Mammy Water - uma investigação de procedimentos e montagem nos filmes de registro etnográfico de Jean Rouch

June 13, 2017 | Autor: Gabriel Coêlho | Categoria: Jean Rouch, Antropología Visual, Cinema Etnográfico, Montagem Cinematográfica
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Mammy Water: uma investigação de procedimentos e montagem nos filmes de registro etnográfico de Jean Rouch Mammy Water: an investigation of procedures and montage of Jean Rouch’s ethnographic registry films Gabriel Coêlho1

Resumo: Este artigo pretende explorar, através de estudos existentes sobre o cinema etnográfico e Antropologia Visual, algumas estratégias empregadas por Jean Rouch em seus filmes de registro etnográfico que o introduziram e o ajudaram no amadurecimento de seu “método" de registro científico e documental, culminado em filmes como Crônica de um Verão (1961) e Eu, Um Negro (1958). Para tal, procurarei analisar o filme Mammy Water (1955), no qual Jean Rouch faz um estudo sobre os rituais de pesca e sacrifício dos povos que habitam o Golfo da Guiné. Palavras-chave: Antropologia Visual, Cinema Etnográfico, Jean Rouch, Montagem.

Abstract: This article intends to explore, through existing studies on ethnographic cinema and Visual Anthropology, some strategies performed by Jean Rouch in his ethnographic registry films which introduced and helped him in the growth of his scientific and documental registry “method”, culminated in films such as Chronique d’un été (1961) and Moi, Un Noir (1958). For that matter, I’ll analise the film Mammy Water (1955), in which Jean Rouch performs a study on fishing and sacrifice rituals of people who dwell in the Gulf of Guinea. Key-words: Visual Anthropology, Ethnographic Cinema, Jean Rouch, Montage.


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Graduando do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Pernambuco.

A prática documental, ao longo do século XX, seguiu por diversos caminhos, tanto no que diz respeito aos assuntos tratados nos filmes quanto à forma dos mesmos. O clássico documental Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty, foi apenas o pontapé inicial para que o pensamento sobre o registro da realidade e o tratamento dado à mesma pudesse ser amadurecido conforme filmes eram produzidos e debates eram traçados. É importante ressaltar que o que existe hoje no campo do documentário é resultado de uma evolução do pensamento e das visões singulares dos cineastas, porém os primeiros realizadores não imaginavam o rumo que tomaria essa linguagem tão peculiar e, de certa forma, marginal (à época). Como ressalta Bill Nichols: O interesse desses cineastas e escritores não era abrir um caminho livre e desobstruído para o desenvolvimento de uma tradição documental que ainda não existia. Seu interesse e sua paixão eram a exploração dos limites do cinema, a descoberta de novas possibilidades e de formas ainda não experimentadas. (Nichols 2012, p. 116, 117)

Sendo um gênero definido pela impossibilidade de encontrar-se uma definição, analisarei o documentário sob o ponto de vista dos registros etnográficos, ressaltando congruências, divergências e traços estilísticos de uma modalidade fílmica que, mais tarde, deu origem a um novo gênero dentro do cinema, a etnoficção. Para tal, selecionei uma bela e pouco discutida obra de Jean Rouch, Mammy Water, filme no qual estuda os hábitos e rituais de pesca e sacrifício de povos habitantes do Golfo da Guinea. O filme A obra é mais uma da coletânea de filmes de registro etnográfico do diretor. O filme começa com uma imagem de um mapa, uma forma de introduzir-nos ao local estudado pelo realizador. Após os créditos iniciais, vemos a imagem de uma árvore. As imagens que se sucedem parecem construir entre si uma narrativa, um certo “link" que ajuda Rouch a tratar dos temas que estudou de uma forma certamente didática. Escutamos seu comentário: O mar, ao longo do Golfo da Guiné, pertence aos espíritos das águas e a seus aliados, os surf boys, os rapazes da espuma, canoeiros tradicionais. (MAMMY WATER, Jean Rouch, 1955)

Com esta descrição, vemos sucessivas imagens de homens em suas canoas a remar. Crianças os imitam, como se esperassem um dia fazer o mesmo que eles. Após vermos essas imagens, Rouch intervém mais uma vez em off:

Elas brincam ao pé dos castelos dos navegadores portugueses. Castelo de Coramantine, de Anamabou, de Elmina, que Cristóvão Colombo ajudou a construir. (MAMMY WATER, Jean Rouch, 1955)

Podemos perceber, dessa forma, como o diretor se utiliza de suas observações prévias (fruto de pesquisas de campo que duravam meses e lhe rendiam diversas anotações) para criar uma realidade do filme que se dá e frui conforme a montagem e a narração convenientemente alocada. Uma realidade parece ligar-se a outra, criando, de certa forma, uma narrativa que não possui personagens como na ficção, mas atores sociais que são igualmente passíveis de tornar-se personagens. À noite, os pescadores montam canoas e vão em direção ao mar passar um ou dois dias, na tentativa de conseguir alimento. Após seu retorno, capturado pela câmera, Jean Rouch faz um comentário: Mas esta manhã, as pirogas voltaram vazias. (MAMMY WATER, Jean Rouch, 1955)

Ainda que timidamente, Jean Rouch iguala sua realidade presente (a do momento no qual grava a narração para o filme) à do próprio filme (das imagens gravadas). Ao usar uma expressão de tempo que é passível de associação com as duas realidades em jogo, o diretor começa a se inserir na realidade do filme de forma a quebrar um pouco o distanciamento clássico do registro etnográfico (e do documentário institucional) no qual temos uma polarização entre observador e observado. Veremos a seguir que tal característica se acentuará um pouco mais, ainda que o pesquisador continue, nessa modalidade de documentário, distanciado de seu objeto de estudo. Nos próximos trechos, Rouch filma uma cerimônia fúnebre de uma sacerdotisa morta. Seu corpo está decorado e fardado, e, em sua boca, há uma noz de coco. As pessoas executam seu ritual de morte, enquanto, em off, Rouch traça seus comentários. Em meio a eles, ouvimos: Você partiu, e nos deixou sozinhos com nossas preocupações. Você partiu, o que faremos? (MAMMY WATER, Jean Rouch, 1955)

Para tentar analisar este trecho, recorrerei a um artigo de Luiz Adriano Daminello, que comenta a época na qual Jean Rouch sai da França e vai trabalhar no Níger: Foi nesse trabalho que ele começou a ter contato mais íntimo com o povo Songhay através da grande amizade que iria desenvolver com um

operário com o qual trabalhava, Damouré Zika. Guiado por ele, Rouch passou a ter acesso a vários aspectos culturais desse povo. Essa maneira de se aproximar não era simplesmente um método científico, mas uma maneira pessoal de Jean Rouch lidar com o Outro. (Daminello, 2015, p.4)

Numa tentativa de enfatizar o efeito de real mostrado pelas imagens, o diretor dá a sua fala um tratamento afetivo. Reproduz um suposto dizer de um dos indivíduos do ritual. Essa forma de tratar o outro com afetividade já nos dá uma pista de como o trabalho de Jean Rouch evoluirá com os anos, calcado na aproximação do pesquisador com seu grupo amostral e inaugurando, dessa forma, uma antropologia compartilhada. Nas palavras do etnólogo: O cinema, para mim, é um meio de estabelecer um diálogo antropológico entre pessoas de diferentes culturas. O mais importante no cinema são as relações entre as pessoas filmadas e a pessoa que filma. Estas ligações não são episódicas, não cessam quando o filme termina. Por isto estou sempre projetando meus filmes na África para as pessoas que filmei. (Jean Rouch, 1973)

Aos onze minutos do filme, um boi é sacrificado como um tributo ao espírito do mar, Mammy Water (é aqui que assimilamos o nome da obra), que estaria insatisfeita e que por isso não havia de ceder peixes para os “surf boys”. O comentário em off novamente se insere na realidade da tribo, procurando uma aproximação com a mesma: Espírito do rio Pra, Mammy Water, nós te damos o sangue, nós te damos o gim. Dai-nos o perdão do mar. (MAMMY WATER, Jean Rouch, 1955)

Jean Rouch simula mais uma vez uma inserção na realidade da tribo, ajudando a passar o efeito de real de forma afetiva e, de certa forma, didática. Após o ritual de sacrifício, vemos imagens de indivíduos preparando redes de pesca e canoas. Jean Rouch faz seu último comentário: Os homens refizeram a aliança com os espíritos das águas, a aliança com Mammy Water. Eles podem preparar a temporada de pesca. Agora, é o tempo dos surf boys, o tempo dos rapazes da espuma, o tempo do mar, o tempo de Mammy Water. (MAMMY WATER, Jean Rouch, 1955)

