Mai Waifu: relacionamentos \"reais\" com personagens \"fictícias\"

August 4, 2017 | Autor: Vlad Schüler | Categoria: Philosophy of Agency, Japanese Popular Culture, Human-Nonhuman relations
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1 Mai Waifu: relacionamentos “reais” com personagens “fictícias”1 Vlad Schüler-Costa2 Mestrando (2º ano) – PPGAS/MN/UFRJ

Ao se conviver tempo o suficiente com otakus – fãs da cultura de massas japonesa –, é grande a probabilidade que a palavra waifu surja, cedo ou tarde – especialmente se tal convívio se der na internet. Inicialmente mais um vocábulo estranho com sonoridade vagamente japonesa – algo normal, portanto, para o observador experiente – essa palavra torna-se cada vez mais curiosa à medida que o pesquisador adentra a toca do coelho que é a rede de significados tecida ao seu redor. Waifu é, como grande parte do vocabulário otaku, um termo originado de um desenho animado, e cuja tradução literal é “esposa” – sendo simplesmente a pronúncia japonesa da palavra inglesa wife3. Essa tradução, porém, não faz jus ao complexo significado que o termo carrega: quando um otaku se refere à sua waifu, ele está se referindo a uma personagem com a qual ele tem um relacionamento emocional específico. Para citar um texto que discute justamente o que viria a ser uma waifu4: A waifu is many things to many different people, but, in essence, is the embodiment of your ideal significant other. […] A waifu is that character that you simply cannot wait to see appear on screen and deliver their next enigmatic line. A waifu is the personification of that which makes you feel safe, secure, and confident. (“Waifu F.A.Q.”)5

Embora essa definição não seja, de forma alguma, hegemônica ou inconteste (quase nada o é dentro da comunidade otaku), ela nos serve para demonstrar o tipo peculiar de conexão existente entre o otaku e sua waifu – conexão que, de fato, é constantemente comparada

Uma primeira versão desse trabalho foi apresentada na disciplina “A Imagem Ritual – Agência, Artefato, Pessoa”, ministrada pelo professor Carlos Fausto. Agradeço a ele pelos comentários feitos então. Agradeço também a Guilherme Fians pelos comentários e revisão na versão final. 2 Contato: [email protected], ou pelo Twitter @vladschuler 3 Existe, embora seja menos utilizada, a versão masculina do termo: husbando ou hasubando. Porém, por ser mais comum e para facilitar a leitura do texto, o termo será utilizado somente em sua versão feminina, waifu. 4 Existe uma longa tradição na comunidade otaku de autorreflexão a respeito dos fenômenos sociais dos quais eles fazem parte – o que, incidentalmente, adiciona ainda mais uma camada de reflexão ao antropólogo. 5 Este documento, que será citado à exaustão, pode ser visto no Anexo I 1

2 à conexão existente entre dois esposos “de verdade” 6 (inclusive para afirmar, de forma um tanto cínica, que a conexão com uma personagem é muito mais profunda que a com alguém “de carne e osso”). Com o que vimos até então, poderíamos dizer que waifu é uma personagem com a qual tem-se um relacionamento emocional, íntimo e/ou amoroso – uma alma gêmea, portanto. Nesse momento, várias perguntas surgem: como é possível que alguém tenha por alma gêmea um ser que, objetivamente falando, não existe?

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Como funciona esse

relacionamento? O que leva o indivíduo a ter esse tipo de relação? Há, afinal, uma humanidade nessas personagens? Essas perguntas, embora não sejam fáceis de responder, nos dão pistas sobre o que esse fenômeno pode nos dizer – sobre otakus e sobre “pessoas normais”. Mas vamos por partes.

