Mamãe eu quero ir além d\'O sole mio: notas para pensar a expressão musical nos palcos no Brasil. IS Working Papers

May 31, 2017 | Autor: É. Silveira | Categoria: Artes, Teatro Musical, ópera
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IS Working Papers 3.ª Série, N.º 13

Mamãe eu quero ir além d’ “O sole mio”. Notas para pensar a expressão musical nos palcos no Brasil Raimundo Expedito dos Santos Sousa Ederson Luís Silveira

Porto, janeiro de 2016

IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 13

Mamãe eu quero1 ir além d’ “O sole mio”. Notas para pensar a expressão musical nos palcos no Brasil Raimundo Expedito dos Santos Sousa Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Brasil Bolseiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG, Brasil E-mail: [email protected]

Ederson Luís Silveira Doutorando em Linguística na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Brasil Bolseiro da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES E-mail: [email protected] Submetido para avaliação: outubro de 2015/aprovado para publicação: janeiro 2016

Resumo O presente trabalho visa apresentar o percurso histórico das manifestações artísticas musicais apresentadas em teatros no Brasil desde os primórdios até à atualidade. Para isso, o trabalho está divido em subseções que estão relacionadas com as seguintes categorias: Teatro Musical, Ópera, Cabaré e Opereta. Deste modo, consideramos a especificidade de cada uma e assinalamos a sua história, que vem sendo traçada a passos tímidos de reconhecimento e que se renova na necessidade de ganhar contornos nacionais, alcançando públicos mais alargados e escapando aos estereótipos de classe a que esteve e está frequentemente vinculada. Palavras-chave: Teatro Musical, Ópera, Cabaré; Opereta; Cultura brasileira.

Abstract This paper aims to present the history of musical artistic manifestations in theatres in Brazil since the early days to the present. Therefore, the work is divided into subsections that are related to the following categories: Musical Theatre, Opera, cabaret and Operetta. In this way, we consider the specificity of each and we mention your history, which has 1

A expressão faz referência a uma música que ficou conhecida na voz da cantora brasileira Carmen Miranda, que trazia o

refrão “Mamãe eu quero” e foi um sucesso na voz desta cantora no passado.

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begun to be traced in shy steps of recognition and is renewed in the need of win national outlines, reaching wider audiences and escaping to the stereotypes of the class that was and is often linked. Keywords: Musical Theatre, Opera, cabaret; Operetta; Brazilian culture.

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Introdução O Teatro Musical no Brasil, a Ópera, o Cabaré e a Opereta constituem artefactos culturais que geralmente não são lembrados quando pensamos em cultura nacional. A partir da importação de estilos estrangeiros eles aos poucos foram ganhando terreno ao mesmo tempo em que aqueles que estavam e estão interessados em fazer permanecer no âmbito nacional estas manifestações artísticas se veem às voltas com a falta de público, a escassez de investimentos e outras limitações. O presente trabalho parte de um percurso reflexivo sobre a especificidade de cada um deles e busca assinalar a história de cada um no Brasil. Esta história vem sendo traçada a passos tímidos de reconhecimento e renova-se na necessidade de ser cada vez mais nossa, alcançando públicos mais alargados e escapando aos estereótipos de classe a que esteve e está frequentemente vinculada.

1. Teatro musical, ópera, cabaré e opereta 1.1. Teatro Musical O Teatro Musical constitui uma forma de teatro que combina música, dança e diálogo. Essa forma de expressão artística é delimitada, por um lado, pela sua correlação com a ópera e, por outro, pelo seu vínculo com o cabaré. Não obstante a sua inspiração decorra da mistura dos dois géneros, o teatro musical coaduna ambas as formas de expressão de modo complementar, uma vez que a música, a dança e a interpretação são executadas por um ator que tem domínio sobre todas essas técnicas. Por sua vez, no cabaré e na ópera as formas de expressão manifestavam-se de modo independente (Veneziano, 1996). Nessa mesma perspetiva conceitual, Silva define o teatro de revista nos seguintes termos: [...] o teatro musical é um género do teatro, uma forma de organização do fato teatral, considerando-se que o teatro deve abarcar, para o ponto de vista contemporâneo, duas grandes divisões, delineadas a partir do movimento geral do texto, a partitura da encenação que a equipa artística segue. As divisões propostas são tributárias da tradição ocidental; contrapõem, de forma direta, o teatro dramático e o teatro musical. O teatro dramático seria todo aquele que acontece em função do jogo proposto e sustentado por um texto. O teatro musical seria uma forma espetacular tributária da presença da música, que surge como elemento estruturante do jogo teatral e pode até mesmo ser o único recurso de tessitura da cena. O que significa dizer o teatro musical (Silva, 2010, p. 2). Com efeito, a distinção mais significativa entre os musicais e as peças comuns consiste na capacidade dos primeiros estabelecerem uma perfeita orquestração entre teatro, canto e dança. Nesse sentido, quanto mais integradas forem as habilidades utilizadas pelo ator, melhor será o seu desempenho performativo. Ademais, no musical o enredo, o figurino e o cenário precisam estar perfeitamente articulados para se obter uma atmosfera de integração. Portanto, estes três elementos são imprescindíveis para se constituir um musical: música, interpretação teatral e enredo (Budazs, 2008).

