Mais União Europeia: reforçar a democracia. Aprofundar a cidadania (2014)

June 14, 2017 | Autor: João Pedro Dias | Categoria: União Europeia
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Mais União Europeia: reforçar a democracia. Aprofundar a cidadania. João Pedro Simões Dias – 2014.03.11

Conferência proferida no Departamento de Gestão e Engenharia Industrial da Universidade de Aveiro 1. Há cerca de um ano, nesta mesma casa e por convite gentil que também me foi endereçado, tive ocasião de partilhar com quem teve a paciência de me ouvir uma reflexão sobre alguns dos factos que, em minha opinião, contribuíram para que a Europa, sobretudo a Europa da União, tivesse sido conduzida para a maior crise da sua história1. Daí para cá, reconheçamo-lo, a situação evoluiu pouco, muito pouco. Os sinais de recuperação são ténues e não podemos dar por adquirido que não estejam relacionados com o ciclo eleitoral que teremos pela frente. Mas se há um ano se impunha olhar para o passado, hoje pede-se que olhemos para o presente e para o futuro. 2. Hoje, tal como há um ano, a Europa encontra-se numa fase de profunda crise. Talvez a maior e mais grave crise com que teve de se deparar desde que se deu início ao projeto europeu que reconstruiu a Europa do desastre da segunda guerra mundial. 1

O texto em causa está publicado e disponível como Posfácio em “A Ideia de Europa”, João Pedro Simões Dias, Edição Respublica Europeia e IDL – Instituto Amaro da Costa, Aveiro, 2013, pag 181-195 sob o título “UE: caminhos de futuro”.

3. Essa situação de acentuada crise, bem como a forma como as instituições europeias responderam – ou não responderam – a essa crise gerou um sentimento de profunda tristeza, desilusão e mesmo de alguma angústia naqueles que se envolveram, das mais variadas formas, na construção desse mesmo projeto europeu (estudando-o, divulgando-o, nele intervindo ou participando a vários níveis). 4. A análise da crise talvez ainda não esteja completamente feita. Talvez ainda faltem conhecer-se aspetos importantes que ainda permaneçam na confidencialidade dos gabinetes de Bruxelas e de outras sedes de poder que entretanto emergiram e se têm afirmado de forma cada vez mais reforçada. E temos de reconhecer que não há ainda a necessária distância histórica para que essa análise se processe de uma forma objetiva, rigorosa, séria, independente e imparcial – como deve ser timbre e apanágio de todas as análises históricas. 5. Pese embora esses factos, e com o devido respeito por opinião diferente, há duas conclusões que se me afiguram evidentes e absolutamente indesmentíveis. 6. A primeira conclusão é que a Europa, a Europa que teima em dizer-se como sendo a da União, sai ou está em vias de sair desta crise de uma forma muito mais débil, muito mais enfraquecida, muito menos unida do que quando nela entrou. Temos hoje menos Europa, temos menos instituições comuns europeias, temos menos ambição política no projeto europeu. Em contrapartida –

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temos mais poder dos Estados2, temos mais diretório, temos mais Alemanha. Recorrendo ao jargão comunitário e mais técnico: temos mais intergovernamentalidade e temos menos supranacionalidade. 7. A segunda grande conclusão que esta crise nos permite tirar é que temos hoje uma cidadania europeia diminuída, formalmente igual mas substantivamente diminuída. O poder efetivo e de facto está cada vez mais distante dos cidadãos e dos europeus. E está cada vez mais localizado e sedeado em locais obscuros, insindicáveis – offshores, mercados e outros semelhantes – que ninguém conhece, que ninguém fiscaliza, que conseguem escapar aos controles democráticos e de legalidade, às próprias entidades reguladoras. E que, não raro, andam paredes-meias com o mundo da ilicitude, do ética e moralmente censurável. É uma espécie nova de poder transnacional que emergiu e se afirma, que condiciona cada vez mais a vida dos cidadãos mas sobre o qual estes, os cidadãos, sabem cada vez menos, conhecem cada menos. E isto significa que temos uma democracia europeia mais débil. Temos, hoje, menos democracia na Europa. Em termos formais temos a mesma, em termos substanciais temos menos. Qualitativa e quantitativamente. 8. E como sou dos que acreditam que o projeto europeu ou é estruturalmente democrático ou, pura e simplesmente, não existe – a situação preocupa-me. Preocupa-me porque analisando e estudando as diferentes formas de organização política da sociedade, 2

Veja-se o que se passa neste preciso momento, no verdadeiro braço-de-ferro, que se trava entre o Parlamento Europeu e o Conselho a propósito da união bancária e do mecanismo de resolução bancária, que o Parlamento Europeu entende dever ter uma muito maior dimensão comunitária e o Conselho, por influência alemã, entende dever ter uma dimensão predominantemente estadual.

