Manejo e Confiança no Caso de Crianças e Adultos Agressores

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Um adulto agressor pode ser um cara perverso ou impulsivo. O perverso agride por cálculo, manipula, organiza seus ataques. Os impulsivos explodem, por se sentirem "aviltados" ou coisa parecida.

Aquele pai agredia a filha como quem bate num adulto. Explodia por razões fúteis: um objeto pego pela filha sem avisar, e devolvido depois. Isso lhe parecia inaceitável. A questão não era "ser ou não aceitável", mas a desproporção de sua reação, e por isso sua filha ficaria longe dele por um tempo. O Conselho Tutelar me encaminhou os dois. Disse ao pai que o atenderia se a filha pudesse escolher algum lugar para morar durante o atendimento, e ela escolheu ficar com um tio numa cidade relativamente distante [mais de 200 km de distância]. Eu coloquei o pai num grupo misto, onde havia homens e mulheres com demandas bastante distintas. A metodologia não seria aquela de "agressores contam seus deslizes uns para os outros para tomarem (cons)ciência do que estão fazendo e dos seus gatilhos (ou seja: daquilo que dispararia suas explosões)". Nada disso.

Naquele grupo havia um homem recém-separado da mulher, um homem tão forte fisicamente quanto o agressor adulto. Sua reação à separação era pedalar sua bicicleta por mais de vinte quilômetros até um cemitério, se deitar no banco de cimento, às vezes dormir ali, pegar a bicicleta e voltar para a casa vazia. Ele estava desempregado e tudo precisaria ser reorganizado em sua vida. Mas ele não agredia ninguém. Ele criou seu ritual de luto. Outro senhor estava aposentado por problemas de saúde: intoxicação por metais pesados, decorrente de mais de vinte anos trabalhando na indústria farmacêutica. Ele tinha problemas nos rins, fígado e insônia, devidos aos níveis de intoxicação. Tínhamos também mulheres naquele grupo. Uma delas havia perdido a filha de nove anos de idade, por leucemia. E por aí vai.

O pai agressor estava diante de outras perdas e de modos distintos de se lidar com elas. Isso lhe foi benéfico. O fato de eu ter feito o arranjo de modo a que sua filha estivesse protegida de suas explosões, logo lhe pareceu oportuno, e ele saberia agradecer por isso. Um pouco adiante, na terapia, recebi sua mulher no mesmo grupo. Ela era madrasta da menina afastada e pôde mostrar, pelo seu ângulo, aspectos descontrolados do marido frente a frustrações ou contrariedades. Ter sido exposto pela mulher naquele grupo específico potencializava a autorreflexão do pai quanto a suas atitudes.

Para que se entenda a parte mais substancial do processo, precisamos olhar para o manejo da situação. Muita gente pensaria que "a retirada da filha do alcance do pai só geraria mais raiva nele, e não qualquer reação terapêutica positiva". Muito pelo contrário. A retirada da filha do alcance da "órbita de explosões" do pai trouxe a ele: 1) confiança em mim; 2) gratidão pelo processo terapêutico decorrente de 3) uma aliança comigo, pró-filha e a seu próprio serviço [a serviço de um maior autocontrole por parte dele].

Vamos definir confiança? Podemos pensar em muitos ângulos para a confiança. "Segurar o fio" seria a primeira imagem que me vem à mente. Seguir uma trilha, seguir um caminho, percorrer um trecho de aprendizado. Fiar. Fiar-se. Fiança. Confiar. Fio de Ariadne, Moiras, tecelãs.

Existem vários outros "tons de confiança", mas aqui quero destacar um que se aplica à contenção do agressor, seja ele adulto ou criança. Friso aqui que não estou falando do "adulto perverso", mas do "adulto impulsivo", como já assinalei no início desse artigo. A confiança, no caso, é de outro tipo e é "evocada" [ou "constelada"] pelo fato do terapeuta encontrar um enquadre terapêutico que "contenha" a impulsividade do agressor e a "module". Que consiga apaziguá-la, enfim, no curso da terapia.

