MANEIRAS DE FAZER CRÍTICA DE ARTE NO BRASIL: FREDERICO MORAIS E FERREIRA GULLAR

June 8, 2017 | Autor: P. Freitas Lima | Categoria: Critical Theory, Ferreira Gullar, Frederico Morais, Arte Contemporânea Brasileira
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MANEIRAS DE FAZER CRÍTICA DE ARTE NO BRASIL: FREDERICO MORAIS E FERREIRA GULLAR

Pedro Ernesto Freitas Lima - UnB1

Resumo: A crítica de arte brasileira ganhou grande importância a nível mundial entre os anos de 1950 e 1970 devido a fatores como a instituição da Bienal de São Paulo, o advento dos movimentos concreto e neoconcreto e a construção de Brasília. O presente trabalho busca entender os caminhos que a crítica tomou a partir desse momento a partir da comparação entre dois críticos com concepções diferentes sobre arte contemporânea: Frederico Morais, que elabora estratégias que vão além do texto para exercer a crítica, como o uso do mesmo código das obras; e Ferreira Gullar, que desconfia da capacidade de comunicação da arte contemporânea e encontra dificuldades para escrever sobre obras feitas em mídias diferentes das tradicionais como pintura e escultura. Palavras chave: Crítica. Frederico Morais. Ferreira Gullar. Arte contemporânea brasileira.

Abstract: The Brazilian art criticism has gained great importance in the world between the years 1950 and 1970 due to factors such as the institution of the Bienal de São Paulo, the advent of concrete and neoconcrete movements and the Brasilia construction. This paper seeks to understand the ways that criticism took from that moment from the comparison between two different conceptions of critics with contemporary art: Frederico Morais, working out strategies that go beyond the text to exercise criticism, as the use of the same work’s code; and Ferreira Gullar, which distrusts the contemporary art communication skills and finds it difficult to write about works done in no traditional media. Key words: Criticism. Frederico Morais. Ferreira Gullar. Brazilian contemporary art.

Nos anos 1960 ocorreram transformações sem precedentes nas artes visuais que alteraram a maneira como os agentes do circuito da arte, entre eles historiadores da arte, críticos e o público passaram a entrar em contato com ela. O presente texto se interessa pelo comportamento da crítica em relação a essas transformações, particularmente no caso brasileiro, e compara dois modos distintos de realização da crítica nos trabalhos de Frederico Morais e de Ferreira Gullar. Enquanto o primeiro,

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Mestrando em Teoria e História da Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, orientado pelo professor Dr. Emerson Dionísio. Bacharel em Desenho Industrial pela mesma instituição com habilitações em Programação Visual e Projeto de Produto.

 

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insatisfeito com os limites do texto como forma de realização da crítica, cria um modo de fazer comentários às obras usando códigos semelhantes aos da própria obra; o segundo desconfia da capacidade de comunicação das novas formas de realização da arte e considera os novos gêneros que surgem nesse período, como os happenings e performances, como fora do âmbito da arte. O período aqui analisado compreende os anos de 1959 a 1975, no qual entende-se que se deu o ápice da atuação crítica tanto de Ferreira Gullar quanto de Frederico Morais. No caso de Gullar, observa-se nesse período a transição de sua situação como integrante da vanguarda neoconcreta para a negação de participação em qualquer grupo formal de vanguarda. E, no caso de Morais, é quando ocorre o desenvolvimento de sua “A Nova Crítica” e da realização do evento “Do Corpo à Terra”, ambos paradigmáticos para a crítica e para a curadoria respectivamente. Críticos e historiadores de diferentes tendências têm apontado os anos 1960 como um período de ruptura com o modernismo. A arte feita a partir desse período, a arte contemporânea, teria provocado uma fratura irrecuperável em relação não só ao modernismo, como também em relação a toda a história da arte (MAMMÌ, 2001, p.77). No Brasil, sobretudo depois do golpe militar de 1964, os artistas, segundo Ferreira Gullar, “voltaram a opinar” sobre os problemas sociais (apud FREITAS, 2013, p.23), mas sem abandonar as revoluções a nível estético e comportamental que estavam em curso com o neoconcretismo. As questões fenomenológicas foram ampliadas e mescladas com as novas figurações, tanto com a arte pop quanto do “objeto”, seguidas pelo “programa ambiental” de uma arte utópica, participativa e tropicalista de um artista como Hélio Oiticica (FREITAS, 2013, p.23). Uma das grandes novidades desse período é a chamada Arte Conceitual. Segundo Freitas (idem, p.47-50) – e aqui o autor prefere falar em “conceitualismo” – essa arte atuará basicamente em três dimensões: da obra de arte em si, ou seja, em questões estéticas, das instituições da arte e do contexto social. A atuação da arte de vanguarda será no sentido de negar a qualidade convencional de “obra de arte” nas suas dimensões de unicidade e de autenticidade, apagando os vestígios físicos que

