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July 3, 2017 | Autor: Manuela Tassan | Categoria: Space and Place, Social and Cultural Anthropology, Culture, Nature
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PREFÁCIO REPENSANDO NATUREZA E CULTURA: UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA SOBRE AS ALTERNATIVAS AO “DESENVOLVIMENTO”.

Malighetti Roberto Tassan Manuela Em um contexto no qual a cultura dominante procura impor-se, com evidente dificuldade, em termos homogeneizantes e totalizantes, os atores sociais tradicionalmente considerados marginais, desenvolvem contribuições únicas para enriquecer as configurações e os esforços políticos e intelectuais. Suas subjetividades marcadas por numerosas tradições, oferecem reais possibilidades para organizar novos espaços, além das práticas convencionais baseadas nas doutrinas do desenvolvimento. Contradizem os poderes dominantes e as tentativas para promover uma ideologia feliz e “pacificada” da globalização como algo inevitável e, sobretudo, já realizado. Pressionados pela necessidade de encontrar alternativas, com medo de serem removidos pela violência neoliberal e pelas “novas” formas de ajuda humanitária, os grupos subalternos se contrapõem aos axiomas do capitalismo e da modernidade em suas formas hegemônicas. Os seus desafios

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políticos se baseiam na defesa do local como pré-requisito para se envolver no global, e na valorização das necessidades e das oportunidades econômicas em termos que não sejam os de lucro e da modernização. Superando as dicotomias do discurso modernista (moderno-tradicional, centro-periferia, global-local etc.), as práticas dos excluídos se emancipam das concepções mecanicistas, fundada na substituição do tradicional pelo moderno. Produzem formas híbridas de modernidade, entendida como um conjunto de realidades negociais produzidas pela copertença (Gadamer, 1965) da modernidade e da tradição, do global e do local. Estas “articulações” (Clifford, 1988) e global ethnoscapes (Appadurai, 1996) exigem repensar as “culturas tradicionais”, no contexto do seu envolvimento transformador na modernidade, não em termos de homologação, mas como sociedades vernaculares (Latouche, 1989) nascidas da inter-relação entre o antigo e o novo. A “sujeira” torna-se fertilizante para novas sínteses e emersões culturais e sociais (Clifford, 1988, p. 28; Agier, 2001). As culturas híbridas ou os “si rejeitados” são capazes de construir um sentido diferente com relação às tendências dominantes. Realizam práticas de mudança social, cultural, econômica e política, que são subtraídas aos mecanismos de dependência e de dominação. Amarram os fios de uma história interrompida pela modernização, pela industrialização e pela urbanização selvagem, e recuperam as técnicas e os conhecimentos tradicionais, inovando-os. Tentam superar as falidas abordagens assistencialistas, as fragmentadas intervenções emergenciais e as compassivas e contraditórias ações humanitárias em favor de iniciativas integradas e multissetoriais, fundadas no protagonismo e nas potencialidades alternativas dos recursos humanos locais. Livres dos vínculos economicistas e desenvolvimentistas buscam modos de crescimento coletivo que não privilegiam um bem-estar material destrutivo para os laços sociais e para o meio ambiente, rompendo com as formas de destruição que se perpetua em nome do crescimento. A partir destas experiências, um número crescente de estudiosos, em vez de buscar “desenvolvimentos alternativos” passam a analisar as “alternativas ao desenvolvimento” presentes nas práticas dos movimentos e das experiências inovadoras de base (Malighetti, 2005). Estes autores, que reconhecem a intensidade,

