Mais algumas ideias equivocadas sobre os indios

May 31, 2017 | Autor: André Demarchi | Categoria: Etnologia, Educação Indígena, Antropologia
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Mais algumas ideias equivocadas sobre os índios ou o que não deve mais ser dito sobre eles1

André Demarchi2 Odilon Morais3

No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. (Eduardo Viveiros de Castro)

O título do presente artigo é uma alusão ao título de um texto que já tem se tornado clássico entre os estudiosos da temática indígena. Trata-se do texto “cinco ideias equivocadas sobre os índios”, escrito pelo antropólogo José Bessa Freire (2002). A grandeza e ao mesmo tempo a simplicidade desse texto se expressa na apresentação didática e bem ilustrada (com uma variada gama de exemplos interessantes) de uma matriz de pensamento composta por cinco ideias pré-concebidas (e articuladas entre si) sobre os povos indígenas brasileiros. Essa ideias sintetizam hábitos do pensamento e práticas cotidianas que são colocadas em ação por diferentes grupos da também diversificada sociedade brasileira que se auto-identificam como não-indígenas. Do homem do campo ao cientista, do pobre ao rico, do professor ao aluno, do pai ao filho, do cidadão comum ao eminente político – para todos esses e para muitos tipos mais, em diferentes contextos de interação cultural, as ideias equivocadas do “índio

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Este texto não seria possível sem a contribuição dos estudantes do curso de ciências sociais da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Tocantinópolis. Em especial agradecemos às estudantes Lidiane da Conceição Alves e Welitania Oliveira pela dedicação aos estudos e pesquisas com a temática indígena. 2

André Demarchi é doutor em antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor e pesquisador na Universidade Federal do Tocantins. Realiza pesquisas com os povos Mebengôkre-Kayapó e Apinajé. 3

Odilon Morais é mestre em antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da Universidade de Brasília. É professor e pesquisador na Universidade Federal do Tocantins. Realiza pesquisas com os povos Xerente e Apinajé.

genérico”, das “culturas congeladas e/ou atrasadas”, de “que os índios pertencem ao passado” e, finalmente, de que “o brasileiro não é índio”, se apresentam como uma matriz de pensamento finamente construída a mais de quinhentos anos. Como afirma Freire, essa matriz direciona ou, poderíamos mesmo dizer, governa de modo eficaz e contundente as formas de relação da sociedade brasileira em seus mais diversos estratos sociais com as também diversas sociedades indígenas. As cinco linhas de pensamentos preconceituosos que se cruzam nessa matriz apresentada pelo autor se desdobram em tantos outros equívocos igualmente preconceituosos, mas muito recorrentes no imaginário das pessoas não indígenas: por exemplo, a ideia de que o “índio é preguiçoso”; de que o cidadão indígena é um “hipercidadão”, pois teria mais direitos que outro cidadão não-indígena perante a Constituição Federal; de que “existe muita terra para pouco índio”, de que o “índio é camponês”, ou, finalmente, de que a terra indígena é signo de “atraso para o desenvolvimento” dos municípios que estão ao seu redor. Neste artigo, retomamos os cinco equívocos tematizados por Freire para posteriormente tratar de “mais algumas ideias equivocadas” a respeito dos povos indígenas no Brasil também presentes nessa matriz de pensamento analisada pelo referido autor. Nosso intuito é o de acrescentar à proposta de Freire esses outros equívocos sobre os índios brasileiros ainda disseminados e exaustivamente reproduzidos por grande parte da sociedade brasileira. Continuando essa etnografia das mentalidades dos brasileiros perante as populações indígenas, pretendemos demonstrar que existem ideias e práticas que não são mais possíveis de serem pensadas, praticadas ou ditas sobre os diversos povos originários presentes em nosso país, simplesmente, por serem incompatíveis com uma conduta cidadã pautada na Constituição de 1988. Nossa percepção etnográfica dessas ideias e práticas está amplamente contaminada tanto pela atividade docente no curso de licenciatura em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Tocantins, situado no campus da cidade de Tocantinópolis (TO), quanto pelo contexto local de relações interétnicas entre os moradores da cidade e os indígenas Apinajé. Antes de descrever mais algumas ideias equivocadas sobre os indígenas gostaríamos de precisar melhor esses dois contextos.

Os Apinajé e Tocantinópolis

Como se sabe, uma grande parte do território do munícipio de Tocantinópolis está sobreposto à Terra Indígena Apinajé, onde existem atualmente (2015) e segundo dados da coordenação local da FUNAI, trinta e nove aldeias. O histórico conflituoso entre moradores da cidade e indígenas Apinajé é bem documentado na literatura etnográfica sobre estes últimos, produzida por distintos antropólogos como Curt Nimuendaju (1983), Roberto DaMatta (1976), José Reginaldo Gonçalves (1980) e, mais recentemente, Odair Giraldin (2000). Nimuendaju demonstra em sua etnografia pioneira como a chegada e a implantação da frente de expansão que alcançou o norte goiano no século XVIII foram altamente incompatíveis com a presença dos Apinajé em sua região tradicional. À medida que a frente de expansão avançava, esse povo, falante de uma língua Jê, declinava em sua população. Impactado pelo número de mortes e estarrecido pelos efeitos nefastos do contato interétnico para os Apinajé, Nimuendaju (1983: 05 e 06) afirma que em menos de cem anos (de 1824 a 1897) os Apinajé passaram de uma frondosa população de 4.200 indivíduos a uma mirrada sobra de 150 pessoas em péssimas condições de vida. Foram esses cento e cinquenta e poucos Apinajé que Nimuendaju encontrou nos idos de 1930 e com eles escreveu sua famosa etnografia “Os Apinayé”. O etnólogo alemão, considerado pai da etnologia brasileira, não deixa de ressaltar com esses dados que a própria formação histórica e social da cidade de Tocantinópolis foi crucial para o declínio violento da população apinajé. Atualmente, contudo, os Apinajé cresceram novamente e mesmo com todas as dificuldades conseguiram multiplicar sua população atingindo em 2012, o número de 2.400 pessoas4. Mesmo ressurgindo das cinzas os Apinajé não cansam de enfrentar uma longa fila de estereótipos que o imaginário criativo de muitos moradores de

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Segundo dados da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena). Importante para esse crescimento populacional foi a demarcação de sua terra ocorrida em 1985, sob forte tensão interétnica.

Tocantinópolis não cessa de produzir. Como nos lembra Gonçalves, tratando do tema das relações entre os moradores da cidade e os indígenas, Na medida em que as relações cotidianas e diretas não são frequentes (apesar da proximidade e do fácil acesso os habitantes de Tocantinópolis raramente vão para as aldeias Apinayé e estes não vão com frequência a Tocantinópolis), criam-se as précondições para a emergência de ideologias onde os grupos em conjunção são representados de modo globalizador. Desse modo, os Apinayé nunca se referem à população dessa cidade de modo personalizado, mas sempre de modo coletivo ou globalizador. Assim é que se referem ao “povo da cidade”, ao “povo de Tocantinópolis”, ao “povo da Boa Vista” (primeiro nome da cidade). Reciprocamente a população de Tocantinópolis refere-se aos Apinayé de modo genérico (“caboclos”, “índios”), raramente atualizando uma referência personalizadora (Gonçalves, 1980: 30).

