Malditas serpentes. In: Notícias Asgardianas - 10

May 29, 2017 | Autor: Leandro Vilar | Categoria: Norse mythology, Vikings, Mitologia Nordica
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NOTÍCIAS ASGARDIANAS N. 10 AGOSTO-DEZEMBRO DE 2015, ISSN: 1679-9313 BOLETIM DO NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS DOSSIÊ: SÉRIE VIKINGS

Conselho Editorial: Prof. Dr. Neil Price (Universidade de Uppsala/NEVE) Prof. Dr. Terry Gunnell (Universidade da Islândia/NEVE) Prof. Dr. Teodoro Manrique Antón (Universidade de Castilla-La Mancha, Espanha/NEVE) Prof. Dr. Hélio Pires (Universidade Nova de Lisboa/NEVE) Prof. Dr. Eduardo Fabbro (Universidade de Toronto/NEVE) Prof. Dr. André Szczawlinska Muceniecks (UFOP/NEVE) Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

Equipe Editorial: Ma. Luciana de Campos (PPGL-UFPB/NEVE) Me. Pablo Gomes de Miranda (UFRN/NEVE) Me. André de Oliveira (PPGH-UFMT/NEVE) Me. Munir Lutfe Ayoub (NEVE) Ricardo Wagner Menezes de Oliveira (PPGCR-UFPB/NEVE) José Lucas Cordeiro Fernandes (PPGH-UECE/NEVE) Andressa Furlan Ferreira (PPGCR-UFPB/NEVE)

Sumário

2016 SUMÁRIO

Editorial................................................................................................................4 André Szczawlinska Muceniecks DOSSIÊ TEMÁTICO: SÉRIE VIKINGS A religião em Vikings.........................................................................................8 Robert A. Sauders (Tradução de Andressa F. Ferreira) Violência e ritual...............................................................................................14 Larissa Tracy (Tradução de Gustavo Braga) Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade............................................18 Medievalist.net (Tradução de Gustavo Braga) Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings..........................................22 Johnni Langer Floki, Loki e outras representações................................................................32 Flávio Guadagnucci Palamin Precisamos falar sobre (F)loki: breves comentários sobre História, Mitos e navios..................................................................................................................42 Pablo Gomes de Miranda A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos................................53 Munir Lutfe Ayoub Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço.....64 Leandro Vilar Oliveira A representação do Ragnarok na série Vikings............................................76 Angela Albuquerque de Oliveira História e ficção em Vikings............................................................................88 François Dontaine (Tradução de André de Oliveira) História e cultura escandinava na TV e na universidade: o projeto de extensão “Ciclo de cinema Série Vikings” da UFSM...................................94 Semíramis Corsi Silva Luana da Silva de Souza

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Sumário

2016 Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção.................................................................................................................105 Marlon Ângelo Maltauro Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings............117 Luciana de Campos Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings...................................128 Hiram Alem ARTIGOS Acorde Groa, acorde boa mulher: a prática necromântica na Edda Poética pela Grógaldr...................................................................................................137 Bárbara Rebecca Baumgartem França Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia e seus reflexos n´A saga de Eirik, o vermelho...............................................146 Letícia Santos Repensando os vikings em sala de aula: uma experiência do PIBID História e(m) imagens....................................................................................157 Bruno Ercole Thiago Natário Reminiscências do sagrado e as origens nórdicas do Black Metal norueguês.........................................................................................................168 Lauro Ericksen

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Editorial - André Muceniecks

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EDITORIAL André Szczawlinska Muceniecks

Nunca antes no Brasil temas inspirados no medievo da Europa setentrional estiveram em tanta evidência. De fato, a circunstância enquadra-se em um movimento mais amplo, de nível mundial, que tem dado destaque em vários meios, mas principalmente no cinema e TV, à temática. É nesse contexto que foi lançada pelo History Channel, no ano de 2013, a série Vikings. Com equipe mista de produção da América do Norte e das Ilhas Britânicas e elenco composto por atores australianos, canadenses, americanos, britânicos e escandinavos, a série divulgou o tema de forma realmente mundial. A popularidade dos escandinavos na telinha cresceu de forma exponencial; com ela cresceu o número de questionamentos dos espectadores: tais personagens existiram? usavam os cabelos desta forma? tatuavam-se? os eventos descritos aconteceram? essas técnicas de batalhas eram usadas? No momento em que se inicia a 4ª temporada da série, a equipe do NEVE (Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos) apresenta o tema de forma

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acessível, mas ainda assim acadêmica, lançando um dossiê específico sobre a série, com colaborações bastante diversificadas. De alunos de graduação a professores de instituições universitárias, o intuito do volume é responder a tantas questões de forma avalizada e, simultaneamente, dar continuidade ao interesse despertado no Brasil. O quanto este objetivo foi cumprido ficará a cargo do leitor, que tem a seu dispor contribuições bastante variadas. “História e ficção em Vikings” de François Dontaine e “Os vikings invadem a TV”, de Marlon Maltauro, apresentam visões mais panorâmicas sobre a série como um todo, incluindo uma visão ampla sobre as principais fontes primárias nas quais os autores basearam-se, e abordagens sérias e críticas sobre o quesito historicidade. A espiritualidade e as formas religiosas encontram lugar de destaque em um grande número de artigos; em “A religião em Vikings”, o leitor encontrará uma leitura mais ampla, descritiva e favorável à forma de retratação da religiosidade escandinava na série. Já em “Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade” (do medievalist), “Sacrifício a Freyr” de Johnni Langer, e “A representação do Ragnarok” de Angela Albuquerque de Oliveira, aspectos pontuais referentes às formas religiosas são discutidos de forma mais aprofundada e crítica. Dois artigos dedicam espaço especial à discussão da similaridade entre o deus escandinavo Loki e o personagem Floki, da série: “Floki, Loki e outras representações”, de Flávio Guadagnucci Palamin, e “Precisamos falar sobre (F)loki”, de Pablo Gomes de Miranda. Aos interessados em uma discussão mais aprofundada de aspectos técnicos e conectados ao estudo da cultura material como construção náutica, vestimentas e armamentos, recomendamos fortemente não apenas a leitura do

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artigo já mencionado de Pablo de Miranda, que também remete com propriedade ao aspecto de Floki enquanto construtor e às (im)possibilidades de construção do período, mas também a “Lãs, sedas e adornos”, de Luciana Campos, e “Onde estão os arcos?”, de Hiram Alem. De certa forma conectado à questão da Cultura Material, ainda que sob um ponto de vista específico de análise de estereótipos, é “A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos”, de Munir Lutfe Ayoub. Algumas temáticas peculiares ligadas às fontes envolvendo Ragnar e/ou seus homônimos são discutidos mais detidamente em “Violência e Ritual” de Larissa Tracy, que discute a questão do suplício da “águia sangrenta”, e em “Malditas serpentes”, de Leandro Vilar Oliveira, que demonstra uma tradição mais ampla sobre a circunstância no qual (atenção, SPOILERS historiográficos!) o suplício de Ragnar se dá, de acordo com a Saga de Ragnar Lodhbrok: o poço de serpentes do rei saxão Ælla. Finalmente, em “História e cultura escandinava na TV e na universidade” de Semíramis Corsi Silva e Luana da Silva de Souza, as autoras descrevem uma iniciativa prática do estudo da história medieval por meio de recursos filmográficos — no caso, evidentemente a série Vikings. Um artigo estimulante e inspirador no sentido de quebrar barreiras tradicionalmente estabelecidas na academia brasileira, incluindo uso do cinema e, mais especificamente, o foco na Escandinávia Medieval. Experiência similar é discutida na sessão de artigos livres, em “Repensando os vikings em sala de aula”, de Bruno Ercole e Thiago Natário. Na mesma sessão encontramos “Acorde Groa, acorde boa mulher”, de Bárbara Rebecca Baumgartem França, e “Literatura e Cristianismo”, de Letícia Santos, artigos novamente voltados à questão da religiosidade — desta feita, discutindo

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a prática da necromancia e aspectos do processo de cristianização escandinava na Saga de Eirik, o vermelho. Por fim, temos em “Reminiscências do sagrado e as origens nórdicas do Black Metal norueguês”, de Lauro Ericksen, um estudo de reapropriações de aspectos do medievo escandinavo à cultural norueguesa contemporânea. A equipe do NEVE deseja uma boa leitura e deseja, com este volume, contribuir de forma significativa não apenas ao aprofundamento, mas também ao despertamento de interesse na Escandinávia e Europa Setentrional do medievo. Boa leitura!

André Szczawlinska Muceniecks é doutor em História pela USP, professor da UFOP e membro do NEVE.

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A religião em Vikings - Robert A. Sauders

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DOSSIÊ TEMÁTICO: SÉRIE VIKINGS

A RELIGIÃO EM VIKINGS Robert A. Sauders (Tradução de Andressa F. Ferreira)

“Como você pode ser um cristão quando transita entre nossos deuses?” Série Vikings

Criado e escrito por Michael Hirst, experiente em dramas históricos como Elizabeth (1998) e The Tudors (2007-2010), o Vikings do History Channel é uma produção irlando-canadense que trata da ascensão do nórdico Ragnar Lothbrok (Travis Flammel) do século VIII. Na primeira temporada, o ambicioso Ragnar, tramando com seu irmão Rollo (Clive Standen) e o dotado carpinteiro naval Floki (Gustaf Skarsgård), lidera um grupo de invasores através do Mar do Norte até a Britannia, saqueando Lindisfarne. Ao retornarem para a Escandinávia com tesouros e escravos, os piratas provocam a ira de seu líder míope, Earl Haraldson (Gabriel Byrne). O earl reivindica os espólios deles para si, com exceção de uma posse: o monge anglo-saxão fluente na língua nórdica antiga, Athelstan (George Blagden), o qual Ragnar capturou na Inglaterra. A esposa de Ragnar, Lagertha (Katheryn Winnick), uma renomada shieldmaiden (“dama-de-escudo”; mulher guerreira) por direito, acompanha os vikings em uma segunda invasão, devidamente sancionada, à Inglaterra. Ao retornarem, Ragnar e Haraldson disputam pelo poder, sendo que Ragnar derrota o earl em um combate individual. Seguindo uma peregrinação até a cidade sagrada de Uppsala, Ragnar jura fidelidade ao rei Horik (Donal Logue), embora seu irmão

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A religião em Vikings - Robert A. Sauders

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— que cobiça Lagertha — conspire contra ele, aliando-se ao inflexível Jarl Borg (Thorbjørn Harr), que maquina contra o rei aparentemente afável. A religião é um componente fundamental de quase todos os episódios; a maioria do drama emocional depende de questões de fé. De acordo com um crítico, “A religião dos povos nórdicos […] é apresentada não como uma fachada, mas como uma força dirigente em suas decisões — a noção de Valhalla e de uma boa morte, por exemplo, está em todo lugar”. Na cena de abertura do episódio 1, Rites of Passage (“Ritos de passagem”), Ragnar vê um Odin austero, o Pai-de-Todos e deidade suprema do paganismo nórdico, vagando por um campo de batalha repleto de cadáveres ao leste da região báltica. Ele é acompanhado pelas valquírias fantasmagóricas, as quais reivindicam as almas dos heróis mortos. A comunhão com o mundo invisível também é apresentada logo de início, sinalizada pelo seiðmaðr (“vidente”) desfigurado do clã adivinhando o futuro de forma precisa, assim como pela reivindicação aparentemente sincera de Floki ser capaz de “olhar dentro das árvores” para encontrar a madeira certa para seu navio. No segundo episódio, Wrath of the Northmen (“A ira dos nórdicos”), há um recontar do conto de Jörmungandr, a Serpente do Mundo, e sua batalha cataclísmica com o deus dos trovões Thor. Posteriormente, na passagem do mar para o oeste, uma tempestade ameaça afundar marinheiros intrépidos. Rollo se aflige, dizendo que “Thor está batendo sua bigorna. Ele está furioso conosco. Ele quer nos afundar”. Entretanto, Floki arrisca uma interpretação diferente face à intervenção divina: “Thor está celebrando. Ele está mostrando que ele não pode afundar este navio!”. Esse igualitarismo religioso é contrastado diretamente com uma cena mostrando as estruturas autoritárias da fé no monastério de Lindisfarne, onde o medo dos cenobitas são silenciados por um prelado ditatorial. A fluidez da crença pagã e

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A religião em Vikings - Robert A. Sauders

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o papel essencial da interpretação individual são reforçadas no episódio 3, The Dispossessed (“Os despossuídos”), quando Rollo e Ragnar discutem sobre Valhalla e Ragnar conta a seu irmão: “você tem o seu Odin e eu tenho o meu”. Um contraste notável também é identificado entre as crenças cristãs e pagãs nesse episódio, quando Ragnar questiona seu servo Athelstan sobre a riqueza de seu monastério: “Por que o seu deus precisa de prata e ouro? Ele deve ser um deus ambicioso como Loki”. A pergunta não obtém resposta, o que é particularmente interessante, dado que Athelstan é bem versado na língua e cultura nórdica, tendo sido treinado como um missionário para os pagãos escandinavos. No episódio 4, Trial (“Julgamento”), os vikings retornam a Nortúmbria, perseguindo aqueles que frequentam a igreja em Hexam. Quando retornam para a Escandinávia, Ragnar é acusado de assassinato do meio-irmão do earl. À medida que as tribulações aumentam, a fé de Ragnar nos deuses, com os quais ele sente uma afinidade pessoal, se fortalece, enquanto o earl começa a duvidar de sua existência. Nos próximos dois episódios, o “padre” Athelstan se aproxima cada vez mais da fé pagã, intrigado pela profundidade de sua teologia e sinceridade da adesão religiosa de seus capturadores. De volta a Nortúmbria no episódio 6, A King's Ransom (“O resgate do rei”), verificamos um bispo “letrado” instruindo o rei a respeito de que os nórdicos foram enviados por Deus para punir os saxões de seus “muitos pecados e transgressões”, enquanto um nobre ainda mais supersticioso está convencido de que eles foram enviados por Satã. Contudo, depois que os vikings capturam o irmão do rei em batalha, os cristãos são forçados a lidar com os invasores. O rei Aelle (Ivan Kaye) ordena que um nórdico seja convertido ao cristianismo para conduzir o armistício; inesperadamente, Rollo se voluntaria, mas é

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A religião em Vikings - Robert A. Sauders

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veementemente condenado por Floki, o crítico mais vituperativo da fé saxônica, que pune Rollo por renunciar os deuses ancestrais. Enquanto isso, Lagertha dispensa justiça no lugar de Ragnar, neutralizando um conflito de infidelidade ao comunicar o clã de que Heimdallr — guardião reverenciado da Ponte Bifröst — tinha se disfarçado de um mortal e abençoado uma casa sem herdeiros com vida. No episódio 7, Sacrifice (“Sacrifício”), numa tentativa de apelo aos deuses pela realização da profecia do vidente — segundo a qual ele seria “pai de muitos filhos” após o aborto sofrido por Lagertha —, Ragnar e sua família (incluindo o recém-liberto Athelstan) embarcam no nono ano de peregrinação para o Templo de Uppsala (um evento bastante descrito em Gesta Hammaburgensis ecclesiae pontificum de Adão de Bremen), onde os nórdicos se aquecem “na presença viva dos deuses”. Em segredo, Ragnar espera que Athelstan se ofereça como sacrifício aos Æsir (deuses nórdicos), os quais Athelstan aparentemente havia adotado. Entretanto, apesar de permitir seu batismo de sangue como pagão, de sua sincera exaltação aos louvores a Thor e de negar três vezes seu cristianismo ao alto-sacerdote de Uppsala, Athelstan recusa se sacrificar. Então, em vez dele, o personagem simpático Leif (Diarmaid Murtagh) se voluntaria, revelando uma validação pungente

da

autenticidade

de

Männerbund

[comunidade

de

homens

juramentados] no grupo de Ragnar. No episódio final da temporada, All Change (“Mudança Total”), Ragnar e companhia visitam um antigo freixo (reputado como a Árvore do Mundo Yggdrasil) em uma missão para Horik, já que o vidente revela que ele está em perigo no “mundo mágico”. Tanto de uma perspectiva textual quanto visual, a série Vikings, com sua glorificação sem remorso do paganismo nórdico e sua crítica amarga do catolicismo saxão, é transgressiva em seu retrato religioso na Europa medieval.

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A religião em Vikings - Robert A. Sauders

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Enquanto não há produtos culturais populares que condenem o cristianismo medieval, há poucos mas preciosos exemplos nos quais o paganismo é positivamente contrastado com o monoteísmo (particularmente na mídia cinematográfica e televisiva). Há muito tempo, pagãos têm servido como o “Outro” em filmes de ação e têm sido destinados ao aniquilamento por um guerreiro devoto trajando uma armadura brilhante. Conforme aponta o crítico de filme Ross Crawford, as representações de Hollywood da fé medieval geralmente lançam um protagonista ateísta (ou anacronicamente secular), que trabalha contra as influências corruptíveis de hierarquias religiosas. Porém, Ragnar é genuíno — até fervoroso — em sua crença; dessa forma, “Vikings desafia o telespectador a se envolver com o contexto teológico de ambas as culturas”. Esse engajamento é particularmente interessante quando pagãos e cristãos são contrapostos diretamente, e o telespectador é encorajado a se identificar com o primeiro grupo. Ao se empregar a análise midiática e o ocularcentrismo, as reuniões religiosas vikings são demonstradas em cores quentes e receptivas, sugerindo alegria e camaradagem; por exemplo, a beleza com a qual Uppsala é filmada é representada propositalmente como um paraíso asgardiano, nada menos do que se tirar o fôlego. As funções religiosas cristãs, por outro lado, são cinza, solenes e frias. Atores que representam os saxões são sempre pálidos, inexperientes e quase subnutridos em aparência (exceto por Aelle, que é retratado como um vilão gordo e suado); em contrapartida, os nórdicos são bronzeados, robustos e confiantes. Quando se trata de sexualidade, o pudor de Athelstan é consistentemente enquadrado como tolo, particularmente quando ele recusa inúmeras propostas sexuais — apesar de seu aparente desejo de participar (a “punição” simbólica por sexo fora do casamento, tão comum nas

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A religião em Vikings - Robert A. Sauders

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narrativas da mídia hollywoodiana, é completamente ausente em Vikings). A partir de um ponto de vista ideológico, os cristãos — quando invocam sua fé — são apresentados como hipócritas, vaidosos e vingativos: em uma cena, o rei Aelle rebaixa os vikings a pagãos e bárbaros conforme ele empurra um de seus fiéis partidários em uma cova de serpentes, caçoando-o por sua fé na vida eterna concedida por Jesus Cristo. Os pagãos, ao contrário, são retratados como verdadeiros e modestos. Desconstruindo um século do cânone cinematográfico, Floki atrevidamente profana sítios e símbolos cristãos, mas nunca é punido por isso (em narrativas fílmicas anteriores, tais violações das normas “morais” culminariam em uma morte violenta e prematura do transgressor). Crianças, inclusive, são aderidas à poética visual da série, já que o filho tímido e mimado do rei saxão é contrastado com o filho arrojado de Ragnar, Bjorn (Nathan O'Toole); Bjorn é representado cuidando da fazenda na Escandinávia, enquanto o príncipe saxão se esconde na corte. Ao passo que nem tudo sobre o paganismo

é

representado

positivamente

frente

ao

“Outro”

cristão

(especialmente a respeito da problemática da facilidade com que se aceita o sacrifício humano), críticas da série reconhecem que o programa de fato desconstrói o tratamento padrão da fé medieval.

Robert A. Sauders é doutor em História e professor no Farmingdale State College em Nova York. Tradução de Andressa Furlan Ferreira (PPGCR-UFPB/NEVE). Tradução do trecho “How Can You Be a Christian When You Walk among Our Gods?”: Religion in Vikings (p. 134-138). Publicação originalmente em inglês: SAUNDERS, Robert A. Primetime Paganism: PopularCulture Representations of Europhilic Polytheism in Game of Thrones and Vikings. In: Correspondences 2.2, 2014, p. 121-157. Disponível em: .

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Violência e ritual - Larissa Tracy

2016 VIOLÊNCIA E RITUAL Larissa Tracy (Tradução de Gustavo Braga)

Durante suas duas primeiras temporadas, o popular seriado Vikings do History Channel iniciou um vigoroso debate entre estudiosos sobre a autenticidade da série — particularmente sobre o derramamento de sangue e a violência. Mas separar realidade de ficção, afinal, é mais difícil do que parece. A imagem do viking selvagem, coberto do sangue de seus inimigos, festejando na matança ao seu redor, tem sido um rótulo das representações da mídia moderna dos invasores escandinavos desde a década de 1950. Em anos recentes, tem havido uma tentativa de reabilitar os vikings nas telas. Frequentemente rotulado de "revisionista" por críticos e estudiosos, essa visão presta bastante atenção à influência de fontes literárias medievais, incluindo as sagas islandesas do século XIII, desafiando a imagem sanguinária do "viking visceral". Dentre as mais recentes adaptações que tentaram capturar as nuanças da sociedade da Era Viking, nenhuma foi tão consagrada como Vikings. Mais do que glorificar a violência como uma norma social, como filmes anteriores costumavam fazer, Vikings tenta apresentar atos sangrentos dentro de seu contexto social — num quadro mais metafórico do comportamento humano. Vikings enfatiza a capacidade para a brutalidade em qualquer sociedade. O criador/diretor Michael Hirst se dispôs a criar o que ele pensou ser a mais autêntica representação do mundo viking na tela. Em entrevista, ele explica que enquanto a intenção não foi de mostrar a violência como gratuita, pela autenticidade o show necessitaria de brutalidade excessiva. Mas a série

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Violência e ritual - Larissa Tracy

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apresenta atos horrivelmente assustadores como raros e lamentáveis, ao invés de comuns prazeres sádicos.

Figura 1: Cena do ritual da águia de sangue da série vikings. Fonte: https://i.ytimg.com/vi/H86LJYl_YUY/hqdefault.jpg

A cena de violência mais controversa e chocante da série, até agora, toma boa parte de “blood eagle”, 2ª temporada: Episódio 7. A punição da “águia de sangue” é executada em Jarl Borg (Thorbjørn Harr) por ter atacado a vila de Ragnar, matando vários de seus vilões, e por ter levado sua família para a floresta enquanto Ragnar estava na Inglaterra. Quando pego, Borg é sentenciado por lei a ser executado de tal forma — um anacronismo por si só, porque punição capital era uma característica relativamente rara na lei escandinava medieval. “Eu acho que já havia decidido há bastante tempo que Jarl Borg morreria pela águia de sangue porque Ragnar nunca o perdoaria por ter atacado seus

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Violência e ritual - Larissa Tracy

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filhos”, Hirst contou a Daniel Fienberg da HitFix em 2014. “Nós meio que estabelecemos que Ragnar é um cara que ama sua família, e a pior punição de todas no mundo viking é a águia de sangue”. Mas será? Essa é simplesmente a mais brutal punição num catálogo de atrocidades vikings, ou uma presunção moderna? É aí que a autenticidade de Hirst sofre com as errôneas concepções modernas sobre a prática real. A águia de sangue usualmente não figura no catálogo de violência atribuída aos vikings; ela somente aparece em pequenos trechos de textos, entre os quais quase todos têm a ver com o lendário Ragnar Loðbrók, que é dito por crônicas e sagas ter sido ativo no século IX como um invasor, um rei, e um conquistador da Inglaterra. Pode ser que essa seja a associação que levou Hirst a acreditar que esse seria um autêntico ato de seu Ragnar. Por décadas, contudo, estudiosos têm debatido a precisão de relatos sobre o uso desta forma de punição — falhando vastamente em chegar a qualquer conclusão definitiva. De acordo com Saxo Grammaticus em sua Gesta Danorum e as sagas islandesas Ragnars saga loðbrókar e Ragnarssona þáttr, a águia de sangue é uma punição determinada ao Rei Ælle de Northumbria pelos filhos de Ragnar em resposta a ter mandado lançar Ragnar numa cova de víboras venenosas. Ælle é sujeito a variações dessa horrível execução em várias versões dos textos sobre Ragnar como forma de vingança. É inteiramente possível que este ritual tenha sido uma característica da sociedade nórdica; é igualmente possível que este seja um motivo literário onde os piores criminosos são submetidos às piores punições que a mente pode imaginar. A evidência textual é contraditória e frequentemente subjetiva — especialmente em relação à águia de sangue. Parece existir pouca evidência de

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Violência e ritual - Larissa Tracy

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que ela de fato existiu, ou, se existiu, de que era uma prática comum. A cena da “águia de sangue” em Vikings é feita com cuidado e sentimento, mas é provavelmente baseada numa fantasia. Então, enquanto a série Vikings se esforça em representar uma visão mais completa da sociedade escandinava, uma que não é exclusivamente sanguinária nem excessivamente passiva, ela ainda sucumbe ao que se tornou uma imagem indelével na imaginação moderna — aquela do viking estoico que se dispõe à pior brutalidade possível quando necessário. Mas as evidências textuais e históricas sugerem que crueldade desnecessária não era enraizada no seio da sociedade nórdica da Era Viking. Na verdade, se é isso que você quer ver, assista Game of Thrones.

Larissa Tracy é doutora em Literatura Medieval e professora associada de literatura medieval na Longwood University em Virginia. Ela também é autora de “Torture and Brutality in Medieval Literature: Negotiations of National Identity”. Tradução de Gustavo Braga (UFMA). Ensaio original em inglês disponível em: .

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Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade - Medievalists.net

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SACRIFÍCIOS HUMANOS? HOLLYWOOD VS REALIDADE Medievalists.net (Tradução de Gustavo Braga)

O cinema e a televisão amam os vikings — a série de TV Vikings iniciará sua terceira temporada em 2015, e a estreia de um filme de tema viking é esperado pelo menos uma vez ao ano. No entanto, tanto na tela grande como na pequena, o retrato dos vikings é frequentemente desviado da realidade histórica. Nesse artigo, “Plastic Pagans: Viking Human Sacrifice in Film and Television” (Pagãos plásticos: sacrifício humano viking no cinema e na televisão), Harry Brown nota uma diferença chave entre o que está sendo retratado e como era a realidade. O artigo de Brown figura em Studies in Medievalism XXIII: Ethics and Medievalism (Estudos em Medievalismo XXIII: Ética e Medievalismo), publicado no começo deste ano por Boydell e Brewer. O artigo foca em três cenas de sacrifício — uma de um episódio de Vikings, e as outras dos filmes O 13º Guerreiro e Valhalla Rising. As partes iniciais de O 13º Guerreiro são baseadas nos escritos de Ibn Fadlan, um emissário do Califado abássida no século X que percorreu a região do Rio Volga. No filme, seu personagem assiste a uma garota viking sacrificarse para unir-se a seu soberano recentemente falecido — uma escolha feita de bom grado. Quando finalmente vemos a cena de sua morte, Brown acha que “talvez ela acalme o espectador ao invés de perturbá-lo”. No meio da cerimônia, a garota clama “Eu posso ver meu mestre. Ele está em Valhalla. Ele chama por mim. Deixe-me ir com ele, então”. Ela é morta rapidamente e com

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pouca dor, e então gentilmente estendida na pira funeral. Uma cena similar é retratada em Vikings, quando Ragnar e Lagertha decidem que um sacrifício humano é necessário para apaziguar os deuses e ter mais filhos. Eles primeiramente escolhem seu antigo escravo anglo-saxão Athelstan para ser a pessoa a morrer, mas quando chegam ao templo de Uppsala, e Athelstan percebe o que pedem que ele faça, ele recusa — e os sacerdotes vikings lembram-nos que o sacrifício deve ser feito voluntariamente. No fim, Leif, outro seguidor de Ragnar, alegremente aceita a tarefa. Enquanto as cenas retratadas dão um ar de civilidade às práticas religiosas vikings, sacrifícios humanos eram muito mais brutais. No relato de Ibn Fadlan, a garota escrava se voluntaria à morte a princípio, mas ela breve começa a decidir por não o fazer. No entanto, os outros vikings não aceitaram isso — ela é arrastada para uma câmara da morte, onde seis homens a violentam em grupo. Mais tarde, enquanto dois homens a estrangulam com uma corda, outra pessoa a esfaqueia repetidamente no peito com uma adaga a fim de matá-la. Contudo, essa parcela do relato de Ibn Fadlan não chega a O 13º Guerreiro. Brown observa que em todas as fontes históricas sobre os vikings nunca encontramos um episódio onde uma pessoa voluntariamente aceita ser sacrificada. Enquanto escritores cristãos e árabes nem mesmo se incomodam em mencionar isso, até mesmo as fontes escandinavas como as sagas descrevem os sacrifícios humanos como feitos pelo uso da força e da trapaça. A Ynglinga saga, por exemplo, conta-nos como o Rei Olaf não sacrificava com frequência, e isso desagradava aos suecos, que acreditavam que a fome fora causada pelo desleixo do rei. Então eles convocaram um exército e marcharam contra ele. Pegando-o de surpresa, eles o queimaram vivo em sua casa e o entregaram a

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Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade - Medievalists.net

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Odin como sacrifício por um bom ano. Se sacrifícios humanos vikings não eram feitos com voluntários, por que o cinema e as séries de televisão insistem em retratá-los desta forma? Brown acredita que escritores e diretores decidem por esse caminho porque eles não querem que suas audiências tenham seu “herói” associado a práticas tão vis. Ele escreve: “Esta sanitização ilustra a plasticidade dos pagãos medievais no cinema e na televisão, particularmente ao adaptá-los ao papel de heróis de ação medievalistas. Apesar de se assemelharem a relíquias do passado, dignos do Museu Nacional de Antiguidades, eles parecem justos e humanos, indispostos a aceitar um sacrifício se não oferecido de bom grado. Descrever rituais de morte vikings como consensuais resolve o paradoxo que o sacrifício humano apresenta à sensibilidade moral moderna, permitindo-nos tolerá-lo como uma prerrogativa de crenças pagãs enquanto ainda provendo as vítimas com liberdade e dignidade. Morrer, assim como matar, afigura-se como eticamente defensável, porque todas as partes entram nesta barganha fatal por vontade própria”. Brown, contudo, lamenta isso, acreditando que estas cenas representam uma oportunidade perdida. Ele explica: “Ao silenciar as notas mais dissonantes do paganismo com sombras do cristianismo, O 13º Guerreiro, Vikings e Valhalla Rising evitam colocar o espectador numa posição em que tem de fazer um julgamento ético contra o paganismo ou o passado, facilitando nosso consumo dos vikings com uma forma de persuasão moral. Os filmes nos permitem ficar boquiabertos com as crenças pré-cristãs sem desafiar-nos a enfrentá-las em suas próprias condições. A esse respeito, recentes retratos dos vikings perdem a chance de explorar as

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Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade - Medievalists.net

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similaridades e diferenças nos modos pelos quais estas duas visões religiosas entendem as categorias fundamentais da existência — vida e morte, sacrifício e regeneração, deus e natureza — que estruturam todas as perspectivas éticas”. O artigo “PlasticPagans: Viking Human Sacrifice in Filmand Television” é um dos catorze artigos incluídos nesta edição de Studies in Medievalism XXIII (Estudos em Medievalismo XXIII). Outros artigos lidam com Beowulf, o jogo eletrônico Elder Scrolls IV, e até mesmo a ficção histórica de Margaret Frazer. Harry Brown é professor associado de inglês na De Pauw University.

Resenha originalmente em inglês, publicada pelo Medievalist.net e disponível em: . Tradução de Gustavo Braga (UFMA).

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Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer

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SACRIFÍCIO A FREYR: NOTAS SOBRE RITUAL EM VIKINGS Johnni Langer

Na história do cinema e das representações artísticas ocidentais, as representações envolvendo rituais, festivais ou cenas religiosas da fé nórdica pré-cristã são muito raras ou praticamente inexistentes. Isso gerou um imaginário onde valores exóticos e mesmo macabros acabam ocupando as informações que a sociedade atual mantém sobre o tema da antiga religiosidade da Escandinávia (LANGER, 2016). Em particular, uma cena da série Vikings (terceira temporada, terceiro capítulo: Warrior's fate) vem ocupando um particular interesse dos espectadores e mesmo do público ligado ao neopaganismo, por justamente conceder supostos detalhes de um ritual pouco conhecido entre os nórdicos, os sacrifícios relacionados aos vanes. Anteriormente, a série já havia detalhado outros cultos, mais famosos, envolvendo o templo de Uppsala na Suécia. Primeiramente, detalharemos a cena, analisando cada pormenor fílmico e, em seguida, realizaremos algumas reflexões sobre o imaginário do antigo ritual nórdico na arte ocidental. No episódio, o acontecimento tem lugar em um assentamento nórdico da Inglaterra, onde, após a primeira e bem sucedida colheita, os pagãos resolvem realizar um culto ao deus Freyr para comemorar seu êxito. Ao som de tambores e chocalhos, o culto é presidido pela personagem Lagertha, iniciado após um símbolo ser marcado com sangue em um bloco de pedra. Ao contrário da maioria das pessoas presentes, Lagertha porta uma indumentária totalmente branca e realiza uma invocação ao deus Freyr, afirmando que ele é a deidade da luz e da abundância, filho de Njord e aquele que decide quando a luz e a chuva

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Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer

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chegam e quando o solo será fértil. Uma procissão se aproxima portando diversas tochas acesas e reunindo-se em volta de um bovídeo, que é decapitado por um homem, sendo o seu sangue recolhido por diversas pessoas ao seu redor. Através do sangue sacrificado, ele deverá fertilizar a Mãe Terra com seu falo, fazendo com que o seu útero fecunde. Ao redor do sacrifício, uma estátua com figura antropomórfica aparece salpicada de sangue. Após isso, Lagertha molha os dedos com o sangue do animal, passando em diversas partes de sua face e peito, enquanto duas pessoas escorrem tigelas de sangue sobre seu corpo. Ela mesmo carrega outra tigela e, com ajuda de duas mulheres, borrifa o líquido sacrificial sobre a terra, aberta com sulcos para a plantação. Também destacamos a presença de uma trilha sonora de coro rítmico com compasso ternário, concedendo à cena um caráter ainda mais misterioso.