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O enredo de um musical constitui a parte falada (não cantada) de uma peça. No entanto, também pode remeter à seção dramática de um espetáculo. Por sua vez, a interpretação teatral diz respeito às performances de dança, canto e encenação pelo ator teatral. De acordo com Nogueira (2006), a música e a letra formam, juntas, o escopo de um musical. Ainda segundo o autor, as letras, juntamente com o enredo, geralmente são impressas na forma de um livreto (do italiano libretto, livrinho). De acordo com ele, esse texto é utilizado em peças musicais de géneros como musical, ópera, opereta e cantata. O texto engloba tanto as palavras das partes cantadas quanto das faladas. Todavia, distingue-se de uma sinopse ou de um roteiro de peça. Também ressaltando a necessária mistura do texto e da música como estruturantes do teatro musical, Silva argumenta que, sem a música, o teatro musical evidentemente não se sustentaria e perderia sua essência, pois no teatro musical a canção tem um papel que vai além da mera composição: A classificação reconhece uma situação simples de fatura dramatúrgica – ela remete a textos que precisam da música para funcionar, quer dizer, textos de teatro em que a ação precisa da música para o seu desenvolvimento progressivo, consequente. Caso a música venha a ser retirada das peças, elas não conseguem sobreviver, não se sustentam, mesmo que uma parte das canções tenha algum caráter ilustrativo; a alma e o sentido do teatro musical, vale insistir, está na música. Isto não significa localizar nas composições uma tessitura orgânica em relação ao texto ou “poema”, o drama; elas não precisam ser elaboradas em sintonia, em parceria ou graças a um acordo entre dramaturgo e compositor, ainda que este seja o formato ideal do teatro musical (Silva, 2010, p. 2). Quando procuramos depoimentos de personalidades vinculadas ao teatro no Brasil, constatamos que essa ênfase na música como condição sine qua non para o êxito de um espetáculo é reiterada por aqueles que lidam diretamente com as rotinas culturais do teatro musical e do teatro de revista. Veja-se, por exemplo, a opinião de Carvalhinho, um dos ícones do teatro musical brasileiro: Os grandes sucessos musicais daquela época vinham dos palcos do Teatro de Revista, porque o público já saía do teatro assobiando as músicas que acabava de ouvir durante o espetáculo. A música do Teatro de Revista é específica e o compositor tem que ter vocação para sentir a inspiração, vivendo a situação que a música se propõe. Para escrever ou compor para um musical é preciso que o autor tenha intimidade com o trabalho e com o estilo da obra (apud Marques, 2013, s.p).

De acordo com Budasz (2008), os musicais que atingiram maior popularidade são extensos, pois têm duração aproximada de duas a três horas. Esses musicais geralmente são apresentados com intervalos de quinze minutos de duração. Ainda segundo o autor, um musical tem, aproximadamente, vinte a trinta canções de tamanhos diversos