Casos e relatos Nesse ponto, é importante ressaltar um dado importante: apesar de estar estudando otakus há mais de cinco anos, (e estar convivendo entre eles há quase quinze), não conheci até hoje uma pessoa que afirmasse, sem deixar margem de dúvida, que tivesse uma waifu8. Todos os casos que tenho conhecimento me foram relatados por terceiros que, no máximo, conheciam alguém que tinha uma fixação com um personagem, ou, na maior parte dos casos, simplesmente estava replicando uma notícia ou imagem que estava circulando a internet. A falta de casos concretos, porém, não torna a figura da waifu menos presente no imaginário otaku. Histórias de japoneses, chineses ou coreanos (pessoas “no outro lado do mundo”, portanto) que chegam até a organizar cerimônias de casamento são veiculadas e discutidas com certa regularidade 9 . Várias personagens têm seus aniversários comemorados anualmente por otakus no mundo todo. E, no cotidiano, os otakus utilizam Entre os otakus japoneses, inclusive utiliza-se o mesmo termo para waifus e para esposas: “yome”. Uma das primeiras respostas que vem à mente – transtorno mental, particularmente esquizofrenia – é, obviamente, a errada. Como diz Hiroki Azuma, citando a psiquiatra Saitō Tamaki, a incidência de transtornos mentais entre os otakus não é particularmente acentuada (ela diz inclusive, e a resposta a tal questão não deve ser de origem psiquiátrica. (Azuma, 2009, 88-9) 8 Houve um caso de uma pessoa que me disse, em tom jocoso, que em sua adolescência havia tido certa atração por determinado personagem, ao ponto de ter feito um desenho do “casal”. Mas ainda assim, não só era um relato do passado, mas de uma época da vida que “não se deve levar à sério”. 9 Confira, por exemplo, http://www.escapistmagazine.com/news/view/98910-Korean-Otaku-MarriesAnime-Body-Pillow ou http://www.telegraph.co.uk/technology/video-games/6651021/Japanese-gamermarries-Nintendo-DS-character.html 6 7

3 o termo waifu constantemente, para se referir a uma miríade de personas (personagens ou humanas) com as quais exista uma identificação, uma atração ou até mesmo uma relação. Waifus, portanto, mais que seres cuja existência é inequívoca e indiscutível, pertencem a uma espécie de limbo existencial – sendo referência das mais diversas relações e, no fundo, tratadas mais como seres em potencial do que como seres existentes de fato. Podese dizer, de certa forma, que elas são tratadas como as bruxas do famoso ditado galego – no creo en ellas, pero que las hay, las hay.

Fisicalidade metafórica Por outro lado, objetos que sirvam de indício dessas relações não faltam. O mercado da cultura de massas japonesa, notório por comercializar tudo que possa ser comercializado, disponibiliza, além de bonecos de resina, pôsteres, pelúcias, cartões, quadros, cardboards 10 e outras diversas formas (físicas ou digitais) de representação das personagens, o suprassumo do universo simbólico das waifus: o dakimakura. Dakimakuras são fronhas de travesseiros de corpo inteiro (do tipo que pode ser utilizado para auxiliar pessoas com problemas de coluna), em cujas faces estão estampadas personagens nas mais diversas poses (normalmente eróticas ou “sugestivas”), sendo a forma mais simbólica de representar uma waifu – já que torna-se não só possível mas praticamente obrigatório o ato de “dormir” com a waifu. E é a partir desses objetos, e das ocasiões em que eles seriam ritualmente utilizados – os chamados “yome to no bansan” (“jantar com a waifu”)11 – que começamos nossa análise, partindo da pergunta: como, afinal, se dá a percepção de que a figura ali presente seja outra pessoa? Vejamos o que alguns autores poderiam adicionar à discussão. David Freedberg, em seu The Power of Images (1989), nos diz que nós, seres humanos, inicialmente reagimos às imagens como se fossem seres humanos de fato – embora depois racionalizemos que elas não o são. O problema é que essa explicação não é suficiente para explicar o relacionamento “pós-resposta” que se dá com a imagem: não temos essa

Figuras em tamanho real – ou quase – feitas de papelão. Uma “refeição romântica” que ocorre em ocasiões especiais (como aniversários, dia dos namorados ou Natal), na qual o otaku “janta” junto de uma efígie de sua waifu – e, como tal, compartilha com ela a comida e a bebida que consome na refeição. 10 11