Remeto o leitor ao meu artigo "Uma Cadeira para a Escuta". Ali, toda a voracidade e inveja de um menino foram "contidas" de tal maneira que, naquela contenção, ele obteve inúmeros ganhos, ainda que não perceptíveis "de pronto", ou "no ato mesmo da contenção". Senão, vejamos:

O menino impediu que seus colegas desenhassem ou pudessem brincar, atirando giz em todos e querendo derrubar o armário de brinquedos; com isso, ele estava me mostrando que não conseguiria brincar ele também, no meio deles. Contendo-o, eu o permiti que ele pudesse se inscrever na brincadeira coletiva, mais adiante. "Criar regras" é só parte desse processo. Ser "não vulnerável" aos ataques dele frente às regras estabelecidas é a parte mais importante na situação, vista de forma mais ampla.

Sua mãe entrou na sala de terapia após os demais meninos saírem. Puxou uma cinta com a qual queria agredir o menino. Eu intervi, mostrando que aquela era uma questão de respeito ao espaço coletivo e não "de quem bate em quem". Com isso, eu protegi o menino de sua mãe e, o que é mais importante, protegi a mãe do menino dele mesmo, em sentido mais amplo, porque ele era o motivo de tristeza da mãe. Esse tipo de proteção costuma causar uma profunda gratidão na criança envolvida e, por consequência, a efetivação de uma aliança terapêutica entre ela e eu. Por minha atitude ser "demarcatória" em lugar de "retaliadora", eu me mostro como alguém que "sobrevive ao seu ataque mantendo a integridade do enquadre", e essa é a parte mais importante do manejo, para obter confiança e respeito [ambos] por parte do garoto.


Quando eu peço para o tio da criança estar presente na próxima sessão e trago um adulto masculino para o contexto, a criança percebe que eu agora "sobreviverei aos seus ataques e descontrole", que serão contidos pela aliança entre seu tio e eu. E mais, quando eu peço a esse tio que vá à sua escola, no recreio, e pergunte aos seus inimigos "como e porque eles se tornaram inimigos dele", eu viabilizo para ele, através do tio, a oportunidade de "recuperar alguns amigos dentre as inimizades feitas", de "reparar relações pela mediação de um homem, mais forte do que ele e seus inimigos". Com essa "dobradiça ambiental" família-escola, o menino se inscreve em relações onde "todos estarão cooperando para a retomada de seu controle e apaziguamento de sua inveja-voracidade", via diálogos entre professores e tio, colegas e tio, tio e eu, mãe e tio, de modo que o menino poderá, não só 1) fazer novos amigos nas sessões terapêuticas quanto 2) recuperar alguns que perdeu no âmbito escolar; além de 3) ver sua mãe protegida dele mesmo, pela inscrição do tio no âmbito da "preocupação com ele", tio esse que se manifesta como "aliado a mim", aliado do terapeuta, portanto. Ou, em outros termos: "meu representante fora das sessões". Isso tudo resulta numa espécie muito específica de confiança do menino em mim, decorrente desse manejo.


No caso do adulto agressor:

Eu crio uma situação onde a filha está protegida dele, como pré-condição para atendê-lo; isso faz parte do manejo. Num primeiro momento, a filha fica grata a mim e é inscrita num quadro de cuidado familiar ampliado [pelos tios do interior];

Além disso, a madrasta da criança é trazida para o grupo terapêutico e o pai pode se enxergar pelos olhos: 1) tanto da filha que está distante [através de sua ausência], como pelos olhos da parceira inscrita em seu grupo terapêutico que trabalha suas questões domésticas em ambiente ampliado [onde outros padrões de reação às frustrações são trabalhados em paralelo, e ele conhece dificuldades emocionais e padrões reativos diferentes dos dele].


Por tudo isso, o pai também passa a ter confiança em mim.


A filha só quis voltar para casa depois de um ano. Depois de ver o pai saber respeitá-la à meia distância como nunca pôde em toda a sua vida até então.





Marcelo Novaes

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