominaram nos campos serranos até o início do século 20, quando o advento de novos materiais e técnicas construtivas, com a fabricação de tábuas em serrarias, com encaixes e dimensões padronizados, além da introdução de telhas cerâmicas do tipo francesa ou metálicas, de folhas de zinco, a ascensão da estética do ecletismo e mudanças de ordem social e econômica profundas – em que há de se destacar o fim da escravidão, a decadência do ciclo das Tropas e a imigração, principalmente alemã e italiana – fizeram surgir um novo tipo de arquitetura residencial, o chalet, de origem europeia. Esta arquitetura é caracterizada pela cobertura de duas águas ornamentada por lambrequins e aproveitamento de sótão, a exemplo das fazendas Nossa Senhora de Lourdes, Cruz de Malta, Santa Cecília, Tijolinho, Bela Vista e Pai João, em Lages, Três Marias, em Vacaria, e da Rata, em São Francisco de Paula, todas construídas entre 1900 e 1920. Lambrequins são enfeites recortados em madeira rendilhada, utilizados como arremates das extremidades dos beirados dos chalet, em voga no Brasil a partir do final do século 19.

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5 Fonte: autor, 2008).

Figuras 1 a 5 – Sedes das fazendas Caraúno, Bom Jesus (01 e 02), e Capão do Posto, Lages (03 a 05): exemplares notáveis de moradias rurais abastadas do século 19 construídas em madeira. A abundância de araucária nas regiões serranas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina levou à original apropriação deste material para a reprodução da tradição construtiva luso-brasileira Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19

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Fonte: Nery Auler da Silva/Acervo IPHAN-SC, 2008.

Figuras 6 e 7 – Fazenda Cajuru, Lages, sede em madeira da segunda metade do século 19

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Fonte: autor, 2008.

Figuras 8 e 9 – Fazenda dos Novilhos, São Francisco de Paula, construção em alvenaria do final do século 19. Diferenciase das demais sedes de fazenda identificadas por possuir acesso principal lateral e interessante pátio interno avarandado, junto à cozinha. Encontram-se ainda vestígios de senzala

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Fonte: autor, 2008.

Figuras 10 a 12 – Fazenda São João, Lages, construída por volta de 1800: suas sólidas paredes externas foram erguidas em alvenaria de pedra, ultrapassando a dimensão de 1 m de espessura

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Fonte: foto 16 – Ricardo Almeida/Acervo IPHAN-SC, 2007; as demais fotos são do autor, 2009.

Figuras 13 a 15 – Santa Teresa, Lages: implantação característica da fazenda serrana. Na foto aérea (13), vista do complexo de edificações e espaços formado pela residência (centro organizador do conjunto edificado e produtivo da fazenda), jardim, galpões, pomar, roças e mangueiras (currais). Notar que tanto as mangueiras quanto os demais espaços abertos são configurados pelos muros de alvenaria de pedra de junta seca, denominados “taipas de pedra”, também presentes na delimitação de caminhos e invernadas (áreas de pastagem), bem como nas divisas de propriedades Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19

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20 Fonte: autor, 2009.

Figuras 16 a 20 – Sedes das fazendas Cajuru (16 e 17), São José (18 e 19) e Limoeiro (20), Lages: tratam-se dos maiores e mais sofisticados exemplares de arquitetura rural identificados na região em estudo, construídos em alvenaria e datados da segunda metade do século 19. Destacam-se ainda pelo amplo conjunto de mangueiras em pedra implantadas junto às casas-sede

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Os escravos nas estâncias Este texto tem como base a pesquisa realizada para a tese de doutoramento e publicada com o título Do arcaico ao moderno,1 em 2002, na qual dedicamos um dos capítulos para analisar a escravidão nas estâncias do Rio Grande do Sul, utilizando amostragem de inventários post-mortem e relatórios das câmaras municipais, entre outras fontes. Nos últimos anos, novas pesquisas foram realizadas nos centros de pósgraduação em História e muitas das hipóteses levantadas se confirmam nos estudos detalhados sobre diversos municípios da província. Neste artigo retomamos as ideias básicas já expostas na publicação mencionada, acrescentamos dados produzidos pela historiografia recente sobre o tema, reafirmamos a presença da escravidão nas estâncias pastoris e analisamos o trabalho no interior das estâncias. A presença e a importância do trabalho escravo nas estâncias pastoris do Rio Grande do Sul estão entre os temas mais instigantes da historiografia regional, considerando que *

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Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. ZARTH, P. A. Do arcaico ao moderno. Ijuí: Unijuí Editora, 2002.

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por muito tempo tais fatos foram negados ou minimizados por diversos autores com fortes marcas ideológicas. Posteriormente, pesquisas de caráter acadêmico se debruçaram sobre o tema, mas indicaram dúvidas só superadas à medida que novas fontes foram exploradas nos diferentes espaços da província. Diversos autores, entre os quais se destacam Mário Maestri e Fernando Henrique Cardoso, criticaram exaustivamente a historiografia e a literatura elaborada pelo viés idealizado do mundo pastoril, as quais retomamos aqui, de forma sucinta, mas necessária ao entendimento dos argumentos apresentados. Por tal razão, começamos este artigo com uma citação de 1820 e que se tornaria famosa no futuro, sendo reproduzida centenas de vezes pelos escritores como base de argumentação para explicar as características supostamente benignas do cativeiro no Sul. Em 31 de julho de 1820, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire anotou em seu diário esta observação a respeito dos escravos das estâncias: “Tive já oportunidade de referir ao fato de serem vendidos aqui os negros imprestáveis dos habitantes do Rio de Janeiro; quando querem intimidar um negro ameaçam-no de enviá-lo para o Rio Grande, entretanto, não há, em todo o Brasil, lugar onde os escravos sejam mais felizes que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos mantêm-se próximos deles e tratam-os com menos desprezo. O escravo come carne à vontade, não é mal vestido, não anda a pé e sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos cousa mais sadia que fatigante. Enfim, eles fazem sentir aos animais que os cercam uma superioridade consoladora de sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios olhos.”2 A citação contém duas informações importantes para a história do Rio Grande do Sul. Primeiro, revela que as estâncias utilizavam trabalho escravo e, depois, afirma que seriam 2

SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul: 1820-1821. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974. p. 47. (grifo nosso).

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felizes, bem alimentados e bem tratados, amenizando uma condição miserável que caracteriza a instituição escravista. A anotação do diário do viajante francês adquiriu enorme importância, pois serviu de argumento num longo debate ideológico a respeito da presença de escravos africanos na província e das estâncias de gado em particular. O debate se inscreve na questão sobre a formação do povo brasileiro a partir de um paradigma racista, com base no ideário das “três raças” e, sobretudo, na tentativa de diminuir a participação dos povos africanos na composição da população riograndense. Inúmeros autores trataram de mostrar que o Rio Grande seria uma região de predomínio europeu decorrente da ocupação portuguesa e da grande imigração de colonos alemães, italianos e poloneses, entre outros. Os povos indígenas são apresentados de forma idílica, mas de um passado heróico e distante. Numa publicação sobre a colonização alemã, de 1930, referindo-se ao decréscimo relativo da população de indígenas, mestiços e negros, em relação aos brancos, revelado pela análise dos censos estatísticos de 1872 e 1890, o autor escreve esta frase: “[...] todas as raças inferiores, o coeficiente declinou sensivelmente, sobretudo para os pretos, só para brancos a percentagem cresceu e muito.”3 Sem poder negar a existência de escravos africanos na formação social do Sul, os intelectuais ligados ao mundo pastoril desenvolveram a tese da pouca importância da escravidão nas estâncias, que, quando existente, seria tão amena a ponto de descaracterizar sua condição, transformando o escravo num homem quase livre, bem alimentado e bem relacionado com seus proprietários. Uma variação sobre o mesmo tema foi o silêncio que pairou na historiografia regional durante décadas de hegemonia dos grupos dominantes atrelados ao latifúndio pastoril. 3

TRUDA, F. Leonardo. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Typographia do Centro, 1930. p. 114. (grifo nosso).

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O livro mais elaborado sobre as características supostamente benignas da escravidão nas estâncias foi o de Jorge Salis Goulart, A formação do Rio Grande do Sul. Não era um livro qualquer, pois foi premiado pela Academia Brasileira de Letras em 1927, significando o reconhecimento do seu conteúdo pelos acadêmicos. O autor elabora a ideia de democracia rural e racial forjada nas estâncias, nas quais estancieiros, peões e escravos seriam quase iguais socialmente. Os escravos dessa idealizada estância democrática seriam bem mais tratados do que os das províncias ao Norte: “[...] a democracia rio-grandense, por conseguinte, adoça, humaniza entre nós a nefanda instituição que outros povos ambiciosos criaram e exploraram.” Os cativos e suas famílias teriam estabelecido com os senhores uma “unidade afetiva”, com “laços de intimidade democrática” de tal forma que seriam “mais um amigo do que um subordinado do seu patrão”.4 O esforço em negar a presença de escravos nas estâncias construiu o seu oposto, representado pela figura do gaúcho, o trabalhador livre que se tornaria símbolo identitário para toda a população do Rio Grande e está materializado na forma de uma grande estátua na entrada principal da cidade de Porto Alegre, a capital do estado. A identidade gaúcha baseada na figura do peão de estância atualmente é difundida por clubes denominados de “centros de tradição gaúchas” – CTGs –, com forte influência cultural na população regional. O estatuto desses centros é baseado na estrutura das antigas estâncias de gado: o dirigente principal é denominado de patrão e os outros cargos são administrados por capatazes, sota-capatazes, posteiros, agregados e peões. Utilizando uma linguagem característica do vocabulário pastoril, os departa-

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GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. 4. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro; Caxias do Sul: Educs, 1985. p. 30 e 48.

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mentos são denominados de “invernadas” e os conselheiros são vaqueanos.5 A história, narrada dessa forma, resolveria o problema do passado rio-grandense em relação aos negros: a sociedade pastoril, cerne da economia regional até as primeiras décadas do século 20, seria fruto do trabalho dos proprietários e de seus peões livres – os gaúchos. Os escravos africanos seriam eventuais e bem tratados.

Nova história crítica Uma nova historiografia desenvolvida a partir dos anos 60, porém, começou a mudar essa visão sobre os escravos do Sul. A mais representativa dessas primeiras obras críticas é a tese de doutorado do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Examinando fontes primárias disponíveis nos arquivos locais, o autor percebeu as contradições presentes nos livros de história produzidos até então e notou neles a importância do diário de Saint-Hilaire para fundamentar a tese da democracia rural nos campos sulinos. Criticando a “reconstrução idílica do passado”, Cardoso observa que “a maior parte dos autores que cuidaram do problema do escravo no sul não hesitou em apoiar-se em Saint-Hilaire”.6 Em seguida, afirma: “[...] não creio que, firmado na documentação coeva, que a utilização do escravo nas fazendas de criação tenha sido tão restrita quanto se supõe. Os depoimentos de Saint-Hilaire sobre a presença de negros na atividade criatória são constantes [...].”7 Ao afirmar que as relações entre senhores e escravos não era nada elogiável, Cardoso analisa com originalidade a conhe5

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7

Disponível em: http://www.mtg.org.br/documentos.html. Acesso em: 21 jun. 2009. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 113. CARDOSO, op. cit., p. 63.

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cida frase de Saint-Hilaire, mencionada na citação anterior: “Eles fazem sentir aos animais que os cerca uma superioridade consoladora de sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios olhos.” Tal frase significaria que “o reconhecimento social, a expectativa de aprovação, o escravo da estância teria de procurar em si mesmo, comparando-se aos animais e não aos homens livres”.8 Buscando outras fontes, o autor cita Arsène Isabelle, que escreve uma das mais duras passagens sobre o tratamento dos escravos nas estâncias pastoris do Rio Grande do Sul, a qual merece ser reproduzida pela sua importância para o tema e pelo realismo da descrição: “Aqui, como em todas as antigas possessões espanholas e portuguesas, os negros e mulatos são operários, quer dizer homens laboriosos, trabalhadores, aqueles que têm necessidade de exercitar a sua inteligência, mas tem a desgraça de ser escravos e, sobretudo, negros... estes são necessariamente brutos, vis usurpadores do nome homens. No entanto estes brutos asseguram a subsistência e todas as alegrias da vida aos seus preguiçosos senhores. Sabeis como esses senhores, tão superiores, tratam seus escravos? Como tratamos nossos cães! Começam por insultá-los. Se não vem imediatamente, recebem duas ou três bofetadas da mão delicada de sua senhora, metamorfoseadas em Harpia, ou ainda um rude soco, um brutal ponta pé se seu grosseiro amo: se resmungam são ligados ao primeiro poste e então o senhor e senhora vem com grande alegria no coração, para ver como são flagelados até verterem sangue aqueles que não tem, muitas vezes, outro erro que a inocência de não ter sabido adivinhar os caprichos de sés senhores e patrões! Feliz ainda o desgraçado negro, se seu senhor ou sua senhora não tomam eles mesmos, uma corda, relho, pau ou barra de ferro e não batem, com furos brutal no corpo do escravo, até que pedaços soltos da pele deixem correr sangue sobre o seu corpo inanimado. Porque geralmente se carrega o negro sem 8

CARDOSO, Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, p. 128.

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sentidos para curar seus ferimentos; sabeis com que? Com sal e pimenta sem dar-lhes mais cuidado do que se presta a um animal, atacado de feridas, e que se quer preservar dos vermes. Julguem que esse tratamento não seja menos cruel do que as fustigadas do rebenque? Bem! Vi essas coisas no ano da graça de 1834! Vi mais ainda. Há senhores tão bárbaros, principalmente no campo, que fazem incisões nas faces, espáduas, nádegas ou coxas de seus escravos [...].”9 As novas pesquisas, produzidas por jovens historiadores nos programas de pós-graduação em História, utilizando processos crime, têm revelado a violência do cativeiro nos campos em todas as regiões da província. Da tensão sempre latente nasce a violência, em muitos casos a única forma de resolver os conflitos numa sociedade injusta e desigual, em todos os sentidos mais elementares da vida humana. Fugir, matar, vingar são verbos que circulam nos processos crime dos anos oitocentos. A pesquisa recente de Leandro Daronco, a qual citamos como exemplo, revela de forma inédita a violência do cativeiro no antigo município de Cruz Alta. A conclusão do autor é exemplar: “Os cenários sociais evidenciados – duras condições de trabalho, atos de sangue, violência na repressão dos cativos etc. – contradizem frontalmente as teorias patriarcalistas difundidas pela historiografia riograndense tradicional ao longo do século 20 também para o Norte do Rio Grande do Sul. Os atos de violência-resistência dos trabalhadores escravizados fizeram, indiscutivelmente, também parte do quotidiano da região Noroeste do Rio Grande do Sul.”10

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ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul - 1834-1837. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983. p. 68-69. DARONCO, Leandro Jorge. À sombra da cruz: trabalho e resistência servil no Noroeste do Rio Grande do Sul – segundo os processos criminais. Passo Fundo: UPF, 2006. p. 268.

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Uma província escravista As informações estatísticas sobre a quantidade de cativos na sociedade pastoril evidenciam claramente a sua forte presença na força de trabalho, destacando-a como uma das províncias brasileiras com maior participação relativa de escravos em sua população. Os dados abaixo, referentes a dois momentos do século 19, evidenciam essa condição. Tabela 1 - População do Brasil, 1819 Capitanias Livres Escravos Pernambuco 270.832 97.633 Bahia 330.649 147.263 Rio de Janeiro e Corte 363.940 146.060 Minas Gerais 463.342 168.543 São Paulo 160.656 77.667 Rio Grande do Sul 63.927 28.253 Brasil 2.488.743 1.107.389

Total % escravos 368.465 26,5 477.912 30,8 510.000 28,6 631.885 26,7 238.323 32,6 92.180 30,6 3.596.132 30,8

Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas Históricas, Rio de Janeiro, IBGE, 1986 apud Helen Osório Campeiros e domadores: escravos da pecuária sulista, séc. XVIII (UFRGS). II Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”. Disponível em: http://www.labhstc.ufsc.br/poa2005/29.pdf. Acesso em: 12 jun. 2009.

Tabela 2 - Províncias com maior proporção de população escrava. Brasil 1874 Província RJ ES RS MA SP SE MG BRASIL

Livres 456.850 59. 748 364.002 284.101 680.742 139.812 1.642.449 8.220.620

Escravos 301.352 22.297 98.450 74.598 174.622 33.064 311.304 1.540.829

Total 758.202 81.775 462.452 358.699 855.364 172.872 1.953.753 9.761.449

% escravos 39,7 27,6 21,3 20,8 20,4 19,1 15,9 15,8

Fonte: Diretoria Geral de Estatística, Relatório e trabalhos estatísticos. Rio de Janeiro, 1875. p. 46-62. Relatório do Ministério da Agricultura. 10 de maio de 1883. p.10. In: CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 345.

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Não restam mais dúvidas sobre a significativa participação dos escravos na população regional, nem de que a vida no cativeiro estava longe de ser boa e feliz. Porém, um segundo problema da historiografia é apresentado em relação aos espaços ocupados pelos cativos na sociedade. A tendência de importantes autores críticos da velha historiografia laudatória foi considerar como não significativa a escravidão nas estâncias, embora existente. Para o historiador estadunidense Joseph Love, “a escravidão nunca significou para o Rio Grande o grilhão que representou mais ao Norte, nas áreas de açúcar e café”.11 Margaret Marchiori Bakos, por sua vez, ressalta a importância do escravo, mas observa que, distribuído em atividades diversas, “não era realmente fundamental em nenhuma delas”.12 Fernando H. Cardoso faz referências afirmativas sobre cativos nas fazendas de criação de gado, mas conclui que, “nas estâncias, a quantidade de negros utilizados não chegou a ser grande, tanto porque houve a utilização concomitante do trabalho indígena e do trabalho de peões gaúchos livres [...]”.13 Por unanimidade historiográfica, a escravidão seria fundamental nas indústrias de charque. Para Fernando H. Cardoso, “foi a indústria do charque, todavia, que tornou a exploração do escravo regular e intensa no Rio Grande do Sul”.14 Décio Freitas reconhece a presença de escravos, mas defende o caráter capitalista da sociedade regional, argumentando que se tratava de um capitalismo impuro, subdesenvolvido

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LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 11. BAKOS, Margaret Marchiori. RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 19. CARDOSO, Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, p. 80. Idem, p. 70.

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e dependente.15 Na sua concepção, a produção pastoril não se baseava fundamentalmente no trabalho escravo.16

Escravos no pastoreio Diante dessas observações, o que então fariam os milhares de escravos existentes nas regiões onde nem sequer existiam charqueadas? Um novo esforço dos historiadores, utilizando novas fontes, foi direcionado para as estâncias esclarecendo definitivamente o papel dos escravos nesses estabelecimentos. Em O escravo no Rio Grande do Sul, estudo pioneiro e inovador na historiografia publicado em 1984, Mário José Maestri,17 afirma o papel da escravidão nos campos do sul e insere-se na concepção historiográfica que defendeu a ideia do modo de produção escravista-colonial, conforme os estudos clássicos de Jacob Gorender, O escravismo colonial, e de Ciro Flamarion Cardoso, El modo de produción esclavista colonial en America.18 Em relação às estâncias pastoris especificamente, o autor constatou naquela obra que a presença de escravos negros seria um “problema deveras complexo” e, ainda, indica caminhos para desvendar o problema: “[...] respostas definitivas sobre o papel do escravo nos pampas [...] só serão alcançadas com a publicação e tratamento sistemático dos papéis desta época, principalmente inventários.”19 Após afirmar que “a uti15

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FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1981. p. 10-11. FREITAS, op. cit., p. 11-12. MAESTRI, Mário José. O escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Caxias do Sul: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 1984. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 2. ed. São Paulo: Ática, l985. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. El modo de produción esclavista colonial en America. In: ASSADOURIAN, Carlos Sempat et al. Modos de producion en America Latina. Córdoba, 1973; Cuadernos de Pasado y Presente, n. 40. MAESTRI, op. cit., p. 45.

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lização do braço escravo nas primeiras fazendas de criação do Rio Grande do Sul está, definitivamente, comprovada”, o autor escreveu com o devido cuidado acadêmico: “A precaução com que devemos reter toda a referência relativa ao escravo na fazenda não deve impedir-nos de reconhecer a existência, significativa, do escravo campeiro, ou da utilização do escravo, de acordo com as necessidades, nas tarefas agrícolas e na prática pastoril, as referências diretas, aqui também, são inúmeras.”20 As novas pesquisas realizadas nos centros de pós-graduação em história realmente iluminaram dados antes inexplorados ou pouco consultados contidos nos inventários postmortem, nos processos crime, nos relatórios de diversos tipos elaborados por câmaras municipais e agentes do Poder Judiciário, entre outros. Tais fontes revelaram, por exemplo, que a escravidão estava disseminada em todas as instâncias da sociedade onde fosse economicamente viável. Helen Osório, em sua tese de doutorado sobre o período colonial, trouxe uma importante contribuição ao demonstrar a presença de escravos em praticamente todas as estâncias, de acordo com os inventários post-mortem: “Quase todas as estâncias – 97% – possuíam escravos. Ainda que na maioria das vezes não se possa distinguir entre escravos domésticos e os dedicados à produção agropecuária, pois a ocupação do escravo nem sempre é registrada, a presença de cativos é muito maior do que se supunha. A média é de 11 escravos por estância.”21 Um dos problemas dos estudos comentados estava nas fontes utilizadas, em boa parte observações de viajantes e cronistas. Tais fontes, tomadas de forma isolada, podem dis20 21

MAESTRI, O escravo no Rio Grande do Sul, 1984, p. 50. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1999. p. 92-93.

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torcer significativamente a realidade histórica. O caso de Saint-Hilaire é exemplar. Além do excerto comentado anteriormente, o diário do naturalista serviu de base também para ofuscar a presença de escravos na região das antigas reduções jesuíticas na região Oeste da província. Ao visitar as Missões em 1821, ele anotou no diário: “Os estancieiros desta região, não tendo escravos, aproveitam a imigração dos índios para conseguir alguns que possam servir de peões.”22 Mais de um século depois, Fernando Henrique Cardoso, ao se referir a essa área, transcreve e analisa as notas do diário de Saint-Hilaire para afirmar que, “nas margens do Uruguai e nas Missões os peões eram, pois, índios. Utilizavam-se os índios, algumas vezes a troco de salários que variavam de oito a doze patacas por mês”.23 Por sua vez, Jacob Gorender repete as observações de Cardoso, com base na mesma fonte, afirmando que nessa área o “largo emprego de indígenas se deu inicialmente sob formas escravistas, ainda que dissimuladas”.24 Quando SaintHilaire visitou essa região, em 1821, a situação poderia ser aquela descrita, mas os conflitos entre Brasil e Uruguai, nos anos seguintes, desorganizaram as estâncias locais. Em 1828, o líder uruguaio Frutuoso Rivera ocupou as Missões e, na retirada, teria levado com suas tropas praticamente todos os indígenas ali residentes, diminuindo a oferta de trabalhadores nativos que até então eram recrutados pelos estancieiros, conforme o relato de Saint-Hilaire.25 Na década de 1830, os conflitos amenizaram-se e consolidou-se a ocupação efetiva dos campos missioneiros com o estabelecimento de centenas de estâncias que utilizavam escravos de origem africana. Os 22 23 24

25

SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul: 1820-1821, p. 109. CARDOSO, Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, p. 64. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 2. ed. São Paulo: Ática, l985. p. 437. WIEDERSPAHN, Henrique O. Das guerras cisplatinas às guerras contra Rosas e contra o Paraguai. In: BECKER, Klaus (Org.). Enciclopédia Rio-Grandense. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 1968. p. 151-258.

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dados dos inventários post-mortem evidenciam nitidamente que o trabalho cativo foi utilizado normalmente nessa área. Não só nas estâncias, mas em quase todas as atividades econômicas.

As estâncias de São Borja das Missões Em 1858, o governo da Província do Rio Grande do Sul solicitou um conjunto de informações econômicas sobre as estâncias de criação de gado do município de São Borja, localizado na fronteira com a Argentina e o Uruguai. Antiga morada dos povos indígenas, o território localizado no bioma pampa com suas ricas pradarias foi transformado, pelos europeus, em fazendas de pastoreio de animais. O documento com a resposta da Câmara Municipal informa o nome dos 568 proprietários, o número de animais em cada estância e o número de trabalhadores utilizados nos estabelecimentos. Também informa sobre a relação entre o número de reses e o número de trabalhadores necessários para o serviço, além do rendimento da produção. A resposta da Câmara informa que as estâncias utilizavam 153 escravos que trabalhavam ao lado de 339 peões livres e de 171 capatazes, sem contar as famílias dos proprietários.26 Esses números significam que cerca de 23% do total dos trabalhadores empregados eram cativos. Se excluirmos os capatazes dessa relação, o número sobre para 31%. Aprofundando a análise desses dados, percebemos que as estâncias mencionadas no documento de São Borja poderiam ser estabelecimentos relativamente pequenos, que produziam cerca de quarenta reses anuais, ou grandes pro26

“Relação das estâncias que contém o termo de São Borja com as declarações dos nomes de seus proprietários, número de crias vaccuns e cavallares que marcarão no anno de 1857, e as pessoas empregadas como capatazes e piães.” Correspondência da Câmara Municipal de São Borja. 1858. Acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (doravante AHRS).

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priedades, com produção anual de mais de mil cabeças. O documento não indica a área das estâncias, mas, pelo número de animais produzidos podemos ter uma segura ideia do porte do estabelecimento. Alguns grandes criadores não informaram a presença de escravos, preferindo usar trabalho assalariado. É o caso de José Floriano Machado, que informou a produção de duas mil reses e duzentos cavalos anuais pastoreados por quatro peões e um capataz. Da mesma forma, o estancieiro Antônio Fernandes Lima informava marcar duas mil reses e duzentos cavalos apenas com o trabalho de um capataz e quinze peões. Por sua vez, o estancieiro Antônio José Barcelos afirmou que se utilizava de um capataz, seis peões e seis escravos para produzir 1.750 reses e três mil cavalos por ano. Ao mesmo tempo, vários estabelecimentos que produziam poucas cabeças de gado informaram que possuíam escravos. Ana de Souza Bueno, que marcava quarenta reses e oitenta cavalos anuais, utilizava-se de um capataz e dois escravos. Alguns criadores grandes e pequenos afirmaram utilizar-se apenas de trabalho familiar. Eventualmente, alguns criadores mencionavam o uso de agregados, como uma observação fora do item “peões”. Pelo documento, a escravidão estava disseminada em todas as classes de estâncias, mas fica a dúvida sobre a origem do capital empregado na compra dos cativos, se considerarmos que a produção de algumas delas era incompatível com a renda necessária para comprá-los. Tabela 3 - Trabalhadores livres e escravos nas 568 estâncias de São Borja Animais marcados 84.820 vacuns 43.205 cavalares Total 128.025

Trabalhadores 171 capatazes 339 peões 153 escravos 663

% 25,79 51,14 23,07 100

Fonte: Correspondência da Câmara Municipal de São Borja. 1858. AHRS.

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O número de cativos em cada estância era relativamente baixo, em torno de um a seis por unidade. No entanto, devemos considerar que a relação entre o número de trabalhadores e o número de reses no pastoreio exigia uma pequena quantidade de empregados, elevando a importância dos escravos nas unidades de produção. Uma das informações do documento revela que o número de trabalhadores necessários em relação ao número de animais criados nos estabelecimentos dependia da localização espacial das estâncias: “Que não se pode regular o número de peões para o costeio de uma estância em relação ao número de animais vacuns e cavalares que cada uma possui e sim em relação a localidade do campo. Há fazendas que tendo oito mil animais precisam para costeio dela são necessários (sic) oito peões e um capataz e outras com igual numero de animais precisam o dobro de peões para o mesmo serviço por serem em campo aberto e ver-se o estancieiro na dura necessidade de destacar postos pelas divisas do campo; e aquelas serem cercadas por natureza e com mais facilidade fazem o serviço de campo em razão de estarem os animais reunidos dentro dele [...].”27 Sobre as estâncias cercadas por natureza e consequente necessidade de menos mão de obra, Dreyes observou: “Estância perfeita, e que mais segurança oferece aos interesses do especulador, é aquela que é cercada por limites naturais, como morros íngremes, matos impenetráveis, e melhor que tudo, rios profundos, pois dali não pode sair o gado vagabundo, e mais resguardada está a fazenda das depredações dos roubadores, e mesmo dos viajantes.”28 Buscando outras fontes para identificar a escravidão nas estâncias de São Borja, recorremos a uma amostra de inventários post-mortem de estancieiros, na qual verificamos a 27

28

Correspondência da Câmara Municipal da Vila de São Borja, 9 de agosto de 1858. Acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961. p. 130.

