Mais de oito mil anos de vinho de talha

May 26, 2017 | Autor: Virgílio Loureiro | Categoria: History of Wine, History of Taste, Drinking Culture
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A chegada ao Mediterrâneo e à Península

Mais de oito mil anos de vinho de talha TEXTO VIRGÍLIO LOUREIRO FOTOGRAFIAS HERBERTO SMITH

Há três condições necessárias e suficientes para fazer vinho. Uma é óbvia, e toda a gente a adivinha: uvas, se possível sãs e bem maduras, para que o vinho possa ser bom. As outras são tão inesperadas que poucos frequentadores do século XXI se lembrariam de as mencionar: inteligência humana e um recipiente! Estas três condições reuniram-se pela primeira vez no mesmo local há mais de oito mil anos, dando origem à grande aventura da produção de vinho e, particularmente, do vinho de talha. a Transcaucásia, onde é hoje a Geórgia, a Arménia e o Azerbaijão, a videira europeia – Vitis vinifera – é espontânea, tendo desaiado, desde os alvores da civilização, a curiosidade, o apetite e o sentido de observação do homem neolítico. Antes de a espécie silvestre ser domesticada, permitindo melhores produções e cachos de bagos maiores e mais doces, terá sido selecionada pelo tamanho dos bagos, que seriam consumidos como

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fruta, dado constituírem uma reserva calórica importante. As experiências de viniicação, porém, só foram possíveis quando o Homem inventou a olaria – a mais antiga das indústrias – e produziu recipientes de barro onde colocou uvas esmagadas. Estava próxima a invenção do vinho, que terá sido conseguida por tentativa e erro até que o fermentado não azedasse, pondo à prova a inteligência humana. Na Natureza já se fazia vinho espontanea-

mente desde sempre, bastando para tal que as uvas caíssem ao chão e fermentassem. No entanto, o processo termina invariavelmente em vinagre, como se pode constatar facilmente num mau ano de colheita, em que os bagos apodrecem, caem ao chão, fermentam e icam a cheirar a vinagre. Só o engenho humano permitiu evitar que o produto inal fosse o vinagre, razão por que se diz, com toda a legitimidade, que “o vinho é obra do trabalho do homem”.

A recente descoberta arqueológica de uma adega completa de talhas na Arménia, datada de 6100 a.C., permite assegurar que se faz vinho há mais de oito milénios na Transcaucásia, muito provavelmente com uvas de videiras domesticadas. Não surpreenderá que novas descobertas arqueológicas permitam transferir para tempos ainda mais recuados o início da produção de vinho de talha no Cáucaso, pois sabe-se que a produção de contentores cerâmicos é anterior. Os méritos desta bebida fermentada – a mais alcoólica e a mais saborosa – levaram a que fosse adoptada e controlada pelas elites, ascendendo em muitos locais ao estatuto de bebida mística e tornando-se um produto de luxo com grande valor comercial. Estavam criadas as condições para que se iniciasse a migração das videiras e do vinho de talha para toda a bacia mediterrânica, num movimento lento de Oriente para Ocidente: o vinho demorou quase 5.500 anos a chegar à Península Ibérica e, mais concretamente, ao território onde são hoje o Alentejo e o Algarve. Os fenícios, e de seguida os gregos, foram os primeiros povos mediterrânicos a dar a conhecer o vinho aos habitantes do sul da Península, trazendo também alguns dos mais belos vasos e cálices gregos utilizados no consumo de vinho, descobertos na necrópole do Olival do Senhor dos Mártires, em Alcácer do Sal (séc. V a III a.C.). O facto de trazerem o vinho e a baixela para o consumir, segundo o ritual dionisíaco, revela o carácter místico e o elevado estatuto de que desfrutava, sendo imediatamente adotado como a bebida das elites locais, que não terão regateado o preço para a consumirem. Ainal, era a principal mercadoria que os comerciantes mediterrânicos tinham para trocar pelos metais preciosos que abundavam na Península Ibérica, justiicando-se que procurassem valorizá-la ao máximo. Como povos negociantes que eram, os fenícios não tinham intenção de se ixar e, muito menos, de começar a produzir