Figura 1: Cena do episódio Warrior's fate (Série Vikings, terceira temporada), reconstituindo a morte de um bovídeo para o deus Freyr. Fonte da imagem: https://www.youtube.com/watch?v=Ykh5RuBLJTw

A realização de sacrifício (blót) a Freyr para obter boas colheitas (til árs) é algo respaldado em algumas fontes medievais, destacando seu aspecto de deus da fertilidade e fecundidade (BOYER, 1997, p. 58). A prosperidade devido a

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Freyr aparece em Hakonar Saga Aðalsteinsfóstra 14 e surge relacionado à expressão friðr (paz), onde o segundo brinde é dedicado a ele para se obter boas colheitas. A invocação de Lagertha, ao caracterizar o filho de Njord como deus da abundância, que controla as chuvas, os raios do Sol e a vegetação sobre o solo, advém de uma famosa frase de Snorri (Gylfaginning 24). O detalhe do falo é importante, pois é atestado em muitas fontes, como no relato de Adão de Bremen (Gesta Hammaburgensis IV) e na narrativa de Volsi (Völsa þáttr), além de comumente ser interpretado como o principal detalhe da estatueta de Rallinge (século X d.C.). O detalhe da pintura a sangue de um desenho geométrico semelhante a um X com pontos, inserido dentro de uma forma quadrangular, não ocorre em gravuras de monumentos da Era Viking. Signos formados por quatro runas dispostas sobre duas hastes, denominadas pelos epigrafistas de cruzes rúnicas, surgem desde o período de migrações, como na fíbula de Soest (MAREZ, 2007, p. 130). Mas a forma apresentada na cena é mais condizente com os padrões simbólicos utilizados na Islândia a partir do final do medievo, popularizados nos famosos galdrastafur e nos grimórios islandeses. O detalhe do boi decapitado é um pouco mais complexo. O sacrifício realizado para o deus Freyr (Freysblót) geralmente envolvia cavalos e javalis, e mais raramente bois. Na Viga-Glum saga 9 um boi velho é oferecido a este deus; na Brandkrossa þáttur 1, um fazendeiro mata e oferece um boi para Freyr, sendo em seguida realizado um banquete sacrificial (blótveizla) aos membros da comunidade. Este é um elemento ausente do episódio da série e fundamental para sociedades que dependiam diretamente de seus animais em um estilo de vida e clima inóspitos: o consumo e aproveitamento total das vítimas imoladas. Alguns pesquisadores consideram o blótveizla como um importante momento

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de unidade social, estabelecendo uma ligação mágica e propiciatória entre os deuses, os homens e seus ancestrais (BOYER, 1986, p. 186). O detalhe do sangue também é verificado em diversas fontes. O sangue sacrificial (hlaut) de animais ou humanos era borrifado sobre estátuas por todo o templo, ou local da consagração, e nas pessoas (Kjalnesinga saga 12 e Hákonar saga góda 14, que também confirmam o detalhe das fogueiras e tochas da cena de Vikings, descritas em uma cerimônia em Trøndelag, Noruega). Alguns pesquisadores acreditam que a aspersão do sangue (stokkva fórnarblódi) era o momento central do rito sacrificial nórdico (BRAY, 2004, 125). Códigos de leis islandesas, como o Úlfljótslog, mencionam que os líderes utilizavam anéis que eram aspergidos de sangue sacrificial obtido em rituais. O sangue invocava o poder da deidade sobre o mundos dos homens, como em cerimônias para obter informações do futuro (blótspánn, inclusive citado no poema éddico Hymiskvida 1). Quanto a uma mulher presidir o ritual para Freyr, apresenta-se como um detalhe equivocado. Justamente o simbolismo de virilidade e falicismo da deidade é algo exaltado nas fontes, seja pelo seu caráter de soberania, de poder militar ou de fecundidade, levando a maioria das descrições do freysblót a serem liderados por figuras masculinas (REAVES, 2008, p. 5). Quando surgem mulheres nas fontes, elas estão relacionadas a uma procissão com uma imagem dessa deidade em uma carroça, realizando uma peregrinação na primavera para abençoar a terra de uma determinada comunidade (como em Ögmundar þáttr) e relacionadas aos simbolismos da hierogamia. A túnica branca utilizada por Lagertha também é fantasiosa. Justamente pelo contrário, a cor preta era relacionada a Freyr — segundo a Gesta Danorum 1, os animais imolados ao deus eram geralmente de coloração escura —, também identificada à alma e à

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fertilidade em outras tradições pré-cristãs (REAVES, 2008, p. 10).

Figura 2: Cena do episódio Warrior's fate (Série Vikings, terceira temporada), momento em que Lagertha é banhada em sangue sacrificial. Fonte da imagem: https://www.youtube.com/watch?v=Ykh5RuBLJTw

A cor branca tem sido uma opção canônica para os artistas europeus representarem os sacerdotes e sacerdotisas das religiosidades pré-cristãs em geral, desde o romantismo oitocentista, até mesmo para os druidas. Nas pinturas Ofring til Tor (1831, de Johan Lund) e Nerthus (1909, de Carl Emil Doepler), ambos os sacerdotes nórdicos possuem longas barbas e indumentária branca, este último um detalhe também presente na profetisa ressuscitada por Odin em uma pintura de Carl Doepler de 1900. Na cena da série Vikings, essa cor certamente foi utilizada não somente pela referência canônica da arte ocidental, mas para causar impacto cênico — logo depois do sacrifício, dois ajudantes despejam parte do sangue sobre o corpo de Lagertha, originando duas imensas manchas vermelhas por todo o comprimento da roupa. Algo que recorda a primeira cena da série televisiva Roma (HBO, 2005), quando a personagem Átia é aspergida com o sangue de um boi sacrificado, em

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referência ao mitraísmo oriental que penetrou no império romano. Como o grande público desconhece maiores detalhes sobre as religiosidades antigas da Europa, certamente os produtores de Vikings optaram por perpetuar uma referência fílmica consagrada e de forte impacto visual. Ainda mais fantasioso é o momento em que Lagertha, com ajuda de duas mulheres, borrifa o sangue sacrificial sobre sulcos retilíneos abertos sobre o campo (à espera da semeadura), numa referência à fertilidade. O equívoco nesse caso é que o ato de aspergir era considerado algo que devia ser realizado somente por homens, representando a fecundação de um ser feminino, a terra. Numa sociedade fortemente estruturada num simbolismo de dominação e submissão sexual, perpetuando o poder de penetração (o falocentrismo religioso, vide Hedeager, 2011, p. 115-118), seria lógico imaginar homens nesta tarefa. Até mesmo os camponeses europeus cristianizados (como a França do século XII d.C.) excluíam as mulheres destas ações que antecediam as colheitas, uma prática advinda dos tempos pagãos e que sobrevivia no cotidiano rural: “só o homem podia lavrar, malhar o trigo com o mangual ou podar as vinhas e as árvores (...) A terra era mulher, cabia ao homem fecundá-la” (VERDON, 2006, p. 47). De maneira geral, a cena do sacrifício a Freyr foi mais correta do que a reconstituição de ritual em Uppsala, realizada durante a primeira temporada da série Vikings (episódio 8, Sacrifice): está menos sombria e exótica, sem sacerdotes calvos e com maquiagem escura sobre os olhos. Do mesmo modo, ao compararmos com outras cenas envolvendo religiosidade nórdica antiga no cinema (LANGER, 2016), ela é historicamente muito mais pertinente e detalhada, promovendo avanços no conhecimento de um público amplo sobre estes rituais antigos. O problema são seus pequenos equívocos, que tratamos ao

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longo deste pequeno ensaio, mas também de suas limitações sobre a funcionalidade dos deuses nórdicos. Devido a várias sistematizações, estudos acadêmicos tradicionais ou popularizações de manuais, a visão que temos dos deuses são

de funções muito

restritas e

muitas vezes dicotômicas

(especialmente a teoria da tripartição de Georges Dumézil). Odin e Thor são sempre vistos como deuses da guerra; Freyr, Freyja e Njord como deuses da fertilidade. Os primeiros seriam adorados pela elite guerreira, aristocracia e homens. Os segundos seriam cultuados exclusivamente por camponeses. Nesta visão, não há espaços para fronteiras ou dinamismos para outras funções sociais e outras características. Mas existem fontes que apontam elementos do deus Thor também para o mundo do campo: o simbolismo do martelo é um deles. Thor e Odin eram cultuados do mesmo modo por mulheres e nem sempre as deusas eram vistas como benignas ou defensoras extremadas do universo feminino. No caso de Freyr, ele não era somente um deus da fertilidade ou adorado unicamente no universo rural. Seus aspectos de soberania e marcialidade são encontrados nos diversos cultos mantidos pela realeza, especialmente no sacrifício e consumo ritual de cavalos (DAVIDSON, 2001, p. 104), além do drama mítico e hierogâmico com Gerd (em conexão com a realeza sagrada). Ele está relacionado do mesmo modo a um simbolismo com embarcações e conexões com procissões náuticas com sentido religioso (funerário e também de fertilidade). A deusa Freyja não era somente ligada à sexualidade, mas também ao mundo marcial. O simbolismo do javali reflete a complexa natureza e os muitos aspectos que os deuses vanes possuíam e que vão muito além da sua mera classificação como deidades da fertilidade (PIRES, 2015, p. 11-22). Neste sentido, a série Vikings colabora para perpetuar a visão dicotômica

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que o Ocidente criou sobre os deuses nórdicos: de um lado, reis e guerreiros cultuando somente as deidades da guerra (os ases); de outro, os deuses que promovem a fertilidade dos campos (os vanes). Num mundo onde a fé não era estabelecida por textos sagrados, não existia sacerdócio profissional e a tradição era mantida pela oralidade, confluíam variações sociais e geográficas na religiosidade. Apesar do ritual servir basicamente como um momento de comunhão entre deuses e homens — e, neste sentido, a série Vikings é correta — ele era variável em sua forma e utilizado em contextos diferentes. O detalhe do sacrifício animal na cena do episódio (mas percebido sem a inclusão do blótzveila) pode colaborar para o público moderno pensar em um ritual mantido exclusivamente pela presença de uma morte sangrenta, sem maiores contextos. Alguns analistas pensam atualmente a imolação nórdica de animais como reflexo da cosmogonia (a morte de Ymir e a subsequente criação das partes do mundo por meio de seus membros), onde o sacrifício explica a ordem da natureza e do mundo e a presença do hlaut seria a forma física onde o cosmos e a sociedade seriam renovados (BRAY, 2004, p. 135). A ficção e a arte podem servir tanto como instrumento de reflexão sobre o passado, como meio para analisarmos os nossos próprios valores. Elas não podem ser vistas como completas em si ou totalmente corretas em suas formas de reconstituições históricas, mas podem ser um importante meio para que as pessoas possam prosseguir em seus interesses e se aprofundar no estudo da religiosidade nórdica antiga.

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Johnni Langer é professor na UFPB e membro do NEVE. E-mail: [email protected]

Referências: BOYER, Régis. Héros et dieux du Nord. Paris: Flammarion, 1997.

BOYER, Régis. Le blót. In: Le monde du double: la magie chez les anciens Scandinaves. Paris: Berg, 1986, p. 176-187. BRAY, Daniel. Sacrifice and Sacrificial Ideology in Old Norse Religion. In: HARTNEY, Christopher; MCGARRITY, Andrew (eds.). The Dark Side: Proceedings of the Seventh Australian and International Religion, Literature and the Arts Conference, 2002. Sydney: RLA Press, 2004, p. 123-135. DAVIDSON, Hilda. The cult of Freyr. In: The lost beliefs of Northern Europe. London: Routledge, 2001, p. 103-107. HEDEAGER, Lotte. Iron Age myth and materiality. London: Toutledge, 2011. LANGER, Johnni. Fé, exotismo e macabro: algumas considerações sobre a Religião Nórdica Antiga no cinema. In: Revista Ciências da Religião, 2016 (no prelo). LANGER, Johnni. Blót/Sacrifício escandinavo. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, p. 75-77; 428-433.

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PIRES, Hélio. Vaningi: o javali e a identidade dos Vanir. In: Revista Brasileira de História das Religiões – Dossiê: Mito e Religiosidade Nórdica, n. 23, 2015, p. 11-22. REAVES, William. The Cult of Freyr and Freyja, 2008. Disponível em: . VERDON, Jean. Camponeses: heróis medievais. In: História Viva 34, 2006, p. 4648.

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Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin

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FLOKI, LOKI E OUTRAS REPRESENTAÇÕES Flávio Guadagnucci Palamin O presente texto abordará o personagem Floki, da série Vikings (History Channel), objetivando analisar suas relações com o deus nórdico Loki em representações ou ressignificações. Para tanto, discutiremos ambos os personagens apresentando suas características e passagens, bem como comparando-as em análises dos momentos em que a série, abertamente ou sutilmente, transmite o deus no personagem. Considerando que o personagem Floki evoca não somente o deus Loki, mas também outras características da mitologia e sociedade nórdica, aproveitamos para tecer outras comparações pertinentes. Ao longo de suas três temporadas, o seriado Vikings abordou diversas narrativas mitológicas escandinavas, representadas em seus personagens ou mesmo mitos contados por estes. Sem dúvida, o personagem que mais apresenta tal abordagem é o construtor de barcos Floki. Já em sua primeira menção na série, quando Ragnar leva seu filho Björn para conhecer Floki, este indaga “Floki? Como o deus Loki?” e Ragnar responde “Sim, mas diferente”, “Como diferente?” Björn pergunta, “Ele não é um deus” responde Ragnar. De certo modo, essa fala inicial dita o rumo do personagem ao longo do seriado: se assemelha em diversos aspectos com o deus Loki, mas não se trata do deus em si. Gustaf Caspar Orm Skarsgård, o ator que interpreta Floki, é franzino e dá ao personagem trejeitos sombrios, observador, como alguém que está sempre tramando algo e, ao mesmo tempo, cômico. Nesse e em outros aspectos (como, por exemplo, seu estilo de luta, ao usar um pequeno machado e uma pequena

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espada) difere, claramente, dos outros personagens da série. Etimologicamente, Floki significa “Tufo de cabelo” e, curiosamente, o ator possui somente um tufo de cabelo no topo de sua cabeça. Na realidade, é bem provável que a escolha do ator e a manutenção de tal característica seja proposital: os nomes escandinavos (alguns países mantêm a tradição até hoje) são patronímicos, ou seja, referem-se ao nome dos pais, como, por exemplo, no caso do famoso poeta islandês Snorri Sturluson, ou seja, Snorri, filho de Sturla. Entretanto, o nome pode indicar uma característica da pessoa ou personagem, como, por exemplo, nos casos de Harald Bluetooth (dente azul) ou mesmo Ragnar Lothbrok (calças peludas). É evidente a aproximação dos nomes Loki e Floki (como a própria série mostra em sua apresentação), mas devemos notar que, etimologicamente, os nomes diferem, com o nome Loki podendo significar: “lobo; fim; aranha; ar (loptr); chama (logi); fogo (lodurr)” (LANGER, 2015, p. 281). A ausência de um segundo nome para o personagem corrobora a ideia de estar relacionado com sua aparência. Ainda sobre o nome do personagem, Floki não é um nome muito comum na Escandinávia, entretanto, um homônimo se destaca: Floki Vildergarson. Hrafna-Floki, como passou a ser conhecido, é tido como um dos primeiros colonizadores da Islândia. Em sua viagem ele levou três corvos que o ajudaram a encontrar a ilha (daí seu apelido: Hrafni significa corvo; HOLMAN, 2003, p. 145; 148). A relação do personagem da série com barcos e navegação pode, provavelmente, fazer referência a este personagem histórico. Loki é um deus enigmático, com um passado que o remete à linhagem dos gigantes, inimigos dos deuses de Asgard. Existe dúvida se a mãe de Loki seria uma giganta ou uma Aesir. Todavia, em uma sociedade patriarcal, como a nórdica da Era Viking, Loki só pode ser considerado um gigante, tendo em

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vista que seu pai é o gigante Fárbauti (LINDOW, 2002, p. 216). No passado mitológico, Loki tem três filhos que desempenham papéis importantes ao longo da mitologia viking: a serpente Midgard, o lobo Fenrir e a terceira filha, Hel, deusa do mundo dos mortos, sendo que todos os três filhos são frutos de sua relação com a giganta Angrboda (no decimo episódio da segunda temporada, Floki decide chamar sua filha de Angrboda, a exaltando como uma grande giganta). O mitólogo holandês Jan de Vries foi o primeiro a considerar a figura de Loki dentro do conceito de trickster (LANGER, 2015, p. 283). Segundo Queiroz (1991, p. 94): Em geral, o trickster é o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam, dependendo da narrativa, num passado mítico ou no tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro.

O autor ainda afirma que o trickster seria um intermediário entre deuses e homens e “um ator solitário que, em última análise, atua sempre em benefício do grupo como um todo” (QUEIROZ, 1991, p. 103). Durante toda a série, uma das características do personagem Floki, que é mais evidente principalmente na segunda e terceira temporada, é a sua relação com a religiosidade nórdica. Floki crê veementemente na existência e na ação dos deuses no mundo terreno, a ponto de dizer, no sexto episódio da terceira temporada: “alguns homens desejam mulheres, Helga, alguns desejam o ouro, mas eu apenas desejo agradar aos deuses”. Já no oitavo episódio da mesma temporada, quando acusado por Helga de só pensar em si mesmo, Floki responde: “eu me importo com todos os

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seres humanos de Midgard”. Já no sétimo episódio da segunda temporada, há uma referência do trickster como pregador de peças em Floki: rei Horik pergunta se Floki havia falado sério quando ofereceu ajuda para libertar Jarl Borg. Na afirmativa de Floki, rei Horik pergunta o porquê e Floki responde “por uma piada”. Além de referências mitológicas, Floki, ao longo da série, representa aspectos da sociedade e religiosidade nórdica. Vemos Floki como um possível praticante de seidr (ao curar Ragnar com mágica), entalhador de runas, escultor e construtor de barcos, por exemplo. No sétimo episódio da segunda temporada, Floki aparece entalhando runas em uma peça de metal que, mais à frente no episódio mostra ser um cata-ventos (weather vanes — objeto decorativo para anexar na proa do navio), dado de presente para o rei Horik. Ao se referir às runas germânicas anteriores à Era Viking, excluindo o seu uso na literatura ou em atividades práticas do dia a dia, Brondsted (2004, p. 186) afirma que “não há dúvida de que elas eram, em primeiro lugar, símbolos mágicos e sagrados que o iniciado poderia empregar para o bem ou para o mal”. O autor argumenta que as runas possuíam poderes por si próprias e que não provinham do mestre que as entalhavam. Entretanto, como é dito na Egils saga, Runes none should grave ever / Who knows not to read them; / Of dark spell full many / The meaning may miss. / Ten spellwords writ wrongly / On whale-bone were graven: / Whence to leek-tending maiden, / Long sorrow and pain. (Egils saga, LXXV) [Runas não deve gravar / aquele que não as sabe ler; de magia negra muitos / podem confundir o significado. / dez palavras magicas escritas erradamente / no osso de baleia foram gravadas; / daí a causa da donzela sofrer / longa dor e tristeza]

Levando em consideração tal passagem, vemos Floki como um

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personagem que detém o conhecimento da magia rúnica. A fala do rei Horik a seu filho, ao receber o presente de Floki, corrobora tal posicionamento: “É mais do que lindo, é poderoso e mágico, carrega o significado de tudo”. Outra possível referência às narrativas mitológicas aparece no segundo episódio da primeira temporada. Ragnar questiona Floki se a âncora do navio será entregue a tempo. Na cena, Floki aparece segurando uma mecha de cabelos loiros que diz pertencer à filha do ferreiro, da qual ele cortou a mecha como forma de ameaça, caso o ferreiro contasse ao Earl Haraldson sobre os planos de Ragnar. No Skáldskaparmál, de Snorri Sturluson, Loki corta os cabelos de Sif, esposa de Thor e, a fim de evitar a vingança do deus, promete conseguir que os anões forjem uma peça de ouro da qual cresceriam cabelos dourados. Além da peça de Sif, Loki faz com que os anões confeccionem mais cinco tesouros para os deuses: a lança de Odin, Gungnir, e seu anel, Draupnir; o martelo de Thor, Mjollnir; o javali de Frey, Gullinborsti e seu barco, Skibladnir (LINDOW, 2002, p. 100; 217; 266).

Figura 1: Floki segurando os cabelos loiros da filha do ferreiro. Figura 2: Floki entregando a mecha em troca da âncora. Fonte das imagens: 1ª temporada, episódio 2.

Na mitologia vemos que Odin fez uma irmandade de sangue com Loki

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— Lindow (2002, p. 218) entende tal atitude como uma tentativa de adiar o conflito mortal entre os dois —, e ambos aparecem em jornadas, juntos, em algumas narrativas. Por exemplo, no poema Reginsmál, junto de Hönir, ou no Haustlong, onde Loki chega a ser referido pelo seguinte kenning: “o amigo de Odin, de Hoegni e de Thor” (LANGER, 2015, p. 281). Floki afirma, no nono episódio da primeira temporada, em uma conversa com o rei Horik, Loki “é apenas um ancestral antigo”. Vale notar que na cena eles observam uma aranha em sua teia atacando uma presa, sendo uma possível relação com a etimologia de Loki. Em diversos momentos, a série indica Ragnar como descendente de Odin. Ao relacionarmos as descendências de Ragnar e Floki com os mitos relativos a Odin e Loki, podemos ver aí, novamente, representações de Loki em Floki. Eldar Heide (2011, p. 63) discute sobre a existência de dois Lokis: “o personagem mitológico e um vätte (espirito doméstico) vivendo embaixo ou ao lado da lareira. O personagem mítico seria derivado desse vätte”. O’Donoghue (2007), relaciona Loki com o fogo em diversas ocasiões, desde o personagem Loge da ópera de Wagner até mesmo uma recente representação do deus em um romance para crianças de 1975. A autora ainda argumenta sobre a relação de Loki com o fogo, pautada no mito da viagem à Utgarda-Loki: em uma série de disputas, Loki é desafiado em uma competição de comilança, a qual perde para o gigante Logi (chama), pois o fogo tudo devora. Vale lembrar que no Ragnarok, Loki combate os deuses aliado aos gigantes, e tudo será consumido pelo fogo. Na série, dois momentos de Floki com o fogo merecem destaque. No segundo episódio da primeira temporada, após o massacre em Lindisfarne, Floki brinca com o fogo, queimando pedaços de manuscritos até o ponto de atear fogo no mosteiro inteiro. Ragnar, já sabendo a resposta, indaga a Floki

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sobre a autoria do fogo, e este somente ri em resposta. É possível (talvez conjecturando demais) relacionar essa cena com o próprio Ragnarok: alguns monges viram sinais do fim dos tempos logo antes dos vikings chegarem e, no fim, aquele mundo que eles conheciam realmente chegou a um fim — em chamas, como no fim dos tempos da narrativa nórdica. Ainda podemos ver, nessa cena, o papel de Floki como trickster, como um profanador de locais sagrados (QUEIROZ, 1991, p. 96). Um outro momento ocorre no oitavo episódio da terceira temporada, quando Floki se encontra preso na estrutura de madeira em chamas, que ele próprio projetou, esbravejando com os deuses, certo de que será consumido pelo fogo. Ao fazer o canto de guerra antes do ataque à Paris, no episódio sete da terceira temporada, Floki recita a estrofe quarenta e cinco do poema Völuspá, da Edda Poética, em nórdico arcaico: skeggǫld, skálmǫld / skildir ro klofnir. Segundo a tradução de Bellows (2004, p. 20): “Axe-time, sword-time, / shields are sundered” [Tempo do machado, tempo de espadas, /escudos são quebrados]. A passagem refere-se ao Ragnarok, a narrativa nórdica do fim dos deuses. Loki é o causador indireto do Ragnarok, ao armar a morte do deus Baldr. Como punição, é preso em uma caverna, amarrado pelos pés e mãos com as entranhas de seus filhos, enquanto uma serpente paira sobre sua cabeça, pingando veneno em sua face. Sua esposa Sgny recolhe o veneno com uma tigela, mas, toda vez que tem que esvaziá-la, o veneno cai sobre a cabeça de Loki, fazendo o deus se contorcer de dor, causando terremotos na Terra. A passagem é mencionada pelo próprio Floki a uma criança a qual pede um favor em um banquete — no episódio dez da segunda temporada —, ameaçando a criança que o mesmo aconteceria com ela caso contasse para alguém o que ele havia pedido. Outra representação da passagem aparece em

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trailers da quarta temporada da série, os quais mostram Floki preso em uma caverna da mesma maneira que Loki, muito provavelmente devido ao assassinato de Athelstan.

Figura 3: Floki acorrentado na caverna (cena do trailer da quarta temporada do seriado). Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=IARD01_FEq0

Notemos as seguintes informações: alguns pesquisadores relacionam Baldr com Jesus Cristo, devido a sua ressureição e por ser iluminado, puro; a punição de Loki é devido à morte de Baldr, já a punição de Floki pela morte de Athelstan; claramente, Athelstan tem uma forte relação com o cristianismo e, portanto, com Cristo; Baldr é filho de Odin, o qual possui um enorme carinho pelo filho, assim como Ragnar tem por Athelstan. Ao compararmos essas características dos personagens, juntamente com o que já foi discutido sobre as descendências de Floki e Ragnar, vemos o Ragnarok representado de maneira muito interessante na série. Por fim, com base nas características do personagem e passagens abordadas, consideramos que, apesar de não apresentar Loki representado na figura de um deus, o seriado consegue ressignificar características e narrativas dele no personagem Floki. Levando em conta o que foi observado por Langer

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(2015, p. 286-7), que “[a]s reapropriações, ressignificações e mudanças artísticas que esta entidade sofreu ao longo das décadas mais recentes, em parte, são reflexos das próprias transformações que nossa sociedade vem mantendo com os mitos nórdicos”, podemos concluir que tanto o seriado quanto o personagem oferecem boas oportunidades para o debate sobre a mitologia nórdica.

Flávio Guadagnucci Palamin é doutorando em História pela UEM e membro do LERR/UEM e NEVE E-mail: [email protected]

Referências:

ANÔNIMO. Egils Saga. Tradução inglesa de W. C. Green. 1893.

BELOWS, H. A. Introdução, tradução e notas de Henry Adams Bellows. In: The Poetic Edda: the mythological poems. Mineola, New York: Dover Publications, INC., 2004. BRONDSTED, Johannes. Os Vikings: História de uma Fascinante Civilização. São Paulo, Hemus, 2004. HEIDE, Eldar. Loki, the Vätte, and the Ash Lad: A Study Combining Old Scandinavian and Late Material. Viking and Medieval Scandinavia, v. 7, 2011, p. 63106.

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Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin

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HOLMAN, Katherine. Historical Dictionary of the Vikings. Oxford: The Scarecrow Press, 2003. LANGER, J. Loki. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de mitologia nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, p. 281-287. LINDOW, John. Norse Mythology: A Guide to the Gods, Heroes, Rituals, and Beliefs. New York: Oxford University Press, 2002. O’DONOGHUE, Heather. From Asgard to Valhalla: The Remarkable History of the Norse Myths. London: I.B. Tauris, 2007. QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster. In: Revista Tempo Social, São Paulo, v. 3, n. 1-2, 1991, p. 93-107.

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Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda

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PRECISAMOS FALAR SOBRE (F)LOKI: BREVES COMENTÁRIOS SOBRE HISTÓRIA, MITOS E NAVIOS Pablo Gomes de Miranda

Assumimos escrever uma série de artigos relacionados a embarcações nórdicas para o Notícias Asgardianas. Anteriormente, escrevemos um pequeno ensaio sobre os botes da Era do Bronze representados na arte rupestre, além dos achados arqueológicos das canoas de Hjortspring e Nydam, além da embarcação funerária de Oseberg, já beirando a Era Viking (MIRANDA, 2013). Demos continuidade explorando os vestígios materiais de embarcações norueguesas e dinamarquesas (Tune, Gokstad, Ladby, etc) a fim de discutirmos as inovações tecnológicas que apontaram especializações náuticas voltadas a guerra. Entretanto, essa não é uma terceira parte dessa série de publicações (MIRANDA, 2014). Tendo como uma abordagem sincrônica sobre o desenvolvimento das tecnologias náuticas desde a Antiguidade, sentimos que dar a continuidade planejada para o atual ensaio poderia ser um desperdício, já que o seriado Vikings (objeto de análise do dossiê desta edição) oferece algumas pautas interessantes de discussão. As embarcações não possuem um papel de destaque na série, apesar da sua importância para a narrativa no início (a busca pelas terras britânicas, por exemplo) ou mesmo em momentos que reforçam o estereótipo fílmico hollywoodiano, como o funeral do jarl Haraldson, de modo que os navios vikings são muito mais adereços legitimadores ou que reforçam representações estereotipadas ao que atribuímos normalmente enquanto pertinente a uma “identidade viking”.

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Essa relação inclusive está presente na belíssima abertura, onde corpos, armas e moedas afundam mar adentro em razão de uma batalha marítima (tudo embalado ao som de If I Had a Heart, do projeto Fever Ray da musicista sueca Karin Dreijer Andersson). A oportunidade é salutar em razão do espaço ocupado pelas embarcações em toda a obra. Elas fazem parte das ferramentas que possibilitam o desenvolvimento do enredo, a comunicação entre os personagens e firma o comprometimento guerreiro entre os vários personagens notáveis que ocasionalmente se envolvem nos planos dos protagonistas. Ainda mais, se os vários episódios são problemáticos e recorrem a enfadonhos estereótipos a fim de manter cativos os telespectadores menos exigentes, as cenas que envolvem as embarcações, geralmente acompanhadas de belíssimas imagens da natureza escandinava, são de tirar o fôlego! Os erros da série pertinentes às embarcações não são poucas, indo das posições de suas velas aos escudos que adornam as laterais de seus cascos. Por si só já merecem comentários demorados. Porém, a maneira como os personagens se comportam perante os navios e suas reações frente à prática da navegação não poderia estar mais distante do que sabemos das relações de trocas dos escandinavos com o resto da Europa. A motivação inicial dos personagens e o mote dos primeiros episódios da primeira temporada é certamente a busca por territórios com saques mais rentáveis. Ragnar comenta que ouviu rumores sobre terras a Oeste e que um viajante lhe entregou dispositivos que possibilitam a navegação para outras regiões: uma pedra e um disco solar, esse último muito parecido com o gnômon achado em Uunartoq, na Groelândia. É necessária uma súbita pausa aqui: além de ser um reaproveitamento

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grosseiro do roteiro do filme The Vikings de Richard Fleischer, onde um personagem obtém um artefato com propriedades magnéticas, o seriado força um isolamento entre a Escandinávia (atrasada tecnologicamente) e o resto da Europa, o que não poderia estar mais longe da verdade. Provavelmente, o gnômon

nórdico

deve

ter

sido

influenciado

pelo

continente,

via

reaproveitamento do conhecimento náutico e astronômico do mediterrâneo na Antiguidade. É possível encontrar vestígios materiais de copos de vidro, caldeirões de bronze, conjuntos de prata e bronze próprios para servir vinho, todos manufaturas mediterrânicas, indicando contatos e alianças que os romanos realizaram e que devem ter sido parte de uma maior troca de presentes na construção de amizades entre as dinastias germânicas escandinavas e continentais. Não só isso, “representou também um passo importante para a economia setentrional em razão do fluxo de seus produtos, em destaque os escravos, as peles, quartzos, penas de ganso, pedras preciosas e cabelos femininos louros” (MYHRE, 2008, p. 73). Talvez o seriado tenha representado esse isolamento escandinavo com a finalidade de pôr Ragnar e seus companheiros no epicentro do início da Era Viking, tradicionalmente marcado pelo saque do mosteiro de Lindisfarne (logo no segundo episódio da primeira temporada), porém tal representação é incompatível, como já argumentado, com o panorama histórico e tecnológico do período.

Floki e Loki: comparações inevitáveis

Mas, depois de tudo, para o bem do roteiro da série, um novo

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personagem é introduzido, responsável pela construção do barco que levará Ragnar e seus companheiros às ricas terras inglesas. Sem dúvidas o personagem vivido por Gustaf Skarsgård está amplamente relacionado ao personagem mitológico Loki, sendo um trapaceiro em todos os sentidos. Mais que tudo, o personagem parece, também, encarnar um traço menos óbvio: sua associação com o desenvolvimento de novas tecnologias. Já na primeira temporada, no episódio Rites of Passage, o personagem em questão faz a sua aparição, sendo contatado por Ragnar, ainda um simples fazendeiro. Impossível não fazer a comparação da construção de barcos com o episódio do roubo dos cabelos da deusa Síf descrito na Edda Menor. Especificamente no Skáldskaparmál, Loki é acusado de ter roubado os cabelos dourados da deusa, mas foge à punição prometendo fazer reparos com uma peruca nova feita de ouro. De sua capacidade de negociação e engodo, o deus Loki convence os anões filhos de Ívaldi a confeccionar uma série de tesouros mágicos presenteados aos deuses, entre eles o navio Skíðblaðnir. No poema Grímsnismál, esse navio mágico é bastante celebrado, sendo o melhor entre todos os navios, assim como a Yggdrasill é a mais sublime das árvores, Óðinn entre os Ӕsir, Sleipnir entre os cavalos, Bragi entre os poetas, etc. Esse poema não mede esforços para deixar claro que é o melhor dos barcos (...skipa bazt). Claro que Loki não possuía o conhecimento necessário para fazer, ele mesmo, tais presentes, mas utilizou aquilo que tinha de melhor para consegui-los: sua perspicácia. Aqui a série traça paralelos, aborda perspectivas diferentes e aproxima o personagem humano Floki ao mitológico Loki. Ambos possuem vários atributos positivos: sua companhia, sua boa disposição ao humor e mesmo a sua engenhosidade que é posta a serviço do bem comum; ao mesmo tempo

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também provou ter aspectos negativos — aparentemente, nas próximas temporadas corre o risco de ser um grande opositor de seu antigo amigo (não iremos aqui comentar, claro, um fanatismo religioso impraticável na visão de mundo da antiguidade pagã). O viés comparativo entre a cultura mitológica e a representação na série pode ser se aproveitar da relação entre os Jötnar e o território dos povos Sámi, onde a figura de Loki transfigurada em égua pode ser vista “em paralelo com a narrativa báltica de uma égua pertencente a uma mulher xamã que deu à luz a um potro com oito patas, de forma idêntica a Sleipnir” (LANGER, 2015 p. 283). O caráter ambíguo de Loki e a sua ambiguidade enquanto figura trickster estão conectados com a tradição noaidevuohta, o que enriquece o personagem de Gustaf Skarsgård que parece ter uma ligação quase extática com os seus barcos e com conhecimentos estranhos aos rituais comuns entre os germanos (como comentado na segunda temporada).