 

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remontam ao corpo físico do artista. Ainda segundo Freitas, o “conceitualismo” seria uma espécie de decantação histórica de Marcel Duchamp, deslocando a atenção do juízo estético para a crítica institucional e para a consciência ética e política (idem, p.50). Essa Arte Conceitual irá questionar e problematizar as posições, que vão se mostrar instáveis e cambiantes, dos agentes que compõem o sistema da arte, entre eles críticos, curadores, editores, galeristas; do estatuto da obra de arte, por meio da indiferenciação entre documentação e obra de arte; e das instituições que a legitimam (FREIRE, 2006, p.13). Diferentemente da noção modernista de obra de arte autônoma, a arte contemporânea não se restringirá mais à dimensão do objeto, mas trará em si a informação de toda uma rede que a conecta ao circuito da arte. Segundo Cauquelin (2005, p.81), “a realidade da arte contemporânea se constrói fora das qualidades próprias da obra, na imagem que ela suscita dentro dos circuitos de comunicação.”. As novidades artísticas desse período alteram profundamente a prática da narrativa da história da arte. A perspectiva desenvolvimentista da narrativa vasariana dá lugar, no modernismo, à temporalidades simultâneas em que um movimento estético não é resultado do desenvolvimento de um outro movimento. Mais tarde, a percepção em relação à produção feita após os anos 1960 é, segundo Danto (2010, p.70) de desordem narrativa. Belting (2012, p.12) identifica uma perda de enquadramento da arte pela história e vice versa e propõe uma mudança no discurso da história da arte, já que o objeto mudou e não se ajusta mais aos seus antigos enquadramentos. Nessa perspectiva, a disciplina história da arte teria chegado ao fim. A relação do crítico com a arte também se altera, ganha complexidade e parece se tornar confusa. Para Belting (2012, p.311) os discursos da crítica são “abertos”, nos quais não é defendida nenhuma posição fixa. Os textos sobre arte acabam se transformando em uma arte dos textos:

 

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Quem escreve sobre arte assume o papel de um intérprete de música no sentido de que ele é quem faz a música, embora diferentemente do intérprete, pois não observa nenhuma partitura, mas dispõe generosamente das fronteiras abertas do papel que tem a cumprir. Às vezes ele escreve até mesmo a partitura, enquanto os artistas se tornam o seu intérprete, ou sai à procura de novas obras e artistas que lhe garantam o seu papel favorito. (2012, p.311).