localmente uma das mercadorias mais preciosas que traziam do Mediterrâneo. Assim, as técnicas de produção vitivinícola só foram introduzidas séculos mais tarde, pelos romanos, que vieram para icar e por cá estiveram cerca de sete séculos, marcando de forma indelével toda a cultura e hábitos de vida das populações locais. De início, começaram por trazer o seu vinho de várias zonas do império, como o demonstram os restos de ânforas itálicas, gálicas e béticas encontrados um pouco por todo o sul do país. Depois, à medida que conquistavam territórios e paciicavam as populações começaram a estabelecer grandes unidades agrícolas – as famosas villae – que eram produtoras de cereal, vinho, azeite e pecuária, não só para autoconsumo mas também para exportação rumo a outras zonas do império. São Cucufate, em Vila de Frades, Pisões, perto de Beja, Torre de Palma, nos arredores de Monforte, e Quinta das Longas, em Elvas, são apenas algumas das mais conhecidas villae romanas do Alentejo, que produziam vinho de talha em quantidade signiicativa. Embora não se possa excluir a hipótese de haver vinha e produção de vinho em quintas ou casais mais pequenos, é legítimo admitir que a técnica de cultivo da vinha e de fabrico de vinho, com origem na Península Itálica, tenha como modelo a das grandes villae romanas, que ocupariam muita mão-de-obra local e seriam, por isso,

centros de irradiação de conhecimento. Terão sido, de facto, as primeiras escolas de Viticultura e Enologia existentes no atual território português. A olaria já era bem conhecida antes da chegada dos romanos, mas terão sido estes que ensinaram a fazer talhas (doliae) para a viniicação e armazenagem e ânforas (amphorae) para o transporte à distância. Há vestígios arqueológicos de vários fornos romanos um pouco por todo o Alentejo e Estuário do Sado, mas o seu levantamento e estudo ainda tem muitas lacunas. Um desses fornos foi descoberto recentemente em São Brissos e, além de várias talhas, tinha uma intacta, de boca para baixo, no local onde foi cozida, permitindo concluir que a tecnologia de fabrico já então era a mesma que até há poucos anos se usava nas olarias tradicionais com fornos a lenha. Exceptuando a dimensão das talhas, que na época romana eram de menor capacidade do que as usadas atualmente na produção de vinho - como se pode veriicar nas que estão expostas no Museu Nacional de Arte Romana de Mérida -, quase tudo continua a respeitar integralmente a herança romana. A pesgagem do interior das talhas com pez louro ou cera de abelha, praticada em toda a bacia mediterrânica desde tempos imemoriais para evitar que o vinho se entranhe no barro e azede, está evidenciada nos vestígios arqueológicos das talhas romanas

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de São Cucufate e continua a ser feita exatamente do mesmo modo no século XXI. Há, no entanto, uma diferença relevante que importa assinalar: a esmagadora maioria das talhas portuguesas e espanholas atuais tem um orifício no fundo, que não existia nas talhas romanas e continua a não existir na maioria das talhas mediterrânicas atuais. Não sabemos quando ocorreu esta inovação tecnológica, nem tão pouco se é um contributo ibérico para uma tecnologia com cerca de oito milénios de história. É de admitir que esta inovação tenha ocorrido na Idade Média, servindo para introduzir uma torneira por onde se tira o vinho. As talhas que não têm este orifício estão geralmente semienterradas, como era norma na época romana e continua a ser na Geórgia, tirando-se o vinho através da boca da talha. A técnica de semienterrar as talhas, tornando muito mais laborioso todo o serviço de adega, pode explicar-se pela menor resistência mecânica das talhas antigas, que poderiam rebentar com a pressão do gás carbónico da fermentação caso não tivessem o aconchego da terra. No entanto, há quem invoque razões transcendentes para tal tradição, muito arreigada na Geórgia e seguida à risca pela maioria dos novos produtores de vinho de talha, que começam a ressurgir um pouco por todo o mundo. Se os utensílios de barro para uso doméstico estão generalizados em todo o País, havendo centros oleiros um pouco por toda a parte, o mesmo não acontece