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existência de 47 escravos em dez inventários no período 185181, num total de dezenove estabelecimentos. O censo oficial de 1859 revela, para a comarca de São Borja, a presença de 2.254 escravos para um total de 13.740 livres e libertos, o que equivale a 14,8% do total da população recenseada (15.894). No distrito de Uruguaiana, na fronteira com o Uruguai e a Argentina, existiam, no mesmo censo, 1.873 cativos para uma população de 6.772 livres e libertos, equivalente a 21,66% do total de habitantes (8.645).29 Os relatórios municipais de São Borja registram ainda queixas de que o governo não controlava a fuga de escravos para a Argentina e o Uruguai e que a escassez de mão de obra constituía uma das maiores dificuldades econômicas do município. A dimensão escravista da sociedade local pode ser constatada por meio de informações sobre atividades fora das estâncias. A Tabela 1 mostra a disseminação do trabalho escravo em diversas atividades produtivas.

29

Fundação de Economia e Estatística. De província de São Pedro a estado do Rio Grande do Sul. Censo 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981. p. 69.

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Tabela 4 - Trabalhadores livres e escravos nas oficinas de São Borja. 1858 Estabelecimento

Valor da produção Nº de trabalhadores Nº

Fabr. farinha de mandioca 25 Fabr. cana-de-açúcar 3 Fabr. de velas 9 Engenhos de serrar 4 Engenhos de erva-mate 1 Olarias 11 Padarias 12 Ourives 5 Funilarias 3 Sapatarias 5 Alfaiatarias 7 Marcenarias/carpintarias 9 Ferrarias 8 Chapelaria 1 Estaleiros 4 Tamanqueiros 1 Totais 108

30:750$000 6:750$000 10:300$000 12:000$000 9:000$000 46:000$000 29:200$000 37:500$000 5:200$000 12:000$000 52:500$000 30:140$000 19:896$000 2:800$000 24:000$000 2:800$000 330:000$000

Livres 30 6 18 14 8 21 16 8 7 7 10 14 12 2 15 3 191

Escravos 56 7 4 2 0 8 13 0 0 3 4 4 5 0 0 0 106

Fonte: Correspondência da Câmara Municipal de São Borja 28/9/1858. AHRS. In: ZARTH, P. A. Do arcaico ao moderno. O Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Unijuí, 2002.

As mesmas informações fornecidas pelo município vizinho de Alegrete, no centro da região da Campanha, indicam que os escravos aparecem, de forma predominante, na atividade pastoril. Segundo dados de 1859, recolhidos por Paulo Xavier sobre 359 estâncias, nelas trabalhavam 527 escravos, 124 cartazes e 159 peões livres.30 Neste município, os escravos representavam 65% da mão de obra empregada. De acordo com as pesquisas de Luís Augusto Farinatti nos inventários post-mortem entre 1831 e 1870, a média de 30

XAVIER, Paulo. Aspectos da pecuária em Alegrete. Jornal Correio do Povo, Suplemento Rural, 10 março 1978, citado em MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior. Trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF., 2002. p. 90.

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criadores que possuíam trabalhadores cativos oscilava entre 68% a 85% no período analisado. A Tabela 2, organizada por Farinatti, informa ainda que todos os grandes criadores com mais de duas mil reses utilizavam o trabalho escravo. A maior parte desses trabalhadores escravos é mencionada como “campeiros” e “roceiros”, indicando que trabalhavam diretamente nas atividades pastoris ou nas roças na produção de alimentos para abastecer a estância.31 Tabela 2 - Percentuais de criadores de gado que possuíam escravos (Alegrete, 1831-1870) Mais de 2.000 reses De 501 a 2.000 Até 500 reses Total Média de escravos por inventário

1831-1840 1841-1850 100% 100% 100% 100% 60,0% 66,7%

1851-60 1861-1870 100% 100% 88,9% 83,3% 80,6% 58,8%

85,7%

81,8%

84,7%

68,1%

9

7

6

5

Fonte: FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em História Social. Março de 2007. p. 317. (Tese de Doutorado).

As novas pesquisas realizadas em centros de pós-graduação em história vasculharam os arquivos e detectaram escravos nas estâncias pastoris dos quatro cantos da província. A dissertação de mestrado de Maria Beatriz Chini Eifert sobre o município de Soledade mostra claramente a importância dos cativos nas estâncias ao longo do século 19.32 Em Itaqui, na Fronteira Oeste, numa amostra de 69 inventários organizada por Arlene Foletto, 37 possuíam escravos, com uma média de 5,6 por estabelecimento pastoril. A 31

32

FARINATTI, L. A. E. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de PósGraduação em História Social. Março de 2007. p. 303. (Tese de Doutorado). EIFERT, Maria B. C. Marcas da escravidão nas fazendas pastoris de Soledade (1867-1883). Passo Fundo: UPF, 2007.

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autora observa que, “mesmo estando presentes em todas as categorias de criadores, aqueles que possuíam maior rebanho contavam com maior número de cativos, tanto por precisar de mais trabalhadores quanto por possuir mais recursos para adquiri-los. Assim, aqueles que detinham mais de três mil reses vão ter em média 8,6 escravos em suas unidades”.33

Relação entre salários e escravos Na primeira metade do século 19 era vantajoso para o estancieiro comprar escravos em relação ao pagamento de mão de obra assalariada. Os peões recebiam valores que oscilavam entre 100$000 e 200$000 réis anuais entre 1821 e 1871. Auguste de Saint-Hilaire informa que um peão da região das Missões recebia entre 16$000 e 24$000 réis mensais em 1821.34 Esses valores eram elevados, talvez em função das dificuldades de mão de obra nessa região, pois um peão do conde de Piratini, em outra região da província, ganhava 6$400 réis por mês em 1832; num inventário post-mortem de um estancieiro falecido em 1871, em São Borja, o salário de um peão era de 16$000 réis e do capataz 32$000 réis mensais.35 Em 1825, os salários dos peões contratados para a construção de uma ponte, no município de Rio Pardo, eram de 4$800 réis mensais. Antes de 1850, um escravo poderia ser comprado por preços que oscilavam entre 200$000 e 400$000 réis, ou seja, por algo equivalente a um ou dois anos de salários de um peão.36

33

34 35

36

FOLETTO, Arlene G. Dos campos junto ao Uruguai aos matos em cima da serra: a paisagem agrária na paróquia de São Francisco de Itaqui. Dissertação (Mestrado em História) - UFRGS, Porto Alegre, 2003. p. 158. SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul: 1820-1821, p. 187. Inventário post-mortem de Apolinário José Torres. São Borja. 1871. Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Os preços dos escravos usados como referência são dos inventários post-mortem dos diversos municípios analisados.

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Após o fim do tráfico internacional de escravos, em 1850, os preços subiram até 1:600$000 réis, equivalentes a cerca de oito anos de salários de um peão, mudando drasticamente a relação salário/escravo. Nessas condições, comprar escravos implicava obter bom rendimento com seu trabalho para compensar o investimento. Diante da nova conjuntura, as relações de trabalho livre, nas suas diversas formas, ganharam cada vez mais espaço. É também dos anos setenta o início da utilização das cercas de arame, inovação que contribuiu para diminuir a mão de obra no pastoreio. Após o fim do tráfico internacional de escravos africanos, em 1850, os novos valores dos salários e dos cativos se tornaram elevados para pequenos criadores de gado. A comparação entre os preços de um cativo e dos animais produzidos indica uma relação economicamente difícil de suportar. Em 1851, o estancieiro de São Borja, Pacífico José da Silva, possuía o escravo Paulo, com 35 anos de idade, avaliado em 400$000 e suas reses mansas valiam 5$000 réis cada uma. Eram necessárias oitenta reses, portanto, para comprar um escravo. Em 1861, esta relação fica ainda mais cara: o cativo Salvador, crioulo de 27 anos do estancieiro Bento José Rodrigues foi avaliado em 1.600$000, equivalente a duzentas reses mansas de 8$000 réis cada. Em relação à avaliação do plantel de gado – mulas, cavalos, reses e ovelhas –, o cativo Salvador representava em torno de 15% do total de 10.304$446 réis.37 Se considerarmos que a produtividade alcançava no máximo 10%, um estancieiro, hipoteticamente, deveria ter um plantel de matrizes com mais de duas mil reses, exigindo uma grande área de campo.

37

Os dados foram recolhidos, pelo autor, dos respectivos inventários localizados no Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

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Produtividade das estâncias A Câmara de São Borja informou, no documento comentado acima, que a produtividade da estância seria de 25% ao ano: “[...] que segundo o cálculo dos estancieiros antigos que dão vinte e cinco crias por cada cem reses de criar há no município 351028 reses e junto a 87820 crias fazem o total de 438840 reses.” Tal afirmação precisa ser relativizada, pois um conjunto de outras fontes indica que este número estaria superestimado, provavelmente por não ter considerado as perdas inerentes à reprodução do gado representadas pelas mortes no campo por doenças e por animais de rapina e, também, pela substituição necessária das matrizes velhas. Dos diversos dados mais realistas, podemos concluir que a produtividade não excedia a 10% ao ano, baseada na extensão dos campos mais do que na intensificação tecnológica. Os problemas de produtividade da pecuária foram se tornando mais complexos no decorrer do século 19 e, gradativamente, passaram a incorporar outros critérios relativos à qualidade das raças dos animais, às exigências dos mercados, à venda por peso, não por cabeça, por exemplo. O presidente da província do Rio Grande do Sul Francisco José de Souza Soares Andréa, em 1849, acusava os próprios criadores de gado como responsáveis pelos problemas da produção, atribuindo-lhes atitudes irracionais. O “gênio da destruição”, dizia ele, apoderou-se dos criadores e, como a peste que matara muitos animais, estavam extinguindo o rebanho em lugar de remediar o mal. A crítica central do presidente era contra a venda de matrizes para as charqueadas, pois, para seu espanto, havia “estancieiros que as vendem, negociantes que as compram e charqueadores que as matam”.38 38

ANDRÉA, Francisco José de Souza Soares. Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul na Abertura da Assembleia Provincial no dia 1o de junho de 1849. Porto Alegre.

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Em 1850, Soares Andréa voltou a denunciar, fato que parece ter sido uma característica notável deste presidente, que não fez cerimônias para criticar o latifúndio, a falta de uma agricultura de subsistência e o desleixo dos pecuaristas. Ele insistia na denúncia das matanças de matrizes e no “abuso escandaloso” do roubo de gado. Para resolver esses problemas detectados durante o tempo em que percorria a Campanha, organizou um regulamento, obrigando os estancieiros a costear o gado alçado, dar rodeio a seus vizinhos e regular o registro das tropas enviadas às charqueadas, entregando-as, por marcas e outras medidas, contra “os abusos que se cometem”. O regulamento foi submetido à Assembleia Provincial, mas, nas palavras do presidente, “a assembléia não pode ocupar-se destes assuntos, e ficou tudo como estava, e fica como não pode continuar a existir”.39 Nos anos 1880, diversas críticas denunciavam que o gado crioulo teria degenerado sua raça por falta de controle genético. Como alternativa, sugeriam a importação de raças consideradas mais nobres, seguindo o exemplo da Argentina e do Uruguai, que criavam em seus campos animais Hereford, Angus e Shorthorn. A introdução de novas raças trouxe novas doenças e exigiu um novo patamar tecnológico. Por isso, um intenso debate se estabeleceu, tendo como motivo o conflito entre adeptos da modernização e pecuaristas tradicionais. O gado crioulo seria condenado, pelos críticos, por ter degenerado pela falta de controle genético ou por não atender as novas exigências do mercado. Em 1883, a Câmara Municipal de Bagé informava que a pecuária estava atrasada “tanto no que diz respeito a aplicações de processos modernos, que em outros países lhe tem dado grande desenvolvimento, como no relativo a qualidade dos animais”.40 O presidente da província, no Relatório de 1887, afirma que a crise bovina era 39

40

ANDREA, F. J. S. S. Relatório do presidente da província Francisco J. de Souza Soares Andréa. 6-3-1850. p. 16. Correspondência da Câmara Municipal de Bagé, 21-03-1883.

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decorrente, entre outras causas, da “degeneração rápida da raça por falta de cruzamento”.41 As novas exigências técnicas da pecuária surgiram de forma concomitante com o fim da escravidão no Rio Grande do Sul e com fortes repercussões na formação de um novo tipo de mão de obra, com novas qualidades, além de um gerenciamento mais qualificado dos estabelecimentos pastoris. Destaca-se, a partir desse período, a introdução de cercas de arame e as balanças para pesar o gado, como uma das principais exigências das empresas compradoras. Em 1910, Paul Walle, um representante do governo francês em viajem pela Campanha, observou que “o gado de Rio Grande não pesa mais que 300 a 350 kilos por cabeça, portanto bem inferior aos bois cruzados do Uruguai e da República Argentina. Ignorantes e rotineiros, os criadores se obstinam a não melhorar suas pastagens nem seu gado”.42

Escravos campeiros Um dos problemas sobre o qual os historiadores contemporâneos têm se dedicado a esclarecer diz respeito às profissões dos escravos das estâncias e, sobretudo, apresentam uma preocupação em relação aos campeiros. O problema está em saber se os cativos das estâncias realizavam trabalhos típicos do pastoreio ou se estariam dedicados a outras atividades como a agricultura ou trabalhos domésticos, entre outras. Creio que tal preocupação, ainda que legítima, corre o risco de todas as implicâncias ideológicas inerentes ao debate em torno da imagem do gaúcho, simbolizada pelo peão livre típico 41

42

Relatório apresentado ao Ilmo. Sr. Dr. Joaquim Jacintho de Mendonça, 3º vicepresidente, pelo Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova, 2º vice-presidente, ao passar-lhe a Administração da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. 27 de outubro de 1887, p. 113-115. WALLE, Paul. Au Brésil: état de Rio Grande do Sul. Paris: E. Guilmoto, 1912. p. 21.

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da estância, e difundida pela literatura como identidade de todos os rio-grandenses. Se o escravo não fosse um campeiro, ele não estaria substituindo o gaúcho e, portanto, a atividade pastoril propriamente dita, com toda sua simbologia, seria tocada por homens livres, enquanto o cativo da estância seria encarregado de trabalhos menos nobres, a roça, o trabalho doméstico, etc. Guilhermino César é enfático nesse ponto ao afirmar que o “gaúcho clássico”, o “gaudério”, o “monarca das coxilhas”, dedicava-se ao trabalho de campo preferencialmente, enquanto os trabalhos duros das charqueadas, por exemplo, eram deixados para o negro.43 Diversos autores afirmam a existência de escravos campeiros, mas persistem as dificuldades e as dúvidas, com base nos dados existentes, para afirmar sua real importância no conjunto das estâncias. De fato, as fontes não fornecem subsídios para determinar com segurança a especificidade do trabalho dos cativos nas estâncias. Os inventários, de um modo geral, não indicam a profissão e censos como o de 1872 não mencionam a profissão de campeiro (o que não significa que não existam). Helen Osório observa a respeito que “97% dos estancieiros da amostra possuíam escravos. Mas, onde eram empregados, a que atividades dedicavam-se? Infelizmente a maior parte dos inventários não individualiza os escravos por ocupação ou por unidade produtiva”.44 No inventário do grande estancieiro Felisberto Pinto Bandeira constam doze campeiros e dois domadores, entre o total de 64 cativos que trabalhavam em suas propriedades localizadas no município de Rio Pardo, em 1831.45 43

44

45

CESAR, Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço. In: DACANAL, José; GONZAGA, Sergius (Org.). RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. p. 22-23, citado por GARCIA, Graciela B. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na campanha rio-grandense oitocentista. Dissertação (Mestrado em História) - UFRGS, Porto Alegre, 2005. p. 58. OSÓRIO, Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822, 1999, p. 136. Inventário post-mortem de Anna Lemos da Silva e Felisberto Pinto Bandeira. Rio Pardo. 1831. APRS. Nº 426, maço 18, estante 47.

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O que sabemos, por inúmeras fontes, é que a atividade do campeiro exigia habilidades específicas para o trabalho no campo, por isso seriam mais caros e em geral mais jovens. Essas habilidades consistiam em ser excelente cavaleiro e exímio no uso do laço, além de dominar um conjunto de ações próprias da atividade pastoril. Maestri, em artigo recente, analisa o tempo necessário para a formação de um escravo campeiro com as habilidades inerentes para o desempenho da função, mas acredita que “apenas estudos sistemáticos poderão esclarecer” se tal trabalho especializado seria dominado por peões livres ou escravos.46 Creio que tal problema é, por um lado, insolúvel e, por outro, não é tão determinante como está posto. A questão parte de uma ideia de divisão do trabalho que não é exatamente compatível com um estabelecimento pastoril do século 19, com todos os seus aspectos tradicionais de produção, se comparar com uma empresa capitalista que adota esse tipo de procedimento. Nesse raciocínio, um escravo campeiro serviria para todo tipo de trabalho e, por outro lado, escravos com outras profissões poderiam executar algumas atividades inerentes ao pastoreio. Os rodeios, ponto alto da atividade pastoril, por exemplo, reuniam todas pessoas da estância e mais os vizinhos para dar conta do conjunto das atividades exigidas nessa tarefa, cada qual com sua capacidade, mas todos trabalhando para dar conta da atividade pastoril. Um processo crime de Cruz Alta denuncia que uma criança morreu de fome porque sua mãe, escrava, não tinha tempo de amamentá-la adequadamente, pois passava o dia no campo pastoreando o gado,47 ou seja, no cotidiano do pastoreio não era exigido de todos os escravos ou peões um conjunto de habilidades excludentes. Um peão ou um escravo campeiro com as habilidades específicas completas poderia dirigir o 46

47

MAESTRI, M. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense. In: MAESTRI, M. O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: UPF, 2008. p. 237. In: ZARTH, P. A. História agrária do planalto gaúcho. Ijuí: Unijuí, 1997.

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trabalho e executar as tarefas mais exigentes com o auxílio de trabalhadores não plenamente habilitados. Por outro lado, no preparo das roças e nas colheitas, que exigiam grande esforço coletivo, o estancieiro deixaria os campeiros de fora? Tal questão se refere novamente à divisão do trabalho decorrente de algumas notas de viajantes como Saint-Hilaire, por exemplo. Toda estância típica possuía lavoura para o autoabastecimento e, portanto, a agricultura era inerente à atividade pastoril, assim como se observa nas plantações de café do Sudeste, que procuravam depender o mínimo possível do exterior para manter-se. Podemos concluir que, independentemente da profissão assinalada em uma série de documentos, os escravos das estâncias estavam nelas por serem indispensáveis para o funcionamento desses estabelecimentos em suas múltiplas atividades. Tal conclusão não responde à possível pergunta sobre o sentido de informar a profissão, mas uma hipótese evidente é que o valor do escravo estava relacionado com sua habilidade principal. Logo, indicar a profissão de domador ou de campeiro significava avaliá-lo melhor. Afinal, domar um cavalo era uma tarefa da maior importância numa estância, e um escravo com tal habilidade poderia não só dar conta da demanda como prestar serviços remunerados para os vizinhos. Os registros disponíveis evidenciam esses procedimentos. Ainda que não tenhamos estudos exaustivos e precisos sobre a quantidade e a importância do escravo campeiro nas estâncias, é plausível afirmar, com base na bibliografia existente, que cativos com tal formação especializada eram comuns nas estâncias, trabalhando ou não ao lado de peões livres, os gaúchos.

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O fim do trabalho escravo A abolição da escravidão no Rio Grande é apresentada pela literatura laudatória como um ato de democracia das elites locais que teriam se antecipado em quatro anos à lei Áurea. Em setembro de 1884, foi realizada uma grande festa na capital da província e em diversas outras cidades, em comemoração à suposta liberdade dos escravos. Na verdade, para os cativos homenageados não houve motivo de festa, pois a liberdade estava condicionada a cláusulas de serviço as quais eram de cinco anos em média. Dessa forma, quando o Império acabou com a escravidão em 1888, os escravos do Sul estavam ainda submetidos ao cativeiro por força dos contratos. Em 1886, por exemplo, o auto de avaliação do inventário de Francisco Modesto Franco incluiu “os serviços dos libertos” João, de 21 anos, por 4,3 anos, calculado a base de 8$000 réis mensais, totalizando 510$000 réis. Anita, com 19 anos, pelo mesmo período foi avaliada em 408$000 réis.48 A antecipação do fim do cativeiro por cláusulas que eram uma promessa de alforria foi uma fórmula encontrada para evitar a evasão de mão de obra para a região Sudeste do país e acalmar os movimentos abolicionistas. O jornal do Partido Republicano, A Federação, é explícito em relação à estratégia adotada: “A cláusula de serviços ainda obrigatórios durante um a cinco anos, no máximo, mas já prestados por homem livre, vai realizar completa transformação do trabalho conforme as comunicações recebidas de toda a província. Suprimir o escravo, conservando o operário – tal é a divisa do abolicionismo do Rio Grande do Sul, que lhe angariou todas as simpatias, conciliando a geral aspiração da liberdade com as exigências de algumas indústrias que não poderiam, sem

48

Inventário post-mortem do major Francisco Modesto Franco, 1886, Cartório de Órfãos e Ausentes de Cruz Alta. APRS. M. 9, n. 3.

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grande perturbação, suportar de improviso a plenitude dos efeitos da transição do regime.”49 Robert Conrad entende que os proprietários de escravos do Rio Grande usaram essa estratégia para amenizar a pressão abolicionista, de modo a não perderem totalmente seus cativos: “Os rio-grandenses entraram num compromisso astuto com o abolicionismo que lhes permitiu usar o trabalho de seus escravos, embora dando-lhes o rótulo nominal de homens livres.”50 O fim do trabalho escravo parece não ter tido grandes efeitos para os criadores de gado. Em Bagé, tradicional município de grandes criadores de gado, os vereadores sugeriram a criação de uma colônia municipal para abrigar todos os desocupados e ociosos existentes em seu território. O relatório da Câmara Municipal argumenta que a origem dos desocupados seria decadência da indústria pastoril e que a “completa extinção do elemento servil tende a aumentar o número de indivíduos desocupados”.51 No relatório do governo provincial de 1888, os ex-escravos são acusados de vagabundagem e de não quererem se submeter ao trabalho e às obrigações legais. Tais propostas e denúncias revelam as dificuldades em submeter os ex-cativos à disciplina do trabalho livre. Por outro lado, revelam a existência de um contingente de trabalhadores pobres potencialmente sujeitos ao incipiente mercado de trabalho. A formação de um contingente de trabalhadores livres está veiculada aos mecanismos de acesso à terra. Nos latifúndios da Campanha do século 19 havia uma população expressiva de pessoas sem-terra e que dependiam da boa vontade 49 50

51

A Federação. 3 de setembro de 1884, p. 1. (grifo nosso). CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 248. Relatório da Câmara Municipal de Bagé apresentado a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Bagé: Typ. do Independente de Bernardino Bambá, 1888. p. 4. (AHRS).

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dos proprietários para se instalarem como agregados e, nessa condição, produziam alimentos, ajudavam nos momentos de pico das atividades pastoris e empregavam membros da família como peão assalariado; serviam também como reserva de mão de obra. Famílias sem-terra, ou sem campos, são objeto de várias denúncias feitas pelas próprias autoridades da província ao longo do século 19. São conhecidas na historiografia riograndense as denúncias de Manuel Antonio Magalhães que, em 1808, acusava alguns moradores de se apropriarem de várias léguas de campo “ao mesmo tempo que há famílias que não possuem um palmo”.52 Da mesma forma, é amplamente conhecida a queixa do presidente da província Francisco José de Souza Soares de Andréa, em 1849, denunciando que um dos obstáculos para o desenvolvimento da agricultura na província “é a existência de grandes fazendas ou antes de grandes desertos, cujos donos cuidando só e mal da criação tem o direito de repelir de seus campos as famílias desvalidas que não tem aonde se conservar em pé”.53 As pesquisas recentes sobre a Campanha revelam que os moradores pobres estavam submetidos aos desmandos dos proprietários e, frequentemente, com apoio do sistema judiciário. O estudo de Graciela Garcia mostra que o cerco sobre os chamados intrusos do campo foi se acentuando no decorrer do século 19: “[...] este foi um período de incertezas, sucedido por uma conjuntura em que as camadas mais pobres da população tiveram suas possibilidades de acesso à terra cada

52

53

MAGALHÃES, Manoel Antônio. Almanaque da villa de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da capitania do Rio Grande do Sul (1808). Revista do Instituto Histórico, Geográphico e Ethnográphico do Brasil, Rio de Janeiro: B.L. Garnier, Tomo XXX, 1ª parte, v. 34, 1867. p. 43. Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Ten. Gen. Francisco José de Souza Soares Andrea. Na Abertura da Assembleia Legislativa Provincial no dia 1º de junho de 1849. (Manuscrito Museu da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul).

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vez mais reduzidas em decorrência de diferentes estratégias exitosas traçadas pela classe dominante.”54 A colonização e a imigração de europeus ao longo do século aumentaram ainda mais as dificuldades da população livre dos campos para acessar a terra. Embora a colonização tenha se concentrado nas áreas florestais do norte da província, a migração para essa região, considerada de terras devolutas, era uma alternativa aos sem-terras dos campos. A migração de trabalhadores livres para as áreas florestais do Norte ainda não mereceu um estudo exaustivo, mas os indícios revelam que tal movimento ocorreu efetivamente. O relatório de 1858 da Câmara de São Borja menciona o desvio dos trabalhadores para se dedicar ao extrativismo de erva-mate, que estaria com preços atraentes: “Parte das pessoas empregadas na lavoura abandonam este serviço e tem seguido para os ervais ocupando-se neste ramo do comércio [...].”55

Considerações finais A escravidão nas estâncias pastoris do Rio Grande do Sul é um caso típico de um fenômeno historiográfico que Marc Ferro56 denomina de “silêncio da história”. Por décadas os escravos foram invisíveis ou apareciam em textos cheios de subterfúgios que tinham o objetivo de minimizar sua importância ou de amenizar a condição do cativeiro, a ponto de se tornar um mito. A violência inerente à instituição escravista foi facilmente denunciada pela historiografia crítica e evidenciada

54

55

56

GARCIA, Graciela B. Senhores de terra e intrusos: os despejos na campanha rio-grandense oitocentista. (Alegrete, 1830-1880). In: MOTTA, M.; ZARTH, P. (Org.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história. São Paulo: Unesp, 2008. p. 150. Câmara Municipal de São Borja, 08-01-1858, Arquivo Histórico do RS, Lata 158, Maço 233. FERRO, Marc. Como se cuenta la historia a los niños en el mundo entero. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.

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pelas inúmeras fontes disponíveis nos diversos arquivos de documentação histórica e, mesmo, nos cronistas e viajantes. Por outro lado, as pesquisas críticas desvinculadas ideologicamente dos interesses pastoris levaram um bom tempo para determinar a dimensão do trabalho escravo nos estabelecimentos de criação de gado. As dificuldades foram sendo dissipadas na medida em que novas fontes foram exploradas de forma exaustiva, principalmente os inventários post-mortem e os processos crime, que permitiram visualizar as unidades de produção de forma individual. Dissertações e teses acadêmicas dissecaram a documentação de diversos municípios reunindo dados que não deixam dúvida sobre a presença de cativos por todos os campos do Sul. A utilização de trabalhadores livres assalariados, de forma concomitante ou exclusiva, em diversos casos, não altera a forte presença de cativos nas estâncias de um modo geral. Com base nos dados disponíveis atualmente, fica evidente que o escravo de origem africana foi essencial para a produção pastoril da província do Rio Grande do Sul. Ainda que a documentação não permita realizar um censo detalhado das profissões dos cativos, as evidências abundantes mostram claramente escravos trabalhando nas mais diversas atividades das estâncias, inclusive como campeiro, a atividade atribuída pela literatura laudatória como exclusiva do peão livre, o gaúcho, símbolo identitário do mundo pastoril e estendido para todos os moradores da região. O trabalho escravo nas estâncias de criação de gado foi substituído gradativamente por peões livres assalariados, cada vez mais disponíveis através de mecanismos coercitivos utilizados pelo grupo dominante para expulsar os pobres dos campos e controlar o acesso as terras em toda a província. Para os sem-terra em meio aos latifúndios da Campanha, desertos demográficos com muito gado e pouca gente, não restavam muitas alternativas além do emprego como agregados ou peões oferecidos pelos grandes criadores.

