MANIHOT ESCULENTA: DO VISUAL AO MUSICAL (see page 178)

June 14, 2017 | Autor: Flaviana Sampaio | Categoria: Choreography (Research Methodology), Dance
Share Embed


Descrição do Produto

 

GOVERNO DO ESTADO DO AMAZONAS Omar Abdel Aziz | Governador José Melo de Oliveira | Vice-Governador Odenildo Teixeira Sena | Secretário de C.T&I Maria Olívia de Albuquerque Ribeiro Simão | Diretora-Presidente FAPEAM

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS Cleinaldo de Almeida Costa | Reitor Raimundo de Jesus Teixeira Barradas | Vice-Reitor

EDITORA UNIVERSITÁRIA Evelyn Lauria Noronha | Diretora

CAPA Rômulo Nascimento

CONSELHO EDITORIAL Ademir Castro e Silva | Cristiane da Silveira | Evelyn Lauria Noronha (presidente) | Maria das Graças Vale Barbosa | Patrícia Melchionna Albuquerque | Sérgio Duvoisin Júnior | Silvana Andrade Martins | Simone Cardoso Soares | Valmir César Pozzetti __________________________________________________ DÁCIO, Gabriela; LIMA, Gabriel; COSTA, Raíssa;. (Orgs.). Anais do IV Seminário de Letras e Artes e II Simpósio de Música Íbero-americana: transdisciplinaridade e temporalidades. Manaus, AM: UEA Edições, 2013, 382 p. ISBN 978-85-7883-268-1

1. Música. 2. Ensaios literários. 3. Artes. I. Título. __________________________________________________________________________

    Os conceitos, as afirmações e os erros gramaticais contidos nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores, assim como quaisquer imagens inseridas nos textos. De igual modo, os organizadores restringiram a revisão formal dos textos apenas à formatação estabelecida nas circulares. Assim, as incorreções quanto às normas da ABNT que extrapolam esse referencial são de inteira responsabilidade dos autores.

IV Seminário de Letras e Artes e II Simpósio de Música Íbero-americana: transdisciplinaridade e temporalidades

EQUIPE DE ORGANIZAÇÃO Juciane Cavalheiro (Coordenação Geral – UEA) José Máximo Leza Cruz (Coordenador Adjunto – USAL) Allison Leão (PPGLA-UEA) Fabio Amorim de Melo (PPGLA-UEA) Gabriel Lima (PPGLA-UEA) Gabriela Dácio (PPGLA-UEA) Gustavo Medina (PPGLA-UEA) Luciane Páscoa (PPGLA-UEA) Karen Reginne Amorim de Melo (Letras-UEA) Márcio Páscoa (PPGLA-UEA) Mauricio Matos (PPGLA-UEA) Raíssa Costa (PPGLA-UEA) Rômulo Nascimento (PPGLA-UEA) Vanessa Monteiro (PPGLA-UEA)

MONITORES

Andrey Costa Bacovis (Música-UEA) Benjamin da Santa Cruz Prestes (PPGLA-UEA) Dênis Nascimento (Letras-UEA) Edy Rodrigues da Silva (Dança-UEA) Filipe dos Santos Alexandrino (Música-UEA) Francisco Jayme Cordeiro da Costa (Música-UEA) Graziela Ramos Paes (PPGLA-UEA) Ingrid Oliveira de Souza (Dança-UEA) Karen Reginne Amorim de Melo (Letras-UEA) Marta Patrícia Faianca Sodré (Dança-UEA) Patrícia Maria da Silva Ferreira (Letras-UEA) Raúl Gustavo Brasil Falcón (Música-UEA) Sílvia Raquel de Souza Lima (PPGLA-UEA) Valdeane Silva dos Santos (Dança-UEA)

Apresentação É com grande prazer que os organizadores do IV Seminário de Letras e Artes e II Simpósio de Música Ibero-americana, cujo tema é transdiciplinaridade e temporalidades saúda a todos os participantes. O evento conta com a Universidade de Salamanca como coorganizadora recebe recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, Universidade de Salamanca e Universidade do Estado do Amazonas. Reunidos entre os dias 25 e 27 de setembro de 2013, propomos trocar ideias, circular a produção acadêmica em âmbito regional, nacional e internacional e debater questões pertinentes aos estudos literários e as artes. Nesta oportunidade, temos a satisfação de trazer a público os Anais do IV Seminário de Letras e Artes e II Simpósio de Música Ibero-americana: transdiciplinaridade e temporalidade, reunindo boa parte dos trabalhos completos apresentados durante o evento. Os artigos que compõem este volume foram ordenados alfabeticamente, a partir do nome de seus autores. Para facilitar a localização dos trabalhos, na página subsequente encontra-se um índice de autores. Quando se tratar de co-autoria, a ordem alfabética partirá do nome do primeiro autor. Mais do que uma compilação de trabalhos, esperamos que o IV Seminário de Letras e Artes e II Simpósio de Música Ibero-americana torne-se uma jornada de debates que possam agregar conhecimento e novas discussões acerca das áreas envolvidas no evento.

Gabriela Dácio/ Gabriel Lima/ Raíssa Costa Organizadores            

Índice de Autores Alexandre da Silva Pimentel ...................................................................................................... 6 Annie Martins........................................................................................................................... 19 Blás Torres Neto....................................................................................................................... 31 Camilla Evangelista.................................................................................................................. 43 Carmem Lúcia Meira Arce....................................................................................................... 58 Cleiciane Maia Ferreira ............................................................................................................ 71 Daniely Peinado dos Santos ..................................................................................................... 83 Dayse Dias Silva e Costa.......................................................................................................... 92 Débora Renata de Freitas Braga............................................................................................. 103 Décio Viana da Silva.............................................................................................................. 118 Dilce Pio Nascimento............................................................................................................. 132 Eli Neuza Soares da Silva ...................................................................................................... 146 Fabio Nutti Marangoni ........................................................................................................... 155 Fabricio Magalhães de Souza................................................................................................. 166 Flaviana Xavier Antunes Sampaio ......................................................................................... 178 Gislaine Regina Pozzetti ........................................................................................................ 191 Graziela Ramos Paes .............................................................................................................. 201 Gustavo Angelo Dias.............................................................................................................. 213 Isadora Santos Fonseca .......................................................................................................... 225 Joêzer de Souza Mendonça .................................................................................................... 235 Joicylene Sabóia de Oliveira .................................................................................................. 245 Julius François Cunha dos Santos .......................................................................................... 254 Karen Reginne Amorim de Melo ........................................................................................... 263 Maíra Dessana Ferreira da Silva ............................................................................................ 272 Maria Beatriz Licursi.............................................................................................................. 280 Maria Celeste de Souza Cardoso............................................................................................ 288 Márcio Pacheco de Carvalho.................................................................................................. 306 Marcos Alan Costa Farias ...................................................................................................... 311 Meireane R. R. de Carvalho ................................................................................................... 318 Michelle Marques de Moraes ................................................................................................. 330 Raúl Gustavo Brasil Falcón.................................................................................................... 341 Rômulo do Nascimento Pereira.............................................................................................. 353 Silvia Raquel de Souza Lima ................................................................................................. 365 Tiago Rodrigues Soares.......................................................................................................... 369

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO: A CONSTRUÇÃO POÉTICA DO ARQUIVO   Alexandre da Silva Pimentel (UEA) Existem imagens através das coisas e imagens através das palavras... Fausto Colombo Arquivo e memória Para que se possa começar a pensar a noção de arquivo, é preciso pensar a memória não como algo abstrato pertencente a uma consciência (ou inconsciência), mas como representação; e não apenas uma forma de representação, mas várias. Entende-se aqui o ato de “representar” como a transformação de algo abstrato e subjetivo (como o pensamento ou uma recordação, por exemplo) em algo concreto. Nesta percepção, “representar” assume um sentido de materialização da memória, de torná-la sensível, palpável, manipulável, armazenável. A memória humana, enquanto forma de relacionamento com o passado e depósito de acontecimentos é ineficaz em sua tentativa de completude, em sua busca de apreensão total dos instantes ou do mundo. Em outras palavras, a memória humana nada mais é do que um grande arquivo de recordações, mas um arquivo falho porque, quase sempre, fugídio; trata-se de uma memória atormentada pelo fantasma do esquecimento. As diferentes culturas têm, ao longo da história, criado mecanismos diversos para lidar com este esquecimento que ameaça suas respectivas trajetórias, seus mitos e suas tradições, ou seja, a humanidade vem, através dos tempos, criando formas de materializar a memória dandolhe suportes para que ela possa resistir ao tempo e ao esquecimento. Com a invenção da escrita como suporte da memória, foi possível a construção de um arquivo físico mais confiável porque concreto e, por isso, menos fugaz do que o pensamento abstrato1. Deste modo, o ato de escrever tornou-se uma forma de construção de arquivo porque materializa os pensamentos ao armazenálos em suportes físicos. Tais suportes físicos vêm sendo utilizados pelo homem em seus mais variados modelos de civilização desde então. Fausto Colombo reporta-se à lenda de Simônides, fundador da arte da                                                                                                                 1  É  interessante  ressaltar  que  a  escrita  não  é  a  única  forma  de  suporte  da  memória  criado  ao  longo  da  história   humana,  embora  tenha  sido  (e  ainda  seja)  o  mais  tradicional  e  popular  na  maioria  das  culturas  e  sociedades   ao   redor   do   mundo.   Como   exemplos   de   outras   formas   de   suportes   da   memória   é   possível   citar   a   dança,   os   rituais,   as   histórias   transmitidas   oralmente,   a   música,   o   canto,   o   desenho,   a   escultura,   a   pintura,   etc.   Percebe-­‐ se,  com  estes  breves  exemplos,  que  a  arte  se  tem  apresentado  como  um  dos  principais  suportes  da  memória  e   do  pensamento,  principalmente  nas  sociedades  não  letradas.    

 

6  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   memória, para revelar o segredo da personagem: “Colocar as lembranças em lugares exatos, para daí tirá-las nos momentos de necessidade” (COLOMBO, 1991 p. 31). A crônica mítica de Simônides é utilizada pelo autor como ponto de partida para analisar o uso do suporte físico da memória no antigo Império Romano, principalmente no que concerne aos seus tradicionais três grandes estudos de retórica: Ad Herennium (autor anônimo), De Oratore (de Cícero) e Tratado sobre a Oratória (de Quintiliano). Colombo levanta a hipótese de que já na época grega, a arte oratória teria sido responsável por uma renovação dos métodos de memorização, pois, “a retórica necessita de uma memória nova, ágil e capaz, apta a permitir a correta reevocação de uma oração qualquer.” (COLOMBO, 1991 p. 31). O uso que a retórica faz da escrita potencializa seu significado enquanto suporte, uma vez que já não serve mais apenas ao armazenamento ou conservação do passado, mas principalmente à ativação, ou ainda, à reevocação do passado. Esta característica do materializar para posteriormente reevocar é traço marcante da obra de Arthur Bispo do Rosário, a qual será abordada mais especificamente ao longo deste texto. Em Bispo, a materialização da memória se dá não apenas através da escrita (e é interessante mencionar o caráter singular desta escrita em suas formas visuais, o que eleva as possibilidades de significação para além da própria escrita), mas também através da coleção, do inventário, das miniaturas, etc. As exigências de sua “missão” (que foi gerada em um estado de loucura e esquizofrenia do artista que permaneceu internado em um manicômio grande parte de sua vida) demandavam que buscasse todas as formas possíveis de representação que conhecia para cumprir as ordens que dizia ter recebido do próprio Deus. Pode-se compreender como suporte o lugar sobre o qual se assenta a memória para ser cristalizada e, posteriormente evocada. A escrita, por exemplo, é uma espécie de suporte da memória, ao passo que o papel (ou outra superfície qualquer) é o suporte da escrita; o objeto, a arquitetura, a pintura e a fotografia são outros interessantes exemplos de suporte da memória que ajudam a compreender o arquivo na acepção em que se pretende abordá-lo aqui, a saber, como representação. Quando a memória ganha uma representação, ela deixa de existir como memória e passa a existir exteriormente ao ser como uma representação da memória, como um suporte físico acessível aos sentidos que permite ao ser humano reacessar ou recordar aquilo que a mente esqueceu, ou ainda, aquilo que a mente teme esquecer. Como diria Derrida (2001, p. 22), “[...] o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma significação, não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória.” Todo arquivo é, neste sentido, exteriorização da memória, materialização desta. Percebese, deste modo, o arquivo como um movimento de dentro para fora, ou seja, a memória  

7  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   espontânea e interna ao ser humano projetando-se para o ambiente exterior e nele fixando-se de algum modo, seja através de produção criativa ou por meio de atribuições de significados subjetivos ao que já está posto externamente. Aqui, o ser humano deposita sentidos, significados e sentimentos nas coisas externas a ele; o objeto funciona como arquivo a partir do momento em que ele desperta, na pessoa, lembranças de fatos, pensamentos e sentimentos pretéritos, ou seja, a partir do momento em que ele se torna suporte ou meio de evocação da memória. Neste sentido, qualquer coisa ou objeto pode, necessariamente, assumir a função de arquivo para um determinado indivíduo. Talvez esta seja a ideia de Maria Esther Maciel com o título de seu livro A memória das coisas (2004), embora, segundo o que vem sendo exposto neste texto, as coisas não possuam memória em si, mas possuem o poder de provocar a evocação da memória na medida em que funcionam como suportes desta. Bispo tinha plena consciência deste poder de evocação dos objetos e, com eles, construiu vários de seus trabalhos. A materialização da memória implica em um outro processo que não diz mais respeito à memória em primeiro lugar, mas à importância e conservação do suporte físico enquanto agente evocador de recordações. É neste processo outro que a coleção e o inventário assumem também a característica de arquivo. Toda coleção é um recorte subjetivo da realidade. Tal recorte busca selecionar e reunir aquilo que está disperso impondo-lhe uma forma de ordenação estabelecida pelo sujeito que coleciona. Por exemplo, a Enciclopédia francesa de Diderot e D’Alembert (que é, em suma, uma busca de ordenar, classificar e catalogar os conhecimentos sobre o mundo) que declarava sua intenção totalizadora de abarcar todas as formas de saberes existentes no mundo à época, é uma espécie de coleção ou inventário dos saberes do mundo que acaba tendo seu “suposto” objetivo frustrado; e isto se dá porque toda busca de totalidade catalogadora de conhecimentos sobre o mundo é sempre falha, tendo em vista a grandeza da multiplicidade inclassificável do mundo que foge às tentativas racionais de uma catalogação definitiva. Além do mais, questiona-se seu objetivo inclusivo e totalizante (daí o “suposto”), porque embora a Enciclopédia iluminista afirmasse buscar uma reunião de todos os saberes do mundo, o modo como atuou em sua catalogação demonstra um recorte colecionista que circunscreve sua área de atuação aos saberes reconhecidos e tidos como válidos pela racionalidade científica. Tem-se, deste modo, não o universal, mas um recorte subjetivo do universal. Este recorte subjetivo opera um deslocamento contextual daquilo que se coleciona preservando o objeto que

 

8  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Abstraído de seu contexto, perde sua presentidade, desloca sua temporalidade para a espacialidade de um repertório fixo no qual a história é substituída pela classificação. Nesse sentido, colecionar se converte em uma forma de enclausurar o objeto, deshistoricizá-lo de maneira que seu contexto seja abolido em favor da lógica sincrônica da coleção (MACIEL, 2004, p. 19).

Ao deslocar o objeto de seu contexto espaço-temporal e enclausurá-lo no interior desta “lógica sincrônica” proposta pela autora, o colecionador busca proteger o objeto dos efeitos naturais ocorridos no tempo e no espaço, a saber, a deterioração e o esquecimento. Deshistoricizar é propor uma história outra construída segundo uma lógica subjetiva na qual as propriedades do objeto permaneçam intactas, longe da deterioração e do esquecimento característicos da realidade espaço-temporal da história convencional. Portanto, neste sentido, é possível compreender o ato de colecionar como uma espécie de resistência à linearidade implacável do tempo que segue tragando as coisas e a “memória das coisas”, para usar as palavras de Maciel (2004). Isto posto, é possível compreender o colecionismo como uma busca de permanência do presente para além do próprio presente. Isso torna o objeto colecionado atemporal, no sentido de que a redoma subjetiva da coleção que o envolve conserva suas características para além de seu tempo. Deste modo, o objeto assume o status de arquivo enquanto representação memorial de um presente que não está mais lá, mas que pode ser lembrado pela presença do objeto que funciona como agente evocador deste presente já pretérito em qualquer tempo ou época. Os inventários, as listas, as coleções, as enciclopédias, são todas formas de taxonomia que podem guardar, metonimicamente, as características do arquivo apontadas até aqui. Tais formas taxonômicas são indissociáveis e se entrelaçam de maneira intrínseca [...] E a enciclopédia é o território por excelência desse conjunto de dispositivos taxonômicos. Todos eles de caráter móvel e intercambiável, indicam a diversidade de formas com que buscamos organizar a ordem desordenada da vida. (MACIEL, 2009, p.30).

O intercâmbio não só entre estas formas de taxonomia, mas também entre as formas de construção do arquivo é evidente na obra do artista que este texto pretende analisar a seguir. E este fato é tão instigante nesta análise quanto a forma poética desta construção e a filosofia de vida que a move. A construção poética do arquivo Segundo a biografia O senhor do labirinto, de Luciana Hidalgo (2011), Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) nasceu em Japaratuba, Sergipe. Descendente de escravos africanos, teve  

9  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   uma infância pobre, foi marinheiro na juventude e, posteriormente, mudou-se para o Rio de Janeiro aonde veio a se tornar empregado doméstico de uma tradicional família carioca. O início de sua produção artística se dá a partir de uma experiência sobrenatural vivida pelo artista que afirmava ter ouvido o chamado dos anjos dizendo que ele havia sido escolhido por Deus para efetuar uma missão que consistia em julgar os vivos e os mortos e em recriar o mundo para entregá-lo a Deus no dia do Juízo Final. Em 1938 ao entrar no Mosteiro de São Bento para comunicar aos monges sobre sua missão e sua condição de escolhido por Deus, Bispo acaba preso pela polícia civil e é levado ao manicômio da praia vermelha onde, examinado por médicos, é diagnosticado como esquizofrênico-paranóico; posteriormente é transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacaré Paguá, lugar onde construiria sua obra e passaria o resto de sua vida. É assim que Bispo inicia a construção de sua obra: atendendo ao chamado de Deus e dando andamento à missão para a qual fora designado. O trabalho árduo de miniaturizar, catalogar e inventariar as coisas do mundo levou uma vida inteira. Listas de nomes, fichários, objetos, bordados, textos, miniaturas, inventários e mais toda sorte de sucatas e detritos serviam a ele como matéria prima para a confecção de seus painéis e vitrines (como ele dizia), os quais ele mesmo não via como arte, mas como parte do trabalho árduo que demandava sua missão. A preocupação estética e o trabalho artístico empregado nas peças que confeccionava é notável e vai de encontro à noção de arte como representação, como expressão material e sensível da percepção ou do estado de alma gerado por esta percepção. Até sua morte em 1989, Bispo dedicou-se, com grande afinco e extraordinário senso de rigor e simetria, à sua missão, convicto de que tinha sido o escolhido de Deus para reconstruir o mundo após o fim de tudo, repovoando a terra com seus “objetos mumificados” e suas listas infinitas de nomes iniciados com determinadas letras do alfabeto e imagens em série bordadas sobre panos ordinários. Buscava sua matéria prima no cotidiano mais imediato, nos redutos marginalizados da pobreza, no agora de sua própria experiência: sapatos, canecas, pentes, garrafas, latas, ferramentas, talheres, embalagens de produtos descartáveis, papelão, cobertores puídos, madeira arrancada das caixas de feira e dos cabos de vassouras, linha desfiada dos uniformes dos internos, botões, estatuetas de santos, brinquedos, enfim, tudo o que a sociedade jogou fora, tudo o que perdeu, esqueceu ou desprezou. Compôs, a partir desse entulho, um a espécie de memorial de sua passagem pelo mundo, uma narrativa ordenada segundo as leis mais rigorosas da taxonomia e, ao mesmo tempo, atravessada pela espontaneidade de uma imaginação delirante. (MACIEL, 2004, p. 17).

Para recriar o mundo após o juízo final, e com isso cumprir sua missão designada por Deus, Bispo inicia um trabalho de catalogação e inventário com o objetivo de manter viva a memória do mundo dos homens após a grande tribulação. Era necessário recolher e registrar tudo que pudesse evocar, num futuro próximo, a existência humana e suas peculiaridades. Também era necessário escrever as listas com os nomes dos que seriam salvos, somente aqueles  

10  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   que fossem por ele lembrados; enfim, era necessário utilizar-se dos meios possíveis de representação da memória para cumprir sua missão. Sua vida de clausura em um manicômio do Rio de Janeiro limitava a estrutura necessária à sua missão, mas não limitava sua criatividade. E é esta criatividade que marca o impulso principal de constituição da obra de Bispo: sua missão divina. E tal missão, por si só, já é suficiente para atribuir a esta obra um caráter arquivístico em sua busca obsessiva de inventariar o mundo dos homens, a qual dedicou sua vida inteira. Mas, para além do caráter arquivístico de sua missão, este trabalho pretende analisar duas das formas específicas de construção deste arquivo e a intensidade poética envolvida em sua tessitura: a forma plástico-visual e o trabalho com a palavra escrita. Na construção plástico-visual do arquivo, é possível perceber uma intensa relação do artista com os objetos dos mais variados, com os quais compõe painéis e vitrines, além de outras estruturas e suportes2. As obras compostas com estes objetos tem uma forte significação; primeiramente por conta do contexto do qual eles são retirados: o lixo. Descartar é uma das principais características da sociedade industrial e do consumo atualmente. A sociedade do descartável marginaliza e exclui da sua esfera tudo que não se encaixa na dialética da produção e do consumo, inclusive o próprio homem, que nada mais é do que um objeto na esfera do capitalismo. É no lixo desta sociedade industrial que Bispo recolhe a matéria prima para construir sua obra. O lixo é aquilo que se tornou inútil porque não mais contribui na dialética do consumo e da produção. Ao tomar este lixo como matéria prima, Bispo implementa uma ressignificação do inútil e propõe-lhe novos valores que não os convencionais. Neste sentido, o artista age no caminho inverso do capitalismo, ou seja, enquanto o capitalismo reifica os seres e as essências para servirem ao mercado, Bispo desreifica as coisas, dá a elas um novo significado que já não é aquele da funcionalidade e nem o da inutilidade, mas o da transcendência. Assim, o valor do objeto dentro do mundo plástico-visual deste artista não é o da funcionalidade ou o do mercado, mas o de sua capacidade de representação mnemônica do mundo dos homens; além, é claro, do valor estético. Na peça Cestas e canecas coloridas (Fig.1), por exemplo, é possível perceber copos, cestas, bandejas e garrafas de plástico dispostas em um painel de papelão. Nesta peça percebe-se que o valor dado pelo artista ao objeto também está muito relacionado com sua forma, seus relevos, sua cor e sua textura; aspectos que, ao serem                                                                                                                 2

Neste trabalho, optou-se por analisar (primeiramente de um modo mais geral e depois com uma ou duas obras específicas) as obras que privilegiam o trabalho com o objeto e a escrita. Tendo em vista a amplitude e variedade da obra Bispo, optou-se por este recorte como delimitação temática e analítica, e também como adaptação à estrutura concisa deste trabalho.

 

11  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   mediados no espaço do painel, irão compor imagens e simetrias diversas que ao mesmo tempo opõem-se e convergem-se. A imagem é composta não por tinta como em uma pintura tradicional, mas por coisas, em uma espécie de grafia do objeto. Percebe-se, que não se trata apenas de um arquivo enquanto depósito de coisas, trata-se de um arquivo construído com especial cuidado estético e artístico. Bispo cria uma espécie de poesia do objeto quando retira os objetos do seu contexto primordial e anula a sua funcionalidade cotidiana para utilizá-los em outros contextos e realidades por ele construídas, ou pensadas, para gerar outros sentidos. Esta é uma das possibilidades ou características da poesia: brincar, alterar, desfigurar os significados das coisas e gerar ou criar novos sentidos, novos significados, novas formas. Os poetas fazem isso com palavras, Bispo faz isso com objetos. Este movimento do descontextualizar o objeto para depois contextualizá-lo em uma outra perspectiva, é o processo de des-historicização do objeto colecionado, ou inventariado, comentado acima. Os objetos contidos em Cestas e canecas coloridas, assemblage, por exemplo, são mais do que objetos agrupados esteticamente em uma simetria particular, são representações da memória da existência humana. Tais objetos (enquanto representações) ao serem rehistoricizados segundo a lógica subjetiva do artista, tornam-se perenes diante do tempo histórico convencional, porque habitam em outro tempo criado pela lógica subjetiva da coleção ou do inventário. Conclui-se, destas breves explanações, que não há só o armazenamento de objetos como registro da memória. Há, obviamente, a preocupação de evocação posterior da memória registrada, mas a preocupação estética na escolha e disposição dos objetos, suas cores, texturas, relevos etc., faz com que o trabalho vá além do colecionismo, além do armazenamento e assuma o caráter de linguagem, uma linguagem do objeto que diz e representa. É esta característica que projeta a construção do arquivo para além de um armazenar colecionista e o transforma em narrativa poética. Uma narrativa visual escrita com relevos, texturas e cores. Agora, passemos ao segundo ponto desta análise que é a construção poética do arquivo a partir da palavra. O uso da palavra escrita é, talvez, o método mais tradicional de registro ou arquivamento da memória. Entre as várias técnicas utilizadas por Bispo para construir seu mundo, a palavra escrita se apresenta de modo intenso e recorrente ao longo de toda a obra. A peça Eu preciso destas palavras escrita (Fig. 2), é um dos momentos mais emocionantes desta relação essencial do artista com a palavra enquanto recurso expressivo e de representação. “O impacto da frase reflete a premência de sua escrita, dessa espécie de literatura plástica que era também uma espécie de literatura da urgência, de significado inestimável para seu autor” (HIDALGO, 2011, p.134, grifo do autor).  

12  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O trabalho com a palavra, neste caso, assume diferenciais específicos interessantes já que Bispo brinca com a construção do discurso, desarticula os mecanismos da escrita criando uma espécie de “fragmentação semântica”, para usar um termo de Haroldo de Campos (1977). Aqui, o que se vê é uma transgressão da linguagem e a criação de um sistema semiótico próprio, privado. É assim que o artista cria suas listas, fichários, poemas, etc. A poética da palavra aqui, quase sempre se dá pela lógica do fragmento discursivo como forma de potencializar a produção de sentidos e causar um estranhamento no observador que é imediatamente retirado de sua zona de conforto linguístico, habituado que está à linguagem convencional de decodificação e apreensão de sentidos imediatos. Assim, o trabalho de Bispo com a palavra se opõe às estruturas convencionais da língua e as desconstrói para posteriormente construí-las de acordo com suas necessidades artísticas e expressivas; uma desconstrução criadora que opera através de uma violência da linguagem convencional. Bispo subverte os códigos linguísticos estabelecidos e propõe sua própria linguagem, sua própria gramática, seus próprios significantes. Ao operar esta transgressão, este artista cria uma linguagem outra que, apesar de partir de um sistema linguístico e com ele relacionar-se estreitamente, não o obedece, antes rompe-o, violenta-o, desvirtua-o, transfigura-o. O texto nas obras de Bispo, enquanto violência e agramaticalidade, pode ser compreendido como deformação do real, uma deformação no nível linguístico da realidade. E tal deformação ou transfiguração da realidade é forte característica do trabalho artístico da poesia literária que, ao longo de sua história, vem implementando diversas formas de deformações no nível da linguagem com objetivos expressivos, imagéticos e até mesmo iconoclásticos. À luz destas reflexões, já é possível começar a pensar o trabalho com a palavra desenvolvido por este artista como um trabalho que guarda fortes relações com o discurso artístico-literário no nível linguístico da expressão. Seria interessante comentar também, ainda que superficialmente, sobre a quebra da linearidade do discurso, a não-linearidade dos caracteres e os desenhos formados com a escrita em círculos, verticais espirais, diagonais, etc. Estas formas de disposição das palavras no texto propõem ao observador novos percursos de leitura e infinitas possibilidades de combinações entre vocábulos que geram novos sentidos a cada nova combinação. Nisso, também percebe-se uma tentativa de extrapolar as formas de uso da palavra e seus modos de significação de acordo com sua disposição no texto: desenhar com a palavra, criar formas com a palavra, ou seja, significar também com a imagem visual que a palavra pode assumir no texto. Torna-se quase impossível não relacionar tais características da escrita de Bispo com a poesia concretista que figurou como vanguarda estética a partir da década de 1950 no Brasil.

 

13  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Postas estas características da palavra e do texto escrito na obra de Bispo, são interessantes as colocações de Louis Hay (2002) ao comentar sobre as variações que a noção de “texto” vai sofrendo de acordo com as flutuações históricas, culturais e sociais, mas suas referências à poética de Mallarmé são ponto mais interessante para esta análise no momento. Diz o autor: [...] é por sua natureza que o ato de leitura dá forma de texto a seu objeto. Sabe-se que esta faculdade encontra expressão absoluta na poética de Mallarmé, que considera texto tudo que é modelado pelo olhar, mesmo quando este se desvia do livro e considera a paisagem. (Hay, 2002, p.39, grifo nosso).

Esta interessante colocação de Mallarmé (destacada em negrito) pluraliza a noção de texto e atribui este nome a tudo que é modelado pelo olhar, seja uma paisagem, uma grafia ou um objeto. A paisagem, a imagem, o pictórico, o plástico funcionariam, neste sentido, como textos que, por conta disso, podem ser lidos. Mallarmé faz a distinção entre formas diferentes de textos modelados pelo olhar quando se refere ao livro e à paisagem. Quando o olhar se desvia do livro para a paisagem, modela nesta uma nova forma de texto diferente da forma que modelava o texto na página escrita do livro durante a leitura. E o que dizer quando não é preciso desviar o olhar do livro, ou da obra para contemplar a paisagem, ou a imagem? O que dizer quando ambas dialogam, interpenetram-se e servem de suporte uma à outra? O que dizer quando a imagem constrói a palavra e a palavra compõe a imagem? Nas obras em que Bispo se utiliza da escrita como forma de representação e expressão, esta escrita é atrelada sempre a um suporte plástico-visual que, enquanto imagem, possui suas próprias características geradoras de significados. Esta imagem dialoga com a escrita para a qual serve de suporte; e este diálogo entre a palavra e o plástico-visual potencializa as capacidades expressivas e de significação da obra. Em alguns momentos, como na peça Sembrante – vim nun lex, a própria distinção entre palavra e imagem chega mesmo a ser diluída; neste casaco bordado, um emaranhado de palavras compõem as imagens de sua parte frontal. Como se pode ver, a escrita está contextualizada no universo plástico visual. Em outros momentos ela mesma é parte composicional da imagem chegando mesmo a nela se diluir. Os significados se potencializam e a escrita já não pode ser vista ou lida de modo unicamente convencional neste contexto outro no qual se encontra e com o qual dialoga. Nesta perspectiva, são interessantes os questionamentos e colocações de Faria sobre estas relações. Mas qual o sentido que a palavra passa a ter em uma obra de arte? Ela será vista com o mesmo valor simbólico que em um livro? Inserida em um outro contexto (na obra de arte), a palavra passa a ter outro significado, agora faz parte dos elementos pictóricos e

 

14  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   escultóricos. Não necessita ser lida como freqüentemente é para ter significado, o simples fato de estar exposta nesse contexto dá a ela uma nova condição de existência. A linguagem artística utilizada por Bispo é também uma forma de fazer signos·, uma arte de nomear e, depois por uma reduplicação, ao mesmo tempo demonstrativa e decorativa, de captar nomes, um signo segundo sua figura, segundo sua nova função dentro do contexto. (FARIA, 2005, grifos do autor).