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com as talhas ou potes de barro para vinho, com capacidades que podem atingir os 3 000 litros, um peso superior a 800 quilos e, por vezes, mais de dois metros de altura, que nunca foram adotados pelos produtores do norte, mais habituados à pedra e ao barril de madeira, como sublinhava Orlando Ribeiro. Não é fácil deinir com exatidão, e desde tempos remotos, a área de utilização das talhas para vinho, embora se aceite o Tejo como a grande fronteira cultural e tecnológica ao sul da qual ocorre a produção de vinho em talhas. Os raríssimos exemplos que possam existir a norte do Tejo não foram suicientes para vulgarizar a tecnologia e apenas servem para conirmar a regra. Os grandes e mais conhecidos centros de produção de talhas no Alentejo foram a Aldeia do Mato, rebatizada no século XX como S. Pedro do Corval, Campo Maior e Reguengos de Monsaraz. No entanto, outros existiram desde o século XVII, particularmente em Amieira (Nisa), Vilalva, Cuba, Serpa e Redondo. Hoje em dia, porém, já não existem talheiros, tendo-se perdido a arte de fazer tão grandes recipientes de barro. Ainda se fazem potes para decoração que podem servir para fazer vinho, mas em vez de se utilizar a construção em anéis, segundo a técnica do talheiro, recorre-se à roda de oleiro. Em S. Pedro do Corval, o mestre Tavares, e em Beringel, António Mestre, teimam em manter a tradição milenar alentejana de produção de talhas, ainda que recorrendo à roda de oleiro, mas não

têm discípulos que queiram aprender a arte, pelo que o futuro é pouco risonho. Talheiro, pesgador e gateador: proissões (praticamente) extintas Um dos mais elucidativos textos sobre a técnica de fabrico de talhas deve-se a Orlando Ribeiro, que descreve a arte de um talheiro de S. Pedro do Corval de forma magistral: "As talhas são feitas em arcos; o barro, amassado em forma de pães, é batido com uma palmatória e espalmado de encontro à mão; quando um pedaço de talha adquire certa consistência, corta-se em bordo delgado em toda a volta e continua-se aumentando a obra para cima. Sem roda, é necessária grande perícia para que o bojo se desenvolva simétrico. O fabricante desenhou nas paredes caiadas da oicina o contorno de talhas para diversas capacidades; tem feito até 2 000 ou 2 200 litros; começa várias ao mesmo tempo e vai levantando-as aos poucos; podem levar uns quatro meses a acabar e um a enxugar. Depois são colocadas cuidadosamente num carrinho, em cima de palha, e vão a cozer a um grande forno, cuja fornalha é escavada no chão. Quando a talha está cozida é besuntada, por dentro, com pez derretido, que torna o barro impermeável". Esta última operação mereceu a atenção de muitos escritores da Antiguidade, e era a base de uma das mais rentáveis indústrias do mundo antigo – a produção de pez –, havendo regiões famosas pela sua qualidade, como a Macedónia e a Calábria.

Columela recomendava que as talhas e demais vasilhas de barro fossem pesgadas todos os anos antes das vindimas, chegando ao pormenor de referir que eram necessários cerca de 8 quilos de pez para impermeabilizar uma talha de 788 L. Por sua vez, Paládio indicava como suiciente 4 quilos de pez para uma talha de 656 L. Esta operação, quase extinta no Alentejo, permite desinfetar, de forma eicaz, as superfícies das talhas que contactam com o vinho e faz com que o vinho ganhe um aroma e sabor resinosos, apreciados pelos consumidores antigos. A perícia com que a operação tinha de ser feita obriga a um trabalho especializado, que era executado pelos pesgadores. Também esta arte está praticamente extinta no Alentejo, pois além de haver já poucas talhas em uso, que não justiicam o negócio, os produtores que ainda as utilizam começam, aos poucos e por ignorância, a isolá-las com resinas sintéticas, de muito mais fácil aplicação, maior longevidade e não conferindo gostos ao vinho. É lamentável que tal aconteça, pois retira a dignidade a um dos objetos iconicos da civilização mediterrânica, perverte completamente a arte antiga de fazer vinho de talha e inutiliza as talhas como peças enológicas de culto. Ainda é fácil encontrar quem pesgue talhas no Alentejo, mas a falta de procura é tão grande que a proissão está na agonia. E é pena, pois irão deixar de existir os vinhos de talha ligeiramente condimentados com pez louro, bem ao estilo da Antiguidade Clássica.