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(incluindo-se uma reprise e adaptação para coral). Como exemplo, ele cita a música-tema, a qual usualmente abre um espetáculo e que tem a incumbência de transmitir ao espectador a ideia nuclear em torno da qual a peça será concentrada. Em algumas situações, a música-tema pode ser executada novamente no final do espetáculo. Conforme Jiménez (2008), no teatro musical, as músicas são executadas entre as cenas com diálogos. Todavia, alguns musicais apresentam canções entrelaçadas e não possuem diálogos falados. Em tais casos, todo o enredo é contado por meio de canções; veja-se o famoso musical “Os Miseráveis”, adaptado de um romance escrito pelo escritor francês Victor Hugo no século XIX. Ainda segundo a autora, esse tipo de performance constitui um limiar entre musicais e ópera. A música e a ópera apresentam, ainda, algumas distinções. Ao passo que a ópera geralmente é apresentada na sua língua original, o musical costuma ser traduzido para a língua na qual é apresentado. Acrescente-se a isso o facto de que numa ópera comummente o elenco é dividido entre cantores, bailarinos e atores, enquanto no musical cada artista exerce as três funções (Veneziano, 1996). De acordo com Budasz (2008), na cultura de matriz erudita musicais como o supracitado “Os Miseráveis”, bem como “Jesus Cristo Superstar”, são concebidos pela crítica de arte como “óperas populares” ou “óperas rock”, mas conservam proximidade com a ópera clássica. Para o diretor musical Marconi Araújo, a maior diferença entre a ópera e o teatro musical consiste no modo de cantar: Há muitas diferenças entre o teatro musical e a ópera. Com relação à intenção dramática, a ópera está intimamente ligada à expressão musical, como apresentar essa frase, e "Legato" é uma obrigação para um cantor desse estilo. Em vez disso, o musical está muito ligado ao texto. A inteligibilidade do texto é fundamental para um cantor desse estilo. Estas diferenças fazem uma mudança técnica. Um cantor de ópera garante uma densa chiaroscuro, som que pode atingir o fundo do palco e pode passar por uma orquestra. Portanto, uma laringe mais baixa, uma total amplificação do aparelho vocal, e um grande golpe. Um cantor de teatro musical vai buscar uma voz mais flexível com um maior estado de espírito, uma voz mais próxima do discurso (e, portanto, com laringe um pouco alta), a amplificação específica usando o microfone, sem muito fôlego; concentrada em trazer toda dramática do texto (Araújo apud Veríssimo, 2011, s.p). Nos musicais em que há ocorrência de diálogos, os instantes marcados por grande emoção dramática geralmente são encenados sob a forma de canção. Daí o conhecido provérbio: “quando a emoção torna-se tão forte no discurso, você canta; quando ela se torna tão forte na canção, você dança” (Tonanni, 2010, s.p). Segundo Nogueira (2006), a canção deve ser adaptada ao personagem (ou personagens) e à sua situação no interior do enredo. O autor sublinha a importância da música ao lembrar que, não raro, o espetáculo se inicia com uma canção que não apenas dá o tom ao musical como também introduz os protagonistas e outros personagens e ainda indica o foco sobre o qual a peça incide. Ainda conforme Nogueira (2006), a ideia inicial para um musical posterior pode ser suscitada pelos

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próprios autores, os quais, tendo em conta a natureza do musical, podem criar os personagens e o enredo ou planeá-los por meio de estudos e experimentos. Budasz (2008) reitera que o teatro musical se notabiliza pela longa tradição de adaptação de livros e outros materiais para sua constituição. Conforme afirmou esse crítico de arte, o teatro musical tem em mira contar uma história ou apresentar uma ação por meio da dramatização, do relato e da música, e, para tanto, deve articular esses elementos de forma harmónica. Isso porque o elemento estruturante não é propriamente a música, mas, antes, toda a estrutura, uma vez que os textos teatrais seriam despojados da sua lógica e seriam subtraídos da sua qualidade estética caso as partituras fossem retiradas. Neste sentido, a música não consiste simplesmente numa ferramenta ou num recurso secundário para provocar um impacto ou conferir maior dramaticidade a uma situação; mais do que isso, a música, conforme visto ao longo desta subseção, constitui um recurso fundamental para a encenação de uma história.