Um homem para construir um barco?

O perigo que a série enfrenta ao colocar nas costas do personagem a responsabilidade

do

desenvolvimento

tecnológico

da

sua

contraparte

mitológica advém do fato de que estariam ignorando antigas instituições guerreiras escandinavas relativas à promoção de conflitos e da defesa dos territórios marítimos dos reinos vikings (instituições essas que cruzaram a Era Viking e importantes bases de poder dos reis do medievo tardio). Pensando Kattegat como um espaço de poder eminentemente dinamarquês, podemos facilmente conjecturar o esquema de divisões territoriais skipæn, distritos responsáveis pelo fornecimento de navios, e hafnæ,

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distritos responsáveis pelo fornecimento de tripulações. Claro que estamos falando de relações de poder mais complexas que aquelas representadas no início do seriado que possuía uma dimensão muito mais regional confinada a Kattegat. Alguns creem em uma antiguidade incontestável nessa instituição, baseada quase que inteiramente em Tácito, afinal "os suiões não são fortes apenas em homens e armas, mas também em frotas" (passagem de De Origine et Situ Germanorum, 44). O sucesso desse tipo de instituição, nas palavras de Niels Lund, poderia ser a chave dos reides vikings: “justificaria a autoconfiança de Godofredo frente a Carlos Magno, explicaria a habilidade de Horik de enviar seiscentos navios contra a Saxônia em 845, o cerco de Paris com ainda mais navios, em 885-6”. É um tipo de instituição como essa que justificaria o rápido fortalecimento dos exércitos de Svein Barba-Bifurcada e de seu filho, Knút, o Grande, que conquistaram a Inglaterra no início do século XI, sucesso que também garantiu a supremacia dinamarquesa no Mar Báltico do século XII. Se falamos em uma temporalidade tardia, podemos com segurança nos referir a milícias navais que existiram durante o medievo posteriores aos séculos XII e XIII (portanto, bem após o período representado na série), e que levam o nome de Leiðangr no nórdico antigo e consistia em uma organização concisa de operações marítimas. Isso significaria um controle maior das monarquias escandinavas sobre os poderes paralelos de homens prósperos ou de líderes guerreiros, donos de pequenas frotas e com a capacidade de reunir um modesto número de homens para suas empreitadas particulares (que lembra muito a situação de Ragnar na primeira temporada). A representação das primeiras expedições feitas por Ragnar tem esse

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intuito, de mostrar um homem independente com uma pequena tripulação que conquista bons saques na Inglaterra. Entretanto, não poderíamos esquecer da condição social desses personagens: agricultores rudes. A construção e a manutenção de embarcações levavam em consideração equipes treinadas com boas ferramentas e um custo considerável de recursos naturais, incompatível com a demanda do personagem principal. Façamos algumas contas baseadas nos números apontados por Jan Bill (2008, p. 170): a arqueologia experimental nos mostrou que são necessárias 40.000 horas de trabalho, incluindo aqui às produções a parte de ferro, cordas e velas, entretanto excluindo o tempo de transporte, tudo isso para a fabricação de um navio longo de 30 metros. Para que fique pronto em um ano, são necessárias 100 pessoas. Para manter no mar por 4 meses, são necessários 70 homens que precisam ser alimentados. Por alto, é necessário o rendimento equivalente à produção agrícola anual de 460 indivíduos, que poderiam ser negociados com o retorno dos saques, o que não seria o caso de Ragnar e Floki, que estão ainda no início de suas empresas. A série não dá uma medida exata do navio, mas, levando em consideração que a embarcação de Tune, próximo ao recorte cronológico da série, tem quase a metade de suas medidas, podemos ter uma média aproximada dos esforços e custos necessários para a fabricação do navio que Floki constrói para a viagem de Ragnar à Inglaterra: números impraticáveis.

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Figura 1: Floki demonstra a Ragnar o barco que constrói sozinho em sua oficina (RITES..., 2013)

Conclusão

O seriado Vikings falha pela tentativa de alimentar estereótipos recorrentes da cultura pop ou por ignorar fatos básicos da história escandinava: suas economias, suas culturas e suas tecnologias. Em meio a isso, temos um personagem extremamente profundo que herda vários traços de sua contraparte mitológica. Várias outras características relevantes as nossas discussões mereciam menções e explicações: as embarcações vikings quase iguais entre elas (como se houvesse um padrão), a insistência em representar as laterais dos navios cobertos por escudos ou mesmo a adoração fanática e nada pragmática de Floki. Infelizmente, devemos nos limitar aos pontos que propomos aqui: Floki enquanto uma potência criadora e as necessidades para a construção de um navio. Na segunda temporada do seriado, duas facetas muito interessantes de Floki são apresentadas: o rei Horik lhe revela que necessita de suas ideias e que um construtor de barcos deveria receber mais que um homem comum — o

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mesmo rei Horik que é traído e entregue a Ragnar para que este possa levar a cabo sua execução. É inegável que os produtores tenham se baseado em Loki na construção do personagem e tenham tentado captar todas as suas dualidades, e talvez tenham conseguido se sair muito bem, desviando boa parte da carga negativa que o ser mitológico possui em outras mídias.

Figura 2: Horik tenta cooptar Floki. A segunda temporada apresentou o lado mais ardiloso de Floki, combinando assim as várias facetas do mitológico Loki no epicentro da narrativa (BONELESS, 2014).

Entretanto, quando saímos da sua caracterização, o personagem começa a tomar um propósito absurdo. As milícias navais não eram as únicas maneiras de reunião de forças marítimas, vários bandos e reis dos mares também estavam à disposição para o planejamento de novos saques, porém fora do alcance de um Ragnar que no início ainda possuía uma condição humilde. Porém, um navio também é um projeto fora do possível em termos de tempo, capacidade humana de trabalho e disponibilidade de materiais, de modo que o seriado estaria perdido, não sabendo como contornar esse problema que envolve Floki nos primeiros episódios, mas como quase tudo que encontramos representado entre os episódios da série, a promessa de diversão

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fácil dispersa qualquer coerência com os fatos materiais e/ou históricos.

Pablo Gomes de Miranda é mestre em História, professor na UFRN e membro do NEVE. E-mail: [email protected]

Referências:

BILL, Jan. Viking Ships and Sea. In: BRINK, Stephan; PRICE, Neil (org.). The Viking World. New York: Routledge, 2008, p. 170-180. BONELESS. Direção: Kari Skogland. Roteiro: Michael Hirst. In: Vikings. 47 minutos e 33 segundos. Disponível em: . Acesso em 10 de fevereiro de 2016. LANGER, Johnni. Loki. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, p. 281-287. LUND, Niels. Naval Forces in the Viking Age and High Medieval Denmark. In: HATTENDORF, John B.; UNGER, Richard W. War at Sea in the Middle Ages and Renaissance. Rochester: Boydell Press, 2003, p. 25-34. MIRANDA, Pablo Gomes de. As Embarcações Escandinavas: parte I (dos primeiros modelos à introdução da vela). In: Notícias Asgardianas 4, 2013, p. 1419. Disponível em: . Acesso em 10 de fevereiro de 2016.

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MIRANDA, Pablo Gomes de. As Embarcações Escandinavas: parte II (embarcações guerreiras). In: Notícias Asgardianas 6, 2014, p. 55-59. Disponível em: . Acesso em 10 de fevereiro de 2016. MYHRE, Bjørn. The Iron Age. In: HELLE, Knut (org.). The Cambridge History of Scandinavia, Vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 60-93. RITES of passage. Direção: Johan Renck. Roteiro: Michael Hirst. In: Vikings. 46 minutos e 38 segundos. Disponível em: . Acesso em 10 de fevereiro de 2016. TACITUS. Cornelius. De Origine et Situ Germanorum. Oxford: Claredon Press, 1900. Disponível em: . Acesso em 10 de fevereiro de 2016. VILAR, Leandro. Dramatização no Lokasenna: um estudo do conceito do trickster na figura de Loki. In: Revista Mundo Antigo 4(4), 2015. Disponível em: . Acesso em 19 de janeiro de 2016.

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A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub

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A FIGURA DO FERREIRO EM VIKINGS E NOS MITOS NÓRDICOS Munir Lutfe Ayoub

No segundo episódio da primeira temporada da série Vikings, nos deparamos com um personagem que não ocorre em nenhum outro momento da série, até porque a personagem morre: o ferreiro. Ele surge em Vikings como pai de uma menina ameaçada de ser morta por Floki, caso este não produzisse a âncora da embarcação de Ragnar. Ao produzi-la, possibilita que este possa desbravar a Inglaterra. O ferreiro, por fim, é procurado pelo earl Haraldson e acusado de traição por possibilitar a viagem de Ragnar, à qual o earl se opunha, recebendo como castigo a morte. Esse episódio nos leva a refletir sobre o papel do ferreiro na sociedade nórdica da Era Viking, figura necessária para produção de bens de extrema necessidade, como a âncora de Ragnar, mas figura também controlada pelos poderosos que, ao fim, por ser acusada de traição, acaba por receber como castigo a própria morte. Contudo, como se apresenta o ferreiro no período Viking, e como este é caracterizado pelas fontes medievais? Iniciamos assim um breve estudo para analisar a figura do ferreiro nos mitos nórdicos pré-cristãos, aspecto cultural que, em sua criação, recriação e articulação, continha e revelava elementos daquela sociedade, como seus ideais políticos, seus personagens históricos e mitológicos, suas cosmovisões, suas compreensões identitárias e muitas outras compreensões sociais e de mundo (SCHJØDT, 2007, p. 1-16). Buscaremos nos perguntar, assim, como o ferreiro é apresentado na cultura nórdica pré-cristã, mas devemos também nos perguntar em quais fontes essa imagem é explicitada, e, ainda, se as diferentes fontes, arqueológicas e literárias, nos apresentam uma mesma imagem desse ser social. Contudo, como

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um estudo introdutório ao tema, este artigo se limitará a considerar apenas, e de forma breve, as fontes literárias, deixando reflexões mais densas a serem aprofundadas em estudos futuros.

O ferreiro no mito e nas sagas

Os anões são apresentados nos mitos nórdicos como os melhores ferreiros, responsáveis pela produção de artefatos valiosos para os deuses. São eles que produziram a lança Gungnir e o anel Draupnir de Odin, o martelo Mjollnir de Thor, o colar de ouro Brisingamen de Freyja, o javali de ouro Gullinborsti e também o navio mágico Skidbladnir de Freyr. Em uma das versões do mito sobre a produção do hidromel — bebida responsável pela sabedoria, poesia e inspiração —, os anões são apontados como produtores da mesma (Skáldskaparmál, 1 e 35; Hávamál, 104-110; Sörla þáttr). A historiadora Lotte Hedeager, além de salientar essa lista de feitos dos anões que enumeramos acima, diz que os anões são apontados como professores, sábios e mágicos, e que nas sagas aparecem como os provedores das armas dos heróis. São esses personagens também que, segundo o historiador Lotte Motz, são lembrados pelo folclore dos povos nórdicos (HEDEAGER, 2011, p. 141; MOTZ, 1983). O historiador Andy Orchard ainda ressalta essas características dos anões em seu estudo sobre os nomes desses seres mitológicos, enunciados em poemas como o Völuspá e na lista de nomes da Edda em prosa, denominada Thulur. As listas incluem nomes que reforçam as características já supramencionadas como Alvíss (“todo-sábio”), Dagfinnr (“mágico” ou “diaFinn”), Draupnir (“gotejador”), Radspakr (“sábio conselheiro”), Skirvir

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(“artesão”) e Úri (“ferreiro”) (ORCHARD, 2002, app. B). As famílias destes anões são apresentadas pelos mitos como não possuidoras de membros femininos, e, por consequência, estes não possuem a possibilidade de reprodução, não por um aspecto biológico, mas sim por um aspecto social. Suas habitações são marcadas pelas montanhas nas quais eles habitam no subsolo, para escaparem da luz do dia, aspecto ressaltado por Hedeager, que aponta a presença da descrição dos anões como os sábios das montanhas no poema Völuspá (HEDEAGER, 2011, p. 141). Anões como Alvíss já tentaram desposar mulheres como Thrud, filha de Thor, mas Alvíss foi enganado pelo deus do trovão, que o desafiou em um duelo de sabedoria. O anão deveria se mostrar capacitado para desposar um ser de tal linhagem, e Thor o segurou neste duelo até o nascer do sol, o que fez com que Alvíss se tornasse pedra em seus primeiros contatos com o astro luminoso (Alvíssmál). Contudo, nem sempre foram os anões os únicos grandes artesãos e ferreiros, sendo também os deuses, por certos momentos, possuidores dessas habilidades. Na chamada “época de ouro”, os deuses também tiveram poderes de trabalho com metais, mas tiveram seus poderes destruídos pela chegada de gigantas de Utgard e foram assim obrigados a criar a linhagem dos anões, que passou a habitar no subsolo e a controlar a produção de artefatos feitos com metais preciosos. Os Aesires neste “período de ouro” constituíam também uma sociedade apenas de homens e, como os anões, eram impossibilitados socialmente de se reproduzirem (Völuspá, estrofes 7-10). Um dos anões que possuímos mais informações, graças a obras como o poema Reginsmál, presente na Edda poética, se chama Reginn. A história deste anão já foi identificada por arqueólogos como Anders Andrén como sendo retratada em uma gravura em pedra na região de Ramsundsberget, na Suécia,

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datada do período Viking. Sua história também já foi apontada pela historiadora Hilda Davidson como retratada em um relicário do mundo anglosaxônico, datado da primeira metade do século VIII (ANDRÉN, 2000, p. 7-32; DAVIDSON, 1982, p. 134). A história de Reginn faz parte também da Saga dos Volsungos — que nos conta a história do herói Sigurd, responsável pela morte do irmão de Reginn, chamado Fafnir —, além de se encontrar presente também na Edda em prosa (Reginsmál; Saga dos Volsungos; Skáldskaparmál, 39 – 41). Reginn nessas histórias aparece como membro de uma família composta pelo seu pai Hreidmar e seus dois irmãos Fafnir e Utter, mas nenhuma mãe nem irmã são mencionadas; em suma, uma família sem mulheres. Utter tinha a capacidade de se metamorfosear em uma lontra que viria a ser morta pelo deus Loki — deus que, por essa morte, teria de pagar uma grande quantidade de ouro aos anões. Hreidmar, por sua vez, é apontado como um ancião portador de grande magia que viria a ser morto por seus filhos Fafnir e Reginn, movidos pela ganância do ouro pago por Loki. Por último, Fafnir viria a se transformar em um dragão, tomando o tesouro para si e o guardando até ser morto por Sigurd. Reginn é um ferreiro a serviço de um rei e viria a cuidar de Sigurd, filho do rei Volsung, em sua juventude, revelando para ele o tesouro de Fafnir e o instigando a matar o dragão para tomar posse de suas riquezas. Reginn é o responsável pela forja que restaurou a espada, chamada Gram, que viria a matar Fafnir, e o único a possuir qualidades mágicas e artesanais para essa restauração, que viria a garantir a vitoria do herói. Este episódio é considerado por historiadores como Lotte Motz e Lotte Hedeager como a exemplificação da iniciação de um herói, onde este viria a adquirir riqueza, sabedoria (como a adquirida por Sigurd ao tomar o sangue de Fafnir), força, coragem e um novo

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nome como prova de seu ato de honra, passando a ser denominado Fáfnisbani (“Aquele que matou Fafnir”). Dessa forma, Reginn aparece como o mestre da iniciação do herói Sigurd (HEDEAGER, 2011, p. 142; MOTZ, 1993, p. 83). Lotte Hedeager conclui assim sua análise de Reginn por dizer que mesmo o mais forte dos reis dependia de suas habilidades como ferreiro, mágico e artesão. Reginn é um ser que não pertence àquela sociedade, não tendo nenhuma mulher em sua família e sendo impossibilitado de se reproduzir, um ser liminar responsável pela iniciação de heróis e pela produção de artefatos únicos (HEDEAGER, 2011, p. 142). Contudo, ainda resta ressaltar que Reginn é caracterizado também como uma figura traiçoeira, personagem que pretendia matar o herói Sigurd e roubar as riquezas de seu irmão Fafnir, sendo necessário um controle forte sobre o mesmo que, ao fim, por um ato de defesa do herói, acabou por ser morto. Para terminarmos essa breve análise sobre o ferreiro nos mitos e nas sagas, ainda devemos citar também o nome de Völund, um dos mais famosos ferreiros do mundo nórdico, citado pela Edda poética no poema Völundarkvida. Historiadores como Andy Orchard estudam também a figura do ferreiro Völund em fontes germânicas e anglo-saxônicas demonstrando a variação de seu nome por Wayland, Weland e Welund (ORCHARD, 2002, p. 389). Uma das fontes mais antigas para o mito de Völund provém de um relevo presente em um relicário do mundo anglo-saxônico datado do século VIII, mas fontes arqueológicas desse mesmo século no mundo escandinavo também foram apontadas como apresentando o mito do ferreiro como, por exemplo, uma das estelas de Gotland (JAKOBSSON, 2003, p. 149). Völund é apresentado como irmão de Égil e Slágfid, e os três são apontados como filhos de um rei Finn. Os Finns ou Saamis são comumente

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A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub

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apresentados como magos perigosos possuidores de forças provenientes de outras esferas, sendo assim um personagem proveniente de fora da sociedade nórdica. O ferreiro é apresentado como casado com uma valquíria chamada Hérvor Álvit, uma mulher de grandes proporções provenientes de esferas fora do mundo dos homens, que possuía grandes habilidades de tecelã e tinha o controle da metamorfose. Contudo, Völund viria a ser abandonado por Álvit após sete anos, o que leva a historiadora Lotte Hedeager a dizer que, apesar de ter sido casado, a mulher do ferreiro havia fugido, e o mesmo não possuía filhos, o tornando um personagem que não pertencia a nenhuma família, sendo considerado, portanto, como um ser à parte da sociedade (HEDEAGER, 2011, p. 143). Völund, assim, não é um anão como a maior parte dos ferreiros, mas também não pertence à esfera dos homens, sendo introduzido na mesma ao ser capturado pelo rei sueco Nídud, que roubou sua espada, seu ouro, o fez prisioneiro e o forçou a trabalhar na produção de armas e joias de grande qualidade. Um dos itens roubados por Nídud foi um anel de ouro forjado por Völund, ferreiro que depois de ter sido abandonado por Álvit havia passado um tempo em sua casa em Ulfdálir a forjar anéis, que viria a ser dado pelo rei sueco a sua filha Bódvild. Após ter sido sequestrado por Nídud, o ferreiro é colocado em uma ilha isolada chamada Sevarstad e tem os tendões de seus pés cortados para que não possa fugir. O arqueólogo e historiador Baeksted (2001, p. 278-281) ressalta que a localização da forja de Völund — como situada em uma ilha isolada, onde o mesmo era controlado pelo rei, único homem que ousava ir vê-lo, mas mantido afastado da sociedade — ressalta o caráter do ferreiro como um ser temido, que era, no entanto, necessário por possuir poder no controle do ouro.

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O mito de Völund está, por fim, marcado por fatos que conduzem a trama por episódios de vingança. O ferreiro teria matado os dois filhos homens do rei Nídud, que, ao visitarem Sevarstad atrás de joias e bens valiosos, acabaram por ser decepados. Os corpos dos filhos de Nídud serviram, assim, a Völund como matéria prima na confecção de duas taças que foram feitas de seus crânios, joias que foram feitas de seus olhos e broches que foram feitos com seus dentes. As taças teriam sido enviadas ao rei, as joias teriam sido enviadas à rainha e os broches teriam sido enviados a Bódvild. A vingança do ferreiro, no entanto, iria ainda mais além, em um dia que foi visitado por Bódvild, que o procurava para que consertasse o anel de ouro, que havia quebrado. O ferreiro se aproveitou e a estuprou, fazendo na filha do rei um filho. Em seu ato final, Völund produz em sua forja asas para que pudesse voar e escapar da tirania do rei, fato que leva a historiadora Lotte Hedeager a apontar o personagem como um típico mestre ferreiro que tem a habilidade de se metamorfosear como um xamã, sendo, por consequência, responsável pela mediação entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses (HEDEAGER, 2011, p. 143). Contudo, variações das interpretações apresentadas por Lotte Hedeager podem também ser apontadas, interpretações como as apresentadas pelo historiador Johnni Langer em seu verbete sobre Völund presente no Dicionário de Mitologia Nórdica. Langer aponta para compreensões como as de um mito sazonal, onde o inverno seria representado pela partida de Hervör-Alvitr, e o verão representado pela fuga de Völund, que recupera sua liberdade, sua espada e o anel que havia sido dado a Bódlvid, ou ainda como um mito representativo de relatos sobre vinganças de criaturas sobrenaturais contra seres humanos que subestimaram suas habilidades, relato esse que significaria

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um rito de iniciação onde a mutilação cessaria por meio de poderes regenerados, o que marcaria o ferreiro como uma figura relacionada à cura de enfermidades (LANGER, 2015, p. 552-555).

Considerações finais

Concluimos, assim, por uma breve análise que a imagem do ferreiro nos mitos nórdicos está marcada por uma incapacidade de reprodução social e um pertencimento exterior às famílias dos deuses e dos homens, sendo esses apontados como pertencentes a esferas como a dos anões ou ainda, como no caso de Völund, à esfera dos Finns, povos exteriores ao mundo escandinavo, característica um pouco diversa da apresentada pela série Vikings, onde o ferreiro é pai de uma menina, portanto possuidor de uma família com membros femininos. O ferreiro é ainda uma figura central na produção de bens importantíssimos como as armas ou até mesmo como as joias, que marcavam um pertencimento aristocrático do período, mas deveria ser controlado pelos poderosos dessas sociedades para que não viessem a cometer traições, como as pretendidas por Reginn ou as realizadas por Völund. Nesse sentido, o ferreiro da série Vikings se aproxima do ferreiro dos mitos como sendo uma figura de extrema necessidade para a produção de bens importantíssimos, como a já citada âncora da embarcação de Ragnar. Além disso, o ferreiro da série é percebido pelo earl Haraldson como um traidor, se aproximando, assim, da figura mitológica de Reginn, sendo ambos, ao fim, mortos pela mão dos poderosos de suas sociedades. Assim, aspectos das relações sociais, como aquela estabelecida entre os

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aristocratas e os ferreiros, estão marcantes na série Vikings, mas devem também ser apontadas como pertencentes ao período das sagas e das Eddas. Fruto de produções dos escaldos — poetas que faziam parte da aristocracia escandinava —, os ferreiros nas sagas e nos mitos devem ser assim compreendidos: como figuras pertencentes a um imaginário que, dentre outras coisas, pretendia a legitimação de poderes sociais. Contudo, aspectos pertencentes ao período de compilação dessas fontes também devem ser apontados e, assim, encontramos novamente a presença de aristocratas cristãos que, laicos ou clérigos, foram os responsáveis pela vanguarda da produção das fontes literárias escandinavas, rememorando e recriando os costumes e mitos de seus antepassados, fontes que, mais uma vez, se tornavam úteis para esses homens na legitimação de suas posições sociais. O mito tem, dentre muitas de suas facetas, uma definição como elemento dinâmico que define os personagens sociais dessa relação espaço-temporal, gerando um movimento de oposições e alianças entre classes. Contudo, outra visão do ferreiro — como a visão que esse personagem social apresenta fora de uma esfera aristocrática — tem de ser iluminada e, para isso, necessita-se de uma melhor análise de outros prismas apresentados pelas fontes literárias e pelas fontes arqueológicas, que devem ser aprofundadas em estudos futuros.

Munir Lutfe Ayoub é mestre em História pela PUC-SP e membro do NEVE. E-mail: [email protected]

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Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira

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MALDITAS SERPENTES: UM COMENTÁRIO SOBRE A CENA DO SUPLÍCIO DO POÇO Leandro Vilar Oliveira

A série Vikings é escrita pelo produtor e roteirista britânico Michael Hirst, conhecido por ter escrito dois filmes ganhadores do Oscar: Elizabeth (1998) e Elizabeth: A Era de Ouro (2007) e o seriado The Tudors (2007-2010). Nessa sua nova série produzida pelo History Channel, Hirst deixa a época dos Tudors para retornar até o medievo. A história principal do seriado gira em torno do fazendeiro e guerreiro Ragnar Lodbrok (Travis Fimmel) e sua família: Lagertha (Katheryn Winnick), sua esposa, Bjorn e Gyda, seus filhos, e seu irmão Rollo (Clive Staden). Posteriormente, na segunda temporada, a família de Ragnar aumenta com a chegada de novos filhos, que ele passa a ter com a princesa Aslaug (Alyssa Sutherland). De qualquer forma, a diretriz central ainda é mantida sobre seu núcleo familiar. Entretanto, a série foi baseada na saga heroica Ragnar saga Loðbrökar, escrita no século XIII, a qual é a principal narrativa que se tem sobre o semilendário rei Ragnar Lodbrok (“Calças Peludas”). Por sua vez, a personagem da Lagertha advém do livro Gesta Danorum, escrito no século XII-XIII por um clérigo dinamarquês sob o pseudônimo de Saxo Grammaticus, o qual, além de contar a história de Lagertha, também narra a história de Ragnar. Mas, além dessa saga e dessa crônica histórica sobre a Dinamarca, Hirst se vale da história das invasões vikings à Bretanha, as quais se iniciaram em 793 e continuaram pelos séculos seguintes. De fato, na primeira temporada da série, o foco histórico se faz sobre as primeiras incursões vikings ao reino da

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Nórtumbria. No primeiro episódio, a história ocorre no ano de 793, data que na historiografia é aceita como sendo o ano em que ocorreu o primeiro ataque viking à Inglaterra, mais especificamente ao mosteiro da ilha de Lindisfarne na Nórtumbria. Na história, Ragnar tenta convencer o jarl Haraldson (Gabriel Byrne) a empreender no verão uma campanha para o oeste, pois normalmente ele fazia isso para leste, mas Ragnar acreditava que ganhariam muito mais se cruzassem o mar até a Inglaterra. A relação entre Haraldson e Ragnar é bastante tensa, pois Ragnar é petulante e diferente de outros, não se submete facilmente ao jarl. Com isso, Haraldson não aceita a proposta de Ragnar, o qual decide procurar a ajuda dos deuses, indo falar com o ancião, e, por sua vez, Ragnar decide procurar seu amigo Floki (Gustaf Skarsgård), o qual é um artesão que constrói navios. Ragnar acredita que, caso possua seu próprio navio e tripulação, conseguiria convencer Haraldson a permitir a expedição, e isso vem a ocorrer no Episódio 2: Wrath of Northemen, o qual conta a história do ataque à Lindisfarne. Ao retornar para Kattegat, vila onde mora o jarl Haraldson, Ragnar e sua tripulação retornam triunfantes, o que acaba tornando-o famoso no local, atiçando a inveja e revolta de Haraldson, o qual esperava que Ragnar morresse afogado ou fracassasse. Com o êxito, Ragnar planeja uma nova expedição à Inglaterra, ainda mais incentivado após o relato do monge Athelstan (George Blagden), o qual Ragnar trouxe como prisioneiro e, posteriormente, se torna seu amigo. Athelstan lhe diz que a Inglaterra é cheia de reinos ricos, e isso leva Ragnar a retornar para lá, indo atacar uma pequena cidade chamada de Haxam. O ataque ocorre no Episódio 4: Trial. Novamente ele obtém êxito, o que não apenas enfurece o jarl Haraldson,

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mas a notícia do ataque a Lindisfarne e Haxam chegam aos ouvidos do rei da Nórtumbria Ælla II (Ivan Kaye), o qual fica indignado com seus comandantes, por deixarem um bando de bárbaros pagãos vindos do mar, terem pilhado suas terras, profanado suas igrejas e cometido atrocidades. Tais acontecimentos remetem ao contexto das invasões vikings à Inglaterra as quais perdurariam ao longo do século IX e X, período no qual os dinamarqueses acabariam fundando colônias em grande parte da Bretanha, território esse chamado de Danelaw. Mas, retomando a série, Haraldson planeja assassinar Ragnar, o qual o vê como um oponente em potencial para questionar sua autoridade. No Episódio 6: Burial of the Dead, Ragnar duela com Haraldson e o mata, tornando-se jarl. No final do episódio, o rei Ælla II — indignado pelo fracasso de seu comandante Wigea, e agora sabendo que os nórdicos estavam de volta para cometer novas barbaridades — decide tomar uma decisão: executar o comandante. O comandante Wigea diz que os nórdicos eram “demônios”, homens que lutavam sem medo da morte, que possuíam poderes sobrenaturais; aquilo tudo é encarado como sem fundamento pelo monarca e apenas faz aumentar sua indignação. O rei Ælla II pergunta se o comandante tem medo de morrer; este responde que sim, mas tinha fé que Deus lhe daria uma segunda vida. Ælla II leva Wigea para fora, sendo acompanhado por guardas, então eles chegam diante de um poço revestido com tábuas e cheio de serpentes. O rei debocha da falta de coragem de Wigea e de sua fé, então ordena que o jogue no poço (ver imagem 1).

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Figura 1: cena do poço, série vikings. Fonte: https://howardwilliamsblog.wordpress.com

O poço de serpentes, ou cova de serpentes, não consiste numa invenção do seriado, mas é um suplício de condenação à morte, baseado na Ragnar saga Loðbrökar, e também descrito na Gesta Danorum. A particularidade de tal forma de morrer é tema desse texto, pois em ambos os relatos medievais é dito que Ragnar, após ser capturado pelo rei Ælla II, foi condenado à morte de tal maneira. Pelo fato de não se haver uma previsão acerca de quantas temporadas a série Vikings ainda terá — embora, no ano de 2016, estreia sua quarta temporada —, não sabemos se Michael Hirst dará ao seu protagonista este trágico fim, como contado na saga. Por mais que o rei Ælla II tenha sido uma pessoa real, governante do reino da Nortúmbria no século IX, as referências históricas a ele associadas não fazem menção a que o monarca executasse seus inimigos, atirando-os numa cova de serpentes. Além disso, pouco se sabe acerca de sua vida e reinado, pois as fontes históricas, como as Anglo-Saxon Chronicles, pouco nos informam sobre seu governo, restando as menções nas sagas a respeito de seu reinado, as quais

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estão imbuídas de um teor lendário (MCGUIGAN, 2015, p. 22). No entanto, surge a segunda indagação: por que um poço de cobras? Seria uma invenção escandinava ou anglo-saxônica? Entretanto, além da Ragnar saga Loðbrökar, outras narrativas de origem escandinava também aludem à cova de serpentes. Alguns poemas da Edda Poética trazem referências a tal suplício, especialmente os poemas que compõem o Ciclo Heroico do rei Atli, uma referência a Átila, o Huno. No poema Sigurtharkvitha en Skamma, na estrofe 58, a irmã de Atli, Oddrun, diz que um condenado seria trazido até seu irmão, antes de ser jogado na cova de serpentes. No poema Atlakvitha, na estrofe 17, o rei Atli ameaça jogar seu inimigo Gunnar, rei dos Burgúndios, num poço de cobras. O diálogo entre os dois reis prossegue pelas estrofes seguintes até que, na estrofe 34, Gunnar é jogado dentro do poço e finalmente morre. No poema Atlimál, no final da estrofe 55, faz-se referência ao destino do rei Gunnar ter sido arremessado num poço de cobras, e ali seu coração foi devorado pelas víboras. Na Volsunga Saga, nos capítulos 39 e 43, menciona-se a sentença de Gunnar ao ser atirado num poço de cobras por ordem do rei Atli. No capítulo 39, consta a ameaça, e no capítulo 43 a sentença é cumprida com a morte de Gunnar. Percebe-se nesses capítulos uma alusão à história narrada nos poemas éddicos. Além dessas fontes literárias, existem também fontes iconográficas, como por exemplo uma estela rúnica (runestone) de Gotland, chamada Klinte Hunninge I, GFC C9286 (ver imagem 2), datada do século IX, a qual traz várias cenas. Mas a cena que nos interessa se encontra abaixo do navio, onde se percebe, no lado esquerdo, uma mulher olhando para um homem dentro de um

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“buraco” com cobras; seria a representação de Gudrun vendo seu irmão Gunnar? (STAECKER, 2006, p. 365)

Figura 2: Estela de Klinte Hunninge I. Fonte: http://www2.rgzm.de/Navis2/Hom

Além da estela Klinte Hunninge I, existem outras representações em pedra, madeira e pintura que mostram um homem dentro de um poço de cobras. Entretanto, seriam todas referências a Gunnar ou alguma poderia ser referente a Ragnar Lodbrok? Por outro lado, a estela Hunninge I revela que essa ideia da cova de serpentes é bem mais antiga do que se supõe com base nas fontes literárias, já que a estela foi datada pertencendo ao século IX, e as sagas e as Eddas datam do século XIII. Além das duas sagas mencionadas e das Eddas, a historiadora Guðmundsdóttir, em seu estudo Gunnar and the Snake Pit it Medieval art and Legend (2012), realizou um vasto levantamento sobre fontes literárias e algumas iconográficas, nas quais mostram poços de serpentes, torres de serpentes e

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cobras usadas como suplício. Guðmundsdóttir chegou à conclusão de que, em termos de fontes literárias, encontram-se obras de origem escandinava e germânica datadas entre os séculos XII e XV, as quais contêm essas características associadas à morte com cobras. Para Guðmundsdóttir (2012, p. 1022), o poço de serpentes seria uma alegoria, e não necessariamente um suplício real, embora ela indique que houve alguns estudiosos que chegaram a procurar evidências que tal suplício era realmente utilizado — mas as evidências não passam de suposições sem provas concretas. Por sua vez, ela alega que tal alegoria poderia estar associada à ideia entre serpente e morte, e a concepção entre serpente e inferno. Na cultura escandinava, o simbolismo da serpente variou desde a Idade do Bronze, todavia, para este estudo, optamos por comentá-lo durante a Era Viking (VIII-XI). Nesse período, a serpente passou a ter vários sentidos, como estar relacionada com o submundo e com o aspecto de sorrateira, algo visto no mito do hidromel da poesia, no qual Odin se metamorfoseia em cobra para adentrar uma caverna, onde reside a giganta Gunnlod, a qual guarda o hidromel. A serpente também estaria associada ao xamanismo, relacionada com a magia e a comunicação com os mortos e o submundo, devido a ser uma criatura associada com a terra. Logo, o fato de Odin ter se metamorfoseado em cobra para conseguir chegar à caverna de Gunnlod estaria associado a uma prática xamânica, na qual os xamãs tendiam a visitar outros mundos e os mortos a fim de conseguir conhecimento e poderes (LANGER, 2007, p. 66). Todavia, durante o período viking foram encontrados amuletos em formato de serpente, os quais estiveram associados com a morte, por aludirem aos navios drakkar, os quais possuem carrancas com cabeça de dragão, e eram