Os pescadores se preparam para voltar ao mar e o filme se desenrola em imagens, pelas quais vemos que o sacrifício, afinal, funcionou. Na volta, as redes estão fartas, e até vemos imagens de crianças carregando grandes peixes na cabeça. A obra termina com crianças brincando na beira do mar, e um plano final retrata uma árvore, talvez a mesma do primeiro enquadramento do filme, comentado no começo deste artigo, dando uma ideia de volta, de conclusão, de completude da exposição daquela realidade. Transcendendo a riqueza de relatos e pesquisas que o filme traz em suas imagens e sons, ele se apresenta, afinal, como uma narrativa. Os nativos vão ao mar buscar alimento, falhando em sua jornada. Ao reatar os laços com o espírito do mar, retomam sua missão e são bem sucedidos. Não é o intuito do artigo reduzir a abordagem do filme a apenas uma narrativa de visão eurocêntrica; na verdade, muito pelo contrário. A narrativa se apresenta nessa modalidade do cinema de Rouch como um fio guia para a apresentação da realidade do filme, que é muito rica, como já conhecemos. Considerações finais Percebemos que essa forma de retratar uma sociedade que não a do investigador tenta quebrar as ideias primitivas de “evolução” e “povos selvagens” que surgiram no início dos estudos antropológicos e etnográficos. Fazendo uma análise comparativa, Richard Francis Burton, diplomata inglês do século XIX, em diversos livros que escreveu, prega uma suposta superioridade dos povos brancos para com os negros, sobrepondo a sociedade inglesa da época às sociedades sobre as quais estudava (o explorador também visitou o Níger e até mesmo o Brasil, em sua exploração ao rio São Francisco). Sabemos que essa postura não é exclusiva desse indivíduo. O cinema de registro etnográfico de Jean Rouch é rico não só como registro científico, mas também humano. A parceria do diretor com as pessoas que estuda marca um ponto importante e crucial na junção entre ciência e arte, documento e imagem. Com freqüência a preocupação com uma atitude antropológica leva o observador a se comportar como alguém culto que faz perguntas a pessoas sem qualquer cultura, quando o importante é conseguir um diálogo antropológico entre pessoas que pertençam a culturas diferentes. O cinema, neste sentido, é ideal para o diálogo porque tanto propõe perguntas às pessoas observadas quanto ao observador. (Jean Rouch, 1973)

Podemos constatar essas características evoluírem para uma forma de interação com o que se estuda que culminou num efeito de realidade singular, em filmes como

Eu, Um Negro (1958), Crônica de um Verão (1961) e Jaguar (1967). A aproximação do diretor com os povos que estudava e com as culturas com as quais tinha contato foi essencial para que, ao passar dos anos, pudesse desenvolver um estilo documental que culminou com a criação de um gênero, a etnoficção. A realidade sempre estará em conflito com o efeito de realidade, e questões como essa permanecem como constantes tópicos em discussões sobre o documentário contemporâneo.

Referências Bibliográficas NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. São Paulo: Papirus, 2012. JEAN ROUCH, Encontro anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Rio de Janeiro, julho de 1973. Cinema e Antropologia. MAMMY Water. Direção: Jean Rouch. Films de la Pleiade, 1955. DAMINELLO, Luiz Adriano. Entre ciência e arte: O método etnográfico no cinema de Jean Rouch. Revista Antropologia Visual e da Imagem. Belém, vol. 1, n. 2, p. 114-147, julho/dezembro 2015. Disponível em: http://www.ppgcs.ufpa.br/ revistavisagem/artigos/entre-ciencia-e-arte/2_adriano_pdf.pdf PEIXOTO, Clarice Ehlers. Antropologia e Filme Etnográfico: Um Travelling no Cenário Literário da Antropologia Visual. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica. BIB, Rio de Janeiro, n.°48, 2.° semestre de 1999, pp. 91-115. FREIRE, Marcius. Jean Rouch e a invenção do Outro no documentário. Revista Digital de Cinema Documentário. Doc On-line, n.03, Dezembro 2007, pp. 55-65. Disponível em: www.doc.ubi.pt

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