Ainda segundo Belting, o especialista em arte é requisitado apenas por uma questão ritual e não mais para um esclarecimento sério. Onde a arte não gera mais conflitos, mas garante um espaço livre no interior da sociedade, ali desaparece o desejo de orientação que sempre estava voltado para o especialista. Onde não existe mais esse desejo, também deixa de existir o leigo (2012, p.40). Essa percepção é endossada por Osorio (2005, p.10). Diante de uma situação de desabrigo e desamparo fomentada pela arte contemporânea e de pulverização do público, a crítica parece ter perdido o território comum da discussão pública. A crise identificada na crítica seria simultânea à crise na política, em que a dificuldade está na prática do dissenso sem submetê-lo ao consenso no espaço comum (OSORIO, idem, p.30). Podemos ilustrar os desafios enfrentados pela crítica em relação à arte contemporânea analisando dois importantes críticos brasileiros que tiveram seu protagonismo nos anos 1960 e início dos anos 1970 e que tiveram comportamentos muito distintos diante da nossa arte de vanguarda (cujas características já foram expostas aqui): Frederico Morais e Ferreira Gullar. Luiz Camillo Osorio (Idem: 16) distingue duas maneiras de prática da crítica: uma onde a escrita é sobre a obra, entendida como uma representação de um sentido da obra analisada; e outra onde a escrita é com as obras, participando abertamente da criação de sentido da obra. Veremos adiante como podemos entender os dois críticos mencionados acima em relação a essa proposta de Osorio, onde podemos identificar Frederico Morais como quem escreve com as obras e Ferreira Gullar como quem escreve sobre as obras. Até o processo de perda de hegemonia da Academia no fim do século XIX, a atividade crítica se baseava em avaliar obras e confrontá-las com os interesses da

 

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instituição acadêmica, enquadrando as obras em termos de gosto e de temas, podendo garantir o “sucesso” de obras na forma de reconhecimento e dinheiro para o artista. Mesmo com a perda do protagonismo da Academia, a crítica era feita baseada em valores acadêmicos, só que agora em outras mãos (CAUQUELIN, 2005, p.36). Matinham-se os mesmos parâmetros de avaliação e a mesma hierarquia que a Academia promovia. Com os movimentos modernos do início do século XX, a crítica passa a teorizar as invenções pictóricas dessas várias correntes estéticas. A arte feita após os anos 1960, cujas manifestações vão para além da materialidade da obra, não admite uma aproximação apenas à maneira de um connaisseur que apreende a materialidade sensível com o exame dos olhos. A questão agora é compreender os meandros das redes constituintes do sistema da arte, onde um contexto mais amplo deve ser considerado, de ordem social com suas implicações dinâmicas na história e na política (FREIRE, 2006, p.75). Os novos procedimentos poéticos dessa arte que agora se expressa nas formas de performance, happenings, vídeo, objetos, instalações, entre outros, obriga a uma redefinição das noções de autoria, de obra e de modos de tempos de recepção (OSORIO, idem, p.57). Em obra publicada em 1975, Frederico Morais se opõe à crítica baseada em critérios objetivos e comenta o ensaio Crítica literária e estruturalismo de Eduardo Portela publicado na revista Tempo Brasileiro (s/d). Combatendo o positivismo crítico, Eduardo Portela considera inconveniente ter a ciência como parâmetro para a realização da crítica, o que significaria submeter a literatura a um código que não lhe diz respeito além de considerá-la em uma situação hierárquica inferior à ciência. A crítica baseada na ciência teria uma “ótica superlativa” e exerceria uma “ditadura de sua verdade”. Em oposição a essa “crítica autoritária, opressora, que em nome de uma hierarquia de valores submete a obra de arte a critérios absolutos e imodificáveis” (MORAIS, 1975, p.48), Frederico Morais considera a crítica aberta uma maneira mais adequada para abordar a arte contemporânea, a qual busca na obra uma multiplicidade de sentidos e não a submete a controles rígidos. Nesse sentido, o crítico se torna também um criador, um artista.

 