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usados pela elite para se realizar o enterro ou a cremação. As serpentes também estariam relacionadas com a vida, servindo como amuletos de proteção, pois a troca de pele realizada pelas cobras era interpretada por diferentes culturas como ligada à renovação da vida (GRÄNSLUND, 2006, p. 126). Entretanto, além destes aspectos positivos, a cobra também podia ter aspectos negativos. Nos mitos, temos os principais exemplos disso, como no caso de Jormungand, a Serpente do Mundo — uma criatura colossal, filha monstruosa de Loki e de Angborda, grande inimiga do deus Thor, e, inclusive, responsável por sua morte, embora Thor morra devido ao veneno. Além desse antagonismo com o deus do trovão, Jormungand também representa as forças do caos que irão ser soltas durante o Ragnarök, cujo acontecimento espalhará veneno sobre a terra e erguerá as ondas como se fossem maremotos. Porém, o que nos interessa mais a respeito de tentar compreender o covil de serpentes diz respeito à associação da víbora com a punição e a morte, como apontada por Guðmundsdóttir. Para isso, as Eddas nos fornecem dois mitos em particular. O primeiro mito diz respeito ao castigo de Loki, história essa contada no final do poema éddico Lokasenna e na Edda em prosa, no Gylfaginning, 50. Os motivos que levaram Loki a receber seu castigo diferem de uma fonte para a outra, no entanto, a sentença é a mesma: Loki, após ser capturado pelos deuses, é acorrentado com as tripas de seus filhos Nari e Narfi, então é colocado sobre três pedras e as correntes são presas no chão. Sobre sua cabeça, a giganta Skadi coloca uma cobra, a qual derrama seu veneno na face dele, lhe causando grande dor. Nesse mito, vemos o traiçoeiro Loki sendo punido com veneno. Mas o outro mito que associa cobras com punição diz respeito a um dos lugares da

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morte na mitologia escandinava, o salão de Náströnd. Náströnd, cuja tradução significa “costa dos cadáveres”, é apenas mencionado em dois momentos nas Eddas: no primeiro momento, tal local é citado nas estrofes 38 e 39 do Voluspá, e, no caso da Edda em prosa, no Gylfaginning, 52. Nas duas menções, as referências aos locais são basicamente as mesmas: Náströnd é um local longe do sol, cujas portas ficam voltadas para o Norte, onde os assassinos, traidores e assediadores de mulheres casadas são punidos a vagar por um rio de peçonha, que percorre um salão feito de escamas, de cujas chaminés cobras gotejam seu veneno. Ali, o dragão Nidhogg e um lobo devorariam os mortos. Nota-se na descrição fornecida pelas Eddas que Náströnd é um local da morte, o único conhecido onde os mortos são punidos por seus crimes. Porém, nota-se algo mais: normalmente os mitólogos situam Náströnd como localizada em algum lugar de Hel ou de Niflhel, logo, situado no submundo, isso nos faz lembrar o poço de serpentes que tecnicamente é um recinto dentro da terra. Entretanto, se na mitologia escandinava encontramos uma correlação entre as serpentes com a morte e o submundo (Hel e Nilfhel), Guðmundsdóttir (2012, p. 1023) também sugere em sua pesquisa que o poço de serpentes (ormagarðr) talvez não fosse algo concreto, ou seja, não seria um lugar com cobras propriamente falando, mas sim uma metáfora (kenning) para túmulo ou cova. Por exemplo, ela menciona o uso do termo ormagarðr num manuscrito alemão do século XIII para se referir ao profeta Daniel, conhecido por ter sido jogado numa cova com leões. Nesse caso, a “cova dos leões” foi nomeada como ormagarðr (“cova de serpentes”). Na crônica anglo-saxã De gestis regum Anglorum (1125), William de Malmesbury foi atirado numa cova com um leão

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(ormagarðr). Diferente das cobras, que são animais da fauna britânica, leões não o são, e é muito improvável que no século XII houvesse algum leão mantido em cativeiro, logo, ormagarðr parece ter sido uma metáfora para uma cova de suplício ou uma “cova da morte”, independente de conter ou não víboras. Sendo assim, talvez a morte de Ragnar Lodbrok num poço de serpentes tenha sido uma metáfora (kenning), como sugere uma das opiniões de Guðmundsdóttir, ou talvez um acontecimento inspirado na tradição escrita do Norte da Europa entre os séculos XII e XV, onde Guðmundsdóttir localizou várias histórias que dizem respeito a tal suplício. Nesse ponto, devemos recordar que a Gesta Danorum (XII-XIII) e a Ragnar saga Loðbrokar (XIII) consistem em manuscritos datados do período que compreende a maioria das citações sobre poços de serpentes. Inclusive, não se encontram menções a sua história antes disso, embora se diga que ele tenha supostamente vivido no século VIII ou IX. Por outro lado, as referências à lenda de Gunnar e Atli são anteriores à Idade Média Central, remontando, em termos iconográficos, ao século IX, o que significa que a ideia de um poço de serpentes é bem anterior à tradição literária, remontando a uma tradição oral, cuja origem é desconhecida. E talvez possa ter servido de modelo para outras histórias, o que incluiu a de Ragnar Lodbrok, pois, embora a Ragnar saga ofereça mais detalhes do que a narrativa da Gesta Danorum quanto à vida de seu herói, ambas concluem que ele foi executado pelo rei Ælla II num poço de serpentes.

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Leandro Vilar Oliveira é mestrando em História (PPGH-UFPB). E-mail: [email protected]

Referências:

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A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira

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A REPRESENTAÇÃO DO RAGNAROK NA SÉRIE VIKINGS Angela Albuquerque de Oliveira

O drama histórico aqui analisado trata-se da série televisiva irlandocanadense “Vikings”, criada pelo produtor e roteirista inglês Michael Hirst e produzida para o canal a cabo norte-americano History Channel, no Ashford Studios, Irlanda, com lançamento nos Estados Unidos e Canadá em 2013. Para fins de análise, foi feito um recorte objetivando examinar a religiosidade nórdica, concernente ao mito de Ragnarök, sendo este narrado no ciclo de crenças de concepção nórdica (séculos VIII a XI) do qual trata o fragmento, arrazoado nessa produção, apresentado, especificamente, no sexto episódio "Burial of the Dead" (Enterro dos Mortos), da 1ª temporada dessa série. Sobretudo, será observado como esse evento foi pensado e como cada elemento foi apresentado, integrando-se ao desfecho final, levando em consideração, para tal, a complexidade do mito em si, uma vez servir de base para a série. Iniciaremos nossas postulações a partir do detalhamento do texto ficcional televisivo, descrevendo cenários e diálogos. Em sequência, faremos um detalhamento do mito-base a partir de seu desenvolvimento nos manuscritos que retratam tal mito. Por fim, faremos a apreciação do fragmento selecionado neste trabalho da série em questão, dito de outro modo, a análise propriamente dita. Os cenários, onde o enredo desse seriado se desenvolveu, intencionaram reproduzir o espaço e o tempo desse mundo histórico que permeia a Era Viking no ano de 793 d.C., bem como o Eastern Baltic, na costa oriental báltica, onde Ragnar, fazendeiro e guerreiro, participava de uma expedição de verão, evidenciado no início do primeiro episódio, em seus aspectos político, social e

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A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira

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cultural. Entretanto, Ragnar reside com sua família perto de Kattegat, região localizada entre a Dinamarca e a Suécia. Ademais, buscou-se evidenciar, principalmente, às filmagens das cenas externas, das paisagens físicas e geográficas irlandesas, somando-se a uma linguagem de cunho mais coloquial, de fácil compreensão, apresentada no desdobramento desse enredo. É, a partir desse contexto sociocultural e geográfico, que se encontra inserido o trecho/fragmento, objeto de nossa análise, o qual trata, como já mencionado, a respeito da narrativa de Ragnarök e os seus personagens, cenas que serão descritas em sequência. Ao iniciar a cena que se reporta a essa narrativa, além do guerreiro e fazendeiro Ragnar Lothbrok e sua família (a esposa Lagertha e o filho Bjorn), encontravam-se reunidos, no salão, seu irmão Rollo, Floki — o artesão construtor de barcos de guerra —, o monge cristão Athelstan, entre outros. Com a morte do Earl Haraldson, em um duelo com Ragnar, que fora aclamado Earl Ragnar, este passou a governar aquelas terras. Após a descrição do cenário, observemos o trecho do diálogo de Ragnar com o monge cristão em que esse indaga a Ragnar sobre o significado do mito de Ragnarök: — Ragnar eu já conheço muita história do seu povo. Mas, me conte o que é Ragnarök? Já ouvi falar sobre isso várias vezes. Mas, ninguém nunca explicou o significado. Ragnar retruca: — Vamos mostrar a esse cristão ignorante o que é Ragnarök. Peguem as folhas.

Diante dos que estavam ali presentes, as folhas são amassadas e jogadas sobre o fogo. Nesse momento, a águia faz um voo por sobre o salão. Em seguida, a cena apresenta um seiðmaðr, um vidente que descreve os sinais do

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Ragnarök, vejamos: — O crepúsculo dos deuses acontecerá assim: Haverá três anos de terríveis invernos... E verões de sol completamente negro. Pessoas perderão toda a esperança e se renderão à ganância, ao incesto e à guerra civil. Miðgarðsormr, a serpente do mundo, virá se debatendo do oceano, arrastando as marés e inundando o mundo. O lobo, o gigante Fenrir, quebrará suas correntes invisíveis... os céus se abrirão, e, Surt, o gigante do fogo, queimará as pontes para destruir os deuses. Odin cavalgará pelos portões de Valhalla para lutar com o lobo, pela última vez. Tor matará a serpente, mais morrerá do seu veneno. Surt espalhará o fogo sobre a terra. E por fim, Fenrir engolirá o sol.

Com base na apresentação acima da cena e do diálogo que a envolve, é possível afirmar que o diálogo de Ragnar com o sacerdote evidencia um estranhamento mútuo, possibilitando uma leitura sobre as diferenças culturais entre os povos por eles representados, em que o sacerdote professa a um único deus (o que é estranho para os demais ali presentes), e Ragnar, os muitos deuses de sua crença. Vale destacar que tal estranhamento residia, também, em um histórico de convivência: Athelstan foi um dos monges cristãos sobrevivente do ataque ao mosteiro, na Nortúmbria, Inglaterra, numa incursão realizada por Ragnar, em busca de pilhar tesouros. E assim como outros padres, feito prisioneiro, seria vendido como escravo. O monge passou a habitar a casa de Ragnar juntamente com sua família, onde, nesse convívio, ouviu relatos sobre aqueles povos de cultura e religião tão diferentes da sua. A partir daí, demonstrou interesse em saber, especificamente, sobre o Ragnarök e o seu significado, pois escutava essa história por muitas vezes sem que ninguém lhe elucidasse o que poderia representar. Nisso, Ragnar pareceu não querer acreditar que alguém pudesse ser tão ignorante quanto Athelstan a ponto de nunca ter ouvido falar a respeito do que representaria o Ragnarök, posto que ele

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mesmo, Ragnar, era descendente direto de Odin. Observando o desenvolvimento da ação, a descrição da narrativa pelo vidente apresenta quatro sinais, os quais esmiuçaremos, a saber: “o terrível inverno, a serpente do mundo —Miðgarðsormr — o lobo Fenrir e o gigante do fogo Surt”, diretamente ligados ao desencadeamento da catástrofe final, o Ragnarök. Dessa maneira, de forma mais genérica, a destruição do cosmos e a morte de alguns deuses, apresentada na construção dessa série, encontram-se associadas à soltura da serpente de Midgard e do lobo Fenrir, e do gigante do fogo Surt. Esses mesmos eventos são citados nos textos dos poemas Völuspá e Vafþrúðinismál, da Edda Poética e no Gylfaginning, 51, da Edda em Prosa, ambas do século XIII. O primeiro desses sinais, a que se refere esse fragmento, é relativo à descrição de invernos rigorosos e consecutivos que perdurariam por três anos, bem como a descrição da ausência de luz (de sol) ao reportar-se aos “verões de sol completamente negro”. Ressalta-se que “as pessoas perderão toda a esperança e se renderão à ganância, ao incesto e à guerra civil”. Apesar do poema Völuspá não fazer referência direta ao grande inverno, a estrofe 45 anuncia que precederiam, a esse evento, “Eras de machados, de espadas, de ventos e de lobos”. De modo específico, podemos inferir que a “Era de ventos” prenuncia as baixas temperaturas e as tempestades desencadeadas nos invernos por eles provocadas. Ainda nesse sentido, o poema Vafþrúðinismál (estrofe 26) menciona um diálogo em que Odín (Gagnrad) questiona ao gigante Vafþrúðnir sobre a origem do inverno. O gigante (estrofe 27) revela que o pai do inverno é Vindsval, o vento frio. O poema afirma também que, no fim do céu, vive o gigante Hrésvelg (estrofe 37) com a aparência de uma águia, e que os ventos

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que sopram por sobre todos os homens vêm de suas asas. Além disso, é relatado que ocorreria um tempo de horrores, descrito no poema Völuspá (estrofe 45) com contendas entre irmãos, provocando lutas e mortes, em que os parentes entrariam em discórdias, atos incestuosos e adultérios. O poema Vafþrúðinismál (estrofe 44) anuncia, como primeiro sinal do Ragnarök, o “grande inverno”, não se referindo por quanto tempo perduraria. A Edda em Prosa (1984, 125), no Gylfaginning, também menciona um terrível inverno, o Fimbulvetr, com duração de três anos, que antecederia o momento final dos deuses. Em sequência, no diálogo apresentado, observamos o segundo sinal, que corresponde à descrição da terrível criatura Midgardsormen, a serpente do mundo que viria do oceano, “arrastando as marés e inundando o mundo”. A respeito dessa passagem, o Völuspá descreve à fúria de gigante, em que Jormungand, a serpente de Midgard ou a Serpente do Mundo, mexe-se no oceano, trazendo dilúvio e maremoto (estrofe 50). No manuscrito, a profetisa adverte que essa serpente, o cinto do mundo (estrofe 55), abre sua boca acima do céu. Para além, o poema Vafþrúðinismál (estrofe 51) faz referência à luta travada por Tor com Jormungand. O terceiro sinal versa sobre o lobo Fenrir, que “quebrará suas correntes invisíveis...”. O relato trata da consequência que estaria por vir quando o lobo se libertasse. O Völuspá, igualmente, faz referência a Fenrir que rompe com as correntes, soltando-se (estrofes 47, 49 e 54). Odin seria devorado pelo lobo Fenrir (estrofe 53) e, posteriormente, vingado por seu filho Vidar (estrofe 55). O Vafþrúðinismál (estrofe 53) traz relato também semelhante. O quarto sinal aborda que “Os céus se abrirão, e, Surt, o gigante do fogo, queimará as pontes para destruir os deuses”. No tocante a esse trecho, o Völuspá

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(estrofe 47) alude sobre o parente de Surt, o fogo, como aquele que logo devoraria o cosmos. Descreve ainda que, da direção oeste (estrofe 51), virão pelo mar, de barco, os filhos de Múspel, o mundo do fogo, com Loki ao leme; e, do sul (estrofe 52), desponta Surt trazendo o fogo. Já no Vafþrúðinismál há breves referências (estrofes 50 e 51) aos deuses que sobreviveriam a Surt. Retomando a fala do vidente, no diálogo, “Odin cavalgará pelos portões de Valhalla para lutar com o lobo pela última vez”, o Völuspá (estrofe 53) menciona esse evento como a “segunda dor de Frigga”, em que Odin será devorado pelo Lobo Fenrir, porém Vidar cravará no peito de Fenrir a sua espada, vingando a morte de Odin. A “primeira dor de Frigga” se reporta a morte de seu filho, o deus Balder, pelo irmão Hoder que, enganado por Loki, atira-lhe um visco em forma de flecha (estrofes 31, 32 e 33). O Vafþrúðinismál (estrofe 53) comunica, apenas, que Odin será devorado por Fenrir e vingado por Vidar. Ao fazer referência à passagem do diálogo, “Tor matará a serpente, mais morrerá do seu veneno,” o poema Völuspá (estrofe 55) afirma que Tor, possuído de raiva, principia uma luta com a terrível serpente. Logo após a façanha de matá-la, deu nove passos, caindo morto (estrofe 56). Em suma, a morte de outros deuses é anunciada, a saber: Odin (estrofe 53), Balder (estrofes 54) e o fim dos deuses de um modo geral (estrofes 47 e 55). No Vafþrúðinismál, há apenas uma breve referência à morte de Tor (estrofe 51). A partir dessas considerações, é possível afirmar que a narrativa chega ao seu ápice anunciando o fim do cosmos em que “Surt espalhará fogo sobre a terra”. O Völuspá (estrofe 52) descreve que, do encontro entre o fogo e o vento, “o céu racha-se”, dando início a uma guerra em Midgard; depois, o sol desaparece, a terra submerge nas águas, as estrelas caem do firmamento e o

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fogo se eleva, atingindo o céu (estrofe 57). O Vafþrúðinismál faz referência (estrofes 50 e 51) aos deuses Vidar e Vali (filhos de Odin) e Modi e Magni (filhos de Tor) que sobreviveriam quando o fogo de Surt apagasse. A conclusão desse mito, relatado pelo vidente, anuncia que quando o fim dos deuses tiver acontecido, conforme detalhado acima, o lobo Fenrir irá devorar o sol. Essa passagem está descrita tanto no Völuspá, quanto no Vafþrúðinismál. No primeiro, a profetisa narra sobre a “Era de lobos”, em que Fenrir, Skol e Hati, seriam responsáveis pela fúria cósmica (estrofe 45). O nascimento dos lobos, filhos de Fenrir, que devorarão Sól (Sol), Skol, e Mani (lua), Hati, é citado nesse poema (estrofe 40), bem como que o céu ficaria tingido de sangue quando o lobo Hati devorasse Mani (estrofe 41). No Völuspá, apesar de a lua ser posta em maior evidência que o sol, há destaque ao sol (negro) que voltaria a brilhar no verão. É pertinente dizer que Fenrir, filho de Loki e Angrboda, serão responsáveis pela morte de Odin (estrofe 53). Depois, Vídar, filho de Odin, vingará a morte de seu pai (estrofe 55). No Vafþrúðinismál (estrofe 46), Odin indaga ao gigante Vafþrúðinir de “onde surgirá um sol, quando Fenrir engolir Sól?”. Logo, assim como foi visto no trecho do seriado, o Vafþrúðinismál também denomina o lobo que tragará o sol de Fénrir. De acordo com a tradução de Luiz Lerate, em nota de rodapé, o lobo Skol é tratado, nessa estrofe, pelo seu nome genérico Fenrir. Assim sendo, fica esclarecido que, de fato, o lobo Skol, que consumirá Sól, trata-se de um filho de Fenrir. Antes de ser devorada, essa teria uma filha que iria substituí-la (estrofe 47). Além disso, o casal de humanos, Lif e Liftrásir, protegidos sob as raízes de Yggdrasil, daria origem a outras gerações, assim, povoando o mundo (estrofe 45). Odin fala ao ouvido de Balder no seu leito de morte (estrofe 54). Esta é a hora final dos deuses (estrofe 55).

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A mitologia nórdica é marcada pela narrativa de Ragnarök, “consumação dos destinos dos poderes supremos, ou ainda, ragnarökkr, crepúsculo dos poderes supremos” (LANGER, 2012, p. 3). Esse texto profético é citado na Edda Maior ou Poética e na Edda Menor ou em Prosa, ambas do século XIII, provavelmente transmitido de modo oral no mundo pré-cristão, séculos VIII a XI, e, posteriormente, compilado. É pertinente lembrar, segundo Langer (2012), que já havia, nos séculos VIII e IX, representações visuais sobre a mitologia nórdica, as quais, em sua maioria, reportavam-se a figura de Odín, mas, apesar disso não foram encontradas imagens pré-cristãs a respeito do tema do Ragnarök. Esclarece Davidson (2004) que a narrativa de Ragnarök se refere a eventos futuros em que sinais seguidos de desastres na natureza se pronunciariam, havendo de ocorrer até a submersão do mundo nas águas, anunciando o fim de todas as coisas e a fatalidade reservada a alguns deuses que lutariam contra os monstros, na batalha final, em que ambos pereceriam. Sublinha, ainda, que os filhos dos deuses subsistiriam, repovoando o cosmos. Assim sendo, aconteceria uma desintegração cósmica do universo para que, em seguida, surgisse um novo mundo. As forças dos astros e dos fenômenos que os acompanhavam constituam-se em elementos que provocariam a instabilidade do cosmos e a sua destruição. Para a referida autora, a destruição do mundo e a liberação dos monstros faziam parte do pensamento pré-cristãos. Nesse sentido, baseado nas generalizações de Langer (2013), tal mito relata que ocorreria uma fúria cósmica, provocada pelos lobos filhos de Fenrir, Skol e Hati. Em seguida, o gigante Surt espalharia fogo por todo o firmamento. E ainda, antes mesmo que ocorresse o enfrentamento entre deuses e monstros, no campo de Vigrid, a abóbada celeste seria consumida pelo fogo.

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À luz de Bernárdez (2010), o fim do mundo nórdico, o mito de Ragnarök, não concebe nenhum juízo final, separando os maus dos bons para que os mesmos possam receber os seus castigos. Assim, desencadeou a batalha final que se deu entre as forças da ordem, as divindades Ases e Vanes; os espíritos naturais e os guerreiros do Valhalla; Einhejar e as forças do caos; os gigantes do gelo, do exército dos mortos de Hel, da deusa do inferno, de Loki e dos lobos. Diante de todo o caos ali estabelecido, era-se entendida a impossibilidade de se vencer o confronto, evitando que o freixo Yggdrasill fosse atingido pelas forças que o destruíria. Observamos, assim, que a narrativa evidencia este fato dos deuses não poderem salvar-se a si mesmos e ao cosmos, resignando-se a um destino que denota um acontecimento esperado e natural. Para a regeneração do cosmos, haveria de se passar por uma destruição total, livrando-se de todo o caos, para que só então ocorresse a renovação do cosmos. Desse modo, não haveria outra possibilidade de restaurá-lo senão pelo seu fim e da morte de alguns deuses, estabelecendo, portanto, a vida desse universo escandinavo. Somente a alguns filhos dos deuses e a um casal de humanos a vida foi permitida. Assim, o Ragnarök, a grande batalha final, se deu através de um confronto entre as forças das divindades Ases, Vanes, os espíritos naturais, e dos guerreiros do Valhalla, Einherjar e as forças dos gigantes do gelo, do exército dos mortos de Hel, da deusa do inferno, de Loki e dos lobos. A partir de todo detalhamento do mito, além do entendimento sobre a importância e magnitude desse evento como fonte a respeito da concepção apocalíptica nórdica, é perceptível que o objeto de nossa análise — o sexto episódio “Burial of the Dead”, da 1ª temporada dessa série dramatúrgica (descrita no início das apreciações) — reservou um trecho relativamente curto

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para a apresentação do mito de Ragnarök, detendo-se apenas a fazer citações dos sinais que prenunciariam o fim dos tempos, o que, ao nosso parecer, constou-se incompleto e pouco explorado em seus aspectos narrativos. Embora a série tenha sido classificada como um drama histórico, ao mesmo tempo em que se apresentam elementos ficcionais — referentes à imprecisão do ano e da localização geográfica em que se passa a história — deixa a desejar, pois o recorte espaço-temporal em que se insere a religiosidade nórdica pré-cristã se reflete, essencialmente, no objeto de nossa análise. Destaca-se, ainda, que os mitos de Balder e de Loki não se fazem presentes no desenvolvimento dessa narrativa, o que se torna um problema, uma vez que é fundamental o fato de que o deus Balder, juntamente com seu irmão Hoder, repovoariam o cosmos, evidenciando a importância desse mito, sendo referido nos poemas Völuspá e Vafþrúðinismál. Loki, que faz parte da dinâmica desse texto, não foi sequer mencionado, seja como pai do lobo Fenrir, que irá devorar Odin, ou da serpente Jormungand, que com o seu veneno atingiria Tor, mortalmente, mesmo visto como aquele que comandará o exército que lutará contra os deuses, citado no Völuspá. Apesar do propósito dessa série televisiva ser retratar a cultura guerreira nórdica, no fragmento em estudo, a batalha que se daria no campo de Vigrid, entre Surt e os deuses — de que trata o poema Vafþrúðinismál — não foi relatada. Além disso, não se descreve sobre a renovação do cosmos após o Ragnarök, menos ainda de que linhagem seriam os deuses que iriam sobreviver à catástrofe, repovoando o mundo. Por fim, cabe frisar, seguindo nossa lógica de apreciação, que em relação ao cenário e aos efeitos de sonoplastia utilizados nesse fragmento, não se estabelece uma contribuição com a linguagem que constituiu a sequência da

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narrativa que descreve a respeito dos sinais, o que, claramente, poderiam ter enriquecido o próprio texto, reproduzindo mais que uma citação desses eventos, precipuamente, aludindo o significado do fim do mundo para essa cultura. Da mesma forma, as falas/texto dos atores que fizeram parte dessa plateia não conseguiram repassar a perplexidade sugerida pelo momento do anúncio da destruição do mundo, restringindo-se a olhares mútuos apenas. Diante da expectativa da continuidade desse seriado, visto à relevância dessa tônica, defendemos que um evento a respeito da concepção apocalíptica da crença nórdica pré-cristã sobre o fim do cosmos e de alguns deuses mereceria um maior aprofundamento dessa discussão, com vias a melhor compreensão e caracterização no que se refere à sua descrição textual.

Angela Albuquerque de Oliveira é mestranda em Ciências das Religiões pela UFPB e membro do NEVE. E-mail: [email protected]

Referências:

ANÔNIMO. Edda Mayor. Tradução e notas de Luis Lerate. Madrid: Alianza Editorial, 1984. BERNARDEZ, Henrique. Los Mitos Germânicos. Madrid: Alianza Editorial, 2010.

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DAVIDSON, Hilda Roderick Ellis. Deuses e mitos do Norte da Europa: uma mitologia é o comentário de uma era ou uma civilização específica sobre os mistérios da existência e da mente humanas. Tradução de Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2004. LANGER, Johnni. A morte de Odin? As representações do Ragnarök na arte das Ilhas Britânicas (séc. X). In: Medievalista 11, 2012. ________. Os cometas na Era Viking. In: Notícias Asgardianas, n. 4, março-maio de 2013. STURLUSON, Snorri. Edda Menor. Tradução e notas de Luis Lerate. Madrid: Alianza Editorial, 1984.

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História e ficção em Vikings - François Dontaine

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HISTÓRIA E FICÇÃO EM VIKINGS François Dontaine (Tradução de André de Oliveira)

“I especially had to take liberties with ‘Vikings’ because no one knows or sure what happened in the Dark Ages. Very little was written then.” “We wanted to show the real world and culture o the Vikings from their own eyes.” Michael Hirst

Se eu não tivesse lido essas duas frases em entrevistas, não acho que teria arrumado o tempo para escrever este artigo. Segundo Michael Hirst, não se poderia esperar uma série séria, ou que tentaria ser como tal. Teria sido melhor abster-se de qualquer entrevista. Em um lado temos o canal History Channel que é especializado nessas programações ditas “históricas”, com mais ou menos seriedade, e no outro Michael Hirst que é conhecido pelas suas séries aproximadamente históricas (“Os Tudors”, “Os Bórgias”), e não seria seu consultor histórico (e produtor associado) Justin Pollard (“Piratas do Caribes: A fonte da Juventude”, “Alice no País das Maravilhas” de Tim Burton, “Os Tudors”) que levantaria a qualidade. O trailer é apenas os créditos da série, então não tivemos escolha a não ser esperar o lançamento para ver se os nossos medos eram justificáveis. Desde o primeiro episódio, o tom é dado e a proporção da discussão sobre a primeira temporada só fica pior. Com base em alguns textos, como o Gesta Danorum de Saxo Grammaticus, ou a Saga de Ragnar Calças-peludas, a história começa, coincidentemente, em 793 e acompanha a história de Ragnar Calças-peludas e sua família. Atenção, qualquer semelhança com pessoas ou situações existentes

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ou que viriam a existir é coincidência. Na verdade, com a exceção do jogo de corte de Ragnar e Aslaug, não existem quaisquer outras semelhanças. Apenas algumas descrições dos textos foram adaptadas com mais ou menos seriedade, com o fim de servir de fio condutor à construção da história (sacrifícios, prática funerária, etc.). Com uma verba de 40 milhões de dólares americanos para nove episódios da primeira temporada e com as técnicas atuais, temos o direito de pedir mais no nível qualitativo. Se o cenário é muito bem escrito, a parte material é repleta de erros grosseiros. Utilizar-se de vestimentas histórica e arqueologicamente compatíveis não custa mais caro do que foi apresentado, e eles também não são obrigados a usar os mesmos materiais, uma vez que apenas o visual importa para eles. E o mesmo é válido para o resto, pois os erros mais visíveis não ajudam em nada à trama. Para o cenário, as pessoas que visitaram o Kattegat sueco e em Uppsala será surpreendido, o exemplo mais gritante é o templo de Uppsala, que é encontrado em uma montanha. Deve ser dito que, por razões fiscais, as cenas exteriores (70% da série) foram filmadas na ilha Esmeralda, enquanto as cenas internas foram realizadas em um estúdio. Apenas algumas cenas foram filmadas na paisagem do oeste da Noruega. Pode-se dizer que não passa de cinema, e que suas influências sobre os telespectadores é ínfima. No entanto, eles transmitem ideias estereotipadas sobre os vikings, que têm um impacto direto sobre o espectador. Desde o lançamento do primeiro episódio, uma nova onda de interesses chegou em fóruns especializados na reconstituição e evocação do período viking e em outras redes sociais. Infelizmente, a maioria deles leva a série como uma referência histórica. Ao disseminar esse tipo de produção e entrevistas do criador da série, podem impor novos estereótipos que alimentam o mito viking. Isso é lamentável! O cenário é baseado em uma figura semi-lendária, os autores

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da série deixaram a porta aberta a todas as liberdades, alegando a credibilidade histórica e arqueológica. Embora a série contenha muitos erros, o espectador ainda tem o mesmo prazer com a visão. Os fãs de séries pseudo-históricas vão se deixar levar por um roteiro eficaz e bem trabalhado, enquanto aqueles mais exigentes se divertiram dissecando os anacronismos e outras aproximações. Em vista um relatório da série, pensei em escrever um artigo com a lista de erros da série. Mas, como na escrita, a atividade se mostrou difícil e parecia não acabar. Não querendo infligir nos leitores desta coluna muitas páginas para ler, eu decidi militar a uma amostra. Para a sinopse, o autor se inspirou no personagem semi-lendário de Ragnar Calças-peludas. Se nos mantivermos à primeira temporada, o autor colocou sua influência no ciclo nórdico orbitando no relato desse personagem feito por Saxo Grammaticus na Gesta Danorum. Pelo menos o suficiente para dizer em que fontes ele é baseado. A série começa em 793 e conta a história de Ragnar Lodbrók, guerreiro e pescador, casado com Lagertha e pai de dois filhos, Björn e Gyda. Ele é igualmente um vassalo de Jarl Haraldson. De acordo com as fontes escritas, que são mais próximas ao mito do que a verdade histórica, Ragnarr Lodbrók foi o filho do rei dinamarquês Sigurdr Hringr. Sendo este último o filho de Ingialld Illråde, é, portanto, da famosa dinastia real dos Ynglingar, de ascendência divina. Entretanto, de acordo com Saxo Grammaticus, ele não foi rei, pois é sueco e não dinamarquês. Sobre sua ascendência, a série mantém o fato de ele descender de Odin, e o Jarl Haraldson não acreditar nele. Ainda de acordo com a Gesta Danorum, sua primeira esposa foi Lagertha, a mesma que matou o rei Siward, o avô de Ragnar. Em contraposição, Lagertha não teria um filho chamado Björn, mas um chamado

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Fridlevus, segundo os textos. No entando, Björn Járnsida seria filho de Ragnar com sua união com Thóra Borgarhjörtr. Somente Saxo Grammaticus faz menção a Lagertha. Nos outros textos que são dedicados a ele, sua primeira esposa foi Thóra Borgarhjörtr. Ao final da primeira temporada, Ragnar tornou-se Jarl, encontrou Aslaug e se apaixona, apesar de ser casado com Lagertha. Será o epônimo da saga. A descrição da reunião é quase idêntica ao texto — feito raro na série. Nós finalmente descobrimos que Ragnar tem um irmão chamado Rollo… Isso nos deixa imaginando o cenário possível para a próxima temporada. No que diz respeito a assuntos de ordem material, a série toca o fundo do poço. Pode-se entender que o script toma certas liberdades com o mito, a credibilidade e a cultura material (roupas, casas e os locais) da Era Viking que poderia ter sido minimamente respeitada. Os cenários, assim como as casas, fazendas ou salões não se parecem com nada dos dados arqueológicos. Não há nem uma casa longa e os interiores são nem um pouco similares. A esse respeito, o templo de Uppsala é apresentado como uma apresentação grosseira de uma stavkirke. Quem dirá as vestimentas? As cores são maçantes, as sessões são dignas das melhores palavras. Até mesmo os ricos tem vestimentas semelhantes às dos pobres. A parte da vestimenta está muito longe da realidade. As roupas de guerra são do mesmo nível, com a sua cota de malha com cortes mediocremente realizados. Menção especial para a “bússola” escandinava da série. Fiquei agradavelmente surpreso ao descobrir que a explicação sobre a sua utilização foi consistente. No entanto, eles podem ter ganho ao ignorar a pedra do sol que não é atestada até o século XIII. As tatuagens que proliferam ao gosto dos personagens na série apresenta um outro assunto de controvérsia sobre os vikings. Exceto por uma vaga descrição de Ibn Fadlan, não existe nem uma evidência arqueológica ou histórica dessa prática

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no norte antigo. A configuração geográfica é supostamente a região do Kattegat, ou a área que se estende a partir de hoje de Jutland à província sueca de Halland. Um ponto problemático para a filmagem: essa região não possui zonas montanhosas. Nem os personagens deveriam atravessar uma montanha para chegar em Uppsala. Sobre animais, Frédéric Hanocque confirmou que as raças equinas usadas durante as filmagens são incorretas. É o mesmo para as cobras no poço do rei Ella que são Boas e Pythons. As ovelhas não são da raça correta, e o mesmo para os gansos. As encenações com o sacrifício de cabras em Uppsala deveriam ter pelos longos e grandes chifres. Os suínos da Era Vikings também estão incorretos, sendo que tinham pelos compridos como javalis. E o Irish Wolfhound somente chegaria na Escandinávia após suas viagens ao oeste. A análise espiritual é menos crítica do que se poderia pensar. Algumas partes são muito interessantes e até surpreendentes no contexto da série. No templo de Uppsala, o escravo cristão Athelstan é surpreendido com a visão de animais e pergunta o que eles são. Ragnar explica que eles são usados em um quadro de sacrifício e há nove de cada tipo (cordeiro, porco, cabra e humano). Essa parte, embora sujeita à controvérsia por anos, é consistente com as descrições de vários autores como Adão de Bremem, Saxo Grammaticus e Snorri Sturluson. A cena do sacrifício humano é apresentada como uma interpretação livre, mesmo se a suspensão do corpo para as árvores se reflete nos textos e na tapeçaria de Oseberg. Os detalhes legais de ordem jurídica são cumpridos. Na série, durante a segunda incursão na Inglaterra, Lagertha mata o homem de confiança enviado pelo Jarl — homem de confiança que é igualmente um irmão bastardo do Jarl. Ela se opôs a uma tentativa de estupro de uma mulher local, e ele se virou para

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ela, tentando fazê-la sofrer o mesmo destino. Mas ela o matou. Entretanto, quando o Jarl perguntou onde está o seu meio-irmão, Ragnar explica o que ocorreu e é acusado de assassinato. Conforme a lei de Vestrogothie, uma das peças mais antigas da legislação que temos a nossa disposição para a Suécia, os casos de homicídio voluntário e involuntário são altamente regulamentados e previu-se múltiplos cenários. O julgamento na série é bem longe de apresentar a cultura processual do Norte antigo. Na verdade, basta ler qualquer saga para perceber. A lei de Vestrogothie estipula que “se uma mulher matar qualquer um, deve-se buscar seus parentes mais próximos; eles devem pagar a multa ou fugir para salvar a paz”. As notas de Ludovic Beauchet falam um pouco mais: “A mulher é, do ponto de vista penal, considerada menor. A mulher não tem nem uma responsabilidade pessoal e a reparação do delito é, por consequência, responsabilidade de seu responsável civil”. Finalmente, no duelo judicial (hómlganga). Essa prática aparece em numerosas sagas islandesas, o mais conhecido caso é narrado na saga de Kormak. Se os três escudos apareceram na tela, o resto é, como a série, muito longe da descrição dos textos. Texto original em francês escrito por François Dontaine e publicado no boletim Valland, n. 6, 2013. Disponível em: . Tradução de André de Oliveira (PPGH-UFMT/NEVE).