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a rapidez e as propriedades da auto-organização de grande parte da mudança social contemporânea, compartilham uma série de características: uma posição crítica em relação ao conhecimento científico institucional; um interesse pela autonomia, pela cultura e os saberes locais; a defesa dos movimentos de base, localizados e pluralistas com os quais alguns deles têm trabalhado em um contato muito próximo (Esteva, 1987; Kothari, 1987; Nandy, 1987; Fals Borda, 1988; Rahnema, 1988; Shiva, 1988; Parajuli, 1991; Sachs, 1992; Escobar, 1995). Usando termos contrastantes, semelhantes aos do conter-development (Galjart, 1981), suas análises se concentram nas reformulações locais da modernidade que emergem nas representações, nas práticas, nos discursos, nas formas organizacionais, nas instituições e nos fóruns. Alguns estudos têm levantado o profissionalismo da antropologia nos discursos de mudança planejada, articulando a crítica à imposição vertical e unilateral dos modernos modelos técnico-científicos com a consideração negocial das intervenções, acordadas e reformuladas em um contínuo processo dialógico entre os diferentes interlocutores. Vários métodos actor-oriented (Arce, Long, 2005) colocam os atores no centro da cena, reconhecendo as múltiplas realidades e as diferentes práticas sociais dos diversos atores. Apresentam a antropologia do desenvolvimento como interessada em um campo de realidades contestadas e muitas vezes incompatíveis, nos quais os choques de valores, de recursos, de saberes e de imagens constituem a arena e o “campo de batalha” entre os diferentes atores e seus universos de vida (Hobart, 1993; Long, Long, 1992). Estas abordagens permitem a elucidação das interpretações e estratégias dos atores e estão atentas à maneira como estas se cruzam por meio de processos híbridos de mistura e acomodação. Adotando uma abordagem etnográfica aberta, tentam esclarecer a complexidade do significado das ações sociais e dos processos de negociação dialógica entre os diferentes atores sociais. Compreendem a ideologia e a prática a intervenção humanitária por meio de seus projetos, suas instituições, seus discursos e seus desdobramentos nos micro-processos dos relacionamentos no campo. O trabalho de Nizomar Falcão Bezerra se encaixa nesta linha de estudos antropológicos. Experimentando o “desenvolvimento” sob a veste de agrônomo, percebeu um mal-estar crescente em relação a escassa consideração da

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perspectiva dos atores sociais, aquela ‘’ignorância ativa” (Hobart, 1993), que retira da cena a população-alvo, numa tentativa de impor um conhecimento definido univocamente como correto e adequado. Isto o impulsionou a investigar novas perspectivas analíticas. Usando as ferramentas oferecidas pelo olhar comparativo e transversal da antropologia, ele repensou em novos termos a realidade do Sertão, região com condições ambientais adversas, inicialmente conhecido apenas por um saber técnico. A reflexão construída a partir de uma pesquisa etnográfica, gira em torno de um conceito-chave da antropologia cultural: a reciprocidade. Falcão Bezerra usa esta noção para reconsiderar elementos “ignorados” na intervenção de mudança planejada que ele analisou, qual seja a construção de uma barragem (Castanhão) que teve um enorme impacto sobre a população local. Elaborando algumas sugestões provenientes da vasta literatura antropológica produzida sobre o assunto, Bezerra declina a reciprocidade baseando-se nos elementos específicos observados nas comunidades com as quais se deparou. Elabora uma posição crítica em relação a um modelo de desenvolvimento imposto de cima para baixo, e propõe a ação da reciprocidade, repensada em termos de negociação. Sugere, também, de considerar a “reciprocidade” como uma particular modalidade relacional, que não diz respeito apenas aos “homens entre eles”, mas também a relação entre estes e o mundo chamado “natural” (Latour, 1991: 130). Sob esta ótica, o trabalho de Falcão Bezerra dialoga com dois temas fundamentais do debate antropológico: de um lado, a importância de explorar o delicado papel social que pode assumir a figura do antropólogo em contextos marcados por forte marginalidade social e onde se experimentam práticas “desenvolvimentistas”; do outro, a necessidade de repensar profundamente a dicotomia entre natureza e cultura, explorando as implicações políticas de tais revisões críticas. Consequentemente, a experiência de Nizomar Falcão Bezerra constitui um laboratório interessante para conceber soluções inovadoras e recolher o desafio do ponto de vista dos atores sociais e das contribuições teóricas oferecidas pela antropologia. Promove formas de cooperação simétricas entre as instituições governamentais e a sociedade civil, que reconheçam igual dignidade as competências e os saberes específicos dos atores locais. Baseia-se em

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um aparelhamento categórico e metodológico multi-vocal (Grillo, Stirrat, 1997) e multi-situado (Marcus, 1995) e propõe uma metodologia operativa baseada no diálogo e na negociação, aplicada às diferentes fases: da concepção ao planejamento, da execução a avaliação das intervenções. Desta forma, a pesquisa de Falcão Bezerra coloca em discussão os modelos conceituais e organizacionais, os pressupostos de partida, os preconceitos teóricos e os interesses dos diversos atores envolvidos na intervenção. Experimentando novas elaborações conceituais, permite examinar a ideologia e a prática da intervenção humanitária por meio de seus desdobramentos nas relações reais no campo, superando as dicotomias que, por muito tempo, têm informado a própria antropologia, sobretudo a oposição entre natureza e cultura.