Conclui-se este texto com esta interessante característica da construção poética do arquivo em que a palavra e a imagem dialogam e interagem de diversas formas. Tal interação suscita questões que podem gerar muitos desdobramentos a respeito desta interessante relação entre as artes plásticas e a literatura. No universo de Arthur Bispo do Rosário, a imagem plástico-visual e a palavra interpenetram-se e complementam-se uma a outra potencializando a geração de significados e o efeito estético. Não é apenas o texto escrito que diz, o suporte, as cores, as texturas, a não-linearidade dos caracteres, os desenhos formados com a escrita em círculos e espirais, enfim, tudo isso também diz. O visual e o textual estão conjuntamente trabalhados em uma narrativa na qual ambos são essenciais para seu estudo e compreensão.

 

15  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Figura 1 Cestas e canecas coloridas. Com cestas, canecas e outros objetos, na sua maioria de plástico, suporte de madeira e papelão, 197x70cm.

 

16  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Figura 2 Eu preciso destas palavras escrita. Tecido e Madeira.

 

17  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Referências bibliográficas CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável: e outros ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1977. COLOMBO, Fausto. Arquivos imperfeitos: memória social e cultural eletrônica. São Paulo: Perspectiva, 1991. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. FARIA, Fabiana Mortosa. Arthur Bispo do Rosário e seu universo representativo. Urutágua, Paraná, n. 05 dez/jan/fev/mar 2005. Disponível em: http://www.urutagua.uem.br/005/12his_faria.htm. Acesso em: 25 Abr. 2013. HAY, Louis. “O texto não existe”: reflexões sobre a crítica genética. In: ZULAR, Roberto (org.). Criação em processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, Fapesp, 2002 p. 29-44. HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2004. ____________. As ironias da ordem: coleções, inventários e enciclopédias ficcionais. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

 

18  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O Teatro Político e o Teatro Pós-Dramático: reflexões sobre o texto dramático e as mudanças da dramaturgia de cena na contemporaneidade3 Annie Martins4 Universidade do Estado do Amazonas, Manaus-AM RESUMO Este estudo tem por objetivo refletir brevemente as questões históricas e ideológicas que convergem para obra pós-dramática teatral e de que forma esta se apresenta com características ou a essência do teatro político das vanguardas. Sabemos que a sociedade passou por muitas mudanças no século XIX, e adentra o século XX com muitas novidades no que diz respeito às formas de se relacionar a partir das novas tecnologias. E em alguns aspectos, o livro e o texto, e de maneira geral a obra dramática são reposicionados no cenário da contemporaneidade para atender a demanda das mudanças. A estética teatral se transforma, colocando o espectador como centro das atenções do fazer teatral, isto é, o espetáculo é direcionado à reflexão do espectador como cidadão de uma realidade repleta de opressões sociais. Neste contexto, o dramaturgo e diretor alemão Bertolt Brecht se destaca, por exemplo, com as peças didáticas, no qual o espectador se transforma em ator. O século XXI inicia-se com mais questionamentos acerca da sociedade, do individuo e à vida fragmentada. Podemos perceber que o teatro político continua sob uma nova perspectiva, trata-se de um teatro que rever o social e o indivíduo a partir da forma e não mais do conteúdo, o que HansThies Lehmann vem chamar de teatro pós-dramático, ou seja, ao invés da dramaturgia do texto, temos a dramaturgia de cena, no qual o texto se torna tão importante quanto os demais elementos cênicos. Este artigo vem mostrar de forma simplificada a partir da pesquisa bibliográfica em Teatro Político (Bertolt Brecht e o teatro épico) e Teatro Pós-dramático (Hans Thies Lehmann), a necessidade de compreendermos as novas práticas estéticas e de não defini-las em um conceito fechado, mas de conviver com os conflitos e cumplicidades que a nova estética teatral pressupõe na contemporaneidade. PALAVRAS-CHAVE: Opressão social. Teatro Político. Teatro Pós-Dramático 1. As opressões sociais e o Teatro Político de Bertolt Brecht As opressões estão por toda parte e se manifestam em muitos contextos, algumas em potenciais outras não, depende da interpretação que cada um dá para esta determinada opressão. Entretanto, existe um tipo de opressão que não há como julgar ou interpretar como                                                                                                                 3  Trabalho a ser apresentado no IV Seminário de Letras e Artes e II Simpósio de Música Ibero-americana em 25, 26 e 27 de setembro de 2013 na Universidade do Estado do Amazonas-UEA, Manaus-AM 4   É mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, e docente do curso de graduação em Teatro na mesma instituição.

 

19  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   sendo menos ou mais, que pode ou não ser potencializada. Existe um tipo de opressão que leva homens a perderem identidades sobre o próprio gênero humano. Que são despidos fisicamente e arrebentados na alma. Trata-se, neste tipo de opressão, de um viver já morto, na qual o homem se assume uma espécie de zumbi humano que luta por migalhas, até o fim, até onde resistir. Trata-se de considerar um cidadão em uma líquida sociedade moderna, onde nem mesmo sua cidadania é reconhecida de forma completa. Trata-se de um indivíduo imerso nas fragilidades dos laços humanos.

A misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos é o que o estudo de Bauman realiza na obra Amor Líquido (2004)– sobre a fragilidade dos laços humanos. Para Bauman (2004), nenhuma das conexões que venham preencher a lacuna deixada pelos vínculos ausentes ou obsoletos tem garantia de permanência. São vínculos frouxamente atados. Neste estudo específico de Bauman, o principal objeto de estudo da opressão social é o relacionamento humano. A invocação de amar ao próximo como a si mesmo diz Freud (em o mal estar da civilização), é um dos preceitos fundamentais da vida civilizada. É também o que mais contraria o tipo de razão que a civilização promove: a razão do interesse próprio e da busca da felicidade. (BAUMAN, 2004, p. 97).

O autor e narrador Primo Levi, em sua conclusão da obra ”Os afogados e sobreviventes”, relata o quanto é difícil falar aos jovens sobre sua experiência em um mundo que possui tantas outras regras, mas ressalta que acima de sua experiência individual, ele fora coletivamente testemunha de um evento fundamental e inesperado. Acrescenta ainda que a violência útil e inútil continua a se propagar em vários episódios espalhados pelo mundo, por meio da ilegalidade do Estado, ou em circunstâncias privadas. A destruição de um povo como instrumento de dominação se revelou possível e palpável, com consequências drásticas. Sabese, para algum alívio dos que sentiram injustiçados com tamanhas opressões, que os poderosos da era de Hitler terminaram seus dias na forca ou no suicídio, e que os soldados que participaram dos campos, não eram monstros ou degenerados por completos, eram seres humanos medianamente inteligentes, medianamente maus, eram feitos da mesma matéria que qualquer outro ser humano, mas foram educados de outra forma e aderiram a esta educação pelo prestígio, onipotência ou fuga das dificuldades. Esteja claro que responsáveis, em maior ou menor grau, todos eram, mas deve ficar igualmente claro que, por trás dessa responsabilidade, está a da grande maioria dos alemães, que aceitaram no início, por preguiça mental, por cálculo míope, por estupidez, por orgulho nacional, as “belas palavras” do cabo Hitler, seguiram-se enquanto a sorte e a falta de escrúpulos o favoreceram, foram atingidos por usa ruína, enlutados com a morte, a miséria, os remorsos, e a reabilitados poucos anos depois de um leviano jogo político (LEVI, 2004, p. 175).

 

20  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Diante desta memória descrita por Primo Levi, em situação de extrema opressão em Auschwitz, podemos nos questionar sobre a representação que ela tem para nós em um mundo ainda cheio de opressões e com certo repúdio sobre a necessidade do poder para o ser humano. Por meio do depoimento de Levi como testemunha ocular deste episódio marcante que foi Holocausto, percebemos que a questão entre oprimidos e opressores é bem mais complexa e subjetiva do que podemos imaginar nos dias de hoje. Neste cenário de intensas lutas subjetivas e sociais, se fez necessário se manifestar de alguma forma, e o teatro após a Segunda Guerra Mundial, foi comumente utilizado como ferramenta política, de denúncia, protestos e reflexões sobre a condição humana nas opressões sociais. O destaque para composição e pesquisa teórica sobre estes aspectos é para o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, este profundamente marcado pelas duas grandes guerras, e passando parte da sua vida lutando contra o nazismo e outra parte criando um teatro de contundência social e política – coloca problemas vitais da sociedade em que ele vivia, tais como: as injustiças sociais, a luta contra o capitalismo e o imperialismo. Este faz uma reflexão da sociedade divida em classes sociais, e dessa forma critica e rejeita a ordem tradicional com seus privilégios para alguns poucos e a pobreza e falta de liberdade para a massa. Ele postula as premissas um teatro questionador, ativo e político se formava com toda a força naquele momento. O palco assumia o ritmo de nossa época, o “tempo” do século XX. Enquanto a reformulação com fins de agitação e propaganda ainda estavam em andamento, o novo drama encontrou um autor em Bertolt Brecht. Este, em sua colaboração com Piscator, veio a perceber que o teatro revolucionário dependia não apenas da peça, mas também da direção. [...] Não desejava provocar emoções, mas apelar para a inteligência crítica do espectador. Seu teatro devia transmitir conhecimento, e não vivências (BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 2005, p. 505)

Os ideais marxistas repercutiriam, então, de forma decisiva na teoria teatral do século XX. Primeiro Erwin Piscator, com o seu Teatro político [1929], e em seguida toda a obra de Bertolt Brecht consolidariam uma concepção de teatro engajado nas lutas de classes sociais. A relação entre Teatro e Política tem sido tem sido tensa há dois mil e quinhentos anos. Aristófanes investiu, a partir do palco, contra os demagogos e advogados da Guerra do Peloponeso. [...] O drama da era científica, como o via Brecht, entende o homem como parte daquele mecanismo inteiramente calculável que mantém em funcionamento a história mundial; trata o homem como um instrumento dos órgãos executivos que o manipulam ao seu bel prazer. (idem, p. 502 e 504).

Bertolt Brecht apareceu na fase crepuscular da burguesia, em plena ascensão do movimento operário e por isso ele tinha em suas mãos um material rico de questionamentos sobre as opressões vividas pelos operários. A desilusão com a urbanização e a descrença nas  

21  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   promessas de uma vida melhor proporcionada pela industrialização fazem o teatro realistanaturalista entrar no século XX cada vez mais próximo das questões sociopolíticas. E dessa forma, Brecht reflete em suas obras, os problemas fundamentais do mundo atual: a luta pela emancipação social da humanidade e de uma arte comprometida com as mudanças sociais. Esta pesquisa interage com a ideia de que o teatro é um elemento transformador e acredita que este é um local privilegiado para a representação dos discursos de valor em uma sociedade. Segundo Steven Mullaney (1988), o teatro sempre apresenta essa característica dúbia entre o poder hegemônico e as forças de contestação, além disso, o autor coloca que a praxis teatral de Brecht não se limita à função de mostrar os conflitos, dada a ênfase no papel dos espectadores enquanto tomadores de decisões, também se faz presente o caráter de agente transformador ativo o qual estaria prioritariamente entregue ao artista teatral. O artista enquanto agente transformador teria o compromisso de explicar as contradições sociais, no intuito de fazer o espectador refletir, reagir e interferir no estado das coisas. O essencial para Bertolt Brecht não é a alienação em si, mas o esforço histórico para a desalienação do homem, dessa forma, ele nutria o ideal marxista (visão socialista), mas ia além, colocando m prática um instrumento capaz de motivar alguma transformação: o teatro político. No contexto teatral anterior a Bertolt Brecht (1898-1956), o fazer teatral era marcado pela ideia contemplativa do teatro, do ator como foco da estrutura teatral. Após a Segunda Guerra Mundial, evento assistido por Brecht, os questionamentos sobre a sociedade nazista e suas atrocidades tiveram a necessidade de serem denunciados por todas as linguagens teatrais. Era necessário fazer o espectador refletir sobre a sua realidade, e não somente contemplá-la. Por isso, com Brecht, o foco do fazer teatral torna-se político, no sentindo de democratizar esta linguagem, na medida em que o espectador é tão importante quanto o ator, aliás, o espectador é causa e consequência do fazer teatral que pensa na mudança da sociedade e, portanto, é político. Neste aspecto, Brecht inaugura o Teatro épico, narrativo e denunciador da opressão social. As duas razões principais, aparentemente contrárias, deve-se à expansão do elemento épico no teatro do nosso século, ao ponto de alguns considerarem “antiquado” o drama aristotélico, cujo rigor formal ainda se manifestou, durante todo o século XIX na chamada “peça bem feita”. Uma das razões é excessivo subjetivismo e individualismo. A exaltação unilateral do protagonista, a quem já não se opõem antagonistas reais, rompe a relação inter-humana e, com isso, o diálogo base do gênero dramático na sua pureza clássica (RONSEFELD, Anatol. P.36, 2012)

 

22  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Para se compreender melhor as diferenças inovadoras que Bertolt Brecht traz à cena teatral e revoluciona o próprio pensar e fazer teatral, Margot Berthold (2004) traz um quadro comparativo entre o teatro épico e o teatro dramático. Forma dramática de teatro

Forma épica de teatro

O palco corporifica uma ação

O palco relata a ação

Compromete o espectador na ação e

Transforma o espectador em observador e

consome sua atividade

desperta sua atividade

Possibilita sentimentos

Obriga o espectador a tomar decisões

Proporciona emoções, vivências

Proporciona conhecimentos

O espectador é transportado para dentro da

O espectador é contraposta a ela

ação Trabalha-se com a sugestão

Trabalha-se com argumentos

Se conservam as sensações

As sensações levam a uma tomada de consciência

O homem se apresenta como algo

O homem é objeto de investigação

conhecido previamente O homem é imutável

O homem se transforma e transforma

A tensão em relação ao desenlace da peça

A tensão em relação ao andamento

Uma cena existe em função da seguinte

Cada cena existe por si mesma

Os acontecimentos decorrem linearmente

Decorrem em curvas

Natureza não dá saltos - Natura non facit

Natureza dá saltos - Facit saltus

saltus O mundo tal como é

O mundo tal como se transforma

O homem como deve ser

O que é imperativo que ele faça

Seus impulsos

Seus motivos

O pensamento determina o ser

O ser social determina o pensamento

Sentimento

Razão

Fonte:  BERTHOLD,  Margot.  História  Mundial  do  Teatro.  São  Paulo:  Perspectiva,  2004.  p  507.

Bertolt Brecht, homem de teatro, dramaturgo e poeta é fonte de inúmeros outros teóricos e encenadores do fazer teatral, como Pirandello, Ionesco, Beckett, O´Neill, Barba, Brook e Grotowski por exemplo, seja para aperfeiçoar a sua teoria, seja para questioná-la. E ambas as formas, segundo Lehmann (2009), estão de acordo, já que o fazer teatral não  

23  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   esquece o passado e ao mesmo tempo acompanha a dinâmica das mudanças e oposições, conflitos e cumplicidades do meio em que o indivíduo está imerso. O Teatro Pós-Dramático Como já discutido, as últimas décadas foram marcantes em transformações de ideologias e de sistemas geopolíticos. ‘[...] o mundo na primeira metade do século XX, com suas catástrofes políticas, seus desastres morais e seu surpreendente desenvolvimento das artes cênicas (ARENDT, 2008, p. 7), este mundo era vivenciado pelos homens que Hannah Arendt relata em sua obra, tais como Bertolt Brecht, Lessing, Walter Benjamin, entre outros. Segundo Ryngaert (1996), os meios de comunicação nos aproximam em tempo real de pessoas em qualquer parte do mundo, no entanto nos tornam reféns de propagandas diretas ou subliminares e nos expõem a muitos fatos manipulados. Trata-se de um ambiente paradoxal marcado por litígios éticos e religiosos, pela febre consumista e pela violência sistêmica. Tudo isso reflete na produção artística e chega ao teatro de modo lento, porém vigoroso. Interessa observar que enquanto boa parte do teatro europeu passa a banir formas de linguagens dramáticas em nome do pós-dramático ou híbrido, na América Latina o teatro prende-se a realidades humanas, à discussão de problemas que afetam fundamentalmente o indivíduo, levando-o em busca de novos valores e ao reencontro com a comunidade. Isto pode até sinalizar certa distância entre as formas do fazer teatral, mas não significa que o pósdramático não exista na América latina e que não esteja cada vez mais sendo incorporado pelos grupos e pensadores do meio teatral. Sabemos que existe de fato uma hibridação cênica. Na criação cênica, diferentemente da leitura individual de uma obra literária legitimada, não existem paradigmas e modelos consagrados que determinam a visualização de uma cena. O texto serve como base, porém a interpretação de quem lê e encena teatralmente é que interessa em primeiro plano ao teatro. Isto, entretanto, ainda é motivo de muita discussão. De acordo com Milaré (2010), em que pese a presença do pós-dramático e do híbrido, (bem como formas obedientes aos velhos códigos teatrais) a questão formal também é de interesse à reflexão sobre o teatro. No Brasil, especificamente, os grupos formados a partir de 1999, imprimem sua marca, se apropriando do velho e do novo formato cênico e misturando seus signos e referências. Acerca disso, destacam-se os estudos conduzidos por José Celso Martinez Correa e Antunes Filho. Milaré (2010) afirma que estes grupos estão preocupados em não mais fazer denúncia política como nos anos de 1960 e 1970 – período de vigência das ditaduras em alguns países  

24  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   da América Latina – ou convencer a sociedade de alguma verdade. Na América Latina do século XXI, não mais se levantam bandeiras ideológicas, pois se assume que o teatro por si só já é político. Trata-se agora “de um teatro de constatação de realidades perversas. Um teatro que, se transformando, busca a transformação da sociedade.” (MILARÉ, 2010, p. 14). Em 1980 e 1990 ocorreram mudanças estruturais no teatro dadas as transformações no mundo. O fazer artístico foi além do desejo de consumo e entretenimento, desencadeando um teatro que rompe com arquitetura teatral e se realiza em qualquer espaço, em um velho armazém, na rua, no elevador, na praça. O espaço torna-se dramaturgia de cena, pois a ideia é sempre aproximar o espectador da ação dramática, e por vezes, nela o incluir. Se o espaço torna-se dramaturgia, então o texto da obra dramática é um elemento cênico de dramaturgia, mas não base para tudo que rege a encenação. A partir desta ideia, formulada por tantos teóricos e especialmente por Hans-Thies Lehmann, em O Teatro Pós-Dramático (2010), percebe-se mais uma vez que o livro e seu conteúdo, ou seja o texto, são tão importantes quanto o espaço em que se realiza a experiência cênica, a iluminação utilizada, a cenografia, a sonoplastia e a indumentária, isto é, todos os elementos cênicos os quais anteriormente não estavam descritos na dramaturgia teatral. Dentre estes elementos, aqueles que já compunham a experiência cênica passam por adaptação a partir da ideia e do foco no espectador, pois o diretor ou o grupo se sente mais à vontade e livre para adaptar a obra e ou escrever uma nova a partir desses elementos. Neste contexto, o roteiro e o texto sempre vão existir, mas como um script que não se segue à risca, pois não se pensa mais somente em um teatro contemplativo, mas em um teatro   com  o  objetivo  de  causar  a  reflexão  necessária  para  a  transformação  da  sociedade.  O  público   interlocutor  é  fundamental  para  o  processo  cênico.  Sobre  isto,  Milaré  pontua  que   [...] fazia-se necessário não apenas buscar novo público, mas um público interlocutor. Não o espectador passivo, semioculto atrás da quarta parede, mas o espectador ativo, que torna a representação espaço de vivência. E isto os levou a instituir a sacralidade do teatro em espaços muitas vezes inusitados. (MILARÉ, 2010, p. 15).

 

Neste contexto de quebra de paradigmas das formas convencionais do fazer teatral, o processo de ensaios e direcionamentos também se modifica, neste aspecto surge o processo colaborativo e a criação coletiva, tornando-se plataforma e suporte. O processo colaborativo mantém as figuras do dramaturgo e do diretor, mas trata-se agora de uma relação muito mais próxima com os atores que participam ativamente da elaboração do texto e da encenação. Na cidade de São Paulo por exemplo, este formato é comum desde a década de 1970 e um dos

 

25  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   grupos pioneiros é o Teatro da Vertigem, sob direção de Antônio Araújo, formado por atores procedentes da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Desde a Idade Média, o logradouro público é local de apresentação cênica. Agora nesta perspectiva de sair do livro, da obra dramática e do textocentrismo, os locais em que o diálogo se aproxima efetivamente dos transeuntes que se tornam espectadores ativos são utilizados comumente para as experiências cênicas. Quando ainda se acreditava na onipotência do texto, a ‘peça bem feita’ do século XIX propunha uma demonstração de virtuosismo. Baseada numa arte de composição dramática que devia muito às receitas do ofício e à convicção de que era preciso “funcionar” junto ao espectador. A identificação indispensável da catarse enraíza-se na escrita e principia com a credibilidade da obra teatral. Nenhuma imperfeição da imitação deveria impedir o espectador de acreditar no que é representado diante dele. A doutrina clássica se refere à Aristóteles. É necessário ‘instruir e divertir’ e convencer o espectador pela natureza, e para isso respeitar as regras da verossimilhança e da conveniência. (RYNGAERT, 1998, p. 15).

Com as mudanças de perspectivas sociais e culturais, a verossimilhança do texto cênico e sua encenação passaram a ser questionadas, sendo necessário fazer refletir e não mais interpretar literalmente tudo que o texto propunha a fim de favorecer a compreensão do espectador. A partir desta ideia, começou-se a pensar em outras dimensões da encenação, que iam além do drama, do texto. Percebeu-se, por exemplo, que a dimensão visual de um espetáculo ultrapassa os limites do que o texto disse ou tentou dizer. Em alguns casos o texto pode limitar o ato cênico. A passagem do texto ao palco representa um salto radical. Ryngaert declara que [...] o espectador experimenta a necessidade e o prazer de voltar ao texto, assim como o leitor de assistir uma representação. Mas numerosos laços existentes entre o texto e o palco não podem satisfazer-se com a ilusão mecanista de uma simples complementaridade. As relações e os atritos entre a palavra e a representação, são complexos e por vezes conflitantes. [...] O estabelecimento da dramaturgia de texto constitui uma etapa comum do trabalho da encenação. Hoje, no entanto, muitos desconfiam dele. Na preparação da passagem ao palco, as redes de sentido que o trabalho dramatúrgico estabelece, entre as quais é preciso escolher, surgem como um risco de fechamento, como uma limitação da representação futura devido à instalação de demasiados anteparos. (RYNGAERT, 1998, p. 20).

Dessa maneira, podemos observar que há um novo um novo conceito de dramaturgia, chamada agora de dramaturgia de cena, que considera não mais se tratar de colocar o texto em cena, mas de construir a partir dele um outro texto – o texto espetacular com o foco e base na reflexão do espectador. Para Almeida, este era o teatro provocador que o interessava “aquele

 

26  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   que confia na inteligência e sensibilidade do espectador. Não um teatro que resolve questões, mas que formula propostas”. (ALMEIDA, 2010, p. 79). De acordo com Almeida (2010), os pontos de vista são diferentes, se pega o tema do texto, o ponto de vista, localiza-se o mito, o que dele interessa, ou seja, não se parte do texto, mas da fisicalização de ideias e da sua desconstrução oral. Uma demonstração de que o mundo conversa sobre as mudanças da estética teatral é o espetáculo Agreste – texto de autoria de Newton Moreno e adaptado pelo grupo. Sobre este espetáculo, Almeida declara: Digno de nota é o alto grau de comunicação nos mais diferentes pontos onde o espetáculo tem se apresentado, tanto no Brasil como no exterior, revelando o quanto já está incorporada no universo do teatro a encenação pós-dramática. (ALMEIDA, 2010, p. 85).

Diante dos hibridismos que a linguagem cênica pode materializar, o drama em si, o qual reúne as unidades de ação, tempo e espaço, segundo a poética de Aristóteles – ou seja, o modelo de peça com começo, meio e fim em que a verossimilhança é fundamental – abre espaço para o pós-dramático, conceito que vai além do drama pautado no texto e nas características supracitadas. O mais importante é que o pós-dramático abriu novas possibilidades  para  os  fazedores  de  teatro.  Os  velhos  paradigmas  agora  são  renovados  pela   transformação.  Para  Guinsburg, Não há menor dúvida de que no teatro tudo é válido e possível, desde que a resultante dos esforços criadores ofereça ao seu destinatário a plateia, qualquer que seja ela, uma obra convincente, não por qualquer ‘fidelidade’ literária ou respeito por cânones previamente estabelecidos, mas por suas virtudes cênicas, pela poesia de imagem e palavra, em maior ou menor proporção uma em relação à outra, e pela força trágica, cômica ou tragicômica da exposição dramática. (GUINSBURG apud VILLAR, 2010, p. 201).

 

Desde os registros da repercussão do livro, do sucesso das obras dramáticas e seus autores, podemos perceber o quanto o livro e seu conteúdo se transformaram na híbrida sociedade em que vivemos e atuamos. Esta transformação se refere não ao conteúdo em si, mas a forma de interpretação e representação do mesmo, seja por meio de aparelhos celulares, tablets, e-books e o pós-dramático no Teatro. Portanto, os objetivos do próprio fazer teatral e todos os elementos que competem a esta linguagem estão se modificando, segundo as análises dos críticos da área e a vivência relatada dos profissionais de teatro, a transformação da sociedade exige o acompanhamento de sua dinâmica na tentativa de torna-la mais saudável em relação ao cumprimento dos direitos e deveres dos cidadãos, isto é, aos direitos humanos. O Teatro enquanto ferramenta política e social desta transformação adapta o texto e refaz os seus objetivos. Trata-se de teatros não escritos ou motivados pelo dramático ou literário, mas sim pelo teatral, cênico e performático ou pelo visual, cinético, tecnológico,  

27  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   mediado ou coreográfico. Os cânones dramáticos e literários são questionados, mas não colocados de lado, apenas se aceitam novas formas. Lehmann (2010) provoca a seguinte questão: “como podemos, numa sociedade como a em que vivemos hoje, de mídia e de massa, criar através do Teatro a situação de interrupção, de reflexão, de atitude e mudança?” (p. 238). O teatro como incômodo ou como uma perturbação é a característica fundamental do pós-dramático, e neste aspecto, o teatro ainda oferece, nessa sociedade dominada por grandes manipulações mercadológicas que muitas vezes nos alienam, uma alternativa de comunicação ao vivo e real. Diante dos hibridismos que a linguagem cênica pode materializar, o drama em si, o qual reúne as unidades de ação, tempo e espaço, segundo a poética de Aristóteles, ou seja, a peça com começo, meio e fim em que a verossimilhança é fundamental, abre espaço para o pós-­‐dramático,  ou  seja,  algo  que  vai  além  do  drama  pautado  no  texto  e  nestas  características   supracitadas.  O  mais  importante  é  que  o  pós-­‐dramático  abriu  novas  possibilidades  para  os   fazedores   de   teatro.   Os   velhos   paradigmas   agora   são   renovados   pela   transformação.   Para   Guinsburg  apud  Villar  (2010):   Não há menor dúvida de que no teatro tudo é válido e possível, desde que a resultante dos esforços criadores ofereça ao seu destinatário a plateia, qualquer que seja ela, uma obra convincente, não por qualquer ‘fidelidade’ literária ou respeito por cânones previamente estabelecidos, mas por suas virtudes cênicas, pela poesia de imagem e palavra, em maior ou menor proporção uma em relação à outra, e pela força trágica, cômica ou tragicômica da exposição dramática (GUINSBURG apud VILLAR, 2010, p. 201)

CONSIDERAÇÕES FINAIS Portanto, a partir desta breve análise, cria-se a expectativa de termos na prática uma comparação palpável sobre as diferenças e aproximações técnicas do teatro dramático, épico e pós-dramático. Mas se o teatro é processo e acompanhas fluxos e mudanças, o pós-dramático ainda nos tem muito a dizer e fazer. O que se vive hoje, neste cenário líquido e frágil de perspectivas e valores, é o questionamento que vai além da sociedade e suas opressões, o indivíduo e suas angústias, agora questionamos o próprio fazer teatral e isso não deixa de ser altamente político, partindo do princípio que os atores e membros do fazer teatral, são antes de tudo, cidadãos do mundo, que ora interagem, ora se acomodam, ora finalmente mudam alguns aspectos, indivíduos que a priori estão mais conscientes dos seus deveres e direitos, e por isso tentam se apropriar cada vez mais disso, para dessa forma, legitimar seus questionamentos a partir de diferentes formas do fazer teatral.

 

28  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O pós-dramático não sobrepõe o épico, o qual não sobrepôs o dramático, nota-se o processo de hibridação de ambas as formas, que ora se complementam, ora se enfrentam. E aí sim estamos falando de arte, de teatro, ou seja, algo que se movimenta, interfere, complica e descomplica, estamos falando de indivíduos não estáticos, de seres humanos ansiosos por saber mais sobre si mesmos, com metodologias e formas de viver em processo coletivo. A partir desta breve análise, pode-se perceber que o teatro é político em sua própria essência, por estar junto e inerente à sociedade o qual clama por algo que ainda não se sabe dizer exatamente o que é, talvez seja um clamor por interferências, mudanças, reflexões, mesmo diante de tantos obstáculos que a sociedade de massa nos impõe direta ou indiretamente. O Teatro pós-dramático não tem forma palpável e concreta de se saber da onde veio exatamente e para onde vai, sabe-se, porém, que antes de qualquer teoria fixa, ele político. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Márcio Aurélio Pires de. A encenação no Teatro Pós-Dramático In Terra Brasilis. Cap. 5. O Pós-Dramático: um conceito operativo?. Organização J. Guisnburg e Silvia Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2010. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução Heloíza Pezza Citrão, Ana Regina Lessa. 4 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. GUINSBURG, Jacó. FERNANDES, Silvia (orgs) O Pós-Dramático: um conceito operativo?. São Paulo: Perspectiva, 2010. LEHMANN, Hans-Thies. Escritura Política no Texto Teatral: ensaios sobre Sófocles, Shakespeare, Kleist, Buchner, Jahnn, Bataille, Brecht, Benjamin, Muller, Schleef. Trad. Werner S. Rothschild, Priscila Nascimento. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Coleção Estudos) ______. Teatro Pós-Dramático e Teatro Político. In: GUINSBURG, J. ; FERNANDES, Silvia (Org.). O Pós-Dramático: um conceito operativo? São Paulo: Perspectiva, 2010. (Coleção Debates) LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Sérgio Henriques. São Paulo: Paz e Terra, 2004. LÉVY, Pierre. Tecnologias da inteligência. São Paulo: Editora 34, 1993. MILARÉ, Sebastião. Desafios dos Novos Tempos. Aparte XXI, Tusp, pp. 11-23, 2010. MULLANEY, Steven. The Place of the Stage: Licence, Play and Power in Renaissance England. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1988.  