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HISTÓRIA E CULTURA ESCANDINAVA MEDIEVAL NA TV E NA UNIVERSIDADE: O PROJETO DE EXTENSÃO “CICLO DE CINEMA SÉRIE VIKINGS” DA UFSM Semíramis Corsi Silva Luana da Silva de Souza

Introdução

Desde o século XVIII e XIX têm sido muito presentes as representações dos povos escandinavos medievais na literatura e no mundo das artes em geral (LANGER, 2009, p. 47-57). No século XX essas representações aumentaram, sendo os vikings, como os referidos povos passaram a ser chamados a partir do século XIX, personagens de histórias em quadrinhos e de inúmeras produções cinematográficas. No entanto, o estudo dos vikings no Brasil ainda é algo alijado dos currículos da maioria de cursos superiores de História, ainda que os esforços tenham aumentado nesse sentido, crescendo o número de pesquisadores na área e tendo mesmo um congresso nacional que busca reuni-los anualmente, o Colóquio de Estudos Vikings e Escandinavos (CEVE). Mas, mesmo com estes esforços, a História Medieval que se ensina em nosso país continua sendo, na maioria dos cursos, a História do Ocidente Medieval, e quando se trabalha povos não europeus, é dada atenção, em especial, aos árabes. Ainda assim, o árabe aparece na História Medieval por conta da expansão islâmica e das Cruzadas, ou seja, por seu contato com a Europa ocidental medieval. Porém, diante das transformações que a historiografia vem passando nas últimas décadas; com as críticas e reflexões dentro da História Cultural, quando

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o tradicional conceito antropológico de cultura como mundo concreto e delimitado de crenças e práticas passa a ser criticado com base na afirmação de que as culturas são locais de conflitos e integrações (BURKE, 2004); vemos o despertar do interesse por outras histórias e outros povos que não os tradicionalmente estudados pela historiografia e presentes nos tradicionais currículos de História. Assim, outros povos medievais, como os escandinavos, têm chamado muito a atenção dos historiadores mais atentos a esses debates. Toda essa discussão historiográfica é fruto de seu próprio contexto, afinal, como acreditamos, toda história é história contemporânea de certa forma. Neste sentido, o processo de globalização que vivemos e as contestações e desmantelamentos das tradicionais afirmações identitárias estão levando a historiografia a revisar seus objetos, conceitos e teorias. O mesmo processo cultural que transforma a historiografia, por sua vez, também desperta a curiosidade e o fascínio do público em geral por outras culturas menos exploradas ou exploradas de maneira estereotipada nas artes e mídias em geral. Diante disso, os estudantes que estão chegando nos cursos superiores de História estão cada vez mais interessados nos povos chamados por tanto tempo, de forma pejorativa, de “bárbaros”, entre eles os nórdicos da Era Viking. Tal percepção trata-se de uma observação das autoras deste artigo, uma delas professora de cursos superiores de História há dez anos e outra estudante de graduação de História em vésperas de concluir o curso. Portanto, são duas gerações diferentes de historiadoras percebendo o mesmo processo: a vontade em se compreender melhor culturas que interagiram com as que estudamos já tradicionalmente, como o Império Romano (como no caso dos celtas, germanos, partos e persas, por exemplo), o Império Carolíngio (como no caso dos escandinavos e árabes, por exemplo) e também o moderno Império

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Português (como a importância dos africanos e indígenas na formação cultural do Brasil, por exemplo). Isso não significa, de maneira alguma, ignorar culturas e histórias tradicionalmente inclusas nos currículos dos cursos superiores de História, significa revisar seus conteúdos e transmissões, percebendo as interações culturais tão típicas do desenvolvimento histórico humano. Frente à mencionada curiosidade dos estudantes de História com relação a “outras histórias”, foi montado a partir de 2014, pelos próprios alunos e alunas, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), um projeto de extensão para trabalhar e debater a série televisiva Vikings (History Channel) e temas históricos sobre a cultura nórdica medieval. O objetivo deste artigo é relatar e refletir sobre a montagem desse projeto, seu desenvolvimento e os principais resultados obtidos.

O projeto Ciclo de Cinema Série Vikings da UFSM

Em 2014 um grupo de estudantes de História da UFSM, como já mencionado, empolgado com a Série Vikings se reuniu com a proposta de criação do Ciclo de Cinema Série Vikings no âmbito do curso e do Departamento de História. A priori, como os mesmos não possuíam um professor especialista para as cadeiras de História Antiga e Medieval, tais estudantes receberam apoio do então chefe de departamento, Prof. Dr. Carlos Armani. Tal fato, possivelmente, foi mais um motivo que fortificou para que neste ano fosse aberto um concurso para a carreira de História Antiga e Medieval no mesmo departamento. O que mostraria, sem dúvidas, mais um argumento em favor da importância do trabalho, uma vez que a existência de diferentes especialistas em um curso de História é algo essencial. A existência

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de profissionais especialistas em Antiguidade e Medievo nas graduações em História, por exemplo, possibilita, como bem observou Ana Teresa Marques Gonçalves e Gilvan Ventura da Silva (2008), a ampliação do olhar para o outro, distante temporalmente e espacialmente, o que, consequentemente, amplia a própria noção de identidade e respeito às diferenças. Diante disso, em 2015 foi nomeada, após aprovação em concurso público, como professora do Departamento de História da UFSM, uma das autoras desse artigo, Profa. Semíramis, especialista em História Antiga, assumindo as cadeiras de Antiguidade e Idade Média. A esta professora, os organizadores do primeiro ciclo de 2014 se dirigiram pedindo que continuasse o projeto como coordenadora em 2015. O objetivo do projeto, desde o primeiro ciclo, foi levantar discussões sobre a cultura nórdica medieval, a história dos vikings e a maneira como estão presentes até hoje em nossa cultura contemporânea, especialmente através dos meios de cultura de massas. Foi pensado, com isso, poder discutir uma concepção ilustrativa a respeito deste povo por meio da série em diálogo com obras historiográficas e com a própria documentação e, desta forma, conseguir construir o conhecimento histórico. O ciclo de 2014 (1ª temporada da série) obteve um grande e inesperado público, houve participação não só de alunos do curso de História, mas também de Filosofia, Ciências Sociais, Artes Visuais, Comunicação, Letras, Engenharias e outros cursos, além de alunos de outras universidades e pessoas da comunidade não acadêmica. Primeiramente, foi realizada a exibição de capítulos da série e, logo após, os debates. Foi debatida a adaptação dos personagens, suas origens e se eram literários ou históricos. Nesse caso, podemos citar como exemplo o personagem principal, Ragnar Lodbrok, que

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aparece nas sagas, poemas antigos e no livro Gesta Danorum, história sobre as tradições e os feitos dos heróis dinamarqueses, escrita por volta do século XIIXIII pelo historiador dinamarquês Saxo Grammaticus. Segundo os estudiosos, não há comprovação sobre a existência histórica do herói Ragnar. Os demais personagens

em

destaque

também

foram

estudados

e

apresentados.

Posteriormente, foram mostrados aspectos sobre a tecnologia militar e naval utilizadas pelos nórdicos. A respeito da tecnologia náutica, foi ilustrado como seria a cadeia operatória da construção de diferentes barcos, algo de extrema importância para os nórdicos expansionistas. Sobre o assunto tratamos do personagem Floki, que é o responsável por criar um novo protótipo de barco que permitiu que os vikings do seriado desbravassem o mar aberto. Aconteceram também apresentações de comunicações sobre religião e mitologia nórdica, sociedade e questões de gênero. Para finalizar, encerramos com a discussão sobre a expansão marítima e territorial dos nórdicos da Era Viking. Em 2015 dois novos ciclos foram organizados, o primeiro (2ª temporada da série) no final de julho e início de agosto e o segundo (3ª temporada da série) no mês de novembro. Com a inserção de uma coordenadora participante de eventos e grupos de pesquisas sobre Antiguidade e Idade Média foi observada a necessidade de se estabelecer contato com especialistas brasileiros na temática a fim de aprofundar os debates. Assim, foi convidado o Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE) e realizada a conferência virtual “O imaginário dos Vikings no cinema”, chegando a ter mais de cem participantes presentes para assistir a mesma. As comunicações do segundo ciclo versaram sobre os contatos entre anglo-saxões e escandinavos na Grã-Bretanha medieval, funerais vikings, as valquírias e a representação de gênero, dragões na cultura viking, os estereótipos vikings no ensino de História Medieval, berserkir e ulfhednar, a

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apropriação da imagem viking pelo nacional socialismo alemão e as interpretações iconográficas do monumento pétreo Hammar I. Obtivemos um grande público e o sucesso foi repetido. A maioria dos temas das comunicações estava em diálogo com a temporada exibida. No terceiro ciclo foi aberto com a conferência virtual da Profa. Ma. Luciana de Campos (UFPB/NEVE), também especialista em estudos nórdicos medievais, intitulada “A mulher nórdica na Era Viking: debates atuais”. Quanto às comunicações, novos alunos se propuseram a realizá-las, aumentando o grupo organizador do projeto. Os temas das comunicações foram sobre o personagem Harbard nos poemas eddicos Hárbarðsljóð e Grimnismál, mitos celestes nórdicos e etnoastronomia, o papel feminino na magia entre os vikings, a cristianização da Escandinávia medieval, a mitologia e o cotidiano no mundo nórdico, a disputa acerca das origens do povo Rus e o cerco viking a Paris. Ainda nesse ciclo foi ministrado pelo Prof. Me. Pablo Dobke (PPGH/UFSM e GEMAM/UFSM) o minicurso “Runemal: onde história e mitologia se confundem...”. O objetivo do minicurso foi elucidar alguns pontos interessantes para a compreensão do alfabeto rúnico conhecido por “FUTHARC”. Ressaltamos que metodologicamente alguns elementos importantes da relação entre produções cinematográficas/televisivas e História foram sempre discutidos entre a coordenadora e os organizadores para que fossem levantados durante os debates. Diante disso, apresentaremos alguns elementos dessa relação que não deixamos de pensar.

Cinema, História e a série Vikings do History Channel

Um

dos

grandes

atrativos

de

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trabalhar

obras

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cinematográficas/televisivas como a série Vikings para o ensino de História é que as mesmas atraem muito a atenção dos estudantes não apenas pelo tema em sim, mas pela linguagem que lhes é familiar. Porém, é preciso perceber como o grande público atualmente está propenso a consumir obras como essa de maneira pasteurizada e padronizada. Abordá-las em uma universidade com estudantes que serão, em sua maioria, professores, possibilita ao aluno compreender sua linguagem comercial e refletir sobre a mesma (BICEGO, 2004). Portanto, mais uma possibilidade nos é colocada em questão, a de pensar o cinema enquanto arte e enquanto indústria cultural e posicionar os participantes em aspectos da própria realidade em que vivem. Porém, ao trabalhar obras cinematográficas ou séries televisivas que retratam contextos históricos, como Vikings, visando ao ensino e às reflexões sobre determinado contexto histórico, a primeira coisa que devemos ter em mente é apresentar aos alunos que o filme/série não deve ser visto enquanto imagem da sociedade que retrata, mas da sociedade que o produz. Nesse sentido, o filme deve ser tomado como resultado da época que o produziu, de seus problemas, anseios e estratégias de ação conscientes ou não. Os elementos históricos que o filme/série ambientam podem e devem ser tratados com apoio de obras de historiadores e documentos, mas o contexto de produção da obra e seus valores é fundamental de ser trabalhado. Também estamos de acordo com Robert Rosenstone (2010), para quem devemos deixar com que os filmes históricos sejam filmes, esperando dele o que se espera de um filme e não de uma obra historiográfica. Assim, se um filme histórico apresenta uma “falha” em relação ao que transmite sobre o passado, enquanto historiadores e professores de história devemos analisá-la dentro da produção do filme em si, olhando-o como representação.

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Partindo desses pontos metodológicos, cumpre apresentar elementos de produção e de críticas à série Vikings que apareceram durante o projeto. Foram muitos os pontos em debates, iremos apresentar apenas os destacados. Comecemos fazendo uma breve apresentação da série. Vikings é um projeto realizado em conjunto entre Irlanda e Canadá, escrito por Michael Hirst para o canal de televisão History Channel. A série, em três temporadas, estreou no dia 3 de março de 2013. Atualmente, o contrato de gravação foi renovado para a quarta temporada. Com filmagens na Irlanda, Vikings conta a história de Ragnar Lodbrok, rei semi-lendário da Suécia e Dinamarca. No seriado, Ragnar (Travis Fimmel) é inicialmente um jovem fazendeiro casado com Lagertha (Katheryn Winnick), com quem tem dois filhos. Ragnar participa com o seu irmão Rollo (Clive Standen) e um grupo de homens de viagens de exploração e pilhagem no Báltico oriental, mas seu desejo é ir para o oeste, contrariando as ordens do earl Haraldson (Gabriel Byrne). Ragnar, então, pede o auxílio ao amigo Floki (Gustaf Skarsgård), que realize a construção de um barco forte e rápido. Ragnar e seu grupo conseguem chegar à Inglaterra, onde saqueiam o monastério de Lindisfarne, e retornam a sua terra de Kattegat cheios de tesouros e com escravos, sendo um destes o monge cristão Athelstan (George Blagden), que se torna com o tempo o melhor amigo de Ragnar. Athelstan se torna um viking, passa a se vestir, a guerrear e a seguir hábitos diversos dos nórdicos com que vive, embora nunca consiga renunciar suas crenças, convivendo com a fé em Cristo e também nos deuses nórdicos. O tema foi explorado nos debates do ciclo, pois tratar da diversidade, das identidades culturais, dos contatos entre culturas, negociações e interpenetrações é algo extremamente presente nas mais atuais discussões e obras de Ciências Humanas. Athelstan também é um

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modelo de como as culturas e indivíduos podem manter múltiplas identidades, algumas vezes em conflito e/ou interpenetrações. Além disso, é interessante perceber como o protagonista, o viking Ragnar, aceita bem o amigo cristão e todos seus conflitos, o que faz com que muitos expectadores da série o associem com uma pessoa moderna que respeita e convive com o diferente, realidade bem atual, portanto. Esse elemento da elaboração de Ragnar faz com que o público contemporâneo se aproxime ainda mais do personagem. A série retrata também a questão da mulher guerreira, algo que chamou bastante a atenção do público e que talvez tenha sido o tema mais comentado. Há mais de uma mulher guerreira na série, mas a mais importante é Lagertha, também registrada pelo historiador Saxo Grammaticus em Gesta Danorum. Na série, Lagherta é uma skjaldmö (donzela do escudo) e, embora não seja referida com esse termo na documentação medieval, ela é uma guerreira na obra de Saxo Grammaticus. Portanto, a série não cria nada de novo que não esteve presente no imaginário medieval, mas que possivelmente recebeu tanta atenção das mulheres atuais por ser muito independente e corajosa, uma espécie de símbolo das lutas feministas contemporâneas. Lagherta, também a exemplo de tantas mulheres atuais, se separa de Ragnar após uma traição. Destacamos que não existem evidências arqueológicas da existência de mulheres guerreiras na Era Viking, embora haja sepulturas de mulheres junto a armas e armaduras, o que parece estar ligado à afirmação de um status social elevado da sepultada (OLIVEIRA, 2012). Predominantemente, as mulheres nórdicas medievais tinham a função de cuidar dos afazeres domésticos. Interessante também foi perceber como personagens femininas mais tradicionais, como a segunda esposa de Ragnar, Aslaug (Alyssa Sutherland), não foram bem aceitas pelo público da série, em especial pelas mulheres, que talvez tenham visto nela um

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papel de submissão e função feminina para a maternidade que muitas vezes tem sido negado em nossos dias. Por fim, outro tema que apareceu nos debates em destaque foi o predomínio da representação dos vikings como guerreiros, o que é uma imagem muito presente não apenas na série, mas em outras tradições sobre tais povos. Pensamos esse aspecto enquanto lutas de representações a fim de criar imagens ora positivas, ora negativas, conforme os anseios dos representantes. Deixando de lado a existência de agricultores, criadores de animais, sacerdotes, etc., também existentes e fundamentais nessas sociedades.

Considerações finais

Por fim, concluímos que os resultados do projeto foram positivos tanto do ponto de vista da construção do conhecimento histórico, como do papel da extensão na universidade pública, que é proporcionar a expansão do conhecimento além dos limites da sala de aula e não apenas aos acadêmicos. Também com este projeto foi possível estruturar e consolidar o Grupo de Estudos sobre o Mundo Antigo e Medieval da UFSM (GEMAM/UFSM), sendo que a maior parte dos alunos envolvidos no projeto passou a fazer parte do GEMAM como estudante ou colaborador, e o público dos ciclos pode conhecer o trabalho do grupo e participar de seus eventos.

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Semíramis Corsi Silva é professora da UFSM e membro do GEMAM. E-mail: [email protected] Luana da Silva de Souza é graduanda em História pela UFSM e membro do GEMAM. E-mail: [email protected]

Referências:

BÍCEGO, M. História a 24 quadros - A História, o Cinema e seu uso em sala de aula. São Sebastião do Paraíso: Editora e Gráfica São Luiz, 2004. BURKE, P. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. LANGER, J. Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Editora da UNB. 2009. OLIVEIRA, Ricardo W. M. de. Sutiã de Aço: a representação da mulher guerreira no filme Como treinar seu dragão. In: II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba, 2012. v. 1. p. 351-358. Disponível em: . Acesso em: 13 de janeiro de 2016. ROSENSTONE, R. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010. SILVA, G. V.; GONÇALVES, A. T. M. Algumas reflexões sobre os conteúdos de História Antiga nos livros didáticos brasileiros. In: História & Ensino, v. 7, Londrina, 2001, p. 123-142. Disponível em:

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OS VIKINGS INVADEM A TV: ALGUMAS ABORDAGENS SOBRE HISTÓRIA E FICÇÃO Marlon Ângelo Maltauro

A série de televisão Vikings surgiu no canal The History Channel em 2013 tem causado uma sucessão de polêmicas tanto no meio acadêmico quanto no público leigo. Devido ao seu enorme sucesso, sites da internet tem fervilhado de especulações a respeito da veracidade do contexto histórico da série. A cultura nórdica na Era Viking sempre foi um tema muito utilizado pela indústria midiática, no entanto quase todas as produções constantemente mostravam-na com imprecisões históricas. Devido à amplitude de temas que podem ser discutidos a respeito da série, nossa proposta não é trabalhar um tema em específico, pois vários foram analisados por outros pesquisadores ao longo deste boletim; o que pretendemos é abordar de forma genérica alguns dos aspectos mais notórios, bem como indicar algumas leituras de cunho acadêmico em português a respeitos dos tópicos. A primeira cena da série retrata uma batalha onde Ragnar e seu irmão Rollo derrotam um grupo de guerreiros no leste europeu. Nesse momento o protagonista tem devaneios no qual vê o deus Odin juntamente com um grupo de valquírias escolhendo os combatentes mortos na contenda. A representação de Odin condiz muito com as fontes literárias, as quais o descrevem como um velho caolho, com um chapéu de abas longas enterrado na cabeça, vestindo um manto azul ou preto com os corvos Hugin e Munin sobre os ombros, portando a lança Gungnir. As principais fontes escritas sobre o deus estão contidas na Edda Poética, Edda em Prosa, Ynglynga Saga, Volsunga Saga e Gesta Danorum.

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Ainda referente a essa primeira cena podemos ver as valquírias levando as almas dos guerreiros mortos, sendo outro aspecto bem acertado pelo produtor Michael Hirst, já que a imagem das valquírias aparecem em forma de espectros, tendo em vista que suas representações são controversas até mesmo nas fontes escritas, sendo vistas ora como donzelas guerreiras, ora como entidades monstruosas. No entanto, se em um primeiro momento a ideia de apresentá-las como espectros é bem acertada, em episódios posteriores apresenta a segunda esposa de Ragnar, Aslaug, como uma valquíria aos moldes de uma donzela, mas que não é uma guerreira. As fontes literárias que descrevem as valquírias muitas vezes são as mesmas que relatam sobre Odin. Ainda no tocante a religiosidade, a primeira temporada relata a visita ao templo de Uppsala. A produção se baseia na obra Gesta Hammaburgensis de Adão de Bremem; seguindo o relato da obra, a série demonstra o templo adornado com ouro, as estátuas dos deuses Thor, Odin e Frey, demonstra também os sacrifícios tanto de animais como de humanos, os enforcamentos realizados nas árvores ao entorno do templo, os ritos orgiásticos destinados a Frey e os rituais religiosos feitos pelos sacerdotes. Dentre os problemas apresentados no episódio, inicialmente está sobre a própria veracidade da existência do templo em Uppsala tal como descrito por Bremem, já que muitos pesquisadores não são unânimes em afirmar que ele realmente tenha existido, sendo que o próprio cronista não foi testemunha ocular dos fatos que descreveu. Os rituais apresentados no episódio, de maneira geral, são estereotipados, alguns lembrando em muito com missas e ritos cristãos. Uma das maiores imprecisões da série certamente são os próprios sacerdotes, tanto do templo quanto o residente na vila; os de Uppsala lembram muito com alguns monges cristãos, todos com a cabeça raspada e vestidos com

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roupas semelhantes a batinas, já o sacerdote da vila é apresentado como um ser monstruoso, sendo visivelmente uma cópia dos oráculos apresentados no filme 300 de Esparta. O consenso entre pesquisadores é de que não havia uma classe profissional entre os nórdicos, sendo os cultos domésticos realizados pelo chefe da família e os públicos por líderes locais, já as práticas divinatórias e magia eram praticadas tanto por homens e mulheres versados nestas artes e descritos em grande quantidade nas sagas. O Gesta Hammaburgensis de Adão de Bremem não possui tradução integral para o português, o trecho da obra em que descreve o templo de Uppsala foi traduzida por Rodrigo Mourão Marttie — este pesquisador também fez a análise do referido templo (2015, p. 487-491). A respeito dos templos e edifícios no período viking, dispomos da análise de Munir Lufte Ayoub (2015, p. 491-494). Tais estudos estão contidos no já citado “Dicionário de Mitologia Nórdica”. A respeito das práticas divinatórias e do uso da magia, dispomos do livro “Na trilha dos Vikings” de Johnni Langer. O último aspecto ligado à religiosidade que pontuaremos se refere aos rituais de sacrifício presentes na série. Rituais de sacrifício tanto de animais como humanos são bem atestados nas fontes escritas e arqueológicas. Os sacrifícios apresentados no templo de Uppsala e o feito por Lagertha, embora estereotipados, apresentam uma certa consistência, analisadas em artigo inicial neste mesmo boletim. Talvez uma das maiores incongruências da série é o fato de o monge Athelstan não ter sido sacrificado (primeira temporada), e um homem livre tendo tomado seu lugar. Em uma sociedade estratificada como era a nórdica na Era Viking, escravos ou criminosos eram as vítimas preferenciais para

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imolações e, embora qualquer pessoa pudesse se oferecer para ser sacrificada, dificilmente a vida de um escravo cristão seria substituída pela de um guerreiro. A obra Gesta Danorum de Saxo Grammaticus não possui tradução para a língua portuguesa. Referente à religiosidade e às formas de sacrifício, Johnni Langer desenvolve no primeiro capítulo (2009, p. 17; 44) de seu livro intitulado “Deuses, Monstros, Heróis”, um excelente estudo sobre essa questão.

Discrepâncias ligadas às incursões

Michael Hirst inicia a série abordando o episódio que historicamente deu início à Era Viking, o ataque ao mosteiro de Lindisfarne ocorrido em 793 d.C. na costa nordeste da Inglaterra. O ataque foi muito bem reproduzido, demonstrando uma investida rápida, objetivando saquear as relíquias do mosteiro. Também foi bem acertado a irrelevância dos vikings a respeito dos objetos considerados sagrados pela cristandade, vendo-os apenas como coisas lucrativas. Se por um lado o produtor descreve com certa propriedade o saque ao mosteiro, por outro demonstra uma incongruência ao creditar a Ragnar a descoberta de novas terras ao Oeste, já que historiadores são unânimes ao afirmar que os nórdicos tinham contato com o Oeste europeu antes mesmo da Era Viking. Ao contrário da descoberta da Islândia, Groelândia e Vinland (América), cujos descobrimentos são creditados a determinados personagens, o relato da chegada à Inglaterra não descreve quem era o comandante da expedição, no entanto é fato que não foi Ragnar Loðbrók. Ragnar Loðbrók é considerado um personagem semi-lendário, que

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supostamente viveu no século IX, sendo líder da expedição viking que saqueou a cidade de Paris em 845 d.C., vindo a morrer em 865 d. C. As aventuras de Ragnar foram registradas na Ragnars Saga Loðbrókar e Ragnarssona þátt. Ele também é mencionado na Heinskringla saga e na Gesta Danorum, não havendo nenhuma destas obras em português. Uma breve observação no tocante às datas em que ocorreram o ataque à Lindisfarne em relação à invasão à Paris, é suficiente para percebermos a incongruência da série, já que existe um lapso de setenta anos entre uma data e outra. No tocante a isso ainda temos a conquista da Normandia, realizada por Rollo em 911 d.C., que embora ainda não tenha sido mencionada em nenhum episódio, possivelmente será tema da quarta temporada. Relacionando o ataque à Lindisfarne com a conquista da Normandia, o lapso é ainda maior, sendo de cento e dezoito anos. De maneira geral fica claro que o roteirista não tem nenhuma preocupação com a cronologia dos acontecimentos históricos. Seu escopo é elencar os acontecimentos mais audazes e impressionantes da história e da mitologia da Era Viking, objetivando incrementar o enredo da série e atribuindo-os a Ragnar. O objetivo do roteirista fica bem evidenciado no episódio em que se desenrola o cerco de Paris. Depois de algumas tentativas frustradas, Ragnar finge estar gravemente ferido, pede para ser batizado; caso morra, para ser enterrado na igreja. Após seu suposto falecimento é levado ao local onde sai de seu caixão conseguindo obter êxito. O engodo apresentado na realidade foi supostamente feito por Hasting e não Ragnar, segundo o historiador Johannes Brøndsted. Em seu livro “Os Vikings”, Hasting chega à cidade italiana de Luna acreditando ter chegado em Roma; lá seus companheiros contam que ele havia morrido como cristão e reivindicam o sepultamento na igreja da cidade. Durante o velório Hasting levanta do caixão,

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mata o bispo e junto com seus companheiros saqueia a cidade (BRØNDSTED, sd, p. 151). Outros dois temas que têm suscitado discussões por parte dos historiadores, referem-se às vestimentas usadas nas incursões e o cristal utilizado como bússola solar para navegação. No que concerne ao vestuário bélico, o que chama a atenção nas batalhas da série é o fato de eles praticamente não utilizarem nenhuma proteção. Embora haja o debate acadêmico sobre as vestimentas, todos são unânimes em afirmar que era comum o uso de cotas de malha e capacetes cônicos. Se por um lado não é mostrado nenhum equipamento de proteção, ao menos os produtores da série não repetiram o erro de tantos outros filmes referente aos famosos elmos com chifres. Dentre as obras que versão sobre a vestimenta, dispomos do trabalho traduzido para o português de James Graham-Campbell, chamado “Os Vikings”, o qual possui um artigo sobre as guerras (2006, p. 38-57) e outro sobre o vestuário (2006, p. 67). Quanto ao elmo com chifre e os falsos estereótipos, o capítulo “A origem dos estereótipos sobre os vikings” (2009, p. 133-143) do livro “Deuses, Monstros, Heróis” de Langer é bem elucidativo. As pedras solares também têm sido tema de inúmeras discussões entre pesquisadores que não descartam a hipótese de elas terem sido utilizadas pelos vikings. Por enquanto as suposições mais aceitas são as de que a orientação era feita pela posição do sol e das estrelas, utilizando gnômons solares para marcar a latitude. Em dias nublados as hipóteses são as de que os vikings se guiavam por pássaros migratórios, ou, como descreve Ian Atkison em seu livro “Los barcos vikingos” — obra sem tradução —, havia a possibilidade de corvos serem levados nas embarcações — caso os marinheiros se perdessem, ao soltar as aves, se houvesse terra, elas voariam em sua direção (1990, p. 6).