Outra proissão associada à manutenção das talhas de barro é a de gateador que, como o nome sugere, aplica “gatos” nas talhas, para as remendar, a exemplo, aliás, do que era feito, num passado bastante recente, com muita louça doméstica. No caso das talhas, os gatos são varões metálicos, de espessura apreciável e secção redonda ou quadrada que davam solidez à zona de fratura do barro. Também esta proissão já desapareceu no Alentejo. Em Vila de Frades, onde a produção de vinho de talha ainda permanece bem viva, já não há nenhum gateador. O último foi Francisco Casaca, já falecido, também ele ilho de outro gateador. Viniicação em talhas: uma Enologia oxidativa O processo de produção de vinho de talha, que Ferreira Lapa chamava “o processo romano”, já se extinguiu no Algarve, mas ainda se pode observar um pouco por todo o Alentejo, desde o Cabeção a Mértola e da Amareleja a Vila de Frades. Apresenta características muito distintas da viniicação clássica em lagar ou em cuba e origina vinhos de estilo inconfundível, apreciadíssimo localmente e levando as populações rurais do Alentejo a airmar: “enquanto houver vinho de talha, nenhum alentejano bebe do outro”. Embora haja um processo básico de viniicação, que se mantém inalterável há séculos e é inspirado na tecnologia

greco-romana, embora com diferenças assinaláveis que serão referidas, há muitas variantes de local para local, que inluenciam o estilo dos vinhos. As uvas são todas vindimadas na mesma altura e esmagadas antes de serem colocadas na talha. O esmagamento é, em regra, acompanhado do desengace, e pode ser feito com os pés, em pequenas lagaretas, à mão, recorrendo ao ripanço com a ajuda de uma ciranda, ou com esmagadores/desengaçadores mecânicos que, pela facilidade de trabalho, são os mais utilizados. É raro fazer-se correções químicas, embora haja quem recorra ao ácido tartárico e sulitos para garantir mais facilmente a estabilidade dos vinhos.. A fermentação inicia-se espontaneamente ao im de 24 a 48 h através das leveduras selvagens, reconhecendo-se pela subida da manta (ou balsa) até à boca das talhas. A partir desse momento, a balsa é mergulhada duas vezes por dia, de manhã e ao im da tarde, com um mexedor ou rodo, para evitar que azede em contato com o ar. Ao im de 15 dias, a balsa cai e começa a ver-se o sinal típico das grainhas subindo à superfície. Nessa altura, o processo considera-se terminado, e coloca-se um pano limpo ou um tampo de madeira por cima da boca da talha, icando o vinho em sossego a clariicar. Dias antes do S. Martinho, quando se está prestes a iniciar o consumo do vinho novo, as adegas de talha do Alentejo são invadidas pelo refrescante som do vinho a pingar. Esse barulho tão

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característico resulta do vinho a correr em io da torneira da talha para um alguidar de barro (ou plástico) que se coloca por baixo da talha. De início, o vinho do fundo da talha sai turvo e começa a pôr-se por cima, repetindo-se a operação de trasfega várias vezes. Esta operação tem como objetivo “ainar” o vinho, que começa a icar clarinho, sem partículas em suspensão e com um aroma notório, que vai melhorando com o tempo. Não é mais do que uma trasfega com arejamento seguida de uma iltração, onde se obriga o vinho a atravessar a “mãe”, isto é, as partes sólidas das uvas e as borras das leveduras que se depositaram no fundo afunilado da talha. Quando os cachos não são desengaçados, a operação de iltração é mais rápida, pois os engaços facilitam a escorrência do vinho, mas o vinho ica mais adstringente. Daí que, na atualidade, sejam poucos os produtores que, antes de começarem a deitar a uva esmagada para dentro das talhas, coloquem no fundo destas uma cama de engaços, com vista a facilitar a operação de iltração. Na Amareleja, há alguns produtores que, no lugar de uma torneira de madeira, recorrem a uma cana cheia de caules secos de junça, que após hidratação em contato com o vinho e graças à sua seção triangular, obrigam o vinho a passar pelo seu interior esponjoso, clariicando-o como se de um iltro 8 | EPICUR ESPECIAL ALENTEJO