1.2. Ópera O teatro tem origem musical, uma vez que os primeiros atores eram contadores de histórias que se valiam de performances como o canto e a dança para narrar o que contavam e, assim, entreter e envolver mais os espectadores. Esse uso de habilidades múltiplas levará ao desenvolvimento da ópera, que, grosso modo, consiste na conjunção entre a poesia, a música e a arte dramática (Veneziano, 1996). De facto, a ópera tem raízes bastante antigas, que podem ser perscrutadas, por exemplo, no teatro desenvolvido na Grécia Antiga. Budasz (2008), por exemplo, chama atenção para o facto de que os dramaturgos de maior voga na Antiguidade grega, tais como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes valiam-se de coros musicais na escritura de suas tragédias. Já Nogueira (2006) chama atenção para o facto de que a ópera possui antecedentes vinculados ao cristianismo. O autor lembra, por exemplo, que na Idade Média, quando a Igreja católica assume um monopólio cultural e ideológico sem precedentes, o teatro é instrumentalizado como forma de catequese na medida em que a dramatização de textos das Sagradas Escrituras assumia um importante papel admonitório por atingir grandes massas de fiéis que, por serem iletrados, dependiam da oralidade teatral para terem acesso aos ensinamentos bíblicos. Ao transmitir esses ensinamentos por meio da dramatização, a Igreja procurava atingir o maior interesse dos fiéis, beneficiando-se do caráter lúdico propiciado pela teatralização do ensino. Todavia, a origem exata da ópera como género teatral e musical na Modernidade ainda causa discussão entre os críticos de arte e historiadores de música e teatro. Conforme Veneziano (1996), a hipótese mais comum é a de que a ópera, tal como conhecida atualmente, surgiu no século XVI, na Itália. Naquele contexto, diversos músicos, cantores, poetas e dramaturgos se juntavam com a finalidade de produzir espetáculos que eram denominados “comédias madrigais”. Precisamente porque reunia música, poesia e drama, a ópera adquiriu o status de expressão artística sofisticada e, algumas vezes, foi 7

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considerado um género complexo e de difícil assimilação por exigir mais da plateia do que o teatro convencional ou o musical comum (Veneziano, 1996). Na ópera, o drama é apresentado mediante utilização de elementos advindos do drama, entre os quais a cenografia, a indumentária e a arte da interpretação. Todavia, na ópera a letra (identificada como libreto, por razões mencionadas anteriormente) não é falada ou declamada, mas, sim, cantada (Nogueira, 2006). De acordo com Budasz (2008), a primeira ópera propriamente dita teria sido composta nos idos de 1594. Escrita em coautoria por Jacopo Peri e Rinuccini, a primeira ópera de que se tem notícia teve como título Dafne e foi composta para entretenimento da elite florentina. Infelizmente, a obra perdeu-se ao longo do tempo e não há registos textuais dela. Sabe-se, contudo, que Dafne foi composta tendo como objetivo a retomada de uma tragédia grega clássica, e deste modo estava inserida no contexto cultural da sua época, marcada pela tentativa de resgate das artes clássicas. Ainda conforme Budasz (2008), das óperas remanescentes, a mais antiga é Eurídice, que foi escrita por Peri, em 1600, por ocasião das bodas de Henrique IV e Maria de Médicis. Segundo Rieche e Gasparini (2010), no contexto brasileiro, a ópera surgiu no século XIX, quando, de modo geral, era tocada em saraus, isto é, eventos culturais em que grupos, sobretudo da elite, se reuniam nas suas casas a fim de se entreterem coletivamente com base na expressão artística. De acordo com os autores, o mais reconhecido compositor de óperas no Brasil foi Carlos Gomes. Não obstante esse compositor ter encenado grande parte de suas óperas em Itália e várias dessas óperas estarem escritas no idioma italiano, ele geralmente valia-se de temas relacionados com o Brasil, veja-se o título de algumas das suas óperas, tais como Il Guarany e Lo Schiavo. As obras citadas tratam de questões que, no período em que foram escritas, eram pungentes na cultura brasileira, como a questão indígena e o regime escravocrata. Conforme Menezes afirma (2007), atualmente, a ópera produzida no Brasil mantém a proposta que a caraterizou desde quando integrou a cultura brasileira, adotar as tendências da música vanguardista, o que é aliás evidente em exemplos como “Olga”, de Jorge Antunes, e “o Cientista”, de Silvio Barbato. Se no âmbito da construção literária e estética a ópera mantém um estilo que a consagrou, na dimensão da captação de público a ópera enfrenta maiores desafios na contemporaneidade do que no passado. Afinal, a sua audiência é composta, na sua maioria, por pessoas de mais idade que cresceram num contexto de valorização da ópera, ou por elites que obtiveram ao longo da sua educação o gosto por essa expressão artística. Neste sentido, no Brasil, os produtores de ópera confrontam-se, com um duplo desafio: manter o interesse do público apreciador desse género e conquistar os públicos, num contexto contemporâneo no qual a maior variabilidade das possibilidades de entretenimento exige que compositores e atores se desdobrem para atrair a sua plateia (Nogueira, 2006). No entanto, o desafio de manter a atratividade da ópera, um género clássico, numa cultura que tende a valorizar mais o contemporâneo e a novidade, não se restringe ao Brasil. De acordo com Cooke (2005), nos Estados Unidos, casas de espetáculo como o Metropolitan Opera House, de Nova Iorque, têm investido em transmissões ao vivo com a finalidade de 8