29  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

RYNGAERT, Jean Pierre. Introdução a Análise do Teatro. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1995. PISCATOR, Erwin. Teatro Político. Trad. Aldo Della Nina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 1985. ______. Brecht e o Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 2012. (Coleção Debates).  

 

30  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   GRAVURAS RUPESTRES – UMA INTERPRETAÇÃO ETNOLINGUÍSTICA Blás Torres Neto Universidade do Estado do Amazonas – UEA Resumo: O objetivo deste artigo é realizar uma leitura, na perspectiva da etnolinguística, das gravuras rupestres encontradas em um sítio arqueológico, localizado no município de Itacoatiara (AM), às margens do rio Urubu. Tais gravuras foram confeccionadas ao longo de impensáveis anos por culturas aborígenes que se estabeleceram muito provavelmente próximos destes registros históricos. A investigação partirá de observações sobre as diversas formas de representações das gravuras conhecidas como “caretas”, procurando relacioná-las como manifestações de uma linguagem marcante das tradições visuais deixadas pelos habitantes ou visitantes daquelas paragens e utilizará os estudos etnolinguísticos como modelo teórico. Palavras-chave: Linguagem, Gravuras, Registros, História, Cultura. Abstract: The aim of this article is to read from the perspective of ethnolinguistic, the rock carvings found in an archaeological site, located in Itacoatiara (AM), the river Urubu. These prints were made along unthinkable years by aboriginal cultures who settled next most likely these historical records. Research leave comments on the various forms of representations of engravings known as "straight", trying to relate them as manifestations of a language striking visual traditions left by inhabitants or visitors of those stops and use the ethnolinguistic studies as theoretical model. Keywords: Language, Engravings, Records, History, Culture.

INTRODUÇÃO   O município de Itacoatiara, distante cerca de 256 quilômetros da capital Manaus, ostenta um dos mais ricos, bonitos e proeminentes afloramentos de rochas com inscrições e gravuras rupestres do Amazonas. De acordo com a reportagem “Museu a céu aberto é nova atração turística na ‘Serpa’”, essas pedras integram um conjunto de pelo menos 27 sítios arqueológicos de diferentes datas, os quais vão de 1.500 a 05 mil anos antes do tempo atual. Segundo a mesma crônica, o primeiro deles será o sítio Jauari, uma área de seringal onde há fragmentos de cerâmicas de povos nativos que lá habitaram há aproximadamente 1.200 e 1.500 anos. A principal característica do sítio Jauari, contudo, é a presença de registros de terra preta, um solo fértil para agricultura que tem sido alvo de intensa pesquisa científica nos últimos anos. O outro sítio que receberá intervenções de infraestrutura para visitação pública é

 

31  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   a Ponta do Jauari, localizada na orla de Itacoatiara, de onde afloram os pedrais estimados em 04 e 05 mil anos. Os sítios arqueológicos em Itacoatiara são pesquisados desde o final do século 19 por historiadores como Barbosa Rodrigues e Bernardo Ramos. Entretanto, esses sítios nunca foram inventariados, ou seja, ainda não haviam recebido um trabalho acadêmico de catalogação minuciosa. O objetivo do inventário é buscar informações para salvaguardar os bens encontrados nas áreas, que vão desde objetos intactos, pedaços de cerâmica e gravuras, além da terra preta. Sobre esta questão Pereira e Figueiredo (2005, p. 01) afirmam que Os vestígios arqueológicos da Amazônia sempre despertaram muita curiosidade. Amadores e especialistas fascinados pelo exotismo e pela beleza das peças arqueológicas amazônicas formaram, no final do século XIX e na primeira metade do século XX, importantes coleções numa época onde os interesses da pesquisa convergiam principalmente para a coleta de belas peças, preferencialmente, inteiras para serem guardadas em Museus.

O nome da cidade em tupi-guarani significa pedra pintada, e não surgiu por acaso. Itacoatiara possui, realmente, um gigantesco pedral com gravuras rupestres talhadas, provavelmente, há 04 ou 05 mil anos. Outro sítio que vem sendo alvo de estudo é o Caretas, localizado à margem do rio Urubu, na zona rural de Itacoatiara, o qual será objeto de nossa análise a partir de pressupostos etnolinguísticos, visando uma correlação das gravuras com as possíveis mensagens deixadas pelos povos que ocuparam a região do sítio em períodos distintos da história do Amazonas. Em outra reportagem intitulada “Gravuras têm mesmo padrão em Manaus, Silves e Itacoatiara” que também realça os achados arqueológicos da cidade Itacoatiara, destaca-se que desenhos talhados em rochas entre 02 mil e 07 mil anos atrás podem ter sido uma forma de comunicação entre os povos que habitavam a região onde hoje estão as cidades de Manaus, Itacoatiara e Silves. Segundo a mesma fonte, o mesmo padrão de petróglifos (gravuras sobre pedras) encontra-se em rochas dos dois municípios e nas lajes de Manaus. O sítio onde se encontra o maior número de “carinhas” é o Caretas, às margens do rio Urubu, afluente do rio Amazonas, em Itacoatiara. O Caretas é considerado raro porque são poucos os petróglifos estudados na Amazônia e ele é o primeiro do Amazonas a ser escavado. A singularidade do sítio Caretas está não apenas na grande quantidade de “carinhas” (aproximadamente 400 (figura 01) em uma extensão de pouco mais de um quilômetro), mas o fato de certas inscrições rupestres fugirem da possibilidade de identificação com os das comunidades indígenas que deram origem à cidade como os índios Muras, Juris, Abacaxis, Anicorés, Aponariás, Cumaxiás, Barés, Jumas, Juquis, Pariguais e Terás. Então quem as teria

 

32  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   confeccionado? Qual a importância destas marcas para o processo de formação da cultura local? E afinal, o que elas realmente querem nos mostrar?

Figura 01: Umas das mais relevantes pedras do sítio, onde inúmeras gravuras retratam diversos rostos ou caretas, como são conhecidas na localidade. São figuras entalhadas em baixo-relevo algumas em formato circular e outras semicirculares (Blás Torres Neto 06/10/12).

1. CONTRIBUIÇÃO DA ETNOLINGUÍSTICA NA LEITURA DAS CARETAS A apreciação dos conceitos etnolinguísticos será feita a partir da leitura de autores que formularam em suas obras os elementos norteadores deste ramo da linguística, que consideram a relação entre a linguagem e a cultura das comunidades, em consonância com a etnologia, a qual realiza uma exploração antropológica dos povos primitivos e também de sua cultura. Desta forma, os chamados estudos etnolinguísticos direcionam suas análises principalmente nas comunidades indígenas e em considerar sua linguagem e como ela está conectada às peculiaridades do seu modo de vida, suas crenças e folclores. Para Lima Barreto (2010, p. 06) “Etnolinguística é uma disciplina que tem causado confusões no que tange à terminologia, bem como ao seu objetivo de estudo. Por isso, muitos estudiosos têm se dedicado à definição de seus fundamentos e suas tarefas”. Normalmente é idealizada como a disciplina que estuda as relações entre língua, cultura e sociedade. Mais precisamente, Lima Barreto (id., p.06) define “como a disciplina linguística que estuda a variedade e a variação da linguagem em relação com a civilização e a cultura”, além de abranger domínios tanto da Linguística quanto da Antropologia, não sendo considerada desta forma uma disciplina  

33  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   isolada e autônoma. Segundo Lima Barreto (id., p.06) “ela se preocupa em investigar os relacionamentos entre a língua e visão de mundo, a partir do contexto em que a língua é produzida, analisando a sua adaptação a este contexto e seu poder de expressão”. Observa-se assim, que é possível através da Etnolinguística, perceber de que forma a visão de mundo de um determinado grupo está relacionada às suas experiências. Lima Barreto (id., p. 04) acrescenta que As pesquisas etnolinguísticas datam do século XIX, quando os norte-americanos passaram a estudar grupos tribais e suas respectivas línguas, com o objetivo de identificar a sua organização, classificando-os linguística e etnicamente. Nessas pesquisas, cada sociedade e cada língua foram analisadas em particular, sem estabelecer relação entre as mesmas. Assim, não foi aplicado o método históricocomparativo da linguística europeia.

Refletindo sobre o contexto indígena, Souza (2012, p. 173) afirma que “Calcula-se que, à chegada dos portugueses, existiam no Brasil mais de mil povos indígenas, contando com uma população entre dois a quatro milhões”. Contingente bastante expressivo, principalmente se ponderarmos a respeito da antiguidade das marcas históricas encontradas no sítio Caretas no município de Itacoatiara (AM). Souza (Id., p. 174) assegura que “no contexto dos países da América do Sul, é o Brasil onde se concentra a maior diversidade linguística e cultural”. Esta conjuntura se manifesta na ocorrência de inúmeros fenômenos que vêm merecendo a atenção especial dos estudiosos, tanto da linguagem como propriedade universal, como daqueles que se dedicam aos estudos das línguas naturais específicas. Segundo Rodrigues (2012, p. 17) Os índios do Brasil não são um povo: são muitos povos, diferentes de nós e diferentes entre si. Cada qual tem usos e costumes próprios, com habilidades tecnológicas, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social e filosofia peculiares, resultantes de experiências de vida acumuladas e desenvolvidas em milhares de anos. E distinguem-se também de nós e entre si por falarem diferentes línguas.

Nessa linha de abordagem, Monserrat (2002, p. 05) salienta que “as línguas indígenas constituem (...) um dos pontos para os quais os linguistas brasileiros deverão voltar a sua atenção. Tem-se aí, sem dúvida, a maior tarefa da linguística no Brasil”. Desta maneira, percebemos que, em cada nova língua que é investigada, encontramos novas contribuições ao contexto linguístico, ou seja, cada nova língua seria outra manifestação de como se realiza a linguagem humana. Monserrat (id., p. 05) realça também que cada estrutura linguística descoberta leva-nos a modificar conceitos antes consolidados e pode abrir novos horizontes para a visualização macro do impressionante fenômeno da linguagem humana. De acordo  

34  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   com Rodrigues (id., p. 17) “Como todas as demais, as línguas dos povos indígenas do Brasil são inteiramente adequadas à plena expressão individual e social no meio físico e social em que tradicionalmente têm vivido esses povos”. Da mesma forma Rodrigues (id., p. 93) expressa que “Em certo sentido, as línguas isoladas representam tipos linguísticos únicos, em contraste com as línguas de uma família, cujas características básicas se reencontram em outras línguas da mesma família”. Igualmente entendemos que embora toda língua tenha propriedades únicas, essas acabam se perdendo quando determinada língua desaparece sem ter sido documentada. Entretanto, essa perda é bem maior quando uma língua isolada se extingue. Diante deste fato Rodrigues (id., p. 93) pondera que Perde-se então não apenas um conjunto de nomes e verbos com que se designam, como nas demais línguas, os objetos e as atividades familiares aos membros de determinadas sociedade humana, mas se perdem, sobretudo, modos únicos de codificar a experiência social e o conhecimento humano, os quais sem dúvida integram um como patrimônio cognitivo da humanidade e têm importância crítica para a compreensão não só da linguagem, mas da própria capacidade cognoscitiva do homem.

Lima Barreto (2010, p. 02) afirma que “A linguagem está presente em todas as atividades humanas. Além de sua função principal de estabelecer comunicação entre os homens, ela é responsável pela sistematização de suas experiências em relação aos fenômenos do mundo”. De acordo com autor, a sociedade se constitui através da linguagem, considerando que é devido à sua existência que o homem transmite tudo aquilo que aprendeu, conheceu ou experimentou a outras gerações de sua cultura. Certamente, a linguagem é responsável pela difusão de todo o acervo cultural reunido pela humanidade durante muitos séculos. De acordo com Rodrigues (id., p. 18) A história das línguas do mundo tem sido uma história de sucessivas multiplicações, e só assim pode ter sido a história ou pré-história das línguas indígenas brasileiras. Uma consequência dessa história é que algumas línguas, embora substancialmente diferentes, conservam muitos elementos em comum, que permitem reconhecê-las mais ou menos facilmente como descendentes de uma só língua anterior.

Rodrigues (id., p. 18) também considera a possibilidade que na época da chegada dos primeiros colonizadores europeus ao Brasil, há mais de quinhentos anos, o total de línguas indígenas fosse provavelmente o dobro do que é hoje. A redução teve como principal causa o desaparecimento das culturas que as falavam, justamente em decorrência das campanhas de extermínio ou de caça a escravos, dirigidas pelos europeus e por seus descendentes e prepostos, ou por força das epidemias de doenças contagiosas do Velho Mundo, deflagradas  

35  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   de forma involuntária (ou mesmo em alguns casos voluntariamente) no seio de muitos povos indígenas; pela diminuição progressiva de seus territórios de coleta, caça e plantio e, portanto, dos seus meios de subsistência, ou pela absorção, forçada ou incitada, aos usos e costumes dos colonizadores.   Para Lima Barreto (Id., p. 08) “a análise da língua de uma determinada comunidade, partindo dos fatos linguísticos para os fatos extralinguísticos, permite conhecer melhor a realidade social desta”. Em decorrência desses fatores extralinguísticos, podem ser especificados inúmeros fenômenos linguísticos, como exemplo, o surgimento de determinadas formas linguísticas. Lima Barreto (Id., p.08) também afirma que “no que tange ao léxico de uma língua, por exemplo, os estudos demonstram que este pode situar preferências culturais de uma dada comunidade, refletindo mais as coisas que estão diretamente ligadas à sua vida diária”. Nessa linha de raciocínio, Mattoso Câmara (1965 apud Lima Barreto, 2010, p. 04) afirma que “a língua em si mesma é um dado cultural. Quando um etnólogo vai estudar a uma cultura, vê com razão na língua um aspecto dessa cultura”. Percebemos desta forma que de acordo com a atividade de cada comunidade, seus membros terão a chamada especificidade lexical mais desenvolvida nessa área, prevalecendo as menções aos objetos, materiais, ações, conceitos relacionados a esta atividade. Os pressupostos teóricos apresentados endossarão a análise das gravuras rupestres confeccionadas em pedras de arenito provavelmente por culturas indígenas que outrora ocuparam uma região atualmente denominada sítio arqueológico Caretas, situado às margens do rio Urubu, no município amazonense de Itacoatiara. Gravuras que a seguir serão descritas e interpretadas como marcas históricas capazes de caracterizar a linguagem de comunidades possivelmente sem escrita, mas suscetíveis de transmitir para a posteridade, seu acervo cultural através de uma simbologia peculiar. 2. PEDRAS ETERNAS E REGISTROS HISTÓRICOS Inúmeros estudos foram realizados em torno da linguagem enquanto fenômeno social, como os de Malinowski (1986 apud Lima Barreto, 2010, p. 03) “que, ao analisar um texto primitivo, mostrou que a língua está arraigada na realidade cultural, nos costumes de um povo, não podendo, portanto, ser explicada sem referência constante a estes”. Levis-Strauss (1986 apud Lima Barreto, 2010, p. 03), “Por exemplo, ao analisar as relações de parentesco como formas de comunicação, exige, para a linguagem, a instauração da sociedade. Para ele, a cultura decorre da linguagem”. Mas foi a pesquisa de Sapir-Whorf (1969 apud Lima Barreto, 2010, p. 03) a de maior destaque nesse sentido. “Eles consideraram a linguagem um  

36  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   poderoso símbolo de solidariedade em que, de forma inconsciente, sobre os hábitos da linguagem de um grupo, é construída a realidade”. Esses conceitos são bastante significativos e fundamentarão a análise que fazemos, tendo com base as gravuras rupestres, encontradas em rochas do sítio arqueológico Caretas, descobertas no município amazonense de Itacoatiara e também as próprias pedras entalhadas, que representam a expressão da linguagem da cultura de povos que um dia viveram naquela área. Seguindo esta abordagem teórica, Farias e Silva (s/d., p. 11) afirmam que “o homem constitui-se falante desde cedo, e vai adquirindo suporte necessário para transmitir sua mensagem para os demais ao se comunicar socialmente, primeiramente no seio de sua família e em seguida no meio comunitário”.

Na rocha da figura 02 visualizamos rostos entalhados de maneira bastante sutil na lateral da pedra em formato circular, praticamente imperceptíveis. Contudo, o que aguça a nossa curiosidade é justamente o fato do monólito está incrustado na parede do barranco e que também apresenta na sua extremidade o entalhe de uma cabeça de animal. Esta imagem nos faz pensar na intenção de seus elaboradores quando posicionaram a rocha na encosta do barranco. Seria um adorno criado pela comunidade ou uma espécie de guardião do local, semelhante à forma como encontramos em muitas culturas da antiguidade, onde animais ferozes foram esculpidos nas fachadas de templos e na entrada das principais cidades de uma determinada civilização? Todavia, o mais intrigante seria imaginar que a rocha em questão encontrava-se posicionada na parede do barranco muito antes da chegada dos aborígenes que utilizavam a área no seu cotidiano.

Figura 02: (Blás Torres Neto 06/10/12). Como percebemos anteriormente, a etnolinguística reforça a especulação entre as relações de uma determinada língua empregada na constituição das linguagens pictográficas e pictóricas deste povo, representando sua visão de mundo. Nesta linha de raciocínio,  

37  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Albuquerque (s/d., p. 01) certifica que “os estudos sobre a linguagem oferecem uma base preciosa para que possamos dar conta, não apenas da compreensão da cultura e da comunicação, mas da gênese de muitas abordagens que estão presentes nos modernos estudos sobre o tema”.

Figura 03: (Blás Torres Neto 06/10/12). Observamos de forma descritiva, na rocha em detalhe da figura 03, várias caretas entalhadas em baixo-relevo, cada uma com formato diferente, uma quadrada e com a boca vazada, outra semicircular e duas com feições praticamente indefinidas. Se considerarmos os entalhes deixados na rocha, poderíamos idealizar que se trata de representações de uma mesma cultura que ao longo dos anos foram aperfeiçoando os detalhes das faces, chegando inclusive a inserir nas gravuras perfurações que esboçavam de maneira mais aguda os semblantes dos membros da comunidade realçada através dessas figuras cefalomorfas. Entretanto, se examinarmos com mais atenção o perfil de uma gravura esculpida no canto superior esquerdo da rocha, percebemos uma imagem completamente distinta das demais, o que suscitaria, desta forma, a possibilidade do minério reproduzir características de outras culturas que ocuparam a região. Cada cultura procura deixar seu legado para posteridade através de uma linguagem específica. Os grupos étnicos que um dia controlaram a área do sítio Caretas deixaram mais que isso, produziram marcas históricas que nos desafia quanto a sua verdadeira intenção, pois seriam registros de linguagem que procurava evidenciar o cotidiano de determinado povo ou suntuosas manifestações artísticas?  

38  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades    

Figura 04: (Blás Torres Neto 06/10/12). Este outro monólito visto na figura O4, diferentemente dos demais, apresenta uma gravura não em forma de careta, mas traços de uma ilustração que lembraria uma figura antropomórfica ou zoomórfica. Esta gravura rupestre torna-se especial não apenas por sua peculiaridade, pois outras rochas também expressam singularidades nos desenhos esculpidos, mas principalmente por ser um esboço rico em detalhes e que muito provavelmente estaria simbolizando a caracterização de uma entidade ligada ao sincretismo religioso daquela determinada cultura aborígene ou a maneira como estilizavam suas máscaras para exibirem nos rituais da tribo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como examinamos nas gravuras rupestres do sítio arqueológico Caretas, muitas expressões permanecem uma incógnita. Entretanto, avaliar as marcas deixadas pelos povos ancestrais, por meio de uma interpretação etnolinguística, leva-nos a reflexões sobre os possíveis contextos em que essas linguagens foram produzidas, a simbolização e a intencionalidade de seus emissores. Na esteira deste pensamento, Farias e Silva (s/d., p. 01) afirmam que “cada sociedade transmite às novas gerações o patrimônio cultural que recebeu de seus antepassados”. Inevitavelmente, cultura também pode ser chamada de herança social, e a forma mais inequívoca de se transmitir uma cultura é justamente através da linguagem. No que se refere à análise apresentada neste estudo, o vocabulário manifesto por gravuras rupestres seria a possível constatação dos registros históricos de vários povos que habitaram  

39  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ou ocuparam um determinado local margeado pelas águas escuras de um característico rio amazônico. Seriam registros que também podemos considerar como uma forma de diálogo com outras culturas, pois, de acordo com a reportagem intitulada “Gravuras têm mesmo padrão em Manaus, Silves e Itacoatiara”, destaca-se que os achados arqueológicos da cidade de Itacoatiara poderiam ter sido uma forma de comunicação entre os povos que habitavam a região onde hoje estão as cidades de Manaus, Itacoatiara e Silves. Poderia ter sido também uma forma de comunicação entre povos ou uma maneira de demarcar seus territórios através das marcas deixadas nas rochas, que, entretanto, com o passar dos anos, a linguagem original cedeu espaço a mudanças provocadas pelo contato com novas culturas. Seguindo esse raciocínio, sobre os grupos indígenas pré-históricos Corrêa-Da-Silva (2010, p. 75) assegura que “com a necessidade de expandir seus domínios sobre outras terras, alargaram-se as distâncias entre as aldeias, propiciando o necessário enfraquecimento dos laços entre as comunidades que dá lugar ao surgimento de desenvolvimentos diferenciados das línguas”. Para Rodrigues (2001, p. 268) “assim como a diversidade biológica é produto de milhares de anos de evolução, isto é, da interação entre as espécies, de migrações para novos meios ambientes, de adaptação a mudanças climáticas” também “a diversidade etnolinguística decorre de processos seculares e milenares de dispersão de grupos humanos e de interação de uns com outros e com novos meios ambientes”. Essas observações nos faz indagar sobre questões básicas relacionadas às gravuras rupestres confeccionadas nas rochas do sítio arqueológico Caretas, às quais abordamos neste estudo, na tentativa de promover particularmente mediante a sociedade regional, a importância das gravuras rupestres para a compreensão do processo de formação da cultura local, aguçando interpretações de cunho etnolinguístico, entre outras, construindo hipóteses sobre a intenção de seus idealizadores. O certo é que não se pode atestar o significado dito como o mais correto, são no máximo possibilidades de assertivas, cujo valor de veracidade depende do grau de verificabilidade do que for apresentado como argumentação, provas ou evidências confirmadas por outras áreas do conhecimento. As confirmações destas respostas muito provavelmente continuem um grande mistério, pois como notamos não se tratam apenas de inscrições elaboradas pelos povos indígenas que no passado controlaram a área, mas o próprio complexo de pedras nos questiona quanto à sua verdadeira utilidade. Seria um antiquíssimo templo destruído pela violência da natureza, um local onde as tribos se despediam de seus companheiros e, em função disso, marcavam as pedras como demonstração de respeito às suas almas? Ou simplesmente uma oportunidade única de eternizar a sua cultura através de um minério tão resistente como a sua história? Não importa! O que realmente nos contempla é justamente a oportunidade de viajarmos através das nossas origens e resgatarmos elementos únicos para  

40  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   um processo de preservação de registros que sempre estiveram lá, mas que só agora foram devidamente reconhecidas e valorizadas. REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Maria Elizabeth Baltar Carneiro de. Dicionários de Cultura Popular: Em Busca de uma Identidade Nordestina. s/d. . Disponível em: http://filoczar.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=208%3Adicionariosde-cultura-popular-em-busca-de-uma-identidade-nordestina&catid Acesso em: 08 jul. 2013. CORRÊA-DA-SILVA, Beatriz Carretta. Etnolinguística e Etno-história Tupí: Desfragmentando o Olhar. 2010. Disponível em: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local-files/artigo%3Acorrea-da-silva-2010/correa-da-silva_2010_desfragmentando.pdf. Acesso em: 10 jun. 2013. Etnolinguística. s/d. Disponível em: https://sites.google.com/site/linguaelinguistica/o-que-elinguistica-3/etnolingustica Acesso em: 04 jun. 2013. FARIAS, Melânia Nóbrega Pereira de; SILVA, Elba Ramalho da. Quem “Fala Moreira”? Estudo Etnolingüístico de Uma Comunidade Sertaneja da Paraíba. s/d. Disponível em: http://www.gelne.org.br/Site/arquivostrab/8-artigogelnedefinitivo.pdf Acesso em: 10 jun. 2013. Gravuras têm mesmo padrão em Manaus, Silves e Itacoatiara. 2010. Disponível em: http://acritica.uol.com.br/amazonia/Gravuras-padrao-Manaus-SilvesItacoatiara_0_393560677.html Acesso em: 04 jun. 2013 LIMA BARRETO, Evanice Ramos. Etnolinguística: pressupostos e tarefas. P@rtes. (São Paulo). Junho de 2010. ISSN 1678-8419. Disponível em: www.partes.com.br/cultura/etnolinguistica.asp. Acesso em: 03 mai. 2013. MONTESSERAT, Ruth. Prefácio 1985. In: RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas Brasileiras: Para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola, 2002. Museu a céu aberto é nova atração turística na “Serpa”. 2012. Disponível em: http://acritica.uol.com.br/amazonia/Cidades-Museu-aberto-atracao-turistica-Itacoatiara-SerpaAmazonia-Amazonas_0_740925947.html Acesso em: 04 jun. 2013. PEREIRA, Edithe; FIGUEIREDO, Silvio Lima. Arqueologia e Turismo na Amazônia – Problemas e Perspectivas. 2005. Disponível em: http://marte.museigoeldi.br/arqueologia/artigos.html. Acesso: 05 jun. 2013. RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Biodiversidade e Diversidade Etnolinguística na Amazônia. Publicado em Maria do Socorro Simões. (Org.). Cultura e biodiversidade entre o rio e a floresta, 1 ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 2001, v. 1, p. 269-278. RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas Brasileiras: Para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

 

41  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   SOUZA, Edson Rosa de. Funcionalismo linguístico: Análise e descrição. São Paulo: Ed. Contexto, 2012.

 

42  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ANÁLISE SEMIÓTICA DO CONTO “A CARTOMANTE” DE MACHADO DE ASSIS: UM OLHAR SOBRE O ORIGINAL E A ADAPTAÇÃO (HQs)

Camilla Evangelista15 Luiz Felipe P. dos Santos2 Socorro Viana de Almeida3 Juciane dos Santos Cavalheiro4 Resumo Este artigo apresenta, como tema central, uma análise semiótica do conto “A cartomante”, de Machado de Assis: um olhar sobre o original e a adaptação (HQs). A metodologia empregada foi de natureza exploratória com pesquisa bibliográfica qualitativa no que diz respeito ao emprego de adaptações literárias como recurso de ensino/aprendizagem no âmbito escolar. A análise de dados foi realizada a partir do conteúdo do cânone original e da adaptação, aliado às orientações dos PCNs (1998; 2006), à luz das ideias de gênero discursivo de Bakhtin (2003), observando os componentes da narrativa de Barthes (1976), pensando a tradução de um signo para outro na concepção de transposição semiótica de Pierce (1977), Santaella (1996; 2008), e utilizando as estratégias de Vergueiro e Zeni (2009), na análise dos mecanismos usados para a caracterização da parte verbal para o plano visual. Com os dados analisados, constatamos que o gênero discursivo HQs, particularmente o conto “A Cartomante”, apresenta inúmeros recursos gráficos, linguísticos e visuais, bem como uma linguagem híbrida. Essa linguagem icônica e simbólica, aliada à linguagem verbal, proporciona-nos inúmeros recursos e estratégias de ensino/aprendizagem nas aulas de Língua e Literatura Portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: A cartomante – Machado de Assis – adaptação – HQs.

Introdução Tendo em vista a relevância de Joaquim Machado de Assis (1839-1908) como um dos maiores escritores da literatura brasileira, o presente artigo tem o objetivo de analisar o processo de ressignificação dos signos, em princípio empregados no clássico A Cartomante, e posteriormente, adaptado para as Histórias em Quadrinhos (HQs). Entendemos essa adaptação como uma reorganização, uma recriação, uma reatualização do objeto cultural aos vários sistemas semióticos presentes no veículo. As HQs, entendidas aqui como gênero textual, apresentam uma carga sígnica considerável. Ou seja, os signos são inscritos em outro gênero                                                                                                                

1

Bolsista do Programa Institucional de Extensão – PROGEX/UEA. Acadêmico do Curso de Letras. Bolsista do Programa Institucional de Extensão – PROGEX/UEA. Acadêmico do Curso de Letras. 3 Coordenadora do Projeto de Extensão e Profa. Mestre do Curso de Letras-UEA. 4 Coordenadora do Projeto de Extensão e Profa. Dra. do Curso de Letras-UEA. 2

 

43  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   textual e reorganizados com a intenção de provocar no leitor determinadas reações. Com efeito, por ser uma adaptação verbo-visual, os quadrinhos funcionam como um excelente instrumento pedagógico por instituírem uma forma dinâmica de narrar uma história, podem persuadir o leitor e até mesmo convencê-lo a percorrer mais tarde o texto original, supostamente árduo e moroso. Nas adaptações literárias para os quadrinhos, ocorre um processo hibridizante, que consiste em mesclar recursos verbais e não verbais. Ao trazer esse recurso, a adaptação se apresenta como signo da obra literária original e vice-versa. Desse modo, a passagem de um sistema verbal para um não verbal se configura como um processo de tradução, no qual são trabalhados dois signos – o traduzido, que é a obra literária em si, e o tradutor, que é a tradução em um novo suporte. Nesse caso, especificamente para os quadrinhos. Diante do exposto, podemos dizer que esse tipo de adaptação consiste em um processo de transposição intersemiótica, através do qual o original é adaptado para um sistema de signos diferentes. Para Pierce, o signo é constituído, resumidamente, no seguinte: [...] um mediador entre o homem e o mundo, o homem é um mediador entre um signo e outro signo [...] o homem só conhece o mundo porque de alguma forma o representa e só interpreta essa representação numa outra representação que Pierce chama interpretante da primeira (1977, pp. 30- 31).