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O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense1 (1680-1964) Mário Maestri*

A economia pastoril: ideologia, mito e história Até recentemente a historiografia sulina defendeu a utilização quase exclusiva do peão nas tarefas pastoris no período pré-Abolição. Em 1882, em História popular do Rio Grande do Sul, o jovem republicano Alcides Lima registrava as visões da geração pela vida campestre de um homem naturalmente livre e da estância como base da “democracia rio-grandense”: “A vida fácil e folgazã dos campos, os hábitos aguerridos e livres que o povo tinha contraído, os exercícios constantes de destreza física e de independência moral a que estavam sujeitos pelo gênero de vida que adotaram, haviam colocado a população em antagonismo completo com as leis semi-bárbaras *

1

Professor do PPGH da UPF, Doutor em História pela UCL, Bélgica. E-mail: [email protected] Agradecemos a leitura e considerações do engenheiro-agrônomo Humberto Sorio Humberto Sorio, professor do curso de Agronomia da UPF, sobre o comportamento bovino, incorporadas ao texto sem serem referenciadas. Correção e desenvolvimento de texto apresentado em MAESTRI, Mário (Org.). O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2008. p. 169-271.

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da metrópole portuguesa [...].” Escrita nos anos 1880, quando vigia a escravidão no Sul e no Brasil, a obra quase não se refere ao cativo em sua síntese da história da formação sulina.2 A guerra dos farrapos: história da República Riograndense, de Joaquim Francisco Assis Brasil, do mesmo ano, espécie de continuação do livro de Alcides Lima, participava da mesma visão determinista geográfica, climática e racial ao propor natureza libertária ao povo sulino, em razão de suas origens raciais puras, dos campos abertos, da economia pastoril. As “pastagens naturais” que cobriam a “maior parte da província”, iguais às “melhores do mundo”, ensejariam que “as campinas” se povoassem, com “rapidez assombrosa e inexplicável” (sic), de “rebanhos”, que, “de fácil aquisição para todos”, nivelavam “mais ou menos as condições de fortuna”. Os “elementos” formadores sulinos difeririam “dos que originaram” o resto da população do país. Para o jovem republicano, filho de ricos estancieiros, nos anos 1830 a “população riograndense” era “produto imediato” de “açoriano e português, paulista e mineiro, espanhol; o elemento africano e autóctone exerceram ação quase nula”.3 Em 1922, em “Esboço da formação social do Rio Grande do Sul”, Rubens de Barcellos associou-se à tese da “quase ausência da escravidão na vida pastoril”.4 Em 1927, no primeiro ensaio de explicação sociológica sistemática da formação social sulina na ótica do latifúndio, Jorge Salis Goulart definia que na estância, “célula social” daquela sociedade, não ocorria dominação econômica, pois o “meio físico e o trabalho pastoril imposto pela natureza do solo” irmanavam “patrões e empregados”. O “gaúcho” seria “mais um amigo do que um su2

3

4

LIMA, Alcides. História popular do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1935. p. 103. (Atualizamos a ortografia desta e de outras citações). ASSIS BRASIL. A Guerra dos Farrapos: história da República Riograndense. Rio de Janeiro: Adersen, [s. d.]. p. 21, 23, 31, 41 et passim. BARCELLOS, Rubens. Esboço da formação social do Rio Grande do Sul (1922). BARCELLOS, Rubens. Estudos Rio-grandenses: motivos de história e literatura. Porto Alegre: Globo, 1955. p. 29.

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bordinado” do “patrão”. A origem democrática do Rio Grande, diversa daquela do resto do Brasil, seria devida a seu “pouco” “contingente de escravos” e ao fato de que o “espírito democrático” sulino “se formara antes da grande introdução do elemento negro”. A leitura defendia taxativamente o pastoreio como essencialmente produto do trabalho livre.5 Os mais destacados intelectuais orgânicos das classes proprietárias sulinas corroboraram as teses da pouca ou da nula participação do cativo na economia sulina. Na edição de 1974 de sua História geral do Rio Grande do Sul, o historiador positivista Arthur Ferreira Filho reconheceu a escravidão no Sul apenas quando abordou sua extinção. “[...] o Rio Grande, relativamente a outras províncias”, possuísse “um número reduzido de cativos”. Propôs que o escravismo “não” encontrasse “ponto de apoio no temperamento liberal dos gaúchos”. O autor utilizava “gaúcho” como sinônimo de “rio-grandense”.6 Renomados historiadores sulinos, como Amyr Borges Fortes, Manoelito de Ornellas, Moisés Vellinho, Riograndino da Costa e Silva, Sousa Docca, etc., apresentaram igualmente o Rio Grande como produto quase exclusivo do trabalho livre.7 Paulo Xavier, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, estudou múltiplos aspectos do pastoreio sulino. Propôs em “A estância no Rio Grande do Sul”: “Esta divisão dos trabalhadores da estância em homens livres e homens escravos, ligados aos dois ramos da economia do núcleo, a mercantil e a 5

6

7

GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. 3. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1978. p. 11, 29, 48. Cf. FERREIRA FILHO, Arthur. História geral do Rio Grande do Sul: 15031974. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1974. p. 140. (1. ed. 1958). Cf. COSTA E SILVA, Riograndino da. Notas à margens da história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1968; DOCA, Sousa. História do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Simões, 1954; FORTES, Amyr Borges. Compêndio de história do Rio Grande do Sul. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 1968. (1. ed. 1960); VELLINHO, Moysés. Capitania d'El-Rei: aspectos polêmicos da formação rio-grandense. Porto Alegre: Globo, 1970; _______. Rio Grande e o Prata: contrastes. Porto Alegre: Globo/IEL/SEC, 1962; _______. Fronteira. Porto Alegre: Globo/UFRGS, 1975.

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natural, respectivamente, facilita-nos a compreensão da dinâmica interna do processo criador da riqueza.” Os cativos trabalhariam na “lavoura” e nas “lides domésticas”, enquanto o “trabalhador livre – o agregado e o peão – era “empregado no trabalho rural sob a supervisão direta do estancieiro ou do seu capataz”.8

Historiografia tradicional Em História da literatura do Rio Grande do Sul, de 1956, Guilhermino César, destacado expoente da historiografia tradicional sulina recente, não arrolou o africano na “cepa originária” sulina, referindo-se a ele marginalmente.9 Mais tarde, escreveu breves artigos e dedicou subcapítulo da História do Rio Grande do Sul ao “negro”, sem jamais tê-lo como eixo explicativo da sociedade sulina pré-1888.10 Em 1977, em artigo sobre “O latifúndio e o patriciado gaúcho”, propôs que o “posteiro” e o “negro escravo” ocupariam funções “complementares” na fazenda. Em geral, o posteiro era “agregado” que morava com a família nas franjas da propriedade, plantando uma horta e criando algum gado, sob a obrigação de impedir o ingresso de intrusos, a fuga de gado e de cativos e de apoiar as práticas mais trabalhosas como rodeios, preparação de tropas, etc. O autor escreveu sobre o cativo: “[...] mais útil na lavoura de subsistência e nos trabalhos domésticos, no galpão, como durante as expedições ao campo, no costeio miúdo nas festas do ‘rodeio grande’.”11 8

9

10

11

XAVIER, Paulo. A estância no Rio Grande do Sul. In: PRUNES, L. M. et al. Rio Grande do Sul: terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1964. p. 58. Cf. CÉSAR, G. História da literatura do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 30-31. Cf. Id. História do Rio Grande do Sul: período colonial. Porto Alegre: Globo, 1970. Cf. CÉSAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul: período colonial. Porto Alegre: Globo, 1970; O latifúndio e o patriciado gaúcho. Correio do Povo, Caderno de Sábado, 17.9.1977. p. 3.

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Em Origens da economia gaúcha: o boi e o poder, livro póstumo de 2005, o mesmo autor propõe as razões da uso privilegiado de trabalhadores livres no pastoreio, em razão da possibilidade de fuga do cativo “para o lado das possessões espanholas”. O sentido ideológico dessa proposição explicita-se no reconhecimento da importância do cativo nas lides pastoris no capítulo “A mão-de-obra, o rodeio, o desfrute”, quando propõe que a “estância antiga” do litoral, que “deu início à ocupação sistemática da terra”, empregasse “maior número de escravos, ou apenas estes”. Em 1976, em O conde de Piratini e a estância da Música, publicara as instruções de João Francisco Viera Braga ao capataz da sua estância, que ressaltavam a importância do cativo no pastoreio.12 Ainda, em 2002 as visões sobre um pastoreio sem cativos prosseguiam: “O primeiro e mais antigo setor produtivo gaúcho era o do pastoreio extensivo, praticado em latifúndios onde o trabalho escravo era raramente utilizado, e quando o era, ocupava as atividades de apoio à produção criatória e não a atividade principal.”13 O cativo africano foi introduzido no Sul antes mesmo da fundação oficial da capitania de São Pedro, em 1737.14 Em 1874, com 21,3% de cativos, o Rio Grande era terceira província do Brasil em números relativos de trabalhadores escravizados, após o Rio de Janeiro (39,7%) e o Espírito Santo (27,6%).15 Os dados demográficos sugerem que a população sulina cativa expandiu-se, de forma absoluta, no mínimo, talvez até mesmo 12

13

14

15

Cf. Id. CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL; Corag, 2005. p. 82, 105, 113 et passim; _______. O conde de Piratini e a estância da Música: administração de um latifúndio rio-grandense em 1832. Porto Alegre: EST, IEL; Caxias do Sul: EdiUCS, 1978. TARGA. A originalidade do Rio Grande do Sul no século 19. In: ENCONTRO DE ECONOMIA GAÚCHA, I, FEE, Porto Alegre, 16 a 17 de maio de 2002. MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência, sociedade. Porto Alegre: EdiUFRGS, 2006. Cf. ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: as transformações no Rio Grande do Sul rural do século 19. Tese doutoramento. Rio de Janeiro: UFF, 1994. p. 137. Cf. nota 131.

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após 1870 (Tab. 1). Em 1884-5, a província sulina conheceu vasta emancipação de cativos, sobretudo sob a condição de trabalharem, em geral por cinco anos, sem remuneração monetária, quase extinguindo aparentemente a escravidão.16 Tabela 1 - População do Rio Grande do Sul (1780-1887) Ano 1780 1798 1802 1803 1808 1814 1819 1840 1846 1858 1859

Cativos Total 5.102 17.923 11.740 31.644 12.970 36.721 ... 36.721 .... +50.000 21.445 70.656 20.611 66.665 40.000 ... 30.846 147.846 * 71.911 285.444 70.880 282.547

% 28,47 37,10 35,32 ... ... 30,35 30,9 ... 20,9 25,19 25,09

Ano 1860 1861 1862 1863 1872 1874 1881 1883 1884 1885 1887

Cativos 76.109 77.588 75.721 77.419 67.748 98.450 81.169 62.138 60.136 27.242 8.430

Total 309.476 344.227 276.446 392.725 434.818 462.542 .... 700.000 .... ..... 944.616

% 24,59 22,54 27,39 19,71 15,59 21,28 ... 8,80 ... ... 0,89

Fonte: BAKOS, M. RS: escravismo & abolição, p. 18; BENTO, Cláudio M. O negro e descendentes na sociedade do Rio Grande do Sul. (1863-1975). Porto Alegre: Grafosul, 1976. p. 119; WEIMER, Günter. O trabalho escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS/SAGRA, 1991. p. 33; CONRAD, R. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. p. 346.

Apesar da importância germinal para a compreensão da formação social sulina, não contamos ainda com história geral propriamente dita da fazenda pastoril. Ainda não houve abordagem categorial-sistemática da gênese e desenvolvimento da estância no Sul, ao igual do ocorrido no Prata.17 Fora artigos e 16

17

Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975; BAKOS, M. RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982; MONTI, Verônica A. O abolicionismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul. 1884. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985. Cf., entre outros, ASSUNÇÃO, Fernando O. Historia del gaucho. Buenos Aires: Claridad, 1999; BARSKY, Osvaldo. Historia del capitalismo agrario pampeano: la expansión ganadera hasta 1895. I. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003; BERTOLINO, Magdalena; CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia de la ganadería en el Uruguay. Montevideo: Banco de Crédito, 1972; MILLOT, Julio; BERTINO, Magdalena. Historia económica del Uruguay. Montevideo: Funda-

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capítulos, raros estudos monográficos discutiram o trabalho e o funcionamento interno dessa unidade produtiva nos três séculos de história sulina. Contamos, sobretudo, com trabalhos da historiografia municipal e com estudos sobre a arquitetura da fazenda pastoril.18 Atualmente, foram concluídos ou estão em desenvolvimento trabalhos acadêmicos que já realizam salto de qualidade no conhecimento do tema.19

18

19

ción Cultura Universitaria, 1991. Tomo I e II; CARREÑO, Virginia. Estancias y estancieros del río de la Plata. Buenos Aires: Claridad, 1999; DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay ganadero: de la explotación primitiva a crisis actual. Montevideo: La Banda Oriental, 1974; GELMAN, Jorge; SANTILLI, Daniel. Historia del capitalismo agrario pampeano: de Rivadavia a Rosas. Desigualdad y crecimiento económico. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006; GIBERTI, Horácio C. E. Historia económica de la ganadería argentina. 2. ed., rev. e cor. Buenos Aires: Solar, 1986. [1. ed. 1954]; HORA, Roy. Los terratenientes de la pampa argentina: una historia social y política, 1860-1945. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005; MAYO, Carlos A. Estancia y sociedad en la pampa (1740-1820). 2. ed. Buenos Aires: Biblos, 2004; MONTOYA, Alfredo Juan. Como evolucionó la ganadería en la época del virreinato. Buenos Aires: Plus Ultra, 1984; MONTOYA, Alfredo Juan. Historia de los saladeros argentinos. Buenos Aires: El Coloquio, 1970; MONTOYA, Alfredo Juan. La ganadería y la industria de salazón de carnes en el periodo 1810-1862. Buenos Aires: El Coloquio, 1971; PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado: contribuición a la historia rural uruguaya. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967; QUESADA, María Sáenz. Los estancieros. 2. ed. Buenos Aires: Sudamericana, 1991; REGUERA, Andrea. Patrón de estancias: Ramón Santamarina - una biografía de fortuna y poder en la Pampa. Buenos Aires: Eudeba, 2006; SBARRA, Noel H. Historia del alambrado en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1964; SESTO, Carmen. Historia del capitalismo agrario pampeano: la vanguardia ganadera bonaerense. 1856-1900. II. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. Cf., por exemplo, PONT, Raul. Campos realengos: formação da fronteira sudoeste no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Renascença, 1983; SILVA, Nery Luiz Auler da. Antigas fazendas: arquitetura rural do Planalto Médio. Séc. XIX. Passo Fundo: Edição do Autor, 2003; SILVA, Mara Regina Kramer. Linguagem simbólica de poder: arquitetura rural gaúcha. São Leopoldo: PPGH Unisinos, 1996; LUCCAS, Luís Henrique Haas. Estâncias e fazendas. Arquitetura da pecuária no Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997. (Dissertação de Mestrado). Cf., por exemplo, entre diversos autores, EIFERT, Maria Beatriz C. Marcas da escravidão nas fazendas pastoril de Soledade: 1867-1883. Passo Fundo: UPF Editora, 2007 (mestrado); FARINATI, Luís E. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil. 1825-65. Niterói: PPGH UFF, 2007. (Doutorado); BOSCO, Setembrino dal, cf. nota 73; PALERMO, Eduardo, cf. nota 41.

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Capitalismo pastoril Em 1978, em “A estância gaúcha no sistema escravista brasileiro”, publicado no Caderno de Sábado, o historiador Décio Freitas, então marxista, afirmava que o pastoreio sulino funcionava apoiado no trabalho livre, não constituindo “modo de produção escravista”. Os cativos das estâncias trabalhariam nas atividades agrícolas e domésticas e raramente nas pastoris. Ao máximo, “um que outro escravo” era “visto, às vezes” no campo, em “tarefas auxiliares”. E eram, em geral, cativos aos quais se prometera a liberdade. Para ele, dominaria “absoluta preponderância de trabalhadores livres” nas estâncias, principalmente porque o trabalho interviria pouquíssimo na produção do boi, processo essencialmente natural, tornando “antieconômico” a escravidão. Freitas destacava os gastos com o treinamento dos cativos, o pouco uso do cavalo na África Negra e a necessidade de vigilância dos escravizados.20 Em geral, a proposta de Décio Freitas correspondia à tese defendida pela historiografia tradicional. Em resposta ao artigo, apoiado em dados demográficos de municípios pastoris, o advogado e historiador Sérgio da Costa Franco contraditou aquela afirmação, propondo que, “muito provavelmente”, o trabalho cativo fosse a base da produção pastoril no Sul. Criticou com razão a dedução sobretudo lógica de Freitas da impossibilidade da escravidão no pastoreio. Em 7 de março, na página do leitor do Correio do Povo, Freitas reafirmou que “o trabalho social da produção pecuária era desempenhado por gente livre e nela só esporadicamente aparecia o escravo”.21 20

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FREITAS, Décio. A estância gaúcha no sistema escravista brasileiro. Correio do Povo. Caderno de Sábado, 11 fev. 1978. FREITAS, Décio. Escravos na estância. Correio do Povo. Correio do Leitor. Porto Alegre, terça-feira, 7 ma. 1978. Sobre o cativo na estância, ver o trabalho pioneiro de ZARTH, Paulo. História agrária do Planalto gaúcho, conforme nota 146.

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Em 10 de março, Paulo Xavier, que defendera anos antes a tese de Freitas, retrucando em seu artigo semanal ao Suplemento Rural do Correio do Povo não a Freitas, mas a Fernando Henrique Cardoso, que defendera, em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, o pouco uso do cativo nas regiões incorporadas tardiamente ao Rio Grande, nos séculos 18 e 19.22 Citou dados, de 1858, registrados em relatório da Câmara de Alegrete ao presidente da província, sobre 391 estâncias do município, com rebanho de 772.232 vacuns, cuidados por 124 capatazes, 159 peões livres e 527 cativos, com produção anual de 96.529 vacuns, 6.039 muares e 32.558 borregos.23 A interpretação superficial dos dados sugeria maioria absoluta cabal de cativos naquelas fazendas. Na semana seguinte, voltando ao tema, puxando as orelhas dos historiadores despreocupados em apoiar-se na documentação, reafirmou a importância do cativo no pastoreio ao publicar mapa estatístico de 1859. O documento, ainda que incompleto, pois faltam municípios e distritos, registrava importante número de cativos, ao lado de capatazes e peões.24

22

23

24

CARDOSO, F. H. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. (1. ed. 1962). XAVIER, Paulo. Aspectos da pecuária em Alegrete. Correio do Povo, Suplemento Rural, 10 mar. 1978. XAVIER, Paulo. Mapa numérico das estâncias nos municípios da povíncia. Correio do Povo, Suplemento Rural, 17 mar. 1978. p. 5.

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* Os totais são do mapa.

N. fazendas 135 48 40 100 90 391 568 89 57 44 63 51 238 260 2310

n.vacuns 144.000 217.485 138.296 105.661 61.905 777.232 438.840 229.000 110.400 59.600 35.210 67.129 285.800 551.640 3.565.078

Procreo 17.944 27.185 17.287 21.591 12.643 96.529 87.820 57000 13800 7450 8.857 16.878 48.225 66.455 533.149

capatazes 61 37 32 50 55 124 171 73 18 24 – 25 107 96 912

peões 37 18 34 58 86 159 339 15 11 62 4 41 870

Cativos 173 143 527 153 174 130 343 1842

Mapa numérico das estâncias existentes nos diferentes municípios da província, de que até agora se tem conhecimento oficial, com declaração dos animais que possuem e criam por ano e do número de pessoas empregadas no costeiro

Município Porto Alegre Triunfo Rio Pardo Encruzilhada Santa Maria Alegrete São Borja Rio Grande S. José do Norte Pelotas Piratini Canguçu Jaguarão Bagé Total*

Tabela 2 -

Em 1980, retomando sua tese, Décio Freitas publicou o longo ensaio “O gaúcho: o mito da ‘produção sem trabalho’”, defendendo serem o “índio e o mestiço de índio [...], desde o início, [...] trabalhadores ideais para a produção pecuária”, “uma das razões do não-emprego de escravos negros, salvo de maneira acessória, no trabalho da pecuária”. Perfilhando a tese do “capitalismo pastoril sulino”; negou o uso do cativo devido aos gastos de supervisão e vigilância; a pouca adaptabilidade da prática ao trabalho feitorizado, principalmente africano; a existência de uma “massa de trabalhadores [livres] dotados de experiência e tradição pastoris”. “Não é dizer que não houvesse em absoluto emprego de escravos negros nas atividades pastoris. Em crônicas e inventários aparecem reiteradas alusões a negros ou escravos ‘campeiros’. [...] os negros, que desempenhavam atividades propriamente pastoris, eram como regra negros forros. Apenas havia emprego de escravos em trabalhos auxiliares do pastoreio nos quais se pudesse exercer vigilância sobre o escravo, como nas arreadas e os rodeios. Afora isso, houve largo emprego do escravo nos serviços domésticos e na produção de subsistência da estância.”25 No mesmo ano, reafirmou essas opiniões em longa introdução à edição de documentos clássicos dos séculos 18 e 19 que abordavam a criação pastoril no Sul, de título que sintetizava sua visão sobre o pastoreio sulino – O capitalismo pastoril.26 Em sentido apologético, como Freitas, Guilhermino César definiu a fazenda pastoril sulina como capitalista no livro póstumo citado: “Só muito mais tarde, entretanto, quando se consolidou o sistema fundiário, através das sesmarias, foi que as estâncias particulares, derramando-se pelo planalto, de leste a oeste, [...] consolidaram em termos de economia capi25

26

FREITAS, Décio. O gaúcho: o mito da “produção sem trabalho”; GONZAGA, S.; DACANAL, J. H. (Org.). RS: cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. p. 7-24. FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980.

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talista a pecuária, transfundindo novo calor ao povoamento.” “[...] a estância entre nós encarnou a primeira empresa capitalista, foi a primeira entidade desse gênero a desenvolver-se no Rio Grande de São Pedro.” O autor confundia claramente produção mercantil e capitalista.27 Em tese de doutoramento de 1980, baseados em documentação original e na bibliografia conhecida, nos dissociamos da visão da historiografia tradicional, ao negar que “a utilização do escravo nas fazendas de criação tenha sido tão restrita quanto se supõe”, e avançamos que a “utilização do braço escravo nas primeiras fazendas de criação” do Rio Grande estava, “definitivamente, comprovada”, e que ele era utilizado “prioritariamente” nas tarefas agrícolas, o que não devia “impedir-nos de reconhecer a existência, significativa, do ‘escravo campeiro’”. Subscrevemos a tese da existência não necessária do cativo em todas as fazendas pastoris e propusemos que a produção pastoril não estivesse assentada no “modo de produção escravista”, sem, logicamente, perfilharmos a tese de um capitalismo pastoril.28 Em trabalho de 1984, completamos nossa primeira leitura, lembrando que, “devido ao caráter pastoril [...] a escravidão” perdia em forma tendencial “sua essência coercitiva” e assumia “caráter patriarcal”, o que explicaria a presença do cativo em atividades de difícil controle.29

Charqueada e escravidão Em leitura voltada prioritariamente à análise da produção charqueadora e da resistência do cativo, reconhecíamos 27 28

29

Cf. CÉSAR, Origens da economia gaúcha: o boi e o poder, p. 41 e 71. MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada escravista e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST/ UCS, 1984. p. 51-53. (Destacamos). MAESTRI, Mário. O escravo gaúcho: resistência e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1984; 2. ed., rev. e aum. Porto Alegre: UFRGS, 1993. p. 38.

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a importante presença do escravizado no pastoreio, mas não elucidávamos as determinações que levavam a sua presença ou não nessas práticas. Elidíamos a definição do caráter da atividade pastoril e de seu status no contexto da antiga formação social sulina. A definição da fazenda como não necessariamente escravista deixava em aberto o caráter dominante ou não da produção escravista sulina, apesar dos fortes indícios sociais e políticos sugerindo a enorme coesão-domínio do escravismo no Sul. A dominância da escravidão no pastoreio era o último elo para a definição do caráter dominantemente escravista da antiga formação social sulina. Algumas razões metaepistemológicas contribuíram para que o debate travado em inícios dos anos 1980 não prosperasse. Por um lado, a historiografia tradicional, representada pelos eruditos membros do IHGRS, aceitava com dificuldades as decorrências inevitáveis da confirmação documental da escravidão pastoril, pois negava as construções ideológicas sobre a ausência de contradições sociais essenciais na fazenda e na antiga formação social sulina. A democracia pastoril era a viga mestra das interpretações apologéticas sobre o passado sulino. Por outro lado, a definição sociológica dos criatórios como produção capitalista, antes de 1888, propunha papel desprezível aos cativos pastoris. Essa interpretação nascia igualmente da dificuldade de compreender o sentido e a importância da presença do cativo no pastoreio, a partir da comprovação de sua existência em fazendas e regiões pastoris. Em efeito, como Freitas propunha corretamente, a constatação da existência de cativos em estâncias não era prova de utilização nas lides criatórias, nem de utilização em todas ou na maioria das fazendas, ou seja, dessa constatação não decorria o caráter necessário do cativo na produção pastoril. Havia também paradoxos aparentes de difícil elucidação.

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A economia pastoril era pouco rentável, como registra a arquitetura das sedes das mais ricas fazendas sulinas, sobretudo se comparadas às casas grandes da área açucareira e cafeicultora.30 Sobretudo o cativo crioulo custava relativamente caro. Depois de 1850, custava uma boiada, das grandes! Mesmo se considerando a possibilidade de formas semipatriarcais de escravismo no pastoreio, era sempre perigoso entregar cavalo a um cativo e enviá-lo a trabalhar, sem vigilância, sobretudo próximo às fronteiras. Era permanente o perigo de fuga, sobretudo em situações extraordinárias, como comprovaria a historiografia especializada recente.31 A África Negra não conhecia o pastoreio extensivo: em algumas regiões, sequer se utilizava o cavalo. O trabalho pastoril era menos penoso, se comparado às práticas charqueadoras, agrícolas, etc. Era mais complexo introduzir o africano no pastoreio do que no eito. E havia, ao menos aparentemente, população livre e pobre capaz de trabalhar nessas lides. A comprovação da presença do cativo no pastoreio requeria, igualmente, a sua definição como elemento subordinado ou dominante, aleatório ou sistêmico nessas práticas. Era necessário elucidar o paradoxo do uso de braço caro e pouco funcional à atividade, em atividade de baixa rentabilidade, na presença de homem livre habituado a ela.

A evolução da produção pastoril no Sul: técnicas e produtividade O gado sulino originara-se essencialmente nos animais introduzidos pelos jesuítas na margem oriental do rio Uruguai e pelos espanhóis na margem setentrional do rio da Pra30 31

Cf., por exemplo, SILVA, Antigas fazendas. Cf., por exemplo, PETIZ, Silmei de Sant’Ána. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: EdiUPF, 2006.

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ta. Esse gado se reproduziu abundantemente em razão das boas condições naturais da região – poucos predadores; inverno e verão benignos; pastos, aguadas e capões abundantes; ausência de graves epizootias, etc. Nas Missões jesuíticas, o pastoreio era feito a cavalo e reduzia-se, sobretudo, à vigilância e amansamento dos rebanhos, em rodeios, realizados sobretudo pelos “posteiros”. Em Terra gaúcha, Simões Lopes Neto descreve os postos missioneiros: “Em cada estância havia um grande arranchamento, de quinze e mais casebres, para alojamento do pessoal de trabalho, tirado dos próprios índios, que vinham, revezadamente, fazer um certo tempo de destacamento.”32 Após dominarem a monta do cavalo, os charruas e os minuanos serviam-se do animal para caçar o gado, pela carne e couro.33 A técnica da doma em campo aberto, o churrasco as boleadeiras, o laço, o mate, o poncho, o tirador, etc. foram invenções dos cavaleiros missioneiros e pampianos, ao contrário do mito da produção pastoril de origem paulista ou ibérica, esposada, entre outros, por Guilhermino César: “[...] essa geração de pioneiros consolidou um tipo de estância que deve o seu caráter distintivo muito mais ao paulista que ao modelo rural platino.”34 As determinações do meio, das condições materiais de produção e da situação histórica levaram a que as técnicas criatórias luso-brasileiras continuassem, no geral, a tradição 32

33

34

LOPES NETO, Simões. Terra gaúcha: história elementar do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Sulina, 1998. p. 120. Cf., por exemplo, FAVRE, Oscar Padrón. Los charrúas-minuanes en su etapa final. Uruguay: Tierra Adentro, 2004; ROSSI, Juan José. Los charrúas. Buenos Aires: Galerna, 2002; LARA, Eduardo F. Acosta y. La guerra de los charrúas en la Banda Oriental: periodo hispanico. Montevideo-Buenos Aires: Talleres de Loreto, 1998. v. I. Cf. BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos guaranis: panorama histórico-institucional. Porto Alegre: Sulina; Caxias do Sul: UCS, EST, 1978; DALCIN, Ignácio. Em busca de uma terra sem males. Porto Alegre: Palmarinca, EST, 1993; PORTO, Aurélio. História das missões orientais do Uruguai. 2. ed., rev. e melhorada pelo por L. G. Jaeger. Porto Alegre: Selbach, 1954. I e II; CÉSAR. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder, p. 89.