ALÉM DA NATUREZA E DA CULTURA As configurações das culturas e das relações no mundo contemporâneo, conjuntamente com as mudanças no estatuto científico do conhecimento, abriram novos espaços e novas estratégias de pesquisa que requerem a alteração de uma série de topoi fundadores do discurso antropológico: cultura, comunidade, identidade, etnia, raça, tribo e nação. As dicotomias do discurso modernista (moderno-tradicional, centro-periferia, global-local etc.) foram diluídas e esmagadas em uma multiplicidade de articulações complexas. A partir de diferentes pontos de vista, os cientistas sociais articulam imagens de ethnoscapes (Appadurai, 1996), questionando a relação exótica entre distância e diferença (Clifford, 1988) e enfatizando uma não-imediata coincidência de lugar, cultura e identidade (Canclini, 1989; Hannerz, 1992). Explicam que, enquanto “tráfego de símbolos significativos” (Geertz, 1973), as culturas e as identidades não especificam objetos que se mostram ao observador sob a forma de essências imutáveis ou repertórios estáveis e facilmente reconhecíveis de sentimentos ou ideias. Existindo, somente, por meio das inevitáveis variações determinadas pelo uso, são concebidas não já, apesar, mas através das mudanças. Deslocadas e desterritorializadas as culturas e as identidades emergem como verdadeiras e próprias construções, formas de representações do si

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relacionais. Como tal, são em contínua transformação no âmbito dos relacionamentos que um grupo humano tem com os outros e com o ambiente que os abriga, baseado na competição e cooperação de diferentes agentes: as comunidades locais, as organizações estatais, os grupos de pressão, os movimentos políticos, os próprios antropólogos. As ideias e as práticas da modernidade são apropriadas e são reincorporadas nas práticas locais, incentivando a fragmentação e a dispersão da modernidade em muitas modernidades, construídas “de baixo” e em constante proliferação (Fergusson, 1990; Esteva, 1992; Sachs, 1992; Hobart, 1993; Escobar, 1995; Grillo, Stirrat, 1997; Rahema, Bawtree 1997; Fairhead. 2000; Dalton et al., 2003; Arce, Long, 2005; Moss, Lewis, 2005). Estas “múltiplas modernidades” (Comaroff, Comaroff, 1993: 1) geram poderosas controtendencias em relação às estratégias globalizantes, mostrando um dinamismo fundamentado na fusão, na mistura e na oposição. Várias perspectivas têm aplicado à natureza o conceito de hibridização, aceitando o convite formulado por Latour (1991) e Escobar (1999) para explorar o potencial heurístico de tal operação. A reconsideração do mundo chamado “natural” revela-se de particular importância para aqueles que estudam contextos marcados por projetos de desenvolvimento de grande impacto social e ecológico. A “máquina antipolítica” do desenvolvimento (Fergusson, 1990), de fato, não só ignora os saberes e as práticas dos indivíduos “marginais”. Transformou, também, a natureza em “meio ambiente”, entendido como um conceito livre de valores e simples termo técnico que se refere a um conhecimento científico neutro. O conceito de “meio ambiente” veiculado pelo desenvolvimento constrói a natureza como algo abstrato, passivo e sem valor, funcional para formas de planejamento desvinculados da experiência concreta dos sujeitos (Sachs, 1992). A própria antropologia, por um longo tempo, não se preocupou em desconstruir os fundamentos desta abordagem, concebendo a natureza como um ente físico, objetivo, uniforme e universal, em oposição à variabilidade das culturas (Latour, 2000: 29). O mundo “mononatural” continuou a ser um objeto neutro e não problemático, independentemente da práxis dos atores sociais e das perspectivas teóricas específicas adotadas pelos antropólogos (Orlove, 1980;