Mesmo escrita a mais de trinta anos, essa passagem é de uma atualidade candente. A situação contemporânea encontrada por nós tanto dentro da própria universidade, entre alunos, técnicos, terceirizados e professores; quanto em outros setores da cidade de Tocantinópolis, e mesmo nas próprias aldeias Apinajé, é muito próxima dessa configuração apresentada por Gonçalves. Todas as ideias equivocadas apresentadas neste texto não são nada mais nada menos do que “representações globalizadoras” produzidas, disseminadas e transmitidas pelos habitantes da cidade sobre os Apinajé. Também na Tocantinópolis atual, poucos são os indivíduos que visitam a terra indígena e sem dúvida existem gerações de tocantinopolinos que nunca colocaram o pé no território indígena, mesmo esse estando a pouco mais de quinze quilômetros da cidade. Do mesmo modo, a participação indígena na cidade se resume a compra em grandes quantidades de mantimentos, operações bancárias e comerciais, atendimento médico e hospitalar e eventualmente a participação em algum evento esportivo e/ou cultural. Neste sentido, embora tenha crescido nos últimos anos, a circulação dos Apinajé pela cidade ainda se restringe a alguns dias específicos do calendário mensal. Ainda hoje reina soberana entre as relações interétnicas da região a perspicaz equação estrutural formulada por DaMatta (1976) em sua explanação sobre a “situação dos Apinajé” nos idos dos anos de 1960. Trata-se da formulação de que nas situações de conjunção intercultural, o fator estrutural parece ser constituído pelo fato de termos sociedades diferentes confinadas num espaço geográfico onde o contato entre elas não pode ser evitado. Em outras palavras, os componentes estruturais da situação são: (a) distância cultural e (b) proximidade física. A ambiguidade do contato pode ser plenamente apreciada agora. Pois enquanto o componente (b), proximidade física ou geográfica, gera um campo de forças sociais

tendente a unir as duas populações, a ação do componente (a), distância social (ou cultural), engendra exatamente o inverso (DaMatta, 1976: 51).

Empurradas para si pela proximidade geográfica e repelidas entre si pela distância cultural, os Apinajé e a população da cidade encontraram, como nos lembra Gonçalves (1980), as pré-condições ideais para produção e proliferação de preconceitos, estereótipos e visões equivocadas. DaMatta aponta algumas possíveis soluções para esses contextos contraditórios, dramatizados em vários conflitos na história da região. A solução mais corriqueira e comum é a “hierarquização das relações sociais entre as duas sociedades em conjunção”. Neste caso, continua DaMatta, Uma sociedade (a dominante) não assume as diferenças culturais. Ela simplesmente as elimina por meio de uma ideologia que toma como base a sua superioridade sobre o seu parceiro de contato social. É isso que parece ocorrer nos casos de contato do Brasil Central (...). Nesta perspectiva estrutural, a exploração econômica e as ideologias racistas são elementos paralelos em situações onde existe um “espaço” entre grupos sociais e onde um desses grupos tem a capacidade de reduzir diferenças culturais a relações hierarquizadas (DaMatta, 1976: 52).

Outra solução apresentada pelo autor está calcada não na hierarquização de uma sociedade pela outra que tem como base o etnocentrismo, mas na simetria entre os grupos sociais em conjunção. Assim, respeita-se o espaço físico e também as diferenças culturais, rotinizando situações de trocas interculturais de ideias, símbolos e bens entre os grupos, bem como dádivas e convites para participação nos rituais uns dos outros. DaMatta, apresenta como um bom exemplo dessas relações simétricas o caso do Alto Xingu, onde convivem diferentes grupos indígenas falantes de línguas também diferentes. A proposta desse texto é o de xinguanizar o leitor, principalmente, aquele que vive em cidades contiguas às terras indígenas, mostrando a ele que não só é possível, mas, sobretudo, necessário conviver com a diferença sem hierarquiza-la ou suprimi-la.

Uma proposta de intervenção

Enquanto docentes e pesquisadores da Universidade Federal do Tocantins, no campus de Tocantinópolis, fomos afetados (Favret Sada, 1990) por esse contexto de

hierarquização das relações entre o “povo da cidade” e os indígenas apinajé. Foi esse contexto de relações interétnicas descrito acima que encontramos quando iniciamos nossa atividade docente na UFT no ano de 2012. Como “etnólogos” do curso de licenciatura em ciências sociais, ficamos responsáveis pelas disciplinas “Etnologia Indígena na Amazônia”, “Etnologia Brasileira”, “Leituras de História Regional”, “Educação Indígena” e “Tópicos Especiais em antropologia”. Aprendemos com a prática docente nessas disciplinas que para tratar da temática indígena seria necessário antes de tudo um trabalho anterior de quebrar preconceitos, desnaturalizar ideias preconcebidas, desconstruir noções equivocadas. Com essa percepção inicial compartilhada em diálogos sobre o ensino de antropologia, elaboramos um projeto de intervenção estruturado em torno de uma metodologia de ensino e de uma dinâmica didática que foi (e continua sendo) aplicada por cada um de nós quando ministramos algumas das disciplinas listadas acima. Tal dinâmica consiste em discutir, em primeiro lugar e, exaustivamente, com a turma o texto “Cinco ideias equivocadas sobre os índios” (Freire, 2002). Depois de uma primeira leitura e discussão desse texto de referência, a turma é dividida em cinco grupos de discussão. Cada grupo escolhe uma das ideias equivocadas para expor e debater com os demais alunos. Os grupos são incentivados a pesquisar outros exemplos diferentes dos que estão no texto, mais voltados para o contexto local, bem como buscar autores que questionem os preconceitos tratados nele. Depois que cada um dos grupos apresenta sua ideia equivocada para a turma, passamos, então, para a segunda etapa da disciplina, sua parte prática. Trata-se agora de elaborar uma pesquisa qualitativa que tem como objeto “as representações sociais dos moradores de Tocantinópolis a respeito dos indígenas Apinajé”. Além de aprender a elaborar um questionário de pesquisa e ser iniciado nas técnicas de entrevista e de observação participante, o aluno dessas disciplinas tem a possibilidade de ouvir diretamente da boca de seus conhecidos e mesmo de seus familiares uma grande quantidade de ideias equivocadas sobre os Apinajé. Aliás, é digno de nota que algumas das ideias equivocadas apresentadas nesse texto foram coletadas na prática de pesquisa exercida por nossos alunos. De qualquer modo, ao realizar a pesquisa e refletir sobre as representações negativas que muitos de seus conhecidos têm sobre os Apinajé, os estudantes conseguem, enfim, “quebrar” os seus