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missioneira. Apesar da importante evolução que conheceram durante os cento e cinquenta anos de escravismo, as atividades pastoris sulinas apoiaram-se, sobretudo, na reprodução natural e extensiva dos animais. Nos primórdios da ocupação luso-brasileira do litoral, a agricultura associou-se a uma produção, especialmente de couros, para exportação e ao envio de muares para o Brasil Central. Nesses tempos, as exportações de couros vacuns e cavalares eram prejudicadas pela falta de sal e pela péssima qualidade da barra do Rio Grande.35 Em 1897, Alfredo Varela (1864-1943) lembrava que, inicialmente, a “criação era uma indústria secundária. O estancieiro agricultava o trigo, aproveitando do boi apenas o couro que comerciava; pouca era a carne conservada (xarque) aqui fabricada. Ao secar o trigo (ferrugem) e minguando a produção da carne-seca do Ceará, é que a generalidade [sic] dos rio-grandenses entregou-se à criação, todo o mundo [sic] empenhando-se em obter concessões de sesmarias”.36 A venda de charque, sobretudo, mas não exclusivamente, para os mercados do Brasil obscureceu e continua obscurecendo a exportação dos couros, cabelo, cinza, etc. para Portugal e, após a decretação da liberdade comercial, em 1808, para a Europa, os EUA, etc. Os couros eram vendidos por peso. Portanto, quanto mais espessos, mais valiosos. Os animais que morrem à míngua, por inanição e desnutrição, engrossam o couro. Conta a tradição que os animais eram encerrados em cercados de pedra e valos ou em encerras naturais intransponíveis, com água à disposição, para que consumissem o pasto e morressem lentamente, a fim de aumentarem a espessura do couro. No Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, cortava-se a

35

36

GOULART, José Alípio. Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: GRD, 1965. p. 40 et seq. VARELA, Alfredo. Rio Grande do Sul: descripção physica, histórica e econômica. Pelotas e Porto Alegre: Universal, 1897. v. 1. p. 446.

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ponta da língua dos animais para que se alimentassem com dificuldade, com o mesmo objetivo.37

Coiramas e fazenda Chimarrã Como no Plata, inicialmente, praticava-se a caça ao gado pelo couro, matéria-prima valorizada na Europa da época – vaquerías. Os animais eram imobilizados com o laço, boleadeiras, lanças terminadas em meia-lua aceradas, com as quais cavaleiros dejarretavam os animais, que, imobilizados, tombavam ao solo para serem sacrificados para se obterem o couro, a língua e o sebo. As carnes abandonadas ao léu contribuíam para a proliferação dos cachorros chimarrões, que atacavam, isolados, os bezerros e, em matilhas, o gado graúdo e, até mesmo, cavaleiros.38 Essa economia predatória, praticada nas vacarias e campos realengos, a partir de 1680, com importante apoio em Sacramento, despreocupava-se com a proliferação dos rebanhos, abatendo vacas e bezerros. Em 1779, o marquês do Lavradio ladrava contra a imprevidência dos coureadores que baixavam a qualidade e o preço dos couros. “[...] quando querem fazer uma porção de couros, mata-se indistintamente todo o gado que pode ser necessário para completar o número de couros que querem, assim bois, vacas, como bezerros [...].”39 As práticas coureadoras envolviam aventureiros portugueses e espanhóis, charruas, minuanos, guaranis, gaúchos e cativos, utilizados para retirar os couros dos animais abatidos e para dirigir as car37 38

39

Informação fornecida pelo engenheiro-agrônomo Humberto Sório Júnior, AIRES DE CASAL, Manuel. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil [...]. São Paulo: Cultura, 1943. [1. ed. 1817]. Tomo I, p. 95; GIBERTI, H. C. E. Historia económica de la ganadería argentina, p. 39. Relatório do marquês de Lavradio, Vice-Rei do Brasil de 1769 a 1779, apresentado ao Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Sousa, seu sucessor. CARNAXIDE, Visconde. O Brasil na administração pombalina. São Paulo: CEN, 1940. p. 327328. (Brasiliana, 192) apud CÉSAR, Origens da economia gaúcha: o boi e o poder, p. 122.

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retas que adentravam nos sertões da Banda Oriental, desde Sacramento. Os couros eram exportados após o pagamento dos impostos, em Rio Grande, Montevidéu, Buenos Aires, e praticava-se ativo contrabando nas costas atlânticas da Banda Oriental.40 Segundo o historiador uruguaio Eduardo Palermo: “En 1770, el Cabildo de Montevideo denunciaba que los perjuicios a las estancias de españoles en la campaña eran producto de guaraníes misioneros desertores, que vivían como infieles, y que formaban cuadrillas con vagamundos, blancos, negros y mulatos vinculados en sus negocios a Río Pardo. Así mismo se cita a los Minuanes como principales actores en los asaltos a las estancias y contrabando de ganado: […] como prácticos de aquellas campañas, no solo sirven de baqueanos a cuantos gauderios se ocupan en el ilícito comercio del Río Pardo.”41 “Las tolderías de los Minuanes se ubicaban hacia finales del siglo 18 en las nacientes de los ríos Daymán, Arapey e Ibirapuitá, según los anotado por los vaqueros de Yapeyú, quienes agregan que serían unos mil individuos entre quienes se encuentran conviviendo guaraníes misioneros desertados, españoles, portugueses, mulatos y negros que se han incorporado a aquella nación.”42 A valorização do couro e a extinção dos gados chimarrãos determinaram a superação tendencial das operações corambreras, com a formação da fazenda chimarrã, onde o gado era costeado em propriedades já juridicamente delimitadas. A partir dos anos 1720, no litoral norte, no Estreito, nos campos de Viamão, nos campos de Vacaria, no vale do rio Jacuí, os primeiros sesmeiros marcavam e abatiam o gado alçado 40

41

42

Cf., por exemplo, CÉSAR, Guilhermino. O contrabando no Sul do Brasil. Caxias do Sul: EUCS; Porto Alegre: EST, 1978. PALERMO, Eduardo Ramón Lopez. Tierra esclavizada: el norte uruguaio em la primera mitad del siglo 19. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, 2008. p. 148. BRACCO, Diego. Charrúas, guenoas y guaraníes. Interacción y destrucción: indígenas en el Río de la Plata. Montevideo: Linardi y Risso, 2004. p. 329-330.

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nas suas propriedades sem divisas e nas proximidades das terras vizinhas. Expedições preavam animais sobretudo nas estâncias missioneiras, pelo couro ou para povoar as estâncias. Esses animais valiam essencialmente pelo couro, graxa e sebo e eram manejados precariamente. Em muitos casos, os novilhos sequer seriam castrados.43 Em 1780, em “Notícia particular do Continente do Rio Grande do Sul [...]”, Francisco Bettamio recomendava a necessidade de obrigar que os “açougues” e “estâncias particulares” não matassem vacas capazes de se reproduzir e que os “estancieiros” capassem os “touros”, quando das “marcações”.44 Reconquistado o porto de Rio Grande, em 1776, a partir dos anos 1780, com a gênese do charqueio em grande porte, superou-se o período do simples abate do gado pelo couro e de trato superficial do mesmo. A fazenda crioula, ou de rodeio, de área delimitada e apropriada de forma privada, passou a explorar os gados, inicialmente alçados, a seguir xucros e semixucros e, logo, domesticados, pelo couro, carne e subprodutos.45 A rentabilidade da atividade permaneceu baixa e a mão de obra disponível, cara – peões e cativos. Por longo período, a escassez de mão de obra foi realidade nas duas margens do rio da Prata.

43

44

45

GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 39; CÉSAR, Origens da economia gaúcha: o boi e o poder, p. 49 et seq. BETTAMIO, Sebastião Francisco. Notícia particular do continente do Rio Grande. In: FREITAS, O capitalismo pastoril, p. 183. Seguimos a historiografia platina na utilização da categoria fazenda crioula e de rodeio. Sobre a diferença do gado xucro e alçado, ver nota 61.

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Tabela 3 - Distribuição da propriedade rural por tamanho em 1785 no Rio Grande do Sul Hectares Menos de 20 De 20 a 50 De 50 a 100 De 100 a 200 De 200 a 500 De 500 a 1000 De1000 a 5000 De 5 mil a 10 mil De 10 mil a 20 mil Mais de 20 mil Total

Número estabelecim. 53 2 22 3 177 36 232 143 151 22 841

Área em hectares 111 86 1.531 397 46.379 24.380 626.980 1.173.941 2.029.435 1.145.628 5.048.868

% 0.0 0,0 0.03 0.01 0.93 0.48 12.43 23.26 40.20 22.69

Fonte: Relação dos moradores que tem campos e animais no Continente. SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul: século XVII. São Paulo: Companhia Editora Nacional; INL, Fundação Pró-Memória, 1984. p. 53. O RS possui aproximadamente 26 milhões e 800 mil hectares.

Fazenda crioula Em 1781, o engenheiro, cartógrafo e brigadeiro Francisco João Roscio registrou a apropriação geral das terras e a rusticidade das técnicas pastoris. Tal era a fome de terra dos grandes proprietários que “toda a campanha” estaria “deserta”, apesar de os “campos” haverem sido distribuídos. Ressaltou sobre a criação animal: “O modo de criação dos bois e cavalos também é tal qual o permite a natureza. Deixam-se crescer e ter produção nos campos sem mais cuidado que o de os perseguir todas as tardes a longo galope até os juntarem no meio de um grande campo, limpo de matos, onde costumam ter uma estaca ou pau [...] à roda do qual dormem os animais perseguidos da batida do campo. A este lugar chamam rodeio.” Ao propor perseguição aos animais “todas as tardes”, certamente não se referia ao mesmo rodeio, como veremos. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense...

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O brigadeiro refere-se, sobretudo, aos momentos anteriores às charqueadas, ao assinalar que os bois eram ainda mortos especialmente em razão do couro: “No tempo conveniente ao transporte matam todos aqueles bois que podem ter couros de valor de 12 até 16 tostões [...]: e a carne que não podem comer deixam no campo às aves de rapina [...].”46 Em Rio Grande do Sul: descrição física, histórica e econômica, Varela propôs que, no início do século 19, o Rio Grande do Sul exportaria uns trezentos mil couros, contando com uns cinco milhões de cabeças, subindo a produção para 750 mil couros, em média, em 1850-54, com uns onze milhões de animais. A estimativa da população bovina sulina para fins do século 19 é certamente excessiva.47 A domesticação dos bovinos constituiu o primeiro grande salto da fazenda chimarrã à crioula e de rodeio. A castração dos novilhos pacificava os rebanhos e favorecia o engorde dos capados. Bovinos inteiros ganham mais peso pelo efeito anabólico dos hormônios testiculares, mas levam mais tempo para acumular gordura; castrados, ganham menos peso, mas produzem melhores carcaças pela deposição de gordura. Em 1817, em Corografia brasílica, obra de síntese sobre o Brasil, o padre Aires de Casal, que não conhecia o Sul, propunha, certamente exagerando, que o gado manso pisotearia menos os pastos, aumentando a capacidade de sustento dos campos. “[...] de maneira, que o alimento que sustenta quatro mil cabeças de gado bravo, pode sustentar oito mil de manso, cuja carne é mais saborosa que a daquele.”48 O padre parece se referir ao maior povoamento de um campo, permitido pelo amansamento do gado. É certo que animal arisco e reativo engorda menos do que os costeados. 46

47

48

ROSCIO, Francisco João. Compêndio noticioso do continente do Rio Grande do Sul. Revista do IHGRS, ano 22, III e IV trim., n. 87, p. 29-56, 1942; FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980. p. 133, 135. Cf. VARELA, Rio Grande do Sul: descripção physica, histórica e econômica, p. 444. CASAL, Aires de, Corografia brasílica, p. 97.

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Inicialmente, nos pampas do Plata e do Rio Grande, os gados xucros e alçados eram mantidos nos limites imprecisos das estâncias, contidos de forma limitada por posteiros, peões e barreiras naturais (riachos, rios, florestas, etc.), quando entrava em crise a tendência dos bovinos ao sedentarismo, como veremos. Com destaque para a Argentina, muito cedo abriam-se enormes fossos, às vezes associados a cercas-vivas, para impedir o extravio dos animais. No Rio Grande do Sul, essa prática não foi desconhecida. Logo, os gados xucros e alçados foram domesticados através da formação de rodeios, como sugere o brigadeiro Roscio, já em 1781. Estudos recentes registram, em regiões do Rio Grande do Sul, o amansamento relativo e tardio dos animais mesmo em meados do século 19.49 Importante característica comportamental do gado vacum é aquerenciar-se pelo manejo diário ou semanal, pelo menos. Ou seja, se não lhe falta pasto e água, o gado come com os semelhantes, de dia e de noite, para, após as longas refeições, ruminar. Ao fim da ruminação, clímax de prazer e tranquilidade bovina, descansa deitado. Por terem trânsito intestinal mais rápido e um menor aproveitamento do bocado ingerido, os equinos comem durante tempo maior e, por essa razão, são mais ativos, dispersando-se com facilidade. Portanto, com recursos suficientes, os criadores forçavam os gados selvagens das fazendas a aquerenciar-se, em geral num local alto, plano e seco, denominado de “rodeio”, onde eram enterrados um ou mais troncos, para que se roçassem, principalmente na primavera, quando trocavam de pelo. Nos rodeios, os bovinos recebiam sal, que era, a um só tempo, complemento alimentar e chamariz para que se reunissem e pudessem ser revisados. Ainda hoje, essa estratégia quase universal de aquerencia-

49

FARINATI, Luís E. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil. 1825-65. Niterói: PPGH UFF, 2007. (doutorado).

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mento ou costeio do gado é empregada nas fazendas maiores do Rio Grande do Sul.

Formando os rodeios A constituição de um rodeio exigia uso intensivo e abundante de mão de obra, em geral em regiões distantes da sede da fazenda. Para tal, o gado chimarrão de uma região era reunido, se possível diariamente, e mantido, à noite, em local escolhido, para que se aquerenciasse a ele e se habituasse à presença humana. Nos rodeios missioneiros, à noite, acendiam-se fogueiras para que o gado não escapasse entre os vigias.50 Pela madrugada, o gado era deixado pastar e beber livremente, desde que não se afastasse muito do rodeio, sendo reunido de novo para ali ser mantido durante a noite.51 Os custos da prática eram altos, pois a domesticação do gado de uma fazenda inteira podia exigir meses de trabalho. Parece ter sido comum que os fazendeiros formassem, um por um, os rodeios, conforme os recursos disponíveis, contratando eventualmente peões para tal fim.52 Após aquerenciado, o gado mantinha-se no rodeio, podendo ser manejado por número menor de trabalhadores, se possível, semanal, quinzenal ou mensalmente. O gado domesticado já atendia aos gritos dos peões. Os rodeios eram batizados com nomes próprios – rodeio da Figueira, rodeio de Dentro, rodeio do Arroio, etc. Nas grandes fazendas, havia os “rodeios gerais”, obrigatórios, realizados, segundo Severino de Sá Brito, no Rio Grande do Sul, três vezes ao ano, para “marcar, beneficiar, tropear”. Nessas ocasiões, todos os 50

51 52

CARDIEL, José. Costumbres de los Guaraníes. Historia del Paraguay desde 1747 hasta 1767. Madrid: General de Vitoriano Suáres, 1918. p. 483, apud CÉSAR, G. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder, p. 25. Cf. GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 52. Cf. SBARRA, Noel H. Historia del alambrado en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1964. p. 62-63.

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animais de um rodeio eram meticulosamente reunidos por diversos cativos campeiros, posteiros e peões, da fazenda ou contratados para tal, por um maior salário.53 Em meados do século 20, no município de Rio Pardo, os rodeios realizavamse quinzenalmente, segundo parece, em razão do ciclo vital da mosca varejeira.54 Nas fazendas menores, de uma ou duas léguas quadradas, podia-se reunir todo o gado em um só rodeio geral. Quanto maior a fazenda, mais rodeios ela tinha. Em 1820, SaintHilaire visitou a imensa fazenda da Boa Vista, que, com seis mil animais, tinha seis rodeios, talvez de mil animais cada, reunidos de oito em oito dias.55 O inglês William Mac Cann, que visitou o interior da Argentina a cavalo nos anos anteriores a 1845, afirmava que eram desaconselháveis rodeios com mais de três mil animais. Referia-se possivelmente ao número total de animais de uma estância. Lembrava que, por maior que fossem os rodeios, os animais “se subdividen instintivamente en pequeños rebaños, de unos 50 a 150, que se mantienen siempre juntos”, chamados de punta (ponta), formados por seus “propios toros, vacas y terneros”.56 Em 1880, o francês Louis Couty, que visitou e estudou os rebanhos rio-grandenses, anotava que as “pequenas tropas” – pontas – dos rodeios teriam de cem a cento e cinquenta animais.57 Na primeira metade do século 20, o número de animais por rodeio teria, possivelmente, caído um pouco. Em 1917-19, a fazenda do Capão da Fonte, no município de Rio Pardo, com uns 4.300 hectares e uns 1.750 bovinos, possuía 53

54 55

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57

BRITO, Severino de Sá. Trabalhos e costumes dos gaúchos. Porto Alegre: ERUS, [s. d.]. p. 55 et seq. Cf. depoimento do Dr. Carlos Dario Daudt, julho de 2007. SAINT-HILAIRE, Auguste de. [1779-1853]. Viagem ao Rio Grande do Sul: 1820-21. Porto Alegre; Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ediusp, 1974. p. 28. MAC CANN, William. Viaje a caballo por las provincias argentinas. Buenos Aires: Hyspamerica, 1986. p. 207. COUTY, Luis. A erva mate e o charque. 2. ed. Pelotas: Seiva, 2000. [1. ed., 1880]. p. 166.

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dois rodeios: o “rodeio do Capivari” reunia 910 bovinos e o “da Porta”, 613.58

Grandes despesas A documentação histórica sulina é rica na descrição dos rodeios. Porém, em geral, não faz distinção entre a formação dos rodeios, sua manutenção, e os rodeios gerais, que, como assinalado, exigiam gastos elevados, havendo, portanto, criadores que os limitavam ao mínimo possível. Em 1808, quando a produção saladeira se estabilizara, o contratador lusitano Manoel de Magalhães registrou que boa parte dos fazendeiros ainda não realizava rodeios sistematicamente, em razão das “grandes despesas” necessárias: “[...] há muitas fazendas, todas alçadas, e a maior parte dos fazendeiros, ainda os mais ricos, apenas têm a quarta parte do gado manso [...] todo o mais é tão bravo como os touros de Portugal que vão aos curros [...].”59 Ele se referia, possivelmente, à formação-manutenção dos rodeios. Em sua Corografia brasílica, em 1817, Aires de Casal refere-se aos rodeios sulinos: “Em cada fazenda há uma colina, ou terreno dos mais elevados determinado com o nome de rodeio, plano na sumidade, e com capacidade para receber todo [sic] o gado, onde se ajunta as vezes que se julga necessário. Para isto distribuídos os pastores [sic] a cavalo em torno do gado, começam a bradar-lhe rodeio, rodeio, a cujas vozes o gado marcha a trote para o rodeio em fileira, e dividido em mandas de 50 a 100 cabeças, segundo o número que pastam.” O sacerdote descrevia a prática a partir de informação de segunda mão, daí, talvez, a sugestão da reunião necessária de 58

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Cf. Caderno de notas n. 1 de João Luiz Gomes, 1918-1920. Arquivo pessoal de Mário Maestri. MAGALHÃES, Manoel Antônio. Almanak da vila de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da capitania do Rio Grande do Sul. FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril, p. 79.

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todo o gado em um rodeio geral e a indeterminação da reunião dos rodeios.60 Em 1820, Saint-Hilaire, que escrevia o que via, sugeria reais avanços nas técnicas pastoris, na vigência da mesma criação extensiva, em relação ao descrito por Manoel de Magalhães. Referia-se, porém, às fazendas do litoral, de ocupação mais antiga: “A pecuária nesta região pouco trabalho dá. O gado é deixado, à lei da natureza, nos pastos [...]. O único cuidado [...] é acostumar os animais a ver homens e a entender seus gritos, a fim de que [...] deixem-se marcar [...] e possam ser laçados os que se destinarem ao corte e à castração. [...] o gado é reunido, de tempos em tempos, em determinado local, onde fica durante alguns dias [...]. A essa prática chamam ‘fazer rodeio’ [...].” Registrou que nas estâncias devia-se “contar cerca de metade em machos” e que “as vacas” pariam aos “dois anos”, o que é certamente um exagero.61 Em 1820-1830, em muitas fazendas praticavam-se os rodeios para o amansamento dos gados e os rodeios gerais, para capação, marcação, separação, dos animais por categoria animal. Então, os animais gordos – “prontos” ou “terminados” – e os descartados do processo reprodutivo eram enviados para as charqueadas. Nas fazendas, estaqueava-se apenas o couro dos gados abatidos para consumo, mortos em acidentes, por doenças, etc. Tratava-se de real avanço em relação às fazendas chimarrãs. Desde cedo, houve real pressão das autoridades pelo ordenamento do pastoreio. Já em 1739, o comandante de Rio Grande ordenava aos “estancieiros” do “Estreito até a Guarda do Chuí” que marcassem o “gado e cavalgadura”, sob pena de perdê-los. Temos registros de marcas e sinais em Viamão, em 1767. Em novembro de 1791 exigiu-se, outra vez, que os cria60 61

CASAL, Corografia brasílica, p. 96. SAINT-HILAIRE, A. de. [1779-1853]. Viagem ao Rio Grande do Sul: 18201821. Porto Alegre: Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ediusp, 1974. p. 28 e 117.

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dores marcassem os gados. Nas câmaras municipais, existia livro para o registro das marcas.62 Em épocas de fazendas com apenas divisórias naturais, os gados dispersavam-se, sobretudo quando sobrevinham secas e tempestades, dependendo da recuperação da marca do proprietário.

Costumes rio-gandenses Em Costumes do Rio Grande do Sul, de 1883, João Cezimbra Jacques registra que as práticas pastoris não tinham evoluído muito em relação às das décadas anteriores, à exceção do quase desaparecimento do gado bravio e da cura das bicheiras (miíases) dos animais, produzidas pela deposição dos ovos das moscas varejeiras, que podiam levar à morte se não tratadas. Em fins dos anos 1870, aplicavam-se no Rio Grande do Sul “sais arsênicos” à ferida.63 Mais tarde, generalizou-se o uso da creolina, aplicado na ferida com esterco seco ou um tufo de lã ovina. O carrapato era importante problema da criação pastoril, segundo registrou Joseph Hörmeyer, que visitou o Rio Grande do Sul na metade do século 19.64 Cezimbra Jacques lembrava que os “trabalhos nas estâncias” eram feitos sobretudo no “rodeio”, utilizados para “marcar o gado, castrar os touros e potros, tosar as éguas, apartar novilhos e vacas para tropas que vão para as charqueadas e os açougues, curar os animais e contá-los”. Agregava que, nos Campos de Cima da Serra, “serve mais o rodeio para dar sal aos gados”, nos anos 1880, quando já iniciara o cercamento perimetral das fazendas com cercas de arame. Para essa época, Cezimbra Jacques propõe que “os gados nas 62

63 64

Anais do Arquivo Histórico do RS. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, 1977. v. 1. p. 95; XAVIER, Paulo. Regulamentação do uso de marca. Correio do Povo, Suplemento Rural, 13 out. 1978. p. 5. COUTY, A erva mate e o charque, p. 175. HÖRMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850: descrição da província do Rio Grande do Sul no Brasil meridional. D. C. Luzzatto: Eduni-Sul, 1986. p. 59.

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estâncias” estão “quase todos costeados com uma tal educação, que basta os peões” “gritarem dos diferentes pontos do fundo dos campos para que os rodeios se cerrem”. Para ele, “rara” era “a estância em que ainda há gado alçado”.65 Em 1897, Varela registrava que o rodeio não mudara muito ao finalizar o século, e que, em algumas fazendas, havia ainda gado alçado. Os rebanhos viveriam “à solta, nas várzeas e coxilhas, e só de quando em quando é reunido em pontos determinados”, nos rodeios. Agregava: “Estâncias há (poucas hoje) em que centenas de reses vivem alçadas, isto é, não vêm a rodeio e se conservam fugitivas, embrenhando-se nos matos ao pressentirem o menor movimento da parte dos trabalhadores das fazendas.”66 Severino de Sá Brito conheceu, menino, as práticas pastoril do final do século 19. Em Trabalhos e costumes dos gaúchos, publicado em 1928, registrou que, apesar do aquerenciamento dos gados, havia animais vacuns e cavalares renitentes, que, chamados ao rodeio, escondiam-se nos matos, apesar dos mosquitos e mutucas, ou investiam, sobretudo no caso de touros e bois, contra os cavaleiros. Esses animais rebeldes que desorganizavam os rebanhos eram perseguidos e, não raro, mortos, até mesmo com tiros de fuzil.67 Estudando o município de Alegrete, Luis Farinati sugere diferenciação do gado xucro e alçado, que parece descrever a diferença entre os animais semidomados e selvagens, assinalada por Severino de Sá Brito.68 Referindo-se aos anos 1830, Nicolau Dreys assinalou que os animais eram marcados e castrados nos rodeios semes65

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JACQUES, João Cezimbra. Costumes do Rio Grande do Sul: precedido de uma ligeira descrição física e de uma noção histórica. Porto Alegre: Erus, 1979. p. 63-66. VARELA, Rio Grande do Sul: descripção physica, histórica e econômica, p. 446. BRITO, Severino de Sá. Trabalhos e costumes dos gaúchos. Porto Alegre: Erus, [s. d.]. p. 50 et seq. FARINATI, Confins meridionais [...]. Op. cit., p. 293.

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trais.69 Portanto, reduziu de três para dois os rodeios gerais, propostos por Sá Brito, para fins do século 19. De abril a julho e de setembro a outubro, capavam-se os touros de mais de três anos.70 Para Cezimbra Jacques, a “castração dos touros” era “feita em geral em tempo frio, o que convém muito para que não se arruíne o corte resultante dessa operação. Para fazê-la, pára-se o rodeio, aparta-se os touritos de três a quatro anos, leva-se-os para a mangueira, ou mesmo no rodeio [...].” Após a operação, o “touro” tomava o “nome de novilho”. Cezimbra Jacques tem já como normal a existência de mangueiras nas fazendas.71 Em fins dos anos 1870, respeitava-se comumente a proporção um touro para vinte a sessenta vacas. A moderna zootecnia ensina que um touro para sessenta vacas esgota o animal reprodutor, limitando-se as concepções. Louis Couty descreve a castração em fins dos anos 1870: “Esta ablação dos testículos é, porém, muito rápida; o touro laçado nem bem foi laçado [e lançado] por terra, que o peão já, com sua faca comum longa e forte, faz uma incisão nas bolsas, cortou os cordões e tirou os testículos [...].”72 A faca de castração, mais curta, possuía a ponta arredondada.

Divisórias naturais, valos, alambrado Nos anos 1830, Nicolau Dreys lembrou a grande extensão das fazendas sulinas ao destacar suas divisas naturais. Por mais de meio século, não seriam cercadas com arame: “Estância perfeita, e que mais segurança oferece aos interesses do especulador, é aquela que é cercada por limites natu69

70 71 72

DREYS, Nicolau. Notícias descritiva da província do Rio Grande do Sul de São Pedro do Sul. 4. ed. Porto Alegre: Nova Dimensão; Edipucrs, 1990. (1. ed. 1839). p. 94. Idem, p. 95-96. JACQUES, Costumes do Rio Grande do Sul, p. 66. Cf. COUTY, A erva mate e o charque, p. 169, 171.