4 suposta racionalização no caso das waifus – elas são tratadas o tempo todo como se fossem pessoas. Alfred Gell, em Art and Agency (1998), nos diz que nossa relação com art-works se dá também pela abdução de agência do objeto – ou seja, nós tratamos obras de arte como se fossem dotadas e/ou mediadoras de agência (ou, melhor dizendo, os objetos que tratamos como se fossem dotados de agência são considerados por Gell como o foco de sua antropologia da arte). Essa noção nos é mais interessante, pois ela pode nos ajudar a explicar o fenômeno em questão. O otaku de fato trata sua waifu como se ela fosse um ser dotado de agência – ela pode ter opiniões, humores, interesses, preferências, etc. Porém, sua teoria também nos traz mais questões: se a imagem da waifu é um índice de uma agência que está sendo abduzida – ou seja, o otaku, ao visualizar a imagem de sua waifu, está inconscientemente fazendo uma inferência causal de que essa agência percebida por ele está, na verdade, somente sendo mediada pela imagem – então temos que ter uma “fonte última” de agência. Para utilizarmos as fórmulas que ele tanto preza, teríamos: [[?-A] -> [Index-A (Imagem)]]  [Recipient-P (Otaku)] A questão que se põe, portanto, é “de quem essa agência está sendo abduzida?”. Uma resposta fácil seria “a agência abduzida é a agência do artista” – a personagem criada seria, ultimamente, uma extensão da agência de seu criador. Essa resposta está, é claro, errada. O otaku não percebe o artista como sendo uma figura relevante na relação entre ele e sua waifu – o criador seria, no máximo, uma “figura paterna” de sua criação, mas sem qualquer controle ou influência direta na relação entre o casal. De fato, existe a noção (comum inclusive no meio literário) de que a personagem, depois de criada, cria uma “vida própria” – e seu criador não tem mais controle algum sobre ela. Outra resposta, essa menos problemática, seria a de que a imagem seria o índice da agência do protótipo que, por sua vez, seria a “noção abstrata” da personagem. Convertendo em outra fórmula, teríamos: [[Prototype-A (Personagem)] -> [Index-A (Imagem)]]  [Recipient-P (Otaku)] Essa fórmula nos permite traçar um paralelo curioso. Comparemo-la agora à seguinte fórmula, proposta por Gell (1998, p. 67, com modificações nossas): [Prototype-A (Deity)]  [[Index-P (Shaman)] -> [Recipient-P (Congregation)]]

5 Essa fórmula, ele nos diz, é referente à situação de possessão. O xamã é visto pela congregação de fiéis como sendo recipiente da agência divina, que está determinando as ações do xamã – que, por sua vez, está influenciando o público observador que é a congregação. Esse fenômeno de possessão, por sua vez, é análogo à sua noção de idolatria. Em sua análise da estátua de Shiva (pp. 124-6), Gell se debruça sobre o problema filosófico-teológico da diferença entre um ídolo religioso e uma simples estátua de pedra. Seu argumento é que o ídolo está, de fato, possuído pela sua respectiva divindade, ao ponto que a estátua não. E, principalmente, a mobilidade do ídolo não está diretamente relacionada à sua agência. Afinal, “‘agency’ implies the possession of a mind which ‘intends’ action prior to performing them. ‘Not moving’ is an ‘action’ in this sense.” (p. 125). Podemos entender, portanto, que a imagem da waifu é tal qual um ídolo religioso: somente um meio através do qual se facilita o acesso ao verdadeiro protótipo. Isso nos é interessante porque há uma incrível ressonância com a explicação nativa: I must stress that you CAN love a concept. A concept is where love COMES from. You aren’t ever in love with a PERSON, you’re infatuated with your CONCEPT of them. Without the actual merging of consciousness, it is physically impossible to truly know and love a person. A waifu is nothing more than that concept rendered intangible. (“Waifu F.A.Q.”)12

Porém, ao mesmo tempo em que essa explicação nos parece mais correta, ela continua tendo um sério problema: seu poder explicativo torna-se quase nulo. Dizer que “a imagem é percebida pelo otaku como sendo somente um meio de representar a personagem” é constatar o óbvio, e não responde à questão de “se há, afinal, abdução de agência, de onde o otaku abduz a agência da personagem (/protótipo/conceito)?”. No final das contas, nossa questão não é a mesma de Gell: a questão dele era “como é possível que as imagens sejam tratadas como pessoas?”, e a nossa, como acabamos de ver, é “como é possível que uma personagem (‘fictícia’) seja tratada como pessoa?”. Nosso problema não é com o índice, e sim com o protótipo. Humanos e não-humanos Edmund Leach, em sua notória análise da investidura do título de Cavaleiro na corte britânica (Leach, 2000), traz duas noções que julgamos relevantes para nossa discussão.