Como se vê, um signo é uma coisa de cujo conhecimento depende o conhecimento de outra coisa. Desta observância resulta que o signo comunica à mente algo do exterior, o representado é seu objeto; o comunicado, a significação; a ideia provocada, o seu interpretante. Para Santaella (2008), esse conceito aborda três aspectos: a significação, a objetivação e a interpretação, que na concepção peirciana forma uma “natureza triádica” (p. 05), ou seja, o signo pode ser analisado “em si mesmo, [...] no seu poder para significar; na sua referência àquilo que ele indica, se refere ou representa; e nos tipos de interpretação que ele tem o potencial de despertar nos seus usuários”. (p. 05) Através dessa concepção, temos que o significado de um signo pode ser definido como sendo sua tradução por outro signo que possa aparecer em seu lugar, especialmente um signo no qual este significado possa se desenvolver de um modo mais completo, um instrumento que comunica algo do exterior. Santaella, (1996, p. 94), interpretando Pierce, afirma que o signo não se constitui como um objeto, apenas o substitui. No caso das adaptações para os quadrinhos o signo verbal, além de ser adaptado para o signo visual, mantém o primeiro. Nesse caso, a adaptação, como uma atividade intersemiótica, requer sempre um interpretante (ideia provocada), a relação entre signos e um objeto. Dessa forma, no momento  

44  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   em que uma obra literária e sua adaptação são vistos como signos icônicos um do outro, cada signo é entendido como uma transformação do outro, um processo tradutório. 2 O gênero textual A expressão “gênero” foi bastante utilizada, na tradição ocidental, no âmbito da retórica e da literatura com um sentido especificamente artístico-literário, referindo-se aos gêneros clássicos - o lírico, o épico e o dramático -, aos gêneros retóricos – jurídicos políticos - e aos gêneros discursivos do cotidiano – réplicas do diálogo do dia-a-dia (BAKHTIN, 2003). Bakhtin sustenta que falamos através de determinados gêneros do discurso: [...] todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo. Dispomos de um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos). Em termos práticos nós o empregamos de forma segura e habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconhecer inteiramente sua existência (2003, p.282).

O modo como absorvemos esses gêneros discursivos, Bakhtin compara ao modo como a língua materna nos é absorvida: [...] a língua – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários de gramáticas, mas de enunciações concretas que nos mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva com as pessoas que nos rodeiam (2003, p.282).

Diante disso, a vertente bakhtiniana entende o gênero discursivo como sendo toda produção de enunciado oral ou escrito, na qual cada gênero discursivo é identificado e nomeado pelos participantes da situação de comunicação por seu propósito comunicativo, suas características linguístico-textuais relativamente estáveis, sua temática, seu estilo, suas condições de produção e circulação. Bakhtin classifica os gêneros discursivos em primários e secundários, onde os gêneros primários são considerados simples e voluntários, utilizados na linguagem oral e escrita do dia-a-dia, como o diálogo e a carta. Os gêneros secundários são considerados complexos – romances, dramas, pesquisas científicas, etc. - “surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado” (2003, p.263). Os gêneros secundários absorvem e reconstroem os gêneros primários e quando estes se inserem dentro daqueles, perdem sua relação imediata com a realidade concreta e os enunciados reais alheios. A distinção entre os gêneros primários e secundários é de extrema importância, pois para Bakhtin é necessário encontrar e determinar a natureza do enunciado e  

45  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   abranger seus aspectos essenciais: “cada enunciado particular é individual, mais cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciado” (2003, p.262). 2.1 O gênero textual HQs Ao longo do tempo pode-se perceber que as HQs desempenharam importante papel no processo de desenvolvimento da civilização. Nos Estados Unidos, durante a 2ª Guerra Mundial, as HQs foram usadas para ensinar os soldados de pouca instrução a entender os mecanismos de ataque e defesa de uma situação de guerra, bem como ensinar a reparar e manter os equipamentos utilizados. Na China comunista foram usadas em campanhas, através das quais Mao Tse-Tung tentava passar uma imagem solidária ao país. As HQs foram também usadas nas escolas europeias com fins educativos, (FEIJÓ, 1997). No Brasil, as HQs começaram a ser usadas como um gênero textual a partir do momento em que começaram a perceber que esse recurso podia ser explorado como uma forma de transmitir conhecimento no âmbito escolar. Antes, porém, elas eram vistas por muitos professores como um gênero sem conteúdo, marginal, pois os modelos de ensino não exploravam a variedade de gêneros textuais como facilitadora do ensino-aprendizagem, limitando-se apenas ao uso da gramática normativa. Para Vergueiro e Ramos, (2009), a gramática normativa deixou de ser, a partir dos anos 1990, o único elemento chave do ensino. As HQs passaram a ser utilizadas em sala de aula e ganharam espaço em muitos livros didáticos. A inclusão das HQs nos livros didáticos  se  deu  a  partir  do  seu  reconhecimento,  pelos   órgãos  oficiais  de  educação  como  os  PCNs  (Parâmetros  Curriculares  Nacionais,  1998),  e   a  LDB  (Lei  de  Diretrizes  e  Bases,  1996),  os  quais  desenvolveram  parâmetros  específicos,   abordando  o  gênero  que  traz  em  sua  estrutura  os  elementos  verbais  e  não  verbais,  como   uma   forma   mais   eficiente   de   ensino   em   que   o   caráter   elíptico   da   linguagem   obriga   o   aluno  a  pensar  e  cujo  conteúdo  detém  um  alto  nível  de  informação.   Entretanto, as HQs precisam ser trabalhadas de modo que o aluno não a considere uma forma de descanso das matérias consideradas mais nobres, pois dessa forma trará um desmerecimento desse gênero. Cabe ao professor ter bastante familiaridade, conhecer seus recursos linguísticos, suas características, pois dessa forma saberá como produzi-lo e trabalhálo como um gênero textual, pois assim, esse riquíssimo material de apoio didático terá sua eficácia ao destino que for empregado.  

46  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   3 Pensando a prática: como as adaptações literárias promovem o aprendizado As propostas didáticas para o ensino da língua portuguesa devem organizar-se tornando o texto (oral ou escrito) como uma unidade básica de ensino, considerando a diversidade de textos que circulam na sociedade. Pressupõem também que, através de uma análise crítica dos vários discursos, o aluno pode identificar pontos de vista, valores e eventuais preconceitos neles veiculados (PCNs, BRASIL, 1998). Essa posição adotada pelos PCNs (1998), parte da perspectiva bakhtiniana (2003) que trata a língua como uma atividade social, histórica e cognitiva, ou seja, leva em conta seus aspectos discursivos e enunciativos ao invés das particularidades formais. Diante dessa realidade muitos professores foram levados a uma reformulação no que diz respeito às concepções de ensino e às práticas pedagógicas tradicionais. Analisando sobre esse aspecto, a inserção no ensino de diferentes gêneros textuais, como as adaptações literárias, podem possibilitar ao aluno o desenvolvimento de estratégias cognitivas inerentes aos gêneros textuais, em que ele pode desenvolver sua capacidade de interação com os diversos segmentos do conhecimento. Isso permite a compreensão e posterior produção dos vários sentidos apresentados pelo texto, o que nos faz pensar os gêneros textuais como instrumento facilitador do ensino em sala de aula. As adaptações literárias trazem, em seu texto e forma, subsídios de estudos no que se refere aos vários sentidos encontrados nos textos convencionais ajudando, assim, a melhor compreensão deste último, além de ser uma estratégia, que bem empregada, contribui para o desenvolvimento do prazer e do gosto pela leitura.

4 Um olhar semiótico sobre o original e a adaptação (HQs)   A obra literária e o sistema em quadrinhos, no momento que existem para gerar significados, representam atividades semióticas. Para a compreensão dos aspectos de cada um desses sistemas é necessário entender as funções a eles inerentes, ou seja, que   espécie de signos são empregados e como são organizados. Para a análise de uma adaptação sob uma perspectiva semiótica, devemos levar em conta os signos literários usados na realização dos textos e sua relação com os quadrinhos, que vem a ser o desenho que se refere ao elemento verbal da obra literária. Partindo da definição de Barthes (1976), para o qual o enredo é o encadeamento de ações executadas ou a executar pelos personagens numa ficção, a fim de criar sentido, emoção no  

47  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   leitor/espectador, pode afirmar-se que o enredo do conto A Cartomante, na adaptação de Jo Fevereiro (2006), tenta manter-se fiel à obra original, visto que os elementos enunciativos como a linguagem, a forma como o conto é contado, narrado sofre pequenas modificações na transposição para o suporte em quadrinhos, pois citando Zeni (2009, p. 130) “a adaptação pode trazer acréscimos ou apresentar omissões em relação à obra original, mas em linhas gerais se assemelha”. Detecta-se, nesse ponto o cuidado em tentar preservar a seleção lexical da obra original. A adaptação do conto, A cartomante, para os quadrinhos, apresenta na capa, as principais cenas e os quatro personagens principais da narrativa o que já remete o leitor a um envolvente triller de suspense.

  Figura  1  –  A  Cartomante:  capa      

Os olhos penetrantes e misteriosos, retratados na capa, simbolizam a cartomante. Assim como o desenho de algumas cartas de baralho - valete e dama de copas e rei de espadas - que na presente interpretação podem representar Camilo, Rita e Vilela respectivamente e, acima, em plano sombreado, duas cartas, um valete e uma dama de copas representando Rita e Camilo, apontadas por um dedo em riste supostamente da cartomante. As cores das gravuras projetadas são claras e o sóbrio figurino dos personagens nos remete ao ambiente do século XIX. A gravura de Camilo, Rita e Vilela nos antecipa o enredo de um triângulo amoroso, e os olhos da cartomante e as cartas de baralho nos remetem a uma trama cheia de misticismo e incertezas. Ao adentrarmos no plano visual da adaptação, observamos que o processo de representação feito pelo autor não se restringi ao tom caricatural. Muito pelo contrário, ele usa uma linguagem visual realista e bastante tradicional dando formas reais às expressões faciais dos personagens.

 

48  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   4.1 A transcrição da intertextualidade verbal para a visual Compreende-se por intertextualidade quando um texto se cruza com outro, consciente ou inconsciente, implícita ou explicitamente. No caso intertextual em textos literários, o conhecimento do leitor é acionado para o confronto entre as histórias que se cruzam. Usa-se um texto para citar outros por vários motivos: enfatizar, contradizer, polemizar, etc., (PEREIRA, 1998). No caso das adaptações literárias para os quadrinhos existe a transposição intertextual verbal para a visual onde, se o leitor não está completamente inteirado do que lê, a imagem o situará a respeito da mensagem que o autor quer transmitir. Na interpretação de Jo Fevereiro (2006), na transposição do verbal para a imagem dos quadrinhos, nota-se, logo na primeira frase, (p. 01, 1° enquadre), em que Machado cita Hamlet, de Shakespeare5, o tradutor interpreta visualmente essa cena, na qual vemos Hamlet dialogando com Horácio sobre os mistérios da vida: “Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”.  

                     

                   Figura  2  -­‐  A  Cartomante,  p.  01  

 

                     No segundo caso de intertextualidade, (p. 15, 4° enquadre), Machado, compara a velha caleça de praça ao carro de Apolo6. Esse carro, ou carroça, era conduzido por quatro cavalos dispostos lado a lado, utilizada nos jogos olímpicos antigos. É considerada a carruagem dos deuses e heróis, “em muitas religiões imaginava-se que divindades boas e más, vinham a terra em carros” (BECKER, 1999, p.58). Segundo Becker, Apolo foi descrito conduzindo seu carro através dos céus, liberando a luz do dia e dispersando a noite. O tradutor desenhou uma carruagem resplandecente, conduzida por dois cavalos, levando Rita e Camilo. _____________________   5

Hamlet, príncipe da Dinamarca, peça de Willian Shakespeare escrita provavelmente entre 1600 e 1602. É a tragédia mais representada de todos os tempos. Conta a história do príncipe da Dinamarca que jurou vingar a morte de seu pai. (educaterra.com.br/voltaire/artigos/hamlet.htm). 6 Na mitologia grega, deus do arco e da prata. Realiza o equilíbrio e a harmonia dos desejos. Torna-se o deus solar que cruza os céus numa carruagem resplandecente. Em Roma, não é assimilado por nenhum outro deus, permanece intacto, único, intocável, (CHEVALIER 2005, p. 66).

 

49  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

                   Figura  3  -­‐  A  Cartomante,  p.  15  

4.2 A disposição e organização da formatação dos enquadres visuais Quanto à disposição e organização da formatação dos quadrinhos ou enquadre visual, que é o espaço no qual as ações são desenvolvidas (projeto gráfico da obra), o autor disponibiliza-os horizontalmente em tamanhos, posição e forma variados, predominantemente retangulares ditando assim, o ritmo de leitura e dando um impacto visual mais agradável a esta. Além de apresentar alternâncias de enquadre, a fim de não tornar enfadonho o campo visual, o autor utiliza-se de recursos de enquadramento para destacar e demonstrar as ações físicas dos personagens. Temos o plano geral (3º enquadre - ver abaixo); em que as dimensões do enquadre são semelhantes à altura geral do personagem, mas as referências ambientais são menores; o plano americano (1º enquadre - ver abaixo), cujo enquadramento sobressai o meio corpo e serve para demonstrar as ações físicas dos personagens, o plano médio (4º enquadre- ver abaixo), com enquadramento acima da cintura, usado para dar mais importância às expressões faciais; o primeiro plano (1º enquadre- ver abaixo), que apresenta recorte a partir dos ombros, usado para enfatizar reações que representam estados psicológicos e emocionais, e há também o plano de detalhe (2º enquadre- ver abaixo), cuja função é mostrar algo muito específico, é usado para enfatizar elementos importantes da ação como uma figura ou objeto. Nesse último plano, usa-se o recurso da aproximação. Figura 4

Plano geral: p.09, 3º enquadre

 

Figura 5

Figura 6

Plano americano: p.15, 1º enquadre

50  

Plano médio: p.31, 4º enquadre

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Figura 7

Primeiro plano: p.33, 1º enquadre

Figura 8

Plano de detalhe: p.33, 2º enquadre

4.3. A simbologia das cores Quanto à seleção de cores, Jo e Ciça Sperl utilizam um padrão onde prevalecem as cores em tons pastéis, trazendo um caráter mais próximo da realidade de um cenário típico do século XIX. Notamos uma predominância de tonalidades marrom e cinza nos figurinos masculinos (1º enquadre – ver abaixo), e no figurino da cartomante (2º enquadre – ver abaixo). Figura 9

A Cartomante – p. 13, 1º enquadre

Figura 10

A Cartomante - p.32, 2 º enquadre

Geralmente essas cores, na simbólica, estão associadas ao “fim das degradações da matéria viva: terra vegetal, esterco, lodo” (ROUSSEAU, 1998 p. 121). Para Rousseau o marrom é símbolo da traição e uma das cores do luto e a cor cinza é tida como uma cor que obscurece a razão e também é uma das cores que simbolizam o luto. Notamos também que o figurino de Rita é desenhado com cores frias como o rosa e o verde, que na simbólica, são cores essencialmente femininas (3º enquadre - ver abaixo).

Figura 11

 

51  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

A Cartomante – p.12, 3º enquadre

Assim, o rosa está ligado “ao amor matizado pela constância, sangue frio, moderação e prudência” e o “verde, que nos remete à origem da vida, é consagrado a Vênus – Afrodite – que concebe o amor, princípio de todos os seres”, Rousseau (1998, pp. 29-123). Uma única exceção, no caso dos tons pastéis advém da capa que traz, como se fosse uma espécie de moldura, um vermelho vibrante. Na simbólica, essa cor significa paixão, energia, excitação, mas também está associada à guerra, ao perigo, à violência. “O vermelho é cor do sangue e do fogo [...] por toda parte, as antigas tradições estabelecem que o fogo criou o mundo e que lhe deve destruir”, Rousseau (1998, p. 71). Levando em consideração essa associação, a intenção do autor, ao usar essa cor, leva-nos a acreditar que seja a de anunciar o início de uma paixão e antever o desfecho do conto: a morte, pois, ainda Rousseau (1998, p.83), “o vermelho, sob certos aspectos, pode passar pelo anunciador da morte e até pela própria morte”. 4.4 As onomatopeias e os balões como recursos visuais Outros recursos visuais relevantes usados nos quadrinhos são as onomatopeias (pp. 29 - 42, 4º e 6º enquadres respectivamente – ver abaixo) e os balões. O primeiro recurso é muito utilizado nos livros didáticos dentro das tiras como uma ferramenta de ensino/aprendizagem das figuras de linguagem.

 

Figura 12

Figura 13

A Cartomante – p.29, 4º enquadre

A Cartomante – p.42, 6º enquadre

52  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O segundo é usado para comportar os diálogos dos personagens, os pensamentos e inclusive os ruídos das onomatopeias. Na tradução ora analisada percebe-se a predominância de balões arredondados, que são convencionais, para as falas de todos os personagens (p. 04, 1º e 5º enquadres; p. 27, 2º enquadre, respectivamente – ver abaixo). Figura 14

A Cartomante: p.04, 1º enquadre

Figura 15

A Cartomante:p.04, 5º enquadre

Figura 16

A Cartomante:p.27, 2º enquadre

Mas temos a presença do balão próprio para indicação do pensamento, em que o autor desenha círculos de forma crescente, ligando o personagem ao balão, mas não os faz em forma de nuvem como é comumente usado nessa situação (p. 4, 1º enquadre – ver abaixo). Figura 17

A Cartomante : p.24, 1º enquadre

Por ser uma adaptação verbo-visual, gerada de uma obra literária, são retiradas ou acrescentadas marcas aos novos signos criados. Para ratificar essa afirmação notamos, na adaptação de Jo Fevereiro, alguns acréscimos e supressões de alguns elementos verbais em relação ao cânone original. Nas pp. 03, 04, 35, 39 (enquadres 3º, 1º, 1º, 1º, respectivamente – ver abaixo), existem palavras escritas em negrito para enfatizar a fala do personagem e representar a oralidade, fato que não ocorre no texto original.

 

53  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Figura 18

A cartomante: p.03, 3º enquadre

Figura 19

Figura 20

A Cartomante: p.04, 1º enquadre

A Cartomante: p.35, 1º enquadre

Figura 21

A Cartomante: p.39, 1º enquadre

Encontramos casos em que a falta da linguagem verbal é suprida pela linguagem visual, conforme p. 11, (2º quadrinho - ver abaixo). No texto original temos: - É o senhor? Exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Nota-se que a fala do narrador: “ exclamou Rita, estendendo-lhe a mão” é omitida na adaptação, mas em contrapartida ela é suprida pela linguagem visual. Figura 22

A Cartomante: p.11, 2º enquadre

No caso da p. 20, (5º enquadre – ver abaixo), em que Camilo recebe um bilhete de Vilela, o tradutor ao invés de inserir o assunto em um balão, comum nas histórias em quadrinhos, preferiu transcrever a frase em forma de bilhete mostrado nas mãos de Camilo. Essa ocorrência nos remete ao gênero textual bilhete, reforçando assim a ideia de quão rica em recursos linguísticos são as adaptações literárias para o gênero HQs. Figura 23

A Cartomante: p.20, 5º enquadre

 

54  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Levando-se em conta que as adaptações são realizadas a partir de obras quase sempre originadas de obras de uma cultura ou época diferentes, tem-se o pensamento do tradutor incutido no presente, nota-se a influência do momento atual na sua interpretação. No 1º enquadre da p. 04 (ver abaixo) o tradutor retrata, na expressão facial de Rita, um quê de irritação não contida, o que não é natural para a época, visto que as mulheres do século XIX eram submissas aos homens, não sendo de bom tom expressar-se de uma maneira mais agressiva em sua presença. Nota-se, nesse caso, a diferença de olhares tradutórios, fruto de diferentes interpretações, criando novas formas de composição. Figura 24

A Cartomante: p.04, 1º enquadre

5. Considerações finais Diante das análises realizadas nesse trabalho, figuram-se os seguintes resultados:  O gênero textual HQs, exemplarmente o conto A Cartomante, apresenta-nos inúmeros recursos gráficos, linguísticos e visuais, bem como uma linguagem híbrida e rica;  A linguagem icônica e simbólica, aliada à linguagem verbal, proporciona-nos inúmeros recursos e estratégias de ensino/aprendizagem nas aulas de Língua e Literatura Portuguesa; 

Essas adaptações não substituem a leitura original, mesmo quando elas intentam manter-

se fiel ao texto, como é o caso da obra ora analisada, mas podem persuadir o leitor e até mesmo convencê-lo a percorrer mais tarde o texto original, supostamente árduo e moroso; 

É preciso desmistificar a ideia de que o trabalho, em sala de aula, com as adaptações

literárias para o gênero história em quadrinhos não tem relevância; 

A resistência de muitos professores em trabalhá-lo em suas aulas talvez se deva a pouca

familiaridade com o referido gênero;

 

55  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   

Devemos buscar novas possibilidades de ensino/aprendizagem, pois ele não é um

sistema estanque. Referências Bibliográficas ASSIS, Machado de. A cartomante/conto de Machado de Assis; roteiro, desenhos e arte final Jo Fevereiro; cores Jo e Ciça Sperl. – São Paulo: Escala Educacional, 2006. (Série literatura brasileira em quadrinhos). ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. V. II. Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br. BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 4º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 4º ed. Petrópolis – RJ. Editora Vozes Ltda., 1976. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Linguagens, códigos e suas tecnologias – Brasília: MEC, 2006 (orientações curriculares para o ensino médio.V.I). _______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais; terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Língua Portuguesa. Brasília: MEC/ SEF, 1998. BECKER, Udo. Dicionário de Símbolos/ Udo Becker; [tradução Edwino Royer] – São Paulo: Paulus, 1999 – (Coleção dicionários). CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números) / Jean Chevalier, Alain Gheerbrant com a colaboração de: André Barbault... [et al.] – 19º ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em ação: um século de história / Mário Feijó. – São Paulo: Moderna, 1997. – (Coleção Polêmica). LOPES-ROSSI. Maria A. G. Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção de textos. In: KARWOSKI, A. M.; GAYDEZKA, B.; BRITO K. S. (Orgs.). Gêneros Textuais: Reflexões e Ensino. Palmas e União da Vitória, PR, Kaygangue, 2005. PEREIRA, M. T. G. Leitura e intertextualidade: o cruzamento de teorias e práticas textuais. In VALENTE, A. C. (Org.). Língua, Linguística e Literatura. Rio de Janeiro: UERJ, 1998. PIERCE, Charles S. Semiótica. São Paulo, ed. Perspectiva, 1977. ROUSSEAU, René-Lucien. A linguagem das cores – energia, simbolismo, vibrações e ciclos das estruturas coloridas. Tradução de J. Constantino K. Riemma – São Paulo: Pensamento, 1998.

 

56  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada/Lucia Santaella. – São Paulo: Cengaje Learning, 2008. _________________. Produção de linguagem e ideologia. 2ª ed.-São Paulo:Cortez, 1996. VERGUEIRO, Waldomiro, RAMOS, Paulo (Orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. – São Paulo: Contexto, 2009. ZENI, Lielson. Literatura em quadrinhos. In: VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (Org.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. – São Paulo: Contexto, 2009. Sites consultados: http://www.divertudo.com.br/quadrinhos/quadrinhos-txt.html http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_em_quadrinhos_no_Brasil http://lazer.hsw.uol.com.br/quadrinhos1.htm http://www.historiadigital.org/tutoriais/como-fazer-historia-em-quadrinhos/ http://www.bitstrips.com/create/comic/

 

57  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   IMAGEM E GÊNESE: REPRESENTAÇÕES TEMPORAIS DO PERCURSO CRIATIVO DO ESPETÁCULO MULHERES DE PEQUIM DA COMPANHIA RENASCENÇA DE DANÇA Carmem Lúcia Meira Arce6 PPGLA -Universidade do Estado do Amazonas Escola Superior de Artes e Turismo RESUMO Este artigo trata da análise do espetáculo de dança-teatro Mulheres de Pequim, da Cia. Renascença de Dança, a partir dos seus documentos de processo e dos materiais fotográficos e videográficos. Estes materiais são registros e vestígios dos aspectos compositivos da obra artística e atuam como instrumentos para a reconstrução da obra coreográfica (Salles, 1992). A realização desta pesquisa se deu através da catalogação e estudo dos elementos materiais e simbólicos que compuseram a criação coreográfica em uma abordagem interdisciplinar. Para refletir sobre os aspectos estéticos do ato da criação adotou-se como aporte teórico a Teoria da Formatividade, de Luigi Pareyson (1993), fundamentada na forma, conteúdo e matéria, que constituem as operações das ações formativas presentes nas atividades humanas; a Iconologia, de Erwin Panofsky (1991), como o instrumento de interpretação e análise das imagens, além de Chevalier e Gheerbrant (2007) como referência para o significado dos símbolos e signos presentes na obra relacionando-as às reflexões acerca da linguagem da dança e suas afinidades com os processos de criação do espetáculo Mulheres de Pequim. Palavras-Chave: Dança Contemporânea, Processos de Criação, Crítica Genética. ABSTRACT This article analyzes the spectacle of dance theater Women in Beijing, Cia Renaissance Dance, from their process documents and photographic and videographic. These materials are records and traces of the compositional aspects of the artistic work and act as instruments for the reconstruction of choreographic work (Salles, 1992). This research was made through the cataloging and study of material and symbolic elements that composed the choreography in an interdisciplinary approach. To reflect on the aesthetic aspects of the act of creation was adopted as the theoretical Theory of Formativity, Luigi Pareyson (1993), based on the form, content and matter, which constitute the operations of training activities present in human activities, the Iconologia , Erwin Panofsky (1991), as the instrument of interpretation and analysis of the images, and Chevalier and Gheerbrant (2007) as a reference for the meaning of symbols and signs present in the work relating to the reflections on the language of dance and its affinities with the processes of creating the show Women in Beijing. Keywords: Contemporary Dance , Creation Process , Genetic Criticism .

                                                                                                                6

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes, Universidade do Estado do Amazonas, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Luciane Páscoa.

 

58  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   INTRODUÇÃO Uma obra de arte, ao ser apresentada ao público, traz em sua essência as marcas pessoais do artista que a compôs. Esta criação se dá a partir da relação entre as experiências cognitivas, corporais e sensíveis do homem. A dança, em sua materialidade que é o corpo cênico e a própria coreografia, apresenta signos e símbolos que são pressupostos das impressões do coreógrafo sobre um tema, uma experiência ou um fato, podendo estes influenciar a forma como o artista comporá sua obra, assumindo assim uma estética própria e pessoal. A necessidade de se compreender esse processo foi o estímulo para realização de um estudo genético sobre os processos de criação na área da dança, especificamente do objeto desta pesquisa que foi o espetáculo de dança-teatro Mulheres de Pequim (1990), da Cia. Renascença de Dança, do coreógrafo Jorge Kennedy. Composto por cinco bailarinos/intérpretes e cinco bailarinas/intérpretes, o espetáculo Mulheres de Pequim foi estreado em 1990, na cidade de Manaus, no Teatro Amazonas; no mesmo ano foi apresentado no Teatro Américo Alvarez e na cidade de Rio Branco, no Acre, no Teatro Plácido de Castro. Em 1993, com novo elenco de bailarinos/intérpretes foi remontado e apresentado no Teatro Amazonas. A partir da proposta coreográfica em dança-teatro, as artes circenses (clown), o teatro, o canto, a música erudita e a música popular se combinaram tanto na preparação corporal e cênica quanto na composição da obra artística para a realização do espetáculo. Mulheres de Pequim está dividido em seis cenas: O Casamento; A Apresentação do Homem; A Apresentação da Mulher; Ária; O Baile e A Comemoração. Segundo o coreógrafo Jorge Kennedy, a obra procurou abordar os aspectos sociais, simbólicos e míticos do universo feminino presente, tanto na figura masculina quanto na figura feminina, sendo os personagens homem e mulher os agentes dos conflitos e tensões geradores da ação cênica. As análises e discussões sobre este processo foram realizadas à luz da Crítica Genética e da Iconologia que apontaram recorrências na rotina e nos procedimentos metodológicos compositivos empregados como ativadores criativos no processo de criação da obra em questão. Observaram-se também as convergências presentes nos percurso histórico de criação artística desta companhia, a partir da análise das tendências estéticas identificadas em sua trajetória. Como resultado dessa pesquisa foi apresentado um produto artístico na forma de um Memorial Documental do Espetáculo Mulheres de Pequim, que corroborou o trabalho investigativo proposto ao trazer os resultados do estudo genético e iconológico a partir da  

59  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   exposição das análises e interpretações do processo de criação, que delinearam as influências estéticas presentes na confecção da obra coreográfica, materializadas no espetáculo Mulheres de Pequim. Neste produto foram apreciados os aspectos formais da dança, os elementos formais artísticos, como cores, texturas e tratamento estilístico do espetáculo, além dos elementos subjetivos, míticos e cênicos presentes na obra. O PERCURSO CRIATIVO NA COMPOSIÇÃO COREOGRÁFICA DA OBRA MULHERES DE PEQUIM O Homem possui inúmeras possibilidades de desenvolvimento expressivo e de obtenção do conhecimento, e estas são visualizadas na própria existência, na criação e construção deste indivíduo. Merleau-Ponty declara que o comportamento artístico pode potencializar estas possibilidades e “através da experimentação e contemplação vivencia-se o poder do corpo na criação” (2006, p. 35). Na dança, este corpo é o ambiente onde se exprimem expressões e inquietações através do movimento expressivo, por não se distinguir as significações artísticas das significações existenciais. Para Salles (2004) esta experiência possibilita uma leitura mais significativa sobre o trabalho criador e promove transformações no complexo percurso da obra artística. Esta pesquisa propôs esta leitura como experiência humana e estética a partir das análises e interpretações sobre a trajetória da criação do espetáculo Mulheres de Pequim, da Cia Renascença de Dança. A partir da coleta dos documentos e materiais que fizeram parte do momento inicial da proposta coreográfica deste espetáculo, surgiram fatos importantes que revelaram a realidade sensível, não visível da obra, e auxiliaram a compreensão do momento da criação deste espetáculo como experiência estética oriunda das operações humanas, que segundo Pareyson (1993) são indissociáveis. [...] quem faz a arte é uma pessoa única e irrepetível, e esta, para formar sua obra, se vale de toda sua experiência, do seu modo de pensar, viver, sentir, do modo de interpretar a realidade e posicionar-se diante da vida. E desse modo sua “maneira de formar” é aquela única que pode ter quem pensa, vive, sente daquela maneira, quem tem aquela visão de mundo e tem aquele jeito de viver [...] (PAREYSON, 1993, p. 30)

A reportagem do Jornal A Tarde (1989) sobre a Mostra Dança na Veia trouxe informações significativas sobre a relação do coreógrafo com o tema dos mitos femininos, “a orientação do espetáculo – visão dos seres femininos surgida do inconsciente e que estão  

60  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   presentes no dia a dia do coreógrafo” (JORNAL A TARDE, 1989, s/p.); estas influências da vida pessoal se fizeram mais presentes pelas imagens da infância do coreógrafo, nas quais a figura da mulher sempre fora muito forte, a mãe, a avó, as tias, etc. Todos estes acontecimentos foram os ativadores criativos da obra coreográfica, por meio da música, de texturas de materiais cênicos, cores, luz, vocabulário gestual e da própria movimentação coreográfica, em íntima relação com o corpo dançante, que na dança-teatro é a própria obra de arte, sendo o principal elemento significativo na concretização da ação criativa. Ao serem investigados os procedimentos de criação do espetáculo Mulheres de Pequim, foram observadas três linguagem de dança presentes nesse processo: a técnica clássica, a improvisação/contato e a dança-teatro; estes elementos foram importantes na construção estética e conceitual do corpo do bailarino/intérprete. Esta configuração de trabalho tem proximidade com a proposta trazida por Pina Bausch: A coreografia de Pina Bausch incorpora e altera balé em sua forma e conteúdo, usando movimentos técnicos e cotidianos. Seu trabalho [...] utiliza as experiências de vida dos bailarinos dançarinos, mas distingue-se por não recusar a técnica clássica, usando-a de forma crítica. Os dançarinos de Bausch [...] são todos bailarinos muito bem treinados. (FERNANDES, 2007, P. 26)

A estética da dança-teatro alemã, no espetáculo, foi abordada sob a perspectiva da emancipação das linhas narrativas, da utilização dos princípios cinemáticos e da consciência da realidade e do dia-a-dia nos experimentos dos bailarinos que se deram com a manipulação intercorpos com a técnica do contato- improvisação. (Figura 1).