de membrana se tratasse. Esta técnica ancestral, de origem incerta, ainda hoje é usada em África para “puriicar” a água dos rios e lagos antes de ser consumida. Os segredos da “mãe” Quando o vinho é consumido de forma tradicional, como nas tabernas alentejanas, vai-se retirando diariamente da talha e não ganha defeitos – oxidação ou azedia – se o seu consumo for rápido, pois o processo de viniicação, com curtimenta, enriquece-o em taninos que o tornam muito resistente à oxidação. Porém, se o consumo do vinho é mais lento torna-se necessário tomar medidas adicionais. Uma delas, pouco utilizada atualmente, consiste na adição de azeite de boa qualidade à superfície do vinho, pois é o “melhor iltro contra o oxigenio”. Se o consumo do vinho se der no prazo de três meses, a adição do azeite pode ser feita antes de separar o vinho da “mãe”, mas se for mais tarde, há toda a conveniência em retirar a “mãe”, através da trasfega do vinho para outra talha pois, com o tempo, a “mãe” altera-se e pode deteriorar irremediavelmente o vinho. Outra alternativa consiste em separar o vinho da “mãe” e protegê-lo com sulitos antes do seu engarrafamento rápido. Esta técnica permite consumir o vinho ao longo de muito tempo e tem

a vantagem de evitar o aparecimento do cheiro e sabor a “rato”, um defeito frequente em vinhos de talha de regiões quentes, causado por bactérias láticas. A “mãe” do vinho pode-se espremer numa pequena prensa de cinchos que existe em todas as adegas de talhas, e o vinho resultante, em vez de se consumir, deita-se noutra talha ainda cheia. Ao passar pela “mãe” da nova talha, irá ainar o aroma e, principalmente, o sabor, que sem esse tratamento seria bastante taninoso e adstringente. Por sua vez, os bagaços prensados já não costumam ter utilidade. Antes da legislação de Bruxelas proibir o uso de alambiques artesanais, era norma destilá-los, produzindo-se uma bagaceira para consumo doméstico ou para deitar nas talhas que ainda tinham vinho. Como se pode concluir pela descrição feita, o vinho de talha está em contacto com as películas e grainhas até ser completamente consumido. Por isso, pode airmar-se que este tipo de tecnologia (romana) pode prescindir da prensa, embora tenham sido os romanos que mais desenvolveram a construção de prensas na Antiguidade, de que a famosa prensa de Catão é o exemplo mais conhecido. Esta aparente contradição deve-se ao facto de os romanos, e quase todos os povos da bacia mediterrânea, nomeadamente gregos, egípcios, judeus e fenícios, fazerem o vinho de bica-aberta, colocando nas talhas o mosto de uva e não as uvas esmagadas, pelo que recorriam à prensagem para esgotar bem os bagaços. É, portanto, um processo muito distinto do atual, que conferia ao vinho antigo um estilo menos taninoso e diferente do contemporâneo. Se tivermos em conta que a viniicação medieval também era baseada na bica-aberta por toda a Europa, temos de admitir que o atual processo de viniicação deve ser posterior à Idade Média. O estilo dos vinhos de talha Quando se visita uma genuína taberna alentejana entre o S. Martinho e o Carnaval – quando as talhas ainda têm vinho novo –, é fácil testemunhar a preferência dos clientes pelo vinho branco,