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rais, como morros íngremes, matos impenetráveis, e melhor que tudo, rios profundos, pois dali não pode sair o gado vagabundo, e mais resguardada está a fazenda das depredações dos roubadores, e mesmo dos viajantes.”73 Acidentes geográficos ou “marcos”, em geral de pedra, registravam os limites das propriedades.74 Em 1883, João Cezimbra Jacques referiu-se ao uso, nas décadas anteriores, de “encerras” para controlar o gado selvagem: “Era então preciso fazer-se nos rincões as encerras, que constituíam em aproveitar-se a curva natural de um rio inacessível e fazer-se aí uma grande cerca com abertura tal que facilitasse bem a entrada; assim preparada a encerra, saíam os camponeses [sic] como para pararem rodeio e levantavam o gado de todas as partes do campo a toda disparada, fazendo cada ponta de gado convergir para essa espécie de cerca.”75 Antes do advento do arame liso e a seguir farpado, segundo parece introduzidos no Rio Grande desde 1875 e 1885, respectivamente, como veremos, era habitual a construção, para deter os gados, de fossos profundos e de cercas de pedra (taipas de pedra) e de vegetais espinhosos. Ao lado dos valos construíam-se também cercas vivas espessas. Em 1780, Bettamio propôs que se fizessem no Sul cercas de “pedra, de tijolo, de arvoredo que pegue, como figueiras bravas, corticeiras, salso, e limão, de tunas, ou gerumbebas, e de caraguatás [...].”76 Essas cercas custosas eram feitas sobretudo para proteger as plantações e na construção de bretes, encerras e corredores. Inventário de fazenda pastoril de Rio Pardo, de 1805, registra, além de “casa coberta de telhas”, “arvoredos cercando horta e lavoura”.77 73

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DREYS, Notícias descritiva da província do Rio Grande do Sul de São Pedro do Sul, 1990. (1. ed. 1839). p. 94. Cf. CALDRE E FIÃO, José Antônio do Vale. A divina pastora: romance. 2. ed. Porto Alegre: RBS, 1992. [1. ed. 1847]. JACQUES, Costumes do Rio Grande do Sul, p. 65. BETTAMIO, Sebastião Francisco. Notícia particular do continente do Rio Grande. FREITAS, O capitalismo pastoril, p. 158. DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul (17801889). Dissertação (Mestrado) - UPF, Passo Fundo, 2008. p. 87.

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Na Argentina, enormes propriedades eram protegidas perimetralmente por fossos, cavados por trabalhadores assalariados especializados, pagos por mês ou produção.78 Nas fazendas das Pombas e do Capão da Fonte, no município de Rio Pardo, seriam vistos ainda nos anos 1940 vestígios de fossos cavados, na forma de trapézio invertido, com 1,5 m de profundidade, e 2 m de largura.79 O historiador e arquiteto Nery da Silva encontrou vestígios de mangueira cercada por fosso, de 1,30 de profundidade e 1,80 de largura, na fazenda dos Vida, no Planalto Médio.80

Baixa produtividade Era baixa a produtividade-rentabilidade da fazenda crioula sulina. O inglês John Luccok viveu no Brasil de 1808 a 1818. Em viagem ao Sul, referindo-se às regiões próximas a Pelotas, afirmou que a “cada três léguas quadradas [treze mil hectares] atribuem-se quatro ou cinco mil cabeças de gado, seis homens e uns cem cavalos [...]”. Portanto, de 2,6 a 3,3 ha por animal e de 834 a 667 animais por trabalhador.81 Em 1817, o padre Aires de Casal, em Corografia brasílica, propunha que, em “terreno plano”, de três léguas, criavam-se de quatro a cinco mil animais, ou seja, uns três hectares por animal.82 Nos anos 1820, no agrobonaerense, estimava-se que uma “suerte de estância” (1.875 hectares) sustentava entre oitocentos a mil animais – um animal por de 2,3 a 1,9 ha.83 Dreys 78

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82 83

Cf. SBARRA, Noel H. Historia del alambrado en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1964. Entrevista a Carlos Dario Daudt, em sua residência em Porto Alegre, em 1º de julho de 2007. Cf. SILVA, op. cit., p. 100. LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. [séc. 19]. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ediusp, 1975. p. 144. CASAL, Aires, Corografia..., p. 96. Cf. GIBERTI, Horácio C. E. Historia económica de la ganadería argentina, p. 47.

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afirmava que em cada légua de sesmaria, ou seja, légua quadrada (4.356 ha), seriam criados de 1.500-2.000 cabeças de gado, uma lotação de 2,2 a 2,9 ha por cabeça. Nos anos 1845, o inglês William Mac Cann, referindo-se à Argentina, lembrava que essa relação variava segundo a qualidade da terra. No sul da província de Buenos Aires, de terras menos ricas, era necessária uma légua para mil animais. Porém, no norte da mesma região, de terras superiores, uma légua mantinha de duas a três mil cabeças de gado vacum, uns 450 cavalos e de quatro a cinco mil ovelhas.84 Em 1861, fazendeiro de Cerro Largo (Uruguai) propunha que “una legua cuadrada de nuestros buenos terrenos no puede contener más de 2.000 reses de procreo, cuya renta anual no excede de 150 novillos” – uma lotação de 2,2 ha por animais e uma valorização de 7,5%.85 Em 1865, o conde D’Eu registrou que, nos arredores de Rio Pardo, calculava-se “que uma légua quadrada” poderia “sustentar 3.000 reses de gado vacum”, ou seja 1,5 ha por animal.86 Em trabalho de 1880, Louis Couty propunha que uma légua quadrada suportaria de dois mil a dois mil e quinhentos animais,87 de 1,7 a 2,2 ha por animais. Em 1883, Cezimbra Jacques anotava: “Calculase aproximadamente que nestes estabelecimentos pode-se cria folgadamente numa légua quadrada de campo, de 1.500 a 2.000 cabeças de gado” – de 2,2 a 2,9 hectares por animal.88 Estudos monográficos precisarão a taxa média de povoação bovina no Sul. Porém, os dados assinalados sugerem que, através do século 19, essa taxa, com leve aumento, deve ter variado em torno dos 2,5 ha por animal. Na fazenda do Capão 84

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MAC CANN, William. Viaje a caballo por las provincias argentinas. Buenos Aires: Hyspampamérica, 1986. p. 207. CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia de la ganadería en el Uruguay. Montevideo: Banco de Crédito, 1972. p. 54 e 60. D’EU, Conde. Viagem militar ao Rio Grande o Sul. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. p. 38. Cf. COUTY, Luis. A erva mate e o charque. 2. ed. Pelotas: Seiva, 2000. p. 192. JACQUES, Costumes..., p. 62.

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da Fonte, em 1917-1919, a taxa de povoamento era de 2,5 ha por animal vacum. Esse longo equilíbrio registrava a mesma capacidade de alimentação animal do pasto nativo, o que não significa que a produtividade pastoril não evoluíra, quanto à mão de obra necessária para trabalhar os rebanhos, à taxa de procriação, à idade de venda dos animais, etc., elementos que exigem pesquisas muito mais detalhadas.

Desfrute animal Em 1897, Alfredo Varela afirmava que, no início do século 19, “quem possuía mil reses vendia sessenta”, um aproveitamento anual de seis por cento.89 Vimos que a historiografia argentina especializada propõe que, em início do século 19, de oitocentos a mil animais produziriam anualmente umas noventa cabeças de gado, uma taxa de desfrute de uns nove por cento.90 A baixa rentabilidade se devia ao tempo de criação e à idade de abate. Saint-Hilaire registrou que o gado era “marcado com um ano de idade, para ser vendido com 3 ao 5 anos”,91 uma avaliação talvez otimista. Nos anos 1830, Dreys propunha que apenas os “novilhos” de “cinco anos para cima” eram vendidos às charqueadas.92 Então, os couros pesados acresciam valor aos animais. Em 1820, no início de sua viagem pelo Sul, Saint-Hilaire registrou: “A maior parte dos estancieiros afirmam [sic] ser possível um criador vender todos os anos uma quinta parte de seu gado [...]. Outros são acordes em que esse número poderá subir a um quarto e até a um terço.” Mais tarde, deparou-se com criador que propôs não vender mais que “um décimo dos 89 90

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Cf. VARELA, Rio Grande do Sul, p. 444. Cf. GIBERTI, Horácio C. E. Historia económica de la ganadería argentina, p. 47. SAINT-HILAIRE, A. de. (1779-1853). Viagem ao Rio Grande do Sul: 1820-21, p. 90. DREYS, Notícias descritiva da província do Rio Grande do Sul de São Pedro do Sul, p. 95-96.

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rebanhos” e que, seu sogro, em Rio Grande, com “6 a 7.000” cabeças, disporia de, no máximo, umas “400”, anualmente. Pouco mais de seis por cento.93 Saint-Hilaire, ao assistir, pela primeira vez a um rodeio, anotou, do hospedeiro: “[...] pode-se marcar, anualmente, um quarto do rebanho existente. Quando um estancieiro possui 4.000 bovinos pode marcar anualmente 1.000 novos, donde saem 100 para os dizimeiros. Dos 900 restantes, as vacas (cerca de 450) ocuparão os lugares das que são abatidas ou morrem. Dos 450 machos são deduzidos 50 que morrem de moléstias naturais, ou por acidentes de castração. Poderá então [...] vender anualmente 400 bois ou um décimo de seu rebanho normal, cálculo que difere extremamente, a menos, dos fornecidos pelos agricultores [sic] de Porto Alegre. Mas é de crer-se que seja errônea a conta desses últimos, pois também não confere com as dos criadores espanhóis, possuidores de excelentes pastagens.”94 Em Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil, de início do século 19, Antônio José Gonçalves Chaves, opulento charqueador de Pelotas, era parcimonioso no cálculo: “As estâncias que têm 10.000 reses costumam vender 600 bois [...].”95 Ou seja, seis por cento. Para Domingos José de Almeida, ministro das Finanças farroupilha, nos anos 1840, estância de nove léguas (39.204 hectares), com vinte trabalhadores e 18 mil animais – novecentos animais por peão –, produzia 4.050 reses. Dos 2.025 animais possíveis de serem encaminhados ao mercado, em “três anos” [sic], deveria-se descontar 325 novilhos, mortos devido aos cachorros chimarrões, bicheiras, capações, cobras

93 94 95

SAINT-HILAIRE, Viagem ao RS: 1820-1821, p. 47, 90. Idem, p. 117. CHAVES, José Antônio Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. 4. ed. São Leopoldo: EdiUnisinos, 2004. p. 247.

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etc. Portanto, o criador venderia uns dez por cento de seus rebanhos.96

Variação significativa Segundo dados de sete criadores, dos 3º e 4º distritos de Pelotas, no primeiro semestre de 1858, também registrados por Berenice Corsetti, o criador de maior produtividade necessitava de 14,52 ha para marcar um novilho e, o de menos, 22,6 ha. Em números globais, em 10,5 léguas de campo seriam marcados, por ano, 2.510 animais – uma média de 18,22 ha por animal marcado, que registra uma importante variação de produtividade no mesmo município.97 Louis Couty apresenta de dez a oito por cento como a taxa normal de desfrute, no Uruguai e no sul do Rio Grande, em fins dos anos 1870, podendo, em “zonas restritas”, atingir de quatorze e até vinte por cento.98 No trabalho citado de 1897, Varela defendia que o “desfrute” crescera em relação ao início do século, sendo de “duzentas em cada mil rezes” (20%). Porém, para ele, a qualidade dos animais era baixa, não produzindo os animais abatidos mais de 150 kg de carne, além do couro, graxa e sebo.99 Para Manuel Antônio de Magalhães, noventa anos antes, o gado de corte sulino alcançaria de 117,6 a 147 kg.100 Possivelmente, os vinte por cento assinalados por Varela nasciam da recuperação do desfrute após ano ou anos atípicos, de baixa reprodução, devido a secas ou outros 96

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98 99 100

CÂMARA, A. M Corrêa da. Ensaios estatísticos da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul. Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico da Província de S. Pedro, Porto Alegre: Typ. Correio do Sul, ano IV, v. IV, n. 1, 1863. CORESTTI, Berenice. “Estudo da charqueada escravista gaúcha [...]”. Op. cit. Cf. CORESTTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no séc. XIX. Rio de Janeiro: UFF, 1983. p. 104. (Dissertação de mestrado, p. 80). Cf. COUTY, A erva..., p. 172. Cf. VARELA, Rio Grande do Sul, p. 444. Cf. MAGALHÃES, Manoel Antônio. Almanak da vila de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da capitania do Rio Grande do Sul. FREITAS, O capitalismo pastoril, p. 78.

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eventos. Em 1917-19, a fazenda do Capão da Fonte vendeu uns vinte por cento de seus bovinos, além de alguns cavalos e ovelhas. Não sabemos se a taxa de desfrute registrava ano excepcional ou avanço na produtividade. Secas, invernos rigorosos, epizootias, guerras, etc. intervinham na produtividade dos rebanhos, através dos anos e no mesmo ano, nas diversas regiões do Rio Grande. Os dados parciais reunidos sugerem variação do desfrute de seis e dez por cento, no início do século 19, para um máximo de vinte por cento, nos anos excepcionais, no início do século 20, quando começaram a generalizar-se a construção de açudes, banheiros carrapaticidas, invernadas, etc. Em 1920, o major João Luiz Gomes anotou em sua caderneta a compras de arame farpado e pagamento do “aramador” equivalente a mais de vinte meses do salário de um peão.101

A mão de obra e a evolução da produção pastoril no Sul Uma das grandes razões da baixa produtividade pastoril no Sul e no Plata foi a escassez de trabalhadores. Nos séculos 18 e 19, no Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, os trabalhadores livres e escravizados eram escassos e caros. Em 1808, Manoel Antônio de Magalhães reclamava do alto preço do cativo. Dizia que, pelos anos 1780, era vendido pela metade do preço então vigente. Para ele, pelo preço corrente da época, “a pobreza [sic] jamais” compraria um cativo.102 Os manifestos das importações de trabalhadores escravizados, por Rio Grande, em 1816-1820, indicam tendência à valorização

101 102

Cf. Caderno, op. cit. MAGALHÃES, Manoel Antônio. Almanak da vila de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da capitania do Rio Grande do Sul. FREITAS, O capitalismo pastoril, p. 79-80.

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de preço que vai de uns 120$000 mil-réis, no primeiro ano, a 200$000, no último – sessenta por cento em quatro anos.103 Em 1831-2, no Rio Grande, o preço médio do negro novo era de 350$000.104 Após o fim do tráfico, em 1850, o trabalhador escravizado valia um patrimônio! Em 1868, o anúncio de venda de charqueada, em Santa Isabel, oferecia cativo homem, de 32 anos, por 1:200$000 mil-réis. O valor de quatrocentos cavalos ou seiscentas éguas ou cento e cinquenta bois prontos – 3$000, 2$000 e 8$000 mil-réis, respectivamente.105 A produção anual de fazenda com uns mil e quinhentos animais! A evolução do preço da alforria do cativo, de 1830 a 1880, em Pelotas, registra também essa valorização que acompanhou, de perto, a evolução dos preços na região cafeicultora de Rio Claro, São Paulo. Tabela 4 - Preço Médio Alforrias Pelotas (RS) e de Cativos em Rio Claro (SP) Década 1830

Preços

Anos

Preço médio

341$666

1840

527$620

1843-1847

550$000

1850

1.853$333

1853-1857

1.177$500

1860

1.459.375

1863-1867

1:817$000

1870

1.153$700

1873-1877

2:076$826

1880

919$173

1883-1887

926$795

FONTE: ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueada. Porto Alegre: PUCRS, 1995. Tabela 3.14; DEAN, W. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura. 1820-192. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 55.

103

104

105

CHAVES, Antônio Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1978. p. 142-169. “Mapa dos gêneros e mercadorias importadas na Província do Rio Grande de São Pedro do Sul [...]”. Órgãos Fazendários/Alfândega de São José do Norte, 1832. AHRGS. SIMÃO, A. R. F. Resistência e acomodação: aspectos da vida servil na cidade de Pelotas. Primeira metade do séc. XIX. Porto Alegre: PUC, 1993. (Dissertação de mestrado). p. 36. Atalaia do Sul, Jaguarão, 5 nov. 1868.

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Salários elevados O salário do peão era elevado em relação ao preço do gado e à produtividade das fazendas. Em 1737-9, o salário dos peões era de 4$000/4$800 mil-réis e a paga dos “domadores”, 6$400 mil-réis. Nesse então, quando um couro podia valer mais do que o animal vivo, devido ao trabalho de extração, uma vaca custava uns 240 réis! Em 1751, um cavalo custava de 2$560 a 4 mil-réis e o peão recebia uns 5$120 mil-réis!106 Em 1781, o couro de um boi valia de 12 a 16 tostões (1$200 a 1$600 mil-réis) e o salário do trabalhador desqualificado 3$000 mil-réis – dois couros mensais! Um marinheiro, perceberia 5$000 mil-réis mensais.107 Em 1780, o salário mensal do peão era 4$000 mil-réis – o preço de uma mula domada!108 Em 1776, pouco antes do desenvolvimento da prática charqueadora, o novilho valeria 1$000 mil-réis.109 Em 1805, inventário de fazenda de Rio Pardo assinala “5$000 destinado ao pagamento – possivelmente mensal – de um peão domador”.110 Em 1820, Saint-Hilaire reclamou do fato de “não se” alugar “um peão por menos de 9 a 10 pesos por mês” e falou, para as Missões, de salários de oito patacas por peão.111 Então, o peso patacão valia 2$000 milréis. Portanto, salário mensal de uns 18$000 mil-réis. Porém, a pataca valia 320 réis, o que daria salário mensal de 2$560 mil-réis. 106

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108

109

110

111

Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. v. 1. Porto Alegre: IEL/DAC/ SEC, 1977. p. 53, 58, 70, 274; GIBERTI, Horácio C. E. Historia económica de la ganadería argentina, p. 34. ROSCIO, op. cit.; FREITAS. O capitalismo pastoril, p. 135; ROSSIO, op. cit. FREITAS, op. cit., p. 184 et seq. ROSCIO, Francisco João. Compendio noticioso do continente do Rio Grande do Sulde São Pedro. RIHGRS, ano 22, III e IV trim., n. 87, p. 271, 285, 1942. COSTA, Albino. A indústria do xarque e a creação de gado no Brasil e na América do Sul: elementos de estatística e synopse industrial offerecidos ao Congresso Nacional da Republica. Rio de Janeiro: Sed., 1905. p. 21. DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul. (17801889). Dissertação (Mestrado) - UPF, Passo Fundo, nov. 2008. p. 94. SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 96 e 123.

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Em 1832, o conde de Piratini determinava sobre a administração da sua estância da Música, em Santana de Livramento/Dom Pedrito, que o “peão Américo”, com “salário” mensal “extraordinário” de 8$000, fosse despedido, salvo se ficasse por 6$400.112 Então, o “boi de corte” valia 8$000 milréis.113 Um peão mensalista receberia doze bois anuais, a produção de propriedade pastoril de trezentos hectares! Nos anos 1840, Domingos José de Almeida propôs que o salário de peão de estância fosse de 20$000 mil-réis. Acreditamos que se referia a peões contratados para as atividades de rodeio, e não mensalistas.114 Em 1841, quando o trabalhador livre escasseava ainda mais, o salário anual do capataz da estância da Música era de 600$000 mil-réis (“moeda fraca”) – 50$000 mil-réis mensais.115 Domingos José de Almeida propôs o mesmo salário para capataz de estância de nove léguas,116 ou seja, o valor de um cativo crioulo! Segundo o salário oferecido pelo conde de Piratini, em 1832 seria necessário de 4,6 anos de salário de um peão para comprar um cativo – uns 350$000. Segundo o citado por José de Almeida, o soldo de um ano e seis meses de um peão pagaria o cativo. No primeiro caso, o peão receberia, em média, quase um boi gordo por mês! No segundo caso, quase três! O primeiro dado sugere que, mesmo nos anos 1830, era difícil adquirir cativo treinado nas lides pastoris e que o salário do peão pesava muito, impossibilitando as fazendas 112

113

114

115 116

CÉSAR, Guilhermino. O conde de Piratini e a estância da Música: administração de um latifúndio rio-grandense em 1832. Porto Alegre: EST, IEL; Caxias do Sul: EdiUCS, 1978. p. 44. SOARES, Sebastião Ferreira. [1820-1887]. Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Ipea/Inpes, 1977. p. 177. CÂMARA, A. M. Corrêa da. Ensaios estatísticos da província de S. Pedro do RS. CORESTTI, B. Estudo da charqueada escravista gaúcha no séc. XIX. Op. cit., p. 104. CÉSAR, Guilhermino. O conde de Piratini e a estância da Música, p. 69. CÂMARA, A. M. Corrêa da. Ensaios estatísticos da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul. CORESTTI, B. Estudo da charqueada escravista gaúcha no séc. XIX. Op. cit., p. 104.

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menores de contratá-lo. Como assinalamos, o salário proposto por Domingos José de Almeida parece-nos corresponder aos peões contratados episodicamente para os rodeios gerais, o que ocorria igualmente na Argentina. O historiador Carlos A. Mayo lembra sobre as estâncias bonaerenses de 1740-1820: “Los salarios del trabajador que se contrataba por corto tiempo para realizar tareas estacionales o temporarias eran por lo general más altos que los de aquellos que servían por mes y por períodos más largos.”117

Exploração pastoril extensiva A exploração pastoril extensiva era a exploração mais rentável. Após a limpeza dos campos dos nativos, a exploração extensiva aproveitava as possibilidades de expansão vegetativa dos rebanhos, com um mínimo de trabalhadores e, portanto, de gastos com salários e manutenção dos trabalhadores. Fora atividades como o aquerenciamento, ronda, marcação, castração, etc., o trabalho humano pouco intervinha na produção pastoril. A renda do estancieiro provinha do monopólio da terra e, secundariamente, da exploração do trabalho. Em 1819, Saint-Hilaire assinalou, exagerando: “Não é raro encontrar estâncias com renda de 10 a 40 mil cruzados. Como quase não há despesas a fazer, tal fortuna tende a aumentar em rápida progressão.”118 Em Memórias sobre el estado rural del Río de la Plata y otros informes, o militar e engenheiro espanhol Feliz de Azara propôs que um capataz e dez peões se ocupariam de dez mil animais nas rústicas estâncias de fins do século 18 – novecentos animais por trabalhador.119 John

117

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Cf. MAYO, Carlos A. Estancia y sociedad en La Pampa: 1740-1820. 2. ed. Buenos Aires: Biblos, 2004. p. 129. SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 57. Apud GIBERTI, Horácio C. E. Historia económica de la ganadería argentina, p. 68.

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Luccok propôs, em início do 19, que um peão trabalhasse uns 750 animais.120 Em Corografia brasílica, de 1817, o padre Aires de Casal propunha que para fazenda de treze mil hectares e cinco mil animais bastavam “seis homens com cem cavalos ao menos”. Um trabalhador para 833 animais.121 Não sabemos se as duas avaliações incluíam o capataz, os posteiros, os familiares do proprietário. Em 1820, Saint-Hilaire falou de fazenda com seis mil animais – uns quinze mil hectares – com capataz e dez peões. Uma média de um peão para 546 animais e 1.364 ha.122 Sobre o Rio Grande dos anos 1830, Arsène Isabelle propôs um trabalhador para mil animais.123 Anos mais tarde, Domingos José de Almeida proporia um peão para novecentos bois e 1.960 ha. A necessidade de trabalhadores teria evoluído através dos tempos. Nas fazendas chimarrãs seriam menores os cuidados dos gados explorados sobretudo pelos couros. Logo se acresceram, com destaque para a segunda metade do século 19. Em fins do século, o início da difusão de bretes, mangueiras, invernadas, etc., em virtude da difusão das cercas de arame, facilitou as tarefas pastoris, ainda que os trabalhos tenham se intensificado. Certamente, variava a relação mão de obra/animais nas fazendas. Sugerimos para o século 19, como hipótese de trabalho, de oitocentos a quinhentos animais por trabalhador permanente, com decréscimo no final do século. Contam-se como trabalhadores os capatazes, peões, cativos, fazendeiros e familiares envolvidos na produção. Em 1918-20, a fazenda Capão da Fonte teria uns quatro trabalhadores permanentes, fora os diaristas, uns 450 bovinos por

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121 122 123

LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. (séc. 19). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. p. 144. Cf. CASAL, Aires de, Coeografia..., p. 96. SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 123. Apud CÉSAR, Origens..., p. 109.

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trabalhador.124 Mesmo esta última relação registrava produção fortemente extensiva. Em meados do século 19, em 20 ha trabalhavam de cinco a mais adultos na agricultura colonialcamponesa.

Poucos cuidados A atividade pastoril latifundiário-mercantil assentouse sobre baixo nível tecnológico e excepcionais condições de procriação natural dos rebanhos. A maior parte da renda do fazendeiro não nascia da extração de sobretrabalho dos poucos trabalhadores, mas da apropriação de parte do trabalho excedente produzido em outras esferas sociais. A renda da economia pastoril era essencialmente uma renda fundiária, produzida em razão do monopólio da terra. Não há sentido em definir como camponeses a criadores ou agricultores, proprietários de algumas centenas de hectares, percebendo já renda proveniente da propriedade da terra, ainda que não substancial.125 O charqueador vivia sobretudo da renda do trabalho, explorando em alguns casos mais de cem cativos. Era insignificante a renda da terra, em virtude da pequena extensão dos terrenos.126 O caráter diferencial da renda na charqueada e fazendas pastoris, que podiam pertencer ao mesmo proprietário, explica as distintas condições gerais de existência assinaladas por Saint-Hilaire entre cativos charqueadores e pastoris: “Afirmei que nesta Capitania os negros são tratados com bondade e que os brancos com eles se familiarizam, mais 124 125

126

Cf. Caderno de notas, n. 1 [...]. Op. cit. Cf. KAUTSKY, Karl. A questão agrária. São Paulo: Proposta Editorial, 1980. p. 289. Cf. ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas. (1780-1888). Dissertação (Mestrado) - PUC, Porto Alegre, 1994; GUTIERREZ, Ester. Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPEL, 1993; MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada escravista e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST/US, 1984.

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que em outros pontos do País. Referia-me aos escravos das estâncias, que são em pequeno número; nas xarqueadas a coisa muda de figura [...].”127 Em uma fazenda pastoril, podiam-se assalariar peões ou comprar cativos. Em teoria, a primeira opção era mais vantajosa. O peão era remunerado após trabalhar por um mês. Havia peões remunerados plenamente apenas quando pediam as contas. O cativo exigia pesada imobilização de capital antes do início das atividades, recuperada apenas após um, dois ou mais anos de trabalho. O peão era despedido quando do refluxo da produção. Quando se acidentava ou morria, não causava perdas ao fazendeiro. O mesmo não ocorria com o cativo.128 Tanto o peão como o cativo recebiam moradia, comida, erva-mate e, às vezes, fumo e, comumente, peças de roupa, como parte da remuneração.

Trabalhadores hábeis Os missioneiros e nativos pampianos, assim como os gaúchos e seus descendentes, não necessitavam ser treinados nas lides pastoris, bastante complexas. Ao viajar pelas Missões, Saint-Hilaire assinalou: “Os estancieiros desta região, não tendo escravos, aproveitam a imigração dos índios para conseguir alguns que possam servir de peões. Os guaranis são, é voz geral, muito indicados para esse serviço.”129 Ainda em 1883, João Cezimbra Jacques registrava que os “gaúchos e peões” eram “oriundos geralmente de indígenas tapes e minuanos”, especializados nas lides campeiras.130

127 128

129 130

SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 73. Cf. Lei tendencial da “inversão inicial da aquisição do escravo”. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5. ed. ver. e ampl. São Paulo: Ática, 1988. p. 165-204. SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 109. JACQUES. Costumes..., p. 66.