Na dança-teatro o corpo

Figura  1.  Ensaio  de  Mulheres  de   Pequim  (1990),  bailarinas   Monique  Andrade  e  Andréa   Rossana.   deve ser compreendido pelos

bailarinos-intérpretes a partir de

uma experiência “não repressora,   uma linguagem não-hierárquica, permitindo uma maneira  

61  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   físico-emocional de (auto-) expressão e experiência em cena.”. (FERNANDES, 2007, p.17), e nos laboratórios realizados pelos bailarinos-intérpretes da companhia a célula coreográfica nascia sob a perspectiva das experimentações a partir de várias possibilidades corporais, espaço-temporais e da forma do movimento7. O estudo da gênese do espetáculo se deu a partir das categorias apresentadas, Corpo, Forma, Espaço e Expressividade, e foram relacionadas com os elementos formais requeridos no processo de análise das imagens do momento do nascimento do espetáculo Mulheres de Pequim. A preparação corporal e expressiva do bailarino para a cena pode ser inserida na categoria Corpo, que para Fernandes (2007) “refere-se aos princípios e práticas corporais desenvolvidos” (2007, p.51) para a composição de uma coreografia. A categoria Forma “(com quem nos movemos) refere-se às mudanças no volume do corpo em movimento, em relação a si mesmo ou a outros corpos”, (2007, p.159) tomou parte nos experimentos coreográficos dos bailarinos colaborando com a consciência das possibilidades relacionais do corpo na dança. A categoria Espaço “envolve uma ‘arquitetura do espaço’ criada por Laban a partir de seus estudos da ‘arquitetura do corpo’, numa relação harmônica”. (FERNANDES, 2007, p.177), esteve presente na construção do discurso coreográfico a partir dos experimentos fora do studio de criação, onde os bailarinos puderam experimentar a movimentação coreográfica num outro espaço, que não o ambiente formal de uma sala de dança ou o próprio palco. A categoria Expressividade, que segundo Fernandes “é o ‘como nos movemos’, refere-se às qualidades dinâmicas do movimento presentes tanto na dança quanto na música, pintura, escultura, objetos do cotidiano, etc”, foi abordada na criação do espetáculo a partir da repetição8, fator importante na formação cênica e coreográfica de Mulheres de Pequim por trabalhar com a possibilidade de o gesto funcional ser convertido em um gesto coreográfico9 expondo a experiência humana de forma expressiva, como pode ser observado no registro em vídeo. A experiência da repetição no processo de criação de Mulheres de Pequim atuou como fator de reorganização do movimento coreográfico, onde o bailarino pode transformar, reorganizar e desconstruir seu vocabulário gestual e até “sua própria história enquanto corpo estético e social.” (FERNANDES, 2007, p.46).                                                                                                                 7

Elementos formais oriundos do entendimento da teoria de Rudolph Laban, LMA, Laban Movement Analysis. Método ou tema crucial na dança-teatro alemã de Pina Bausch, onde assume a posição de parte integrante do treinamento e do processo criativo. 9 Conversão Semiótica, termo criado por Jesus Paes Loureiro (2007). 8

 

62  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Tais categorias, que foram eleitas e adaptadas para fazer parte deste estudo, não são modelos exclusivos de enquadramento de um tipo de obra, mas um suporte para se discutir a composição artística e refletir o fazer criativo. Os caminhos percorridos até a concretização do espetáculo são indícios da configuração estética dos processos de criação, o próprio espetáculo é a materialização deste processo, e como tal, apresenta vestígios que são reflexos deste. Neste sentido, o cenário, adereços, figurinos, gestos e os temas abordados, trazem intrínsecas significações que têm relação direta com as experiências pessoais e artísticas dos envolvidos nas etapas de elaboração do espetáculo. As análises foram feitas a partir das imagens fotográficas das três apresentações realizadas em Manaus (Amazonas) e Rio Branco (Acre), e videográficas, com o registro do espetáculo de 1990, apresentado no Teatro Américo Alvarez. Contextualizando este espetáculo com o panorama sócio-histórico da época, trouxe como tema os mitos femininos, que para o coreógrafo era um assunto instigante, mas tão inacessível quanto a cidade de Pequim, onde se localizava a Cidade Proibida, que em 1990 ainda era de difícil acesso. Assim, correlacionando a longínqua Pequim ao inacessível Feminino, o coreógrafo imaginou este universo da mulher como sendo um lugar distante e inacessível à compreensão do homem. Então, as mulheres do espetáculo eram seres que habitavam a Pequim simbólica, uma terra tão distante e inacessível quanto a Pequim sóciohistórica. Como processo metodológico elencou-se primeiramente os elementos cênicos observados de modo recorrente nas cenas, em seguida, foram selecionados os elementos subjetivos constantes na obra. Tais elementos apresentam-se da seguinte forma: (Quadro 1): ELEMENTOS CÊNICOS − − − − − − −

Cores branca e preta Vestido/ vestes/roupas Máscara Gravata Véu Cadeira Caixa

ELEMENTOS SUBJETIVOS/MÍTICOS − − − − − − −

Feminino/Masculino Homem/Mulher Sereias Canto Casamento Comemoração Caos

Quadro 1. Elementos cênicos selecionados para análise.

Com a temática voltada para as questões da Feminilidade, através de uma narrativa que envolveu os mitos femininos urbanos, o Feminino e o Masculino foram adotados no discurso coreográfico como fatores das relações de conflito e união entre o homem e a mulher.  

63  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A Cena 1: O Casamento, remete aos preparativos da boda, onde os elementos feminino e masculino tomam seus lugares nas convenções sociais. A mulher, representante do feminino, assume seu lugar na cena evidenciando algumas posturas que são apresentadas como sendo próprias do universo feminino, como a submissão, a vaidade e a curiosidade, e o homem, representante do masculino, assume seu papel de dominação e poder. É uma cena dramática que indica as núpcias, que: “é símbolo de união dos poderes divinos entre si, quase sempre personificados ‘especialmente é símbolo da união entre os opostos’ (LEXIKON, 1998, p.47)”.   Esta oposição é retratada no espetáculo na perspectiva do masculino e do feminino e no decorrer da narrativa cênica esta oposição permanecerá de forma latente, em razão dos conflitos referentes a estas duas porções humanas. Os elementos do figurino e de adereços usados na composição do discurso coreográfico desta cena sugerem indícios desta simbologia de masculino e feminino, como a máscara (Figura 02),

que é um elemento presente

constantemente na cena. São usadas tanto pelos bailarinos quanto pelas bailarinas, sugerindo que estes em algum momento têm a mesma face, sem distinção de gênero.

Figura  02  –  Cena  O  Casamento  (1993),  acervo:  Jorge  Kennedy,   fotografia  Jessé  de  Jesus  

O uso da máscara representa a ausência de divisão de gênero ressaltando uma possível singularidade entre feminino e masculino em cena, onde “a adaptação do ator ao papel é o próprio objetivo da representação” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 598), que sugere uma complementaridade do ser. Na Cena 2: A Apresentação do Homem, o figurino masculino seguia uma tendência cotidiana, com homens vestidos formalmente, com calça e blusa sociais e a gravata, elemento simbólico que representava a masculinidade, quando usada “em alguma cerimônia oficial significa conformidade aos costumes. Usada quando de um encontro com amigos com roupas  

64  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   mais descontraídas, podem significar distância ou disfarce.” (JOLY, 2010, p.34). Nesta cena foi dado um enfoque no universo masculino, suas peculiaridades biológicas, sociais e psíquicas. Os bailarinos envolvidos no dueto adotavam uma movimentação sincrônica onde as tensões, os anseios pareciam significar uma circulação que demonstrava a dualidade da força bruta em alguns momentos e a suavidade feminina em outros.

Figura 03. Esboço cênico de A Caixa  

A luz, apresentada na forma de um foco central, deixa o entorno do palco na penumbra, sugerindo que este é um momento íntimo das personagens masculinas, onde os aspectos sensíveis do homem, na figura do bailarino que é colocado dentro de uma caixa (Figura 03), afloram como num devaneio libertador. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2007), simbolicamente o elemento cênico caixa representa o inconsciente, pois a caixa é pressuposto de segredo, sugere também separar tudo o que é precioso e frágil ou terrível do mundo real. Na Cena 3: A Apresentação da Mulher o figurino das mulheres indica a função simbólica de manifestar a imagem dicotômica de submissão e independência da mulher, além de seu pertencimento a uma distinta sociedade. A este respeito Chevalier e Gheerbrant (2007, p.947) destacam que “a roupa é símbolo exterior da atividade espiritual, a forma sensível do homem interior (...), a roupa nos deu a individualidade, as distinções, os requintes sociais”. É uma das coreografias mais técnicas, e sugere que, assim como no espetáculo Kontakthof10 de Pina Baush, a técnica que torna os corpos disciplinados remete à posição da mulher na sociedade abordada pela obra Mulheres de Pequim. Na Cena 4: Ária. Este foi o momento idílico do espetáculo, o encontro do homem e da mulher, este pas-de-deux11 é o exato momento onde o que foi12, o que é13 e o devir14 se                                                                                                                 10

Pátio de Contatos, espetáculo de 1978. Passo de balé clássico onde dançam juntos o bailarino e a bailarina, geralmente coreografia de cunho romântico. 11

 

65  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   encontram, pois pode ser observado este mesmo padrão de movimento em dois espetáculos distintos. Pode sugerir também o momento íntimo do casal, quando homem e mulher se veem despidos das máscaras e dos pudores da sociedade e dão vazão aos instintos passionais e sexuais. (Figura 04).

Figura  04.  Cena:  Ária.(1990).  Fotografia:  Lyttaif  (1990).  Acervo:   Jorge  Kennedy.    

A ação do pas-de-deux se deu com a música Mild und Leise, presente no terceiro ato da ópera Tristão e Isolda, obra de Richard Wagner, música dramática que fala de um amor extremo entre Tristão e Isolda que culminou na morte destes. Nas décadas de 1980 e 1990 não era muito comum a utilização deste gênero musical em trilhas sonoras de espetáculos, muito menos ter a função transformada em estímulo rítmico para a coreografia, atuando como fundo musical que podia ou não ser seguido pela movimentação. Na Cena 5: O Baile, inicia-se com as mulheres cantando como sereias que encantam os homens para depois levá-los à morte. Simbolicamente as “sereias remetem à ideia da sedução destrutiva”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p.814). Estas mulheres, que representam sereias míticas e que atraem com seus cantos e seduzem com suas belezas e sexualidade, mostram a mulher do ponto de vista histórico-simbólico, pois mesmo perdendo o poder matriarcal, manipula o homem e as sociedades por possuir o poder da persuasão e da                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           12

O espetáculo Natureza Morta de 1989. O espetáculo Mulheres de Pequim de 1990, onde foi feita esta fotografia. 14 A remontagem do espetáculo Mulheres de Pequim de 1991 e 1993. 13

 

66  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   criação, que se manifesta corporalmente quando esta é geradora dos futuros homens que a governarão. Parte daí o conflito feminino de ser quem realmente é ou o que a sociedade quer que seja. O disfarce também está presente quando os casais dançam juntos. Nesta cena as mulheres encontram-se apenas de roupas íntimas e os homens continuam em trajes sociais completos: calça, camisa e gravata. A cena sugere que, mesmo em momento de inter-relação entre os casais, o disfarce está presente; por exemplo, quando as personagens femininas já retiraram todas as máscaras (disfarces usados sugerindo regras sociais) e vestem apenas roupas íntimas, há a insinuação de que elas estão também despidas das regras sociais, enquanto eles permanecem sobriamente vestidos. Interessante ressaltar a composição diagonal criada pelas figuras femininas e masculinas, assim como a luz incidente no mesmo formato. (Figura 05).                

Figura  05.  Cena:  O  Baile.(1990).   Fotografia:  Lyttaif  (1990).  Acervo:  Jorge   Kennedy.  

 

 

          Nas seis cenas do espetáculo esta configuração mostrou-se uma recorrência na organização espacial encontrada, a utilização da perspectiva em diagonal para sequências de movimentos mais subjetivos (mais teatrais), além também para o posicionamento do cenário (cadeiras). A iluminação direcionada na posição vertical marcava a cena, como recorrência atuou como contraponto à iluminação na diagonal e ao posicionamento das bailarinas no palco, essa diferença na perspectiva da iluminação direcionava o olhar da plateia para a cena  

67  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   de uma forma que ela pudesse captar o movimento expressivo de cada um dos bailarinos concomitantemente. Na Cena 6: A Comemoração, com a música Magnificat, de Claudio Monteverdi, todos os bailarinos entram em cena ao mesmo tempo e assumem a formação das danças circulares, que remetem às danças de salão, mas com uma configuração contemporânea de dança-teatro. A orientação do corpo no espaço cênico se dá a partir das relações estabelecidas entre os bailarinos e bailarinas, em certos momentos estando separados e em outros atuando juntos. O traçado espacial sugere uma configuração geométrica, onde linhas sinuosas se interligam às linhas retas, caracterizando-se como pontos que se ligam para a conexão dos argumentos coreográficos apresentados nos diferentes percursos cênicos dos bailarinos. Este ponto do espetáculo é catártico15. As tensões e conflitos ainda estão presentes nas relações entre as personagens, no entanto o distanciamento entre elas presentes nas cenas iniciais do espetáculo se dissipam; novamente a repetição no movimento da coreografia se torna recorrente, mas com a função de refirmar a relação de aproximação entre os pares. Como cena final, nela estão presentes todos os envolvidos na trama do espetáculo, bailarinos, personagens, alteregos, num turbilhão de sensações que permearam o espetáculo desde a primeira cena. E neste contexto a dança assume a função de agente catalisador entre a criação, o corpo, experiência estética e experiências pessoais. As vivências experimentadas no processo de composição da obra e na remontagem do espetáculo proporcionaram a reflexão sobre a dança e a possibilidade de maturação artística, pois a partir destas o corpo passou a ser percebido como ambiente externo e interno e passível de transformações cognitivas, físicas e sensoriais, tornando-se assim mais expressivo artisticamente.     CONSIDERAÇÕES FINAIS   O espetáculo Mulheres de Pequim, assim como o balé As Bodas16, composto por Igor Stravinsky e coreografado por Bronislava Nijinska, retrata o casamento como um ritual de celebração de uma sociedade arraigada em seus costumes e tradições. Com cenas dividas a partir das convenções sociais, a figura da mulher, do homem, as núpcias a festa ou                                                                                                                 15

Etmologia: gr. Catharsis. Eõs – purificação, purgação; menstruo; alívio da alma pela satisfação de uma necessidade moral; na acp. de Rel ‘id’; ver catar- antepositivo do v. Gr. Kathaírõ ’limpar, lavar, purificar, purgar. (Dicionário HOUAISS, 2011) 16 Obra criada por Igor Stravinsky em 1923, sobre a tradição dos casamentos camponeses russos. Coreografada por Bronislava Nijinska sobre o ritual da cerimônia de casamento (...) acaba por favorecer a violência, a beleza e, sobretudo, a originalidade da música de Stravinsky, a severidade, pouco usual à data, do cenário de Gontcharova e a geometria utilizada na coreografia por Nijinska.(GASTÃO e PRELJOCAJ, 1999, p.12)  

 

68  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   comemoração, demonstra a configuração ritualística e simbólica desta prática presente nas sociedades através da forma, conteúdo e matéria da dança-teatro.   Entende-se que no contexto das cenas as repetições, a abordagem sociopolítica, o minimalismo, o simbolismo e a presença das técnicas tradicionais e específicas criadas, são compreendidas como recorrências da estética seguida pelo coreógrafo, que no caso de Mulheres de Pequim pode ser entendida como dança num pensamento contemporâneo a partir da linguagem da dança-teatro.   As recorrências identificadas no contexto do trabalho: Estética da Dança-teatro – repetições, minimalismo; Abordagem temática com viés Cômico e Dramático; Personagens retirados do cotidiano; Utilização de posturas e comportamentos gestuais do homem comum nas coreografias; A presença do universo feminino; A configuração sígnica e simbólica dos adereços, figurinos e cenários; A qualidade técnica e expressiva dos bailarinos; Os mitos urbanos; Ambiguidade temática; Trilha sonora eclética; Inter, multi e transdisciplinaridade de linguagens artísticas. A investigação, à luz dos teóricos que fundamentaram este estudo, permitiu a tradução das expressões simbólicas e as interpretações dos mitos imersos na obra de Jorge Kennedy. Sob o olhar das análises e interpretações das imagens dispostas nos seus rascunhos e no seu trabalho estabelecido, se pode compreender os fenômenos expressivos como representação dos significados das formas simbólicas a partir das cenas figurativas e do tema tratado. A difícil tarefa de fazer a leitura da obra concentra-se na reconstituição da obra aliada ao entendimento da vida do artista, de modo que abra a possibilidade de ser revelada a realidade sensível e sua importância artística, contudo, é necessário que vá além do discurso explícito e visível, dispondo um olhar ao que está invisível a primeira impressão. REFERÊNCIAS CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução: Vera da Costa e Silva. 21ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. COELHO, Teixeira. Moderno Pós Moderno: modos & versões. São Paulo: Iluminuras, 2011. FERNANDES, Ciane. Pina Baush e o Wuppertal Dança-Teatro: repetição e transformação. 2º Ed. São Paulo: Annablume, 2007. GASTÃO, Ana Marques. PRELJOCAJ, Angelin. Que caracteriza Las Noces dançada pelo Ballet Gulbenkian. Entrevista. Jornal Diário de Notícias, 1999. Ana Marques Gastão.  

69  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Disponível em: www.musica.gulbenkian.pt/.../2000_2001_ballet. Acesso em 10 de dezembro de 2012.   HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. 14ª ed. Campinas: Editora Papirus, 2010. LEXIKON, Herder. Dicionário de Símbolos. Cultrix, 1998. LOUREIRO, João de Jesus Paes. A conversão Semiótica na Arte e na Cultura. Belém: Editora Universidade Federal do Pará-EDUFPA, 2007. MERLEAU-PONTY. Maurice. Fenomenologia da percepção. 3ª. ed. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 173. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991. PAREYSON, L. Estética: Teoria da Formatividade. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1993. ______________. Os problemas da estética. Tradução: Maria Helena Nery Garvez. São Paulo: Martins Fontes, 1984. SALLES, Cecília. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: FAPESP Annablume, 2004. _____________. Crítica Genética: Fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3ª ed. revista. EDUC. São Paulo: 2008. _____________. Crítica Genética: Uma introdução, fundamentos dos Estudos Genéticos sobre manuscritos Literários. EDUC. São Paulo: 1992. SANATELLA, Lúcia. WINFRIED, Nöth. Imagem: Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998. SILVA, Eliana Rodrigues. Dança e Pós-modernidade. Bahia: EDUFBA, 2005.

 

70  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ANIBAL BEÇA POR VAN PEREIRA Cleiciane Maia Ferreira17 Klebson Maia Ferreira18 RESUMO Tomando como objeto de estudo a ilustração que Van Pereira realizou do Poema Cíclico, de Aníbal Beça, para a 2ª edição de Filhos da Várzea, propõe-se uma abordagem das relações e dos distanciamentos entre a palavra poética e a imagem visual, no intuito de chegar à compreensão do sentido das obras literária e artística, bem como para o esclarecimento da conformidade que se estabelece entre poesia e artes visuais no processo de tradução intersemiótica. Partindo do pressuposto clássico ut pictura poesis chegamos até o seu viés crítico contemporâneo, para em seguida passar a uma abordagem iconológica, a fim de estabelecer indícios de uma possível opção estética do ilustrador em sua abordagem do poema, levando em conta o repertório estético disponível. O entendimento que se propõe, com esta investigação das relações entre a palavra escrita e a imagem plástica, pressupõe o conceito da ilustração como autêntica obra de arte. Palavras-chave: Ilustração, poesia, iconologia, tradução intersemiótica.     ABSTRACT   Taking as its object of study the illustration Van Pereira made the poem Cyclical, Hannibal Beça for the 2nd edition of Children of the Meadow, we propose an approach to relations and distances between the poetic word and the visual image in order to get the understanding of the meaning of literary and artistic works, as well as the clarification of compliance established between poetry and visual arts in the process of inter-semiotic translation. Assuming classic ut pictura poesis we got your bias contemporary critic to then pass to a Iconological approach in order to establish evidence of a possible aesthetic option illustrator in his approach to the poem, taking into account the aesthetic repertoire available. Understanding which aims, with this investigation of the relationship between the written word and the visual image, presupposes the concept of illustration as an authentic work of art. Keywords: illustration, poetry, iconology, inter-semiotic translation. INTRODUÇÃO As relações entre as expressões artísticas têm se constituído como um interessante ponto de partida para o desenvolvimento de inúmeras reflexões e registros escritos ao longo da história, ajudando a compor no ocidente um patrimônio iconográfico e estético. A reflexão deve levar não somente ao esclarecimento e à desmistificação dessas relações, bem como ao entendimento das abordagens possíveis no seio de uma cultura contemporânea e regional. Sob esse último aspecto, é de bom alvitre salientar que nossa                                                                                                                 17

Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas UEA 18

Mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas UEA

 

71  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   abordagem pretende deixar de lado o viés de um modelo romântico de historia artística e literária voltados para o desvelamento da chamada individualidade regional, entendendo-a como mais o elemento constitutivo do contorno semântico da obra. Nosso objetivo primordial é investigar em que sentido podemos conectar a obra com preocupações contemporâneas como, por exemplo, se os aspectos estéticos do poema confluem para a interpretação visual. Far-se-á uma abordagem teórica comparativa que decorre da interação entre essas duas expressões artísticas, tendo como objeto de estudo a ilustração que Van Pereira leva a cabo do Poema Cíclico, de Aníbal Beça, publicado na segunda edição de Filhos da Várzea. ANÍBAL BEÇA POR VAN PEREIRA O estudo comparativo das artes nos remota a antiguidade clássica dando conta ao princípio ut pictura poesis, estabelecido por Horácio, em sua Arte Poética, e reafirmado por Plutarco. Segundo este, remetendo a Simónedes de Céos, a pintura é poesia muda e a poesia pintura que fala (PEREIRA, 2005, p.79). Esse princípio enfatiza a estreita relação entre poesia e pintura e nos remete ao paradigma estético mimético e seu ideal clássico do belo artístico. Trata-se de uma herança do ideal grego da kalokagathia, ou seja, a identificação entre o belo e o bem, entre um ideal ético aristocrático de beleza. Desde a Antiguidade, a tese ut pictura poesis, tem sofrido várias significações, ou tem sido aplicada de distintas formas. Essa questão se tornará quase intemporal, acentuando-se, sobretudo, na Renascença, outro período de classicismo, momento em que as artes plásticas, sobretudo a pintura, perdem seu caráter de visualidade e se subordinam às abstrações teóricas da literatura e da convenção iconográfica. Segundo PEREIRA (2005, p.18) esta atitude prevaleceu até o século XVII. Os críticos acreditavam assim que a semelhança do poeta com o pintor estava na verossimilhança das suas representações, e mais precisamente, na descrição, ou seja, na imitação da natureza, como provam as teorias humanistas do contexto renascentista, desenvolvendo paralelismos artificiosos, muitas vezes de um dramatismo aristotélico, que resultaria numa grande confusão entre as artes. Até o XVIII, as discussões em torno da ut pictura poesis centravam-se na problemática de como a pintura e a poesia se comunicam entre si, e quais os limites de cada uma das artes, no tempo e no espaço, sempre, com algumas exceções, de acordo como o princípio do belo, subordinando a pintura e as artes plásticas em geral, ao texto escrito, sendo  

72  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   aquelas o apêndice deste, uma forma de explicação do texto escrito. Salienta PEREIRA (2005, p.21), que somente Lessing, em meados do século XVIII, elaborarará toda uma nova teoria sobre as correspondências inter-artísticas, delineando as fronteiras próprias de cada uma, salientando o aspecto empirista próprio das artes plásticas. Por outro, o posicionamento de Lesssing, ainda que inovador ainda se prende ao ideal classicista: (...) a crítica de Lessing, que visava directamente a descrição e a alegoria neoclássica, era absolutamente inovadora, ao insistir no facto de que os terrenos da pintura e da poesia são distintos, principalmente por recorrerem a meios de expressão diferentes, dando a conhecer que cada obra se constrói segundo regras próprias que pertencem exclusivamente ao seu campo estético. Inspirado em Winckelmann, Lessing entusiasmara-se com os valores formais da escultura do período neoclássico, confundindo o fim da pintura com o da escultura: representar corpos belos. Esta concepção física da beleza, cujo influxo havia sido a escultura clássica, afastava os artistas da representação de conteúdos espirituais e emocionais. (LESSING apud PEREIRA, 2005, p.31).

Desse modo, permanecerá a ideia de que a pintura e a poesia deveriam imitar a natureza e recuperar temas clássicos, criando um imaginário visual iconográfico, que constituíram as premissas da comparação entre as duas artes, no período compreendido entre a segunda metade do século XVII e o século XVIII. De acordo com essas premissas, os cânones do século XVII e o neoclassicismo do barroco submeteram o imaginário dos pintores ao sistema narrativo das palavras, tendo a Poética de Aristóteles ocupado um lugar central no período Neoclássico, uma vez que era através dela que melhor se expressava, tardiamente e deslocadamente, o ideal classicista da kaloskagathia, o qual, conforme Hauser (1998, p.84), expressa um mundo do melhor, normativo, de seres eticamente superiores como a aristocracia. Numa postura classicista, os artistas deveriam inspirar-se nas narrativas históricas, nos relatos épicos e bíblicos e nas fábulas. Eram estas as fontes de onde a pintura deveria extrair temas e processos. A pintura deveria inspirar-se na literatura. A Academia francesa, fundada em Paris assegurou a continuidade de um academismo marcado pela tradição humanista, que privilegiava a pintura de história. As artes plásticas, sobretudo a pintura, somente emergiriam da sombra da literatura em meados do século XIX, quando o romantismo, em reação ao racionalismo em voga na Europa, colocava novamente o papel da imaginação, proporcionando condições para uma mudança O romantismo seria o berço de inspiração para os estetas e críticos da modernidade. Quer do ponto de vista estético da tradição ut pictura poesis, quer do ponto de vista da cultura ocidental em geral, o romantismo iria ser a ponte exegética para os poetas e críticos de arte. Estes desenvolveriam mais tarde o gênero de poemas em prosa baseados em imagens, mas já  

73  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   no sentido duma transposição das artes, ou seja, de recriação e transformação do sentido da obra original. Assim, o significado da distinção entre pintura e poesia, enaltecido com o Laocoonte, que atribuía à primeira uma dimensão espacial e à segunda, uma dimensão temporal, foi-se diluindo a medida que o advento da modernidade sedimentava novos significados para as categorias de espaço e tempo, diferentes do caráter imutável e absoluto que no Renascimento e na época da Luzes lhe eram conferidos. Segundo Pereira: Os avanços científicos e técnicos que culminariam numa mudança relativamente à compreensão da percepção visual, a confirmação de um mercado literário e artístico de bens simbólicos; o declinar dos paradigmas impostos pelos salões oficiais, cujo mercado era a burguesia e a corte, paralelamente à emergência dos Salons e de um circuito de galerias privadas e à transformação do poeta em crítico de arte, contribuiriam para a transmutação das categorias de espaço e tempo propostas por Lessing. (PEREIRA, 2005, p.35)

Paralelamente ao crescente interesse em torno das questões relativas à percepção visual e ao órgão de visão, assistiu-se a uma independência do campo artístico em relação à hegemonia oficial, mas, para além desta, houve também uma crescente oposição em relação a esse mundo burguês que iria culminar no aparecimento das vanguardas artísticas na alvorada do século XX. Elas revelam aquilo que a literatura percebe através de Baudelaire: entre a nostalgia do passado e o ritmo frenético do capitalismo não é possível mais nenhuma transcendência e lirismo para a poesia. A partir de então, na relação entre as artes ocorre uma inversão de papéis, num processo que consubstancia, uma espécie de substituição da referência literária e humanística, que guarda uma relação essencial com uma tradição e como um ideal de beleza contido na própria imagem, no registro da atualidade e de sua constante atualização - tendência iniciada com a disposição mais fenomênica do barroco e que se liga com a modernidade, apesar da tentativa de um revival do ideal classicista por parte da nascente burguesia: No período seguinte ao barroco, o neoclassicismo, haverá a tentativa de conferir às imagens uma ordem racional, mas a imagem nunca mais reencontrará a estrutura lógica, o conteúdo intelectivo da forma como representação de uma concepção positiva do mundo. O barroco nasce como reação à crise maneirista da forma, porém não como restauração do valor absoluto e universal da forma, mas sim como grandiosa afirmação do valor autônomo e intrínseco da imagem (...) ( ARGAN, 2004, p. 51)

Para Argan (2004, p. 51), o Barroco é o primeiro avatar da civilização moderna, em contraposição às antigas civilizações da forma, entendido a forma como a essência necessária do mundo fenomênico. No sentido clássico, derivado das estéticas platônica e aristotélica, as  

74  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   formas artísticas seriam como que cópias, irradiações de modelo que se encontram num plano transcendente. A cultura antiga, medieval e humanística estabelecem relações hierárquicas entre as artes, estando a poesia e os textos clássicos mais próximo das formas essências que as artes plásticas. Revelam a transcendência da história de que as artes plásticas também devem ser espelhos, consagrando signos e percepções acerca da arte; revelando sentidos da preponderância das palavras escritas e das próprias artes plásticas o seu caráter eminentemente figurativo. Conforme ensina Argan (2004, p.51), somente com a modernidade se estabelece a independëncia e o valor intrínseco da imagem. Jakobson em Linguística e Comunicação, evidencia que a tradução intersemiótica, definida como a tradução de um determinado sistema de signos para outro, modifica o original deixando possibilidades para o que a escrita fique à disposição da imaginação de quem lê. Para o autor a poesia é por definição intraduzível, permitindo tão somente processo de “transposição criativa” (Jakobson, 2010, p.91). A poesia moderna é, portanto, centrada na construção da mensagem situada na imaginação do poeta, em sua disposição anímica, mas que depende em grande parte da apreensão do leitor que, neste caso, é aquele que traduz a palavra escrita para uma linguagem ilustrativa, como acontece na ilustração de Van Pereira19 em Poema Cíclico20 de Aníbal Beça. Van Pereira é ilustrador, desenhista, pintor e escultor. Foi membro do Clube da Madrugada e ilustrou muitas obras dos companheiros do “clube”. As lembranças da infância no município de Nhamundá, no Amazonas, são marcas da poética do artista. Conforme cita Páscoa: Suas lembranças de convívio com antepassados místicos da região do baixo Amazonas tornaram essas experiências vividas, que logo se refletiram em sua poética. Uma das marcas é o sol geometrizado que possui um significado espiritual. Segundo o artista, essa forma circular pode representar o sol ou a lua, dependendo do contexto. Sol e lua são repartidos ao meio e remetem as frestas de palha e às janelas de palafitas. (PÁSCOA, 2011, p. 271)