frequentemente acompanhado por fatias de pera, “pero”, pêssego ou, até, marmelo. Se formos ao Reguengo de Portalegre, a Vilalva, à Amareleja ou a Cuba, constatamos que a regra geral é fazer quatro talhas de branco para uma de tinto, e parece que, num passado recente, a proporção de branco era ainda maior. Se a esta constatação associarmos a preferência das elites romanas por vinho branco, somos tentados a concluir que desde as villae romanas do século II que o vinho de talha ao sul do Tejo tem sido preferencialmente o branco, mesmo depois do triunfo do tinto no inal do século XX. Não é fácil conirmar esta airmação porque não há estudos da presença de pigmentos amarelos entranhados no barro, mas tomando por base o célebre mosaico da pisa das uvas do aniteatro de Mérida, do séc. I a.C., onde as uvas estão representadas a amarelo, a hipótese ganha mais credibilidade. Esta veneração pelo branco de talha e a preferência que quase todos os alentejanos lhe concedem é considerado um arcaísmo antropológico ímpar, que desaia a volubilidade do gosto ao longo da História. Por altura do S. Martinho, quando se começa a beber o vinho branco novo, a sua cor é amarelo palha, mas à medida que vai oxidando lentamente, torna-se amarelo âmbar. Por vezes, quando a graduação é muito elevada, da ordem dos 15 graus, o vinho pode ganhar à superfície um véu de leveduras, espesso e acinzentado, análogo ao usado para fazer o vinho Xerez, que conduz a uma oxidação intensa e confere ao vinho uma coloração alambreada e um aroma característico, semelhante ao Xerez. Quando essa situação ocorre, o vinho, mesmo em vazio, não azeda, podendo envelhecer nobremente, como os vinhos inos da Andaluzia. Este estilo de vinho de talha é, talvez, o mais parecido com os vinhos da época romana, onde a adição de arrobe (o defrutum, carenum ou sapa romanos), assegurava uma grande riqueza alcoólica e um enorme poder de envelhecimento, tão do agrado das elites romanas. No entanto, os vinhos romanos eram doces, consumidos após longos anos de envelhecimento, que podiam

ser superiores a trinta anos, e frequentemente misturados com sal, mel, ervas e especiarias (lembrando os atuais vermutes), enquanto os brancos alentejanos são consumidos jovens e geralmente sem açúcar residual. Graças ao clima quente, seco e solarengo do Alentejo, as uvas são muito ricas em açúcar e com pouca acidez, marcando, de forma indelével, o estilo do vinho, que é quente na boca, pela sua riqueza alcoólica, muitas vezes excedendo os 14 graus, encorpado, devido ao processo de curtimenta, bastante macio e de inal ligeiramente adocicado, por causa da sua fraca acidez. O aroma é, também, uma característica muito variável nos vinhos de talha, pois está dependente de muitos fatores, incluindo a forma e dimensão da talha. Quando era prática corrente pesgar as talhas com frequência, as notas aromáticas do pez deveriam sobrepor-se às restantes. Agora, em que as talhas passam longos anos sem serem pesgadas, essas notas são irrelevantes. Por isso, o fator que mais inluencia o aroma dos vinhos de talha é a temperatura de fermentação. Na situação mais vulgar, em que as temperaturas excedem largamente os 20º C, os vinhos apresentam aromas muito pouco frutados, dominando as notas tostadas, meladas e ligeiramente caramelizadas, tão do agrado dos alentejanos e tão apropriadas à sua

comida forte e perfumada. Para se conseguir obter as notas meladas ou torradas, conhecidas pelo “torradinho”, é essencial recorrer às uvas da casta Roupeiro ou, eventualmente, de Uva Formosa (de bago oval), tão características dos encepamentos antigos e ainda tão respeitadas em algumas aldeias da margem esquerda do Guadiana. Se em vez de Roupeiro se utilizar Diagalves, Rabo de Ovelha, Perrum e Manteúdo, como é vulgar na zona da Amareleja, o vinho ica com um estilo mais elegante, mas sem o encanto que o “torradinho” lhe transmite. À medida que se vai consumindo o vinho de uma talha, o seu aroma vai-se alterando, pois vai icando em vazio e oxidando lentamente, mesmo tendo o cuidado de o ir passando através da “mãe” antes de ser consumido. Por vezes, quando há descuidos, o ano de colheita é mau ou a impermeabilização das talhas é deiciente, o vinho pode ganhar um ligeiro toque acético, já que não é vulgar recorrer à adição de sulfuroso para garantir a sua conservação. Dentro dos vinhos brancos de talha importa salientar, ainda, os da zona de Portalegre, que, graças ao clima mais fresco, têm menor grau alcoólico e, principalmente, mais acidez, que os torna diferentes e com ótimo poder de envelhecimento. Os produzidos pelo Senhor Joaquim Mexia, em plena serra de S. Mamede, no Alto da Quinta Nova, em 9