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sei que as mesmas nascem, vivem mas também morrem. Também desaparecem. Ora, sendo a União Europeia uma forma de organização política da sociedade, de âmbito supranacional, concluo que é o futuro da própria União Europeia que pode estar em crise. 9. Não tenhamos medo das palavras – a União Europeia, tal qual está, pode desaparecer. Não me refiro a um desaparecimento formal, decretado, deliberado, assumido. A um desaparecimento de direito. Refiro-me a um desaparecimento de facto. Tornando-se irrelevante, dispensável, desrespeitada. Deixando de contar na cena internacional, enredada nas suas contradições internas, presa dos seus métodos de decisão que em vez de decidirem, adiam decisões, refém dos interesses necessariamente contraditórios dos seus Estados-Membros. 10. Mas se esta possibilidade – a do desaparecimento da União Europeia – não pode ser tida por afastada, devemos ser conscientes que isso seria trágico e dramático para a própria Europa. Sobretudo porque o mundo de hoje é um mundo cada vez mais globalizado, cada vez mais “pequeno”, onde o que se passa num qualquer canto influi logo nos seus antípodas. Fruto do desenvolvimento da ciência e da técnica, e sobretudo das tecnologias da informação e da comunicação, o mundo de hoje é um mundo de grandes espaços, de grandes blocos, de grandes áreas geoestratégicas, que se relacionam cada vez mais entre si. Vai longe a época em que as relações internacionais assentavam no relacionamento bilateral entre Estados. Hoje, o relacionamento internacional fazse e assenta em grandes blocos. E, na falta de outro, a União Europeia é, hoje, o grande espaço ou o grande bloco que representa, por excelência, a Europa, o velho mundo, o velho continente. Sem a União Europeia, a Europa como tal deixaria de contar no mundo globalizado dos nossos dias. Já hoje conta pouco – os recentíssi-

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mos acontecimentos na Ucrânia, a crise com a Rússia e a dificuldade em assumir uma posição comum e concertada face a este diferendo aí estão para o demonstrar à exaustão. Sem a União Europeia a Europa deixaria de contar pouco na cena internacional. Passaria a contar nada. E nunca será demais relembrar e recordar que, se o mundo tem os olhos postos na Europa e naquilo que a Europa lhe pode oferecer, esse mesmo mundo, lá fora, não pára à espera que a Europa resolva as suas dissensões e as suas contradições internas. 11. E aqui chegamos ao ponto essencial e ao momento de olhar para o futuro. 12. É fundamental, para reverter este quadro, reforçar e fortalecer a dimensão democrática da União Europeia. E o próximo momento onde isso se poderá fazer será, justamente, nas próximas eleições para o Parlamento Europeu. Daí que venha, reiteradamente, a insistir que é uma oportunidade que não podemos perder nem podemos desperdiçar. 13. E isso significa que não nos devemos centrar no acessório desprezando o essencial. Não devemos aproveitar este ato eleitoral para finalidades que ele não tem nem comporta. 14. É necessário compreender que no próximo dia 25 de maio não se realizarão 28 eleições nacionais para o Parlamento Europeu mas, pelo contrário, ocorrerá uma única eleição que se desenvolverá nos 28 Estados-Membros da União Europeia. Parecendo ser a mesma coisa são, todavia, coisas substancialmente diferentes!

