Mais sobre Antropofagias e outros escritos de Roberto Piva.doc

May 25, 2017 | Autor: Claudio Willer | Categoria: Poesia Brasileira
Share Embed


Descrição do Produto

Mais sobre Antropofagias e outros escritos, inéditos de Roberto Piva
Claudio Willer
Volto a tratar da importância dos inéditos e
dispersos de Roberto Piva que estão sendo publicados
através da Biblioteca de Roberto Piva e outras boas
iniciativas


Poema
As teorias passam. A rã fica.
Jean Rostand, Carnets d'un Biologiste


O que importa é a porta
cancerosos estudantes de semiótica
não o buraco negro da fechadura
na rigidez apolínea dos esquifes
importa é vento além da porta que ainda ulula no hori-
zonte
gravatas de maconha enlaçadas na aurora
centauros trotando no porre das avenidas
cometas nas praias silenciosas
Eu quero tocar o tambor nesta orgia de claridades
circular na roda-gigante do coração do garoto punk
onde a tribo do futuro cochila
esperando o sinal do Ataque

Esse poema finaliza Antropofagias e outros escritos de Roberto Piva
(São Paulo, 2016, editora Córrego de Gabriel Kolyniak). Coletânea de
inéditos, transcreve textos selecionados dentre seus manuscritos. A edição
ilustrada, com fotos de originais por Sendi Moraes, vem sendo distribuída
como recompensa aos que contribuíram para a Biblioteca de Roberto Piva. Ou
pelo valor equivalente, em
http://www.editoracorrego.com.br/departamento/67263/06/gavie3o2dde2dpenacho.

A observar como Piva investe contra formalistas, "cancerosos
estudantes de semiótica"; e ao mesmo tempo mostra que poderia seguir por
esse caminho, jogando com a relação do som e sentido o quanto quisesse,
como neste efeito de eco: "o que importa é a porta". Ou em jocosas rimas
internas:
sardinha à tardinha
vinho & último naco de Sol
a respiração toma rumo ignorado
Em aliteração irreverentes, como mais esta contribuição à poesia
licenciosa:
Lá vamos nós
aqui vai você na canja argentina
lá vai ele risoto no rabo risonho
peidos pelas pregas
pelado pedalando o cometa Halley
Fez pior (ou melhor) nas variações sobre "Cara / caralho / carnaval da
carne / [...]".
Mas não. Não se interessou em tornar-se letra de música, penso.
Guardou distância de alguns de seus contemporâneos. Privilegiou a
iluminação, o transe, o delírio, como proclamou, entre outras páginas de
Antropofagias, nesta sinopse da sua poética:
essa atividade muscular chamada poesia
anos de selvageria & paisagens
totens de neon carrancudos
Ou no belo poema para Dizzy Gillespie (transcrevo os versos iniciais):
Poesia é isso:
delírio que chega
num soco
do Vento
Enfim, nada que, nem remotamente, pudesse permitir associá-lo a um
modo de criação mais regrado, mais cerebral, menos visceral. Daí, talvez,
desde seus primeiros poemas – aqueles da Antologia dos novíssimos, agora
reapresentados na coletânea Roberto Piva da coleção Arte Postal (Azougue /
Cozinha experimental, 2016) –, situar o que escreve, relacionando os poemas
a um lugar ("Praça da República dos meus sonhos", "No Parque Ibirapuera"
etc), circunstâncias e acontecimentos. E, principalmente, a pessoas,
nomeando-as, acabando por dedicar a amigos todos os poemas de seu
derradeiro Estranhos sinais de Saturno (derradeiro dos publicados em vida,
como se vê). Poesia do concreto, em oposição à corrente formalista que se
denominou poesia concreta.
Mas isso não explica, não dá conta do paradoxo, de haver desistido de
publicar tanta poesia de qualidade; de não querer em adicioná-la, pelo
menos em parte, aos três volumes de Obras Reunidas (Globo, 2005 a 2008).
Fica evidente, através da leitura dessas novas edições, que os 20 poemas
com Brócoli poderiam ter sido ao menos 25; que Ciclones, cuja extensão o
incomodava por preferir livretos que funcionassem como panfletos de uma
guerrilha cultural particular, poderia ter várias páginas a mais, assim
como Estranhos sinais de Saturno.
Como foi possível alguém pessoalmente tão desregrado administrar sua
obra desse modo? Teria sido correlato a ele tentar administrar sua
biografia? Em Os dentes da memória, nossa coletânea de entrevistas (por
Camila Hungria e Renata D'Elia, Azougue, 2011), foi reticente, até mesmo
telegráfico. Apreciou o que saiu sobre o lançamento do Volume 1 pela Globo,
Um estrangeiro na legião, em 2005; mas em sua entrevista para Paulo
Mohylovski em Germina transparece que preferiria fazer qualquer outra coisa
a não ser dar entrevista.
Não quis exercer plenamente o direito de contradizer-se, reivindicado
por Baudelaire. Atenuou uma ambivalência que aparece exacerbada em
Antropofagias. Por exemplo, na prosa poética sobre os lugares mágicos de
São Paulo, pelo mesmo Piva que chamava a metrópole de necrópole e "ilha de
destroços", ansiando por deixá-la.
Já examinei essa questão no posfácio deste Antropofagias e em uma
extensa palestra[1]. Além da precedência do livro ou livreto, pode ter
preferido aqueles poemas que criou já pensando no livro vindouro. Por
exemplo, na criação de Coxas (1978): "Quero publicar um livro!", declarou-
me, e se pôs a escrever capítulos da história de Pólem e Lindo Olhar, que
ia me mostrando ou lendo pelo telefone. Ou ao criar 20 poemas com Brócoli,
bebendo cerveja em um bar em dois dias consecutivos, segundo declarou (esta
e outras informações, na coletânea de entrevistas Roberto Piva, Azougue,
2010). E ao escrever o livro seguinte, o mais delirante, Quizumba, enquanto
descansava em Águas de Lindóia.
Pretendo voltar ao assunto. Novos inéditos e dispersos e a publicação
de Corações de Hot-Dog possibilitarão. Outros também o farão, pois, como
tenho repetido, não é apenas um poeta lido, porém, cada vez mais, estudado
e pesquisado. Que venham os mediadores entre o poeta e seus leitores. Piva
os merece.
-----------------------
[1] Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=72Oz6PjHKmw&feature=player_embedded
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.