preconceitos, relativizando os conhecimentos equivocados transmitidos desde a infância por seus pais. O objetivo dessa metodologia de ensino é justamente esse: fazer desencadear um processo de alteridade no qual o aluno vê, no outro, os preconceitos que ele mesmo possui. Essa relação espelhada, proporcionada pela pesquisa e pela incorporação anterior dos conhecimentos presentes no texto de referência, faz com que os estudantes questionem as ideias equivocadas sobre os indígenas, sendo, inclusive, incentivados a apresentar proposições para a mitigação desses preconceitos. Isso fica particularmente claro na parte final da disciplina quando os grupos apresentam para a turma os resultados de suas pesquisas com um discurso totalmente diferente daquele apresentado no início da disciplina. Incentivamos, assim, a assunção por parte dos estudantes daquela solução proposta por DaMatta em que a simetria (e não a hierarquização), governam as relações entre indígenas e não indígenas em um contexto de proximidade física e distância cultural. Depois de rompidos os preconceitos torna-se possível estreitar os laços entre os estudantes e os indígenas através de outras ações de ensino, pesquisa e extensão que passamos a organizar em torno do projeto “PIBID Apinajé”5 e do Programa Centro de Referência em Cidadania e Direitos Humanos, ambos vinculados ao curso de Ciências Sociais, do campus de Tocantinópolis. De reprodutores de preconceitos e ideias equivocadas, os estudantes tornam-se multiplicadores dos valores do relativismo e da diversidade cultural. Este texto não deixa assim de ser uma tarefa de continuação desse trabalho anterior, cujo objetivo sempre foi e continua sendo o de levar aos confins do Brasil Central possibilidades de relações interétnicas simétricas e de proporcionar, no plano local, o famoso processo de alargamento da visão ocidental, defendido por LéviStrauss em sua obra Pensamento Selvagem (1989). Nesta tarefa encontramos ainda muitas ideias equivocadas a serem desveladas. Vamos então a elas.

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Trata-se do Projeto Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência (Pibid), financiado pela Capes e executado no curso de licenciatura em Ciências Sociais da UFT, cujas escolas parceiras são a Escola Tekator, situada na aldeia Mariazinha, do povo indígena Apinajé; e a Escola Dom Orione, situada na cidade de Tocantinópolis. O projeto visa realizar ações pedagógicas de aproximação entre os alunos dessas duas escolas, fomentando a interculturalidade e a quebra de preconceitos.

As cinco ideias equivocadas

Nada é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. (Eliane Brum)

Pois bem, as cinco idéias equivocadas apresentadas e analisadas por Freire em seu texto seminal são as seguintes: 1) a do “índio genérico”, que professa a homogeneização da diversidade cultural indígena; 2) a de que as culturas indígenas estão “congeladas” no tempo, ou seja, não se transformam; 3) a ideia de que os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas são “atrasados” em relação ao conhecimento moderno e dito “civilizado”; 4) a noção de que os indígenas pertenceriam a um passado remoto, ou seja, que eles “estão acabando”; 5)a ideia de que o “brasileiro não é índio”, isto é, não reconhece a enorme e diversificada contribuição cultural dos povos indígenas na formação histórica, social e cultural do país. O primeiro equívoco, o do “índio genérico”, talvez seja o mais famoso, e o que mais cedo chega às mentes das crianças não indígenas. Infelizmente, muitas delas aprendem essa ideia equivocada logo nos primeiros anos da escola, sobretudo, nas cerimônias, eventos e brincadeiras realizadas nas semanas do dia 19 de abril, o dia do índio em nossos calendários, quando as professoras e professores pintam o rosto de seus alunos e os travestem de índio, com cocares de plumas, saiotes de palha e arcos e flechas de brinquedo. Nada contra essas atividades e eventos. O problema é que elas contribuem na disseminação de uma ideia equivocada de que os índios são todos iguais, quando na verdade o que deveria ser ensinado aos alunos é a enorme diversidade cultural e linguística existente no Brasil. Inconscientemente ou não, a ideia embutida na imagem do “índio genérico” expressa um desejo bastante real para a maioria daquelas pessoas que viveram nos séculos XVIII e XIX, mas também uma herança perversa para muitos que vivem hoje, muito bem expressa na frase “índio bom é índio morto”. Quando, por exemplo, se

encobre a diversidade cultural indígena ignorando o fato de cada grupo indígena possuir uma língua e uma cultura própria; quando não se valoriza essas culturas e essas línguas como um manancial infinito de conhecimentos outros que poderiam nos ensinar outras formas de compreensão pensamento e ação; quando, enfim, generaliza-se toda essa diversidade e infinidade de conhecimentos em uma única e abrangente ideia equivocada; deve-se, também, assumir que, mesmo simbolicamente, se está eliminando os povos indígenas e colocando em ação essa herança maldita que professa que “índio bom é índio morto”. Segundo nosso ponto de vista, a ideia equivocada do “índio genérico”, e todas aquelas ideias sórdidas que a acompanham como antecessoras, são os primeiros equívocos que não podem ser mais ditos sobre os povos indígenas no Brasil, caso sejam de fato respeitados os princípios constitucionais e as tratativas internacionais nas quais o nosso país é signatário6. Essa ideia do índio de tanga, pintura corporal, arco e flecha, falseia uma intrigante diversidade exposta claramente nas mais de 200 etnias e nas mais de 100 línguas indígenas faladas em distintas regiões do país. O caso do estado do Tocantins, em sua configuração geopolítico contemporânea, ilustra bem a diversidade de que estamos falando. Ali estão constituídos os territórios étnicos dos Akwe-Xerente, Mehin-Krahó, Pahin-Apinajé, Iny-Javaé-Karajá-Xambioá e os Krahó-Kanela, povos indígenas estes que falam entre si diferentes línguas e que expressam singulares sistemas sócio-cosmólogicos. Passando para o segundo equivoco apresentado por Freire, “culturas congeladas”, podemos dizer também que ele está enraizado em muitas mentes. Ele está intimamente relacionado ao primeiro equívoco, o do “índio genérico”, pois é justo essa imagem do índio de tanga, pintura e pena que não permite a compreensão das transformações pelas quais passaram (e continuarão passando) os diversos povos indígenas brasileiros. Tudo se passa como se tivessem congelado em muitas mentes uma fotografia do “índio genérico” que não permitisse entender os indígenas para além dessa caricatura. Com essa imagem em mente, os indígenas são vistos como seres 6

Trata-se da convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal. O primeiro deles afirma: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

pertencentes às florestas, andando pelados, morando em ocas, e comendo os mais estranhos animais. Esta visão, facilmente, desconfia da “veracidade” de um indígena se ele estiver vestido de jeans, camiseta e tênis, portando celulares, operando câmeras e computadores, dirigindo carros e motos, ocupando cargos políticos e participando da vida acadêmica. Ou mesmo se em suas aldeias existirem eletrodomésticos das mais variadas funções e bens altamente desejados por muitos não indígenas como carros de última geração, entre outros. Como afirma Bessa Freire, de modo muito direto e didático: Então, o brasileiro pode usar coisas produzidas por outros povos - computador, telefone, televisão, relógio, rádio, aparelho de som, luz elétrica, água encanada - e nem por isso deixa de ser brasileiro. Mas o índio, se desejar fazer o mesmo, deixa de ser índio? É isso? Quer dizer, nós não concedemos às culturas indígenas aquilo que queremos para a nossa: o direito de entrar em contato com outras culturas e de, como consequência desse contato, mudar (Freire, 2002: 12).