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Podemos ver aqui também que a questão da waifu não pode ser resumida a uma simples tensão entre representação e presença. Em teoria, como a infatuation se dá com um conceito, e não com a “pessoa (ou objeto) real”, a existência desse último não é estritamente necessária – embora, como vimos acima, seja desejável.

6 Primeiramente, ele nos diz que, para a análise antropológica, não deve haver diferença entre as “cerimônias” civis e os “rituais” religiosos – já que ambos tratam-se, efetivamente, de performances desempenhadas pelos indivíduos. A partir dessa noção, portanto, ele cria sua teoria de que, em performances cerimoniais civis, existe um “conceito metafísico” que desempenha o mesmo papel que a divindade desempenha em performances rituais religiosas (esse conceito pode ser a “Soberania” ou o “Estado”, por exemplo). O importante aqui, no caso, é essa equivalência analítica entre “divindades” e “conceitos metafísicos”. Já deixamos claro, na seção anterior, que consideramos a personagem, enquanto protótipo da imagem, como sendo um “conceito” – e também deixamos a entender que igualamos, como o faz Leach, esse conceito à categoria “divindade” (ao menos nos casos do xamã e do ídolo). Isso não quer dizer que consideremos que os otakus “idolatrem”, no sentido estrito, suas waifus – como também não poderíamos considerar que os súditos da rainha “veneram” a “Soberania Britânica”. Se considerarmos, portanto, que não há uma abdução da agência no que concerne a personagem – já que ela é, repetimos, um “conceito metafísico” – devemos entender que a sua agência não é derivada de algo. Ou seja: tal como uma divindade, a waifu é dotada de agência própria. O que ocorre, portanto, na relação otaku-waifu, não é uma abdução – e sim o que poderia ser chamado de “atribuição de agência”. Tal expressão, porém, só faz sentido se entendermos “agência” no sentido gelliano – agência sendo a intenção de ação provinda de uma mente. Contudo, ainda que nos ajude a entender melhor o fenômeno, essa conclusão ainda é insatisfatória: como é possível que um “conceito metafísico” possua uma mente? Para responder essa questão, portanto, torna-se indispensável problematizar o conceito de agência – ou, na verdade, os conceitos de “agente” e “ator”. E é justamente o que faz Bruno Latour em seu Reassembling the Social (2005). Ao discutir a multiplicidade de agências em qualquer situação social, Latour chega a duas conclusões que podem ajudar a resolver nosso busílis. A primeira delas é a que, na verdade, nunca existe uma única agência em questão. De fato, como o próprio termo “ator” indica 13 , há sempre uma quantidade de agências

“To use the word ‘actor’ means that it’s never clear who and what is acting when we act since an actor on stage is never alone in acting.” (LATOUR, 2005, loc. cit.) 13

7 influenciando a ação deste. De fato, diz ele, “[action] is not a coherent, controlled, wellrounded, and clean-edged affair.” Muito pelo contrário, “action is borrowed, distributed, suggested, influenced, dominated, betrayed, translated” (Latour, 2005, p. 46). Além disso, nos diz Latour, não há motivo nenhum para restringir a possibilidade de ação somente a humanos (pelo contrário, há vários motivos para não fazer tal restrição). Para ele, a própria noção de “intencionalidade” da ação seria o problema – já que ela restringe a possibilidade de ação de não-humanos, sem trazer qualquer vantagem explicativa. Ele propõe, portanto, que “any thing that does modify a state of affairs by making a difference is an actor”. O papel do pesquisador, portanto, é o de analisar se algo “faz uma diferença” ou não no curso de ação de algum outro ator. Caso positivo, esse “algo” deve ser considerado um ator, independentemente de ser ou não um ser humano. A questão que isso nos põe, portanto, é a seguinte: “a waifu, então, interfere de alguma forma na ação do otaku?”. E, como nos recomenda Latour, voltamos a “seguir os atores”: Live life the way you think would make your waifu happy. You’ll know you’ve found the right waifu if you unconsciously begin judging your actions according to both your and her moral standards. (“Waifu F.A.Q.”)