de alteração. Há muitos anos que o célebre produtor de Reguengos, José de Sousa Rosado Fernandes, o sabia, pois a qualidade mítica dos seus vinhos devia-se, em primeiro lugar, ao cuidado que tinha de mandar pesgar as suas talhas frequentemente, como recomendava Columela já no século II. Independentemente da qualidade das talhas, continua a não ser possível deinir um estilo característico para este tipo de vinhos. Como nos disse Joaquim Madeira, antigo presidente da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana, grande estudioso dos vinhos do Alentejo e conhecedor de todos os segredos da técnica de viniicação em talhas, “os vinhos de talha são todos diferentes; talvez os de tipologia mais constante sejam os “petroleiros” da Vidigueira e Vila de Frades, cuja imagem de marca é a sua cor palhete ou levemente rosada.” Os vinhos de talha estão na moda em todo o mundo Alvarrões, feitos com Arinto de Alcobaça e Arinto Galego, icam na memória de quem teve o privilégio de os provar. Petroleiro e sangue de Cristo Uma exceção à preferência dos brancos acontece em Vila de Frades, onde a imagem de marca é um vinho clarete lembrando a cor do petróleo e, por isso, chamado “petroleiro”. A esta exceção não deverá ser estranha a presença dos cónegos regrantes de São Vicente de Fora, que se instalaram no Convento de São Cucufate no século XIII, e dos frades beneditinos que os secundaram, que recorreram ao processo romano de produção de vinho de talha para produzir um vinho medieval clarete – o “sangue de Cristo” – com mistura de uvas brancas e tintas. Ainda hoje, as vinhas antigas de Vila de Frades têm cerca de 80 % de castas brancas, onde sobressai a Antão Vaz, e 20% de tintas, para que a mistura das uvas ao ser introduzida na talha dê origem ao vinho vermelho tão reverenciado desde a Idade Média. O vinho tinto tem vindo a ganhar protagonismo nas últimas décadas, certamente pela pressão das modas vindas 10 | EPICUR ESPECIAL ALENTEJO

de fora. Muitos destes vinhos ainda são feitos com as castas tradicionais do Alentejo, onde o Aragonês, a Trincadeira e o Castelão são as mais importantes. Na Amareleja é famoso e delicioso o tinto de talha de Zé Piteira feito com Moreto de vinhas antigas em pé-franco e, na zona da Vidigueira, o vinho feito com Tinta Grossa. Infelizmente, fruto da moda do inal do século XX, começaram a ser produzidos nos últimos anos alguns tintos extremamente carregados de cor, muito frutados e maciços de corpo, feitos com as castas do momento – Alicante Bouschet, Syrah, Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon entre outras. O seu estilo “exótico”, não respeitando a tradição romana, que privilegiava os vinhos brancos ou muito abertos de cor, já começou a entrar nos hábitos de consumo dos alentejanos, demonstrando, mais uma vez, que tanto os conceitos de viniicação como o gosto dos consumidores são realidades em constante mutação, que contrastam com a perenidade da tecnologia das talhas. Porém, mais controverso do que o recurso às castas internacionais é, certamente, o estágio de tintos de talha em barricas de carvalho, misturando o estilo de vinho do mundo mediterrâni-