A frase 'estes não são índios de verdade' ecoou muitas vezes em nossos ouvidos durante nossa experiência em Tocantinópolis, seja em nosso trabalho na universidade, seja em nossa vida cotidiana como moradores da cidade. Encontramos ressonâncias dessa frase com a epígrafe deste tópico, retirada de um texto da jornalista Eliane Brum. A autora afirma que não existe nada mais “autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é”. É essa postura autoritária e hierárquica que encontramos naqueles que afirma que “os índios não são mais índios”, como se fosse possível expropriá-los (os índios) de si mesmo. Etnografando esse comportamento autoritário, Brum afirma que ele é parte da ofensiva de aniquilação [dos povos indígenas], ao invocar a falaciosa questão do 'índio verdadeiro' e do 'índio falso', como se existisse uma espécie de 'certificado de autenticidade'. Essa estratégia é ainda mais vil porque pretende convencer o país de que os povos indígenas nem mesmo teriam o direito de reivindicar pertencer à terra que reivindicam, porque sequer pertenceriam a si mesmos7.

Quando se diz que “aquele não é mais índio”, quando se questiona a veracidade da identidade cultural indígena, quando se produz e reproduz essa prática autoritária, se está, como afirma a autora, tomando parte em uma estratégia de aniquilamento das populações indígenas. Essa percepção equivocada, autoritária e 7

Esta passagem encontra-se no texto A ditadura que não diz seu nome, que pode ser acessado no seguinte link: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/31/opinion/1396269693_200037.html.

etnocida é crime, no mínimo, de racismo e, por isso, segue sendo uma daquelas ideias que jamais deveriam ser ditas sobre os índios brasileiros se a Constituição Federal fosse de fato seguida. Passando para o terceiro equívoco, novamente notamos como todos eles estão interligados. Pois ao professar equivocadamente que as sociedades indígenas estão “congeladas no tempo”, torna-se possível dizer também que elas pertencem ao passado, que os índios possuem culturas “primitivas” ou “atrasadas”. Dizer isso é simplesmente desconsiderar uma enorme complexidade na qual, a mais de cinquenta anos, se debruçam etnólogos que realizaram pesquisas de campo entre diversos grupos indígenas situados no Brasil. Em termos de uma teoria social ameríndia, Nimuendaju inaugurou uma série de apontamentos sobre a organização social de povos falantes de língua Jê, dentre os quais se situam os Apinajé e também outros povos indígenas presentes no Estado do Tocantins, como os Krahô, os Canela, os Xerente, etc. Este pesquisador pioneiro chamou a atenção para o fato de que os grupos indígenas Jê organizavam-se socialmente de forma bastante complexa, utilizando-se de uma variada atividade ritual e de uma simbologia, cujo foco central era refletir sobre o que é ser humano, o que é viver com outros humanos. Para isto, elaboraram um rico complexo de ideias que ficaram conhecidos na antropologia como sistemas duais de organização sóciocosmológica8. Depois dos trabalhos de Nimuendaju e de Lévi-Strauss, os grupos Jê se tornaram famosos na etnologia, pois não podiam mais ser entendidos como “sociedades simples”, muito menos “primitivas”, tendo em vista a complexidade de sua organização sócio-cosmológica, que passou a ocupar os interesses de diversos pesquisadores brasileiros e estrangeiros9, todos eles reconhecendo nestes povos um

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Esse rico complexo de ideias foi brilhantemente sistematizado pelo antropólogo francês Claude LéviStrauss no ensaio “As organizações dualistas existem?”, presente em seu livro Antropologia Estrutural (2008). 9

Dentre esses interesses destacamos o Projeto Harward-Museu Nacional, que ocorreu no período de 1962 a 1967 e foi realizado através de um convênio entre a universidade americana e o Museu Nacional de Antropologia, tendo como coordenadores os antropólogos David Maybury-Lewis e Roberto Cardoso de Oliveira. O projeto foi instituído com o intuito de investigar in loco, algumas das problemáticas apresentadas pelas monografias de Nimuendaju sobre os Jê, sobretudo aquelas referentes à organização social e ao funcionamento das organizações dualistas. Esta última problemática foi herdada

exemplo da enorme diversidade que compõe os sistemas de pensamento da humanidade. A partir desse momento uma filosofia indígena Jê começa a emergir e cuja complexidade daria inveja aos grandes filósofos gregos, franceses ou alemães. Como bem lembraram os antropólogos Carlos Fausto e Marcela Coelho de Sousa (2004), foi essa filosofia indígena que emergiu dos estudos sobre os Jê, uma das responsáveis pela virada estruturalista nas ciências humanas protagonizada por Claude Lévi-Strauss. Para se ter uma ideia dessa complexidade pode-se recorrer ao intrincado sistema de parentesco constituído pelos Xerente, onde encontramos 32 termos que se referem aos parentes e afins. Em contraste, no nosso sistema de parentesco podemos contar não mais que 18 termos, sem contar as sutilezas do sistema Xerente na aplicação dos termos de parentesco e afinidade, como por exemplo, a distinção entre terminologias referenciais e vocativas, as distinções terminológicas entre parentes materno e parentes paternos, ou ainda as distinções terminológicas entre parentes vivos ou mortos, entre outros. As línguas indígenas, só por esse exemplo, estão longe de serem “atrasadas”. A ideia equivocada de “atraso” dessas culturas diz muito mais sobre a obsessão das sociedades ocidentais em explicar as diferenças socioculturais em termos evolutivos, do que propriamente em buscar uma compreensão mais justa dos sistemas de pensamento destes povos. Segundo o ponto de vista do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os grupos indígenas, ao invés de “atrasados” ou “pertencentes ao passado”, são, na verdade, “sociedades do futuro”. Essa afirmação talvez contundente toma corpo quando lembramos que as diferentes formas de organização social e de vida em sociedade dos povos indígenas estão totalmente conectadas ao que em nossas sociedades denominamos meio ambiente. Um dado conhecido diz que as grandes reservas florestais contemporâneas ou estão em unidades de conservação ou estão ainda mais diretamente de Lévi-Strauss. Um dos principais objetivos do Projeto era estabelecer uma pesquisa comparativa das sociedades Jê através de uma série de pesquisas etnográficas individuais, cobrindo boa parte dos grupos Jê e ainda acrescentando a eles os Bororo. Sob a coordenação geral de Maybury-Lewis que estudou os Xerente e os Xavante, a equipe contava pelo lado americano com Terence Turner e sua esposa Joan Bamberger que estudaram os Kayapó; Jean Carter Lave, que estudou os Krikati; Cristopher Crocker estudioso dos Bororo, e alguns anos depois Anthony Seeger, que realizou pesquisas entre os Suyá. Do lado brasileiro, fechavam a equipe do projeto Roberto DaMatta, pesquisando entre os Apinajé e Júlio Cezar Melatti, entre os Krahô.