Dessa forma, o universo simbólico do artista envolvem todas as temáticas da infância envolvendo suas experiências pessoais e as questões que povoam as vidas das comunidades amazônicas como, por exemplo, as questões ambientais. Na segunda edição de Filhos da Várzea e outros poemas, Van Pereira ilustra quase todos os poemas de Aníbal Beça. Nesse sentido, podemos fazer uma interpretação da obra de                                                                                                                 19 20

 

Anexo n ͦ 01 Anexo n ͦ 02, n ͦ 03 e n ͦ 04

75  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Van Pereira independente do texto norteador. Porém, a intenção é fazer estabelecer uma cadeia de relações entre as duas obras. Para esta interpretação da ilustração utilizamos o método iconológico de Panofsky em Significado das artes visuais, cotejando com a interpretação literária do poema de Beça. Para Panofsky o método iconológico se dá em três momentos: o primeiro é a descrição pré iconográfica; o segundo, trata o tema secundário ao convencional; e o terceiro momento, o significado intrínseco ou o conteúdo da obra de arte. Quando observamos a obra de Van Pereira, num primeiro momento observamos as linhas que compõem um perfil do rosto que faz limite com a imagem de uma coruja preenchida com linhas horizontais; uma esfera não regular cortada por uma linha horizontal dividindo-a em duas partes desiguais; uma parte maior não preenchida e outra menor com linhas transversais. O fundo é preenchido parcialmente. A ilustração é em preto e branco. Segundo Panofsky (2009, p.50) “os motivos podem ser portadores de um significado secundário ou convencional, o que chamamos imagens”; quando submetemos as imagens a determinados conceitos formamos alegorias. É o que podemos observar num segundo momento do método. A coruja, que é convencionada como símbolo da sabedoria, quando se integra à figura do rosto e substitui os olhos representaria, nesse aspecto iconográfico, a reflexão, o pensamento humano. Na ilustração de Van Pereira, a coruja está em primeiro plano, sendo além dos olhos, o cérebro do homem. Seu olhar é o do “ser” perante o tempo. A coruja é a tradução de Van Pereira para “pássaros ariscos” de Aníbal Beça. O tempo é representando por Van Pereira pela circunferência, o que nos permite deduzir que se trate da lua devido à presença da coruja, animal de hábitos noturnos, além do fundo negro que compõe a ilustração. Para Aníbal Beça, o tempo é representado pela imagem poética da “mandala vertical” e aponta para o passar do tempo: dos meus olhos saltam / pássaros ariscos / prontos a deflorar begônias / em setembro / e 38 ponteiros. O terceiro momento é a busca ao significado intrínseco ao conteúdo. Conforme Panofsky esclarece: (..) é apreendido pela determinação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, de um período, classe social, crença religiosa ou filosófica - qualificados por uma personalidade e condensado numa obra. (PANOFSKY, 2009, p. 52)

Podemos dizer que a ilustração realiza com desenvoltura o princípio ut pictura poesis na interpretação do poema, pois ambos, poema e ilustração, completam-se a ponto poderem  

76  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   guardar conteúdos intrínsecos e serem contempladas separadamente. Assim, a ilustração faz o seu papel basilar de complementar o conteúdo do texto. Porém, por se tratar de uma obra contemporânea, podemos dizer que o ilustrador não deixa esquecer sua poética, inserindo aspectos que são peculiares ao seu trabalho como, por exemplo, a referência ao misticismo de cunho amazônico: seres míticos, coruja e lua geometrizada com frestas de palha. Considerando a temática do “ser e tempo”, podemos observar a tentativa de Aníbal Beça de constituir alegoricamente o tempo cíclico, em diálogo com as referências clássicas. Segundo Bosi (1993, p.116-117), o verdadeiro poema é sempre cíclico, pois é constituído sempre de retornos, alternâncias, idas e vindas que compõem a própria estrutura da linguagem poética.

Desse modo “a estrutura visual e semântica do poema pode caracterizar este

movimento de alternância e a relação entre analogia e oposição”, (GRAÇA, 2002, p.147) e no poema “Aníbal Beça interroga-se, revelando-se, sobre o ser do sujeito poético, sobre a sua luta com o tempo, sobre a sua identidade”. (GRAÇA, 2002, p.147) O tema clássico virgiliano do Fugite irreparabile tempus, é trabalhado no poema aproveitando o caráter cíclico da estrutura poemática. Por outro lado, Beça volta à temática clássica para lhe dar um caráter moderno, colocando questionamentos milenares na atualidade. Da mesma forma, a figura de Sísifo instaura o tempo mítico, mas por outro lado é mitigada e contemporaneizada na imagem do estivador: sei-me estivador / desse cais agônico / atarefado Sísifo. Beça personifica o mito em si mesmo, instaurando um passado/presente. Na tradução de Van Pereira o tempo mítico é instaurando pela presença do objeto esférico lua( “mandala vertical”) e de Sísifo. Esta presença, porém, dá-se de modo sutil: a personagem mítica não é citada, mas a dupla alegoria homem/coruja, em confronto com o fundo, pode ser visualizada como alguém que também carrega uma rocha no ombro. Van Pereira aglutina a sua poética às imagens e temáticas de Beça. As alegorias são contemporaneizadas e mescladas, revelando aspectos da cultura mística amazônica, em que seres de diferentes naturezas se misturam formando um novo ser. A construção imagética do homem com olhar de coruja reflete uma espécie de flâneur amazônico, um observador reflexivo sobre mundo e a cidade. Se no contexto mítico clássico, Sísifo tem a missão de carregar perpetuamente a rocha, para Van Pereira o homem amazônico é, sobretudo, “atarefado Sísifo”, à medida que também carrega o “peso” do trabalho árduo da subsistência. Completa-se o seu ut pictura poesis “moderno”.  

77  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

CONCLUSÃO Anibal Beça trabalha com o fundamental, com a questão clássica e intemporal da angustia do ser ante o tempo que escorre. O tempo que foge irreparavelmente é condensado na forma cíclica do poema e na síntese das imagens alegóricas de Van Pereira. Significa fundamentalmente que se trata do mesmo tema, caracterizando a desenvoltura do ilustrador perante a obra, extraindo um sentido muito aproximado do tecido do poema: imagens que falam, poema imagético. Por outro lado a poética de Van Pereira não é a de Beça. A tradução guarda os seu conteúdo analógico com o texto, mas é sintetizado por uma poética marcada por uma vivência cultural marcadamente amazônica. A partir do método iconológico de Panofsky, pudemos observar que a tentativa desesperada de deter o tempo, que foge irreparavelmente, as obras instauram um tempo mítico. Trabalho vão, cuja própria metáfora de Sísifo bem o traduz. O mito se alegoriza no atarefado Sísifo e nas imagens de Van Pereira. E nesse caminho, cada autor desenvolve sua estratégia: Beça com imagens mais clássicas e concreta; Van Pereira dá um tom mais telúrico ao tema do autor de Poema Cíclico.

REFERÊNCIAS ARGAN, G.C. Imagem e Persuasão: ensaios sobre o barroco. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BEÇA, Aníbal. Filhos da Várzea e outros poemas. 2 Ed. Manaus: Editora Valer, 2002. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1993. JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2010.   PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Tradução de Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009. PÁSCOA, Luciane Viana Barros. As artes plásticas no Amazonas: O clube da Madrugada. Manaus: Editora Valer, 2011.

 

78  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   PEREIRA, Maria Dilar da C. Ilustração da Guerra e Paz – Júlio Pomar: Pensamento estético, crítica e imagem plástica. Biblioteca Nacional de Portugal. Lisboa: [s.n], 2005. Disponível em: http://porbase.bnportugal.pt. Acesso em: 20 de junho de 2013. ANEXOS ANEXO N ͦ 01

 

79  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ANEXO N ͦ 02

 

80  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

ANEXO N ͦ 03

 

81  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ANEXO N ͦ 04

       

 

82  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEITURA TEATRAL Daniely Peinado dos Santos – UEA – PPGLA Juciane dos Santos Cavalheiro – UEA – PPGLA Resumo: Embora a escrita e a leitura tenham sido por muito tempo inacessíveis a toda a sociedade, com o surgimento do livro, e mais tarde, sua distribuição a partir da imprensa, a leitura se potencializou através do domínio da linguagem e do acesso à cultura livresca. Contudo, é relevante considerar que as revoluções que aconteceram na história da leitura não foram tão supremas quanto se pensa, como é o caso, por exemplo, do texto copiado à mão que perdurou muito tempo, mesmo depois da imprensa de Gutemberg. Outro exemplo de expressão que resistiu à escrita e à imprensa é a performance oral da linguagem, que se mostra presente em discursos, ainda que lidos, e também em apresentações de obras literárias e/ou dramatúrgicas. O presente artigo tenciona apresentar uma discussão acerca desta última, partindo da história da leitura e de como a prática de leitura teatral de textos, entendendo o termo como sinônimo de leitura dramática e, em alguns casos, de leitura pública, vem sendo realizada no teatro e em outros espaços para divulgar obras, até culminar na proposta de leitura cênica, uma prática presente na atualidade e que se constitui como uma tendência criativa contemporânea no teatro. Desta forma, além de reafirmar a ideia de que as maneiras de ler dependem do suporte, e neste caso, principalmente do leitor e da concepção atribuída a esta leitura, pretende-se ainda considerar não o que diferencia uma prática realizada por atores da prática realizada por outros leitores, mas o que as aproxima. PALAVRAS-CHAVE: História da leitura, prática de leitura, performance oral, leitura cênica. Abstract: Although reading and writing have long been inaccessible to the whole society, with the emergence of the book, and later, their distribution from the press, the reading is potentiated through mastery of language and access to book culture. However, it is important to consider that the revolutions that happened in the history of reading were not as paramount as we think, as the case of, for example, the text copied by hand, which lasted a long time, even after the Gutenberg press. Another example of speech that resisted the press is writing and oral language performance, which shows this in speeches, even read, and also presentations of literary and/or dramaturgical. This article intends to present a discussion about the latter, based on the history of reading and how reading practice theatrical texts, understanding this term as a synonym for dramatic reading, and in some cases, reading public, is being held in the theater and other spaces to disseminate works, culminating in the proposal reading scenic, current practice and which is a creative tendency in contemporary theater. Thus, besides reaffirming the idea that the ways of reading depend on the support, and in this case, especially the reader and the idea attributed to this reading, we intend to also consider not what differentiates a practice performed by actors practice held by other readers, but what brings them together. KEY WORDS: History of reading, practice reading, oral performance, dramatic reading.

 

83  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Prólogo sobre a escrita, oralidade e leitura De modo geral, a história da leitura está diretamente relacionada à história da escrita e à história do livro por razões óbvias: a) a convenção estabelecida pela escrita possibilitou o registro e a comunicação para além da oralidade (manuscritos em diferentes suportes); e b) embora a escrita e a leitura tenham sido por muito tempo inacessíveis a toda a sociedade, com o surgimento do livro, e mais tarde, sua distribuição a partir da imprensa, a leitura se potencializou através do domínio da linguagem e do acesso à cultura livresca. No entanto, o sentido da leitura varia de acordo com a concepção atribuída a esta prática. Neste sentido, instâncias como o conteúdo do livro, o autor, o leitor e também os suportes, estabelecem as diferentes maneiras de ler. Contudo, é relevante esclarecer que as revoluções que aconteceram na história da leitura não foram tão supremas quanto se pensa, na realidade, o escrito copiado à mão sobreviveu por muito tempo à invenção de Gutenberg, até o século XVIII, e mesmo o XIX. Para os textos proibidos, cuja existência devia permanecer secreta, a cópia manuscrita continuava sendo a regra (CHARTIER, 2009, p. 9).

De um modo semelhante, o texto escrito e impresso não eliminou a performance oral do discurso, mesmo na leitura. Nos últimos séculos da Idade Média, quando se esboça a personalidade do autor moderno, cujo texto é, sob sua autoridade, fixado pela cópia manuscrita e depois pela edição impressa, o “autor oral” está sempre ali. É o caso do pregador. Tomemos o exemplo de Calvino. Para ele, há um conjunto de textos que, imediatamente, supõe como destinatário um leitor: as traduções dos textos sagrados, os textos de polêmica, os tratados teológicos. Em oposição, há as lições ou sermões que são pensados como performances orais. Calvino sempre manifestou uma extrema reticência diante da transcrição escrita e depois publicação impressa de seus sermões, como se houvesse aí um gênero que só resistisse na e pela oralidade (IBID., 2009, p. 26).

Uma prática que parte da oralidade, passa pelo texto escrito, para por fim retornar à primeira é o teatro, contexto no qual o texto escrito não extingue a vitalidade das palavras, ao contrário, funciona como um guia sobre as intenções do autor, que serão revisitadas pelas do diretor e do ator, para então, serem levadas aos espectadores de forma orgânica, viva. Segundo Chartier (2009) nos séculos XVI e XVII as edições impressas de peças de teatro se davam por conta de publicações não autorizadas, ou ainda porque a encenação não

 

84  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   tinha sido a contento da crítica e, portanto, deveria ser entendida por completo através da leitura da obra. Na atualidade, as edições impressas de peças tem o sentido de divulgação da obra, de difundi-las. No entanto, os direitos autorais asseguram tanto a impressão e distribuição da obra, como sua encenação. Assim, adaptações ou montagens na íntegra ficam restritas às autorizações. Independente de um caso ou outro, uma situação que não encontra muitos problemas relacionados às restrições mencionadas, é a leitura dramática da peça. Diferente de uma produção oficial que prevê para ganhos para aqueles que a produzem como espetáculo, e na qual o direito do autor está assegurado, esta prática não é tida como algo negativo à obra e nem ao autor, pois os promove e tem um caráter pedagógico, portanto é permitida na maioria dos casos. Esta prática, diferente da leitura comum em voz alta, considera inflexões, expressões, gestos e movimentos, para dar vida aos personagens e apresentar aos espectadores uma leitura em versão espetacular. Neste sentido, será apresentada a seguir uma discussão acerca da história da leitura e de como a leitura dramática vem sendo realizada no teatro e em outros espaços para divulgar obras, até culminar na proposta de leitura cênica, uma prática que se perpetua na atualidade e que se constitui como uma tendência criativa contemporânea no teatro, tendo como objetivo corroborar com a ideia de que as maneiras de ler dependem do suporte, do leitor e da concepção atribuída a esta leitura, pretendendo-se ainda, apontar reflexões sobre a semelhança entre a prática realizada por atores e por outros leitores. Em cena: Relações da história da leitura e a prática de ler em público! Considerando várias histórias acerca das práticas de leitura, e distante de privilegiar acontecimentos no ocidente ou oriente, esta análise pretende apontar algumas situações que colaboraram para este processo plural da história da leitura. Assim, comecemos a listar alguns suportes utilizados para a escrita, pois, a respeito da prática de leitura, deve-se compreender que a mudança no suporte [...] implica mudança na maneira como o leitor se relaciona fisicamente com os objetos, de modo que mudanças nos procedimentos materiais de escrita podem fornecer indícios preciosos aos historiadores sobre as representações do leitor de outros períodos históricos (FERREIRA, 2013, s.n.).

 

85  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Deste modo, paredes de cavernas, rochas, carapaças de tartarugas, escápulas de boi, rolos de tiras finas de bambu ou madeira, seda, papiro, pergaminho, papel, tela do computador, fazem parte do material incluso no estudo sobre a história da leitura. Outro fator determinante neste tipo de estudo, são as línguas inscritas nestes suportes, que exigem um aprofundamento na pesquisa pelas especificidades de composição linguística. Sobre isto, percebemos que a convenção da escrita, hoje instituída pela maioria das línguas, é vista como um facilitador ao acesso de informações diversas sobre as culturas. Porém é preciso lembrar que, ao tomarmos a introdução do alfabeto grego, por exemplo, como referência, deixamos para trás muitas outras formas de escritas21, sem falar das línguas que permanecem apenas na tradição oral. Diante de dificuldades como estas e de outras mais, entendemos porque a leitura por muito tempo ficou restrita a pequenos grupos da sociedade, em alguns casos, determinando certo status e poder, e em outros a instituindo como uma experiência coletiva. Com algumas exceções, a leitura medieval ainda era sobretudo uma experiência coletiva. Em jardins ensolarados e saguões repletos de gente, romances e épicos – não mais lidos em voz alta por serviçais e escravos, mas pelos próprios membros da família – entretinham nobres e damas. Passagens da Bíblia eram lidas em voz alta nas cerimônias religiosas e às freiras e aos monges durante as refeições. Preleções em universidades eram apenas uma lectio, uma leitura pública. E como na Roma antiga, um livro “publicado” era aquele que havia sido lido em voz alta em público. Quase todos os públicos leitores da Idade Média eram os que escutavam a leitura (FISCHER, 2006, p. 131).

Nesta acepção, podemos perceber como a capacidade de ler e escrever demorou a ser incorporada por todos os indivíduos, tornando a leitura pública um hábito comum. Do momento que a leitura é difundida pela educação, a prática de ler passa de coletiva à individual, de projetada para silenciosa, e a partir de Gutenberg da leitura restrita ao acesso de conteúdos diversos, incitando assim novos leitores. Este processo, embora moroso, causou grandes mudanças no cenário social. A cultura da leitura de livros solidificou a divisão entre as classes sociais, destacando e apoiando os poucos que ainda controlavam os muitos. A leitura de livros ainda estava longe de se tornar uma prerrogativa pública. Mas, sobretudo em virtude da leitura, mudanças profundas estavam acontecendo (IBID., 2006, p. 206).

Ainda assim, é relevante salientar que:

                                                                                                                21

Das escritas: logográficas (escrita da palavra), fonográficas (escrita dos sons) e pictográficas (escrita por desenhos).

 

86  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O alfabetismo tinha muitas faces na Europa dos séculos XVIII e XIX. Algumas pessoas conseguiam ler letras impressas, mas não a escrita cursiva, outros sabiam ler os caracteres góticos de sua Bíblia e pouco mais que isso (LYONS, 2011, p. 96).

Avançando um pouco mais na história, e de acordo com o levantamento feito por Fischer (2006), no século XX alguns hábitos de leitura, como a leitura pública, foram mantidos. Num primeiro momento esta prática caracterizava-se por ser uma experiência coletiva, mas muito provavelmente, após algumas experiências de leitura, o leitor ao perceber que as modulações em sua voz podiam produzir efeitos na recepção do ouvinte tratou de engrandecer sua prática experimentando seus recursos vocais. Nesta passagem, saímos da proposta de uma simples leitura pública para uma leitura dramática, um tipo de leitura que tem intenções sobre o outro, na qual os atores/leitores, no momento em que leem, realizam-na inferindo sentido para o público que o assiste.

Entreato sobre a leitura teatral Uma categoria conhecida no teatro como leitura dramática, determina que o leitor enfatize as ações do texto através da palavra enunciada, de forma a projetá-la “espacialmente, [criando] em si mesmo e na cabeça do espectador um universo ficcional que parece brotar diretamente das palavras e misturar-se àquilo que é mostrado no palco (PAVIS, 2010, p. 27)”. Independente se feita nos palcos do teatro ou em outro espaço, geralmente tem como objetivo divulgar a obra ou experimentá-la sem intenções de apresentar um produto artístico acabado. Como exemplo de divulgação, encontramos na história da leitura Charles Dickens (1812-1870), um autor que testava suas obras com um pequeno grupo de pessoas e às vezes, com um grande público e era ovacionado em turnês que realizava em mais de 40 cidades inglesas. Dickens incluía, às vezes, anotações nas beiradas das páginas desses textos sinalizando qual emoção demonstrar ou com qual gesto intervir. Seu principal objetivo era o de se tornar instrumento visível de seus romances, permitindo que estes ganhassem vida por meio dele – por causa dele, como faria um ator (FISCHER, 2006, p. 252).

Assim, percebemos que embora com o objetivo de divulgação, a leitura não se limitava a decodificação dos caracteres, mas tinha como primícias a escolha do modo de ler e

 

87  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   provavelmente, ensaios. Neste caso, temos uma leitura pública, e com referência no teatro, podemos dizer, dramática, embora o texto lido não fosse desta natureza. Conforme Pavis, a ideia de leitura dramática, ou no termo usado por ele, leitura cênica, menciona um tipo de leitura feita para o público, independente se o texto é dramático ou não. Uma vez a leitura realizada com a intenção de haver um público, o leitor transformase muito rapidamente em ator assim que lhe for possível discernir, ou simplesmente imaginar, suas reações à palavra e ao seu papel na ficção em vias de ganhar corpo. [De modo que] O limite entre a leitura e a atuação, entre o intérprete e o personagem, é impossível de ser traçado, o que faz de qualquer leitura cênica uma visualização de interlocutores e, desse modo, já uma encenação (PAVIS, 2010, p. 26).

O termo leitura cênica vem de um processo o qual, a leitura no teatro, antes feita apenas para a aproximação dos atores com o texto dramatúrgico, leituras de mesa ou leituras brancas, e após o estudo apresentada ao público, ainda sem os recursos visuais e sonoros do espetáculo, era tida como leitura dramática. Hoje é chamada de cênica e pode ser apresentada, com ou sem os elementos cênicos, como obra-processo à plateia, sendo a leitura cênica uma versão aproximada de um espetáculo, com uma ressalva: o texto (impresso) na mão. Assim sendo, a leitura cênica, na atualidade, pode tanto apresentar-se mais intimista ou mais representada, pondo em cena um produto final que estará entre a leitura e a atuação. Especificamente sobre leituras com texto dramático, comenta Pavis (2011) que este, no estado literário está incompleto aguardando representação no palco. No entanto, a representação [...] não é [tida como] um suplemento ou complemento do qual, a rigor, poderíamos prescindir; é um fim nos dois sentidos da palavra: a obra é feita para ser representada, eis sua finalidade; ao mesmo tempo, a representação denota uma realização, o momento em que enfim a obra se vê nas condições requeridas para existir dramaticamente. É de fato a existência mesma da obra teatral que exige que sua criação seja duplicada por uma recriação (GOUHIER apud SARRAZAC, p. 67).

Vemos neste exemplo, a questão da performance oral intrínseca ao teatro. Nesta acepção, temos a leitura cênica se constituindo em uma recriação, portanto obra, pois “a situação de representação, obriga o ator a escolher determinada maneira de falar, a tomar partido por um sentido possível” (PAVIS, p. 28, 2010). No que diz respeito à relação texto-representação, Ubersfeld (2005, p. 1) coloca que “o teatro é uma arte paradoxal, a um só tempo produção literária e representação concreta [...]”.

 

88  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Portanto, percebemos uma abertura, tanto para os elementos linguísticos, quanto para os elementos cênicos. Especificamente sobre o conjunto de signos visuais e sonoros da leitura cênica, registra-se que ele, constitui um sentido (ou uma pluralidade de sentidos) que vai além do conjunto textual. Reciprocamente, na infinidade de estruturas virtuais e reais da mensagem (poética) do texto literário, muitas desaparecem ou não podem ser captadas, apagadas que estão pelo sistema próprio da representação. Muito mais: mesmo se, numa hipótese impossível, a representação “dissesse” todo o texto, o espectador não ouviria o texto na íntegra, pois uma parte das informações é apagada. A arte do encenador e do ator consiste, em grande parte, na escolha daquilo que não é preciso fazer ouvir (UBERSFELD, 2005, p. 3).

Assim, a leitura compreende tanto a dimensão textual quanto à cênica. Deste modo, o texto, quando na leitura/encenação, não é mais exclusivamente do autor ou dramaturgo, mas também do encenador, do ator, e de tantos quantos colaborarem com o processo. Neste contexto, trazemos à cena os ouvintes22, ou os espectadores, uma vez que produtos espetaculares dependem da relação com o fruidor, pois sem ele o fenômeno teatral criado para ser visto, descaracteriza-se. Neste sentido, há que se comentar que ele constitui outro elemento importante para a completude e existência da obra teatral. Assim, temos na leitura cênica um conjunto de discursos (texto, gestos, luz, e eventualmente, som) dispostos ao diálogo com o espectador, nos termos de Cauquelin (2005, p. 101), através do, entendimento com a obra23 [...] esse diálogo a faz surgir como obra, mas ao mesmo tempo, o que é desvelado nesse processo é a verdade do mundo: que ele é linguagem. É, pois, finalmente, a língua que se manifesta em sua verdade, sua verdade-mundo no contato com a arte.

Esta perspectiva faz referência a analise do discurso, a qual considera não apenas o que se fala, mas também como se fala e por consequência, o sentido produzido. Deste modo, a prática teatral (nesta discussão, leitura cênica) atrelada ao texto, requer uma análise a partir da comunicação verbal e não-verbal, prevendo não apenas a questão da performance oral, mas

                                                                                                                22

Embora não esteja no escopo desta discussão a questão da teoria da recepção, faz-se necessário mencionar que mesmo com todo o caráter criativo do leitor na leitura dramática, esta completa o ciclo na figura do ouvinte/espectador que fará relações com sua experiência pessoal e atribuirá sentidos particulares a obra recebida, ou seja, a obra terá desdobramento de forma diferente para cada ouvinte . 23 Considerando o texto em sua literalidade e performance oral.

 

89  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   também a interlocução. O sujeito/ator/leitor fala para um sujeito/espectador/ouvinte que recebe e interpreta os signos. No sentido de estabelecer polarizações do conjunto de discursos pertinentes à leitura cênica, podemos dizer que ela, se constitui numa relação coletiva, em diversos diálogos travados em diferentes dimensões. Seja no interior do próprio texto entre autor e personagens, seja entre o texto e o ator/leitor intérprete, entre ator/diretor e ator/espectador, diretor/espectador, diretor/autor, além dos diálogos entre os vários elementos como a luz, a música, a gestualidade, e os diálogos que a própria peça mantém com outras produções (LOBBO, 2011, p. 9).

Último ato Ao reafirmar que as maneiras de ler dependem do suporte, e neste caso específico, principalmente do leitor e da concepção atribuída à leitura, aceitamos a leitura cênica como uma prática que ultrapassa os limites literários e se estabelece como criação artística, constituindo outra forma de abordagem da capacidade de linguagem humana. Independente se executada por atores profissionais ou atores no momento em que leem, pensando na argumentação de Pavis (2010) sobre a transformação do leitor em ator no ato da leitura cênica, encontramos o ponto em comum nestas práticas: o modo deliberado de falar e agir para o outro. Após breve análise das revoluções ocorridas na história da leitura e permanência de certas práticas, não fica difícil entender como a literatura e o teatro ainda existem na contemporaneidade, mesmo em concorrência com a dinâmica advinda das novas tecnologias de comunicação. A justificativa para esta resistência, talvez esteja justamente nos diálogos que se fazem necessários para a relação com a obra, tanto literária quanto artística, que potencializam a figura do receptor, sua subjetividade e referências, pois este interfere significativamente no processo de criação artística e fruição da obra.

REFERÊNCIAS CAUQUELIN, A. Teorias da arte. São Paulo: Martins, 2005. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: Do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 2009.

 

90  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   FERREIRA, Luzmara Curcino. História(s) da(s) leitura(s) [?] e a análise do suporte de textos. Linguagem: Estudos e pesquisas, Catalão, v.4-5, 2004. ____. Mutações dos suportes e dos gêneros discursivos: Mudanças da leitura ou dos leitores? Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/IICILLIJ/1e2/LuzmaraCurcino.pdf. Acesso em: 28 jun. 2013. FISCHER, Steven Roger. História da leitura. São Paulo: UNESP, 2006. LOBO, Andréa Maria Favilla. A leitura dramática na formação do artista docente. Moringa, João Pessoa, v.2, n.2, 41-52, jul/dez, 2011. LYONS, Martyn. Livro: Uma história viva. São Paulo: SENAC, 2011. PAVIS, P. A análise de espetáculos: Teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. São Paulo: Perspectiva, 2011. _____. A encenação contemporânea: Origens, tendências, perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010. SARRAZAC, J. Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. UBERSFELD, A. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.

 

91  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Duração e Memória: Bergsonismo e o Piano no Concerto em Lá Maior Para Piano com Acompanhamento de Orquestra de Octávio Meneleu de Campos.