co com os barris do mundo germânico e celta para originar um vinho que só pode ser do agrado dos consumidores do século XXI que desconheçam a história da civilização europeia. Também não será, por certo, ortodoxo fermentar brancos de talha em câmaras frias a muito baixa temperatura, no intuito de obter brancos muito frutados graças aos ésteres de fermentação produzidos pelas leveduras. Obviamente que são legítimos os tintos de talha com madeira ou os brancos de talha refrigerados, mas desde que não se lhes chame vinhos de talha, cujo estilo é radicalmente diferente. Mesmo tendo em conta os cuidados que os produtores atuais têm com a viniicação e conservação dos vinhos de talha, uma das suas particularidades continua a ser a sua grande heterogeneidade (e frequentes defeitos ligeiros), tanto de produtor para produtor, como de talha para talha, dentro da mesma adega. E a razão de tal situação deve-se, antes de mais, à qualidade da impermeabilização das talhas. Quando esta é totalmente eicaz, os vinhos saem, em regra, bons. Quando ela não é eiciente, os vinhos são tanto piores quanto maior a área não impermeabilizada, que estará cheia de microrganismos

Nos últimos vinte anos, os vinhos de talha ganharam um protagonismo sem paralelo em quase todo o mundo, fruto da ação conjunta de vários fatores: 1) o trabalho notável de promoção do vinho produzido em talhas enterradas (qvevris) levado a cabo pelo governo da Geórgia e por alguns produtores, como a família Gela, detentora da famosa marca Pheasant’s Tears, e alguns mosteiros, como o de Alaverdi; 2) a iniciativa de alguns produtores que se interessaram pelo vinho original do Mediterrâneo e, portanto, pela viniicação em talhas, nomeadamente Jasko Gravner, em Friuli e Luigi Tecce, na Campânia, ambos na Península Italiana, Frank Cornelissen, no Etna, Sicília, Philippe Viret, no Vale do Ródano, e Jean-Claude Lapalu, em Beaujolais - ambos em França - e Marino Markezic, na Ístria, Croácia; 3) o movimento cada vez maior de produtores de “vinhos

talha esteja referenciada na maioria dos países vitícolas, tanto europeus como do Novo Mundo. O que surpreende, ou talvez não, é o Alentejo ser a única região produtora de vinho de talha que nunca é referida em artigos internacionais sobre o tema. De facto, se os alentejanos não se preocuparem em anunciar ao mundo o imenso património vitivinícola que têm, continuarão a ser ignorados e a não usufruir da mais-valia que é produzir excelente vinho de talha ininterruptamente há dois mil anos. Nos últimos cinco anos, porém, deram-se passos relevantes para recuperar o tempo perdido. Um deles, por iniciativa de pequenos produtores de vinho de talha e de uma associação de Vila de Frades – a Vitifrades – foi o reconhecimento, pela Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA), do direito deste tipo de vinho a ter Denominação de Origem Protegida, facto que assegura o controlo e certiica

mente, e de acordo com dados da CVRA, o vinho de talha certiicado tem vindo a crescer muito rapidamente, tendo saltado de 3200 litros em 2011 para 44000 no ano passado, parte dos quais exportada para os Estados Unidos da América, o Brasil, Angola e Suíça. As quantidades são ainda simbólicas, mas oxalá a tendência continue, pois a melhor forma de recuperar a arte da produção e conservação das talhas, preservar o imenso património tangível e intangível associado às talhas que ainda existe no

naturais”, que reconhecem no vinho de talha feito à antiga o estilo primordial a seguir; e 4) a maior exigência e conhecimento dos consumidores, que procuram vinhos diferentes dos tradicionais e com mais aptidão gastronómica. Não surpreenderá, pois, que a produção de vinho de

a sua qualidade. Outro passo, ainda mais signiicativo, foi o interesse de grandes empresas alentejanas pela produção de vinho de talha, como o Esporão, Herdade do Peso (Sogrape), Herdade do Rocim e Casa Agrícola Alexandre Relvas, para além dos produtores já existentes. Final-

Alentejo e manter as tradições de convivialidade associadas a este tipo de vinho, nomeadamente nas tabernas, onde se contam estórias, saboreiam petiscos e se ouve o cante alentejano de copo na mão, será através da procura e consumo de vinho de talha. 11

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