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Apesar dessas condicionantes gerais, a documentação primária registra forte presença de trabalhadores escravizados nas fazendas, estabelecendo, como vimos, um paradoxo aparente. Citamos o caso de Alegrete em 1859. Em 1857, das 568 estâncias de São Borja, nas Missões, no noroeste da província, região sem tradição escravista, trabalhariam 171 capatazes, 339 peões e 153 cativos.131 Veremos que comumente a presença do cativo em atividades pastoris era imprescindível, mesmo existindo peões dispostos a se empregarem. Vimos que a presença do cativo na fazenda não significa que trabalhasse sobretudo em funções pastoris como campeiro. No Sul, a atividade criatória dominou até fins do século 19. Ao lado das estâncias, tínhamos propriedades dedicadas à agricultura mercantil, com destaque para as chácaras nas periferias urbanas, onde o cativo labutava duramente. Em 1820, Saint-Hilaire visitou propriedade próxima a Rio Grande com pomar explorado por doze cativos que plantavam também legumes, mão de obra necessária para tratar uns seis mil animais em treze mil hectares! Nos anos 1830, Arsène Isabelle referiu-se ao cinturão de chácaras que cercavam as cidades sulinas.132 Em 1865, o conde D´Eu anotou o caráter triste de Caçapava e sua risonha “cintura de chácaras com pomares de laranjeiras”.133

Apenas agricultura Havia propriedades dominantemente agrícolas. No litoral norte, Saint-Hilaire visitou estância com “algumas casas de negros”. A “cultura dominante nas cercanias” eram 131

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Cf. ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: as transformações no Rio Grande do Sulrural do século 19. Tese (Doutorado) - UFF, Rio de Janeiro, 1994. p. 137 e 144. Cf. ISABELLE, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 29, 49, 57; SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 83. D’EU, Conde. (1842-1922). Viagem militar ao Rio Grande do Sul, p. 50.

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a “mandioca” e o “trigo”. A terra era “lavrada a arado e semeada a mão”, exigindo certamente muito trabalho.134 Essas propriedades criavam comumente algum gado, pela carne, couro, transporte, venda. Apesar da dificuldade da associação da plantação à criação, muitas propriedades dedicavam-se às duas atividades. Saint-Hilaire registrou a proteção das plantações: “Devido ao gado solto nos campos há necessidade de cercar todas as culturas. [...] fazem ao redor das lavouras uma vala profunda tendo ao lado das plantações moitas de verdura [...].”135 Em 1833-4, Isabelle anotava: “O pouco de cultura que se faz nas chácaras, fazendas e em redor das estâncias, consiste unicamente em plantar mandioca, semear milho, feijão, arroz e alguns legumes [...]. O jardim, ou o campo cultivado, acha-se mais comumente colocado no meio de um mato a fim de preservá-lo da invasão do gado [...].” Com o termo “mato” talvez se referisse a “cerca viva”.136 As fazendas de criação dominante comportavam tarefas tradicionalmente dos cativos. Era difícil que não possuíssem um arvoredo e uma plantação de subsistência, com abóbora, batata-doce, cana-de-açúcar, feijão, mandioca, melancia, milho, moganga, moranga, trigo, etc. Em 1832, o conde de Piratini instruiu que se plantasse “bastante milho, feijão, abóboras e hortaliça e algum trigo” e que os posteiros, auxiliados por um cativo, tivessem hortas. Ele permitia que os “escravos” plantassem e criassem “galinhas, tendo milho para as sustentar”. Os peões não gozavam da facilidade.137 Fazendeiros permitiam que cativos marcassem algumas rezes.138

134 135 136

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138

SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 23. Idem, op. cit., p. 81. ISABELLE, Arsène. (1807-1888). Viagem ao Rio Grande do Sul: 1833-1834, p. 44. CÉSAR, Guilhermino. O conde de Piratini e a estância da Música, p. 40-43. Cf. COUTY, A erva..., p. 171.

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Em 1865, o conde D’Eu registrou a pobreza da fazenda sulina, possivelmente a comparando à cafeicultora: “Não posso facilmente imaginar existência mais triste que a destes estancieiros, perdidos no meio daqueles imensos campos. As suas casas, que nunca têm senão andar térreo, são de taipa, apenas caiadas, com tetos de madeira; às vezes sem assoalho e sem janelas [...]! Por detrás da casa há geralmente um espaço com algumas laranjeiras [...], outro em que cresce o feijão e o trigo necessários para o consumo da família [...]. Além da família do proprietário há sempre nestas residências quatro ou cinco negros e negras para o serviço [...].”139 A produção e beneficiamento de cereais e de charque; a conservação dos caminhos; o abastecimento em água e lenha; o fabrico de tecidos rústicos, de sapatos, de velas, de artefatos em couro; os trabalhos em madeira; a condução de carretas; o estaqueamento dos couros, etc. eram atividades privilegiadamente dos trabalhadores escravizados. Referindo-se a propriedades menores mistas, Saint-Hilaire registrou o trabalho dos cativos nos tarefas agrícolas mais penosas e o emprego da mão de obra familiar nas atividades pastoris: “No distrito de Santa Maria as terras são, em geral, muito divididas [...]. Todos os proprietários cultivam a terra, ao mesmo tempo que se dedicam à criação de gado. O dono da casa e seus filhos cuidam do gado e os negros tratam da plantação [...].”140 Os inventários post-mortem fornecem o número de trabalhadores escravizados e de herdeiros, sendo, porém, impossível saber quando os últimos se ocupavam produtivamente.

139 140

D’EU, Conde. Viagem militar ao..., p. 47. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao RS: 1820-1821, p. 179.

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Tarefas pesadas A abertura de valas divisórias e a construção das cercas (taipas) de pedra eram pesadas tarefas realizadas pelos cativos. Em 1820, em arroio del Sauce, na Banda Oriental, SaintHilaire registrou a função e a mão de obra utilizada nessas construções: “As pessoas pobres, sem escravos, não cavam fossos em redor de seus campos [agrícolas], o que os obriga a fazer ronda, dia e noite, para afastarem os animais, e [...] salvarem as colheitas.”141 Na Argentina, as valas utilizadas para cercar as propriedades eram realizadas por trabalhadores livres, comumente escoceses e irlandeses.142 O serviço doméstico era também tarefa habitual de cativos e nativos: cocheiros, cozinheiros, mucamas, pajens, passadeiras, porteiros, etc. Nos anos 1830, Arsene Isabelle assinalava que nas fazendas sulinas havia comumente uma “casa dos hóspedes”, onde o viajante era servido por “um negro ou índio, sem se comunicar mais com a família do fazendeiro [...]”.143 Além de trabalhar nas atividades servis mais penosas, o cativo ocupava-se como campeiro, sobretudo nas fazendas maiores. Nesse caso, sua condição de existência melhorava, relativamente, em relação ao cativo assenzalado, assumindo caráter conteúdo tendencialmente patriarcal.144 Então – até certo ponto – a fuga do cativo perdia relativamente atração. Do outro lado da fronteira, como campeiro, viveria as mesmas condições gerais de produção, porém como homem livre e recebendo salário. Se pego ao fugir, seria castigado e, talvez, vendido ou transferido para atividades mais duras. Cativos 141

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143 144

SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Trad. de A. M. da Costa. 2. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. p. 135. Cf. SBARRA, Historia del alambrado..., p. 17; MAC CANN, William. Viaje a caballo por las provincias argentinas, p. 22. ISABELLE, Arsène. Viagem..., p. 35. Cf. MAESTRI, Mário. O escravismo antigo. 15. ed. São Paulo: Atual, 1994.

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campeiros fugiram habitualmente e organizaram, no mínimo, uma sublevação, em Piratini, em 1866, na qual todos eram cativos crioulos.145 No Planalto, após a Abolição, os cativos ocupados na agricultura desertaram das fazendas, permanecendo apenas os “negros campeiros, laçadores, peleadores e domandores”, que continuaram nas atividades como peões e capatazes assalariados.146 Ainda na segunda metade do século 20, um grande número de peões e capatazes empregados nas fazendas pastoris do Rio Grande do Sul era afro-descendente. As melhores condições de vida do cativo campeiro, em virtude das determinações necessárias da produção, foram registradas pela historiografia platina. Carlos A. Mayo lembra sobre as estâncias bonaerenses dos anos 1740-1820: “Los esclavos de las estancias rioplatenses no estaban sometidos a los rigores y ritmos extenuantes que agobiaban a los que trabajaban en la plantaciones de azúcar: la ganadería en aquellos campos sin cercos imponía condiciones de trabajo más tolerables.”147

Cativo campeiro Em 1832, na estância da Música, trabalhavam o capataz, uns quatro posteiros e número indeterminado de peões e cativos. Um dos posteiros era o índio Felipe e os cativos seriam, no mínimo, sete, entre eles, Mateus Campeiro. Durante a revolta farroupilha, quando havia “dificuldade” “em ter peões”, pois eram arrolados nas forças armadas farroupilhas e escaparam do Sul em grande número, a fazenda possuía quatro 145

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Cf. “Mappa dos presos que frequentarão a cadeia civil da villa de Piratiny, durante o anno de 1865, com declaração de nome, crime e data das entradas e saídas na prisão. Piratini, 3 de janeiro de 1866”. AHRGS. Documentação judiciária, Piratini, 1866. GOMES, Aristides de Moraes. Fundação e evolução das estância serranas. Cruz Alta: A. Dal Forno, 1966. p. 344. Apud ZARTH, P. A. História agrária do Planalto Gaúcho. 1850-1920. Ijuí: Edijuí, 1997. p. 117. Cf. MAYO, Estancia..., p. 199.

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roceiros e seis campeiros escravizados.148 Na documentação estudada, temos referências a cativos trabalhando no cuidado dos rebanhos, permanente ou episodicamente. As primeiras referências à criação animal estão relacionadas com a mão de obra servil. Em 1737, na petição de concessão de “légua de terra”, Manuel de Barros Pereira afirma que pretende povoá-la com “dois negros, cavalos e éguas”.149 Em junho de 1838, quando do terceiro sítio de Porto Alegre, Bento Manuel notificou que “arrebanhara” nas cercanias da capital “500 reses”, “200 cavalos”, “um rebanho de ovelhas” e “14 negros que cuidavam do gado”.150 Os inventários de estancieiros registram a existência de cativos nas propriedades, muitos deles sob a rubrica de “cativos campeiros”. Em levantamento de inventários dos anos 1765-1825, de todo o Rio Grande, Helen Osório assinala que, entre os poucos mais de três mil cativos rurais estudados, apenas cinco por cento aparecem como “campeiros” ou “domadores”. Um número pequeno que se deve à incapacidade da documentação estudada de registrar o fenômeno. Tomada ao pé da letra, sugeriria a quase inexistência de cativos campeiros.151 Na lista de 894 homens e cinquenta mulheres escravizados que teriam fugido durante a Revolução Farroupilha para o Uruguai, estudada por Silmei Petiz, dos 274 que tinham profissão registrada, 178 eram campeiros; dezoito, domadores; quatro, “cavaleiros” e três, “ginetes”. Portanto, 23% dos fugidos relacionavam-se com o pastoreio – 65% dos arrolados 148

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150

151

Cf. PETIZ, Buscando a liberdade...; CÉSAR, O conde de Piratini e a estância da Música, p. 66. Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, 1977. p. 45. v. 1. Ofício de 16/06, de Aldeia dos Anjos, AHRS, doc. n. 7737 da Coleção Varela. Apud FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre sitiada: um capítulo da Revolta Farroupilha. 1836-1840. Porto Alegre: Sulina, 2000. p. 85. OSÓRIO, Helen. Campeiros e domadores: escravos da pecuária sulista, séc. XVIII. II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. [exemplar xerocopiado]. p. 9.

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com profissões. Os números elevados referem-se aos anos em que o meridião sulino foi convulsionado pela guerra, ensejando melhores condições de fuga. Propunha-se que os cativos campeiros se adaptassem bem à infantaria farroupilha, sendo melhor tratados. O mesmo não ocorreria com cativos “lavradores”, na infantaria, ensejando que se evadissem mais frequentemente.152 Dos 1.264 cativos de ambos os sexos arrolados por Setembrino Dal Bosco ao estudar as fazendas de Rio Pardo, Bagé e Vacaria, de 1819 a 1888, 13,7% haviam sido registrados como campeiros e 0,6%, como domadores. A proporção de cativos campeiros sobe para 41% se contarmos apenas os cativos com profissões declaradas e para 46% se subtrairmos do rol das profissões os cativos domésticos e cozinheiros – 103. Considerando que, no geral, havia 62% homens para apenas 38% de mulheres nas fazendas, podemos perceber a importância da atividade campeira para essa população escravizada. Havia 73 cativos e cativas assinalados como roceiros/lavradores – segunda atividade mais numerosa.153 Nery Auler da Silva identificou nos inventários de seis fazendas do Planalto Médio, de 1820 a 1888, 72 cativos, 42% mulheres e 58% homens – doze cativos por fazenda. Um número elevado, em parte explicado pela enorme dimensão de algumas fazendas e pelas produções agrícola e ervateira, em geral associadas à criação. Dos onze cativos do sexo masculino com ocupação assinalada, sete foram registrados como “campeiros”: 17% dos cativos homens; 64% das profissões relacionadas, números próximos aos obtidos na lista de fugas durante a Revolução Farroupilha.154 152

153

154

PETIZ, Buscando..., p. 142; Correspondência do presidente da província de São Pedro ao ministro e secretário de Estado dos Negócios das Justiça, 4.1.1839. Arquivo Nacional, série IJ(1) 816. DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul (17801889). Dissertação (Mestrado) - UPF, Passo Fundo, nov. 2008. p. 135. SILVA, Antigas fazendas..., p. 219-220.

O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense...

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Maria Beatriz Eifert arrolou 113 cativos em estâncias estudadas de Soledade em 1867-83. Uma população relativamente jovem e equilibrada, quanto ao sexo – 5,4 cativos por fazenda. Os raros cativos que tiveram a função assinalada nos inventários, 7% do total, eram “campeiros” – sete – e “domador” – um. Dois campeiros e um domador tinham entre 40 e 45 anos, idades avançadas para trabalhadores escravizados; três outros, entre 18 e 23. Há um cativo de oito anos assinalado como campeiro, talvez erro de registro, visto o preço elevado.155

O cativo africano e o pastoreio O registro de cativos campeiros na documentação do 18 e 19 coloca dois importantes problemas, que apenas começam a ser discutidos. Qual o sentido da designação de um cativo como “campeiro” e a relação da mão de obra escravizada com a livre nas fazendas pastoris Sul, do ponto de vista numérico, comportamental, etc. Abordaremos, de forma exploratória a primeira questão. Apesar de conhecer a criação bovina, o africano desconhecia o pastoreio extensivo montado. Ignorado em regiões da África, o cavalo era, em geral, monopólio das elites guerreiras. O aprendizado das lides campeiras é longo, complexo e realizado desde a infância, em geral a partir dos oito anos. Apesar de a documentação registrar diversos africanos como “cativos campeiros”, estudos sistemáticos comprovarão, possivelmente, que os cativos nascidos ou criados nas fazendas foram utilizados privilegiadamente nas lides pastoris, como peões, na acepção plena do termo, o que não quer dizer que não houvesse africanos nessas práticas, especialmente em re-

155

EIFERT, Marcas..., p. 71-77.

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giões de constituição recente da produção pastoril, onde chegaram a dominar.156 Em virtude de sua complexidade, a utilização de africanos nas tarefas pastoris não era processo equivalente à introdução nas práticas da agricultura de exportação, realizadas com um enxadão, no eito, em equipe, supervisionadas por feitor. Na África subsaariana, a mulher dedicava-se privilegiadamente às práticas horticultoras e o jovem, na infância e na primeira juventude, labutava ao lado da mãe na policultura, servindo-se para tal da enxada, em geral de cabo curto.157 Aprender a cavalgar com maestria para bolear ou laçar animal, em campos sem divisas, para derrubá-lo, apealá-lo, marcá-lo, castrá-lo, domá-lo, carneá-lo, etc., exige treinamento que requer anos. Ainda hoje, a cena de peão perseguindo animal, à rédea solta, em uma quase simbiose com o montaria, aparentemente despreocupado com o terreno, à espera do momento para lançar o laço, define a complexidade das tarefas pastoris, agravadas, então, pelos animais bravios e campos abertos. Para formar-se domador, o aprendizado era mais longo e perigoso.

Em campos abertos Em fins dos anos 1830, em Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do sul do Brasil, Daniel P. Kidder descrevia o ato de laçar: “Os cavalos são admiravelmente ensinados para a caça [sic] ao gado selvagem, e, quando o vaqueiro atira o laço, eles sabem exatamente o que devem fazer. Às vezes quando a rês é bravia, o cavaleiro esbarra o cavalo 156

157

Cf. ARINATI, Luís E. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil. 1825-1865. Niterói: PPGH UFF, 2007. (doutorado). p. 306 et passim. MAESTRI, Mário; FIABANI, Adelmir. O mato, a roça e a enxada: a horticultura quilombola no Brasil escravista. In: MOTTA, Márcia; ZARTH, Paulo (Org.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história. São Paulo: Hucitec/Unesp, 2008. v. 1.

O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense...

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e salta enquanto o boi continua correndo até esticar o laço de couro cru. O cavalo vira-se e firma-se no chão para esperar o golpe que o animal em disparada há-de fatalmente dar. O boi que não espera a parada repentina, esparrama-se no chão. Levantando-se novamente, atira-se contra o cavalo par chifrá-lo, mas, este, em disparada mantém a distância até que o boi, convicto de que nada poderá fazer, tenta novamente fugir e novo golpe do laço dá-lhe com os costados em terra. Assim, vencido pela fadiga, o pobre animal entrega-se inteiramente aos seus captores.”158 As tarefas de um peão exigiam trabalho especializado e força física para o manejo, a cavalo e a pé, dos animais. Nesse sentido, os trabalhos pastoris eram – e ainda são – exercidos privilegiadamente por jovens e homens adultos, que, ao envelhecerem, comumente, assumiam as funções de capatazes ou se afastavam do exercício pleno dessas funções. Um africano que chegasse ao Sul com quatorze anos dificilmente se transformaria em peão, na acepção do termo, antes dos vinte. A dificuldade do aprendizado da arte era acrescida pelos problemas postos pela língua e pela habituação à nova situação. Uma realidade com a qual os criadores se defrontaram, sobretudo nos primeiros momentos e em regiões de ocupação recente, onde escasseava ainda mais a mão de obra livre e era necessário constituir, por compra, a força de trabalho pastoril. Então, cativos novos, jovens e adultos, seriam destinados a essas tarefas, envolvendo-se em aprendizado que se cumpriria, possivelmente, com o passar dos anos, de forma mais ou menos completa. Nos 150 cativos registrados em inventários de fazendas de Rio Pardo, de 1781 a 1809, estudados por Setembrino Dal Bosco, 41,4% foram assinalados como africanos 158

KIDDER, Daniel P. [1815-1891]. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do sul do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980. p. 249; LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. [séc. 19]. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. p. 137.

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ou novos, enquanto os pardos, mulatos crioulos e cabras, somados, perfaziam 38% – para 20,6% não informados.159 Nesse momento de expansão das fazendas da região, seria importante o número de cativos africanos nas estâncias. Na documentação, cativos crioulos de quatro, seis e oito anos arrolados como “campeiros” sugere que eram destinados e envolvidos em diversos níveis nos múltiplos trabalhos dos campos, das tarefas mais simples às mais complexas. Eles não podem, de forma sumária, ser identificados a verdadeiros campeiros, mesmo quando eram assim designados. Em 1883, Cezimbra Jacques anotava em Costumes do Rio Grande do Sul que os estancieiros tinham à disposição “um capataz e um certo número de peões ou, em lugar destes, os escravos”. Ao referir os trabalhos pastoris, assinala que, “ao raiar do sol”, quando o “rodeio” estava “cerrado”, “crianças de seis a dez anos de idade, montadas a cavalo”, percorriam ao “redor” do gado, impedindo que dispersasse. Depoente assinalou o mesmo em meados do século 20 no município de Rio Pardo.160 Cezimbra Jacques registra a idade inicial do aprendizado das atividades pastoris por crianças livres e cativas, nas quais seriam incorporadas plenamente a partir de uns quatorze anos, após cinco e mais anos de prática, conforme a constituição física e o aprendizado. A descrição explicita o sentido dos registros de crianças como “cativos campeiros”. Possivelmente, quando necessário, africanos seriam utilizados como mão de obra de apoio, preparando-se para as atividades pastoris propriamente ditas.161 Nas fazendas consolidadas, crianças cativas seriam destinadas, desde a tenra idade, para essas tarefas, uma realidade favorecida pela possível expansão demográfica dos escravizados das fazendas pastoris. Essas realidades serão elucidadas por investigações mais detalhadas. 159

160 161

DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul (17801889). Dissertação (Mestrado) - UPF, Passo Fundo, nov. 2008. p. 104. Depoimento do Dr. Carlos Dario Daudt, julho de 2007. JACQUES, Costumes..., p. 64.

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265

Expansão demográfica A provável expansão vegetativa da população escravizada das fazendas sulinas é fenômeno ainda não elucidado pela historiografia sulina. Trata-se de hipótese já avançada pelo historiador Décio Freitas: “Essa peculiaridade da escravatura gaúcha autoriza suscitar a hipótese da ocorrência de um processo de crescimento natural da população escrava.”162 É crível que a expansão vegetativa, nas fazendas pastoris, dos cativos novos, comprados antes de 1850, tenha garantido as necessidades gerais de cativos do Sul após o fim do tráfico transatlântico, com destaque para a atividade criatória, até o início do processo de desescravização tendencial dos latifúndios pastoris, segundo parece, a partir de 1870. Temos dados estatísticos mais precisos para 1859, quando o tráfico negreiro internacional interrompera-se havia dez anos e ocorria já forte tendência ao equilíbrio sexual entre a população cativa. Nessa época, as crianças escravizadas de até dez anos tinham nascido, fora exceções desprezíveis, no Brasil de mães crioulas ou africanas. Se compararmos os dados demográficos desse ano de cinco municípios rio-grandenses – dois “urbanizados” e três de tradição pastoril –, notaremos que todos os municípios apresentam desequilíbrio da população servil de até dez anos em relação à população geral. Porém, Porto Alegre e, sobretudo, Pelotas encontravam-se em desvantagem em relação a municípios de tradição pastoril, como Alegrete e Bagé, ou agrícola-pastoril, como Passo Fundo.

162

FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril, p. 39.

266

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Tabela 5 -

Crianças escravizadas em relação à população total – 1859 – (até dez anos)

Município Pelotas: Alegrete: Passo Fundo: Porto Alegre: Bagé

Idade M F M F M F M F M F

-10 (1) 492 476 411 361 263 242 945 996 632 610

Total (2) 968

35-45 (3) 688 264/38% 772 131 146/111.5% 505 133 101/76% 1.941 912 687/75.3% 1.242 269 228/84.8%

Total (4) 3.095 1.693 1.339 1.186 947 752 4.556 3.861 2105 1911

Geral (5) 4.788

%de 2/5 20,2

2.525

30.6

1.699

29.7

8.417

23.0

4.016

30.9

Fonte: Censos do RS. 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1986, p. 69. Crianças escravizadas até 10 anos; (3) Cativos 35-45 anos; (4) Total cativos segundo sexo; (5) Total cativos.

Apesar da extensão dos municípios em questão, os dados sugerem forte desequilíbrio da natalidade servil entre essas regiões, possivelmente motivado pela diferente inserção produtiva da mão de obra servil. Em Porto Alegre e, sobretudo, em Pelotas, centro da produção charqueadora, eram altas as taxas de masculinidade da população servil. Nas charqueadas pelotenses, em 1780-1888 variava de 82,6 a 87,8.163 Em 1859, no município de Pelotas, a proporção da população livre de até dez anos, em relação à população livre total, era de 31,2%; portanto, superior à de crianças escravizadas, de apenas 20,2%. E em Porto Alegre, de 31,8 contra 23,0%. Em São Leopoldo, município de imigração alemã, a proporção era de 40%, denotando uma população muito jovem e em forte expansão demográfica, superior ao próprio crescimento da população livre do resto da província.164 163

164

Cf. ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Idade, sexo, ocupação e nacionalidade dos escravos charqueadores (1780-1888). MAESTRI, Mário (Org.). I Simpósio Gaúcho sobre a Escravidão. ESTUDOS IBERO-AMERICANOS, Porto Alegre: PUCRS, v. XVI, n. 1 e 2, 1990. p. 29 et seq. Censos do RS. 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1986. p. 66.

O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense...

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Em Bagé, a proporção de crianças escravizadas de menos de dez anos em relação à população servil – 30,9% – era próxima à de Porto Alegre e Pelotas para a população livre – 31,8% e 31,2%. Esses dados sugerem que parte da população servil sulina não alçava a reproduzir-se; parte alcançava a fazê-lo, sem, contudo, alcançar os níveis médios de expansão demográfica da população livre. Esses dados, muito parciais, sugerem também a fortíssima desvantagem da população servil em relação à população colonial-camponesa no relativo à expansão demográfica, o que explica o sucessivo decréscimo relativo da população afro-descendente do Sul. Se corretas, as tendências assinaladas explicariam a expansão demográfica sulina absoluta mesmo após 1850, processo que teria prosseguido até 1881, sem que se fizesse recurso ao tráfico interprovincial. Os municípios de economia pastoril teriam se autoabastecido e abastecido municípios sulinos e brasileiros importadores de cativos. Assim, a expansão vegetativa da população escravizada seria uma das fontes de desenvolvimento da mão de obra dos latifúndios pastoris, que teriam produzido, junto com os gados, cativos.

Trabalhadores livres e escravizados O estudo dos inventários registra, inegavelmente, a existência de cativos campeiros, mas não permite certamente a avaliação do número de trabalhadores escravizados utilizados nessas atividades, principalmente porque tudo indica que, apesar do registro prioritário dos cativos com tais habilidades, outros trabalhadores escravizados envolvidos – plena ou parcialmente nessas atividades – não tiveram suas funções registradas nesses documentos. A utilização do cativo no pastoreio era prática tendencialmente sistêmica, ainda que não fosse necessária, ou seja, os cativos campeiros eram praticamente imprescindíveis nas 268

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grandes estâncias e, em geral, raros ou inexistentes nas fazendas pastoris menores. Apesar de não termos, ainda, estudos monográficos exaustivos, é crível que, no cômputo total, dominassem os homens livres – peões, capatazes, proprietários, filhos e familiares de proprietários. Domínio numérico desequilibrado pela maior contribuição individual de trabalho do cativo. Uma realidade que, porém, apenas estudos sistemáticos esclarecerão. Em 1830, Nicolau Dreys ressaltou, assinalando a importância da mão de obra livre e escravizada na produção pastoril: “A estância é servida ordinariamente por um capataz, e por peões, debaixo da direção daquele; às vezes os peões são negros escravos, outras vezes e mais comumente são índios ou gaúchos assalariados […].” Destaque-se que Dreys compreendia o “peão” como atividade profissional que podia ser realizada por um cativo campeiro ou um gaúcho.165 O gaúcho surgiu no Prata, originalmente, sobretudo como mestiço de europeu, pampiano, guarani, africano, etc., ou como o nativo destribalizado, vivendo como seminômades em campos abertos ainda que não raro apropriados privadamente, em contato intermitente com a sociedade ibérica. As explicações etimológicas mais comuns é que gaúcho seria originado da palavra andina quíchua huachu ou huakcho – “órfão”, “vagabundo”, “errante”, “sem raízes”. O nome não possuía feminino, pois não havia “gaúcha”. Sua mulher era a china. Em araucano, falado no sul do Chile e na Argentina pelos mapuches, huaso descreve o “habitante do campo” e gatchu, “amigo” ou “parceiro”. Sobretudo no Uruguai e na Argentina, mas também no Sul, o gaúcho incorporou-se, permanente e episodicamente, à fazenda pastoril como peão. Não devemos, porém, confundir os dois termos, pois o primeiro é atinente, originalmente, sobretudo, a uma forma de existir e produzir; o segundo, a uma 165

DREYS, Nicolau. Notícias descritiva..., p. 94

O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense...

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profissão. Nem todos os peões eram gaúchos e nem sempre o gaúcho trabalhava como peão. Um dos personagens do romance O corsário, de Caldre e Fião, registra de forma clara essa distinção, em meados do 19. “– Eu tenho um fiel peão em quem muito confio: é um bravo e guapo gaúcho.”166 Em fins do 19, os campos começaram a ser cercados. Então, o cavaleiro vago transformou-se em intruso e o gaúcho foi “apealado” pela necessidade econômica à fazenda, confundindo-se também etimologicamente com o peão.

Trabalhadores livres Os inventários post-mortem do 19, sobretudo das grandes fazendas pastoris de produção estruturada, assinalam número pequeno, mas significativo de cativos. Os trabalhadores livres eventualmente empregados nessas fazendas não eram arrolados por essa documentação. Pequenas propriedades pastoris, onde trabalhavam apenas o proprietário e familiares, não foram objeto de inventários. Mesmo em fazendas maiores, comumente o estancieiro e seus filhos ocupavam-se com o gado, ao lado dos cativos e peões. Vimos que na Depressão Central, Saint-Hilaire assinalou que o fazendeiro e seus os filhos trabalhavam com o gado e os cativos nas plantações.167 No caso de Alegrete, lembrado por Paulo Xavier, das 391 estâncias citadas, 267 não tinham capatazes, sendo possivelmente administradas pelos proprietários, familiares ou arrendatários. No cômputo dos trabalhadores não se encontram também os filhos homens dos proprietários que trabalhavam nas estâncias. Se estimarmos 1,5 proprietário/familiar masculino adulto por fazenda – uma estimativa tímida –, teremos 166

167

CALDRE E FIÃO, José Antônio do Vale. O corsário: romance rio-grandense. (1. ed. 1849) Porto Alegre: Movimento; Brasília: IEL, 1979. p. 134. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 179.