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expandir o seu público e, desse modo, conquistar novas plateias. Ainda segundo a autora, outras casas de teatro têm buscado produções balizadas pela tentativa de transpor, para o contexto cultural e histórico contemporâneo, os enredos de óperas compostas vários séculos atrás. Assim, procura-se revitalizar um género que, em princípio, estaria datado por não estar relacionado com temas atuais e, por isso mesmo, com dificuldades em atrair a atenção do público. Cooke (2005) menciona, ainda, uma segunda estratégia, que consiste em produzir óperas contemporâneas que versem sobre questões atuais e, desse modo, sejam capazes de despertar interesse. Nesse sentido, Prado (2011), compositor regente e colunista do jornal O Globo, cita como exemplo o expediente adotado pela Ópera de São Francisco. Em setembro de 2011, a companhia estreou a ópera Heart of a soldier, que tematiza a história verídica de um agente de segurança, Rick Rescorla, “[...] cuja presença de espírito e coragem ajudaram a salvar milhares de vidas durante o atentado ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001” (Prado, 2011, s.p.). Ao trazer para o palco esta questão geopolítica com repercurssões na atualidade, o atentado ao World Trade Center, essa estratégia de construção estética exemplifica claramente o interesse atual pela adaptação temática da ópera a novas realidades históricas e culturais. De facto, embora ainda sejam pouco comuns, as óperas que trazem à baila temas mais atuais têm vindo a ser produzidas com cada vez maior frequência, com a finalidade, já mencionada, de aproximação do género ao horizonte de expectativas e referências do público contemporâneo. Em novembro de 2011, por exemplo, estreou a ópera Satyagraha, do estadunidense Philip Glass, coprodução com a Ópera Nacional Inglesa que relata os primeiros anos de militância pacifista de Gandhi na África do Sul. Em janeiro do ano seguinte, a Ópera de Paris montou La Cerisaie, do francês Philippe Fénelon, baseada na peça O Jardim das Cerejeiras, escrita por Tchecov na viragem do século XIX para o XX, que trata de um tema sempre atual: as mudanças sociais e a inexorável evolução dos tempos (Martin, 2013). Embora estejam longe de ser a maioria entre as produções realizadas atualmente, as óperas desta natureza apontam para um certo esforço de impedir que a ópera fique desatualizada e perca o seu apelo junto dos amantes da arte. Assim, a renovação do repertório consiste numa adaptação necessária para a continuidade do género, que não perde nas suas características, mas as adapta a novas conjunturas históricas e procura cultural (Jiménez, 2008). Essas produções mais atualizadas são intercaladas com produções clássicas em espaços como o Metropolitan Opera House, que, fundado no século XIX, é tido como o maior palco de apresentações de ópera no mundo. Nesse espaço, são executadas anualmente cerca de trinta óperas de diferentes tipos, atendendo a uma plateia variada (Cooke, 2005). Pode-se inferir que essa articulação entre óperas clássicas, já consagradas pelo público e pela crítica, e óperas mais atuais consiste numa forma de manter a ópera como uma expressão artística capaz de atender ao gosto pós-moderno sem, contudo, despojar-se das suas características já cristalizadas. Parece haver, nesse sentido, uma busca pela sintonia entre a inovação e a tradição.

