Manifesto do Povo de Terreiro por Justiça

August 22, 2017 | Autor: Hendrix Silveira | Categoria: Liberdade Religiosa, Batuque
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MANIFESTO DO POVO DE TERREIRO POR JUSTIÇA


"(...) nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica,
plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar
os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo (...)."

Bula Dum Diversas emitida pelo Papa Nicolau V ao Rei Afonso V de Portugal, no ano de 1452, que inaugura um processo histórico de cooptação do Estado por ideologias que fomentam o racismo e a intolerância religiosa.

Devido ao processo econômico instituído nos três continentes americanos, formou-se um tráfico transatlântico de seres humanos que, tirados de suas terras natais, foram escravizados majoritariamente no Brasil, nas Antilhas e nos Estados Unidos. O Batuque (RS, SC, PR, Uruguai e Argentina), o Candomblé (BA, RJ, SP), o Tambor de Mina (MA, PA, AM), o Xangô e o Xambá (PE, PB, SE, AL), além da Santería (Cuba, EUA) e o Vodu (Haiti, República Dominicana) são tradições (re)estruturadas nas Américas a partir da diversidade cultural africana. Essas (re)estruturações se deram por meio de adaptações, agregações e supressões de elementos originais africanos por causa do processo de destituição epistemológica e da realidade disponível ao negro que vivia, em sua condição diaspórica, sem liberdade física, nem de expressão, num completo "desenraizamento material e simbólico [...] configurando-se no processo de desumanização mediante às sucessivas etapas de desterritorialização operado pelo tráfico transatlântico" (JESUS; et al).
A matriz civilizatória africana, no Rio Grande do Sul, manteve-se viva, principalmente nas senzalas de Rio Grande e Pelotas e, com a abolição da escravatura, se expande para todo o estado, para outros estados do Sul do país e também para o Uruguai e Argentina. Extrapola classes sociais, níveis sócio-educativos e grupos étnicos. O Batuque, uma das principais expressões da tradição de matriz africana no sul do Brasil, fundada nos "princípios e valores civilizatórios de humanidade negra africana que enxerga homens e mulheres sob outra dimensão que não a ocidental" (JESUS; et al), tem sido alvo de um ataque que se arrasta historicamente proveniente da sociedade como um todo, cuja ótica ainda está arraigada a um ideário predominantemente xenófobo, preconceituoso em relação a qualquer alteridade. As atuais politicas de reconhecimento e ações afirmativos ainda não são suficientes para garantir os direitos, e sequer o respeito, a essa tradição africana que permanece às margens pelo racismo institucionalizado (e institucional). Assim a sociedade envolvente mantém seus estigmas, estereótipos, preconceitos e discriminações para com as expressões culturais, filosóficas e religiosas do povo Afro-descendente.
A fé católica foi trazida ao Brasil pelos portugueses que se estabeleceram no território a partir de 1500. Na sociedade colonial a fé católica era obrigatória, não sendo toleradas outras formas de manifestação religiosa. Por essa razão, as populações negras escravizadas foram obrigadas também a receber o batismo e observar os preceitos católicos. Sendo proibidos de expressar seu modo de vida, foram desterritorializados porque arrancados de sua terra natal, mais também de sua forma de ser.
Durante a transição da Idade Média para a Moderna, o conceito europeu sobre os africanos era predominantemente depreciativo. Os historiadores Mary Del Priori e Renato Pinto Venâncio (2004, p.56) nos falam de como a cor negra era associada ao mal e ao diabo em contos moralistas e tratados de demonologia e o etnógrafo francês Pierre Verger (1997, p.23) complementa afirmando que na concepção dos negreiros "'[...] o meio mais seguro e mais desejável de conduzir à Igreja as almas dos negros[...]'" é escravizá-los, pois se deixá-los em África estariam com suas almas ameaçadas pelo paganismo ou pelo islamismo. Eis um motivo santo, na ótica dos escravizadores, para a conversão dos negros. Porém, havia resistência por parte deles. Mas muitos foram detidos, torturados ou assassinados por declararem abertamente a não aceitação da imposição religiosa,