Visto que a waifu influencia – ainda que indiretamente – o comportamento do otaku, não nos resta dúvida que ela pode ser entendida como sendo, para todos os propósitos, um ator. Isso nos traz, por fim, a uma última questão: “como é socialmente (e individualmente) aceitável que um otaku tenha seu comportamento influenciado por um personagem?” Os solipsistas estão chegando Essa pergunta acima, contudo, merece ser respondida em partes. A primeira – “como é socialmente aceitável que um otaku tenha seu comportamento influenciado por um personagem?” – é fácil de responder: não o é. Esse relacionamento é claramente repreendido pela sociedade abrangente, e mesmo a maioria dos otakus o considera anômico

ou,

no

mínimo,

“estranho”.

Existe, porém, uma “sociedade significativa” (Goffman, 2001, p. 112) 14 de pessoas – otakus ou não – que partilham de relacionamentos parecidos ou, pelo menos, não “julgam” quem tem esse tipo de relacionamentos. Só que essa “sociedade” (por falta de melhor

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Aqui utilizo esse termo no sentido de uma comunidade de pessoas que não necessariamente se conhecem pessoalmente (uma Gesellschaft, portanto [TÖNNIES, 1961]), mas que compartilham de um mesmo universo de significados.

8 nome) tem como principal locus de interação a Internet – o que, de certa forma, faz com que a comunicação entre seus membros acabe sendo mediada (tanto fisicamente – por computadores, smartphones, tablets – quanto virtualmente – pelos sites, fóruns e redes que aceitem esse tipo de discussão). Esta comunicação mediada, embora não necessariamente menos legítima, só traz mais uma camada ao que chamaremos de “espectro solipsista”. E é dele que trataremos agora. Eduardo Viveiros de Castro, ao discorrer sobre o perspectivismo, afirma que, em contraponto a ele, “[n]ossa cosmologia supõe a distintividade singular dos espíritos, mas nem por isso declara impossível a comunicação (embora o solipsismo seja um problema constante)”, e que “este deriva da incerteza de que a semelhança natural dos corpos garanta a comunidade real dos espíritos” (Viveiros de Castro, 1996, p. 132). Entre os otakus, contudo, esse “espectro” é muito mais vívido do que entre “nossa cosmologia”. Não só existe o risco da comunicação ser efetivamente impossível, como existe até mesmo o risco de que não existam outras pessoas com quem se comunicar – e que todo o universo percebido pelos nossos sentidos seja uma mera ilusão sensorial, à la Descartes (embora essa possibilidade não seja muito discutida) 15. De qualquer forma, a possibilidade da impossibilidade da comunicação, tanto ao nível mais superficial quanto ao nível mais profundo, pode ser vista nestes dois excertos: Shamisen the Cat: –Indeed, from your perspective, it may appear that I am emitting sounds which resemble human speech. –If that is the case, how can you be sure that the sounds I emit are meant to express the meaning of the words you hear? Kyon: –It's, you know... –Because you're answering my questions. Shamisen the Cat: –Is it not possible that the sounds I am emitting simply conform by coincidence to the conditions of an answer to your question? Kyon: –Wouldn't your reasoning mean that fellow human beings could be talking without holding an actual conversation? Shamisen the Cat: –You are absolutely correct. –Two people could engage in actions that would make it appear as though a conversation was occurring, and nobody would have any way of knowing 15

Esse conceito é uma constante em várias tradições filosóficas e artísticas japonesas, especialmente as diretamente influenciadas pelo zen budismo.

9 whether or not accurate communication occurred. (“The Melancholy of Haruhi Suzumiya”, episódio 24)

Without the actual merging of consciousness, it is physically impossible to truly know and love a person. (“Waifu F.A.Q.”)

Embora ambos os excertos sejam, de certa forma, exageros (visto que o primeiro é um trecho de uma animação famosa por sua verve absurdista e o segundo seja de um documento online que justifica filosoficamente a existência das waifus), ainda assim eles nos servem para mostrar que o “universo” no qual os otakus circulam é um “universo” em que a comunicação com outros seres humanos não está dada a priori. Nesse momento, contudo, eu gostaria de trazer à discussão, mais que “universos”, “frames”. Goffman nos diz que “definitions of a situation are built up in accordance with principles of organization which govern events – at least social ones – and our subjective involvement in them; frame is the word I use to refer to such” (Goffman, 1986, pp. 1011). Sua frame analysis é, portanto, uma análise da organização da experiência. Isso quer dizer que, para Goffman, a forma como os eventos são compreendidos depende dos esquemas

mentais

de

quem

o

observa.