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Esse texto é um registro a posteriori da atuação de Frederico Morais com a sua “A Nova Crítica”. Por volta de 1969, insatisfeito com os limites que o texto impunha à crítica de arte e buscando explorar novos caminhos, Morais busca reformular o papel exercido pela crítica, em especial à judicativo-formalista, e passa a atuar como “crítico-artista”, onde elabora videoarte, proposições conceituais e instalações que funcionam como comentários críticos abertos a obras de outros artistas (CHAGAS, 2011, p.2). Essas ações visavam a um experimentalismo em detrimento de uma ânsia pela verdade objetiva, a qual era absoluta e excludente por ter como referência a História da Arte europeia. Em coexistência com essa História da Arte oficial, havia uma contra-história, a qual ele chama de “história guerrilheira”. Essa contra-história seria um território híbrido e múltiplo, desencaixada de categorias e estilos. Portanto ela não poderia se ater a critérios a priori (Idem: 5-6). Para distinguir a produção de artistas como Cildo Meireles, Artur Barrio, Antonio Manuel, Guilherme Vaz, Luiz Alphonsus e Thereza Simões de outros artistas da arte de vanguarda, que estariam inseridos em circuitos estabelecidos de salões e de galerias, Frederico Morais cria os termos “contra-arte” e “arte de guerrilha” (FREITAS, idem, p.29-30). A “contra-arte” estaria circunscrita pela ideia de “vanguarda”, sendo essa “estilizada” e aquela “comportamental”, dicotomia essa que remonta à estrutura bipartida da modernidade pensada, entre outros, por Jacque Rancière e Peter Bürger (Idem: p.31). As características dessa “arte de guerrilha”, para Morais, estariam centradas em três âmbitos: vivencial, ou seja, a obra não existe sem a participação do espectador; conceitual, onde, diante da eliminação da obra, resta apenas o conceito, a ideia, ou um diálogo direto e sem intermediários entre o artista e o público; e o proposicional, o que significa o fim da expressão, por parte do artista, de conteúdos subjetivos em favorecimento de propostas de participação (Idem: p.55). A “arte de guerrilha” será posta em prática por Frederico Morais no evento “Do Corpo à Terra”, realizado no Parque Municipal de Belo Horizonte entre os dias 17 e 21 de abril de 1970. E aqui a ideia é realmente essa, o crítico, agora também

 

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curador, irá sugerir propostas para que artistas realizem suas obras atendendo a certas diretrizes conceituais. O crítico-curador se torna coautor. Esse evento ocorreu de maneira simultânea e integrada à mostra “Objeto e Participação”, inaugurada no Palácio das Artes em 17 de abril do mesmo ano. A ocorrência simultânea desses dois eventos foi uma maneira de chamar a atenção para as especificidades de cada um. O próprio Frederico Morais enumera os aspectos inovadores deles: (...) 1 - pela primeira vez, no Brasil, artistas eram convidados não para expor obras já concluídas, mas para criar seus trabalhos diretamente no local (...); 2 - se no Palácio houve um vernissage com hora marcada, no Parque os trabalhos se desenvolveram em locais e horários diferentes, o que significa dizer que ninguém, inclusive os artistas e o curador, presenciou a totalidade das manifestações individuais; 3 – os trabalhos realizados no Parque permaneceram lá até sua destruição, acentuando o caráter efêmero das propostas; 4 - a divulgação foi feita por meio de volantes, distribuídos nas ruas e avenidas de Belo Horizonte, bem como nos cinemas, teatros e estádios de futebol, tal como já ocorrera com Arte no Aterro. Finalmente, também, pela primeira vez, um crítico de arte atuava simultaneamente como curador e artista. Desde a realização da mostra Vanguarda Brasileira, eu já vinha questionando o caráter exclusivamente judicativo da crítica de arte, dando-lhe uma dimensão criadora. A curadoria como extensão da atividade crítica, o crítico como artista. (2001).

Entre as obras que integraram “Do Corpo à Terra” estão Situação T/T,1 de Artur Barrio (trouxas de tecido recheadas com materiais como sangue, carne, ossos e lixo e espalhadas em um córrego de Belo Horizonte), Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político de Cildo Meireles (em que galinhas vivas amarradas a um poste de madeira foram queimadas) e Napalm de Luiz Alphonsus (incêndio de uma faixa de plástico de cerca de quinze metros em pleno Parque Municipal). Morais vê nessas obras a atitude do artista como um guerrilheiro e a arte como uma forma de emboscada. Diante de uma situação em que tudo pode ser arte, mesmo o mais banal dos eventos cotidianos, o espectador – e não só ele, mas também o artista, o crítico e o público – se veem obrigados a tomar iniciativas, a aguçar e ativar seus sentidos (apud FREITAS, idem, p.82), mudando constantemente de posição.