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Esse esforço parece ter obtido êxito, pois hoje temos transmissões ao vivo das óperas nos cinemas pelo mundo, inclusive no Brasil. Veja-se a matinée que, em dezembro de 2006, transmitiu, ao vivo, a versão de 110 minutos de A Flauta Mágica feita por Julie Taylor. Além disso, cinemas nos Estados Unidos, Canadá, Japão, e vários países europeus, que são equipados para apresentações em alta definição via satélite, assistiram à transmissão e foi um grande sucesso, esgotando as bilheteiras de praticamente todos esses cinemas (Martin, 2013). No Brasil, há óperas que são transmitidas em HD e, em muitos casos, ao vivo, por uma rede internacional de cinema desde meados da década de 2000. É significativo, por exemplo, que em 2011 a exibição da ópera “Carmen” no país, em tecnologia 3D, tenha sido vista por cerca de 20 mil espectadores, número inferior apenas ao obtido nos cinemas londrinos (Prado, 2011).

1.3. Cabaré Outra expressão artística cujas raízes estão imbricadas nas do teatro musical é o cabaré. Essa manifestação cultural era a forma preferida de entretenimento das camadas sociais mais abastadas, num local com os mais variados tipos de apresentações artísticas, mesclando música, dança, apresentações humorísticas, ilusionismo e inclusive a ópera (Fenerick, 2005). No cenário mundial, o primeiro cabaré famoso surgiu num bairro boémio de Paris no ano de 1881 e chamava-se Le Chat Noir (O Gato Negro). Le Chat Noir durou pouco, mas outros cabarés apareceram, como o conhecido Le Moulin Rouge, que até hoje é um dos pontos turísticos mais visitados em França (Medaglia, 2008). De acordo com Fenerick (2005), o contexto de emergência do cabaré coincidiu com o momento cultural conhecido como Belle Époque, que se estendeu do início do século XX até ao fim da Primeira Guerra Mundial. Conforme Medaglia (2008) considerou, esse foi um período de ostentação, inovação e efervescência cultural. Os frequentadores do cabaré procuravam uma forma de expressão mais intelectual e inconformista, onde, por exemplo, o cancan fosse aceite sem causar escândalo. Vale a pena lembrar que naquela época essa dança sensual fora declarada ilegal, por ser considerada imoral e indecente, sendo então proibida pela polícia. De facto, o Cancan era uma nova dança que foi considerada um ritmo “endiabrado” por conter coreografias de extrema sensualidade e acrobacias, com liberdade de movimentos, ao som de trombones e cornetas e era composto por dançarinas vestidas com roupas coloridas e ousadas que desafiavam os códigos morais instituídos num contexto de grande repressão sexual. Também observando o caráter subversivo do cabaré, Jiménez (2008) sublinha que foi no cabaré que os travestis tiveram o primeiro espaço para se apresentarem nos palcos, com apresentações pantomimas (de mímicas). Além dessa ideologia transgressora, ainda existiam outras distinções que atraíam pessoas de diferentes procedências (músicos, pintores, dançarinos, escritores, filósofos, banqueiros, funcionários e jornalistas), pois os cabarés contavam com bares e restaurantes. Assim, segundo Jiménez (2008), um dos 10