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um total de 870 homens livres – proprietários/familiares; capatazes e peões – para 527 trabalhadores escravizados. Essa estimativa é conservadora, pois a família do fazendeiro era geralmente mais numerosa do que a dos livre-pobres. Havia também os trabalhadores livres contratados habitualmente por alguns dias e meses. Como parte dos cativos das fazendas não desempenhava tarefas pastoris, é crível que a proporção de fazendeiros/ familiares/peões empregados nos campos fosse próxima. Somando-se os homens livres estimados e os cativos, teríamos 1.396,5 trabalhadores, o que daria, em relação ao rebanho do município, uns 550 animais por trabalhador, número próximo ao sugerido por Domingos José de Almeida. E se as fazendas com cativos tivessem, em média, 2,5 trabalhadores escravizados, umas 180 fazendas não teriam cativos! Se realizarmos o mesmo cálculo para os dados de São Borja, em 1857, apresentados por Paulo Zarth – 171 capatazes, 339 peões e 153 cativos – seria diluída ainda mais a participação do cativo nas fazendas pastoris daquela região. Em Marcas da escravidão nas fazendas pastoris de Soledade (1867-1883), a historiadora Maria Beatriz Eifert computou a relação entre os cativos e membros da família proprietária nas estâncias estudadas, constatando que os primeiros superavam em quase sessenta por cento os segundos, sem computar os eventuais capatazes, peões e posteiros livres. Entretanto, devemos lembrar que muitos herdeiros já não faziam mais parte do núcleo familiar estrito dos inventariados. Na época em questão, a região já venderia possivelmente cativos para a cafeicultura.168 Os dados de Setembrino dal Bosco para estâncias de Rio Pardo, onde havia charqueadas e olarias, em data bastante anterior, 1781-1809, apontam forte domínio numérico dos cativos (150) sobre a família escravista (86).169 168 169

Cf. EIFERT, Marcas..., p. 79. DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul (17801889). Dissertação (Mestrado) - UPF, Passo Fundo, nov. 2008. p. 105.

O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense...

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Para as fazendas do norte do Uruguai, há censos registrando, de forma mais sistemática, a população escravizada e livre nas regiões pastoris, onde era importante o número de fazendas de rio-grandenses. Censo de três partidos de regiões rurais dos atuais departamento de Tacuarembó e Rivera, no norte do Uruguai, de janeiro-março de 1824, estudados por Eduardo Palermo, aponta a mesma proporção entre a população livre, em torno de 70%, e escravizada, aproximadamente 30%, nos três partidos. Os dados sugerem 137 fazendas, com 130 famílias residentes. A rubrica de “agregados”, possivelmente registrando os peões livres e assemelhados, correspondia a apenas 17%, com um forte desequilíbrio entre os três partidos – 1%, 34%, 13%, o que pode se dever a erro de registro. Se desconhecermos o desequilíbrio de tamanho das propriedades e de distribuição dos cativos entre elas, assim como as unidades produtivas sem cativos – trinta por cento –, poderemos pensar como população média normal para as estâncias dessa época e região, um casal de fazendeiros, com uns 3,5 filhos, 1,7 peões/agregados, três cativos – 7,2 homens e mulheres livres para três escravizados e escravizadas – com forte incidência do trabalho sobre os cativos, em razão do peso numérico da família proprietária, com maior número de crianças, e em parte alienada total ou parcialmente do esforço produtivo. Se estimarmos as fazendas sem cativos em quarenta, com 220 homens e mulheres livres – proprietários, filhos, agregados –, a proporção da população escravizadas nelas subiria para uns 40%, com uma média geral de 4,3 cativos por unidade produtiva. E certamente uma ainda maior incidência do trabalho sobre os cativos, apesar de se manter a dominância formal da população livre nas mesmas unidades produtivas.170 170

PALERMO, Eduardo Ramón Lopez. Tierra esclavizada: el norte uruguaio em la primera mitad del siglo 19. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2008. p. 295.

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Apesar do caráter eventualmente subordinado da mão de obra cativa nas práticas pastoris, em dadas épocas e regiões, no que se refere ao cômputo geral dos trabalhadores envolvidos na atividade, o cativo certamente desempenhou função tendencialmente sistêmica nas propriedades maiores, já que as fazendas pastoris de menores dimensões eram talvez exploradas pelos proprietários, com o apoio eventual de um cativo e episódico de algum peão. Em 1840, uma fazenda pastoril de mil hectares, com quatrocentas cabeças de gado, produzindo de 24 a 32 novilhos (192$000 a 256$000 mil-réis), dificilmente sustentaria um peão (78$000 a 96$000), quanto mais a compra de um cativo (520$000)!171 Porém, como sistema de produção, a ciação animal extensiva exigia necessariamente o envolvimento de cativos nas práticas criatórias, quando se tratava das propriedades de maiores dimensões, em virtude da impossibilidade de o fazendeiro poder contar de forma sistemática com o trabalho livre.

Exército rural de reserva A produção assalariada exige que trabalhadores livres, despossuídos dos meios de produção, excedam as necessidades produtivas, para venderem a força de trabalho por valores depreciados, por serem obrigados a trabalhar para sobreviver, pressionados por exército de reserva. Dreys lembrava que os gaúchos, vindos das “margens do Rio da Prata”, empregavam-se como “peões” “em todo o território banhado pelo Paraguai, Paraná e Uruguai, até o Oceano”, nas “estâncias ou charqueadas”.172 Ele dizia que o gaúcho portava “xiripá”, “cingidor”, “poncho”, “faca”, “espada”, “boleadeiras”, “laço” e 171

172

Eventualmente, as diferenças propostas no salário mensal do peão – 6$500/8$000 e 20$000 – podem referir-se a duas formas de contratação – a anual e a sazonal. DREYS, Nicolau. Notícias descritiva da província do Rio Grande de São Pedro do Sul, p. 122.

O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense...

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“pistola” – quando podia comprá-la – e que fabricava parte desses implementos. Esse “nômade”, de disposições “taciturna e apática”, passaria o tempo a “dançar”, “jogar, tocar ou escutar uma guitarra”, procurando trabalho quando não tinha “dinheiro”.173 Reproduzindo a visão dos proprietários, propôs que os gaúchos circulavam pelos campos abertos do Plata e sulinos, sem “chefes, sem leis, sem polícia”, respeitando apenas a “propriedade” dos empregadores.174 O gaúcho produzia parte dos instrumentos de trabalho. “[...] o pobre prepara com suas mãos seu tosco arnês; de um couro despedaçado [...] sabe obter freio, arreios, estribos e todas as demais miudezas da equipagem do cavaleiro.”175 O cavalo era acessível a qualquer homem livre. Em fins do século 18, Félix de Azara registrou a abundância dos cavalos: “[...] todos tienen algunos caballos, que nadie anda a pie y que todo se hace con ellos.”176 Categoria social juridicamente livre, detentora parcial dos meios de trabalho (cavalo, arreios, laço, etc.), o gaúcho locomovia-se nos campos não cercados, ainda que juridicamente apropriados, onde obtinha os meios de subsistência, de forma fortuita e ilegal, apoderando-se de animais, e trabalhando episodicamente para obter o necessário à compra de bens e serviços imprescindíveis. Em 1781, Roscio registrou a apropriação jurídica dos campos sulinos, sem ocupação de fato: “As terras [...] todas estão povoadas, mas todas desertas. Cada morador não se contenta com poucas léguas de terra, entendendo que todas lhe serão precisas, ainda que só se servem de uma insignificante parte […] e, por isso, ainda que toda a campanha está deserta, todos os campos estão dados e

173 174 175 176

Idem, p. 123-124. Idem, p. 122. Idem, p. 100, 103-104. AZARA, FÉLIX. Apud. CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia de la ganadería em el Uruguay, p. 29.

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têm senhorio.”177 O controle parcial dos meios de produção e os campos abertos permitiam que o gaúcho mantivesse autonomia relativa diante do empregador. A posse de uma nesga de terra, como proprietário, posseiro, posteiro, agregado, etc., permitia ao gaúcho furtar-se também à obrigação de assalariar-se de forma permanente, podendo eventual e periodicamente abandonar o trabalho sem se expor à necessidade.

Períodos breves O historiador argentino Carlos Mayo apresenta período médio de trabalho para os gaúchos empregados como peão impressionantemente baixo: “En general, también, el peón tendía a ser inestable en el empleo. Todas las cuentas de estancias que se conocen reflejan muy bien este fenómeno. Así en la estancia de Las Vacas (Banda Oriental), entre 1791 y 1799, el 77% de los asalariados trabajó menos de tres meses.” O historiador argentino lembra que é difícil dizer se ele se despedia ou era despedido.178 Três meses era a validade da “papeleta” que se exigiu, na província de Buenos Aires, em agosto de 1815, ao gaúcho para comprovar que trabalhava em estância, para não ser considerado “vago” e obrigado a empregar-se ou ser enviado por cinco anos ao Exército.179 Como o gaúcho não era obrigado a trabalhar como peão, sob forma contínua, por preço vil, o valor de seu trabalho tendia a crescer. Em 1820, na Banda Oriental, Saint-Hilaire registrou, preconceituosamente, a autonomia relativa do gaucho ao empregador: “Os vastos campos que percorri são habitados em grande parte por índios civilizados e mais ainda 177

178 179

ROSCIO, F. J. Compendio noticioso do continente do Rio Grande de São Pedro. Revista do IHGRS, ano 22, III e IV trim., n. 87, p. 29-56, 1942. In: FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril, p. 94. MAYO, Estancia..., p. 107. Cf. GIBERTI, Horácio C. E. Historia económica de la ganadería argentina, p. 87.

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por mestiços que nada possuem; vão de uma a outra estância, misturam-se sem cerimônia aos moradores da casa e [...] comem carne à vontade. De tempo em tempos, [...] ajudam os estancieiros em seus trabalhos e são regiamente pagos, mas nunca economizam [...]. Quando possuem um chiripá e um ponche [...] gastam o resto do dinheiro jogando e bebendo cachaça.”180 Em 1808, Manoel de Magalhães assinalou que, em razão das “despesas” com “peões e cavalos”, os fazendeiros ricos praticavam pouco os rodeios e os “pobres”, jamais. Certamente, referia-se aos rodeios gerais.181 Sem razões para permanecer no trabalho, desgostoso com o empregador, aborrecido com as lides, etc., o peão “pedia as contas” e perdia-se nos campos, onde abatia, clandestinamente, um animal para servir-se da carne e vender o couro, a graxa, o sebo para algum bodegueiro inescrupuloso. Saint-Hilaire registrou a pouca estabilidade da mão de obra livre e a prática do abate do gado alheio: “Em quase todas as estâncias dos arredores de Santa Maria há índios desertados das aldeias. Os homens empregam-se como peões [...]. Os patrões lamentam a inconstância e falta de afetividade dessa gente. Dizem que quando recebem adiantamentos, retiram-se [...].” Tempos antes, anotara que sua viagem avançara pouco, porque perdera tempo para “matar uma vaca”. “Nada mais comum aqui que os roubos de animais. É tão banal esse gênero de furto que chega a ser visto como causa legítima.”182 Viajando pelo Uruguai, registrou que, para ele, as “pessoas do campo, a maior parte índios e mestiços”, levariam “vida totalmente selvagem, alheia a qualquer sentimento moral e religioso”. Registrou que um fazendeiro teria 180

181

182

SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao RS. Trad. de A. M. da Costa. 2. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. p. 186, 126-127. MAGALHÃES, Manoel Antônio. Almanak da vila de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da capitania do RS. FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980. p. 79-80 SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 63.

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sido “vítima de freqüentes roubos de cavalos e gados”, pois “nos arredores de San Salvador” “algumas pessoas tinham no roubo o único meio de subsistência”.183 O francês racionalizou seu abate do gado alheio: “Com relação às reses que meus empregados mataram no campo estes últimos dias, sinto-me inteiramente tranqüilo. [...] há muitos animais ainda nesta margem do Rio Negro [...]. Totalmente selvagens, nem marca possuem. É, portanto, muito normal apreendê-los nos campos e matá-los para comer. Um negro, que me serviu de guia, apanhou uma vaca nas pastagens vizinhas. Os meus acompanhantes fizeram o mesmo e, finalmente, outros homens, vindos depois de mim, também foram matar sua rês [...].”184 Em 1823, Antônio Gonçalves Chaves criticava esse hábito: “[...] há [...] pouco escrúpulo em matar reses para comer andando em viagem e tomar cavalos sem consentimento de seu dono, deixando-os em partes muitas vezes tão distantes que não voltam mais [...]. Quando algum é colhido em flagrância [sic] [...] o castigo é sempre arbitrário e o ladrão, solto em poucos dias (falamos dos vagabundos, pois alguns há e levam assim sua vida) [...].”185

Direito à família Diante da semiliberdade da mão de obra livre, aos fazendeiros, para manter os peões, não servia sequer aumentar a remuneração – salário ou participação na produção, como sugere Carlos Mayo: “Un aumento de salarios, por ejemplo, podía surtir el mágico efecto de prolongar la permanencia del trabajador en el empleo.”186 Ao contrário, a maior remuneração do peão deprimiria a baixa rentabilidade da produção 183

184 185 186

SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem ao Rio Grande do Sul Trad. de A. M. da Costa. 2. ed., p. 186. Idem, p. 203. CHAVES, Antônio Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas..., p. 214. MAIO, Estancia..., p. 115.

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pastoril e fortaleceria a autonomia tendencial do gaúcho! Com maior paga, poria o pé no mundo ainda mais rapidamente, para vagabundear ou refluir para situação-espaço onde gozava de alguma autonomia, como posseiro, posteiro, pequeno proprietário, etc. A permissão para o trabalhador estabelecer-se e formar família era certamente a forma certa de fixá-lo à fazenda. Porém, tal liberalidade oneraria a exploração pastoril e inflacionaria os salários do peão, obrigado a sustentar sua mulher e filhos, dificilmente incorporáveis à produção. Ainda em início do século 19, eram elevados os preços dos meios básicos de subsistência – açúcar, café, arroz, erva-mate, farinha de trigo, etc. O arranchamento do peão criaria população territorialmente coesa e sequiosa de terra nos latifúndios. O direito de estabelecer provisoriamente família era concedido apenas ao capataz e ao posteiro. Depoente lembrava que, em meados do século 20, os fazendeiros do município de Rio Pardo permitiam apenas ao peão que queriam segurar no emprego, por suas qualidades, se estabelecer com família na fazenda!187 Tal fato determinou o baixo crescimento populacional pastoril, fenômeno registrado na afirmação de Dreys sobre o gaúcho, segundo a qual esse fenômeno se deveria a sua “pouca atração” pela mulher!188 Essa visão fora corroborada, vinte anos antes, pelo paulista, burocrata colonial e juiz da alfândega das capitanias de São Pedro e Santa Catarina José Feliciano Fernandes Pinheiro, na primeira edição dos Anais da Província de São Pedro, onde o paulista desanca a sociedade e o habitante sulinos, segundo ele em razão do seu “ruim fermento” original, já que constituída pelo “enxurro da nação”. Ao referir-se à estância, propôs nada menos que, em razão da “inércia” da estância, o seu habitante conheceria a “moleza, 187

188

Cf. Entrevista a Carlos Dario Daudt, em sua residência em Porto Alegre, em 1º de julho de 2007. DREYS, Nicolau. Notícias descritiva da província do Rio Grande de São Pedro do Sul, p. 122.

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a ociosidade e a devassidão”, causas de “misérias” e da baixa “multiplicação da espécie humana”. Na época, sobretudo no mundo católico homofóbico ibérico, acusava-se a sodomia como forma de “devassidão” responsável pela frustração da “multiplicação da espécie humana”.189 As depreciações sobre a virilidade do gaúcho nasciam do fato de que ele e o peão eram homens sem família, em virtude da proibição geral dos fazendeiros de que se estabelecesse com mulher e prole.190

Lei demográfica Cada modo ou forma de produção tem sua lei demográfica tendencial. A fome de braços da economia colonial-camponesa ensejou explosão demográfica, impondo à camponesa papel de parideira, de consequências fisiológicas, psicológicas e sociais que apenas começam a ser estudadas.191 Ao servir-se de pouca mão de obra, a produção pastoril extensiva impunha ao peão gaúcho baixo acasalamento e reprodução, fenômenos registrados no despovoamento relativo das regiões pastoris no Rio Grande, Uruguai e Argentina. Nas fazendas argentinas, em 1744, apenas 27,6% dos peões se casariam; em 1813, a taxa cairia para 3,4%. Na fazenda, além do fazendeiro, apenas o capataz, na sede, o posteiro, nas bordas da propriedade, e o cativo, nas senzalas, relativamente, acasalavam-se, assegurando a baixa reprodução da mão de obra livre e escravizada necessária à produção pastoril. O cativo e, especialmente, a cativa podiam, ao contrário, multiplicar-se, casando-se ou não, como parece terem feito em forma relativamente sistemática, no que se refere à população escravizada pastoril, pois produziam seres que tinham no fazendeiro o pai sociológico, já que eram 189 190

191

Cf. CHAVES, Memórias ecônomo-políticas, p. Cf. MAESTRI, Mário. O gaúcho era gay?! Arquipélago, governo do estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre , v. 7, p. 56-59, 2006. Colocar jussara.

????

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dele as propriedades e a ele deviam obediência e trabalho. Os cativos não colocavam problemas quanto à posse da terra, mobilizando-se, ao contrário, para fugir ou livrar-se do proprietário e da terra onde eram explorados. Na fazenda, o peão permanecia tendencialmente solteiro, dormindo no galpão, ao pé do fogo, ou, mais tarde, em pequeninos dormitórios coletivos. Os levantamentos arquitetônicos das fazendas sulinas do 18 e 19 registram a presença da sede, do galpão, dos depósitos, dos currais, raramente de algumas sezalas, mas jamais de moradias unifamiliares de peões. Triste condição que se manteve quase plenamente até poucos anos. Em precioso estudo de 1964, “O peão de estância: um tipo de trabalhador rural”, escrito a partir de participação em pesquisa sobre a pecuária sulina, do Instituto de Estudos e Pesquisas Econômicas da UFRGS, Laudelino Medeiros analisou 35 fazendas, com mais de 440 ha, de Vacaria, Júlio de Castilhos, Santiago e Uruguaiana. O estudo foi realizado em momento em que dominavam as práticas tradicionais do pastoreio contínuo, que se estruturaram, sobretudo a partir dos anos 1870, com o início da desescravização das estâncias. Segundo o estudo, quase 71% dos 32 capatazes entrevistados – de 30 a 49 anos – eram casados, e suas mulheres trabalhavam comumente na sede e cozinhavam para os peões. Os peões, um pouco mais jovens – 20 e 49 anos –, em boa parte pardos e negros, eram em 75% dos casos solteiros.192

População pobre flutuante O gaúcho desempregado e vagamundo era ameaça não à propriedade fundiária propriamente dita, mas à mercadoria produzida por ela – o gado. A documentação do século 19 é rica no registro da existência de população pobre flutuante, 192

Cf. MEDEIROS, Laudelino T. O peão de estância: um tipo de trabalhador rural. Porto Alegre: UFRGS/Estudos e Trabalhos Mimeografados, 1969. 57 p.

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o campeiro e o gaúcho sem terra, apresentados comumente como terríveis criminosos, vagabundos, vagos, etc., tidos como seres refratários ao trabalho, percorrendo sem controle os campos privados. A retórica pastoril-latifundiária, no Rio Grande do Sul, sobre a pretensa identidade entre fazendeiros e peões apoia-se na ausência de movimentos multitudinários de luta pela terra entre os peões dos latifúndios. No Uruguai, ao contrário, foi enorme a luta dos subalternizados pela terra, no período artiguista. Ultimamente, essa visão tem sido corroborada por propostas de leitura historiográfica apologéticas sobre a sociedade pastoril, na qual o peão surge sobretudo como uma situação mais etária do que social, pois tendencialmente superada, com o passar dos anos, por processo tendencial de ascensão social em direção à posse da terra. O estudo da documentação judiciária das regiões pastoris certamente desvelará fortes contradições sociais expressas na repressão ao abigeato na expulsão de gaúchos e campeiros arranchados nas bordas dos latifúndios, como moradores, posteiros, etc., fenômeno objeto do belo conto “Por vingança”, de Alcides Maya, em Tapera, de 1911.193 A ojeriza do latifundiário ao sem terra dos dias de hoje apenas repete o horror do estancieiro ao peão em busca de um rancho no passado. Foi grande a identidade socioprodutiva entre as sociedades e as produções pastoris sul-rio-grandense, uruguaia e argentina. Carlos Mayo assinala que o uso da mão de obra escravizada na fazenda pastoril argentina era comum no período colonial. “Sobre un total de los 66 establecimientos (estudados), 41 tenían esclavos. El número total de los identificados es de 161, de los cuales 90 son hombres y 74 mujeres. La media de esclavos por estancia poseedora de mano de obra no libre era de cuatro esclavos.”194 Tais números su193 194

Cf. MAYA, Alcides. Tapéra. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1962. p. 39-67. MAYO, Estancia..., p. 41.

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gerem também que muitas estâncias, sobretudo as menores, não possuíam cativos. Segundo Alfredo Montoya, a carência de mão de obra nas fazendas argentinas teria crescido após a Independência, com a extinção da mão de obra escravizada, fortalecendo-se a pressão da legislação sobre os trabalhadores livres para que se empregassem, sob pena de arrolamento no Exército.195 Na Argentina, no Uruguai e, menos, devido ao peso da escravidão, no Rio Grande do Sul, segundo os estancieiros, se faltavam trabalhadores, abundavam “delincuentes”, “intrusos”, “ociosos”, “olgasanes” e “vagos”. Sozinhos ou com as famílias, eles perambulavam pelos campos, arranchando-se como podiam, abatendo gados nos campos abertos. Na Argentina, nas primeiras décadas do século 19, gaúchos dedicavamse à faena, na “campaña del Sul”, rica em gados, possivelmente sob a proteção dos nativos pampianos, ainda senhores, ou quase, desses territórios.196 Em 1784, em relatório enviado para Lisboa, sobre o Rio Grande do Sul, onde jamais havia estado, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa chamou a atenção aos “índios” e “vagos” da região, “vivendo à lei da natureza, sem disciplina, e sem religião”, cometendo “delitos” e “crimes”. Na Campanha, concorreriam para “as extorsões e furtos dos contrabandos” e, nas fazendas, ao “furto de muitos animais”. Vasconcelos propunha como solução dessa desordem e para diminuir o contato desses indivíduos entre si que “fossem matriculados nas fazendas dos particulares, sendo estes encarregados de os administrar e reger, como bons pais de família” – que fossem reduzidos ao trabalho obrigatório e, portanto, submetidos à servidão.197 195 196 197

MONTOYA, Alfredo J. La ganaderia y la industria..., p. 46-47. Idem, Op. cit., p. 47-48. Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo Vice-Rei Luís de Vasconcelos, em outubro de 1784, sobre o Rio Grande do Sul. Arquivo Nacional, coleção 67, livro 9. RIHGRGS, ano 10, 1º e 2º trim., 1929, p. 32-33. Apud CÉSAR. Origens..., p. 110.

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Vagos e vagagundos Em fevereiro de 1810, criadores da Banda Oriental referiam-se às populações pobres livres da campanha: “[...] hallándose en aquel tiempo sembrada la campaña de número crecido de hombres malévolos de todas las castas que la desolaban e infundían en los laboriosos y útiles estancieros un terror pánico, ejecutando impunemente robos en las haciendas y otros atroces delitos [...]..”198 Em 1820, na Banda Oriental, Saint-Hilaire reproduziu as visões preconceituosas dos proprietários sobre o gaucho. “[...] homens sem religião e sem moral, a maior parte índios ou mestiços, que os portugueses designavam sob o nome de Garruchos ou Gaúchos” teriam se reunido a Artigas para, entre outras coisas, matar “uma rês [apenas] para tirar-lhe a língua ou uma correia de [...] couro”.199 Nessa época, criadores da região reclamavam às autoridades luso-brasileiras, senhoras da Província Cisplatina, que a “campaña se halla infestada de una multitud de hombres vagos, que cifran su subsistencia en el robo y el pillaje”. A petição pedia a proibição das “pulperias volantes”, isto é, as precárias vendas ambulantes de bebidas e outros artigos, em carretas. Os fazendeiros requeriam que os estabelecimentos funcionassem apenas nas grandes propriedades, sob controleexploração dos latifundiários, o que lhes permitiria endividar os trabalhadores e, assim, mantê-los no trabalho.200 Nos anos 1840, haveria nada menos que mil pulperias na campanha argentina, sem contar os estabelecimentos ambulantes, montados em geral em carretas. Uma para cada 198

199

200

Apud CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia de la ganadería em el Uruguay. Montevideo: Banco de Crédito, 1972. p. 34. SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Trad. de A. M. da Costa. 2 ed., p. 129-130, 136. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaquerias al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 230-232.

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cem habitantes rural!201 Os comerciantes das pulperias eram acusados de comprar couro, graxa e sebo roubados, por preço “ínfimo”. Os estancieiros apontavam as “pulperías” como local de reunião onde esses seres refratários ao trabalho se dedicavam a “embriagueses” e a “quimeras”.202 As pulperías castellanas e boliches rio-grandenses eram tradicionais locais de socialização, sobretudo masculina – jogo de cartas, rinha de galos, cancha de bocha, carreiras de cavalos, desafios de repentistas, prostituição. Seus proprietários dedicavam-se à pequena agiotagem, ao contrabando, à compra de couros e outros produtos, como assinalado.203 Ao cruzar a Banda Oriental, Saint-Hilaire descreveu a identidade entre as pulperías castelhanhas e as vendas portuguesas: “É aí [taverna] que os índios e os mestiços passam boa parte de sua vida deixando a metade do dinheiro que ganham. Em toda a região, as tavernas são totalmente parecidas com as do Brasil. Garrafas de cachaça, comestíveis, ponches, fazendas, um pouco de mercearia e quinquilharia [...] expostas sobre pranchas. Um grande balcão estendido de um outro muro paralelo à porta forma uma barreira entre o comerciante e as mercadorias de um lado, e os compradores e bebedores do outro. Estes ficam de pé e muitas vezes se deitam sobre o balcão, falando com tristeza, brincando ou catando suas lânguidas cantigas, enquanto o cavalo os aguarda pacientemente à porta.”204 Na Argentina, para sanar as dificuldades de falta de trabalhadores, como acabamos de ver, um Bando, de agosto de 1815, reafirmado nos anos seguintes, mandava prender o homem livre não proprietário que não portasse consigo a 201

202 203 204

GIBERTI, Horácio C. E. Historia económica de la ganadería argentina, p. 137. MONTOYA, Alfredo J. La ganaderia y la industria..., p. 48. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaquerias al alambrado. [...]. p. 236. SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Trad. de A. M. da Costa. 2. ed., p. 182.

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“papeleta” comprovando pertencer ao “personal estable” de uma estância. O “vago” seria arrolado nas Forças Armadas ou obrigado a trabalhar em uma fazenda, por longo período.205 Em 1830, Caetano Maria Lopes Gama, presidente da província do Rio Grande do Sul, talvez inspirado nos vizinhos, retomando as propostas do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, de 1784, sugeriu que os “homens criminosos”, “vadios”, “vagabundos”, “viciosos”, que pululariam na província, “sem ubi certo”, atentando contra a “segurança individual e a propriedade”, tivessem os direitos civis restringidos e fossem “remetidos para o serviço da Esquadra ou para algum outro de semelhante utilidade pública”.206 Nesses anos, Dreys registrava a depredação dos gados das fazendas por “roubadores” e “viajantes”.207

A necessidade de cativos Pelas razões assinaladas, na falta da coerção econômica nascida da necessidade de alugar a força de trabalho para viver, procurava-se forçar o homem livre pobre, pela coerção extraeconômica (jurídico-policial), a vender sua força de trabalho em condições que permitissem alta extração de sobretrabalho. Propunha-se semisservidão que obrigasse o gaúcho e o campeiro a se empregar nas fazendas, charqueadas, etc., por remuneração mínima. Principalmente nas décadas anteriores ao fim do tráfico oceânico de cativos (1850), em razão da inexistência de mercado de trabalho livre consolidado, os criadores sulinos mais ricos constituíram núcleo de cativos nas fazendas que lhes garantia mão de obra permanente para as tarefas agrícolas, domésticas e pastoris. 205 206

207

MONTOYA, Alfredo J. La ganaderia y la industria [...], p. 46. Cf. ROCHE, Jean. L’Administration de la province du Rio Grande do Sul de 1829 a 1847. Porto Alegre, 1961. DREYS, Nicolau. Notícias descritiva da província do Rio Grande do Sul, p. 94.