presentes nas terras indígenas demarcadas. As sociedades indígenas parecem ter aprendido desde muito cedo uma lição que nossas sociedades ainda não aprenderam. A de que é possível aliar conhecimentos, práticas, técnicas e tecnologias tradicionais e modernas sem que se haja perda cultural ou, sobretudo, ambiental. Por isso, nestes tempos de aquecimento global, de desmatamento desenfreado da floresta amazônica, de atuação ambiciosa e inescrupulosa do agronegócio, e da periclitante falta de água nos grandes centros urbanos, enfim, quando em uma janela terrível da história podemos vislumbrar o nosso próprio fim enquanto espécie e sociedade “altamente desenvolvida”, percebemos o tamanho de nossa dificuldade em viver de outro modo, sem poluir, consumir, degradar e destruir isso que chamamos meio ambiente. Os grupos indígenas brasileiros, como nos lembra Viveiros de Castro (...), são sociedades do futuro por que o nosso futuro parece ser o nosso fim, parece ser uma vida sem árvores, sem água, frutas e terras cultiváveis, elas mesmas transformadas, pela racionalidade do agronegócio, em pasto, eucalipto, soja e empreendimentos de grande impacto ambiental. É neste ponto que a experiência dos povos indígenas pode nos ensinar um futuro possível, mais afeito a integração entre o tradicional e o moderno, sem que haja degradação ambiental. Se os povos indígenas são sociedades do futuro, podemos facilmente questionar a quarta ideia equivocada apresentada por Freire (2002), a de que os povos indígenas “pertencem ao passado”. Essa ideia, uma espécie de ‘evolucionismo popular’, só pode ter existência e disseminação com uma grande dose de etnocentrismo. Sua assunção desconsidera o grande manancial de conhecimentos existentes nas sociedades indígenas, muitos dos quais são utilizados pelos moradores de cidades como Tocantinópolis, sem que eles mesmos saibam, ou seja, de forma inconsciente. Só para citar alguns exemplos não são poucos os tocantinopolinos que tomam as famosas garrafadas preparadas por indígenas apinajé, ou que falam de “quebranto” (mal olhado) e “fechamento do arco do corpo” para não ficar doente. Não são poucas também as pessoas que gostam de caçar e pescar ou de coletar frutos como o pequi, o babaçu e buriti nas chapadas e ribeirões, como fazem também os indígenas da região. Estas práticas socioculturais estão estreitamente vinculadas ao fato de que a cidade foi construída praticamente em cima de uma antiga aldeia Apinajé e que, desde sua

fundação, muitos elementos da cultura apinajé foram absorvidos, mesmo que de modo inconsciente, pelos habitantes da cidade. Não há, portanto, a possibilidade das culturas indígenas serem consideradas “pertencentes ao passado”, a não ser se assim também considerarmos as nossas próprias práticas culturais. Ao invés de pensar deste modo equivocado sugerimos, como o fazem DaMatta (1976) e Freire (2002), que encaremos as diversas culturas indígenas em relação às nossas não de modo hierárquico: atrasados e modernos, primitivos e civilizados, selvagens e educados, por exemplo; mas de modo a percebermos e considerarmos as pontes possíveis e existentes entre esses diversos saberes. Por isso a importância da ideia de interculturalidade defendida por Freire, o que nos leva ao quinto e último equívoco mencionado pelo autor. Trata-se da ideia muito difundida de que o “brasileiro não é índio”. De uma perspectiva intercultural essa afirmação é de uma ignorância atroz. Nós diríamos que, ao contrário, os brasileiros são muito mais “índio” do que imaginam. E não estamos falando aqui de um índio genérico. Falamos das especificidades que fazem os moradores de Tocantinópolis terem hábitos e práticas culturais semelhantes aos dos Apinajé, assim como muito possivelmente, os habitantes da cidade de Tocantínia, situada na região central do Estado do Tocantins, também possuem hábitos e práticas comuns aos Xerente, povo que vive a poucos quilômetros dessa cidade. Em muitos outros locais do país, indígenas e não indígenas trocam, negociam, relacionam seus códigos culturais, e isso acontece a despeito de toda a distância cultural e da proliferação de preconceitos que ela gera, como nos mostraram, respectivamente, DaMatta (1976) e Gonçalves (1980). Mesmo assim, indo contra os preconceitos mais cristalizados, a interculturalidade se propaga entre esses diferentes mundos ultrapassando suas barreiras e limites culturais. Estamos chamando atenção aqui para o fato de que já existindo a interculturalidade, ou melhor, sendo ela algo praticamente dado quando grupos etnicamente distintos convivem em territórios próximos, não nos resta outra opção a não ser a de colocá-la adiante dos preconceitos e das ideias equivocadas. Não se trata, segundo Freire (2002: 15), “de uma mera transferência de conteúdo de uma cultura para outra. A interculturalidade é uma construção conjunta de novos significados, onde novas realidades são construídas sem que isso implique

abandono das próprias tradições”. Assim, interculturalidade implica em que devemos também incorporar aquilo que os povos indígenas têm de melhor para nos ensinar. Tomemos como exemplo a escola. Todos os povos presentes no Estado do Tocantins incorporaram a escola e têm criativamente encontrado um lugar para ela em suas sociedades, a despeito das interferências muitas vezes irresponsáveis das Diretorias Regionais de Ensino e das Secretarias Estaduais de Educação. Em contrapartida, essas instituições insistem em negar-lhes sistematicamente algo que na verdade é umdireito, o respeito aos sistemas próprios de ensino-aprendizagem, ao invés de incorporar suas lições pedagógicas em nossos sistemas escolares. A construção de um projeto político pedagógico em escolas indígenas e mesmo a assunção de cotas indígenas na universidade deveriam necessariamente passar por uma reflexão nesse sentido: o que os povos indígenas podem nos ensinar sobre os trabalhos docentes e pedagógicos nas escolas e nas universidades? Reconstruir nossos projetos políticos pedagógicos implicaria em incorporar os ensinamentos que os povos indígenas têm a nos oferecer. Isto seria um bom começo para que a prática docente seja orientada pelo

conceito

de

interculturalidade,

redimensionando

nossas

práticas

institucionalizadas de ensino-aprendizagem e também nossas práticas cotidianas, ambas, muitas vezes, eivadas de ideias equivocadas. A seguir apresentamos mais cinco dessas ideias que continuam sendo ditas sobre os povos indígenas, ampliando a matriz de pensamento racista de muitos cidadãos brasileiros.