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As representações das mulheres e crianças

A primeira temporada demonstra alguns aspectos corretos sobre as mulheres, onde o enfoque recai sobre Lagertha, representando a população que vivia nas fazendas como pessoas livres e Siggy, demonstrando a aristocracia. Em um primeiro momento o papel de Lagertha se assemelha com os indícios históricos. Quando Ragnar sai para suas empreitadas, ela fica responsável pela tutela da fazenda. A sociedade nórdica era muito estratificada e com papéis de gênero bem definidos, sendo responsabilidade das mulheres os afazeres domésticos bem como o cuidar das crianças (MALTAURO, 2005, p. 34). Grande parte desses afazeres são demonstrados na série. Uma cena que chama a atenção é quando Ragnar e seu filho deixam a fazenda e esta é invadida por dois homens. Segue então uma luta entre eles e Lagertha, que os expulsa demonstrando certa destreza marcial. Pesquisadores acreditam que as mulheres nórdicas poderiam receber um certa instrução marcial, já que as incursões e expedições faziam com que o homens ficassem longos períodos fora de casa, sendo essencial que elas soubessem se defender. Na ausência do homem, a mulher ficava encarregada da autoridade doméstica; o símbolo dessa autoridade era representado pelo molho de chaves que ela carregava preso ao cinto (LANGER, 2009, p. 175). Inicialmente a retratação de Siggy também é similar aos dados históricos. Sendo uma mulher da nobreza, ela se dedica aos afazeres domésticos próprios dessa casta, que envolvia servir bebidas, tear e bordar; outras atividades domésticas eram realizadas por servas. O comportamento de Siggy condiz com as fontes históricas, sendo uma mulher que se submete à autoridade do marido, atuando como conselheira, agindo de modo a persuadi-lo e às vezes manipulá-

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lo. Na maioria das cenas em que os guerreiros estão reunidos no salão, Siggy faz sua voz ser ouvida por meio de seu esposo de forma a não sobrepor sua autoridade. Se de início o papel das mulheres é bem representado, o mesmo não ocorre no decorrer do seriado, que se envereda pelo fantástico e fantasia. Referente às representações cinematográficas relacionadas às mulheres nórdicas medievais, dispomos do estudo de Josyleia Almeida no estudo “Ficção e História: aspectos e representações das mulheres escandinavas nas apropriações cinematográficas” (2012, p. 355-389). No decorrer do seriado Lagertha se divorcia de Ragnar, se casa novamente e passa a ser jarl (conde) de uma região. Tais fatos realmente poderiam acontecer entre os nórdicos, onde diversos historiadores atestam que as mulheres poderiam pedir divórcio, ter propriedades e bens legais, bem como havia a possibilidade de se tornarem poderosas com a herança de seus maridos. No entanto, o fato de ela se tornar guerreira e participar de incursões é algo não comprovado nas sociedades da Era Viking. Como salientamos anteriormente, as relações de gênero eram bem definidas nessa época e região. A jornada de Siggy também comete muitos equívocos, do ponto de vista histórico. Após Ragnar matar seu esposo, o jarl Haraldson, e assumir o poder, as hipóteses mais compatíveis com o destino de Siggy na série seriam ela ter sido assassinada junto com seu marido, pedir para que fosse sacrificada para acompanhá-lo na morte, se tornar escrava ou ser exilada. Porém, ela se torna aldeã livre e vira amante de Rollo. No decorrer da trama Siggy tem uma série de relações adúlteras, buscando vingança ou a volta ao poder. Diversos historiadores descrevem que embora pudessem haver adultério entre os vikings, eles eram raríssimos por parte das mulheres, já que a punição para isso

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era uma morte humilhante. Outra incongruência relacionada às mulheres aparece com Porunn, que surge como uma escrava, ganha a liberdade, se torna guerreira e casa com Bjorn. Em uma sociedade estratificada como a nórdica, escravos pertenciam à mais baixa camada social. Obviamente que escravos poderiam ganhar a liberdade, porém virar guerreira e se casar com um membro da nobreza é totalmente descabido; o mais provável era que uma escrava se tornasse concubina de algum nobre. A personalidade de Porunn é de um gênio indomável, não aceita a possibilidade de não se tornar guerreira, desobedece e insulta seu marido, representando uma transgressora das regras sociais por excelência, algo que seria inaceitável entre os escandinavos da Alta Idade Média. Com relação às crianças, suas representações são de modo geral bem corretas. Embora as fontes citem as crianças de modo muito sucinto, tornando a reconstituição delas algo penoso para os pesquisadores, é pertinente deduzir que ajudavam nos afazeres domésticos, que a taxa de mortalidade infantil era alta e que elas eram submetidas à autoridade do pai. Nas classes mais distintas da sociedade, a educação dos meninos envolvia um conjunto de habilidades físicas e intelectuais que incluíam técnicas de luta, equitação e natação, bem como aprender poesia, runas e um jogo de tabuleiro similar ao xadrez. Parte do exposto acima é demonstrado na série. Dentre as cenas envolvendo crianças na série, dois eventos que mais chamam a atenção são a passagem de Bjorn para a vida adulta e a recusa de Ragnar pelo filho recém nascido que apresenta deficiência. Tanto o rito de passagem para a vida adulta quanto a idade em que ela ocorria são temas de debates entre historiadores. Muitos acreditam que não há

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nada que ateste um rito de passagem, embora não descartem a possibilidade de ter ocorrido algum tipo de provação, o que torna o episódio impreciso do ponto de vista histórico. Quanto à idade para o menino ser considerado homem, ela poderia variar dependendo do status social, mas no geral ocorria entre os quatorze ou quinze anos, embora não possa ser descartada que ela poderia ocorrer mais precocemente, o que concede uma certa veracidade ao episódio. A respeito do abandono do filho recém nascido por parte de Ragnar, ao que tudo indica, esse tipo de situação ocorria entre os nórdicos e era uma decisão que dependia exclusivamente do pai, sendo que as crianças eram vistas como filhos ou filhas do pai, nunca da mãe, sendo responsabilidade dele dar os nomes, como também era sua prerrogativa rechaçar a criança recém nascida, que poderia ser abandonada em algum local ficando à mercê dos animais selvagens.

Considerações Finais

A série “Vikings”, como toda obra produzida pela indústria cultural, não pode ser vista como um instrumento de formação educacional, não assume fins didático-pedagógicos,

ela

utiliza

a

História

como

um

produto

de

entretenimento. Embora a série demonstre certos aspectos condizentes com os dados históricos, fica claro que ela produz e reproduz um conjunto de pseudo informações, projetando valores, crenças, preceitos, modos de agir, pensar e valorizar dentro de uma visão de mundo atual e de forma massificadora. Uma enorme quantidade de sites na internet tem postado entrevistas com o produtor Michael Hirst, nas quais ele é enfático ao dizer que se a série fosse um relato histórico, atingiria apenas centenas de pessoas, como produto

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da cultura pop ela atinge milhares. Ele também relata que muitas cenas foram produzidas erroneamente do ponto de vista histórico de propósito, justamente para abranger um público maior, o que a torna mais atraente para as mais variadas faixas etárias. Embora a série apresente uma pseudo representação sobre o passado, fazendo com que o público leigo acredite ser uma representação realista da história, ela também está suscitando cada vez mais informações sobre a sociedade nórdica, basta uma breve observação no número de acessos de blogs sobre o assunto para confirmarmos a alegação. Se por um lado as imprecisões históricas apresentadas transmitem uma idéia errônea aos expectadores sobre os vikings, por outro a popularização nunca foi tão abrangente, e apesar de boa parte da comunidade acadêmica criticar de maneira incisiva a série, ela está abrindo espaço para que mais pessoas se interessem pelo tema, dando a oportunidade para futuros estudos sérios e elucidativos para o público.

Marlon Ângelo Maltauro é especialista em História pela FAFI-UV e membro do NEVE. E-mail: [email protected]

Referências:

ATKISON, Ian. Los barcos vikingos. Madrid: Ediciones Akal, 1990.

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AYOUB, Munir Lutfe. Templos e Edifícios Religiosos. In: LANGER, Johnni (org.) Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015. BRØNDSTED, Johannes. Os Vikings. São Paulo: Hermus, s.d. DAVIDSON, Hilda R. Ellis. Deuses e Mitos do Norte da Europa. São Paulo: Madras, 2004. GRAHAM-CAMPBELL, James. Os vikings. Barcelona: Folio, 2006. LANGER, Johnni. Deuses, Monstros, Heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Unb, 2009. _____. Odin. In: LANGER, Johnni (org.) Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015. MALTAURO, Marlon Â. A Representação da Mulher Viking na Volsunga Saga. In: Revista Brathair 5(1) 2005. Disponível em: . MARTTIE, Rodrigo Mourão. Adão de Bremem. In: LANGER, Johnni (org.) Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015. _____. Templo de Uppsala. In: LANGER, Johnni (org.) Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015. PAGE, Raymond Ian. Mitos nórdicos. São Paulo: Centauro, 1999.

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Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos

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LÃ, SEDAS E ADORNOS: A INDUMENTÁRIA FEMININA NA SÉRIE VIKINGS Luciana de Campos

A série televisiva “Vikings” apresentou ao público uma série de personagens femininas que imediatamente cativou o público seja masculino, seja feminino. Personagens marcantes: valentes, destemidas, não hesitam em expressar o que sentem ou pensam seja verbalmente, seja empunhando uma espada. As mulheres apresentadas na série refletem muito dos desejos e anseios das jovens mulheres — também dos homens! — contemporâneas espectadoras da série. Desde a primeira temporada as personagens femininas ganharam um grande espaço na narrativa televisiva e são peças fundamentais na trama. Essas mulheres descritas na série, além de suas características psicológicas singulares, também são marcantes pelos trajes que utilizam nas mais variadas situações, que muitas vezes não estão em consonância seja com o ambiente, seja com a situação que está se desenrolando na trama, e muito menos com a indumentária feminina da Era Viking. Esta que atualmente recebe especial atenção de arqueólogas, historiadoras entre outros pesquisadores principalmente na Suécia onde o estudo e a reconstituição de trajes e acessórios femininos e masculinos da Era Viking têm sido largamente estudados. Na primeira temporada uma personagem que chama muito a atenção talvez seja Siggy, interpretada pela atriz canadense Jessalyn Sarah Gilsig e que representa o papel da esposa do Jarl Haraldson, interpretado pelo ator Gabriel Byrne. Naquele momento da série, Siggy é a mulher mais poderosa, rica e importante da comunidade, status esse conferido pelo seu casamento com o jarl. A personagem comporta-se como uma típica “esposa aristocrática” por

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excelência: seus modos de agir e de se comportar, suas vestes e joias são as mais luxuosas e extravagantes, pois esses são os distintivos sociais

mais

significativos para uma mulher daquela posição e refletem tanto o poder do esposo como o seu próprio advindo do matrimônio. Portanto, ostentar roupas e joias caras e, consequentemente, únicas na comunidade vai além da vaidade: é um demonstrativo de todo o poder político, administrativo e também militar do jarl que está refletido nas vestes e joias de sua esposa. Em uma cena de banquete na primeira temporada da série, no momento em que o Jarl recebe a visita de Ragnar, a personagem Siggy recebe alguns closes que mostram com detalhes a roupa que veste para aquela ocasião. Todos os homens e as demais mulheres que estão presentes no salão naquela noite estão trajados com roupas pesadas e quentes usadas durante o inverno, pois a cena se passa justamente nessa estação. Mas contrariando a regra, Siggy não utiliza uma indumentária apropriada aos rigores do frio escandinavo. Ela traja um fino vestido que parece ser confeccionado em seda com um longo jabot (neckwear) dourado, confeccionado aparentemente com fios metálicos — que dão a impressão de serem finos fios de ouro tecidos — e alças de metal que lembram uma espécie de colar conhecidos como “afogadeira”, pois está bem rente ao pescoço. O vestido e os acessórios que compõem o visual da personagem reforçam seu status social elevado. O vestido da esposa do jarl é diferente de todos os vestidos que aparecem naquela cena: é o mais chamativo entre todos e foge do padrão comum da indumentária nórdica feminina que era composto pelo côte — uma espécie de túnica confeccionada em linho ou lã penteada bem fina, utilizada somente pelas mulheres mais ricas, pois os tecidos utilizados eram mais elaborados e preparados. As mais pobres também utilizavam com côte mais simples de lã ou linho grosseiro que não recebia nenhuma espécie de

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tratamento ou de tingimento. O surcôte, ou avental, que podia ser colorido, era confeccionado em lã ou linho e preso por broches de metal trabalhado em filigranas dos quais pendia um colar de contas de vidro, metal, ossos, conchas, pedras preciosas e âmbar. Essa vestimenta típica feminina era utilizada por todas as mulheres de todas as idades: o colar e os broches, quanto mais trabalhados fossem, quanto mais raros fossem as contas utilizadas na sua confecção, demonstravam que a sua proprietária era rica, e os tecidos utilizados também eram um distintivo que, além de refletir a riqueza da mulher que o usava, proporcionava conforto e calor suficiente para enfrentar o inverno — diferentemente dos vestidos mais rústicos utilizados pelas mulheres mais pobres, que muitas vezes forneciam pouca proteção e calor. Um vestido de tecido fino e que cobrisse o corpo convenientemente para protegê-lo do frio era inviável, mesmo que esse fosse um grande distintivo social. A indumentária de Siggy chama a atenção não somente pela extravagância dos tecidos e dos acessórios, mas principalmente por estar em discordância do restante do vestuário feminino, colocando dessa forma a sua personagem em evidência. A licença poética dos figurinistas no contexto da série — e apenas nele — é perfeitamente aceitável pois trata-se de uma ficção, e também é preciso levar em conta que uma das intenções da série nesse momento é reforçar a importância política e social da personagem, além de conferir a esta um exotismo que a torna diferente das outras mulheres, o que condiz perfeitamente com o seu status. Ao jarl e à sua família tudo é permitido! Abaixo analisamos duas imagens da personagem Siggy portando o vestido que descrevemos acima. Podemos observar que na primeira imagem a personagem também utiliza uma espécie de adorno na cabeça, fazendo lembrar

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uma coroa que circunda toda a cabeça e, no alto da testa, sobe ao alto, prendendo os cabelos e deixando que as madeixas caiam soltas pelos ombros, conferindo à personagem um adorno exótico a mais e contrariando os adornos capilares costumeiramente utilizados pelas mulheres casadas — que é o caso específico de Siggy —, que eram tranças variadas e muito elaboradas, muitas vezes combinadas com nós e pequenas tiras de couro ou tecido. O uso do véu, ou mesmo lenço, que observamos em reconstituições contemporâneas podem ser uma variação regional, o que necessariamente não explica se a mulher que o usa é solteira ou casada, e, apesar de serem citadas nas sagas islandesas, até o presente momento não foram detectadas pela Arqueologia. Uma outra explicação para o uso desse adorno seria uma possível influência cristã já no final do período viking.

Figura 1: Cena da primeira temporada da série Vikings. Fonte: http://stagedoordish.com/wpcontent

Podemos observar o adorno utilizado na cabeça de Siggy como um acessório que faz às vezes de uma coroa e reforça ainda mais sua posição. As

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alças do vestido são de metal que, além de parecerem desconfortáveis, também não existiam na indumentária feminina nórdica, ainda mais um vestido de alças usado em um local onde a temperatura é muito baixa durante boa parte do ano. Mesmo dentro da casa, com as lareiras acesas, seria muito desconfortável utilizar uma peça assim, mesmo que ela fosse utilizada apenas para demonstrar poder, riqueza e — por que não dizer? — exotismo. Mas não só o vestido era demonstrativo de riqueza e os colares extravagantes que pendiam entre os broches que seguravam os aventais mostravam o quanto a mulher que o usava era rica. As contas de vidro e âmbar eram trabalhadas e quanto mais rica e poderosa fosse a mulher mais contas caras e raras estariam em seu colar. Outro distintivo que certamente a esposa de um jarl ostentaria em seu traje como um acessório de poder seria o molho de chaves dos baús e armários onde se guardavam as provisões, as agulhas dos teares, as lãs para serem tecidas e outros objetos de valor. Quanto maior fosse o molho de chaves que uma mulher carregava, maior seria o seu poder na comunidade. Esse detalhe não é encontrado na roupa de Siggy. A esposa do jarl, mais do que demonstrar o seu poder pela sua indumentária, demonstra um excesso de sensualidade, e naquela cena de banquete ela parece mais preocupada em seduzir com o olhar, com os cabelos soltos e os braços nus do que com as vestes típicas de uma mulher nórdica que na mesma cena são usadas pelas outras mulheres que estão no salão, sejam elas esposas de outros guerreiros, sejam serviçais encarregadas de servirem a comida e a bebida aos comensais. Para reforçar essa imagem de sensualidade e sedução, Siggy segura um pequeno xale brilhante e transparente que envolve os seus braços — essa peça do vestuário também era muito utilizada como um agasalho envolvendo todo o tórax e os braços, e muitas vezes até a cabeça, tanto por mulheres como por homens, para garantir que as

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roupas ficassem secas e protegê-los do frio. Mas aqui o xale ganha uma outra conotação com a personagem: de velar/revelar o corpo como uma peça a mais no jogo de sedução que a esposa do jarl parece querer jogar com os homens e até com o próprio esposo que está presente no salão. Na outra imagem que analisamos, que se encontra abaixo, é possível observar como o contraste entre a indumentária feminina usada por Siggy que remete à sensualidade e leveza e de forma alguma combina com os rigores do inverno nórdico com a do jarl que está ao seu lado. Já o esposo de Siggy, o jarl Haraldson, está totalmente coberto e agasalhado mesmo dentro dos salões onde o ar é aquecido pelas lareiras e fogões e também pela presença das pessoas troando o ambiente quente e abafado. O jarl tem sobre os ombros uma pele negra que parece ser de ovelha, que lhe serve como manto e está preso com dois grandes e bem trabalhados broches de metal, que reforçam o seu poder e riqueza. Ele veste uma túnica grossa e bordada que além de aquecê-lo também pode ser vista como um traje de luxo que alia conforto, beleza e riqueza. Observamos também que o jarl está sentado em uma grande cadeira, e no encosto há uma pele de animal que oferece conforto e calor. Ao contrastarmos as duas personagens, podemos observar que há uma discrepância entre a indumentária masculina e feminina do casal mais poderoso e rico desse momento da série: Siggy usa um vestido leve com adornos metalizados que não eram utilizados na Era Viking — muito menos uma esposa e mãe apareceria em público com os longos cabelos soltos sem aos menos estarem trançados com as tradicionais tranças utilizadas pelas mulheres mais poderosas daquela sociedade, e que já foi tema de pesquisa de nossa parte. O vestido confeccionado com um tecido leve e preso por colares de metal que lembram correntes finas deixando à mostra os braços não é adequado para o clima frio e,

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quando observamos os dois personagens lado a lado, constatamos que estão em dissonância com o ambiente: o jarl está vestido de maneira adequada, e o que difere a sua indumentária dos outros homens presentes no salão são apenas o tecido e os adornos de suas vestes. Os outros homens também estão trajando túnicas, calças e botas para se protegerem do frio e alguns também utilizam mantos presos por broches. O que difere as roupas dos outros homens das do jarl é apenas a quantidade de adereços e bordados. Quando observamos as outras roupas femininas, vemos que a roupa da personagem Siggy usada naquele momento nada mais é do que uma forma de destacar a personagem e torná-la única na cena: a mulher mais poderosa não necessita de preocupação com o clima e nem com o esposo e as outras mulheres: ela goza de liberdade para vestir-se e comportar-se como bem entender — que, via de regra, não estava de forma alguma em consonância com a maneira de viver das mulheres da Era Viking.

Figura 2: Cena da primeira temporada da série Vikings. Fonte: http://stagedoordish.com/wpcontent

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A personagem feminina que ora analisamos é apenas um pequeno exemplo das muitas e variadas licenças poéticas no que diz respeito à indumentária feminina, pois é possível observarmos como diferentes personagens utilizam roupas e acessórios de acordo com a personalidade de suas personagens e não como as mulheres vestiam-se na Era Viking. Observamos que a personagem Porrun enquanto ainda era escrava traja um vestido simples de tecido rústico condizente com a sua posição social. Assim que a personagem conquista a sua liberdade e, consequentemente, desperta o desejo e o amor do personagem Bjorn, ela passa a usar calças, portar armas e abominar os trajes femininos e dá a entender que o uso das calças por uma mulher naquele espaço é uma marca de liberdade e independência. Nesse ponto temos duas questões que merecem atenção. A primeira diz respeito ao cabelo da personagem que, na sua condição de escrava aparece com ele comprido preso por algumas pequenas tranças que se mantêm depois de conquistada a sua liberdade. Como escrava, Porrun teria seus cabelos cortados bem curtos, indicando sua posição social na Escandinávia da Era Viking. Uma forma de distinção social: cabelos longos e trançados de maneira simples ou elaborada era um privilégio das mulheres livres. A segunda questão diz respeito ao uso de calças compridas. Vale ressaltar que na Era Viking o uso de roupas de mulheres por homens ou viceversa era considerado uma falta muito grave, sendo esse um dos motivos para qualquer uma das partes poder solicitar o divórcio e, claro obtê-lo, pois, o uso de calças por mulheres e de vestidos por homens era extremamente mal visto e combatido nas leis islandesas. A Laxdaela saga 35 apresenta uma passagem sobre essa questão do uso de roupa de homens por mulheres e vice-versa: a personagem Aud é acusada de usar calças masculinas e seu marido recorre às

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leis islandesas — que proibiam terminantemente o homem de usar roupas femininas e a mulher roupas masculinas — para assim obter o seu divórcio. Portanto, seria inadmissível uma escrava usar os cabelos longos e trançados, e, depois de livre, usar calças. A personagem em questão salta de uma posição servil para uma posição guerreira abandonando não somente a indumentária e modos servis — ela passa por uma transformação radical e, assim, adota roupas masculinas, um corte de cabelo nada usual tanto para homens como para mulheres, e manuseia a espada com habilidade ímpar. A personagem Porrun personifica muito dos desejos bélicos das jovens mulheres da atualidade que, fascinadas pelo universo da mulher guerreira divulgado pelos jogos de RPG, vídeo-games, filmes e histórias em quadrinhos, passam a perceber a ficção como verdadeira e conferindo às mulheres um poder que foi supostamente perdido. A indumentária feminina principalmente aquelas confeccionadas para algumas personagens da série que possuem algum traço marcial como Porrun ou mesmo Lagertha que usa no inicio da série a tradicional veste feminina: côte, surcôte e colar e, depois passa a usar vestidos com brocados em momentos de festa e calças, botas e cotas de malha quando vai para a batalha para mostrar como ela ocupa dois espaços distintos, o do lar e o da guerra. Essas mudanças nas vidas das personagens que condizem com a sua nova “personalidade” são refletidas nas roupas que vestem pois, mais do que caracterizar as personagens ou uma determinada época a indumentária faz parte não só da composição das personagens mas ela apresenta ao público o que esse deseja ver em suas personagens preferidas, que, especificamente no caso da série Vikings, é encontrar as figuras femininas sempre representadas como mulheres fortes, destemidas e guerreiras sem deixar de serem lindas e sensuais.

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Um olhar minucioso e analítico sobre a indumentária feminina da série Vikings é capaz de detectar muito mais anacronismos do que detectamos neste ensaio, como por exemplo o uso de brocados nos vestidos da personagem Lagertha durante a segunda e terceira temporadas, que começaram a ser empregados tanto em vestes femininas como masculinas a partir do século XIV. Portanto, os vestidos usados pela personagem — aqui não nos atentaremos nem ao corte e nem à modelagem, comuns à indumentária feminina no século XII! — estão temporalmente deslocados da época em que a trama da série é ambientada. A nossa análise sobre a indumentária feminina teve o intuito de levantar e propor questões sobre esse tema pois observamos que atualmente há um interesse crescente sobre indumentária nórdica tanto em festivais como muitos cosplays mas que não se preocupam em uma reconstituição fidedigna semelhante a que se observa na série que possui um compromisso com a ficção e não com a História e portanto nesse contexto toda a licença poética é permitida. Resta-nos não cometermos o equívoco de deixar que essas licenças se transformem em uma suposta realidade do passado.

Luciana de Campos é doutoranda em Letras (PPGL-UFPB) e membro do NEVE. E-mail: [email protected]

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Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos

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Referências:

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Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem

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ONDE ESTÃO OS ARCOS? A ARQUEARIA NA SÉRIE VIKINGS Hiram Alem

O aspecto militar dos povos germânicos e escandinavos no período medieval é frequentemente realçado tanto na historiografia quanto em suas representações midiáticas. Não é incomum vermos em filmes e seriados os guerreiros escandinavos ali representados como ferozes combatentes, portando escudos, machados, espadas ou mesmo lanças. O combatente escandinavo é, portanto, apresentado como um guerreiro de frente de batalha, lutando corpoa-corpo contra seus oponentes. Este ensaio, no entanto, busca contestar, ainda que brevemente, a suposta ideia de uma escassa ou, em alguns casos, inexistente quantidade de arqueiros entre os guerreiros escandinavos. Para tanto, trazemos para nossa análise, a série televisiva Vikings, do canal History, a qual contrastaremos com registros materiais arqueológicos e literários a respeito do uso de arcos e flechas entre os povos nórdicos. Os vikings da série

Antes de iniciarmos a análise, devemos aqui discriminar que a época em que a série nos situa. Vikings inicia-se supostamente por volta de 793, com o ataque ao mosteiro de Lindisfarne e, poucos anos depois, podemos ver o cerco à Paris, que só viria a acontecer após quase um século. Esse cerco, no entanto, aparenta ser uma versão mesclada do saque à Paris de 845 com o cerco de 885, dado que o personagem histórico Rollo viria a nascer apenas no início do século IX, ao passo que na série este já está vivo e, inclusive, é irmão de Ragnar.

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Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem

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Considerado tudo isso, é difícil precisar o cômputo dos anos transcorridos na série, dadas as liberdades tomadas em sua produção. Isso, no entanto, não é o objeto de nosso estudo aqui, nem irá provar-se um empecilho para tanto. Cabe aqui ressaltar que, embora na série o número de arqueiros entre os guerreiros nórdicos seja muitas vezes nulo, o mesmo não pode ser dito dos outros povos, como os anglo-saxões e os francos, que são vistos empregando arcos em combate, para ataque e defesa. No oitavo episódio da terceira temporada, durante o já mencionado cerco, podemos notar alguns poucos arqueiros em embarcação nórdica disparando contra as muralhas de Paris, numa tentativa pouco eficaz de retornar fogo. Em contrapartida, os francos defendendo as muralhas de Paris portam tanto arcos quanto bestas, que utilizam para rechaçar os vikings sitiantes. A figura do guerreiro escandinavo e/ou viking como avesso ou pouco dado à arquearia, no entanto, não é correta. Se por um lado o arco não era a principal ferramenta de combate, sendo machados, espadas e lanças preferidas, tampouco era ela desconhecida ou não utilizada, como veremos a seguir. Para a breve análise aqui proposta, nos utilizaremos tanto da cultura material arqueológica quanto da literatura da época de forma a melhor elucidar o lugar da arquearia e do arqueiro entre os povos escandinavos, face a sua representação midiática contemporânea.

Arqueologia

No que diz respeito aos achados arqueológicos, podemos encontrar na

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região norte da Jutlândia (parte do atual território da Dinamarca), túmulos que datam do fim do período neolítico ao início da Idade do Cobre. Nesses túmulos, podemos observar diversas pontas de flecha enterradas junto com adagas, o que, para Saraw (2007, p.75), indica uma cultura que utiliza o arco para a guerra, mais até do que para a caça, tendo em vista a economia primariamente agrícola destes povos. Ademais, temos ainda os arcos simples (selfbows), isto é, feitos de uma peça única de madeira, achados em charcos nas regiões de Vimose, Nydam e Thorsbjerg, as duas primeiras na Dinamarca e a última na região de SchleswigHolstein no norte Alemanha. Cabe ressaltar que em Nydam, foram encontrados 36 arcos além de centenas de pontas e corpos de flechas. Esses achados datam do período Neolítico, aproximadamente entre os séculos II e IV a.C., e possuem características morfológicas semelhantes aos dos Arcos Longos (Longbow) ingleses, como apontou Clark (1963, p. 86-88). Isto é, em linhas gerais, arcos simples (selfbows) que guardam uma proporção em suas dimensões de aproximadamente 1.1:1 entre profundidade e largura, em relação ao tamanho. Cabe ressaltar aqui a notória a escassez de registros arqueológicos após o período entre o fim do Neolítico e o início da Idade do Bronze, embora ainda seja possível encontrar indícios da presença de flechas nas regiões já mencionadas (idem, p. 84). Todavia, os achados arqueológicos acima mencionados pertencem a uma época muito anterior a daquela abordada pelas séries que aqui comparamos. Destarte, ambas as produções televisivas buscam retratar, aproximadamente, o período de expansão dos povos escandinavos, entendido comumente como a “Era Viking”, por volta do século IX. Não obstante, ainda é possível nos apoiarmos na cultura material para revelar a presença de arcos e flechas nas

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regiões por onde passaram esses povos. Matthew Strickland (2005, p. 55) nos fala do túmulo de um guerreiro nórdico encontrado em Orkney, na Escócia, região de grande riqueza arqueológica para estudos escandinavísticos. No túmulo, estavam enterradas diversas pontas de flecha e, em outro túmulo, um guerreiro aparentemente perfurado por quatro flechas. Strickland (ibidem) aponta ainda que claramente os arcos não eram restritos apenas aos guerreiros de status humilde. Tendo considerado os indícios materiais, passemos para a literatura e as sagas, para melhor compor o quadro e compreender o lugar dessas armas em combate.

Literatura

A literatura escandinava do período medieval mostra-se como um rico repositório de referências a arqueiros, nos revelando um pouco mais sobre seu emprego em combate, seja ele em confrontos entre navios, seja em terra firme. A primeira das obras que aqui trazemos é a Gesta Danorum do clérigo danês Saxo Grammaticus. A obra, escrita no início do século XIII, a pedido do arcebispo Absalon de Lund, de acordo com o próprio Saxo, busca registrar mais de dois mil anos de história dos daneses (HOLMAN, 2003, p. 101). Em sua gesta, Saxo nos conta da batalha de Bravalla, ocorrida por volta do século VIII, na qual ele descreve os homens de Gotland como habilidosos arqueiros, cujas cordas estariam tão firmes nos arcos que suas flechas perfuravam escudos e armaduras (DAVIDSON, 1979, p. 242). Devemos destacar também a presença de um exímio arqueiro de nome Ani (DAVIDSON, 1979, p. 168-9), o qual possui alguns pontos de comparação, com o arqueiro Án, do qual falaremos

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mais abaixo. Esse paralelo, contudo, é terreno fértil para estudos outros que não concernem nosso ensaio no presente momento. Strickland (2005, p. 56) ainda nos traz exemplos de arqueiros em diversas outras sagas nórdicas, como a saga de Njall, cujo autor desconhece-se, em que o personagem Gunall precisa defender sua moradia de atacantes e o faz utilizando uma lança e então um arco. Ademais, temos também mencionada a saga do rei Olaf Trygvasson, escrita pelo islandês Snorri Sturluson e parte da problemática Heimskringla. Nela, a última batalha travada pelo rei Olaf possui grande destaque para o uso do arco em combate naval. Nesta batalha, as forças de Olaf enfrentam guerreiros suecos e daneses, ambos os lados atirando flechas de seus navios. Ressaltamos, no entanto, que ambas as sagas, embora registrem acontecimentos relativos aos séculos X e XI, estas foram escritas tardiamente no século XIII. Poderíamos ainda questionar a confiabilidade dos escritos de Snorri, porém, para o fim de demonstrar a presença e o lugar da arquearia entre os povos escandinavos, os relatos acima nos servem. Todavia, para Strickland (ibidem), “o uso do arco nessa e em outras batalhas navais é confirmado pela poesia mais antiga do décimo e décimo primeiro século, conhecidas como verso skáldico, contido como moscas em âmbar dentro dessas sagas posteriores”. Entre os exemplos dos poemas em períodos anteriores, conforme mencionado acima, está um excerto de seu Sexstefja, do skald islandês Þjóðólfr Arnórsson, tendo este vivido no século XI nas cortes dos reis Magno I e Haroldo III (Harald Hardrada): O valente rei de Uppland retesou seu arco por toda a noite; o senhor fez com que flechas chovessem contra os escudos brancos. As pontas encharcadas de sangue causavam ferimentos sobre os homens com cotas de

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malha, onde as flechas se alojavam nos escudos; o voleio de lanças do dragão [navio] se intensificava. (POOLE, 1991, p. 62-3)

Escrito no século XI e versando sobre a vida de seu rei, Haroldo, o trecho por nós escolhido do Sextefja, nos conta de quando a armada de Hardrada lançou-se ao mar e de sua vitória em batalha contra o rei danês Sveinn. Por último, é necessário mencionarmos, ainda que brevemente, a Áns Saga Bogsveigis, cujo personagem principal, Án, é exímio arqueiro, conseguindo acertar com suas flechas, à distância, um pedaço de carne cozida, em seguida um prato e, por último a empunhadura de uma faca. Destacamos ainda que tanto o arco como as flechas de Án são mágicos, tendo sido feitos por um anão que Án encontrou em uma floresta, quando ainda tinha apenas doze anos de idade (CEOLIN, 2013, p. 44). Embora essa saga retrate acontecimentos que teriam ocorrido, aproximadamente, no século VIII, estima-se que a Saga de Án date do século XIV (HUGHES, 2005, p. 291). Ela faz parte de um conjunto de histórias chamado de Hrafnistumannasögur, isto é, a saga dos povos de Hrafnista, nome antigo da ilha de Ramsta, localizada na Noruega.

Considerações finais

A série, que busca observar o período de expansão marítima nórdica a partir de seu personagem principal, Ragnar, apresenta-se como uma ficção amparada pela história, ainda que não se prenda a esta com muito rigor. Seu destaque é para o protagonista, sua família e corte, os condutores da trama. Portanto, é esperado que no tocante aos combates, a ênfase maior seja dada ao

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combate próximo, corpo-a-corpo, para destacar as capacidades físicas de seus personagens. Mais ainda, é imprescindível considerarmos o fascínio que o guerreiro escandinavo exerce ainda na contemporaneidade, com suas paredes de escudo e a suposta ferocidade que os diferenciava de outros guerreiros na época. Todavia, da mesma forma como não devemos representar o guerreiro nórdico utilizando elmos com chifres ou exércitos inteiros desprovidos de qualquer armadura, quando sabemos que dominavam técnicas metalúrgicas, não podemos deixar de lado uma arma tão ubíqua quanto o arco. Curiosamente, não é raro vermos em filmes, arqueiros atirando flechas flamejantes de forma a atear fogo em barcos carregando o corpo de alguma figura nobre junto com seus pertences. Decerto que os daneses, noruegueses, islandeses e outros povos nórdicos não baseavam suas forças de combate em torno da arquearia como, por exemplo, os ingleses do século XV, é errôneo pensarmos que estes guerreiros não faziam uso de arcos e flechas. Trazemos a presença tanto arqueológica quanto literária desse tipo de arma e guerreiro de forma a também apontar para um possível estereótipo que se perpetua de forma quase invisível, aquele de que o combatente escandinavo não fazia uso de armas outras senão machados, espadas e, quando muito, lanças. A prática da arquearia entre os povos escandinavos é um terreno fértil para o escandinavista que deseje analisar tal fenômeno. Esperamos contribuir para fomentar o debate e motivar a crítica não somente das presenças (anacronismos)

como

também

das

ausências

nas

representações

contemporâneas sobre a Idade Média.

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Hiram Alem é mestrando em História (PPGHC-UFRJ) e membro do NIELIM e GEHM-CEIA. E-mail: [email protected]

Referências: CLARK, J.G.D. Neolithic bows from Somerset, England and the prehistory of archery in north-western Europe. In: Proceedings of the Prehistoric Society. Cambridge, v. 29, 1963. CEOLIN, Martina. Saga di Án l’Arciere - Proposta di traduzione con commento filológico. Veneza: Università Ca' Foscari Venezia, 2013. Disponível em: . Acesso em: 07 de fevereiro de 2016. DAVIDSON, H. E. Saxo Grammaticus: The history of the Danes, Books I-IX. Cambridge: D.S.Brewer, 1979.

HOLMAN, Katherine. Saxo Grammaticus. In: ___. Historical dictionary of the Vikings. Oxford: Scarecrow Press, 2003, p. 101. HUGHES, S. F. Saga of Án Bow-Bender. In: OHLGREN, T. H. (ed.) Medieval outlaws: twelve tales in modern english translation. Indiana: Parlor Press, 2005. POOLE, R. G. Viking poems on war and peace: A study in skaldic narrative. Toronto: University of Toronto Press, 1991.

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SARAUW T. Male symbols or warrior identities? The ‘archery burials’ of the Danish Bell Beaker Culture. In: Journal of Anthropological Archaeology, n. 26, p. 67, 2007. STRICKLAND, M.; HARDY, R. The great warbow: from Hastings to the Mary Rose. Gloucestershire: Sutton Publishing, 2005.