 

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Outro exemplo do novo modo proposto por Morais de exercício da crítica de arte é seu comentário à obra Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970) de Cildo Meireles, integrante da série de mostras “Agnus Dei”. Após essa mostra, Morais organiza na Petite Galerie, no Rio de Janeiro, a exposição “Nova Crítica”, com obras de sua autoria. Para comentar Inserções, o crítico depositou na galeria cerca de quinze mil garrafas do refrigerante. Essa ação foi realizada com o consentimento da marca Coca-Cola, que inclusive providenciou o transporte das garrafas. Junto a essas garrafas, em que algumas havia inclusive as interferências de Cildo Meireles, havia uma mesa onde se lia a seguinte mensagem: “Quinze mil garrafas de Coca-Cola, tamanho médio, vazias, gentilmente cedidas e transportadas, em 650 engradados, por Coca-Cola Refrescos SA” (CHAGAS, 2012, p.104-112). O comentário de Frederico Morais, que vai além do texto escrito e se instaura como uma extensão material da obra de arte de Cildo Meireles, e é percebido como uma obra feita por um “crítico-artista”. Já Ferreira Gullar vai se relacionar de maneira muito diferente com a arte desse período. Em 1954 Gullar publica A luta corporal, livro de poemas onde o autor refletia sobre o uso do espaço em branco na estruturação espacial dos poemas. O livro fez com que o poeta fosse convidado por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari a participar do grupo de poesia concreta. Mais tarde, Gullar rompe com o grupo concreto e escreve o manifesto neoconcreto, texto usado para fundamentar a I Exposição Neoconcreta, na qual expuseram Amílcar de Castro, Franz Weissmannn, Lygia Clark e Lygia Pape, além dos poetas Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis. Integrado a esse grupo, desenvolve seus poemas espaciais, onde incorpora a participação do leitor/expectador, o que viria a ser a marca do grupo neoconcreto (GULLAR, 2007, p.50). Baseado nas experiências de Lygia Clark em que a artista, ao invés de trabalhar com a representação metafórica e do espaço imaginário na tela age diretamente sobre a tela (Casulos e Bichos), Gullar desenvolve a teoria do não-objeto. A ideia do não-objeto não se refere a algo oposto aos objetos materiais ou a um

 

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antiobjeto, mas sim a um objeto especial onde ocorreria a síntese de experiências sensoriais e mentais (GULLAR, 1959, p.90). Esse seria “um ser do mundo cultural que, por nada representar, é sua própria representação e, portanto, apenas significação” (GULLAR, idem, p.58). Dito de outra maneira, levando em conta o imprescindível manuseio do expectador, “o não-objeto é uma imobilidade aberta a uma mobilidade aberta a uma imobilidade aberta (Idem: 59). Gullar chega a defender a adoção de novos critérios fenomenológicos para a definição da obra de arte. Isso não significava a adoção de uma oposição ao sentido convencional de objeto (FREITAS, idem, p.246). A materialidade, portanto, é imprescindível para a ideia de arte de Gullar. Segundo o próprio Gullar (2007, p.65), seu afastamento no campo da vanguarda se dá em 1962, quando passa a atuar no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). Nessa nova posição, analisando os desdobramentos da obra de Lygia Clark e Hélio Oiticica, o poeta acredita que a produção desses acaba ultrapassando o âmbito da arte. Nos Objetos relacionais de Lygia, onde a obra não existe antes do espectador/participante, o único objetivo da artista seria dar a oportunidade de o outro sentir. Nesses termos: (...) a “obra” não nasce dela, mas dele [do público], e nem de fato é obra: quando enche os sacos de plásticos com água e os põe sobre os braços do outro, tudo o que faz é provocar nele uma sensação que só ele pode sentir e cujo “significado” só ele experimenta ou atribui. Isto, na verdade, é desistir de criar a obra de arte e negar-se a construir uma linguagem capaz de transferir ao outro suas ideias ou seu universo imaginário. Lygia se propõe simplesmente a oferecer ao outro sensações que seus objetos lhe possibilitem, convencida de que não cabe ao artista (a ela) fazer arte, já que isto pode ser feito por qualquer um. (2007, p.66).