Mais algumas ideias equivocadas

Primeiro falemos de mais um equívoco clássico. Dito assim de uma vez: “Todo índio é preguiçoso”. Essa afirmação, embora estrondosamente errônea, ecoa ainda em nossos ouvidos, saindo de variadas formas pela boca de muitos. Os primórdios dessa ideia rude advêm do contexto de escravização dos povos indígenas, nos tempos em que o Brasil era colônia de Portugal. Evidentemente, em um contexto de extrema opressão a não obediência ao trabalho era vista como preguiça. A preguiça índia pode ser entendida antes como uma forma de resistência a escravidão. Assim, quando se diz

que “índio é preguiçoso”, coloca-se em ação uma concepção de trabalho venerada pelos grandes escravocratas brasileiros. A de que trabalho é igual a sofrimento. Sofrimento esse muito lucrativo para quem escraviza. O sofrimento que dá lucro, que produz capital é a mola propulsora do equívoco da preguiça indígena. Este preconceito também está calcado na ideia de que o trabalho “dignifica o homem”. Somente uma sociedade cristã como a nossa poderia criar tal lema. Pensando nestes termos é claro que os indígenas seriam considerados preguiçosos. Porque para os diversos povos indígenas existem muitas outras práticas que trazem dignidade ao homem, ou seja, o trabalho não está acima de tudo, não é por um emprego bem ou mal remunerado pelo que lutam os diferentes povos indígenas. Ao contrário, o cerne da luta indígena contemporânea está concentrada na forma como esses povos resistem a exploração comercial e monetária de seus territórios. Exploração essa que inclusive, como não cansam de bradar os políticos, governistas ou não, gera emprego e renda. A compulsão pelo trabalho de nossas sociedades é em alguma medida responsável pela destruição das terras indígenas brasileiras e de suas reservas florestais. Mas esse equívoco seria facilmente desfeito por aqueles que tivessem oportunidade de visitar uma aldeia indígena Apinajé, por exemplo. Ali se trabalha na roça todo dia, se pesca e se caça, se produz artefatos variados, se cuida dos filhos e dos animais domésticos, se ensina na escola e no pátio, se prepara festas e rituais como as famosas corridas de toras, se capina o pátio e o quintal. A concepção euro-americana de trabalho, não considera essas atividades como tal. Não é possível, através dela, enxergar que existem outras formas de trabalho, ou melhor, outras formas de organizar as atividades produtivas, diferentes das formas capitalistas de produção. A fama desse equívoco no capitalismo contemporâneo é, portanto, totalmente compreensível (embora lastimável), mesmo que muitos de seus analistas, como o sociólogo Domenico De Massi (2001), já tenham chamado a atenção para a produtividade e positividade do ócio e do não trabalho como exemplos e possibilidades de novas formas de organização produtiva. Quando encarada como um espelho, a ideia equivocada da pretensa preguiça dos índios devolve a imagem do capitalismo que há dentro de cada um. O próximo equívoco tem muito a ver com esse. Pois se se considera os povos indígenas como essencialmente preguiçosos, se eles não trabalham, então como

conseguem dinheiro? A resposta, muito ouvida em campo pelos alunos das disciplinas que ministramos no curso de Ciências Sociais da UFT, durante as entrevistas que eles realizaram com diversos moradores da cidade de Tocantinópolis, é a de que o Estado trata os cidadãos indígenas com privilégios que outros cidadãos brasileiros não teriam. Em um contexto com largo histórico de violação dos direitos indígenas, as populações originárias se tornam, contraditoriamente, “hiper-cidadãs”, com direito a “tratamento diferenciado”, “a já nascer aposentado”, “a receber benefícios exclusivos”, “a não ser preso quando comete um crime”, a “ter escola do lado de casa”. Todas essas são ideias equivocadas ouvidas pelos estudantes durante as pesquisas realizadas no âmbito das disciplinas. E contra elas é preciso dizer que os indígenas têm direito a aposentadoria como todos os cidadãos brasileiros, por invalidez ou velhice. Do mesmo modo, tem acesso aos programas sociais que todos os brasileiros menos favorecidos: bolsa escola, bolsa família, auxílio-maternidade, etc. E também respondem pelos crimes que cometem, seja dentro de seu próprio sistema de leis e sanções, seja diante do Estado e seu aparato jurídico10. Assim, o equívoco do índio como um “hiper-cidadão” parece propagar uma capciosa ideia de superioridade legal dos índios, quando na verdade o que vemos são povos que lutaram durante séculos para continuar existindo em condições jurídicas e de direito democraticamente iguais aos dos cidadãos brasileiros, tendo respeitados os seus modos de vida e formas de expressão cultural, como afirma nossa Constituição Federal. Outra ideia equivocada muito disseminada pelo Estado brasileiro durante os séculos XIX e XX é de que os povos indígenas são “camponeses”.. Essa ideia equivocada, tornada política de Estado durante muitas décadas foi mobilizada como um dos alicerces da política de integração e assimilação dos povos indígenas à sociedade brasileira. Estando as populações indígenas primordialmente no campo não demorou muito para que o Estado, através do SPI (Serviço de proteção ao índio), passasse a entendê-las como populações camponesas, ignorando suas especificidades culturais e seus direitos de existirem a sua maneira em seu território. 10

Para um artigo esclarecedor da complexa posição do indígena no sistema jurídico brasileiro ver o texto bem acessível da advogada Ana Paula Souto Maior, intitulado: Imputabilidade penal, que está acessível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/temas-recentes/imputabilidade-penal.

Mais contemporaneamente, a ideia do indígena como camponês tem ressurgido nos discursos dos políticos ruralistas, defensores dos grandes latifundiários e do agronegócio como uma forma de argumentar publicamente que “existe muita terra para pouco índio”. Essa frase, outro equívoco consagrado, tem sido infelizmente reproduzida por pequenos proprietários de terras, e trabalhadores rurais com e sem terra, que não percebem como essa ideia colabora com a manutenção dos grandes latifúndios no Brasil. O antropólogo João Pacheco de Oliveira, que na década de 1990 escreveu um artigo com o título emblemático “muita terra para pouco índio”, desvela a estratégia que está por traz da reprodução dessa ideia equivocada: A argumentação mais contundente e com maior poder de sedução agora utilizada contra os índios não tem mais como ponta de lança os estereótipos tradicionais, que pretenderiam equipará-los aos "primitivos", aos "costumes rudimentares" e "brutais" dos primeiros humanoides, tentando aproximar as culturas indígenas ao domínio da natureza. A visão ora privilegiada pelos inimigos dos índios é que estes constituem um segmento altamente favorecido da sociedade brasileira. Fala-se que os índios têm terras "demais" e que seriam "índios latifundiários", confrontando-os com a legião de trabalhadores sem terra existente no meio rural brasileiro (Oliveira, 1995:76)