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"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França

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ARTIGOS “ACORDE GROA, ACORDE BOA MULHER”: A PRÁTICA NECROMÂNTICA NA EDDA POÉTICA PELA GRÓGALDR Bárbara Rebecca Baumgartem França

Segundo o Webster's Encyclopedic Unabridged Dictionary of the English Language, necromancia é definida como: suposta arte da adivinhação através da comunicação com os mortos, e uma arte negra. Porém nem sempre foi assim, o contato com os mortos de fato percorreu e pertenceu a épocas e sociedades distintas, assim como afirma Jean-Claude Schmitt (1999, p. 11), no paganismo greco-romano havia o culto dos mortos na cidade ou na gens (grupo de família consanguínea com um antepassado comum). Dessa forma, é também na Antiguidade que surge a etimologia da palavra necromancia, proveniente do grego antigo definido νεκρός (Nekros), como “corpo morto”, e μαντεία (Mantéia), “profecia” ou de “adivinhação”. É no medievo com a ascensão da Igreja que a prática e o conceito da palavra irão sofrer uma modificação, quando se iniciam os relatos de aparecimento de fantasmas, que faziam contatos com os vivos. Por um bom tempo esses escritos autobiográficos foram bem aceitos e até mesmo utilizados para reforçar a liturgia da Igreja. Todavia, dado momento houve uma recusa com relação a essa aproximação, pois as práticas que envolviam os mortos seriam uma forma de manter as crenças do paganismo antigo, no qual, os cultos funerários eram reprovados, domesticados ou ocultados pela Igreja. Dessa forma, a necromancia que antes era a adivinhação pelos mortos, ganha o sentido de nigromancia, uma magia negra e de invocação do diabo. É no século

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XII que a ampla participação das reflexões de Agostinho de Hipona será muito importante, pois passa a defender que era impossível qualquer comunicação entre os vivos e os mortos, defendendo a ideia de um banimento de qualquer culto material dos mortos. (SCHMITT, 1999, p. 11-37). Segundo Santo Agostinho, como dissemos, o corpo morto não merece nenhum “cuidado” (cura), a não ser por razões de conveniências sociais. Em compensação, a alma, o princípio divino que está no homem (animus, spiritus) não morre: apenas “separada” do corpo, a alma, a menos que seja imediatamente salva ou condenada, sofre provas “purgatórias” (ou mesmo, a partir do século XII, ganha o purgatório depois de um julgamento particular) na espera da salvação definitiva. (SCHMITT, 1999, p. 25)

A necromancia já estigmatizada é possível de ser encontrada na bíblia, nas passagens do Livro de Samuel (1 Sm. 28), segundo Schmitt (1999, p. 15) escrita de maneira negativa, onde a necromancia é realizada clandestinamente pela feiticeira de Em Dor a favor do rei Saul, que inclusive havia proibido as práticas mágicas em seu reino. Na passagem, se dirige então a feiticeira, pretendendo saber o que aconteceria com ele no desfecho da batalha contra os filisteus. O procedimento de invocação do morto não é descrito, apenas relata que a feiticeira vê Samuel e o descreve como velho, depois o morto se dirige a Saul e ambos têm uma longa conversa, no qual Samuel anuncia que a morte de Saul seria no dia seguinte. Ao pensarmos o contexto medieval e todas as interpolações que vinculam as crenças e realidade, com relação à necromancia é possível identificar todo um imaginário social imbuído de significados. Parafraseando Bronislaw Baczko (1985), através dos imaginários sociais do medievo, baseada através da crença e regida pela Igreja, essa coletividade designa sua identidade

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que acaba por elaborar uma representação de si mesma, estabelecendo papéis, ou seja, do clero e dos fiéis, que de certa forma acaba por definir suas próprias posições sociais. A igreja, como principal detentora de poder desse período, impôs crenças que fossem comuns a todos, na tentativa de extinguir qualquer prática que mantivesse ou lembrasse as práticas pagãs do medievo. Com o auxílio de pensadores influentes como Santo Agostinho, construiu uma espécie de “código de comportamento” em que essa sociedade se incluiu criando uma espécie de imaginário social, que atuava como força reguladora de sua vida cotidiana. Dessa forma, aos poucos foi se distinguindo de outras sociedades. Assim, qualquer “código de comportamento” que viria a ser contrário as suas normas de conduta passariam a ser estigmatizadas, ou seja, classificadas como forças ímpias e diabólicas. Foi a partir de 1960 que a historiografia contemporânea passou a formar uma nova concepção sobre os nórdicos (LANGER, 2009, p. 13). O conhecimento sobre os povos escandinavos se encontra ainda limitado no Brasil, muitas vezes relacionados a saques, invasões, vinculando a ideia de bárbaros ferozes. Entretanto, devemos entendê-los como famílias que viviam em fazendas e também em sociedade (MUNIR, 2013, p. 20-22). Além disso, por trás dessa sociedade, há todo um complexo de artes, estruturas sociais, concepções mitológicas e religiosas (LANGER, 2009, p. 14). A Escandinávia é composta essencialmente por três países: Noruega, Suécia e Dinamarca, e sob medida de estudo também são incluídos: Islândia, Finlândia e Groelândia, formando os países nórdicos. Inicialmente, os escandinavos eram povos nômades que vivam da caça e da coleta, só iniciaram as atividades agrícolas por volta de 4000 a.c., adjunto a essa herança circula a história oral, na qual, eram contados os mitos do passado, encarregados de funções educativas. Hoje em dia, o contato com as

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reminiscências dessa cultura, é possível através das sagas (histórias sobre heróis, reis, bispos e santos) e as Eddas poéticas ou prosaicas (temas mitológicos, relatos sobre deuses, gigantes e diversas criaturas) (MUNIR, 2013 p. 12-19). Essas fontes escritas passaram a ser produzidas após o século XI quando houve o início do processo de conversão, resultando em documentos provenientes de um imaginário coletivo híbrido, resultado do encontro entre cristianismo e religião pré-cristã, que aos poucos adicionou novos elementos, tendo resultado nas fontes atuais (BURKE, 2003, p. 31). Na sociedade escandinava, a magia se encontra muito presente na vida e no cotidiano. Sob estes conceitos, mesmo que genéricos, Johnni Langer (2005, p. 55-82; 2004, p. 98-102; 2009, p. 68) explicita que um dos termos mais comuns encontrados nas sagas, a magia, é apresentada como fjölkynngi (conhecimento), além disso, as técnicas relacionadas à magia mais referidas são a seiðr (canto) e o galðr (sons mágicos). As praticantes dessas magias também recebiam denominações: no caso das seiðkonas (mulheres praticantes do seiðr), galdrakonas (mulheres praticantes do galdr) e as völvas (profetisas). Além disso, pode-se perceber que em ambas há a existência de um padrão que envolvia sons, canções ou poesias mágicas. As duas principais técnicas estavam vinculadas à manutenção da ordem como: curas, profecias, controle do clima e da natureza, mas também podiam provocar malefícios como: controle, desilusão, assassinato e maldições. Como dito anteriormente, uma das características da Galdr era o controle climático, utilizada também para aprisionar ou desfazer outros encantos e como no caso do poema em questão, utilizada como um artifício de proteção. Através de elementos analisados mais profundamente, a prática da Galdr nas sagas e Eddas trazem um pouco da permanência das tradições religiosas escandinavas,

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mesmo após um período de transformação dada a permanência da religião cristã. Assim, o próprio caráter individual, privado e diversificado contribuiu para a sobrevivência da prática. O Grógaldr, ou o Feitiço de Groa, é o primeiro de dois poemas publicados sob o título de Svipdagsmál, a Balada de Svipdagr. O Grógaldr juntamente com a Fjölsvinnsmál, a segunda parte do poema, foram escritos aproximadamente no século XII. Esse poema éddico, assim como o Völuspá, estão vinculados à prática mágica que envolve os mortos, sob a nossa compreensão, a necromancia. As Eddas podem ser divididas tanto em prosaicas quanto poéticas, muitas consideradas como uma das maiores fontes de estudos sobre a mitologia escandinava. Um dos principais manuscritos da Edda poética é o Codex Regius, descoberto em 1643, totalizando 29 poemas, porém há edições mais modernas que contabilizam 35 a 37 poemas que complementam com outros manuscritos. As temáticas abordadas dentro desses poemas podem variar como contos mitológicos, relatos sobre deuses, gigantes e outras diversas criaturas. Todavia, a Grógaldr é um poema que não se encontra no Codex Regius, ela faz parte de um conjunto, assim como outros manuscritos, encontrados no século XVII (LANGER, 2015, p. 146-147). O poema se inicia com o jovem Svipdagr indo ao monte tumular de sua mãe. Aqui notamos a primeira evidência da relação na sociedade escandinava com os mortos, os montes tumulares. Na Escandinávia haviam dois tipos de enterro: o crematório e inumações, em ambos os casos, o corpo era acompanhado de roupas, alimentos e alguns pertences do cotidiano, pois acreditavam que, depois de morto, a vida continuava no túmulo (LANGER, 2009, p. 45-46). Svipdagr então invoca Groa dos mortos, com o objetivo de auxiliá-lo na conclusão de uma missão, a qual, ele teria que ir em busca de

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Menglöð.

Vaki þú, Gróa,

«Wake up, Groa!

vaki þú, góð kona,

Wake up, good woman!

vek ek þik dauðra dura,

At the gates of death I wake thee!

ef þú þat mant,

if thou rememberest,

at þú þinn mög bæðir

that thou thy son badest

til kumbldysjar koma.

to thy grave-mound to come.»

A necromancia nesse momento se mostra presente como uma prática mágica comum, diferente da demonizada como é concebida na Idade Média cristianizada, mais próxima então da representação antiga, em que traz o culto aos mortos como uma atividade relativamente comum. Além disso, evidencia como a magia se encontrava presente, mesmo na forma de um conto, na vida da sociedade escandinava. A prática mágica da Galdr é evidenciada no despertar da Groa. Svipdagr explica a finalidade de sua invocação e receoso com sua jornada, pede para que Groa cante para ele.

Galdra mér gal,

«Songs you more sing,

þás góðir ro,

which are good.

bjarg þú móðir męgi,

Protect you, mother! thy son.

á vegum allr

Dead on my way

hykk at verða mynak,

I fear to be.

þykkjumk til ungr afi.

I seem too young in years.»

O ato de cantar estaria intimamente ligado à execução da mágica. Não somente a Galdr, mas também a Seidr, utilizavam de sons, canções ou poesias mágicas como uma espécie de fórmulas específicas. Através do canto, Groa

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entoa nove estrofes, dedicadas a levar benefícios para seu filho e malefícios para tudo ou qualquer coisa que pudesse feri-lo ou atrapalhá-lo na jornada. Ao utilizar nove canções entoadas por Groa é possível perceber a referência ao número Odínico (LANGER, 2009, p. 78). Além disso, ao entoar proteção ao filho, Groa realça mais uma vez a particularidade da Galdr, ou seja, a de proporcionar benefícios. Em várias das estrofes, Groa menciona elementos da natureza, como montanhas, rios, ventos, mais uma vez mostrando o domínio sobre o clima, característica proveniente da Galdr, e também das próprias sagas islandesas (LANGER, 2009, p. 74). A título de curiosidade, na segunda parte do poema, intitulada Fjölsvinnsmál, após a longa jornada, o jovem chega em um castelo no topo de uma montanha, guardado por um gigante chamado Fjölsviðr. No poema, se passa um longo jogo de perguntas e respostas entre Svipdag e Fjölsviðr, em que o ponto crucial da trama é o fato de Fjölsviðr insistir para que Svipdag revele seu nome, porém o faz somente no final do poema. Ao revelar seu nome, as portas são abertas e lá se encontra com Menglöð. Através desta sondagem inicial, podemos concluir que a necromancia, como uma atividade que envolvia os mortos, fazia parte da sociedade escandinava, na qual as práticas mágicas estavam presentes no cotidiano, principalmente em seu conjunto de crenças. É interessante notar que o termo “necromancia” o qual entendemos hoje, assim como na Idade Média Cristianizada, compreendia a prática da “nigromancia” como uma modalidade demonizada, nos faz refletir como a Escandinávia, assim como outras sociedades, viam essa prática e como a compreendiam. Mesmo que o conceito tenha origem na Antiguidade, não podemos caracterizar a prática específica como modelo realizado em outras sociedades. O que procuro demonstrar é que

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a necromancia como uma prática que envolve os mortos estava presente em ambas sociedades, sem afirmar, contudo, que a Escandinávia tinha como imaginário uma ótica semelhante à Antiguidade.

Bárbara Rebecca Baumgartem França é graduanda em História pela UFES. E-mail: [email protected]

Referências:

ANÔNIMO. Grógaldr. Traduzido por Hollander, Lee M. The Poetic Edda. Texas: University of Texas Press, 2012. ANÔNIMO. Grógaldr. Disponível em: . Acesso em: 28 de janeiro de 2016. AYOUB, Munir L. Godkynningr: O rei escandinavo como ponte entre deuses e homens. 1ª ed. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2014. BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et All. Anthropos- Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. BRAGANÇA JR., Álvaro A. Práticas religiosas germânicas à luz da literatura: natureza, Asgard e céu. In: LUPI, João (org.). Druidas, Cavaleiros e Deusas: estudos medievais. Florianópolis: Editora Insular, 2010.

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"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França

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BURKE. Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2013. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martin Fontes, 1992. GINZBURG, Carlo. História Noturna: decifrando o Sabá. São Paulo: Companhia das Letras,1991. LANGER, Johnni. Edda Poética. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de Mitologia Nórdica. São Paulo: Hedra, 2015, pp. 146-149. LANGER, Johnni. Deuses, Monstros e Heróis. Brasília: Editora UNB, 2009. ______________. Seidr: magia feminina e xamânica entre os vikings. In: LUPI, João (org.). Druidas, Cavaleiros e Deusas: estudos medievais. Florianópolis: Editora Insular, 2010. ______________. Galdr e feitiçaria nas sagas islandesas: Uma análise do poema Buslubaen. In: Brathair, v. 9, n. 1, 2009. ______________. O poder do imaginário medieval. In: OPSIS, Catalão, v, 10, n. 2, jul-dez 2010. PIERUCCI, Antônio Flávio. A magia. São Paulo: Publifolha, 2001. RICHARDS, Jeffrey H. Sexo, desvio e danação: As minorias da Idade Média. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1993. SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. Editora Companhia das Letras,1999.

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Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos

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LITERATURA E CRISTIANISMO: ASPECTOS DA CRISTIANIZAÇÃO DA ESCANDINÁVIA E SEUS REFLEXOS N’A SAGA DE EIRIK, O VERMELHO Letícia Santos

A cristianização dos reinos escandinavos e da Islândia, segundo Tiago Quintana e Álvaro Alfredo Bragança Jr. (2010), foi um processo lento, gradual, que se deu de modo heterogêneo em cada uma dessas regiões. Com o advento do Cristianismo, há, como ressalta Théo Moosburger (2011, p. 20), “o florescimento da escrita na Islândia”. A partir desse momento, tomando como instrumento de base as letras latinas e o pergaminho, narrativas mitológicas e heroicas islandesas, que circulavam no âmbito da oralidade, puderam, por fim, ser compiladas. Não obstante os escandinavos possuíssem muito antes disso uma forma de registro própria, as runas, a importação de um alfabeto e tradição literária estrangeiros representou uma grande revolução na literatura e cultura desses povos, uma vez que textos de maior extensão, que circulavam apenas no campo da oralidade, passaram a ser redigidos. Devido à limitação espacial que as runas possuíam, anteriormente, somente pequenos textos foram transcritos. Contudo, esse fato, embora tenha reduzido drasticamente o uso da escrita rúnica, não chegou a anulá-la: Mucho antes de la cristianización ya se usaba em el Norte la escritura. Se conocen inscripciones del siglo III en protonórdico que utilizaban el alfabeto rúnico en madera, piedra, hueso y metal. Las condiciones para el desarrollo de uma cultura escrita no se dieron hasta que no se conocieron materiales adecuados para la producción de textos de cierta amplitud. La Iglesia trajo consigo el conocimiento tanto del alfabeto latino como el uso de los pergaminos, pero el alfabeto rúnico se siguió utilizando como, por exemplo, en inscripciones, mensajes cortos, etc. (ALVAREZ & ANTÓN, 2003, p. 15)

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Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos

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No entanto, se por um lado a cristianização dos países nórdicos contribuiu para a preservação e registro de parte de sua tradição oral, que poderia ser perdida naturalmente ao longo dos séculos, esse acontecimento também sufocou, paulatinamente, determinadas práticas rituais e culturais desse povo. Além de tudo, a escrita desses relatos, como veremos mais adiante, também não ocorreu de forma tão neutra, como se possa, talvez, imaginar. Sendo assim, por vezes, observa-se na escolha do foco narrativo, por exemplo, e na atitude de alguns personagens, indícios de ideologias eminentemente cristãs. Ainda segundo os autores, a Dinamarca foi o primeiro dos países escandinavos a adotar efetivamente a religião cristã. Conforme Quintana e Bragança Jr. (2010), Harald Klak foi o primeiro rei dinamarquês a ser batizado. Os autores apontam, ainda, motivações de caráter político para essa conversão, visto que o monarca desejava o apoio do regente francês Luís I, o piedoso, após ser deposto pela primeira vez no ano de 814 da era cristã. Ao retornar ao trono, Harald trouxe consigo, ainda, alguns monges, dentre eles São Ansgar, que foram responsáveis por realizar trabalhos missionários em territórios vizinhos. Todavia, antes mesmo do processo de cristianização, a Escandinávia já possuía contatos com territórios cristãos do continente europeu, com a Irlanda e com as Ilhas Britânicas. As primeiras expedições vikings de que se tem notícia, de acordo com Alvarez e Antón (2003), ocorreram em meados do século VIII. Tais empreitadas possuíam propósitos dos mais variados, como o comércio e a colonização de novas terras. A origem das sagas remonta, porventura, esse período de circulação oral. Sobre elas, afirma Jorge Luís Borges (1951, p. 70), “este arte empezó siendo oral, oír cuentos era uno de los pasatiempos de las largas veladas de Islandia”. Em grande parte, esses textos possuíam autoria anônima, uma vez que a matéria da

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Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos

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qual eles tratavam era considerada como uma informação de domínio do público a que se destinava. Essa forma literária, genuinamente escandinava, surge no período medieval e identifica-se bastante com as epopeias, não apenas por seu caráter épico, mas também por buscar resgatar por meio de sua narração um passado heroico de um povo, um mito fundador e a constituição de uma identidade cultural e histórica. Comumente classificadas por meio de referenciais temáticos, elas são subcategorizadas em alguns tipos, como: sagas de reis, de bispos, de islandeses ou de família, lendárias e cavaleirescas – esta última dialoga diretamente com a literatura medieval cortês –, dentre outras. Originalmente, as sagas de família possuem uma função histórica. A elas cabe o relato da vida de alguns dos primeiros colonizadores da Islândia, bem como suas conquistas, disputas territoriais e familiares (PEREIRA, 2006). Por meio dessa forma literária também pode-se constatar, como afirmam Antón e Pedro Casariego Córdoba, influências que muitos de seus autores receberam da doutrina cristã: Las Islendingasögur, Sagas de los Islandeses o Sagas de Familia, forman el conjunto más valioso y original y también el que aquí más nos importa. Expresión de uma Islandia que fue el último reducto de la recia cultura pagana de los escandinavos, nos muestran también el peso que el cristianismo tenía em la época de sus autores. Escritas en el siglo XIII, cuentan las vidas de los islandeses y los enfrentamientos entre sus famílias durante el período que transcurre entre la primera ocupacióm de Islandia y el final de la primera generación cristiana, hacia 1030, y que es conocido con el nombre de Edad de las Sagas. (1986, p. 21 – grifo dos autores)

A Saga de Eirik, o Vermelho, de autoria anônima e escrita provavelmente em meados do século XIII, encaixa-se na subcategoria de saga de família (LANGER, 2010). Essa obra, juntamente com a Saga dos Groenlandeses, narra

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as viagens e conquistas territoriais dos povos escandinavos medievais em sua trajetória pela Islândia, Groenlândia e a descoberta e tentativa de colonização da América do Norte por volta do século XI. Os dois textos em questão possuem um enredo bastante semelhante — as peripécias de heróis lendários vikings —, contudo, há ainda algumas diferenças entre eles na construção da trama. Conforme Johnni Langer (2010, p. 183), esse texto sobreviveu e chegou até nós atualmente por ter sido conservado em dois manuscritos medievais: “o Hauksbók (1302-1310) e o Skálholtsbók (c. 1420)”, ambos baseados em um escrito original que se encontra perdido ainda hoje. Remontando às primeiras linhagens que povoaram e constituíram a Islândia antiga, a Saga de Eirik, o Vermelho relata eventos relacionados à vida de um homem importante e guerreiro chamado Eirik — de origem norueguesa —, de sua linhagem e de homens que o eram do seu convívio, mas não apenas isso. Além disso, apesar de ser Eirik a dar nome à saga, o protagonismo de fato cabe aos seus descendentes. Dentre os acontecimentos mencionados ao longo de toda a obra, destacam-se sobremaneira as conquistas bélicas e territoriais, a expansão e disseminação nas terras escandinavas de uma religião estrangeira àquele povo: o Cristianismo. Uma parcela dos personagens é confessadamente não cristã e resiste o máximo que pode a essa crença criada e disseminada após a morte de Jesus Cristo, alguns abraçam-na e buscam difundi-la, enquanto outros convertem-se, com certa resistência, a ela. Em meio ao contexto das batalhas e viagens marítimas dos vikings, há no texto um choque cultural e religioso entre os adeptos e os não adeptos ao Cristianismo. Eirik é um dos que rejeitam, o máximo possível, abrir mão da crença religiosa de seus antepassados em prol de outra até então desconhecida:

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Eirik took coldly to the proposal to forsake his religion, but his wife, Thjodhild, promptly yielded, and caused a church to be built not very near the houses. The building was called Thjodhild’s Church; in that spot she offered her prayers, and so did those men who received Christ, and they were many. After she accepted the faith, Thjodhild would have no intercourse with Eirik, and this was a great trial to his temper. (ANÔNIMO, 20__, p. 6)

Apesar de sua esposa Thjodhild converter-se ao Cristianismo sem apresentar oposição e de tal fato afetar, de certo modo, seu matrimônio, Eirik, ainda assim, renega a essa religião estrangeira. Contudo, apesar de não desejar ser cristão, o herói viking não só respeita a decisão da mulher, como também compreende a impossibilidade da união carnal entre ambos enquanto ainda houvesse divergências de crenças religiosas no âmbito do casamento. Outro fato interessante em relação a esse personagem é que sua recusa em abandonar sua antiga religião não o faz um homem menos heroico ou mais perverso, pelo contrário, sua respeitabilidade mantém-se e sua descendência é reconhecida, por reis convertidos à religião cristã ou não, pela força que ele teve. Como pudemos observar, as antigas crenças do povo escandinavo e o Cristianismo conviviam com ressalvas. No caso de Eirik e Thjodhild, tal fato impedia que eles convivessem plenamente como marido e mulher. Podemos compreender melhor esse tipo de postura quando lemos no Novo Testamento, a segunda carta de Paulo à igreja de Corinto, que traz o seguinte conselho: “Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis; porque, que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz com as trevas? / E que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o infiel?” (II Coríntios 6:14-15). Ou seja, embora o total rechaço ao praticante de um credo oposto não seja diretamente estimulado, visto que o próprio Jesus Cristo

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chegou muitas vezes a acolher pessoas de religiões distintas da sua, pregou-se após a sua morte e ainda hoje que não poderia haver a conjunção entre pessoas cristãs e aquelas que não fossem. Embora o convívio entre indivíduos que se converteram à crença cristã e aqueles que ainda cultivavam os antigos credos e ritos se mostre possível na obra, enfatiza-se, em diversos momentos, a necessidade de levar o Cristianismo a todo o território escandinavo. Tal missão cabe a Leif, filho de Eirik e Thjodhild, que, após unir-se à corte do rei Olaf Tryggvason, aos moldes de um bom cavaleiro cortês, obedece às ordens de seu suserano, que lhe manda pregar a religião cristã na Groenlândia: Now, when Leif sailed from Greenland during the summer, he and his men were driven out of their course to the Sudreyjar. They were slow in getting a favourable wind from this place, and they stayed there a long time during the summer ... reaching Norway about harvest-tide. He joined the body-guard of King Olaf Tryggvason, and the king formed an excellent opinion of him, and it appeared to him that Leif was a well-bred man. Once upon a time the king entered into conversation with Leif, and asked him, "Dost thou purpose sailing to Greenland in summer?". Leif answered, "I should wish so to do, if it is your will." The king replied, “I think it may well be so; thou shalt go my errand, and preach Christianity in Greenland”. (ANÔNIMO, 20, p. 6)

Nessa saga, há personagens cristãos que apresentam duas posturas distintas em relação à religião escandinava: de total rejeição ou de respeito e convivência pacífica, embora com algumas ressalvas. A exemplo disso, temos Gudrid que, não obstante se diga cristã, conserva todos os ensinamentos da arte divinatória escandinava transmitida a ela por meio de sua mãe. Do outro lado, há também personagens ditos “pagãos” que apresentam esses dois tipos de comportamento: alguns reprovando veementemente a prática cristã por ferir

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costumes ancestrais e outros tolerando-a pacientemente. Por meio dessa obra literária, podemos observar alguns pontos cruciais do processo de cristianização dos territórios escandinavos, da difusão da nova crença religiosa e de suas diferentes recepções no decorrer da narrativa. Além disso, nota-se os choques culturais entre os cristãos e não cristãos, seus diferentes códigos de ética e conduta e, por vezes, a interpenetração de ambos: And when the (next) day was far spent, the preparations were made for her which she required for the exercise of her enchantments. She begged them to bring to her those women who were acquainted with the lore needed for the exercise of the enchantments, and which is known by the name of Weird-songs, but no such women came forward. Then was search made throughout the homestead if any woman were so learned. Then answered Gudrid, "I am not skilled in deep learning, nor am I a wise-woman, although Halldis, my foster-mother, taught me, in Iceland, the lore which she called Weird-songs." "Then art thou wise in good season," answered Thorbjorg; but Gudrid replied, "That lore and the ceremony are of such a kind, that I purpose to be of no assistance therein, because I am a Christian woman." (ANÔNIMO, 20, p. 5)

No trecho anterior, podemos observar que, embora certos ritos não cristãos sejam conhecidos e façam parte da cultura de Gudrid, há uma confessa resistência justificada em nome do credo cristão que impede, em um primeiro momento, que a personagem se disponibilize a participar da cerimônia organizada com a chegada da sibila. Todavia, tal oposição logo é vencida quando Thorkell exerce sua autoridade sobre Gudrid, que obedece e então passa a entoar os antigos cantos. Além de tudo o que foi mencionado, a crença cristã, como podemos constatar no texto, interfere também nos costumes daquele povo. Um exemplo

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disso é o tratamento dado aos mortos, que, a partir da presença do Cristianismo, é modificado: It had been a custom in Greenland, after Christianity was brought there, to bury men in unconsecrated ground on the farms where they died. An upright stake was placed over a body, and when the priests came afterwards to the place, then was the stake pulled out, consecrated water poured therein, and a funeral service held, though it might be long after the burial. The bodies were removed to the church in Eiriksfjordr, and funeral services held by the priests. (ANÔNIMO, 20, p. 9)

As ações dos personagens nessa saga não raramente são vistas de forma subjetiva, sob a lente da religião cristã, a qual condena fortemente toda prática contrária aos dogmas cristãos. Além disso, um propósito até certo ponto cruzadístico, como vimos, também permeia a obra, pois se salienta sempre a importância de levar o Cristianismo aos povos que ainda não conheciam essa “Verdade” pela força do diálogo e do convencimento por meio dele ou da espada. Em algumas passagens, é evidente também a presença de acontecimentos que pertencem à ordem do sobrenatural. No interior da narrativa, vê-se o Deus dos cristãos operando seus prodígios milagrosos ou miraculas, revelando-se, então, muito mais poderoso e benéfico que os deuses nórdicos e do que qualquer rito de evocação aos mesmos. Nesse sentido, o Deus cristão revela-se como soberano. Há, em diversos momentos, uma mensagem implícita de que só Ele, ao contrário das demais divindades, possui pleno poder para auxiliar os guerreiros em suas empreitadas. A sorte e a bem-aventurança parecem estar, com bastante frequência, do lado daquelas pessoas que decidem se converter aos ensinamentos da Igreja cristã. Todas as vezes que uma prática "pagã" choca-se com as cristãs, não

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raramente esta primeira é abordada de um modo um tanto quanto negativo ou vista com certa desconfiança. Vejamos a passagem na qual, após muitos dias de fome, em desespero e perdendo a fé no Deus cristão, Thorhall pede auxílio e enaltece ao deus Thor: After that they called upon God, praying that He would send them some little store of meat, but their prayer was not so soon granted as they were eager that it should be. Thorhall disappeared from sight, and they went to seek him, and sought for three half-days continuously. On the fourth half-day Karlsefni and Bjarni found him on the peak of a crag. He lay with his face to the sky, with both eyes and mouth and nostrils wide open, clawing and pinching himself, and reciting something. They asked why he had come there. He replied that it was of no importance; begged them not to wonder thereat; as for himself, he had lived so long, they needed not to take any account of him. They begged him to go home with them, and he did so. A little while after a whale was driven ashore, and the men crowded round it, and cut it up, and still they knew not what kind of whale it was. Even Karlsefni recognised it not, though he had great knowledge of whales. It was cooked by the cook-boys, and they ate thereof; though bad effects came upon all from it afterwards. Then began Thorhall, and said, "Has it not been that the Redbeard has proved a better friend than your Christ? This was my gift for the poetry which I composed about Thor, my patron; seldom has he failed me". Now, when the men knew that, none of them would eat of it, and they threw it down from the rocks, and turned with their supplications to God’s mercy. Then was granted to them opportunity of fishing, and after that there was no lack of food that spring. They went back again from the island, within Straumsfjordr, and obtained food from both sides; from hunting on the mainland, and from gathering eggs and from fishing on the side of the sea. (ANÔNIMO, 20, p. 11)

De imediato, os que estão presentes ali reconhecem uma espécie de castigo do Deus cristão pelo fato de Thorhall ter engrandecido o nome de outra divindade. É necessário que todos percebam o erro e, acima de tudo, supliquem, unidos, o perdão e a misericórdia pelo que entoado em nome de

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Thor, para que a tranquilidade e a fartura de alimentos fosse restituída entre eles. Inclusive, no capítulo seguinte, Thorhall e todos aqueles que insistiram em segui-lo recebem um fim doloroso: o primeiro morre de modo violento e aqueles que estavam ao seu lado são escravizados. Olaf Tryggvason, reconhecido como um dos “reis missionários”, teve historicamente um papel fundamental na convenção dos vikings ao Cristianismo e recorreu, para isso, à força bruta em diversos momentos. Sua atuação na saga é de suma importância, pois a sua iniciativa e o seu apoio incondicional configuram-se como a verdadeira força motriz no processo de cristianização dos povos vizinhos. Em nome de Olaf, Leif Eriksson e aqueles que o acompanhavam empenharam-se em levar a mensagem cristã adiante à força da espada e de uma numerosa quantidade de homens. Apesar disso, em nenhum momento qualquer brutalidade utilizada no processo de expansão do Cristianismo é questionada ou vista com maus olhos. O contrário ocorre, como vimos, com alguns ritos, crenças e procedimentos da antiga religião, que não obstante fizessem parte daquela cultura, muitas vezes eram tratados com certa reserva pelos que aderiram ao Cristianismo ou até mesmo condenados, como se dá, por exemplo, no episódio da baleia.

Letícia Santos é mestranda em Letras pela UFPE. E-mail: [email protected]

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Referências:

ÁLVAREZ, Mª Pilar Fernández; ANTÒN, Teodoro Manrique. Antología de la Literatura Nórdica Antigua. Edición Bilíngüe. 1ª ed. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2003. ANÔNIMO. The Saga of Eirik the Red. Disponível em: < http://sagadb.org/files/pdf/eiriks_saga_rauda.en.pdf>. Acesso em: dezembro de 2015. BORGES, Jorge Luis. Antiguas literaturas germánicas. México-Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1951. CÓRDOBA, Antón; CÓRDOBA, Pedro Casariego. Prólogo. La Saga de los Groenlandeses; La Saga de Eirik el Rojo. Trad. Antón y Pedro Casariego Córdoba. Madrid: Ediciones Siruela, 1986. LANGER, Johnni. História e sociedade nas sagas islandesas: perspectivas metodológicas. In: Alethéia: Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo, vol. 1, 2009. MOOSBURGER, Théo de Borba. Introdução. In: ANÔNIMO. Saga dos Volsungos. São Paulo: Hedra, 2009. QUINTANA, Tiago; BRAGANÇA JR., Álvaro Alfredo. A Cristianização da Noruega e o Fortalecimento da Monarquia Norueguesa: uma perspectiva histórico-literária. In: Brathair, vol. 10, n. 1, 2010, p. 41-53. PEREIRA, Valéria Sabrina. Die küneginne rîch: o mundo feminino em A Canção dos Nibelungos e A Saga dos Völsung. Disponível em: . Acesso em: 5 de janeiro de 2016.

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REPENSANDO OS VIKINGS EM SALA DE AULA: UMA EXPERIÊNCIA DO PIBID HISTÓRIA E(M) IMAGENS Bruno Ercole Thiago Natário Introdução

A confecção deste artigo se embasa nas experiências obtidas com o projeto PIBID UFPR História 2: História e(m) Imagens, na aplicação de quatro aulas para estudantes do primeiro ano do Ensino Médio no Colégio Bento Munhoz da Rocha, em Curitiba. O tema selecionado para a atividade que será aqui apresentada e discutida foi: Cristãos e vikings: a visão do outro no período medieval. Seguindo a proposta do projeto PIBID História e(m) Imagens — a utilização do cinema e das histórias em quadrinhos como ferramenta de ensino e aprendizado —, buscamos utilizar diferentes recursos didáticos para discutir com os alunos a construção de um ideal do que é o outro em oposição a si mesmo, focando nossas atenções na relação entre cristãos e vikings durante o período medieval. Dois importantes materiais utilizados por nós na aplicação das aulas foram trechos de filmes e quadrinhos do personagem Hagar, visando a demonstrar como conceitos construídos sobre os vikings por escritores cristãos do século IX perduram até os dias atuais como um estereótipo consolidado sobre tal povo. Devido à importância de tais recursos e a natureza de nosso projeto, julgamos necessário que, antes de entrar em uma descrição mais detalhada das aulas ministradas, o presente artigo contenha uma breve discussão sobre a

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aplicação de ambas as mídias no ensino.