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Nas tarefas pastoris, ao núcleo estável de cativos campeiros associavam a contratação de peões mensalistas e diaristas e o esforço extraordinário de moradores, agregados, posteiros, etc. Nas épocas de pique da produção, quando dos rodeios gerais, os fazendeiros ampliariam a contratação de peões livres para suplantar as necessidades produtivas, possivelmente por salários mais elevados que os pagos aos peões mensalistas. Com o núcleo de cativos, as fazendas jamais se despovoavam de trabalhadores e as exigências dos peões eram deprimidas tendencialmente. Em 1859, as 391 estâncias de Alegrete possuíam 283 trabalhadores assalariados e 527 escravizados, ou seja, 1,4 cativos por estância, se todas tivessem cativos. Como vimos, esses dados sugerem que a maioria das estâncias – 267 – não tinha capatazes, sendo talvez administrada pelo proprietário ou familiar. É crível que houvesse maior concentração de cativos nas fazendas maiores e, portanto, mais ricas, que tinham capatazes. Vimos que, se estimamos 1,5 proprietário/ familiar por fazenda, teremos um total de 870 trabalhadores livres para 527 cativos. Porém, sequer o fato de que boa parte desses cativos não trabalhasse em funções pastoris chega a diminuir a eventual importância da mão de obra cativa nas lides pastoris no município.208 Ao trabalharem nos campos, os proprietários e seus familiares desempenhavam a mesma função depressora dos cativos no relativo ao valor dos salários dos peões. O trabalho do fazendeiro e de seus filhos nas lides pastoris, especialmente nas fazendas pequenas, foi sempre solução para o alto preço dos trabalhadores. Nas fazendas açucareiras e cafeicultoras escravistas, não se viam proprietários trabalhando nas atividades produtivas propriamente ditas. O trabalho do fazendeiro e seus filhos homens nas tarefas pastoris parece ter servido 208

XAVIER, Paulo. Aspectos da pecuária em Alegrete. Correio do Povo, Suplemento Rural, 10 mar. 1978.

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de substrato para as visões apologéticas sobre a “democracia pastoril”. Tabela 6 -

Valor dos cativos em relação a bois e hectares em Rio Pardo, Vacaria, Bagé 1819-1888

Ano 1819-1829 1830-1839 1840-1849 1850-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1888

Preço cativo 271$357 425$000 504$000 971$428 1:104$777 1:124$000 1:231$000

Bois 89,5 127,2 163,9 200 217 129 156

Hectares 987 1529 1561 1802 1064 519 390

4,6 2,8 2,8 2,4 4,0 8,3 11

Fonte: DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul. [1780-1889], Dissertação (Mestrado) - PPGH da UPF, Passo Fundo, nov. 2008.

Inventários dos anos 1780, no início da indústria charqueadora, do município de Rio Pardo, assinalam que com cativo adulto do sexo masculino comprava-se até 4.300 ha e uns 54 vacuns. Em 1786, o valor do cativo seria ainda mais elevado – 6.200 ha e 85 animais. Em 1794, o valor teria caído relativamente: um cativo de qualidade valia 1.500 ha e quase sessenta bois mansos. No início do século 19, a terra e o cativo valorizaram-se em relação ao gado. Em 1805, com trabalhador escravizado de qualidade seriam comprados uns 850 ha e 125 bois mansos. Dados de inventários de Rio Pardo, Bagé e Vacaria, posteriores a 1819, anotam valor do cativo campeiro elevado quanto a terra e gado. Em 1830-1849, com 2,8 campeiros seriam adquiridos 4.300 ha; em 1870-1879, eram necessários 8,3. O preço do trabalhador alcançaria o máximo, em relação ao boi, em 1870-79, com valorização da terra. No declínio da escravidão, o valor da terra crescera quanto ao cativo, que

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manteve preço alto quanto ao gado: 156 bois por cativo campeiro – a produção média anual de estância de 4.300 ha!209 O grande investimento no estabelecimento de estância no Sul, sobretudo nos primeiros tempos, era com o braço escravizado e, a seguir, com o gado. Teria havido igualmente valorização crescente do cativo e da terra, até os anos finais da escravidão, quando a mão de obra escravizada depreciou em relação à terra. Esses dados indicativos, que devem ser precisados, sugerem que, sobretudo nos primeiros tempos, os grandes criadores seriam mais senhores de cativos do que de terras.

A modernização da fazenda pastoril no Rio Grande do Sul No Rio Grande do Sul, apenas em inícios do século 20 a atividade pastoril começou a introduzir-se na esfera de produção capitalista propriamente dita. Então, a renda do capital – criada com a inversão em reprodutores; pastagens artificiais; cercas de arame liso e, a seguir, farpado; centro de manejo; inseminação artificial, etc. – começou a se sobrepor à renda da terra. Esse processo se deu de forma lenta, estimada em torno de um crescimento de cinco a 27 pontos percentuais, no relativo à taxa de desfrute – em relação às fazendas do século 19, estimada, como vimos, entre seis e vinte por cento, no início do século 19. Até hoje, mantém-se ainda em boa parte do Rio Grande a criação semiextensiva, através do pastoreio contínuo. Os avanços produtivos na fazenda pastoril sulina foram lentos. Em meados do século 19, anunciaram-se tímidas propostas e iniciativas de melhorias das técnicas de criação. Lei 12 de julho de 1848 propunha criação de coudelaria “para o aperfeiçoamento da raça dos animais cavalares, vacuns e asinos”. 209

DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul (17801889). Dissertação (Mestrado) - PPGH da UPF, Passo Fundo, nov. 2008. p. 102.

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Em 1854, reprodutores de gado vacum “franqueiro” e cavalos “pampas” foram introduzidos em Cruz Alta.210 Em 1906-7, Relatório da Secretaria de Obras Públicas registra experiências com plantas forrageiras – “capim colônia”, “orvilhaca”, “sulla”, “sanfeno”, “sorgho”, “trevos”.211 No Uruguai, a melhoria genética dos rebanhos, também limitada, teria sido anterior. Em fins de 1850, foram introduzidos gados Durham e, em meados de 1870, Hereford, em pequeno número.212 As fazendas argentinas teriam conhecido mais cedo esses avanços. A liberdade relativa gozada pelo gaúcho, que resultou em recriminações das autoridades públicas, no passado, e em relatos líricos, no presente, teria começado a entrar em crise a partir dos anos 1870, quando os campos começaram a ser cercados, o que determinou aumento relativo da produtividade da economia pastoril e consequente desemprego de trabalhadores.213 Porém, sobretudo em inícios do século 20, à medida que se intensificou o tratamento dos animais, cresceu a relação média trabalhador-animal. O cercamento das fazendas não impedia apenas a fuga dos gados, diminuindo o trabalho de ronda dos peões, mas punha fim à função histórica de posteiro. Com as cercas definiram-se os caminhos públicos e pôs-se, crescentemente, fim ao direito consuetudinário de travessia dos campos. Com as cercas, o viajante transformou-se em invasor. A definição dos limites dificultou o arranchamento nas franjas das grandes propriedades. Desde os anos 1870, o maior controle das propriedades, a repressão ao abigeato, o desenvolvimento da população livre pobre, a destruição crescente da economia cabocla florestal no Planalto, etc. teriam contribuído para a formação de cres210 211 212

213

XAVIER, Paulo. Aspectos da pecuária em Alegrete. Op. cit. Cf. MEDEIROS, O peão..., p. 39. Cf. CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia de la ganadería en el Uruguay, Montevideo, p. 65. ALMEIDA, Lopes de. Col. Júlio de Castilhos e a revolução passiva. Correio do Povo, Caderno de Sábado, Porto Alegre, 24 mar. 1979. p. 8-9. Apud BAKOS, M. RS: Escravismo & abolição, p. 34.

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cente exército rural de trabalhadores livres desempregados, obrigados a vender a força de trabalho por preços aviltados. Esse processo teria permitido a venda de cativos das fazendas sulinas para a cafeicultura do centro-sul. Um “Relatório do Ministério da Agricultura” de 1884 anota o Rio Grande do Sul como o maior exportador de cativos entre 1874 e aquele ano, com 14.302 cativos expatriados para os centros produtores de café!214 Faltam ainda estudos monográficos sobre esse processo.

Evoluções importantes A “estância cimarrã” uruguaia, de rincões e campos abertos, com caça ao gado alçado pelo couro, da época colonial, foi substituída, nas primeiras décadas do século 19, pela “hacienda criolla” ou “patrícia”, com campos não cercados, mas delimitados, com tratamento rústico, mas mais intensivo, dos animais nos rodeios por peões destros no laço e boleadeiras, com o preparo, para os saladeros, de novilhos criollos de cinco e mais anos, com couros pesados e pouca carne. Nos anos 1870, a fazenda uruguaia começou a conhecer importante modernização, impulsionada por criadores da Asociación Rural del Uruguay (1871), muitos deles chegados da Europa, em 18301845, como imigrantes – bascos, franceses, ingleses, etc. –, com experiência comercial. As propostas da “estância nova” foram divulgadas na revista e no almanaque anual da associação. Esses criadores capitalizados, estabelecidos nos campos finos no litoral e do meridião uruguaio, região de fácil comunicação fluvial com os portos do Prata, praticavam e propunham o cercamento dos campos; melhoramento genético; manejo animal em bretes, banheiros e galpões; pastagens artificiais; a associação das práticas criatórias e industriais – fábricas de conserva, fri214

Cf. CONRAD, Robert. Os últimos..., p. 351.

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goríficos.215 Na Argentina, o avanço técnico das fazendas foi ainda mais precoce, não raro em razão da inversão de capitalistas estrangeiros, sobretudo ingleses, radicados em Buenos Aires.216 O cercamento dos campos desempenhou papel essencial na evolução da hacienda uruguaia e argentina, aumentando a produtividade dos campos, desempregando trabalhadores pastoris, cerceando a independência relativa dos gaúchos. Vindos da Inglaterra, os primeiros “atados de alambre” teriam chegado a Montevidéu em 1852, talvez para cercar chácaras, não estâncias. “El 23 de febrero de 1852 llegaran consignados a Bayley Hnos, en la goleta inglesa Champion 10 atacados de alambre. Ese mismo año se repiten los desembarcos: el 23 de julio, 5 atados para White Dick y Cía.”217 Em 1862, no Uruguai, registravam-se estâncias cercadas perimetralmente por “alambre”. O grande salto no cercamento das fazendas uruguaias teria ocorrido a partir de 1877, quando entraram 6.646 toneladas de arame para cercas no país.218 Na Argentina, temos registro, no mínimo desde 1705, da construção de valos em torno dos campos de criação e cultivo. Em geral, essa proteção, imperfeita, era acompanhada de cerrada “cerca-viva”, impenetrável aos homens e animais, produzida, comumente, por trabalhadores especializados. Houve enorme fazendas protegidas perimetralmente por essas defesas. A primeira cerca argentina de arame liso teria sido usada para proteger a horta e o jardim de estância de Alejandro Codwell, nas proximidades de Buenos Aires, nos anos 1845.219

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219

CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia de la ganadería en el Uruguay. Montevideo: Banco de Crédito, 1972. p. 65-73. Cf. nota 16. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaquerias al alambrado, p. 248. CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia de la ganadería em el Uruguay. Montevideo: Banco de Crédito, 1972. p. 72. SBARRA, Historia del alambrado en la Argentina, p. 31 et seq.

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Nos anos seguintes, as cercas de arame liso, sobretudo de quatro fios, difundiram-se nas fazendas argentinas, comumente utilizadas ao lado dos valos, apenas enquanto as cercas-vivas não cresciam. O grande problema das cercas de arame liso era que dificilmente detinham os gados, que se coçavam nos postes de madeira e ferro, pondo-os abaixo. Na Argentina, foi apenas com a introdução, nos anos 1885, do arame farpado, inventado nos EUA, em fins dos anos 1870, que os valos e cercas-vivas começaram a ser superados, processo concluído em inícios do século 20. Em Historia económica de la ganadería argentina, Horacio Giberti assinala a importância da transição dos fios de ferro para o arame de aço, lisos e farpados: “En un principio el alambrado era caro y de poca vida, su costo limitaba mucho la difusión. Mas tarde el alambre de acero, barato, fuerte y flexible, sustituyó al de hierro, tan quebradizo; los postes se espaciaron más y hubo varillas intermedias de hierro [...].”220

Consequências importantes O cercamento dos campos, a criação de potreiros, invernadas, a utilização de bretes e banheiros reduziram a necessidade do peão, laço e boleadeiras. As cercas impediam ou dificultavam o pastoreio clandestino de gados dos pequenos criadores nos latifundiários, a migração dos gados para outras fazendas quando das secas e tempestades, o roubo de gados, etc. Para proprietários uruguaios, o cercamento dos latifúndios constituiu excepcional recurso contra os “cuatreros”, “vagos” e “gauchos matreros”. A medida dificultava “el frecuente pasaje de mercachifles, leñadores, carboneros y troperos con su inevitable secuela de carneadas clandestinas

220

GIBERTI Historia económica de la ganadería argentina, p. 154.

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e incêndios de campos”.221 O cercamento teria aumentado o valor dos arrendamentos.222 Alguns grandes proprietários tardaram em cercar seus campos para não pôr fim à apropriação habitual de gados das fazendas lindeiras de proprietários mais pobres e mais fracos. No Rio Grande do Sul e no Brasil, o grave problema do reconhecimento dos proprietários lindeiros das divisas de uma fazenda, especialmente quando se tratava de terras ainda não medidas, teria dificultado a delimitação das divisas das fazendas.223 Os posteiros e suas famílias desapareceram aceleradamente das grandes fazendas. Também nos anos 1870, a difusão das estradas de ferro desempregou balseiros, carreteiros, ferradores, tropeiros, etc. Em 1880, um ruralista calculava que um mínimo de oito mil famílias teriam ficado sem trabalho nos campos uruguaios. Em 1882, um outro criador propunha que três quartas partes da mão de obra pastoril antes ocupada era então desnecessária. Foram muito duras as consequências do desemprego sobre o valor dos salários.224 Ressalve-se como assinalado que o aumento dos cuidados dos animais exigia maior quantidade de mão de obra. O historiador Barrios Pintos assinala que a introdução de alambrados determinou a primeira forte “desocupación tecnológica” no Uruguai, já que, “con menos peones se pudo cuidar igual número de animales”. Com o fim dos tempos de “aire libre y carne gorda”, os sem terra migraram para a cidade, arrancharam-se nas beiras dos caminhos ou agregaramse às fazendas.225 Tornados vagos e vagabundos pelo desemprego, os peones e gauchos sofreram a dura repressão dos 221 222 223

224 225

CASTELLANOS, Breve historia de la ganadería en el Uruguay, p. 74. PINTOS, De las vaquerias al alambrado, p. 250 et seq. ORTIZ, Helen. O banquete dos ausentes: a Lei de Terras e a formação do latifúndio no norte do Rio Grande do Sul (Soledade – 1850-1889). Passo Fundo: PPGH UPF, 2006. (Dissertação de mestrado). Cf. CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia..., p. 79. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaquerias al alambrado, p. 253.

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governos militaristas uruguaios de 1875-1886, sensíveis aos latifundiários, que obtiveram, entre outras reivindicações, o direito de organizar “guardas rurales”, a repressão ao abigeato, vagos, pulperias, etc.226

O cercamento dos campos no Sul Salvo engano, são recentes os estudos monográficos sobre o alambramento no Rio Grande do Sul. Em geral, apontase que o cercamento perimetral das fazendas sulinas com arame liso teria iniciado nos anos 1875 e se acelerado nos anos 1885, com a chegada dos arames farpados. Os primeiros rolos de arame teriam chegado ao porto de Rio Grande em fins de 1869.227 Em Rio Grande do Sul: terra e povo, Sérgio da Costa Franco afirma: “Depois de 1870, a pecuária ganhou especial impulso, graças à paulatina introdução das cercas divisórias, que ensejaram a melhoria dos rebanhos, bem como a simplificação das tarefas campeiras.” Para este autor, na “década de 1880” já seria “intenso o comércio de arame, o que denuncia a propagação dos alambrados”.228 Em Campos realengos: formação da fronteira sudoeste do Rio Grande do Sul, Raul Pont propõe que os alambrados foram introduzidos na fronteira oeste em 1872 e no município de Uruguaiana em 1874. Cita depoente que teria ajudado o pai a estender as cercas do Caverá até Rosário, em “mais de 30 léguas”, no início do século, já que, para ele, antes “de 1900 era muito difícil encontrar cercas de arame”. Seriam cercas com três fios e arame preto número 7.229

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Cf. CASTELLANOS, Alfredo R. Breve historia..., p. 70-71. Cf. PONT, Raul. Campos realengos: formação da fronteira sudoeste do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Renascença, 1983. v. II. p. 525. FRANCO, Sérgio da Costa. Rio Grande do Sul: terra e povo. Porto Alegre: Globo, [s. d.]. p. 50-51. Idem, p. 526-527.

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Louis Couty visitou o Rio Grande do Sul em fins dos anos 1870. Referindo-se sobretudo às fazendas de Bagé e de Cerro Largo, afirmou que as cercas de “fios de ferro resistentes fixados em mourões de madeira sólida” eram usadas sobretudo para fechar “potreiros ou partes de campos mais extensas” – invernadas. Registrou que eram em “pequeno número” as “estâncias completamente cercadas”. Assinalou que, comumente, a “natureza arenácea” e a “pouca espessura” dos terrenos impediam que se cavassem fossos duráveis e que experimentos com cercas de vegetais, de cactus e eucaliptos não haviam dado bons resultados na região.230 Severino de Sá Brito presenciou, como menino, as últimas décadas do século 19 e entrevistou velhos estancieiros, ao escrever Trabalhos e costumes dos gaúchos, de 1928, onde propõe que apenas após a Guerra Federalista, em 1895, com a valorização do câmbio e das exportações dos couros, “se desenvolveu em maior escala esse grande reformador dos costumes e da vida rio-grandense, o alambrado”.231 Afirma que, então, em “poucos anos, o arame apoderou-se dos campos, estendeuse por toda a parte, fixou a divisa entre os lindeiros, subindo coxilhas, descendo baixadas e atravessando sangas para divisas da aguadas”. As cercas teriam retalhado os campos em “invernadas, invernadinhas, piquetes, currais e bretes”, acelerando a produtividade. “Acabaram-se as grandes cavalhadas, reduziram-se as eguadas, diminuiu-se a peonada!”232 A expulsão de posteiros, moradores, peões-residentes, etc. das estâncias sulinas não significou rompimento necessário dessa mão de obra com a produção pastoril. Em “O peão de estância”, Laudelino T. Medeiros assinala, para os anos 1960, a existência eventual, nos municípios pastoris, “nos pontos de encontro entre duas ou mais fazendas, junto a uma estrada”, 230 231

232

COUTY, A erva..., p. 210. BRITO, Severino de Sá. Trabalhos e costumes dos gaúchos. Porto Alegre: ERUS, [s.d.]. p. 10. Idem, p. 26.

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de aglomerados de “moradias habitadas por famílias pobres, incluindo quase sempre um ‘bolicho’ e uma cancha de ‘jogo de osso’”. Essa população abastecia as unidades pastoris em trabalhadores permanentes ou temporários.233

Bem mais tarde Mesmo atrasando a data da generalização do cercamento dos campos, Severino de Sá Brito pode ter sido otimista quanto à extensão e ao ritmo do processo. Em suas Memórias, referindo-se aos primeiros tempos da República, João Neves da Fontoura assinalou: “Naquela época – e mesmo muito depois – um cavaleiro que viesse da fronteira de Santana do Livramento a Porto alegre, talvez não abrisse dez porteiras ou, segundo o preguiçoso costume de então, talvez não cortasse outros tantos fios de arame com o alicate que sempre se trazia nos tentos.”234 O certo é que onde se implantou o cercamento das fazendas e a constituição de potreiros e invernadas, possivelmente associado ao crescimento da oferta de trabalhadores, em razão da expansão demográfica e da Abolição, teria se ensejado forte queda dos salários dos peões. Em fins de 1899, na fazenda do Capão da Fonte, no município de Rio Pardo, um peão começou o ano ganhando 16:000 réis e foi aumentado, em dezembro, para 20:000 réis, enquanto um novilho valia setenta e cinco mil-réis. Em média, um novilho pagava 4,3 meses do salário do trabalhador. Em 1918, na mesma fazenda, o peão recebia mensalmente 30:000 réis e o novilho valia 125:000 réis. Mantivera-se relativamente o seu poder aquisitivo, fortemente depreciado. Em 1918, a fazenda vendeu, além de alguns couros, lã, cabelo, por 1.216:200 réis; 283 novilhos e trinta vacas, por 39,5 contos de réis, uma ren233 234

MEDEIROS, O peão..., p. 2. FONTOURA, João Neves da. Memória. 1. Borges de Medeiros e seu tempo. Porto Alegre: Globo, 1969. p. 54.

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da anual equivalente a quase de 1.400 meses de trabalho do peão. O fato de que, nesses anos, a diária do peão, em alguns casos, tivesse o mesmo valor do salário mensal – um mil-réis por dia – registra a perda de poder de barganha do peão. O salário diário era também pago a dois mil-réis ao dia.235 Urgem estudos mais precisos sobre a evolução do valor real do trabalhador livre da campanha sulina. Os dados arrolados nesse trabalho indicariam que um trabalhador livre ganhava, em 1780, ao se estruturar a produção charqueadora, quatro novilhos por mês. Remuneração que cairia, nos anos 1830, antes da Farroupilha, para um novilho mensal. Nos anos 1918-1920, após a expansão da produção pastoril em razão da I Guerra Mundial, o salário do peão reduzira-se a um quarto de novilho, ou seja, era 16 vezes menor do que 140 anos antes!

Um futuro que espelha o passado Laudelino Medeiros produziu, em 1964, o estudo citado, apoiado na participação em pesquisa geral sobre a pecuária sulina, quando dominavam as práticas de pastoreio contínuo que haviam se estruturado, possivelmente, desde os anos 1875, com os primeiros cercamentos dos campos e desescravização das estâncias.236 O trabalho inicia assinalando a gênese latifundiária da propriedade fundiária sulina, seguida de crescimento e posterior queda relativa de dimensão. Em 1960, havia 6.787 explorações com mais de quinhentos hectares, entre as quais 238 possuíam de cinco a dez mil hectares e cinquenta, dimensões maiores do que uma sesmaria – treze mil hectares. Então, em média, as propriedades tinham dois peões e um capataz, como trabalhadores permenentes, e uns 235

236

Cf. Cadernos de notas n. 1 e n. 2 de João Luiz Gomes, 1918-1920. Arquivo pessoal de Mário Maestri. Cf. MEDEIROS, Laudelino T. O peão de estância: um tipo de trabalhador rural. Porto Alegre: UFRGS/Estudos e trabalhos mimeografados, 1969. 57 p.

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474,3 animais por trabalhador. As cercas e as novas instalações teriam permitido que um peão se ocupasse de um maior número de animais. O autor registra dados de 1933, para Júlio de Castilhos, de 666,7 animais por trabalhador. Nas fazendas estudadas, trabalhavam, de forma eventual, o fazendeiro, seus filhos e parentes e, especialmente, assalariados, com destaque para, em 1965, os setenta mil trabalhadores pastoris. O fato de que, em 1950, houvesse no Rio Grande do Sul cem mil operários industriais registra a importância dessa população mantida à margem de qualquer expressão social e política organizada. Capatazes e peões cumpriam, em geral, as mesmas tarefas produtivas. O capataz era um peão mais experiente responsável pela implementação cotidiana de decisões gerais nas quais não intervinha. Nas fazendas maiores, podia haver um sota-capataz. Os trabalhadores assalariados temporários eram o alambrador, o tosquiador, o carpinteiro, o tratorista, o enseminador, etc. Em 1964, o domador e o posteiro estavam já em processo de extinção. Laudelino registra a visão “romântica” e “bucólica” do “citadino” sobre as pesadas e duras tarefas pastoris, iniciadas ao nascer do sol e desenvolvidas sob o rigor das intempéries. Apresentado como uma quase “diversão”, o trato montado do gado em campos abertos foi sempre atividade rústica, causa de acidentes graves e mortais. Assinala a naturalização das condições de trabalho pelos peões e capatazes que desconheciam outra forma de existência. Organizados por produção que os isolava nas fazendas e lhes ensejava percepção individualista de suas práticas sociais, capatazes e peões possuíam limitada consciência das necessidades sociais. Os 32 capatazes entrevistados tinham de 30 a 49 anos de idade, sugerindo que a velhice punha fim aos laços empregatícios. Em geral, eram casados e as mulheres trabalhavam na propriedade. A escolaridade e a dimensão da família dos capatazes eram pequenas – 4,65% pessoas 298

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por família. Os capatazes moravam em casa de madeira, de coberturas de telhas ou de folhas de zinco, sem os confortos habituais na moradia próxima dos patrões – água encanada, eletricidade, banheiros, etc.

Pouco salário Os capatazes recebiam em torno de um salário mínimo e, nas fazendas maiores, possuíam algumas cabeças de gado e, mais dificilmente, um lote de terra, mesmo urbano. Eles conheciam alta rotatividade profissional, baixa mobilidade territorial, escassa ascensão social e eram, em geral, naturais da região e filhos de pais ocupados no pastoreio, não possuindo expectativas de mudar de profissão, da qual não tinham alta estima. Em geral, trocavam de emprego durante a vida produtiva, sempre na região onde nasciam, o que exigia naturalmente respeito à disciplina social, caso quisessem se manter no mercado de trabalho. Era incomum que capatazes e peões procurassem a Justiça do Trabalho. Os peões eram mais jovens e, sobretudo, pardos e negros, herança da importante população de cativos empregada nas estâncias sulinas no passado. Conheciam a mesma baixa mobilidade profissional, social e territorial dos capatazes. Escutavam raramente a rádio, não liam jornais, havia quem não soubesse o que era a televisão em 1964. Em geral, em razão dos descontos cobrados pela alimentação e moradia, recebiam salário abaixo ao mínimo da época, não raro inferior ao determinado por lei. Visitavam volta e meia as povoações próximas, usando os veículos da estância ou o ônibus e, raramente, o cavalo. Os fazendeiros negavam-se a empregar peões casados. Quase 75% dos peões eram solteiros, não possuindo, portanto, de forma geral, direito à família e à reprodução, o que contribuiu para o escasso desenvolvimento demográfico e econômico O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense...

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das áreas pastoris sulinas. O autor descreve a triste moradia do peão: “[...] dormem numa peça junto ao galpão, mais propriamente uma divisão no galpão: o quarto dos peões. Ali se encontram quatro ou cinco camas rústicas [...].” Assinala que as instalações se encontravam em “contraste acentuado com as usadas pelos fazendeiros”. O quarto dos peões era, entretanto, uma melhoria em relação ao passado, quando os peões dormiam habitualmente no galpão, mais ou menos próximos do fogo, segundo a época. Laudelino assinala rapidamente os efeitos dissociativos, pessoais e grupais, da manutenção de população masculina jovem, semiencerrada, à margem do direito de acasalar-se e constituir família. Era habitual que nas comunidades pobres próximas às fazendas, ao lado do “bolicho” e da “cancha”, houvesse prostíbulos onde o peão deixava periodicamente seu magro salário na mesa, bebendo cachaça e carteando com jogadores espertos, ou na pista de dança e no catre, com mulheres tristes, prostituídas, em virtude impossibilidade de outra inserção social. Temos ricas notícias sobre os hábitos zooeróticos e escassa informação sobre as ideologicamente mais corrosivas práticas homossexuais eventuais do peão. O peão possuía vida cultural pouco desenvolvida, valorizava escassamente a profissão, não tinha planos estruturados para o futuro. Questionado sobre o que pretendia fazer sobre sua vida, um jovem peão respondeu: “[...] se í dando certo, vô ficando.”

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