Dayse Dias Silva e Costa24 Universidade Federal da Paraíba Este artigo enfoca o Concerto em Lá Maior para Piano com Acompanhamento de Orquestra, do compositor e maestro paraense Octávio Meneleu de Campos (1872-1927). Meneleu Campos, como ele mesmo assinava suas obras e a partir de agora será designado, foi uma figura relevante no meio musical das cidades de Belém e Manaus no fausto do Ciclo da Borracha, também denominado de Belle Époque Amazônica. Suas obras foram executadas em salas de concerto por instrumentistas renomados da época e, após isso, caíram no esquecimento. Este trabalho nasceu do desejo de prosseguir na linha de pesquisa acadêmica iniciada pelo Prof. Dr. Márcio Leonel Farias Reis Páscoa, em seu livro A Vida Musical em Manaus na Época da Borracha (1997). A continuação desta investigação sobre a vida musical de Manaus foi concretizada com o envolvimento desta pesquisadora no Programa de Iniciação Científica, com a realização da pesquisa intitulada “Patrimônio Musical do Norte do Brasil / Mulheres Musicistas na Época da Borracha” (1850-1910) (COSTA, 2006). Na pesquisa da crítica musical da época sobre a performance destas mulheres, verificou-se que as peças para piano de Meneleu Campos constavam nos programas dos concertos realizados por estas musicistas. Diante desta constatação, a escolha do Concerto em Lá Maior para Piano com Acompanhamento de Orquestra, de Meneleu Campos, foi motivada por ser esta uma peça "que marca o apogeu de sua criação", segundo Vicente Salles25 (SALLES, 1972, p. 164). O interesse pelo compositor Meneleu Campos e por suas variadas criações musicais tem crescido no meio acadêmico brasileiro. Vários pesquisadores têm se dedicado a estudar sua obra nos últimos anos, dentre os quais destacam-se: Mário Dantas26 (2006 e 2008), Gina Reinert27 (2007), Eliana Câmara Cutrim28 (2009), Márcio Páscoa29 (2009) e João Augusto Ó de Almeida30 (2010).                                                                                                                 24

Mestre em Práticas Interpretativas – Piano e Análise pela Universidade Federal da Paraíba. Vicente Salles é pesquisador, historiador, folclorista e musicólogo paraense. 26 Mestrando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e participante do grupo de pesquisa sob orientação da Profª Drª Maria Alice Volpe. 27 Mestre em Música (Violino) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 25

 

92  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O referencial teórico para este trabalho baseou-se principalmente na filosofia de Henri Bergson, particularmente em sua teoria da duração (durée), destacando-se as seguintes obras: O Pensamento e o Movente (BERGSON. [1934] 2006) e Matéria e Memória (BERGSON. [1896] 2010). O embasamento teórico trouxe subsídios para o estudo do tempo musical como proposta de análise da obra. Bergson mesmo ilustrou por diversas vezes seus pensamentos com imagens musicais e com isso estabeleceu uma espécie de interdisciplinaridade entre a filosofia e a música. Os conceitos bergsonianos mostraram-se úteis para a abordagem do Concerto, possibilitando uma reflexão sobre a relação ouvinte-obra, passado-presente, exterior-interior, identidade-semelhança e fragmento-continuidade. Os elementos aqui listados foram alguns dos pressupostos que se apresentaram pertinentes à linha analítica desejada. Sendo assim, o enfoque da análise concentrou-se mais na escuta musical, pela própria curiosidade de ouvir a obra e também pelo lapso temporal entre composição e receptividade do público no atual século. As atividades concernentes ao âmbito da pesquisa documental foram iniciadas no momento da solicitação da cópia do manuscrito à Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O Concerto encontra-se catalogado nesta instituição sob o sistema alfa-numérico: MS C-XXVI-199 e MS C-XXVI-202 e foi disponibilizado para a pesquisadora no formato de microfilme pelo Atendimento à Distância e pela Divisão de Música do Acervo da Biblioteca Nacional em 13 de maio de 2010. As imagens foram visualizadas e fotografadas na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife (PE). Em seguida, iniciou-se a transcrição dos manuscritos. A decodificação das imagens e as implicações da transcrição dos manuscritos foi um dos primeiros desafios para este trabalho, pois, verificou-se a dificuldade com a nitidez das imagens. A dificuldade não foi por causa do estado de conservação do material. Pode-se afirmar que os livros que abrigam os manuscritos autógrafos estão em bom estado. Mas, para a execução deste trabalho, os negativos dos microfilmes fotografados foram transformados em positivos, e isto comprometeu a clareza das imagens. A transcrição permitiu o estudo da partitura, o arrolamento das tendências estilísticas e estéticas do Concerto em relação aos movimentos musicais da época, tais como o                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           28

Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Pará e Pós-Graduada pelo Conservatório Sergei Rachmaninov (Paris). Professora da Universidade do Estado do Pará, do Núcleo de Arte e Cultura. 29 Doutor em Ciências Musicais e Históricas pela Universidade de Coimbra- Portugal. Musicólogo. Professor do Curso de Música da Universidade do Estado do Amazonas. 30 Mestre em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

93  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   romantismo, influências operísticas, temas nacionalistas com roupagem europeia, valorização da música instrumental (sobretudo peças para piano), e, posteriormente, a interpretação. O Concerto em Lá Maior para Piano com Acompanhamento de Orquestra de Meneleu Campos Meneleu Campos iniciou esta composição em Milão, no final do ano de 1903 e a concluiu em março de 1904, segundo as datas registradas no segundo e no terceiro movimentos do manuscrito. Foi dedicado à sua irmã Izabel de Campos Lobato, uma das principais divulgadoras da sua obra pianística e a primeira intérprete do Concerto. As partituras manuscritas têm 193 (cento e noventa e três) páginas, das quais constam 34 (trinta e quatro) partes dos instrumentos de orquestra. As dimensões destas páginas são de 35,5 cm por 27 cm, indicando, pelo seu tamanho, que esta versão foi concebida com a visão integral da obra. Influências de Chopin, Liszt, Schumann, Tchaikovsky, Debussy e Grieg são bem evidentes. O tom de Lá Maior era um dos prediletos do compositor. Encontramo-lo, por exemplo, num dos seus Quartetos e na Sinfonia. É possível que a preferência por este tom fosse pelo fato de ele ser idiomático para os instrumentos de cordas da orquestra. O Concerto foi uma das obras de maior sucesso no meio em que o compositor vivia e houve boa receptividade do público daquela época, principalmente em sua terra natal. Outros pianistas que também tocaram este Concerto foram Paulino Chaves, Manuel Luiz de Paiva e Maria de Nazareth Vasconcellos Silva. Esta última pianista realizou a última apresentação do Concerto, com Meneleu Campos ainda em vida, no ano de 1925 (SALLES, 1972. p. 173176). Análise do Concerto sob a Perspectiva de Bergson Neste trabalho, dois dos quatro pontos basilares em Bergson são enfocados: a duração e a memória. A duração compreende a continuidade da escuta musical e não justaposições de seções. A relação entre visualização da partitura e audição do Concerto reflete esta realidade conflituosa entre estes elementos. Deste modo, não há a coincidência da duração imaginada visualmente, esboçada pela quantidade de páginas da obra e a duração real proporcionada no ato de ouvir31. Bergson fala que a duração real é o tempo indivisível, como numa melodia que não se decompõe, ela simplesmente prossegue. (BERGSON, [1934] 2006, p. 170).                                                                                                                 31

Seincman colocou esta “questão da duração do tempo como um paradoxo de reconstituir a realidade temporal a partir de conceitos imóveis e estáticos” (SEINCMAN, 2001, p. 26).

 

94  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A memória entra como integradora dos vários momentos da criação, ela unifica sua trajetória. No caso da música pode-se mencionar a memória visual e, sobretudo, a memória auditiva. O corpo recebe e dá movimento, sendo o cérebro responsável por realizar a comunicação entre o corpo e a imagem. A percepção do mundo exterior determinará como o corpo vai agir (BERGSON, [1896] 2010, p. 69). A música exerce estímulos sobre o corpo, que reage de acordo com as escolhas do intérprete e do ouvinte. A memória servirá como um elemento perpetuador da obra musical na consciência de ambos. A partir daí, a relação, que dependia do exterior, passa a ocorrer também no interior, no decorrer da execução da peça musical e até mesmo após o seu término. O Concerto é composto de três movimentos. Dentro dos movimentos, percebe-se o estilo concertante. Apesar da época da composição do Concerto ser um período de profusão de tendências no campo da música, sua linguagem musical permanece no âmbito do sistema tonal romântico. Os referenciais europeus são perceptíveis nos desenhos melódicos. Apenas no final do primeiro movimento, o compositor parece apresentar um elemento musical brasileiro. No aspecto formal, Meneleu Campos deu nesta obra a impressão de flexibilizar os padrões estabelecidos, alargando-a através de variações ou acrescentando elementos episódicos no decorrer da música. Estas variações refletem o caráter movente e dinâmico do qual a música é formada. Por este motivo, as normas e métodos pré-fabricados que tentam imobilizar a visão musical, nem sempre são adequados para a investigação de uma criação artística. Mas, apenas para efeito de ilustração da estrutura da peça, tabelas de organização formal foram colocadas no início dos tópicos analíticos de cada movimento. Na versão MS C-XXVI-202, utilizada em nosso trabalho, os instrumentos de orquestra estão assim distribuídos: a) aerofones: 1 flautim, 2 flautas transversas, 2 clarinetes em Lá, 2 fagotes, 4 trompas em Mi bemol, 2 trompetes em Lá, 3 trombones, 1 oficleide; b) cordofones: primeiro e segundo violinos, viola, violoncelo e contrabaixo; c) membranofones: 2 tímpanos.

Organização formal do 1º movimento Seção A – A1: Lá M - compassos 1 a 63 Seção Ponte: Dó # M 7 e Fá # m – compassos 64 e 65 Seção B – B1: Dó # M 7 – compassos 66 a 133 Seção C – episódios: Tons vizinhos e afastados – compassos 133 a 170 Seção  A+B  –  Codeta:  Lá  M  /  Dó  #  M7  /  Sol  #  dim,  Mi  M  /  Lá  M  –  comp.  170  ao  286.    

95  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O  primeiro  motivo  básico  (A)  é  o  principal  material  rítmico-­‐melódico   apresentado  de  imediato  pela  orquestra,  com  a  extensão  de  quatro  compassos.    

Figura 1: Primeiro Motivo (A). Compassos 1-4.32 O motivo (A) é recorrente durante todo o Concerto, pois em cada movimento ele surge com algum tipo de variação, seja melódica ou rítmica. Apesar de estas aparições nos demais movimentos serem curtas, pode-se pensar que o compositor tenha adotado a forma cíclica para seu Concerto. Do compasso 66 até o 68, como se vê na pauta superior do exemplo abaixo, mostra-se o segundo motivo (B), cujo material melódico é imitado e compartilhado pelo naipe das cordas e pelo piano, até que se unam e dobrem suas partes.

Figura 2: Segundo motivo (B) do 1º movimento. Compassos 66-68. Nos compassos 78 a 85, acontece um novo diálogo das cordas com o piano, também com imitação. Neste momento do Concerto, Meneleu Campos insere alguns elementos novos. Destes elementos novos, vê-se na figura a seguir o uso recorrente da mediante maior, no acorde formado pelas notas (dó #, mi #, sol #, si), um Dó # Maior 7. Este tom, afastado da tônica, é um elemento romântico, destinado a contrastar repentinamente, sendo repetido por dez vezes a partir do compasso 86. Este trecho também utiliza movimentos alternados das mãos no momento da execução, recurso também encontrado, em Debussy e, anos mais tarde, em Villa Lobos, no seu Polichinelo, de 1918. Esta técnica de composição sugere uma polarização harmônica, que é resolvida no final do trecho Bergson esclarecia que as repetições dão ritmo à vida, regulando a sua duração, e que “é só por obra e graça da repetição que tivermos encontrado nas coisas que haverá novidade                                                                                                                 32

Todos os excertos do Concerto em Lá Maior para Piano com Acompanhamento de Orquestra de Meneleu Campos foram transcritos por Samuel Cavalcanti Correia.

 

96  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   em nossos atos” (BERGSON, [1934] 2006, p. 105-108). No Concerto, a continuidade temporal melódica está fundamentada na repetição dos dois motivos principais (A e B) durante os três movimentos, como renovação do passado no presente. Neste primeiro movimento, ao mesmo tempo em que a música transparece continuidade, também mostra suspensões temporais que, algumas vezes, assinalam o início e o término das seções com fermatas. Em geral, elas sugerem uma flexibilização do fluxo musical, a ser retomado nas indicações a tempo, que são constantes nestes momentos. A ideia de recapitulação é provocada pelo retorno ao tom de Lá Maior, contendo, no entanto, mais uma novidade. Após uma pausa geral, o piano começa uma seção com uma melodia lírica, com as notas iniciais do primeiro motivo sugerindo influência chopiniana. Imagina-se que o movimento atingirá seu clímax, porém, subitamente surge uma seção com solo de clarinete, que executa a melodia outrora apresentada pelo piano. É um episódio inusitado, pelo fato de a obra ser um concerto para piano e neste momento, o instrumento solista assumir o papel de acompanhador. Nota-se, também, a manutenção da tensão e do caráter lírico do trecho. O compositor, ao prolongar o discurso musical, dá nova impressão de deslocamento no tempo e na duração. Para o ouvinte, o interesse é renovado pela reiteração, feita pelo clarinete, da melodia antes apresentada pelo piano, o que confere dinamismo pelo aspecto contraditório dos eventos musicais. Aproximando-se o fim deste movimento, começa uma espécie de Coda, na qual a orquestra reutiliza todo material melódico que foi exposto durante o primeiro movimento. Para finalizar, o piano se despede com o segundo tema em Fá # Menor e depois em Lá Maior, com o tutti nas notas dos compassos finais. No final deste movimento, a impressão auditiva é de uma melodia que continuamente se fez presente, revestindo-se de um caráter indivisível. No dizer de Bergson: “trata-se de um presente que dura” (BERGSON, [1934] 2006, p. 176). Organização formal do 2º movimento Seção A: Ré M / Ré com 5ª aum / Ré M - compassos 1 a 45 Seção B: Fá # M / Mi M / Lá M – compassos 46 e 62 Seção A1: Ré M / Mi M / Si M / Lá M – compassos 63 a 81 Seção B1: Ré M / Ré com 5ª aum / Ré M – compassos 82 a 104 O segundo movimento é o mais curto do Concerto e, por sua pequena extensão, assemelha-se a um intermezzo, uma peça avulsa ou movimento lírico para piano. Meneleu

 

97  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Campos teria desejado utilizar uma forma aberta em sua música, manifestando os recortes feitos na forma clássica, ao reparti-la numa composição fragmentária. O segundo movimento está em Ré Maior, tom da subdominante, em relação ao tom principal da obra, e a indicação de andamento é Adágio. O compositor teve a intenção de mensurar a batida da colcheia, pois, no manuscrito, há uma evidência de que o faria. Possivelmente, deixou-a para o final da cópia ou para o momento dos ensaios com a orquestra, oportunidade na qual teria melhor compreensão da dinâmica do movimento. O fato é que há uma lacuna no espaço da indicação metronômica. É a orquestra que inicia o segundo movimento, expondo o tema “A”, dos compassos 1 ao 8.

Figura 3: Tema A do 2º movimento (compassos 1 a 8). Em sua aparição (compasso 36), o solista desenvolve o material sonoro em sextinas, que será padrão recorrente para o piano em quase todo o movimento. O solo do piano toma novo fôlego com um tema “B” (compasso 46), no qual a mão direita caminha por graus conjuntos e a esquerda em sextinas com melodia independente.

Figura 4: Tema B do 2º movimento (compassos 46 e 47). Ao final desta seção, a orquestra recorda as notas iniciais do tema “B” (lá#-si–dó#). Apesar da primeira nota deste grupo ser alterada, ele se refere ao motivo A do primeiro  

98  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   movimento. É interessante observar que Meneleu Campos, neste breve movimento, parece provocar o seu ouvinte, ao utilizar a mesma nota base para seus acordes com relações harmônicas bem afastadas (Ré Maior / Ré com 5ª aumentada; Lá # Menor/ Lá Maior). Uma nova referência ao motivo A, do primeiro movimento, é observada nos compassos 96 e 97. Este motivo é o traço de união do Concerto: corresponde ao que Bergson chama de extensão e de revivificação de nossa faculdade de perceber (BERGSON, [1934] 2006, p. 163). Organização Formal do 3º Movimento Seção A: 1º tema - Fá # m / Dó # dim/ Sol # dim / Ré # dim7 / Lá M 2º tema: Lá # dim / Si m / Sol # dim / Mi M / Lá M - compassos 1 a 64 Seção B: Lá M / Mi M / Fá # m / Mi M / Si m / Mi M – compassos 65 a 93. Seção C: Cadência em Mi M / Lá M / Lá com 5ª aum – compassos 94 a 127 Seção D: Fá M / Sol M / Dó M / Fá M – compassos 128 a 189 Seção A1 (abrev): 1º tema - Fá # m / Dó # dim / Sol # dim / Ré # dim7 / Lá M 2º  tema:  Lá  #  dim  /  Si  m  /  Sol  #  dim  /  Mi  M  /  Lá  M  –  compassos  190  a  229   Seção  B1  (abrev):  Lá  M  /  Mi  M  /  Fá  #  m  /  Mi  M  /  Si  m  /  Mi  M  -­‐  compassos  230  a  257   Coda:  Lá  com  5ª  aum  /  Si  m  /  Mi  M  /    Lá  M  -­‐  compassos  258  a  275.     O terceiro movimento apresenta algumas mudanças de andamento, passando do Allegro ma non troppo, para o Adágio, depois para o Largo, Andante e retornando ao Tempo Primo. Isto dá um panorama da movimentação que acontece dentro deste movimento. O pulso do movimento é indicado no compasso 191 adicionado ao termo a tempo. Deduz-se que o compositor fixou o andamento da semínima pontuada em 100 (cem). a) Exposição dos temas Este é o único movimento em que o piano tem a incumbência de iniciar a exposição do tema “A”, conforme prática recorrente no período romântico. Ao visualizar o começo deste movimento, Meneleu Campos deixa transparecer a influência da tarantela italiana, tanto pela fórmula de compasso, pelo caráter dançante da música e o tom inicial de Fá # menor.

 

99  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Figura 5: Primeiro tema do 3º movimento (compassos 1 a 5). O tutti orquestral se apresenta, a partir do compasso 39, com uma passagem que pode ser considerada uma ponte entre o primeiro e o segundo tema, a julgar pela sua curta duração de apenas nove compassos. O piano apresenta o tema “B” (c. 49-52), que utiliza grandes saltos e graus conjuntos, alternadamente. Suas frases são regulares com padrão de oito compassos.

Figura 6: Segundo tema do 3º movimento (compassos 48 a 52).

b) Seção de “Desenvolvimento” Segue-se um terceiro período (compasso 65), com o tema “C”, que insiste por duas vezes em se fazer ouvir. Mas o compositor pareceu aproveitar esta parte para explorar alguns recursos da técnica pianística e assinala que o caráter deve ser gracioso, seguindo a indicação scherzando, que em italiano significa brincadeira. O cíclico motivo B, do primeiro movimento, ressurge com suas três primeiras notas (dó#-sol#-fá#), agora modificado ritmicamente.

 

100  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   c) Cadência do Piano Meneleu Campos aproveita este momento para manipular mais livremente o material sonoro. Ele começa remetendo o ouvinte ao início da obra, ao utilizar o cíclico tema (A), do primeiro movimento, e deixando o tempo relaxado pelas fermatas e pelo andamento Adágio.

Figura 7: Cadência com motivo A do 1º movimento (compassos 103 a 105). A cadência já está escrita com várias indicações do compositor de como ele imaginou que deveria soar. E em termos de demonstração de habilidade técnica, o trecho que antecedeu a cadência é bem mais exigente. d) Melodias líricas A partir do compasso 128, Meneleu Campos deu oportunidade para a trompa atuar como solista durante dezoito compassos, sendo seguida, de perto, pelo clarinete em Si bemol , pelos cordofones e eventualmente pelos aerofones. A melodia, em Fá Maior, é ainda mais lírica. No compasso 148, toda a orquestra aparece para acompanhar os aerofones, que seguem com o tema melodioso. Em 156 o piano reassume seu posto de solista e repete a melodia já ouvida, com a indicação sentito il canto (sentido o canto). e) Reexposição temática Somente neste ponto do manuscrito é que o compositor escreve o pulso desejado. Meneleu Campos parece rever os conceitos de tristeza e alegria. Até poucos compassos atrás o ouvinte estava envolto numa esfera melódica dramática, no tom de Fá Maior. Quando o piano solista e a orquestra retomam o tema “A”, em Fá # menor, de forma idêntica ao início do movimento, restaura-se a energia e o caráter dançante de outrora. O terceiro movimento é o que mais apresenta a questão da flexibilização do fluxo temporal bergsoniano em Meneleu Campos, que recorre a alterações de andamento e

 

101  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   variações métricas. Auditivamente, a sensação de múltiplas temporalidades redunda na continuidade musical, que é o próprio domínio da duração. (DELEUZE, 2008, p. 28). Conclusão Meneleu Campos buscou liberdade formal na música através da fragmentação conciliada na estrutura cíclico-motívica. A unidade do Concerto não depende das relações temáticas e sim dos motivos que surpreendem o ouvinte cada vez que eles se apresentam à sua consciência. É a consciência que tem o papel de ligar os motivos melódicos por meio da linha contínua da memória. A memória coopera no duplo sentido de reter e prolongar as imagens musicais que são revisitadas em múltiplos momentos. Muito além de chamar a atenção para mais uma biografia de um compositor brasileiro ou fazer uma proposta de análise para esta obra, o que se deseja aqui é motivar outros a pesquisar sobre a música de Meneleu Campos, a fim de que suas produções musicais sejam suficientemente divulgadas, preservando mais uma parte da memória musical brasileira mediante a recuperação do seu variado repertório musical. Referências Bibliográficas BERGSON, H. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ____________. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CAMPOS, O. M. Concerto in La Maggiore per piano-forte con accompagnamento d'orchestra. 1 partitura (193 p. + 34 partes). Orquestra. 1 bobina de microficha (Manuscrito do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro) COSTA, D. D. S. Mulheres musicistas na época da borracha (1850-1910). Manaus: UEA, 2006. (Monografia de conclusão do curso de bacharelado em música. Universidade do Estado do Amazonas). DELEUZE, G. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 2008. PÁSCOA, M. L. F. R. A vida musical em Manaus na época da borracha. Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1997. 364 p. ________________. Ópera em Belém. (Ópera na Amazônia, 1850-1910). Manaus: Valer. 2009. SALLES, V. Centenário de Meneleu Campos. In: Revista de Cultura do Pará, Belém, Conselho Estadual de Cultura, v. 2., n. 8, 9, 1972. SEINCMAN, E. Do Tempo Musical. São Paulo: Via Lettera, 2001.  

102  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

A VIDA E O ARQUIVO DE UMA OBRA: CRÍTICAS DE JORNAL SOBRE A SELVA Débora Renata de Freitas Braga (UEA-PPGLA/FAPEAM)33 RESUMO: Em Portugal, nas décadas de 1930 e 1940, a crítica literária era especialmente veiculada nos jornais. Em relação à obra A Selva, de Ferreira de Castro, a maior parte dos textos publicados sobre ela entre os anos 1930 a 1974 provém de intelectuais vinculados ao jornalismo, atuantes em jornais como o Diário de Lisboa, A República, O Primeiro de Janeiro e o Diário Popular: fortes opositores ao governo de Salazar. Ferreira de Castro fez parte de uma intelectualidade em que as amizades muitas vezes acabavam sendo uma via de divulgação de livros. Não é à toa que os críticos d’A Selva são quase todos amigos ou conhecidos do escritor, mesmo por causa da atividade em comum exercida por eles: o jornalismo. Por isso, os textos críticos publicados neste veículo costumam ser laudatórios e, às vezes, com considerações superficiais. Neste artigo, selecionamos alguns textos críticos sobre A Selva publicados em jornal, separados por décadas: 30 50, 60 e os anos de 1970 a 1974, publicados em Lisboa e no Porto. A intenção é analisá-los a partir das considerações de Flora Süssekind, Antonio Candido, Fábio Lucas, dentre outros teóricos que pensam a importância da crítica literária na construção dos significados da obra e na formação do sujeito autoral. A recepção d’A Selva pode ser analisada a partir da crítica de jornal porque foi este o veículo com o maior número de publicações e melhor circulação. Se cada obra tem a sua própria biografia, a crítica de jornal é um dos arquivos onde se encontram os percursos que ela tomou. PALAVRAS-CHAVE: Ferreira de Castro; A Selva; Arquivo; Críticas de jornal. Certamente, não é apenas um fator que influencia na atribuição de valor a um texto, nem mesmo o próprio texto, mas, sobretudo, fatores externos a ele. A obra, como o próprio nome anuncia, não é um produto acabado, mas uma experiência criadora que não se esgota com a publicação do livro. A roda de escritores, a biblioteca pessoal, as cartas trocadas, os paratextos, a fortuna crítica, as traduções, são todos processos que intervêm antes, durante e depois na glorificação (ou demonização) da obra. O que parece condensar os fatores é, justamente, a crítica literária, determinando a sua sobrevivência, porém, que critérios tornamna digna de ser eternizada? De uma forma ou de outra, são sempre critérios de valor que definem o pollice verso da obra literária: o polegar para cima garante a vida, o polegar para baixo assinala a sentença de morte. E nesse jogo, o crítico faz o papel de imperador. Se o escritor pode se tornar personagem, o crítico também pode ser uma espécie de autor. Ao produzir o seu discurso sobre a obra, ele tem como função primordial “prolongar duradouramente na inteligência e na afeição dos que leem o choque da obra literária”                                                                                                                 33

Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), sob orientação do Professor Doutor Allison Leão. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazonas (FAPEAM).

 

103  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   (LUCAS, 1984, p. 164). É nesse aspecto que o seu papel deve ser pensado. Uma obra é constituída tanto por aquele que a produz, quanto por aquele que a lê (o crítico também é um leitor), e “a obra não pode mais ser vista como algo acabado a deslocar-se intocável no tempo e no espaço, mas como um objeto mutável por efeito das leituras que a transformam” (CARVALHAL, 2006, p. 70). Logo, não há como desvincular literatura e crítica literária, pois “esta [...] fixa padrões de gosto, tem o talento de orientar preferências. O êxito comercial das obras se deve, em grande parte, à publicidade, aos mecanismos do mercado” (LUCAS, 1984, p. 168). Antonio Candido (2006) defende que a literatura é um sistema conjugado a partir de três instâncias: autor, obra e público. Na análise das relações entre o escritor e o público, o teórico afirma que “escrever é propiciar a manifestação alheia, em que a nossa imagem se revela a nós mesmos” (2006, p. 86). A obra reflete a imagem que o escritor deseja criar para o público, mas também pode suceder o contrário: o público também forma o autor, que elabora a obra conforme o capital cultural da época: “a posição do escritor depende do conceito social que os grupos elaboram em relação a ele, e não corresponde necessariamente ao seu próprio. Este fator exprime o reconhecimento coletivo da sua atividade, que deste modo se justifica socialmente” (CANDIDO, 2006, p. 85). Antoine Compagnon (2010) alega que explicar o texto é simplesmente recorrer ao autor para instituir o sentido. Interpretar, por outro lado, é articular a obra ao seu contexto de produção, à sua linguagem, ao seu estilo, e à sua própria história, que inclui as leituras que são feitas sobre ela. Leituras datadas, por sinal. “Explicar” a obra não cabe sequer ao autor, logo, a finalidade da crítica literária é a interpretação, pois “não há leitura literária que não atualize também as significações de uma obra, que não se aproprie da obra, que até mesmo a traia de maneira fecunda (COMPAGNON, 2010, p. 91). Deste modo, o sentido que é atribuído a uma obra deve “incluir a história de sua crítica presente e futura” (2010, p. 64). São os comentários no jornal com a assinatura de uma personalidade ilustre, as listas de mais vendidos nas revistas e uma propaganda de peso por trás de um livro que influenciam a sua maior circulação. Como os valores são atribuídos “de acordo com as expectativas da época, as conexões intrincadas em que os valores se enovelam” (LUCAS, 1984, p. 166), o público pode estabelecer as diretrizes para a consagração do autor ou de determinado livro, de acordo mesmo com as necessidades, aspirações e preconceitos vigentes, tornando possível ao escritor criar (ou definir) para si um estilo, uma identidade autoral: “o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer

 

104  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   que o público é condição para o autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua revelação” (CANDIDO, 2006, p. 85). O crítico procura alcançar o máximo de potencialidade da obra, o sentido mais profundo, de uma forma mais ou menos autônoma em relação ao autor. Ele pode até partir do discurso do autor sobre a obra, mas pode também enveredar por outros caminhos, outras interpretações. Mesmo a crítica pautada numa perspectiva biográfica gera outro discurso sobre o texto literário. A crítica, de maneira geral, “controla a liberdade de interpretação, ao mesmo tempo que se insatisfaz com a perda de qualquer liberdade” (LUCAS, 1984, p. 167). Por mais científica que deseje ser, o caráter polissêmico da literatura não permite que a crítica satisfaça todas as demandas, que esclareça todos os sentidos. O que ela proporciona é uma leitura, das muitas que subjazem o texto, e uma leitura é sempre uma criação. Isto porque a crítica, “como expressão de um juízo ou formulação de um pronunciamento ideológico, serve para tornar histórica, isto é, datada, a obra a que se refere. A crítica como ciência, mais do que como arte, paga tributo à noção de época” (LUCAS, 1984, p. 167). Quem determina o que é bom ou ruim na literatura se pauta sempre em um gosto, e é a partir do gosto tratado como critério de julgamento que o crítico acaba por classificar a si mesmo. De acordo com Pierre Bourdieu, “o julgamento do gosto é a manifestação suprema do discernimento” (2007, p. 17), visto que “os sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas” (BOURDIEU, 2007, p. 13). Valorizar uma obra significa que ela se aproxima mais do que concebemos como “boa literatura”, seja pela afinidade com o autor, com o estilo, ou com o tema. Mas a crítica é uma experiência que ultrapassa a listagem de resultados ou o julgamento, pois é “essencialmente uma atividade, isto é, uma série de atos intelectuais profundamente engajados na existência histórica e subjetiva (é a mesma coisa) daquele que os realiza, isto é, os assume” (PERRONEMOISÉS, 2007, p. 160). Assim como “há poetas que consideram autênticos apenas aqueles outros poetas que se pareçam com eles” (1973, p. 31), da mesma forma, o crítico elogia uma obra se ela vai ao encontro da sua noção de arte e literatura, porque “a primeira tarefa da crítica será articular num discurso coerente as ressonâncias da obra literária sobre a sensibilidade do crítico” (LUCAS, 2009, p.15). Compagnon afirma que “a avaliação racional de um poema pressupõe uma norma, isto é, uma definição da natureza e da função da literatura” (2010, p. 223). Estendendo a afirmação para a prosa, verificaremos que o crítico, ao emitir juízos de valor para determinada obra, acaba expondo o seu próprio conceito de literatura, pois “a obra de  

105  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   arte só adquire sentido e só tem interesse para quem é dotado do código segundo o qual ela é codificada” (COMPAGNON, 2010, p. 10). A crítica é produzida de acordo com os valores ideológicos de um público, que, por sua vez, está engajado “na discussão dos próprios interesses” (COMPAGNON, 2010, p. 145). É uma censura extremamente sutil que a crítica estabelece, pois, “sem o jogo de valores [...] a crítica decai de sua força persuasiva. Não há público que se satisfaça com uma recensão sem cláusulas judicativas, por mais disfarçadas que estas se apresentem. É preciso apontar virtudes e lapsos” (LUCAS, 1984, p. 166). Em relação a Ferreira de Castro, os críticos portugueses que resenharam A Selva envolveram-se em maior ou menor grau, como vimos, com a estética neorrealista. Mesmo os jornalistas que, na década de 30, publicaram críticas sobre A Selva, mais tarde, a partir da década de 40, passaram a resenhar obras vinculadas ao Neorrealismo, especialmente no jornal Diário de Lisboa. O que chama a atenção em relação aos enunciadores é que, dos textos publicados sobre A Selva entre os anos 1930 a 1974, a maior parte provém de intelectuais vinculados ao jornalismo, sem formação específica ou, em alguns casos mais raros, com formação em Filologia Românica, e alguns deles são, também, escritores. Já nos textos publicados em revistas, os autores são professores universitários e/ou críticos literários especializados. Em Portugal, nas décadas de 1930 e 1940, a crítica literária era especialmente veiculada nos jornais. No período que se estende de 50 a 60, a crítica de jornal fica a par da crítica publicada em revistas, enquanto a partir da década de 70, a crítica torna-se uma atividade própria dos especialistas, e não apenas dos jornalistas. Flora Süssekind (1993), ao analisar a produção crítica brasileira, chega a uma conclusão semelhante: entre os anos 40 e 50, a crítica de jornal ou de rodapé dominava a cena literária, enquanto nos anos 60, 70 e 80, a crítica de rodapé perde a força e o espaço para a crítica acadêmica, produzida por especialistas, com jargões próprios, e voltada para um público mais específico. A crítica de rodapé é baseada “na imagem do ‘homem de letras’, do bacharel, e cuja reflexão, especialmente sob a forma de resenhas e crônicas, tinha como veículo privilegiado o jornal” (SÜSSEKIND, 1993, p. 13). O homem de letras equivalia, de acordo com Terry Eagleton, ao intelectual, cuja tarefa era “avaliar todas as novas modalidades de conhecimento especializado segundo os padrões de um humanismo geral” (EAGLETON, 1991, p. 47). Era, portanto, o crítico não-especializado, que tinha a função de formar a opinião do público a que se destinava. Este, por sua vez, era igualmente não-especializado, e não necessariamente leitor da obra resenhada. Publica-se crítica literária no jornal em benefício da própria arte literária, como forma mais eficaz de divulgação do que em uma revista especializada, embora a crítica de jornal seja  