Uma das consequências disso é que, a todo e qualquer momento, existe uma infinitude de “mundos”/frames sendo vivenciados por diferentes pessoas – e, mais importante, nenhum desses “mundos” tem prioridade de existência sobre os outros (idem, pp. 5-6). Incidentalmente, a noção de “frame” também nos ajuda a responder a segunda parte da nossa questão – “como é individualmente aceitável que um otaku tenha seu comportamento influenciado por um personagem?”. Se frames são as maneiras como as experiências são organizadas, as situações são definidas e o(s) mundo(s) é(são) interpretado(s), eles são ao mesmo tempo individuais e sociais – embora cada pessoa interprete o mundo à sua maneira, as regras de interpretação (ou, como diria Goffman, “as regras do jogo”) podem (e normalmente são) compartilhadas. Seria correto, portanto, afirmar que os otakus participam de um frame em que a comunicação – e tudo que dela decorre – não é prerrogativa dos humanos, e pode ser que eles nem dela participem. Pós-modernidade “animalesca” O filósofo Hiroki Azuma, em seu trabalho seminal sobre otakus (Azuma, 2009), traz à tona um ponto importante: a tendência dos otakus de “perderem-se em suas fantasias”,

10 dando prioridade à ficção em detrimento da “realidade” – algo que, inspirando-se nos escritos do filósofo franco-russo Alexandre Kojève, ele chama de “animalização da humanidade”. Essa “animalização”, diz Azuma, consiste em ser guiado por necessidades (que seriam as relações possíveis de serem satisfeitas, tendo como paradigma a relação fome-comida), em contraponto aos desejos (que seriam as relações que não seriam possíveis de serem satisfeitas, como o amor ou a busca por conhecimento). Há também uma segunda distinção, consideravelmente antropocêntrica, de que as necessidades seriam satisfeitas por objetos (comida ou abrigo, por exemplo) e os desejos, por outros humanos (a pessoa amada ou um interlocutor inteligente). (Azuma, 2009, p.86). Essa “animalização”, portanto, seria um fenômeno típico da pós-modernidade e daquilo que ele denomina “o fim da grande narrativa” que permeou a modernidade (idem, p. 27). Diz Azuma que os otakus são o exemplo máximo dessa tendência pós-moderna de “animalização”, em que a satisfação de necessidades suplanta a satisfação de desejos e que, na verdade, a satisfação de necessidades chega a ser independente do contato com outros humanos: In our era, most physiological needs can be satisfied immediately in an animalistic manner. (…) Since sociality with the other is no longer necessary, this new sociality has no foundation in reality and is based solely on individual volition. (idem, p. 93)

Como a socialidade – algo que, em seu pensamento, é necessário para que existam desejos – deixa de ser compulsória e passa a ser voluntária, a empatia também deixa de existir. Tudo isso, é claro, é sintoma da falta de contato com outros humanos: [Otaku] communication consists in large part of exchanges of information. In other words, their sociality is sustained not by actual necessity, as are kinship and local community, but by interest in particular kinds of information. Therefore, while they are quite capable of exercising their sociality as long as they can gain useful information for themselves, they always reserve the freedom to depart from the communication. (…) [N]o matter how much otaku engage in human communication such as competition, envy, and slander, these are essentially mimicry, and it is always possible to “drop out” of them. (ibidem)

Todo esse panorama pessimista16 leva Azuma a elaborar aquela que será sua frase mais importante para nossa compreensão das waifus: “As I have argued repeatedly, the otaku feel stronger ‘reality’ in fiction than in reality” (ibidem). Se considerarmos que a “realidade sem aspas” a que ele se refere seja o frame que Goffman chama, citando William James e Alfred Schutz, de “working world” ou “world 16

Que é muito influenciado pelo zeitgeist do Japão dos anos 1990, e do qual eu discordo em parte.