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15. A principal consequência a retirar desta definição prende-se, inquestionavelmente, com o objectivo do próprio ato eleitoral. Ao contrário do que alguns se têm empenhado em propalar – inclusivamente muitos que têm acrescidas responsabilidades em evitar o equívoco – o ato eleitoral para o Parlamento Europeu não tem, nem pode ter, por finalidade emitir um qualquer juízo de valor, no plano político, sobre os governos de turno de cada um dos Estados da União. Apelar para que se aproveitem as eleições para o Parlamento Europeu para censurar ou mostrar cartões aos governos nacionais, não significa cometer um erro. Significa cometer dois erros, qual deles o mais grave. 16. O primeiro, consiste em perverter por completo o sentido e a finalidade das referidas eleições europeias. Os governos nacionais, todos eles e em todos os Estados da União, devem ser julgados no momento adequado e esse é, obviamente, o momento de realização de eleições legislativas. Não é, nem pode ser – sob pena de estarmos a desvirtuar o próprio sistema – o momento de realização de quaisquer outros atos eleitorais e, nomeadamente, o ato eleitoral para a Assembleia de Estrasburgo. Os governos julgam-se e avaliam-se em eleições legislativas nacionais. 17. O segundo erro em que tal visão nos poderá fazer incorrer tem a ver com o facto de, tal entendimento, equivaler a desperdiçar mais uma oportunidade soberana para se efetuar um debate sério e aprofundado sobre a Europa e os caminhos que esta pode vir a trilhar. E, se se desperdiçarem estas oportunidades que não abundam, reconheçamo-lo, fenece em absoluto qualquer legitimidade para se criticar a falta de debate europeu e a falta de uma discussão séria e aprofundada sobre as questões europeias. Não existe momento mais nobre e mais sério, e também mais adequado, para uma discussão e um debate sério sobre a Europa do que

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aquele que antecede a realização de um ato eleitoral para o Parlamento Europeu. É, por excelência, o tempo de discutir a Europa: as diferentes visões que possam existir, os diferentes modelos que se apresentem, os projetos alternativos que se estruturem. Temos o dever e a obrigação de colocar a dimensão europeia no centro da nossa reflexão. E sermos rigorosos, exigentes, implacáveis, exigindo respostas concretas a dúvidas e questões bem concretas. Exigindo de cada candidato que nos diga que visão tem para a Europa. Que modelo de construção europeia defende e preconiza. Que medidas concretas apoia nos domínios vitais em que o Parlamento Europeu pode interferir – e que são cada vez mais amplos e mais alargados. 18. A estes factores acresce um outro, de natureza conjuntural, que contribui para conferir uma maior importância e um maior relevo às próximas eleições europeias: é a primeira vez que as mesmas se realizam em 28 Estados europeus; é o ato eleitoral que, potencialmente, mais cidadãos europeus poderá chamar às urnas. Nunca foram tantos os Estados onde se realizarão as próximas eleições europeias; nunca foram tantos os europeus com capacidade eleitoral activa para exercerem o respectivo direito de voto. Seria lamentavelmente trágico – ou tragicamente lamentável – que se confirmassem suspeitas que vêm sendo lançadas por alguns estudos de opinião divulgados por essa Europa fora: que nunca tendo havido a possibilidade de tantos irem votar, nunca tão poucos o irão fazer! Era o cúmulo da ironia, da contradição e do paradoxo! 19. É um pouco de tudo isto que se curará quando chegar o momento de formular um juízo e uma opção de voto nas eleições europeias. Confundir ou misturar estes objectivos e estas questões com assuntos de política doméstica e caseira não parece a opção

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mais sábia nem a escolha mais acertada. E se todos nós, europeus, beneficiamos duma cidadania comum que nos foi atribuída como factor integrador e que tem no exercício do poder de voto para o Parlamento Europeu uma das suas mais relevantes manifestações e expressões políticas, é-nos exigido, no mínimo, o bom uso desse direito. É a forma que temos de contribuir para a construção, no plano supranacional, dum futuro que a todos diz cada vez mais respeito. 20. Mas há outra razão de não menor importância que nos deve impelir para uma participação cívica e cidadã no próximo ato eleitoral europeu. É que as próximas eleições para o Parlamento Europeu não se limitarão a servir para escolher apenas os eurodeputados que cada país elegerá para a eurocâmara. Servirão, também, ainda que indireta e mediatamente, para escolher a personalidade que presidirá à Comissão Europeia que iniciará o seu mandato em Novembro de 2014. 21. Decerto: pese embora a evolução registada, continuamos longe do cenário que melhor serviria o projeto europeu com todas as vicissitudes por que o mesmo passa no momento presente. Esse cenário exigiria, seguramente, um reforço do poder e das competências da Comissão Europeia, verdadeiro motor da integração europeia e autêntica guardiã dos tratados, uma valorização do pilar comunitário da União em detrimento da sua componente intergovernamental – e tudo isso deveria passar por uma profunda reforma institucional da União que contemplasse, designadamente, a eleição direta e por sufrágio universal do próprio Presidente da Comissão Europeia. Eleição que decorresse em simultâneo com a eleição do Parlamento Europeu. E eleição que, conferindo legitimidade democrática direta ao líder do executivo comunitário, não deixaria ver essa legitimidade estendida ao próprio órgão a que