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motivos de sucesso deve-se ao facto de os espetadores poderem beber e comer enquanto apreciavam as atrações. Nesse sentido, vale a pena destacar com mais detalhes o já citado Moulin Rouge devido à sua importância como espaço de desconstrução de valores normativos e contravenção cultural. De acordo com Fenerick (2005), os proprietários do estabelecimento eram Joseph Oller e Charles Zidler. Eles apelidaram o local de Le Premier Palais dês Femmes (o Primeiro Palácio de Mulheres) e apostaram no seu sucesso, anunciando que o Moulin Rouge se tornaria o mais esplêndido templo de música e de dança. Já no primeiro dia, as suas expectativas foram superadas: os outros cabarés, cafés e teatros de diversões tiveram de se render à magnificência do Moulin Rouge. Medaglia (2008) reitera que as apresentações características do espaço eram protagonizadas pelas dançarinas de cancan, que usavam trajes sensuais e costumavam ter nomes artísticos extravagantes, como a famosa Louise Weber, conhecida como La Goulue. O Moulin Rouge também causou muitos escândalos como, por exemplo, em 1893, quando realizou um desfile de carnaval protagonizado por estudantes de Belas Artes totalmente nus. Após a viragem do século XIX para o XX, os bailes do Moulin Rouge deram lugar ao teatroconcerto, sob a liderança de M. Paul-Louis, um conhecido diretor de teatro de Paris. Assim, até o princípio da Primeira Guerra Mudial, o Moulin Rouge se tornou um verdadeiro templo para a ópera. Nesse templo consagrado à arte, encenavam-se sucessivos espetáculos como a Vouluptata, La Feuille de Vigne, Le Rêve d’Egypte, Tais-toi tu m’affoles entre outras conhecidas peças de teatro da época (Fenerick, 2005: 54). Com o término da Primeira Guerra Mundial, a direção do Moulin Rouge ficou a cargo de Francis Salabert, que cuidava da parte financeira do estabelecimento e deixou a parte artística para o diretor de teatro Jacques-Charles, que sonhava montar um espetáculo com dançarinas estadunidenses. Ele convidou a diretora do Hoffman Ballet a juntar-se a ele e criaram a revista Nova Iorque – Montmartre. No topo da lista de artistas estavam as irmãs Dolly, Rosy e Jenny, as primeiras irmãs gémeas na história dos musicais. Foi nesse momento que o estilo da Broadway entrou no cenário parisiense. Em 1907, a cantora e atriz Mistinguett fez a sua estreia no palco do Moulin Rouge, com a peça “La Revue de La Femme”. Logo se tornaria a “Rainha dos Musicais”, como ficou conhecida (Medaglia, 2008: 47). Atualmente, os cabarés são visitados pela maior parte de turistas e não por espectadores habituais como no passado, e os grandes espetáculos musicais passaram dos palcos dos cabarés para os palcos do teatro tradicional.

1.4. Opereta Na sua origem, a opereta era concebida como uma pequena ópera, composta por apenas um ato. Nesse sentido, era considerada como um género menor e, portanto, menos importante. No entanto, embora tenha uma origem marcada pela inferiorização, a opereta foi-se desenvolvendo gradualmente na Europa, a começar pela França, onde adquiriu proeminência, sobretudo, graças ao trabalho de Jules Hervé, um artista multifacetado que, com mestria, dominava as artes da atuação, composição, regência e canto (Traubner, 2003). 11

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Conforme Traubner (2003) considerou, Hervé teria assinado as primeiras obras francesas do género e logo obteve o privilégio de um novo teatro, exclusivamente destinado às apresentações das operetas, o Bouffes-Parisies. Todavia, o teatro vivia sujeito às restrições do poder público e apenas em 1864, quando as limitações à prática do teatro foram abolidas, a opereta se libertou da obrigação de ter apenas um ato e ganhou amplos favores do público, chegando a conter os três atos do teatro nobre. A partir de então, passaram a chamá-la de ópera-bufa, ou ópera-cómica. No Brasil, a opereta era chamada de Opereta Carioca e era construída a partir de músicas preexistentes, adequadas para contar a história de tipos sociais como o malandro e a mulata, o casal mais tradicional da cena musicada do Rio de Janeiro. Essa expressão artística remetia para uma vertente importante da história da revista teatral brasileira, dos anos 1920 e 1930. Nesse período, os pesquisadores localizaram o aparecimento e a afirmação de um tipo de revista inovadora, de forte caráter local. Tratava-se de uma revista que podia ser definida como brasileira, pois a sua fórmula desenvolveu-se como resultado de uma prática específica da vida artística da Praça Tiradentes; era um formato em que o centro do espetáculo era a música, em especial a música de carnaval (Prado, 1999). Neste sentido, a Opereta Carioca, escrita como uma espécie de ópera cómica, retomou um caminho de pesquisa de forte significado para o gosto local. Destacaram-se, nessa fórmula, o espetáculo Theatro Musical Brazileiro, idealizado por Luiz Antonio Martinez Correa e Marshall Notherland. Essa opereta apresentava com qualidade de seu desempenho o humor permanente, além de músicas escolhidas para revelar o percurso dos amores do casal, a situação proposta no libreto e o espaço social caro às comunidades do presente (Guinsburg; Faria; Lima, 2006).