A partir de sua análise dos dados fundiários brasileiros, Oliveira aponta que as terras indígenas, em sua totalidade, ocupam somente doze por cento das terras classificadas como “improdutivas” pelo Estado brasileiro. E que os outros oitenta e oito por cento estão divididos em sua maioria em terras devolutas e grandes latifúndios11. Assim, conclui Oliveira, não são os índios que tem muita terra: é a terra que é distribuída desigualmente no Brasil. A afirmação de que existe “muita terra para pouco índio” reforça ainda mais essa desigualdade e essa concentração de terras na mão de poucos fazendeiros, políticos e coronéis. Estes propagam a ideia (...) de que o número ou o tamanho excessivo das áreas indígenas reduziria fortemente o estoque de terras para a agricultura, acarretando escassez de terra para os trabalhadores não índios, o que agravaria ainda mais a pobreza no meio rural e incentivaria o êxodo para as cidades. Agrega-se a isso a crença de que as áreas indígenas são improdutivas e que, portanto, a destinação de uma terra para os índios implicaria em subtraí-la da produção de alimentos e ao processo social de geração de bens e riquezas (1995: 76).

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É importante lembrar que os dados apresentados por Oliveira correspondem à década de 1980. Seria interessante uma atualização desses dados para a configuração territorial brasileira no tempo presente.

Como se depreende desse parágrafo as ideias equivocadas se desdobram umas nas outras. Se se diz que existe “muita terra para pouco índio”, se assume também que “os índios são latifundiários” e que por extensão suas terras são “improdutivas”. Essa concatenação de ideias equivocadas parece ter aval do próprio Estado, quando considera ou classifica as terras indígenas como improdutivas. Digamos que cometer esse erro conceitual implica assumir uma visão muito estreita de produtividade, vinculada ao lucro do agronegócio. E se pensássemos não mais sob a égide da economia capitalista neoliberal, mas sim em termos de produção cultural, de produção de pessoas e coletivos para quem a noção de produção passa ao largo da noção de capital e de lucro, para quem o dinheiro não é ainda a única forma de troca por bens e serviços, para quem valoriza as dádivas e as obrigações rituais trocadas sem interesse meramente pecuniário. Diante dessa nova ótica seria possível pensar as terras indígenas como locais de produção de outras possibilidades de vida em sociedade, como espaços de produção de pessoas e corpos que pressupõe noções de economia muito diversas daquela vigente em nossas sociedades. Se pensadas assim, as terras indígenas, ao invés de improdutivas, produziriam soluções para um futuro quase imediato, diante das catástrofes socioambientais que nos aguardam. A ideia equivocada de que as terras indígenas são “latifúndios improdutivos” encontra lastro na afirmação constante de muitos comerciantes, políticos e moradores de Tocantinópolis de que a Terra indígena Apinajé, constitui um “empecilho” para o “desenvolvimento econômico” da cidade. Graças a algumas pesquisas desenvolvidas no curso de ciências sociais, da UFT, junto ao projeto “ICMS Ecológico e Terras Indígenas em Tocantins”, coordenado pelo Prof. Odilon Morais (2013), podemos dizer com base em dados reais que essa ideia não só é equivocada, como é também uma grande falácia. Os dados recolhidos no projeto, e sistematizados em artigo nesse volume, demonstram amplamente os milhões destinados pelo Estado aos munícipios pelo fato de ter seu território sobreposto ao de uma Terra Indígena. No caso da Terra Indígena Apinajé, configura-se uma situação em que municípios como o de Maurilândia e Cachoeirinha tornaram-se claramente dependentes do recurso do ICMS Ecológico12. 12

Só para se ter uma ideia do montante de recursos repassados às referidas cidades por meio do ICMS Ecológico, vejamos esses dados da Secretária da Fazenda do Estado do Tocantins: de 2011 a 2014 o munícipio de Tocantinópolis recebeu R$ 8.178.037,31; o de Maurilândia recebeu R$ 4.246.292,94;

Assim, mesmo considerando a questão do ponto de vista estritamente econômico (que continuamos achando demasiado estreito) a ideia equivocada da “improdutividade indígena” ou da Terra Indígena como “latifúndio improdutivo” não se sustenta. Os cidadãos de Tocantinópolis, mas também de outros municípios do Tocantins e do país como um todo, devem, portanto, ter conhecimento de que muitos dos serviços públicos oferecidos por suas prefeituras são propiciados por recursos provenientes do ICMS Ecológico recebidos pelos munícipios por terem seu território sobreposto ao território indígena legalmente demarcado. Se possuíssem essas informações esses cidadãos poderiam, enfim, compreender que essa ideia equivocada é mais uma daquelas que não podem mais ser ditas sobre os povos indígenas brasileiros. Chegamos, assim, ao equívoco final. Guardado para o gran-finale da ignorância nacional sobre os indígenas brasileiros utilizado como estratégia política, esse equivoco produz uma concatenação de ideias que permite a expropriação da própria voz singular e política das populações indígenas. Trata-se da noção muito difundida de que em determinados contextos de conflito os indígenas sejam “massa de manobra” de interesses escusos. Essa estratégia de eliminação da capacidade de pensar politicamente de modo autônomo e referendado em uma rica tradição cultural, esvazia os povos indígenas de seus discursos e práticas singulares de resistência. Por trás dessa triste estratégia de fazer dos índios fantoches de antropólogos, ventríloquos de ONGS nacionais e internacionais, se esconde claramente o interesse de certos setores conservadores da sociedade brasileira ligados ao agronegócio. Segundo esse pensamento mal intencionado, etnografado em suas especificidades por Eliane Brum, quando os indígenas levantam a voz, a voz não seria sua. Seria de um outro, a quem emprestam o corpo. Ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o discurso dos indígenas como massa de manobra seja inocente. Ele serve a muitos interesses, inclusive o de tirar do foco os reais interesses sobre as terras indígenas de quem o difunde. Mas esse discurso não teria ressonância se não tivesse a adesão de uma parte significativa da população brasileira. E esta adesão se dá, me parece, por essa espécie de xenofobia invertida. Estes “estrangeiros nativos” ameaçariam um suposto progresso, já que seu conhecimento não é decodificado como um valor, mas como um “atraso”,

enquanto o de Cachoeirinha, por fim, recebeu R$ 3.486.785,11. Nesse caso específico os números parecem falar bastante.

sua enorme diversidade cultural e de visões de mundo não são interpretadas como riqueza e possibilidades, mas como inutilidades. Neste sentido, há uma frase bastante reveladora de como esse olhar – ou não olhar – contamina amplas parcelas da sociedade, inclusive no governo. Ao falar em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em dezembro passado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que sua pasta atendia “da toga à tanga”. Entre os dois extremos, podemos ver em qual deles o ministro situa o ápice da civilização e também o seu oposto (Brum, 2013: s/n)