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Descola, Pálsson, 1996; Milton, 1996). Distanciando-se destas abordagens dicotômicas e de oposição, o conceito de “natureza híbrida” pretende, no entanto, destacar a íntima copertencia (Gadamer, 1965) entre mundos da vida, humanos e não-humanos, não mais concebíveis como universos distintos (Descola 2005) mas considerados como aspectos essenciais e qualificantes das múltiplas modernidades e das experiências elaboradas pelas “periferias”. Opondo-se a uma natureza neutra, gerenciável e planejável, promovidas pelas intervenções de desenvolvimento, a adoção de uma perspectiva híbrida e plural nos convida a explorar as “naturezas” como construções situacionais e relacionais que se configuram através da hibridização constante entre matéria e significado, prática e discurso, corporeidade e linguagem. O conceito de “segunda natureza” (Biersack, 2006: 14), permite de pensar a materialidade da natureza em termos antropológicos enquanto produto de discursos e atividades: trata-se de uma natureza que participa no humano porque foi produzida por meio da prática e da conceituação, sem, porém, ser totalmente humanizada. Desta perspectiva, a natureza é o resultado de cruzamento contingente entre biologia e história em situações concretas (Hvalkof, Escobar, 1998). As “identidades da natureza” assim produzidas são constituídas por conjunto variáveis de significados-usos (Escobar, 1999: 10), enraizados nas práticas e colocados em relações específicas de poder. Podem ser entendidas dentro de modelos de natureza e de economia que vão além do nível puramente local. Nesta ótica, a adoção de uma perspectiva híbrida evita a polarização entre “natureza” concebida exclusivamente como categoria cognitiva (Descola 2005) e “natureza” considerada apenas como um “espaço prático” conhecido e “habitado” pela sensorialidade do corpo (Ingold, 2000). Permite de focar a observação sobre a multidimensionalidade da natureza, buscando reconstruí-la por meio de um diálogo entre as perspectivas hermenêuticas, centradas na negociação dialógica dos significados, e as abordagens fenomenológicas, com foco no conhecimento incorporado e nas formas não logocêntricas do saber (Tassan, 2013). A visão de natureza e da sociedade segundo um modelo holístico convida para utilizar modalidades de “descrição eco-política densa” (Peet, Watts, 1996:

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38; Castro, 2000: 180) que compreendam as diversas concepções do ambiente natural e do território, conjuntamente com as crenças e as práticas locais de uso de recursos e mostrem o caráter intrinsecamente político da natureza (Gezon, Paulson, 2005). Em um primeiro lugar, indica que em torno da apropriação e do uso dos recursos naturais se jogam fundamentais dinâmicas de poder (Godelier, 1984). Em um segundo nível, ilustra que, nas crises ecológicas contemporâneas, é cada vez mais difícil separar o que pertence à esfera da “Natureza” e o que pertence ao reino da “Política” (Latour, 2000). Por fim, aponta que a tensão entre as diferentes “naturezas” envolve o confronto, muitas vezes conflitual, entre os interesses e as reivindicações relacionadas a peculiares discursos e práticas ambientais (Escobar 2008). Em alguns casos, a proteção da natureza pode se tornar uma ferramenta para que uma parte da população marginalizada possa acessar aos direitos (Tassan, 2013). No Brasil a dimensão ecológica tornou-se cada vez mais importante nos instrumentos legais que algumas comunidades locais decidem, conscientemente, de utilizar. Considere-se, por exemplo, a aprovação, em 2000, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), por meio da Lei nº 9.985, que permitiu uma reorganização geral das áreas protegidas. Em particular, dois tipos de reservas - extrativistas e de desenvolvimento sustentável - compartilham a dupla finalidade de proteger as populações ecológicas e sociais e as chamadas comunidades “tradicionais”. Em 2007, foi, então, aprovado o Decreto n° 6.040 que estabeleceu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), que afirma a necessidade de proteger os “territórios tradicionais”, definidos como “espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária”1. Nesta visão, a aquisição de novas ferramentas conceituais para estudar o mundo natural a partir de uma perspectiva antropológica, nos permite de compreender as implicações subjacentes à tensão que permeia o Brasil contemporâneo, entre a terra, entendida como simples recurso físico, e o território, elemento 1http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm, ultimo accesso in data 29/10/2014.

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conotativo da identidade coletiva (Almeida, 2004: 45, 48). Explorando a complexidade das culturas e das naturezas, híbridas e plurais, torna-se possível averiguar as margens de negociação ou de conflito que pode se abrir entre a lógica territorializante do Estado e as regras consuetudinárias de uso e de apropriação dos recursos por parte de alguns grupos sociais específicos chamados “tradicionais” (Tassan, 2013). A capacidade de “posicionar” e “articular” as estratégias retóricas e operativas de uma comunidade dentro das peculiares definições culturais e ambientais das lutas por direitos (Li, 2008), permite de captar e valorizar a agency de sujeitos considerados “marginais” e, erroneamente, “naturalmente” passivos.