Conclusão Com efeito, a tradição cultural fez do teatro musical, especificamente no Brasil, um instrumento não apenas de entretenimento como, principalmente, de revisão e crítica de valores morais e factos históricos. Assim, para além da função de promover fruição estética, o teatro musical assumiu uma importante função social ao longo de seu desenvolvimento, e, ao acompanhar a evolução histórica do país, fê-lo de forma crítica, ainda que por meio de recursos da comédia, que sempre foi rotulada como um género menor e mesmo apolítico. Se, conforme Walter Benjamin (1985), o olhar para o passado é motivado, na maior parte das vezes, por indagações do presente, o que motiva um trabalho historiográfico como este talvez seja menos observar como o teatro musical se constituiu no passado do que compreender o processo que o tornou tal como existe atualmente. Neste sentido, parecenos pertinente concluir esta pesquisa tecendo considerações sobre a situação atual do teatro musical no Brasil.

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Como importamos muitos espetáculos da Broadway, não necessariamente no sentido negativo, até mesmo porque a constituição do teatro brasileiro se deu seguindo outros parâmetros, ainda nos é cobrada autenticidade, como se o Brasil não fosse mais a terra das bananas, mas um pedacinho de Nova York, como bem notou a astuta Carmem Miranda: “Banana is my business”. Isso explica, por exemplo, a emergência de montagens de musicais brasileiros como Shrek e A noviça rebelde. Pouco interessa se o herói veio do cinema americano, para os palcos da Broadway e depois aportou por aqui. A Família Adams, por exemplo, em versão nacional foi do gosto do público ao passo que na Broadway teve críticas negativas e saiu logo de cartaz. Os produtores do espetáculo brasileiro alegam que eles apararam os erros que foram cometidos. Ou seja, é melhor transformar o que já temos e aprender com os erros alheios e ganhar dinheiro mais depressa. Essa é a lógica que parece imperar nos nossos teatros. Embora exista também uma nova produção emergente a começar a procurar o nosso modo de fazer esses musicais, como foi o caso do musical Gonzagão - A Lenda. A maior parte ainda tenta produzir “nos moldes da Broadway” mesmo que o assunto seja brasileiro. Por fim, este teatro ainda é para poucos. Estes musicais ainda são inacessíveis para a maior parte do público brasileiro. Muitas vezes, a própria classe artística não consegue consumir o que ela mesma produz daí o elevado número de “convites-amigos” e as “promoções”. O desafio é, portanto, combinar o género teatro musical com a cultura brasileira. Um povo não absorve o conteúdo daquilo que ele não vive. Ele tende a distanciar-se. Formar uma sensibilidade artística é um trabalho de décadas. É difícil dizer se uma ópera oferecida pelo governo, por exemplo, numa praça pública, faz realmente o deleite do público que comparece. É mais fácil afirmar que o público tende a consumir aquilo que os média oferecem, e os formadores de opiniões têm escasseado muito na cena carioca. O público parece mesmo anestesiado pelas novelas de televisão, que são o verdadeiro espetáculo do povo brasileiro. Por essa razão, os atores migram da televisão para o teatro e não o contrário, na maior parte das vezes. O mercado de musicais no Brasil está em crescente expansão. Assim, como na época do Império, nos tempos de Alcázar Lírico, o Brasil sentiu a necessidade de se livrar da linguagem francesa, o que originou uma leva de novos autores, espera-se que a tendência atual da tradição anglo-saxônica, nos leve, com o tempo, a perceber a necessidade de crescente formação dos autores, que ainda nos faltam nesta área.

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IS Working Papers 3.ª Série/3rd Series

Editora/Editor: Paula Guerra Comissão Científica/ Scientific Committee: João Queirós, Maria Manuela Mendes, Sofia Cruz

Uma publicação seriada online do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto Unidade de I&D 727 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia IS Working Papers are an online sequential publication of the Institute of Sociology of the University of Porto R&D Unit 727 of the Foundation for Science and Technology

Disponível em/Available on: http://isociologia.pt/publicacoes_workingpapers.aspx ISSN: 1647-9424

IS Working Paper N.º 13 Título/Title “Mamãe eu quero ir além d’ “O sole mio”. Notas para pensar a expressão musical nos palcos no Brasil” Autores/Authors Raimundo Expedito dos Santos Sousa Ederson Luís Silveira Os autores, titulares dos direitos desta obra, publicam-na nos termos da licença Creative Commons “Atribuição – Uso Não Comercial – Partilha” nos Mesmos Termos 2.5 Portugal (cf. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/pt/)

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