Não deve ser encarado com surpresa esse tipo de afirmação pejorativa evocada pelo ministro. O tratamento que o atual governo vem concedendo às importantes e urgentes causas indígenas, sobretudo, no que tange a questão fundiária, tem sido no mínimo ínfimo, para não dizer retrógado. Questiona-se a autonomia da FUNAI no processo de demarcação de terras indígenas direcionando a questão para um Congresso Nacional praticamente dominado pela inglória bancada ruralista, cuja líder nacional ocupa a cadeira de ministra da agricultura e não deixa de propalar publicamente esse e tantos outros equívocos sobre os índios brasileiros13. Infelizmente, e como afirma Eliane Brum, esse pensamento e esse discurso encontram amplo respaldo em boa parte da população brasileira. Em se tratando de índios, nem mesmo a dita “esquerda” está livre de preconceitos. Muitas vezes resgatando a pior parte da teoria marxista que é o seu tom evolucionista – a bem da verdade, contextual, pois Marx era como dizem um homem de seu tempo – certa “esquerda brasileira” encontra um lugar muito específico para os indígenas no panorama de tipos nacionais. Como provoca Viveiros de Castro: transformar o índio em pobre, que é o que pretende o "explorador" (a Odebrecht, o [Jairo] Maggi, a [Kátia] Abreu), é a realização objetiva da visão de mundo do "progressismo de esquerda" que se aboletou no Estado, mas que prolifera abundantemente fora dele também: a saber, aquela visão que concebe o índio como uma subespécie do "pobre". Essa metamorfose conceitual faz do índio o bem vindo objeto de uma pressurosa necessidade, a de transformá-lo, paternalmente, em "nãopobre", retirá-lo de sua abjeção e torná-lo um "cidadão". E tome "programa de governo" seguindo logo atrás da colheitadeira, do agrotóxico, do pivô de irrigação, da barragem. Mais uma vez, esta é a escolha crucial da esquerda em nosso continente e no presente momento histórico mundial: pensar os "índios" (= todas as minorias) do planeta como "pobres" versus pensar os "pobres" como "índios" e agir politicamente nesta direção. Porque pobre é um conceito "maior", pobre é maioria, pobre é um “conceito de Estado” (um conceito, justamente, "estatístico"). Mas acontece que a imensa maioria (estatística) dessa “maioria pobre” é minoria (étnica, politica, sexual, racial), atual ou virtualmente (...). Antes que se consiga transformar todos os índios do 13

Conferir o artigo da, então, senadora Kátia Abreu em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/katiaabreu/2013/09/1338470-causa-inconfessavel.shtml

mundo em pobres, os pobres terão se retransformado em índios. E aí, quem tiver de sapato não sobra14.

Contra todas essas ideias equivocadas gostaríamos de encerrar esse texto com um retrato compósito de resistências que formam o que denominamos povos indígenas. Com isso, acreditamos contribuir no sentido de diminuir a distância cultural existente entre muitas populações locais e nacionais e os povos indígenas brasileiros. Nós escolhemos pensar os povos indígenas como aqueles que resistem e renascem e insistem em viver, como os Apinajé que, como vimos, quase se extinguiram nos anos de 1930 e menos de cem anos depois ressurgem como um dos povos mais atuantes politicamente no Estado do Tocantins15, e também um dos mais populosos. Só assim podemos compreender em toda a potencialidade as epígrafes deste trabalho. “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”. O “quem não é” aqui é no mais das vezes, o sujeito do preconceito que pode estar travestido no e nas ruralistas, nos latifundiários e políticos, mas também no cidadão comum, político ou militante de esquerda, no universitário e no professor, nos sertanejos e camponeses que vivem próximos às terras indígenas, nas crianças que aprendem na escola todas essas ideias equivocadas, ou mesmo em você que agora lê esse texto. Acreditamos que essa leitura não será em vão e que depois dela você deixe de querer dizer “ao outro que ele não é o que é”.

Referências Bibliográficas BRUM, Eliane. 2014. A ditadura que não diz seu nome. El País. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/31/opinion/1396269693_200037.html.

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Conferir essa passagem em: https://www.facebook.com/eduardo.v.decastro/posts/10152302429669154 15

Como o demonstram as recentes ocupações das Rodovias efetuadas pelos Apinajé para cobrar do Estado uma efetiva proteção de seu território. Ver mais informações em: http://www.tocnoticias.com.br/ler_noticia2014.php?idnoticia=9273

____________. 2013. Índios, os estrangeiros nativos. Época. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/06/indios-osestrangeiros-nativos.html DE MASI, Domenico. 2001. O Ócio Criativo. Editora Sextante. DA MATTA, Roberto A. 1976. Um Mundo Dividido: A Estrutura Social dos Índios Apinayé. Petrópolis: Vozes FREIRE, José Ribamar Bessa. 2002. Cinco ideias equivocadas sobre o índio. Cenesch Revista do Centro de Estudos do Comportamento Humano, Manaus, v. 1, p. 17-33. FAVRET SADA, Jeanne. 1990. “Etre Afecté”. Gradhiva. Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8: 3-9. GIRALDIN, Odair. 2000. Axpên Pyràk. História, Cosmologia, Onomástica e Amizade Formal Apinaje. Tese de doutorado, IFCH - Unicamp. GONÇALVES, José Reginaldo. 1980. A busca pela identidade social: O caso das relações entre índios e brancos no Brasil Central. Dissertação de Mestrado. Museu Nacional, PPGSA-UFRJ. LÉVI-STRAUSS, C. 1989. O pensamento selvagem. Campinas, SP: Papirus. ______________.2008. As organizações dualistas existem?. In: Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify. MORAIS, Odilon. 2013. ICMS Ecológico e Terras Indígenas no Tocantins. Projeto de Pesquisa. Universidade Federal do Tocantins. NIMUENDAJU, Curt. [1939] 1983. Os Apinayé. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi. MAYBURY-LEWIS, D. (ed.). 1979. Dialectical Societies. The Gê and Bororo of Central Brazil. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press. OLIVEIRA, João Pacheco de. 1998. “Muita terra para pouco índio”. Uma introdução crítica ao indigenismo e a atualização do preconceito. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Donizete. A temática indígena na escola. São Paulo; Brasília: Global/Mec/Mari/Unesco. SOUZA, Marcela Coelho de; FAUSTO, Carlos. 2004.Reconquistando o campo perdido: o que Lévi-Strauss deve aos ameríndios. Rev. Antropol., São Paulo , v. 47, n. 1. VIVEIROS de Castro, Eduardo. 2013. Últimas notícias do fim do mundo. III Conferência Curt Nimuendaju. Cesta (Centro de Estudos Ameríndios da USP). Disponível em:

http://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/os-indios-saoespecialistas-em-fim-do-mundo-diz-o-antropologo-eduardo-viveiros-de-castro

________________________. 2014. Comentário. Disponível https://www.facebook.com/eduardo.v.decastro/posts/10152302429669154

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