A CENTRALIDADE DAS MARGENS A análise dos contextos periféricos, como a realidade do Sertão, com a qual se deparou Falcão Bezerra, convida a considerar como as condições dos condenados da terra (Fanon, 1968) - dos povos colonizados e dos escravos, dos imigrantes e dos prófugos, dos refugiados e dos clandestinos, dos povos indígenas e dos indigentes - podem representar modelos inovadores para interpretar a condição das subjetividades contemporâneas, descentralizadas e deslocadas pela aceleração dos mecanismos de fragmentação e deslocamento provocados pela globalização (Giddens, 1992). Reconhecer a centralidade das margens (Malighetti, 2012) significa chamar a atenção para a “vitalidade do lugar” (Escobar, 2008: 30), esquecido precisamente pela predominância desses mecanismos. Observado de uma perspectiva “horizontal” e “dialética” (Biersack, 2006: 17), sensível as interações entre local e global, o local recupera o seu significado relacional e criativo, em virtude de uma marginalidade aberta às experimentações. Segundo este ponto de vista o lugar não remete a uma insustentável coincidência entre territórios, identidades e culturas. Pelo contrário, define um espaço de vida para testar a “produção de naturezas-culturas” que constituem os novos “coletivos” com os quais a antropologia é chamada a se confrontar (Latour, 1991: 130). No local encontram-se o fundamento das “práticas da diferença” que constituem mundos sócio-naturais alternativos (Escobar, 2008: 67) de essencial importância na vida política, cultural e econômica. Nesta perspectiva, o território pode ser visto como

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o conjunto de projetualidades e representações que qualificam um espaço existencial glocalizado, permitindo a expressão das subjetividades (Guattari, 1995). As reivindicações de direitos relacionadas com o reconhecimento de específicas territorialidades que acomunam muitos sujeitos “marginais”, podem ser interpretadas como tentativas de viabilizar o acesso à cidadania por meio de formulações originais de naturezas-culturas consideradas essenciais para as autonomias e as auto-determinações. Atravessados por diferentes mundos culturais e pertenças multi-situadas, os atores sociais rejeitam a própria fundação em termos dicotômicos e essencializantes. Exibem a complexidade e a dinamicidade de suas experiências nas práticas da vida cotidiana, extraídas de uma única lógica de margem e articuladas em arenas, em constante efervescência, nas quais diferentes visões de mundo, interesses e poderes colaboram, contrastam e colidem. O desafio é extrair a cidadania de seu caráter abstrato e configurá-la como espaço de vida (Holston, Appadurai, 1996) e processo dialógico (Grillo, Pratt, 2002), passíveis de análise por meio das dinâmicas de inclusão e exclusão inscritas nas vidas dos indivíduos e nos lugares em que os direitos são quotidianamente negociados, executados ou negados. Laboratórios de formas de humanidade e de produção cultural interpretam as potencialidades para construir ações inovadoras, para organizar as economias, para tratar os direitos e as necessidades (Escobar, 2008). Não só realizam práticas que conectam a esfera abstrata dos direitos à sua fundação sócio-econômica. Combinam também a superação das políticas do “reconhecimento” (Taylor, 1994) e do simples acesso aos princípios jurídicos já estabelecidos, com a participação ativa nas suas mudanças. As consequentes reformulações semânticas do conceito de cidadania baseadas no “direito a ter direitos” (Arendt, 1951), se dão processualmente por meio de ações transformadoras que superam a aquisição formal e político-legal dos princípios já estabelecidos. Promovem a participação na construção de novos direitos associados a interligação entre os aspectos materiais, econômicos, culturais, históricos, sociais, sócio-psicológicos e políticos. Focalizar a atenção sobre as diversas declinações da reciprocidade, que Bezerra considera essencial resgatar do ‘’esquecimento” das políticas do

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desenvolvimento, oferece uma importante contribuição para a exploração destas experimentações. Permite colher o potencial transformador inerente aos métodos relacionais articulados em formas de resistência que não só elaboram reações a realidades percebidas como opressoras, mas também dão forma a estratégias de ações autônomas e propositivas que definem espaços inovadores de mudança.

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