11 of everyday life” (Goffman, 1986, pp. 2-6), os otakus, com Goffman, não estão convencidos “whether everyday, wide-awake life can actually be seen as but one ruleproduced plane of being, if so seen at all” (idem, p. 5). E se não há motivos para que os otakus priorizem a “realidade” em detrimento da “ficção”, seria de se esperar que alguns não o façam – daí o surgimento do fenômeno das waifus. Não é (necessariamente) que os otakus busquem na ficção aquilo que eles não conseguem na realidade – e sim que não há motivos para buscar na realidade aquilo que eles conseguem na ficção. Um caso agudo de pós-modernidade Por mais que possamos discordar de Azuma, em um ponto ele aparenta estar correto: o fato de que essa tendência de borrar a barreira entre “ficção” e “realidade” é uma característica pós-moderna. Quem nos diz isso, do outro lado do mundo, é Sherry Turkle. Em seu primoroso Alone Together (2011), a autora nos traz a seguinte anedota – tão fantástica que torna-se difícil reproduzi-la em algo menos que sua totalidade: In late November 2005, I took my daughter Rebecca, then fourteen, to the Darwin exhibition at the American Museum of Natural History in New York. (…) At the exhibit’s entrance were two giant tortoises from the Galápagos Islands, the best-known inhabitants of the archipelago where Darwin did his most famous investigations. The museum had been advertising these tortoises as wonders, curiosities, and marvels. Here, among the plastic models at the museum, was the life that Darwin saw more than a century and a half ago. One tortoise was hidden from view; the other rested in its cage, utterly still. Rebecca inspected the visible tortoise thoughtfully for a while and then said matter-of-factly, “They could have used a robot.” I was taken aback and asked what she meant. She said she thought it was a shame to bring the turtle all this way from its island home in the Pacific, when it was just going to sit there in the museum, motionless, doing nothing. Rebecca was both concerned for the imprisoned turtle and unmoved by its authenticity. It was Thanksgiving weekend. The line was long, the crowd frozen in place. I began to talk with some of the other parents and children. My question— “Do you care that the turtle is alive?”—was a welcome diversion from the boredom of the wait. A ten-year-old girl told me that she would prefer a robot turtle because aliveness comes with aesthetic inconvenience: “Its water looks dirty. Gross.” More usually, votes for the robots echoed my daughter’s sentiment that in this setting, aliveness didn’t seem worth the trouble. A twelve-year-old girl was adamant: “For what the turtles do, you didn’t have to have the live ones.” Her father looked at her, mystified: “But the point is that they are real. That’s the whole point.” (Turkle, 2011, pp. 3-4)

“That’s the whole point”, de fato. Não somente em relação à “aliveness” das tartarugas de Galápagos, mas à “aliveness” como um todo – especialmente, no caso que nos

12 interessa, às relações com outras pessoas.

Ao analisar essa anedota, Turkle nos diz o

seguinte: I believe that in our culture of simulation, the notion of authenticity is for us what sex was for the Victorians—threat and obsession, taboo and fascination. I have lived with this idea for many years; yet, at the museum, I found the children’s position strangely unsettling. For them, in this context, aliveness seemed to have no intrinsic value. (idem, p. 4)

Essa noção – de que a “aliveness” não tem um valor intrínseco – é, como ela bem diz, inquietante. Ela vai contra tudo que nós, enquanto sociedade (ou “cultura”, ou “cosmologia”), fomos acostumados a pensar durante as últimas centenas de anos. E é por isso que a ideia de que existam pessoas que tenham relacionamentos “reais” com personagens “fictícias” é incômoda. Um mundo as if Para finalizar, é importante deixar claro, o aspecto duplamente ambivalente da waifu – além de sua posição incômoda entre realidade e ficção, sua própria existência enquanto fenômeno é contestada no dia-a-dia dos otakus. Explico: como já foi dito anteriormente, eu não conheço nenhum caso concreto de alguém que admitisse ter uma waifu. Porém, conheço inúmeros casos de otakus que, em um momento ou outro, disseram ter uma waifu17 – mas essas enunciações sempre estiveram em situações (frames) de jocosidade, de ambiguidade, de brincadeira. “Ninguém leva a sério”, poderia ser dito. Mas a questão é que essa é uma brincadeira que é, na verdade, levada a sério. Tomemos o exemplo da página do Facebook “Estudando para concurso público com a waifu”, que, no momento da escrita, tinha 9.380 “curtidas”. Embora atualmente seja uma página de humor politizado, ela surgiu com uma simples ideia: De acordo com Roberto Berruezo Maia, co-criador da página, tudo começou com uma piada interna entre ele e sua namorada, Hannah McComb, em uma época em que ele estava estudando para um concurso público e se lembrou do costume japonês de utilizar personagens de anime (normalmente do sexo feminino) como inspiração. “A gente fez umas imagens e nossos colegas começaram a compartilhar. Quando percebemos, tinha gente pedindo que a personagem favorita aparecesse junto com um concurso específico e resolvemos continuar a brincadeira com a galera”, explicou Roberto. (“Like a Nerd”)