Gullar faz uma objeção a Lygia no momento em que acredita que sentir sensações é comum a todos, mas isto não é fazer arte. Quando se institui a impossibilidade de se fazer arte como forma artística, qualquer um se torna artista, o que seria “uma espécie de populismo estético que tenta justificar o beco sem saída a que chegou a vanguarda” (Idem: 66). Essa busca de transcendência em objetos ou em

 

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situações comuns, para Gullar (2005, p.32), se mostra intranscendente, revelando apenas a banalidade desses objetos e gestos. E o acréscimo de mais banalidade na vida se faz sem a necessidade do artista (Idem). O comentário acerca dos Objetos relacionais revela a preocupação de Gullar com a comunicação da obra de arte, o que, para ele, é imprescindível na constituição do elemento artístico. Segundo ele, é incontestável o fato de a arte contemporânea ser incapaz de atingir as massas, o que está estreitamente relacionado com a dificuldade que essa tem de estabelecer comunicação, seja com o público, seja com a crítica. A crítica, por sua vez, não consegue formular juízos mais ou menos precisos, não consegue dizer se uma obra é boa ou má, se é fruto de mestria técnica ou obra do acaso, uma vez que a arte contemporânea estaria formulada em uma linguagem cifrada, impossibilitando a observação de algum juízo objetivo (2002, p. 67). Portanto, seria impossível criticar uma arte que não se pauta por nenhum critério objetivo. Quando essa tentativa ocorre, verifica-se que o crítico produz um discurso tão confuso quanto a obra que ele tem como referência. Isso seria uma demonstração de que a obra de arte, que antes se comunicava com uma minoria de iniciados, agora nem com essa minoria consegue se comunicar. A dificuldade dessa comunicação seria atribuída à vontade do artista de só querer comunicar sua experiência individual. Sua única referência ao mundo comum que compartilha com outras pessoas é sua própria obra. Se essa obra não favorece a comunicação com o “outro”, teríamos chegado ao limite da “destruição” da arte (GULLAR, 2002, p. 83). Umberto Eco utiliza a teoria da informação para examinar o conceito, desenvolvido por ele próprio, de “obra aberta” (apud GULLAR, 2002, p.203). Ferreira Gullar parte daí para discutir a importância de a obra de arte estabelecer comunicação e reiterar, mais tarde, a importância de que o artista se expresse dentro de uma linguagem. Eco prefere chamar a arte moderna de vanguarda de “obra aberta”, ou seja, uma obra que tem como finalidade explícita a ambiguidade. Considerando

 

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que a obra é uma mensagem, ou seja, um conjunto de informações organizadas, para ser perceptível e gerar interesse ela deve se distanciar do seu caráter previsível, de sua banalidade. Portanto, para Eco (Idem: 204), se consideramos a língua um sistema de probabilidades, elementos de desordem aumentariam a informação da mensagem emitida. Dito de outra maneira, o artista recorre a figuras de linguagem tais como metáforas, aliterações, elipses, inversões, sintáticas etc., que dissimulam a significação e intensificam a expressão, dotando-a de originalidade. Esse é um fenômeno genuíno da arte onde essa perturbação da ordem estabelecida pela expressão poética cria uma relação de conflito, de dialética com o mundo e que dá força à expressão artística. No entanto, para produzir sentido e estabelecer comunicação, essa desordem deve ocorrer dentro de uma ordem geral, dentro de um sistema de linguagem, o que determina os limites de “abertura” da obra (Idem: 206). É importante ressaltar que esse processo não se limita apenas ao âmbito físico e sensorial, como pretendiam os gestaltianos, mas se inserem no processo cultural e sensorial. A contestação da sociedade capitalista-burguesa que pareceu se generalizar na segunda metade do século XX produziu, no campo das artes plásticas, os happenings e performances que, para Gullar (2007, p.70-71) são renúncias à obra de arte, onde gestos e atitudes que se bastam a si mesmos, de caráter simplesmente contestatório, niilista e sarcástico demonstram falta de objetivos e de valores. Aliás, a questão do objetivo das novas correntes estéticas ou gêneros artísticos será importante para entendermos sua decisão de não tomar parte em novos manifestos. Gullar parece duvidar da capacidade de novos movimentos artísticos cumprirem seus programas. Quando procurado por Décio Pignatari para integrar o manifesto “Da poesia de consumo à poesia de base”, provavelmente em 19592, Gullar pediu que lhe enviasse