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este preside. Num cenário desses, a Comissão Europeia apareceria relegitimada na sua própria democraticidade, os cidadãos europeus seriam chamados a uma participação acrescida no próprio projeto europeu e a democracia ao nível supranacional sairia claramente reforçada. 22. E este ato eleitoral terá, já o sabemos, como pano de fundo um cenário que podemos antecipar – o fortalecimento de um voto de protesto, radical e extremista que, aproveitando-se da matriz democrática da própria União Europeia irá usar dela para a atacar na génese das suas próprias instituições. Decerto – não se questiona a existência dessas propostas nem a sua legitimidade. O problema é outro. O problema fundamental é que a generalidade dessas propostas que começam a ganhar forma cada vez mais sustentada revela uma lacuna incontornável – sabemos, por regra, aquilo que rejeitam e aquilo que recusam. Pouco ou nada sabemos daquilo que propõem, do que sustentam, do modelo alternativo que podem ter para oferecer ao eleitorado. Sabemos que contestam a globalização, a livre circulação de pessoas, o aprofundamento político da União, o reforço das competências das instituições comuns, quiçá mesmo a própria moeda comum europeia. Algumas dessas críticas revestem inequívoca pertinência. 23. A questão, porém, permanece em aberto: tudo em nome de quê? Convenhamos – ainda ninguém no-lo explicou, de forma sistemática, de forma coerente, de forma global. E aí reside a grande debilidade e a grande fraqueza destes movimentos eurocéticos que beneficiam dos tempos de crise para capitalizarem descontentamentos, congregarem desconfianças e, muito provavelmente, somarem (muitos) votos. E este é o verdadeiro drama que as próximas eleições para o Parlamento Europeu podem revelar – um forte descontentamento traduzido ou numa elevada absten-

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ção ou num significativo reforço dos que, beneficiando e aproveitando a matriz democrática da União, apenas se estruturarão em torno de um voto de protesto em movimentos relativamente aos quais sabemos apenas o que não querem mas ignoramos quase por completo aquilo que querem. 24. A noção deste perigo deve contribuir para interpelar as nossas consciências cívicas e cidadãs contribuindo para nos levar às urnas no próximo dia 25 de maio. 25. Bem sei – a escolha nem sempre se afigura fácil: não só pela qualidade das candidaturas que já se conhecem como, inclusivamente, pela natureza das propostas que já foram anunciadas. Voltemos a não ter medo das palavras – não é com complacências com a mediocridade que melhor uso faremos da nossa condição de cidadãos europeus. É através do reforço da exigência que nos tornaremos cada vez mais dignos e merecedores do estatuto e da condição de cidadãos europeus. 26. Se vivemos numa Comunidade que teima em se afirmar e denominar como União, que tem como pressuposto básico de pertença à mesma o respeito pela democracia, e que edificou e densificou um conceito de cidadania comum para quem é cidadão dos seus Estados-Membros, cumpre-nos exercer na plenitude os direitos que nos são outorgados – sobretudo quando esses direitos revestem a natureza do que nós, juristas, qualificamos como autênticos poderes-deveres: direitos que não só devemos como podemos e se nos exige que exerçamos. O direito a participar na vida coletiva das comunidades que integramos, neste caso a União Europeia, conta-se entre os principais e mais nobres desses direitos. Não o desperdicemos. Não o desbaratemos. Não nos demitamos da nossa condição cidadã. 10

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