Eu mesmo, em conversas com meus interlocutores - durante o campo ou não – já me referi a várias personas como minhas waifus. 17

13 Ou seja: a ideia era compartilhar, com outros otakus, imagens de personagens incentivando a pessoa em questão a estudar para o concurso público desejado (que posteriormente abrangeu também outras formas de seleção, como vestibulares). A página, portanto, tem como raison d'etre uma brincadeira (uma paródia, até) sobre um fenômeno cuja existência nunca é questionada – não no sentido de “inquestionável”, mas no sentido de “não é afirmada nem repelida”. Se estudar com sua waifu é “um costume japonês”, presume-se que ele exista, mas será ele praticado desse lado do mundo? A dúvida paira no ar. Essa página, junto de todas as outras incontáveis ocasiões em que um otaku afirmou ter uma waifu, são indícios de que esse frame “de brincadeira” é mais sério do que aparenta. Existe sempre a possibilidade de que as pessoas que submetem conteúdo para a página, ou que afirmam jocosamente ser apaixonadas por determinada personagem estejam utilizando a “fantasia” da brincadeira para afirmar suas verdades. É por isso que eu afirmo que, no imaginário otaku, a waifu ocupa uma posição as if (em contraposição ao as is [Seligman et alli, 2008]): para (quase) todos os efeitos, os otakus comportam-se como se waifus existissem. Eles não sentem ser necessário afirmar enfaticamente a não-existência dessas, nem o oposto. É como se dissessem, constantemente “não que elas existam, veja bem. Mas vai que...”

14 REFERÊNCIAS AZUMA Hiroki. Otaku: Japan’s database animals. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009. FREEDBERG, David. The Power of Images: studies in the history and theory of response. Chicago: University of Chicago Press, 1989. GELL, Alfred. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Clarendon Press, 1998. GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2001. __________. Frames Analysis: An Essay on the Organization of Experience. Boston: Northeastern University Press, 1986. LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: An introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford University Press, 2005. LEACH, Edmund. Once a Knight is Quite Enough: como nasce um cavaleiro britânico. In: Mana. Vol. 6, n. 1, 2000. SELIGMAN, Adam B.; et alli. Ritual, Play and Boundaries. In: __________. Ritual and its consequences: an essay on the limits of sincerity. Oxford: Oxford University Press, 2008. TÖNNIES, Ferdinand. Gemeinschaft and Gesellschaft. In: Parsons, Talcott; et alli. Theories of Society: Foundations of Modern Sociological Theory. New York: The Free Press of Glencoe, 1961. TURKLE, Sherry. Alone Together: why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books, 2011. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. In: Mana. Vol. 2, n. 2, 1996.

Referências online:

15 The

Escapist:

“Korean

Otaku

Marries

Anime

Body

Pillow”

-

http://www.escapistmagazine.com/news/view/98910-Korean-Otaku-Marries-AnimeBody-Pillow The

Telegraph:

“Japanese

gamer

'marries'

Nintendo

DS

character”

-

http://www.telegraph.co.uk/technology/video-games/6651021/Japanese-gamer-marriesNintendo-DS-character.html Facebook: “Estudando para concurso público com a waifu” https://www.facebook.com/pages/Estudando-Para-Concurso-Público-com-aWaifu/255374504631349 Like a Nerd: “Estudando Para Concurso Público com a Waifu, a página que mistura política com anime!” - http://likeanerd.pop.com.br/estudando-para-concurso-publicocom-waifu-pagina-que-mistura-politica-com-anime/ Imgur: “Waifu F.A.Q.” - http://i.imgur.com/Z3xoRJC.png

16 ANEXO I – “Waifu F.A.Q.”

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