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Em entrevista ao portal Terra a Claudio Leal em 1 de agosto de 2011, Ferreira Gullar diz que Décio Pignatari o procurou para aderir à “poesia de base” um ano e meio após seu rompimento com o grupo Concreto, depois que esse havia proposto uma poesia “matemática” em artigo publicado no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil em junho de 1957. Considerando que seu último manifesto foi Teoria do não-objeto publicado no Jornal do Brasil em 19 de março de 1959, provavelmente a proposta de Décio Pignatari ocorreu após março de 1959.

 

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os chamados “poema de base” que ele publicaria no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, mas se recusava a assinar mais um manifesto que, segundo ele, não iria cumprir o que propunha, como se verificou no fato do não envio dos “poemas de base” (que sequer foram feitos) por parte de Pignatari (GULLAR, 2007, p.24-25). Em 1970, Ferreira Gullar escreve um artigo para O Pasquim chamado É ferro na boneca, onde comenta o ato de Antonio Manuel de ficar nu no vernissage do XIX Salão Nacional de Arte Moderna. Antonio Manuel havia inscrito seu próprio corpo como obra para esse Salão. Após a recusa de sua proposta, o artista, acompanhado de uma conhecida, tirou a roupa no vernissage do Salão e chamou a atenção dos presentes para o fato de que eles deveriam contemplar seu corpo, o qual era uma obra (FREITAS, 2013, p.263-269). Em seu artigo, uma espécie de conto onde misturava ficção e realidade, Gullar tratou com humor e ironia o comportamento de Antonio Manuel, qualificando-o de risível e burlesco (FREITAS, idem, p.294). A certa altura, Gullar narra o que seria um diálogo entre dois pretensos entendedores da arte contemporânea Passado o rebuliço [a nudez de Antonio Manuel], as pessoas voltaram a contemplar as obras e a discuti-las. “Este pedaço de rolha aqui devia ser um pouco maior ou não?” “No meu entender, em vez de rolha, o artista devia por aí um pedaço de linguiça”. “Que absurdo! Comentou um terceiro. Linguiça, o Goover já usou isso na Bienal de Paris”... (1970 apud FREITAS, 2013, p.296).

O trecho acima nos mostra como a análise objetiva da materialidade é um fator crucial para o juízo crítico de Gullar, mesmo diante de uma arte que vai além dessa dimensão. O tratamento irônico ao acontecimento de Antonio Manuel exemplifica a posição de Gullar diante de gêneros como performances e happenings que, como já foi dito, estão além do âmbito da arte. Ao lado da ironia, Gullar também emprega a subtração do nome de artistas em alguns momentos. É o que faz, por exemplo, quando comenta sobre “uma jovem brasileira” que junta cinzeiros de avião roubados para construir suas obras e que, ao buscar nesse delito o conteúdo da sua ação como artista, perde a linguagem e “o sentido dos seus gestos no mundo” (2005, p.59-60). Em  

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nenhum momento do artigo Gullar cita o nome da artista e da obra em questão, a saber, Jac Leirner e Corpus delicti (1992-2001). Podemos entender essa ocultação como uma forma de deslegitimar obra e artista. A comparação entre os dois críticos nos mostra que o conceito de arte varia de crítico para crítico, sendo diretamente impactado pelas experiências sociais e culturais. Não sendo explícito, na maioria das vezes podemos inferir sobre a definição desse conceito, o que é de extrema importância para lermos crítica. Sendo a crítica um dispositivo de atuação no campo político, não faz sentido exigirmos de seus vários agentes um consenso e muito menos fazermos distinções do tipo maneira correta e maneira errada de exercício da atividade. As incompatibilidades entre dois discursos críticos expostas aqui nos mostra como a assimilação do texto crítico necessita de uma leitura para além do próprio texto. Só assim poderemos perceber quais os prétextos que estruturam o texto em questão, contribuindo para a nossa atividade estética de trânsitos entre subjetividades.

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