A utilização do cinema como ferramenta didática no ensino de História Ao realizar a aplicação do cinema como um recurso em sala de aula há diversas variáveis a se considerar. Segundo Silva (2004), um dos maiores problemas que podem decorrer da utilização do cinema em sala de aula é a transformação do filme em um elemento ilustrativo, ou seja, algo que substitua a experimentação com o fato histórico. O resultado dessa má aplicação do cinema é a possibilidade de que os alunos acabem por tomar o filme exibido pelo professor como o passado em si e não uma representação deste. Conforme aponta o autor, o maior efeito deste processo é que o estudante passa a perceber o filme enquanto uma fonte documental, como se tratasse propriamente de uma fonte do período. Essa percepção por sua vez bloqueia na mente do aluno a noção de que o filme é também um texto, uma representação do passado, e que se deve aplicar os mesmos métodos de leitura do que para textos de demais suportes, eliminando boa parte do senso crítico de tal aluno quanto ao objeto analisado. A fim de evitar essa indesejável possibilidade, deve haver por parte do professor um trabalho anterior à exibição do filme, uma discussão com os alunos que lhes dê ferramentas para uma melhor compreensão do material que se pretende utilizar. Dessa forma, antes de se trabalhar com o filme, é preciso que o professor o coloque em seu próprio lugar no tempo, seu próprio contexto de produção. O intuito disso é fazer com que o aluno compreenda que, assim como qualquer texto historiográfico, o filme faz referência a um passado, mas não serve como substituição deste. É necessário trabalhar também com os

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alunos, anterior e posteriormente à exibição do filme, a noção, também apresentada por Silva, de que todo filme carrega em si um subtexto, uma mensagem contemporânea que pretende transmitir, usando a representação do passado como um meio para fazê-lo. Se utilizado com precaução, de modo a evitar sua transformação em elemento ilustrativo como abordado acima, o cinema pode ser uma grande ferramenta didática a ser aplicada em sala de aula, pois pode ser tanto uma fonte de entretenimento quanto de aprendizado, ofertando ao professor a possibilidade de dinamizar suas aulas. E, como o cinema, os quadrinhos também desempenham esse papel.

A utilização das histórias em quadrinhos como ferramenta didática no ensino de História

Assim como o cinema, as histórias em quadrinhos são uma grande possibilidade para que o professor consiga estabelecer um melhor diálogo com seus alunos. Porém, diferentemente do que se observa em relação aos filmes, muito mais utilizados como elemento didático, os quadrinhos ainda enfrentam um preconceito quanto à sua aplicação em sala de aula. Segundo as considerações feitas por Vergueiro (2005), os quadrinhos ainda sofrem uma espécie de desconfiança com relação aos efeitos que podem provocar em seus leitores. O autor aponta que os adultos, incluindo muitos dos professores, têm dificuldade em acreditar que os quadrinhos, que geralmente visam a um público mais jovem, possam ser fonte de conhecimento e aprimoramento cultural para seus leitores. Segundo o que destaca o autor, um dos maiores responsáveis pelo

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surgimento dessa desconfiança é o elemento imagético presente nas histórias em quadrinhos, vistas como um elemento que afastaria os jovens de leituras mais profundas, ou seja, serviria mais para desestimular do que incentivar a leitura. Entretanto, segundo o que aponta Santos (2003), um dos principais potenciais didático-pedagógicos dos quadrinhos é justamente o incentivo à leitura. Para o autor, a utilização dos quadrinhos pode ser uma grande aliada na empreitada de iniciar o jovem no caminho de consolidação do hábito e prazer de ler. É justamente a natureza imagética dos quadrinhos que pode ser um incentivo à leitura. Podemos observar, segundo aponta Vergueiro, que nas últimas três décadas do século XX deu-se o surgimento de vários estudos abordando as vantagens da utilização dos quadrinhos no ensino. Dentro desse processo, ele aponta que os quadrinhos vêm sendo utilizados com sucesso em livros didáticos há três décadas. O autor comenta que o mau uso da ferramenta pode gerar consequências indesejadas, como por exemplo o reforço de estereótipos. Entretanto, a linguagem dos quadrinhos pode torná-los grandes aliados do ensino. Segundo ele, a união entre texto e desenho consegue tornar mais claros para

o

jovem

conceitos

que

continuariam

abstratos

se

confinados

exclusivamente à palavra. Da mesma forma, a sequencialidade estrutural da narrativa nos quadrinhos, com um desenho sucedendo ao outro de forma fragmentada, exige uma maior participação do leitor, que precisa usar da imaginação para preencher os momentos não mostrados. Elísio aponta que basta que educadores e pais percam seu preconceito em relação à história em quadrinhos para que percebam nela um forte aliado na formação dos jovens. Seu emprego no processo de aprendizado pode auxiliar a transição de conhecimentos, despertar interesse e criar o hábito da leitura,

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incentivar uma leitura mais crítica e desenvolver a criatividade. A partir da utilização dessas duas fontes didáticas, cinema e quadrinhos, planejamos a atividade aqui apresentada.

Atividade "Cristão e vikings: a visão do outro no período medieval"

A atividade aqui apresentada consistiu em uma oficina que ocupou quatro aulas da disciplina de História de uma turma de primeiro ano do Ensino Médio, série na qual os alunos têm o contato com o mundo medieval. A escolha do tema, como o próprio título sugere, vem da necessidade que identificamos em explorar a construção da imagem dos povos, realizada ao longo da História. Nos propusemos a trabalhar com os alunos a maneira pela qual essa prática ocorre, muitas vezes estabelecendo ou reforçando estereótipos que, não raro, chegam aos nossos dias, como é o caso dos vikings, tratados de maneira mais específica por este artigo. Além disso, como afirma Langer (2002), entendemos que o espaço dedicado aos nórdicos nos currículos do Ensino Básico é ainda bastante inexpressivo, situação que procuramos mitigar com a realização da oficina. Consideramos também importante, numa época em que o mundo vê emergirem conflitos diários acerca da construção de identidades, a exemplo da situação dos refugiados pelo mundo, trabalhar com os alunos a maneira pela qual a História pode, ainda que tentando fugir de anacronismos, nos ajudar a entender conflitos e os preconceitos nos quais eles são enraizados. Assim, buscamos demonstrar com a atividade que, seja no mundo medieval, seja no contemporâneo, a imagem que se tem do outro ainda é um fator primordial para as relações entre os povos. Tendo esse planejamento como base,

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apresentamos o desenvolvimento da oficina.

Aula 01 - Aproximação com os alunos

A primeira aula consistiu na apresentação do planejamento que estava sendo proposto. Para tanto, optamos por tratar de maneira um pouco mais detalhada as propostas do projeto História e(m) Imagens, demonstrando para os alunos a maneira pela qual o cinema e as histórias em quadrinhos podem ser trabalhados como fontes didáticas, tema que acabou por atrair o interesse dos participantes. Utilizamos um questionário para diagnóstico do que os alunos conheciam sobre os vikings, composto de três questões: na primeira, fornecemos a imagem estereotipada do que seria um viking, um homem alto e forte, com o capacete em chifres e um machado desproporcional. Os alunos deveriam listar as três primeiras palavras que relacionavam com a imagem. As respostas à questão foram bastante próximas, e as associações com roubo, violência, ganância e barbárie foram frequentes. A segunda questão pedia que os alunos descrevessem como achavam que as relações entre os povos cristãos medievais e os não-cristãos haviam sido. Nessa questão, a maioria das respostas apontou também para uma relação cheia de conflitos e com pouco entendimento entre os povos. A última questão foi voltada para o tipo de recurso que seria utilizado na atividade, questionando se os alunos acreditavam que poderiam aprender História a partir do cinema e dos quadrinhos. A grande maioria das respostas para esse questionamento foi afirmativa, o que pode indicar que as nossas considerações feitas sobre o tema no início da aula podem ter sido levadas em conta na resposta. Como não solicitamos que os alunos se

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identificassem nos questionários, as respostas foram bastante sinceras e proveitosas para a elaboração das aulas.

Aula 02 - Apresentando os cristãos e os vikings Esta aula foi o momento mais teórico da atividade, de apresentação de conceitos fundamentais acerca dos cristãos e dos povos vikings, e também de informações sobre construção de identidades. Primeiramente, consideramos necessário discutir com os alunos o próprio conceito de Europa, problematizado por Febvre (2004). Visto que tanto a região escandinava quanto setentrional do continente, bem como as áreas mediterrâneas e as ilhas ao norte fazem parte do que hoje podemos até chamar de unidade cultural e geográfica, era importante explicar por que na Idade Média não havia essa unidade cultural por todo o território, levando-se em conta que essas mesmas áreas abrigavam povos de tradições bastante distintas. Sendo assim, utilizando a ideia de Cristandade, tratamos da diferença entre esse mundo cristão e latino e o mundo no qual viveram os povos vikings. Na sequência, apresentamos os chamados povos vikings, buscando caracterizá-los como um grupo que vivenciava todos os aspectos do cotidiano e não apenas o aspecto do conflito que assumiam nas raids que empreendiam contra os cristãos. O objetivo de apresentarmos esses conceitos foi o de mostrar que a concepção do viking como bárbaro é uma construção, feita por indivíduos que viram apenas uma das faces desse povo. Além disso, buscamos demonstrar também que a convivência entre os cristãos e os vikings foi realmente marcada por muitos conflitos e inimizades, porém repleta de trocas e acordos políticos, visto que muitos nórdicos acabaram se estabelecendo em territórios cristãos.

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Aula 03 - Os vikings no cinema e nos quadrinhos

Dando sequência à oficina, procuramos enfatizar o aspecto mais prático da atividade. Nessa etapa, exibimos uma animação em curta metragem intitulada A Saga de Biorn — The Saga of Bjorn, no original. Neste vídeo, os alunos puderam acompanhar a história de Biorn, um viking já velho que procura incessantemente a morte em batalha que o levará ao Valhalla, o palácio que, de acordo com a religião nórdica, era destinado à alma dos guerreiros. Outro vídeo exibido nesta etapa da oficina foi o trailer do filme Desbravadores —Pathfinder, no original — que apresenta, de maneira estereotipada, uma viagem de guerreiros vikings ao novo mundo, onde aterrorizaram a população local. A próxima etapa da atividade envolveu análise de tiras de quadrinhos do personagem Hagar, o horrível. No total de sete histórias que foram entregues aos alunos havia temas diversos, como a relação entre os vikings e os cristãos, entre os próprios vikings, a violência, o excesso no consumo de comida e bebida, e sobre a ação de missionários cristãos em terras escandinavas. Essa etapa da oficina também contou com o interesse e com a participação por parte dos alunos, que leram os quadrinhos em voz alta, seguindo as falas dos personagens. Com a apresentação desses materiais, promovemos uma discussão acerca de como os estereótipos não representam as populações, mas focam-se em características específicas e as perpetuam, estabelecendo-as como verdades.

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Aula 04 - Avaliando a mudança no entendimento sobre os vikings

A última aula da oficina foi dedicada a avaliar o que os alunos aprenderam com o trabalho realizado acerca da construção de identidades. Dessa maneira, realizamos uma atividade avaliativa individual e com consulta às anotações de aula, que se consistiu de perguntas que buscavam instigar a capacidade dos alunos de analisar documentos históricos. A primeira questão trabalhou com descrições medievais sobre os vikings, retratando-os de maneira pejorativa. Questionamos os alunos se essas descrições eram tudo o que os povos escandinavos representavam. Na questão seguinte, buscamos oferecer um contraponto com o mundo contemporâneo, fornecendo o trecho de uma reportagem que tratava da vida de refugiados sírios na Alemanha, e de como as pessoas que os acolheram haviam aprendido a questionar os estereótipos, que não se confirmaram no convívio entre as duas culturas. Com o resultado das avaliações, pudemos perceber que a maioria dos alunos mudou de opinião em relação aos vikings no decorrer da oficina, pois pudemos comparar as respostas da avaliação com o questionário inicial aplicado na primeira aula da atividade. Eles passaram a entender que o estereótipo clássico sobre os vikings é pejorativo, focado em apenas um aspecto deturpado de sua cultura, e não representa a totalidade das atividades em sociedades escandinavas. Assim, a elaboração da oficina mostrou-se positiva e os objetivos de trazer uma nova imagem sobre os vikings foram alcançados, além da relação positiva que realizou-se com o presente, abordando a questão dos refugiados.

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Conclusão

Como aponta Langer (2002), estereótipos estão presentes no imaginário da sociedade contemporânea, e assim estiveram também em mundos passados. O caso aqui estudado trabalhou a construção desses estereótipos sobre os vikings na Idade Média, problematizando e questionando a veracidade de tais interpretações. Como uma oficina voltada para o público do Ensino Médio, optamos por trazer esse tema relacionado aos conflitos presentes acerca de refugiados vivendo em países dos quais não são naturais, que têm sido noticiados nos meios de comunicação. Assim, com as aulas ministradas, identificamos que, se em um primeiro momento os alunos compartilhavam da visão do viking como o bárbaro que é tradicionalmente atribuída a este povo, pudemos, através da utilização deste mesmo estereótipo presente ainda hoje no cinema e nas histórias em quadrinhos, ajuda-los a repensar essa proposição. Passando a entender a cultura viking como todo um universo que vai muito além do aspecto guerreiro, os alunos puderam também entender como essa imagem acerca dos povos do norte foi construída pelos cristãos medievais e legada a nós. Procuramos aqui apresentar a importância dessas discussões, uma vez que os estereótipos construídos sobre determinado povo acabam cristalizados e, sem a devida problematização, podem ser considerados como verdades. Não raro, os povos assim representados são alvo de preconceitos e julgamentos. Desta maneira, é tarefa dos educadores trabalhar para problematizar e questionar essas interpretações, estimulando a reflexão mais crítica por parte de seus alunos.

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Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário

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Bruno Ercole e Thiago Natário são graduandos em História pela UFPR. E-mail: [email protected] E-mail: [email protected]

Referências:

DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Guerras e cinema: um encontro no tempo presente. In: Tempo, v. 8, n. 16, 2004, p. 1-22. FEBVRE, Lucien. A Europa: Gênese de uma Civilização. Bauru, SP: EDUSC, 2004. LANGER, Johnni. Os vikings e o estereótipo do bárbaro no ensino de História. História e Ensino, Londrina, v. 8, 2002, p. 85-98. SANTOS, Roberto Elísio. A história em quadrinhos na sala de aula. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo: Intercom, 2003. VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula, v. 4, 2005, p. 7-30.

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Reminiscências do sagrado e as origens nórdicas do black metal... - Lauro Ericksen

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REMINISCÊNCIAS DO SAGRADO E AS ORIGENS NÓRDICAS DO BLACK METAL NORUEGUÊS Lauro Ericksen

Introdução

O artigo visa a abordar a questão atual do conteúdo lírico, poético e filosófico, reminiscente da Era Viking, no Black Metal norueguês, em específico, na banda Borknagar. Para tanto, é necessário fazer uma breve digressão histórica na cena musical do Black Metal na Noruega do início da década de 90, explicitando os objetivos iniciais do movimento denominado de Inner Circle, a gênese desse cenário musical, observando sua tendência notoriamente anticristã. Ao abordar o Inner Circle e sua formação, justifica-se a escolha da banda Borknagar como sendo o foco da presente abordagem, uma vez que ela se diferencia em sua temática das demais bandas satanistas do início do movimento. Sua temática viking se afasta da noção primitiva de anticristianismo posta em relevo pelos demais membros do Inner Circle. Em termos filosóficos, uma seção será destacada para fazer o resgate da poesia nórdica/viking contida nas obras musicais do Borknagar, sob a égide do pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, para o qual, “o poeta nomeia o sagrado”. Combina-se à análise linguística de Heidegger, a ideia central do pensamento de Platão de que o conhecimento é reminiscência, de modo que lembrar algo é conhecer algo. Trilhando essas duas ideias principais, argumenta-se filosoficamente que o Borknagar atinge um nível de expressão pós-filosófica em suas músicas, por meio de sua temática.

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Inner Circle e a gênese do Black Metal: satanismo e anti-cristianismo

O Inner Circle foi um movimento iniciado, principalmente, por Øystein Årseth, conhecido pelo codinome de Euronymous, líder da icônica banda Mayhem, e que junto com outros amigos, como Kristoffer Rygg (Garm), Varg Vikernes, Tomas Thormodsæter Haugen (Samoth) e Bård “Faust” Eithun (principais membros), reuniram o embrião do Black Metal norueguês em sua loja de discos Helvete, inferno, em norueguês (PATTERSON, 2013, p. 161). Sua base ideológica consistia, precipuamente, em um forte teor anti-cristão, no retorno à religiosidade nórdica pré-cristã e, eventualmente, em anti-semitismo (embora o próprio Årseth fosse declaradamente um militante de esquerda). Nesse turbilhão de segmentos culturais, molda-se a musicalidade e a essência lírica do Black Metal norueguês nos anos 90. O grande ponto de dissenso para os pesquisadores que se debruçam sobre esse tema consiste em debater se o Inner Circle era um movimento eminentemente satanista ou se ele apenas agregava tendências anti-cristãs, e, por isso, abarcava também elementos culturais não necessariamente religiosos (numa luta ideológica), dentre esses elementos, resquícios culturais vikings. Os fatos mais marcantes desse movimento foram os incêndios criminosos de igrejas na cidade de Bergen. O incêndio mais emblemático foi o de Skjold, quando Samoth e Varg incendiaram uma igreja, foram presos, e posteriormente a foto da igreja queimando foi usada como capa para um dos Extended Plays (EP) da banda Burzum, liderada por Varg. Esparsamente, ao ser perguntado pela motivação do incêndio, Samoth indicou que queria apenas trazer de volta a religiosidade pagã dos vikings. Ainda que o movimento não fosse propriamente organizado ou voltado para uma causa pagã ou viking em

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específico, há certas combinações entre rituais satanistas (perpetrados por Euronymous no Mayhem) e supostas declarações em prol de uma temática viking, como a retratada por Samoth. Ainda assim, o conteúdo pagão ou viking contido no Inner Circle está mais próximo de uma ritualística satânica que viking propriamente dita. A história relata que as queimas de igrejas pelos vikings tinham o intuito de saque e de conquista (econômica), como o assalto a Lindisfarne de 793 (GARDELL, 2003, p. 306), e não um direcionamento político, ideológico, ou religioso. Com os incêndios, como no caso de Lindisfarne, os vikings queriam assegurar a conquista do local, impingir terror aos monges cristãos e assolar o território. Não havia nenhuma ritualística pagã em tais queimas de igrejas, como supostamente levantou Varg quando foi preso, ao rememorar Lindisfarne como inspiração para seus atos. Não é pelo fato de Varg tentar dar algum sentido pagão aos seus atos criminosos que eles se convertem, automaticamente, em uma defesa do paganismo. Sua personalidade bastante controversa mistura elementos pagãos, satanistas e até cristãos, já que o nome da sua banda principal, o Burzum, ainda que signifique “escuridão”, na língua élfica, deriva da trilogia “O Senhor dos Anéis”, escrita por J. R. R. Tolkien, e tem um conteúdo cristão evidente. Os casos narrados servem apenas para expor que as principais motivações das ações e das atividades dos membros do Inner Circle eram ideologicamente comprometidas, eminentemente, com o satanismo, e não com uma perspectiva viking direcionada a remeter ao passado de seus antepassados. Afirma-se,

portanto,

que

o

Inner

Circle

era

um

movimento

comprometido com temáticas satânicas em sua expressão artística (WESTON;

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BENNETT, 2013, p. 60), no entanto, nem todos os membros ficaram restritos a tais atividades, nem ao próprio Black Metal. Esse foi o caso de Kristoffer Rygg, conhecido como Garm. Sua banda principal, o Ulver, integrou o Inner Circle no início da década de 90, e teve uma estreita relação com o satanismo. No entanto, posteriormente, ele chegou até mesmo a se distanciar do Black Metal (Ulver se direcionou para a música eletrônica) e ele fundou uma nova banda, o Borknagar. O nome Borknagar possui uma dupla explicação, a princípio. Refere-se, inicialmente, ao mito escocês do Loch Nagar. Todavia, essa versão foi desmentida pelo guitarrista da banda (membro fundador), Øystein G. Brun. A segunda explicação, mais plausível e condizente com a temática da banda, enuncia que Borknagar é um anagrama da palavra Ragnarök, acrescida de um “B” para ficar pronunciável. Essa versão, ainda que mais plausível que a anterior, nunca foi confirmada (ou desmentida) por nenhum membro da banda (atualmente, o Brun é o único membro fundador que remanesce). O Borknagar ganha especial destaque nesse trabalho por dois motivos: sempre trilhou uma perspectiva viking em suas letras e em sua estética sem se aproximar do satanismo do Inner Circle, e, por outro lado, nunca se associou ao Viking Metal ou Folk Metal propriamente dito, não incorporando instrumentos alheios ao Black Metal em sua musicalidade — exceto o álbum “Origin”, que é totalmente acústico, e incorpora alguns instrumentos folclóricos como a Harpa de Boca, Jew’s Harp (WAGNER, 2010, p. 274). Embora esse lançamento espúrio possa ser tido como um ponto fora da curva na estética da banda, pois nenhuma outra obra deles repetiu essa fórmula. Assim, o Borknagar é uma banda que retém a essência (ou a reminiscência) viking em sua música sem abandonar a estética do Black Metal por completo, assumindo, o que se

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verificará, mais adiante, uma perspectiva pós-filosófica no Black Metal.

Borknagar, Vikings e Filosofia: de Heidegger a Platão

Para que se possa chegar à noção delineada no final do parágrafo anterior, é de grande importância situar o cenário filosófico em que a atual discussão se localiza. Há dois grandes pensadores que fornecem os elementos estruturais necessários para que o presente debate seja empreendido satisfatoriamente: Martin Heidegger e Platão. Martin Heidegger é um filósofo alemão do século XX, um dos grandes pensadores de todos os tempos. Ele se dedicou, principalmente, a debater a questão do ser, ou Seinfrage, como ele aponta em seus escritos. Ele possui 3 fases bastante distintas de pensamento (PÖGGELER, 1987, p. 61), a primeira delas é expressa em Ser e Tempo, obra em que ele aponta que tempo é ser, e que o homem se compreende finitamente a partir dessa noção. A segunda fase do seu pensamento está contida na obra O que é Metafísica, e envolve basicamente o debate sobre a questão da técnica e equipara o ser à historicidade. Na última fase de seu pensamento, caracterizada nos Beiträge, Heidegger se foca na questão da linguagem e como a poesia é a expressão máxima dos valores e do sagrado. Suas duas primeiras fases são associadas, respectivamente, ao cristianismo e ao existencialismo, ao passo que a terceira fase é identificada com uma perspectiva pós-filosófica gnóstica (pagã). Heidegger (1969, p. 33) coloca que o filósofo pensa o ser, mas o poeta nomeia o sagrado, ou seja, a tarefa de dar uma estruturação plausível para a realidade humana é a tarefa do pensador, do filósofo que se debruça sobre esses temas, como o ser, o nada, a substância e a essência das coisas. No entanto, em

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um grau ainda mais elevado, cabe ao poeta nomear o sagrado, ou seja, é o poeta quem, em última instância, estabelece os valores essenciais para uma sociedade, é ele quem coloca algo ou algum posicionamento como digno de respeito ou, inversamente, busca retirar aquele valor como correspondente a uma boa conduta dentro do aspecto comunal. O poeta, nessa perspectiva, trilha o caminho de um “crítico de gosto” contemporâneo. Por meio do seu julgamento do que é valorativamente relevante, o poeta, retoricamente, estabelece os padrões de conduta e de convivência na sociedade. Ele não define, estruturalmente, por meio de definições sobre o “ser”, o que é ontologicamente adequado ou verdadeiro. De uma maneira artística, o poeta nomeia quais os valores que são devidos e como eles devem ser ritualisticamente entranhados na sociedade. Heidegger (2008, p. 12), na primeira fase de seu pensamento, assumia uma perspectiva anti-metafísica (rejeição de conceitos e de sistemas filosóficos); na segunda fase assumia uma postura anti-filosófica (rejeitava a possibilidade de uma totalidade e de uma essência); na terceira fase, utilizada metodologicamente na presente abordagem, Heidegger acaba por assumir uma perspectiva pós-filosófica. Por pós-filosofia não deve se entender que ele rejeita todo o conteúdo filosoficamente apreensível pelo homem. Aliás, pelo contrário, ao se falar em pós-filosofia deve-se sempre ter em relevo que ela se orienta pelo norte filosófico de toda a história ocidental. A pós-filosofia só pode ser compreendida na mesma medida em que se compreende a filosofia como uma forma de explicar o mundo desde a antiguidade. A perspectiva pós-filosófica tem como definição principal que a filosofia não é mais o centro das atenções do pensamento humano. Ela não é a pedra de toque de todas as definições relevantes, tampouco é a única capaz de

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julgar todo o conhecimento ou todas as formas de apreensão de conhecimento que são disponíveis ao homem. Assim, a filosofia não é o epicentro de todo o conhecimento, tampouco deve se prestar a tal papel. Outras apreensões estéticas, políticas, e culturais tomam seus respectivos círculos de valores, espraiando-se para onde a filosofia não alcança, nem deve se intrometer. Avançando para a segunda parte do argumento filosófico, é necessário trazer ao debate a ideia platônica de que a reminiscência (ou anamnese) é que o conhecimento é obtido apenas por meio de lembrança (ou memórias). No universo dual platônico, dividido em mundo inteligível e mundo sensível, há apenas plenitude no mundo inteligível, onde as ideias perfeitas não sofrem depreciação, como no mundo sensível. Dessa forma, no mundo sensível temos acesso apenas parcial à verdadeira essência das coisas, a própria sensibilidade do mundo que nos é acessível deturpa a realidade. Assim, o que se tem acesso como conhecimento, no mundo sensível, não é nada além que uma mera lembrança (anamnese) de como aquilo ou aquela coisa é efetivamente disposta no mundo inteligível. Dessa forma, conhece-se apenas por lembrança, de tudo aquilo que há no mundo inteligível. Recordar, portanto, é aprender, para Platão (1983, p. 82). A reminiscência de algo passado é o elemento chave para o desenvolvimento do homem, seus valores e suas perspectivas sociais encontram-se todas engendradas com base na reminiscência. Aquilo que ele é capaz de recordar e de lembrar é o que forma efetivamente a sua compreensão da realidade. Com base nessa ideia platônica, é fácil compreender o modo como Heidegger coloca o poeta como um crítico de gosto. Ao julgar o que ele já conhece, ele põe, ao acesso de todos, um modo de conhecer os valores por ele cultivados, os quais, aliás, já se encontravam disponíveis muito antes dele. Esse conhecimento

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ancestral, repassado de modo reminiscente, é a forma poética de se conhecer o passado e de modelar o futuro a um só tempo. Condensando os argumentos finais para o presente trabalho, há de se sinalizar que o Borknagar agrega em suas músicas vários elementos traçados até então, até mesmo no nome de algumas canções isso já fica evidente, como é o caso da música “Future Reminiscence” do álbum “Epic”. Pode-se enquadrar que a mencionada banda assume, portanto, uma postura pós-filosófica, e tem em seu cerne musical um conteúdo epistemológico platônico evidente. Primeiramente, ela pode ser considerada pós-filosófica, dentro do contexto do próprio Black Metal, por não se ater nem às perspectivas satanistas do início da década de 90 do Inner Circle, tampouco por não reproduzir uma temática com direcionamento anti-cristão em seu conteúdo lírico. Ainda que o ensejo pagão, com sua temática viking, seja mais do que evidente (vide músicas como “The Eye of Odin” ou “To Mount and Rove”), o Borknagar não necessita de uma contraposição, nos moldes hegelianos (composto metodologicamente de uma sequencia encadeada por tese, antítese e síntese), para que seja obtido um resultado musicalmente adequado, ou para que haja um reforço ideológico em sua estética. A perspectiva pós-filosófica exposta defende justamente que é indiferente que haja essa defesa ferrenha dos ideais pagãos para que os objetivos propostos na temática poética da banda sejam alcançados. O conhecimento oferecido pós-filosoficamente pelo Borknagar reside na reminiscência da cultura viking, e é nesse ponto que reside a sua inovação e a sua singularidade perante outras bandas do cenário do Black Metal norueguês. Não há, portanto, uma rejeição direta e evidente por sua parte nem do satanismo nem do cristianismo, sua perspectiva de compreensão poética e estética está muito além dessa dualidade, por isso, sua dinâmica é pós-

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filosófica. Assim sendo, há de se reconhecer que, liricamente, o Borknagar se coloca como um poeta que nomeia o sagrado, por meio da ambientação viking e de seus elementos culturais, inserindo essa temática nos círculos culturais contemporâneos, principalmente nos meandros da cultura do heavy metal. Considerações finais Derradeiramente, há de se colocar que o Borknagar assume uma postura inovadora, tanto do ponto de vista musical, quanto estético em um sentido mais amplo, político, se possível, ao se direcionar rumo a uma pósfilosofia poética em sua expressao artística. Apartando-se do satanismo tradicionalmente atrelado ao Black Metal, do mesmo modo que não se faz uma oposição direta e forte ao cristianismo, o Borknagar consegue o status de ser uma banda única e inovadora, que promove a reminiscência de valores culturais caros aos vikings, em suas narrativas mitológicas e em seus valores de convivência. Assim, a banda em relevo se destaca perante outras que surgiram no Inner Circle, ou em decorrência de sua fama nos anos 90, sendo um modelo pósfilosófico na música contemporânea, podendo-se estender aos seus músicos a pecha de poetas que nomeiam o sagrado.

Lauro Ericksen é doutorando em Filosofia (UFRN). E-mail: [email protected]

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Referências:

GARDELL, Mattias. Gods of the Blood: The Pagan Revival and White Separatism. Durham: Duke University Press, 2003. HEIDEGGER, Martin. Beitra ge zu einem Kolloquium mit Heidegger aus Anlass seines 80. Heidelberg: C. Winter, 1969. ___________. Ser e Tempo. Trad. Márcia Schuback. Petrópolis: Vozes, 2008. WAGNER, Jeff. Mean Deviation: Four Decades of Progressive Heavy Metal. New York: Bazillion Points, 2010. PATTERSON, Dayal. Black Metal: Evolution of the Cult. Port Townsend: Feral House, 2013. PLATÃO. Fédon. Trad. Maria Teresa Schiappa Azevedo. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983. PÖGGELER, Otto. Martin Heidegger's Path of Thinking. Atlantic Highlands: Humanities Press International, 1987. WESTON, Donna; BENNETT, Andy. Pop Pagans: Paganism and Popular Music. Durham: Acumen, 2013.

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Normas para publicação no Notícias Asgardianas

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1. Ensaios (artigos de popularização) e resenhas (de livros, filmes, músicas e quadrinhos de no máximo dois anos de sua publicação/lançamento): de seis a nove páginas, fonte Book Antiqua 12, espaço 1,5, imagens em formato JPG (máximo de duas imagens e resolução mínima de 100 dpi e máxima de 300 dpi), sem notas de rodapé ou final, com título, texto e identificação dos autores, vínculo institucional, e-mail ao final, fotografia dos autores em JPG. Citação no texto pelo sistema autor/data (sobrenome em minúscula: ano, paginação), bibliografia ao final do texto (máximo de 8 referências). 2. Notícias de descobertas ou pesquisas arqueológicas: texto em português com até 50 linhas, formatação idêntica ao item 1. Notícias de até dois meses antes da data do boletim em vigência. 3. Notícias em geral: de participações em eventos, qualificações e defesas na área ou outras notícias pertinentes ao tema (incluindo atividades de outros grupos de estudos escandinavos): até 50 linhas, formatação idêntica ao item 1. Notícias de até dois meses antes da data do boletim em vigência.

Todas as propostas devem ser enviadas para: [email protected]

 Como incluir as publicações do boletim no Lattes:

Para ensaios e artigos: seção Texto em jornal ou revista (magazine) (Produção Bibliográfica); para organizadores de entrevistas, resenhas e

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traduções: Outra produção bibliográfica (Produção Bibliográfica). Para notícias: Outra produção técnica.

 Como citar as publicações do boletim:

CARDOSO, Ciro Flamarion. Beowulf e as estruturas da Escandinávia PréViking (ensaio). Notícias Asgardianas n. 44, fevereiro-março de 2004. LANGER, Johnni. Review of Viking Age Iceland (resenha). Notícias Asgardianas n. 44, fevereiro-março de 2004. LANGER, Johnni. Vestígios de cabelos vikings estão sendo estudados na Inglaterra (tradução). Notícias Asgardianas n. 45, julho-agosto de 2004, p. 16. LANGER, Johnni (Organização de entrevista). Medievalismo e literatura medieval: entrevista com Prof. Dr. José Rivair Macedo. Notícias Asgardianas n. 44, fevereiro- março de 2004.

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NEVE: NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS Blog: http://neve2012.blogspot.com.br/ Facebook: http://www.facebook.com/#!/groups/gruponeve/ Academia.Edu: http://ufma.academia.edu/NEVEN%C3%9ACLEODEESTUDOSVIKINGSEES CANDINAVOS Notícias Asgardianas: http://neveufpb.wix.com/noticiasasgardianas

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Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE)

R454

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Catalogação na fonte NOTÍCIAS ASGARDIANAS – N. 10 (Nova Série). João Pessoa: PB/NEVE, 2015. V.: III. Semestral ISSN: 1679-9313 1. Escandinávia Medieval – Periódicos. 2 – Idade Média. 3 – Era Viking. I – Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos. NEVE. CDU 931(05)

Expediente NA, Boletim semestral, ISSN: 1679-9313 Equipe editorial: Luciana de Campos, Pablo Gomes de Miranda, Munir Lutfe Ayoub, André Araújo de Oliveira, Ricardo Wagner Menezes de Oliveira, José Lucas Cordeiro Fernandes, Andressa Furlan Ferreira. Capa: Pablo Gomes de Miranda. Revisão: Andressa Furlan Ferreira. Pareceristas desta edição: Sandro Teixeira, Pablo Gomes de Miranda, André Araújo de Oliveira, José Lucas Cordeiro Fernandes, André Szczawlinska Muceniecks, Johnni Langer, Munir Lutfe Ayoub.

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