Já na formação do Império do Brasil, a nossa primeira Constituição (1824) proibia a construção de templos de qualquer religião que não fosse a Católica, religião oficial. A repressão fez com que os cultos da matriz civilizatória africana só podiam ser realizados de forma oculta, escondida, e jamais seriam entendidos, tanto pelo Estado como pelo sociedade envolvente, como vítimas numa ação pública ou civil contra eles.
A República derrubou o Império, mas não alterou muito de sua constituição. A laicidade do Estado foi promulgada, mas efetivamente a força da Igreja estava para além de questões legais. Assim promulgou-se um Código Penal (1890) que criminalizava as práticas da cultura afro-descendente e, em 1927, é criada a Comissão para a Repressão ao Baixo Espiritismo da Polícia Civil que ganha uma Delegacia em 1934.
Em 1937, em pleno Estado Novo, é criada a Seção de Tóxicos e Mistificação da 1ª Delegacia Auxiliar cuja função era a de combater as mistificações e, em 1940, foi promulgado novo Código Penal onde as manifestações da sabedoria da matriz africana eram tachadas de curandeirismo e charlatanismo e, com isso, passível de perseguição e punição.
Durante a Ditadura Militar as Comunidades Terreiros foram obrigadas a pedir permissão ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para poderem tocar seu tambor, realizar sua festa, cultuar suas divindades. As casas denunciadas eram invadidas por policiais montados à cavalo que adentravam as casas soltando os cães, batendo nas pessoas – muitas das quais senhoras idosas, inclusive manifestadas com seus Orixás – quebrando e confiscando todo o material de culto. Os vivenciadores da tradição de matriz africana acabavam presos simplesmente por vivenciarem sua cultura.
Na última década dezenas de Leis foram propostas nos legislativos de todo o país, nas esferas municipais, estaduais e federal, com o intuito de coibir as práticas da tradição de matriz africana. O crescimento da população evangélica também fez aumentar os enfrentamentos ao povo de terreiro que são cotidianamente agredidos verbalmente e até fisicamente.
Acreditamos que os aparatos jurídicos precisam ser melhor adequados às demandas do povo de terreiro. Assim, a criação de um Delegacia de Combate ao Racismo e à Intolerâncias Correlatas; educação e formação das polícias militar e civil para que se apropriem conceitualmente do que são as tradições de matriz africana; e capacitar delegados, juízes e advogados para atuarem com propriedade nas questões que envolvem as tradições de matriz africana e afro-brasileiras são pontos importantes para a erradicação do problema, para que o nosso estado se torne efetivamente justo; para que haja respeito mútuo e que haja uma sociedade mais digna e democrática tanto ética quanto moralmente; e para que haja a reparação histórica dos danos causados pelo próprio Estado às tradições de matriz africana e afro-brasileiras. Desconstruindo esse paradigma do mal fundado em ideologias excludentes, racistas e xenófobas, reparando, assim, a imagem dessa visão de mundo dos povos africanos e seus descendentes.
Entendemos que a denotação laica do Estado jamais deve ser questionada, entrementes, diante do exposto, é crucial que se entenda, também, que as ações públicas e civis contra as tradições de matriz africana são atos político-sociais e que é dever do Estado Democrático "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos". (CF, 1988)

Púpọ̀ Àṣẹ Gbogbo!

Prof. Esp. Bàbá Hendrix Silveira
Comissão Organizadora da VI Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa


Referências

BRASIL. Código Penal de 1830/1890/1940. Disponível em . Acesso em 01/06/2012.
___. Constituição (1824). Constituicão Politica do Imperio do Brazil. Disponível em . Acesso em 06/01/2014.
___. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em . Acesso em 06/01/2014.
DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. Ancestrais: uma introdução à história da África atlântica. Elsevier: Rio de Janeiro, 2004.
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MOURA, Tatiana Pintos. As relações entre o Estado e as religiões afro-brasileiras durante a ditadura militar (1964-1985). In: Monographia: África Contemporânea e Estudos Afro-Brasileiros: Ensaios de Pesquisa Histórica. Porto Alegre, n. 1, 2005. Disponível em: . Acesso em 06/01/2014.
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VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1997.

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