106  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   lucrativa, também, para a própria Imprensa, para os leitores e, claro, para o escritor. Contudo, o jornalismo atua junto a forças ideológicas, políticas e culturais que ficam subjacentes na crítica publicada neste veículo. Segundo Ciro Marcondes Filho, “os jornais são como pontas de icebergs, que no nível externo representam a democracia formal na qual todos seriam iguais, e, no fundo, escondem o poder político ou econômico que os sustenta” (1989, p. 13). As forças ideológicas do jornal atuam sobre a quantidade de críticas publicadas sobre determinada obra, o teor delas, até mesmo a sua finalidade. A maior parte dos jornais em que encontramos resenhas sobre A Selva tem o comunicado: “Visado pela Comissão de Censura”. Muitos deles, como o já mencionado Diário de Lisboa, A República, O Primeiro de Janeiro e o Diário Popular eram fortes opositores ao governo de Salazar, e alguns estavam vinculados também a editoras, como a Guimarães e a Renascença, por exemplo. As editoras utilizavam os jornais como veículos de promoção das obras e atração/conquista de um público consumidor. Note-se também a vinculação dos críticos a uma conhecida tertúlia que concentrava a elite intelectual (e oposicionista) em Lisboa: o grupo que se reunia, diariamente, na Pastelaria e Café Veneza. Segundo o Dicionário de História do Estado Novo (1996), a Veneza era um estabelecimento na Avenida da Liberdade, em que os homens de letras de Lisboa se reuniam para debater diversos assuntos: política, literatura, cultura, atualidades. A nata intelectual portuguesa se reunia ali, nomes como os de Ferreira de Castro, Julião Quintinha, Roberto Nobre, Augusto Casimiro eram presenças constantes (cf. ROSAS; BRITO, 1996, p. 10061008). Lá, muitas vezes, faziam-se negociações a respeito da publicação de críticas, divulgação de obras no estrangeiro, acordos a respeito de traduções, etc. Grande parte dos críticos d’A Selva eram amigos ou conhecidos de Ferreira de Castro,34 por isso os textos costumam ser laudatórios e, às vezes, com considerações superficiais acerca do livro. Separamos a fortuna crítica de jornal sobre A Selva por décadas: de 30, 40, 50, 60 e os anos de 1970 a 1974, publicada em Lisboa e no Porto, considerando que a recepção d’A Selva pode ser melhor analisada a partir da crítica de jornal, porque foi este o veículo com o maior número de publicações e melhor circulação, que concorria para divulgar a obra, coletamos 25 textos publicados em Lisboa e no Porto,35 centros culturais de Portugal que propiciavam a                                                                                                                 34

Exceto, talvez, o crítico italiano Giuseppe Carlo Rossi, com ligações mais estreitas com a Academia do que, propriamente, com Ferreira de Castro. 35 Procedemos à recolha do material de acordo com os itens mencionados no Catálogo do Museu Ferreira de Castro, mas também pesquisamos no site da Hemeroteca de Lisboa (hemerotecadigital.cm-lisboa.pt) e da Fundação Mário Soares (www.fmsoares.pt), restringindo-nos apenas aos textos publicados em jornais. Recorremos também à Biblioteca Nacional de Portugal, mas a maior parte dos jornais não foi encontrada em facsímile, somente com o texto digitado em formatação distinta da original. Os textos da década de 60 foram todos

 

107  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   maior divulgação e circulação de obras, e cujo acesso a publicações e documentos digitais é mais fácil do que nas demais cidades. Verificamos o número crescente de publicações em revistas, no decorrer dos anos, e que, apesar de arrefecer nos anos de 1970 a 1974, restringese apenas a este veículo, não sendo encontradas mais do que notícias relativas ao estado de saúde do escritor e notas de pesar ao seu falecimento. Neste artigo, devido ao tempo delimitado para a exposição, deteremo-nos em alguns textos das décadas de 30 e 60. Na década de 30, coletamos sete textos, dos quais um deles publicado em revista, e seis em jornais. Considerando-se que foi a primeira onda de textos críticos sobre A Selva, a sua função era, sobretudo, a de dar as primeiras impressões sobre a narrativa, com um espaço mínimo para a divulgação do escritor, com algum destaque para a sua experiência como emigrante no Brasil e para a estrutura do romance. Destaquemos, portanto, os trabalhos de Agostinho de Campos, Elcay, João Amaral Júnior, Joaquim Manso, Mário Gonçalves Viana e Teresa Leitão de Barros. Na linha dos primeiros textos de divulgação d’A Selva, o de Agostinho de Campos36 insere-se naqueles que têm a função primordial de estabelecer os valores do texto. No primeiro momento, o crítico estabelece os “dotes” literários de Ferreira de Castro. Para ele, A Selva reúne um conjunto de altas qualidades, que se reúnem sem se desequilibrar. Imaginação e penetração psicológica; simpatia humana, que leva o romancista a procurar assuntos humanos, isto é: denunciadores quase sempre da desumanidade dos homens; bom gosto e bom senso; poder descritivo feito, como sempre e em partes iguais, da capacidade de observação analítica ou panorâmica, e de fecunda ilusão literária; [...] aproveitamento discreto da fórmula do estudo objectivo dos ambientes, tão abusivamente exagerada por certos naturalistas. (1930, p. 8)

As qualidades apontadas caracterizam Castro como “um escritor português que sabe escrever português” (1930, p. 8). Note-se que o comentário do crítico aponta para a sua visão tradicional da literatura, que é associada ao beletrismo, a visão tradicional de que a arte é a representação do belo. Outro fator importante é em relação ao gênero: A Selva é considerada uma novela, a sua estrutura literária e ficcional não é ignorada. É por meio d’A Selva que Ferreira de Castro teria conseguido superar-se, e por meio da qual se adquire a certeza de que “as nossas letras devem-lhe muito, porque não pode duvidar-se, cremos bem sinceramente, de que muitos portugueses o hão-de ler amanhã, e depois, e depois...” (1930, p. 8).                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           encontrados, na íntegra, no Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro (1967), publicado após as comemorações de 1966. 36 Agostinho de Campos foi professor de Filologia Românica, e jornalista envolvido com o oposicionista O Primeiro de Janeiro, embora tenha colaborações suas em O Comércio do Porto.

 

108  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   No texto de Mário Gonçalves Viana,37 A Selva começa a ganhar ares de relato fiel da situação dos emigrantes portugueses. O crítico afirma que A Selva é um romance, porém com ligações estreitas entre a vida e o problema da emigração, a que é necessário, segundo ele, dar destaque, pois “sintetisa (sic), afinal, o drama dum português, igual ao drama de muitos outros homens...” (1930, p. 14). Com a referência implícita a Emigrantes, Viana é um dos primeiros críticos a associar A Selva à experiência de vida do autor: Trata-se, pois, duma obra em que Ferreira de Castro mais uma vez evidencia o seu luminoso espírito de humanidade e de amor pelo próximo. Alma boníssima, que tem sabido sofrer com os homens tôdas (sic) as dôres (sic) e injustiças de que êles (sic) são vítimas. A Selva é, precisamente, o éco (sic) vívido da existência inquieta e miserável daqueles que são explorados pelo seu semelhante, eternas vítimas das circunstâncias ou da ambição. (1930, p. 14)

No texto de João Amaral Júnior,38 A Selva começa a ser vista como mais do que ficção. Amaral Júnior afirma que, “mais que um romance, êste (sic) livro é um Documentário encantador, onde a Amazonia (sic), o seringal, o martírio do homem escravo do homem e os tenebrosos pesadêlos (sic) da selva estão firmemente traçados, tendo encontrado em Ferreira de Castro um mago desvendador” (1930, p. 11). Ressalte-se a caracterização da narrativa como um documentário: a crítica começa a penetrar na ideia de que A Selva é um “documento” da natureza e do homem amazônicos, cuja representação, no texto literário, é tomada como verdade. É na representação fiel da realidade que, segundo Amaral Júnior, reside o senso estético de Ferreira de Castro: O autor, com uma fôrça (sic) zolaesca e acima dessa fôrça (sic), transparece, através dessas páginas superiores, o libertário delicado e sereno, duma sinceridade que se adivinha veemente. A sua voz tem a honestidade duma voz baixa em apostolado; o seu espírito surge-nos disferido (sic) no Sonho altíssimo – enfim, êle (sic) tem, nêste (sic) livro inolvidável, a instintiva grandeza do Artista firme no seu sentido estético e ao mesmo tempo a do homem verdadeiro e de fé adentro dos seus sentimentos de Humanidade. (1930, p. 11)

É no texto do jornalista Elcay39 que A Selva passa a ser vinculada, quase completamente, à biografia do escritor, o que justificaria, conforme Elcay, o senso de realidade impregnado nas descrições da narrativa. Para ele, “tudo neste livro é admirável de cor, de expressão, de verdade” (1930, p. 15), especialmente as descrições da natureza amazônica. Os personagens são, igualmente, “retratos flagrantes de realismo e de verdade”                                                                                                                 37

Mário Gonçalves Viana foi polígrafo e crítico literário do Jornal do Comércio e Colónias. João Amaral Júnior foi jornalista e escritor. Em 1929 publicou a “reportagem romanceada” Os aventureiros da selva: scenas da África. 39 Elcay é o pseudônimo de Lourenço Caldeira da Gama Lobo Caiola, oficial do exército, jornalista e escritor. 38

 

109  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   (1930, p. 15), cujas falas revelam a preocupação do autor em representar, fielmente, o “dialecto próprio da região” (1930, p. 15). Interessante é a afirmação do crítico de que, se tivesse oportunidade, conheceria a região amazônica. Se não há o conhecimento da gente e do dialeto dos povos amazônicos, de onde Elcay retirou a ideia de que A Selva representa a fala dos nativos? Das conversas com o autor, algum outro crítico ou um nativo? Embora não tenhamos encontrado referência a cartas trocadas entre Ferreira de Castro e Elcay, é provável que se conhecessem, uma vez que ambos colaboraram no jornal Imprensa Livre, em 1921, e foram sócios do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa, em 1925. Daí as várias considerações biográficas de Elcay sobre A Selva,40 que Castro teria escrevido “avivando recordações da sua infância, que nunca mais se lhe apagaram da retina” (1930, p. 15), revelando que estava “fadado para as letras” (1930, p. 15), em uma perspectiva bastante determinista sobre o fazer literário. O texto de Joaquim Manso41 foi, certamente, o mais verborrágico de todos. Repleto de aulicismos, o texto inicia com uma consideração sobre a opção de Ferreira de Castro pela literatura, tomada pelo crítico como uma arma de denúncias sociais. Será este o início, na crítica, de uma série de considerações a respeito do “realismo social” d’A Selva, do seu humanismo, e da atribuição, ao autor, de precursor do Neorrealismo. Afirma Manso: Ferreira de Castro recolheu êle (sic) só, frágil representante da revolta e do sonho, na esmagadora grandeza da selva, um pêso (sic) de amarguras, mais que bastante para arrasar qualquer peito robusto ou para incender (sic), – assombroso milagre de resistência! – uma aspiração ardente e cantante, em luta contra o mal e a sua rugosa máscara hedionda – a injustiça. (1930, p. 6)

Para o crítico, a arte deveria ser o reflexo das preocupações sociais do artista, uma forma de fazê-lo denunciar os problemas da classe subalterna. A literatura é vista como um veículo de luta política, e o romance seria um testemunho de seu tempo: E como criar o romance, o drama pungente, a marcha flagrante do homem que chega para conquistar ou morrer, em paragens onde os elementos, em guerra uns com os outros, se mostram rebeldes, como a sanha dos gigantes? De que maneira equilibrar a natureza e o homem, a descrição e a narração, o tronco secular, imoto, e o coração, sôfrego e apaixonado? (1930, p. 6)

A Selva aparece como a “ardorosa gestação ou revelação” (1930, p. 6) das qualidades literárias do escritor, e o crítico assume que a principal causa por que ela obteve popularidade                                                                                                                 40

Lembrando que o prefácio “Pequena história de A Selva”, que Ferreira de Castro fez para o livro, repleto de considerações biográficas, só viera à lume em 1955, na 16. ed. do romance. 41 Joaquim Manso foi jornalista, fundador do Diário de Lisboa, o jornal de maior circulação nacional.

 

110  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   foi o fato de ser baseada na luta do escritor, na Amazônia: “Ferreira de Castro que não quere (sic) o êxito para fazer a própria escultura diante do seu espelho, escreveu A Selva” (1930, p. 6). Perspectiva semelhante é tomada pela crítica Teresa Leitão de Barros.42 Para ela, não se compreende por qual motivo Ferreira de Castro não recebeu as devidas homenagens:43 Noutro país que não fôsse (sic) o nosso, onde na capelinha das consagrações cabem sobretudo as que unem aos seus méritos um certo “savoir vivre” muito apreciado, Ferreira de Castro já teria recebido tôdas (sic) as homenagens académicas e oficiais. Não me consta que seja sequer sócio correspondente da Academia nem condecorado de S. Tiago, como talvez aconteça a mais de um plumitivo com veleidades literárias, embora de valor equivalente ao de zero colocado à esquerda da vírgula... Honra lhe seja! (1930, p. 17)

A ironia da autora revela o seu descontentamento em relação às premiações literárias, que não voltaram a atenção para a literatura de Ferreira de Castro. Mas qual seria, segundo Barros, a justificativa para que o escritor recebesse prêmios e homenagens? Pelo valor estético da obra, é o que ela afirma. A qualidade literária torna A Selva um “grande livro do século XX” (1930, p. 17), devido a sua riqueza de detalhes, e ao fato de estar “quase totalmente vinculada à vida do autor” (1930, p. 17): Como obra literária integralmente bem realizada, A Selva pertencerá, um dia, à História onde se analisam os livros definitivos e grandes que neste século foram escritos em língua portuguesa. Ferreira de Castro livrou-se magistralmente do pesadelo verde que trazia consigo, desde que foi, na sua aventurosa adolescência, prisioneiro da selva amazónica. Dividiu por milhares de leitores, por todos nós, que tanto o admiramos, o pesadelo que era só dêle (sic). (1930, p. 17)

Na década de 60, encontramos 17 textos publicados em jornais. A maior parte resultante do Cinquentenário Literário de Castro. Devido às comemorações, a crítica da década de 60 é a mais romântica de todas, recheada, muitas vezes, de textos laudatórios, mensagens de apreço à amizade e ao caráter do escritor, tendo como característica fundamental ser o auge das inferências biográficas a respeito d’A Selva. A crítica de 60 foi a responsável pela consagração definitiva do escritor. Para o crítico italiano Giuseppe Carlo Rossi,44 A Selva era o documento da Amazônia porque fora escrito “sem prévia intenção literária”. Embora afirme que a narrativa não fora                                                                                                                 42

Teresa Leitão de Barros foi professora de Filologia Românica, e colaborou em O Notícias Ilustrado e no Diário de Notícias, ambos sob a direção do irmão, José Leitão de Barros. 43 Lembrando que o texto de Barros data de 1930, mesmo ano de publicação d’A Selva. 44 O texto de Rossi foi publicado na Imprensa portuguesa, por isso consta como objeto de análise. Fluente em português e espanhol, Giuseppe Carlo Rossi foi professor de Literatura Portuguesa, sócio da Academia Internacional de Cultura Portuguesa e membro da UNESCO. Foi membro da comissão responsável por eleger A Selva como um dos dez romances mais lidos do mundo, em 1973.

 

111  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   escrita para ser concebida, originalmente, como ficção, Rossi defende que o texto garante um vislumbre do que a Amazônia é, de fato, uma vez que o autor não teria elaborado as descrições da floresta a partir das suas impressões pessoais: “a distância no tempo anulou as circunstâncias pessoais do autor, transfigurando-as e isolando-as de qualquer caracterização de tempo e de espaço” (1966, p. 30). Para Rossi, nenhum autor até então conseguira apanhar a Amazônia “em flagrante”. O texto literário, especialmente o brasileiro, pecava por excesso de imaginação, porque “era então o tempo – certamente todos se recordam – de uma análise ansiosa, mesmo no campo literário, daquela Amazónia que, no princípio do século, Euclides da Cunha, com a incisividade que o caracterizava, chamara a última página, ainda por escrever, do Génesis” (1966, p. 29). A Selva, por empreender uma caracterização da Amazônia que escapava às elucubrações imaginativas, constituiu-se como o “documento auténtico de vida transfigurado pela arte” (1966, p. 31), ideia semelhante à defendida por Olavo Dantas:45 Para muitos escritores viajantes, os cenários sofrem um processo de transfiguração estética, pois a imaginação romanesca do artista toma o facto como ponto de partida para a criação literária; o escritor como que passa do mundo real para um mundo ideal e florido, com a ideia dominante de dar maior beleza e interesse à produção do seu letrado engenho. Ferreira de Castro não se situa entre essas almas imaginativas. A sua estética é a do corpo vivo, como a de um estudioso de anatomia que se apaixona pela beleza real e dela procura tirar a sua grande arte. (1966, p. 29)

O texto de Dantas começa de maneira peculiar. Como exemplo perfeito de conservadorismo beirando o preconceito, afirma o crítico que, “cientificamente, a perfeição intelectual acompanha-se da perfeição moral; os criminosos e as prostitutas, geralmente, são débeis mentais, isto é, pessoas de acentuada imperfeição mental e moral” (1966, p. 29). Obviamente, para o crítico Ferreira de Castro é o exemplo de perfeição intelectual e, consequentemente, moral. Mas o que isso significa para a leitura de A Selva? São afirmações deste tipo que levam os leitores a associar os personagens ao próprio autor, inclusive por causa da insistência da crítica em associar o texto à experiência de vida de Ferreira de Castro. Segundo Jaime Brasil,46 foi o jornalismo que possibilitou a Ferreira de Castro ingressar na vida literária sem os excessos de imaginação de que a arte sofria, tornando-se o iniciador do romance social que mais tarde viria a estabelecer as bases do movimento neorrealista em Portugal. Afirma: “o escritor divide a sua actividade entre o romance e a reportagem, se, na verdade, um não é a continuação e complemento da outra” (1966, p. 19).                                                                                                                 45

Olavo Dantas foi um médico e poeta brasileiro. Jaime Brasil foi jornalista e crítico literário em publicações como O Diabo, O Século, Seara Nova e Vértice. Publicou biografias de Èmile Zola (1943 e 1966) e Ferreira de Castro (1931 e 1961). 46

 

112  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Para Brasil, A Selva ser considerada uma ficção não faz jus aos elementos de real que ela traz consigo, embora o crítico não ignore que a ficção serve como um mecanismo de ordenamento das memórias tortuosas do escritor: “não será muito justo designar por ficção o que é narrativa vivida de acontecimentos ocorrentes, embora justapostos e ordenados de forma a dar cunho artístico e unidade real ao que foi realidade dispersa” (1966, p. 19). Para Guedes de Amorim, o êxito d’A Selva reside no fato de Ferreira de Castro “não ter separado o escritor do homem” (1966, p. 22). A noção de exemplaridade fica evidente nas comparações que Amorim tece entre a personalidade do escritor e a sua ficção: nas conferências e eventos em sua homenagem, “o homem-escritor mostrou-se: com o pudor de sorrir espectacularmente ou falar em voz alta, deitando opiniões sem dentes, quer dizer, sem maledicência. Portanto, identificação perfeita do homem com o ficcionista” (1966, p. 22). O processo de heroificação do escritor contido nos diversos textos críticos até agora analisados refletem que, especialmente a partir da década de 60, A Selva não foi discutida sem a intervenção implícita – e muitas vezes descaradamente aberta – à vida do escritor, o crítico associa até vocação literária a um desejo pessoal do escritor: “Ferreira de Castro, entendendo a literatura como testemunho de desventuras e carências, tem-se justamente lançado a desejála entre os homens. Tanto como desejá-la, tem-na defendido como direito para todos” (1966, p. 22). Jorge Amado47 foi mais um dos que contribuíram para a produção de fortuna crítica sobre Ferreira de Castro. Tendo cultivado com o escritor português uma longa relação epistolar, prefaciado (e posfaciado) edições de algumas obras suas,48 e compartilhado com Castro a indicação para o Prêmio Nobel e o Prêmio da Latinidade,49 é compreensível, esperado até, que o romancista brasileiro tenha recorrido aos elementos biográficos para justificar o sucesso obtido pela obra castriana: “o escritor Ferreira de Castro nasceu na mais dura adolescência, na mais sofrida angústia, na mais terrível solidão. Por isso tem sido escritor tão solidário, tão humano e confiante na vida” (1966, p. 29).

                                                                                                                47

Jorge Amado foi romancista brasileiro. Ganhou fama em Portugal graças, principalmente, à intervenção de Ferreira de Castro, que lhe prefaciou as obras, e publicou críticas em revistas como a Vértice e O Diabo. 48 Jorge Amado prefaciou a edição húngara de A Lã e a Neve (1952) e a quinta edição brasileira de A Selva (1972). Posfaciou a edição tcheca de A Lã e a Neve, também em 1952, e organizou a edição desse mesmo livro no Brasil, em 1954. Ferreira de Castro retribuiu o favor prefaciando a primeira edição portuguesa de Gabriela, cravo e canela. 49 Jorge Amado e Ferreira de Castro foram indicados ao Prêmio Nobel em 1968. E ambos ganharam o Prêmio da Latinidade em 1971, junto a Eugenio Montale.

 

113  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   De acordo com Amado, a experiência de Castro no seringal amazônico possibilitou que os fatos fossem narrados de maneira fiel à realidade, seguindo à risca as lições de Gorki50 e Zola, para quem a experiência autobiográfica do escritor deveria nortear a produção literária, a fim de não deturpar a realidade dos fatos. É importante ressaltar que o próprio Jorge Amado, em posfácio a Cacau, recusa que seja atribuído ao livro o gênero romance, porque, segundo ele, “procurei apenas contar a vida dos trabalhadores” (s/d., p. 266). Diz o autor: “li uns romances antes de começar Cacau e bem vejo que este não se parece nada com eles. Vai assim mesmo. Quis contar apenas a vida da roça. Por vezes tive ímpetos de fazer panfleto e poema. Talvez nem romance tenha saído” (s/d., p. 271). Semelhante à emblemática afirmação de Alves Redol, ao alegar que Gaibéus “não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem” (1989, s/p.). Da mesma forma, Jorge Amado tenta articular a produção literária de Ferreira de Castro ao documento, ignorando as suas bases ficcionais ao assegurar que “nele cada parcela e cada palavra, cada instante, cada personagem, nele tudo é vida verdadeira, aprendida naquela viva experiência de que nos falou Camões em seu soneto. Na selva brasileira, o menino português se fez grande escritor universal” (1966, p. 30). Em clara defesa à estética neorrealista, que na década de 60 ainda encontrava admiradores e defensores, Manuel de Sousa Lobo51 declara que os romances de Ferreira de Castro não estavam impregnados de “retórica convencional e morna” (1966, p. 18): “imunizava-os, precisamente, a força, o peso das experiências vividas pelo seu autor, experiências que Ferreira de Castro soube, muitas vezes, recriar em forma de romance” (1966, p. 18). O crítico deixa claro que Ferreira de Castro é um romancista, embora, para ele, não possa ser ignorado o aspecto biográfico que permeia os seus livros, engrandecendo-o como escritor, e lhe permitindo a sobrevivência literária: “os livros que escreveu marcam a intensidade do seu esforço – participar da Vida, actuar, identificar-se com o seu movimento progressivo” (1966, p. 18). A confusão entre ficção e autobiografia chega a tal ponto, que alguns críticos passam a afirmar que o sucesso dos livros de Ferreira de Castro tem por causa o seu caráter exemplar. Para Julião Quintinha, por exemplo, Ferreira de Castro foi “o escritor que, em Portugal e no Mundo, tão alto ergueu o prestígio da literatura portuguesa” (1966, p. 14). Julião Quintinha52                                                                                                                 50

Para o crítico, Castro seguiu as lições do escritor russo Maximo Gorki, pois “com a arma da literatura ajudou a transformar o mundo” (1966, p. 30). 51 Manuel de Sousa Lobo foi jornalista, com publicações no Diário Popular. 52 Julião Quintinha foi presidente do sindicato dos jornalistas, com publicações em diversos jornais e revistas. Apoiou a candidatura de Ferreira de Castro à presidência, em 1958.

 

114  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   é outro crítico que acentua a biografia do escritor como forma de a arte promover a transformação social: a vida de Ferreira de Castro era o espelho do seu comprometimento ideológico: “na verdade, tudo na vida deste escritor se dispõe para fazer dele uma figura muito excepcional” (1966, p. 14). A orientação neorrealista aparece também no texto de José de Freitas,53 quando afirma que Ferreira de Castro firmou um lugar na literatura portuguesa como o “escritor-povo”, que “viveu grande parte da sua obra, que a sentiu profundamente e nela participou com a fome e o sonho, [...] a dureza de uma adolescência com patrão” (1966, p. 20). Freitas conclui que “em Ferreira de Castro confundem-se, misturam-se, o homem e a obra – obra exemplo de honestidade de vida e obra literária” (1966, p. 20). O processo de auratização do escritor começa enfatizando como A Selva funda-se inteiramente na verdade, a começar pela representação da Amazônia, objeto de fascínio dos romancistas, que muitas vezes pecavam por excessos de imaginação. Não foi esse o caso de Ferreira de Castro, como quase unanimamente os seus críticos ressaltam. Daí resultam as apreciações laudatórias da figura de Ferreira de Castro. Ferreira de Castro fez parte de uma intelectualidade para a qual vida e obra estavam (ou deveriam estar) entrelaçadas, e as amizades muitas vezes acabavam sendo uma via de divulgação de livros. Não é à toa que os críticos d’A Selva são quase todos amigos ou conhecidos do escritor, mesmo por causa da atividade em comum exercida por eles e o escritor: o jornalismo. Como as resenhas eram produzidas por homens de letras em jornais, era uma leitura confinada ao espaço reduzido de uma página, ou meia página. Os textos eram escritos num tempo reduzido, sob a pressão diária da Redação, o que tornava difícil um estudo mais aprofundado, embora tenham permitido a comercialização e o direcionamento do gosto do público. A popularidade e a produção de massa crítica sobre uma obra pode ser definida por meio da autoridade de certos enunciadores ou dos enunciadores certos. Em relação à crítica portuguesa sobre A Selva, temos, talvez, o caso dos enunciadores certos. É compreensível que a crítica que produziu seu discurso sobre a obra tenha realizado a colagem da figura do autor à do personagem, uma vez que, para a época, a vida do artista era vista como um patrimônio, tanto ou mais do que a obra: ambos deveriam ser o reflexo das necessidades sociais. Sendo assim, não se pode assumir que o valor que é atribuído a uma obra, ou mesmo a sua significação “pode ser definida simplesmente nos termos de sua significação para o autor e seus contemporâneos [...], mas deve, de preferência, ser descrita como o produto de uma                                                                                                                 53

 

José de Freitas foi jornalista, colaborador do Diário Popular.

115  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   acumulação, isto é, a história de suas interpretações pelos leitores, até o presente” (COMPAGNON, 2010, p. 81). Cada obra tem a sua própria biografia, e a fortuna crítica é um dos arquivos onde se encontram os percursos que ela tomou. As resenhas, como esperado, são mecanismos de valoração da obra. O problema é que, mesmo com a função de julgamento, os textos sobre A Selva são todos positivos, parecidos, e se limitavam a dar impressões muitas vezes subjetivas e superficiais a respeito da obra ou do autor. A crítica analisada revela que não se fez uma reflexão sobre a obra em si, mas sobre o escritor, entremeada por relatos pessoais, recorrência de elementos biográficos, até deduções sobre o seu caráter e vocação literária, com constantes louvações. Prejudicando uma análise verdadeiramente interpretativa e questionadora d’A Selva, os textos tornaram-se notas de leitura, e às vezes não se pode afirmar sequer se o ele foi lido, de fato. A recepção da obra foi assombrada pelas imagens do escritor, que figurou como personagem tanto dentro quanto fora da ficção. Referências AA.VV. Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro. Lisboa: Portugália, 1967. AMADO, Jorge. Cacau. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. AMADO, Jorge. Nossa honra e nosso orgulho. Lisboa: Diário de Lisboa, 9 jun. 1966. p. 2930. AMARAL JÚNIOR, João. Um documentário encantador. Lisboa: A República, 1930. AMORIM, Guedes de. Romancista universal, exemplar figura humana. Porto: O Século Ilustrado, 23 abr. 1966. BARROS, Teresa Leitão de. Um grande livro do século XX. Porto: O Notícias Ilustrado, 1930. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Tradução de Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: EDUSP. Porto Alegre: Zouk, 2007. BRASIL, Jaime. Meio século duma exemplar actividade de escritor. Porto: O Primeiro de Janeiro, 29 jun. 1966. CAMPOS, Agostinho de. Belas Letras. Porto: O Comércio do Porto, 1930. CANDIDO, Antonio. O Escritor e o Público. In: Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. p. 83-98. CASTRO, Ferreira de. A Selva. Porto: Civilização, 1930.  

116  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2010. DANTAS, Olavo. A estética das viagens de Ferreira de Castro. Lisboa: Diário de Lisboa, 17 fev. 1966. EAGLETON, Terry. A função da crítica. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1991. ELCAY. Páginas de Antologia. Lisboa: Diário de Notícias, 1930. FREITAS, José de. A Homenagem – regalo da consciência tranquila. Lisboa: Diário Popular, 10 fev. 1966. FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo, Cultrix, 1973. LOBO, Manuel de Sousa. A sobrevivência literária. Lisboa: Diário Popular, 7 abr. 1966. LUCAS, Fábio. A obra e a crítica numa cultura dependente. v. 57. In: Letras de Hoje. Porto Alegre: PUC-RS, set. 1984. p. 163-173. LUCAS, Fábio. O poliedro da crítica. Rio de Janeiro: Caliban, 2009. MANSO, Joaquim. Pintura sóbria, verdadeira. Lisboa: Diário de Lisboa, 1930. MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia: o jornalismo como produção social de segunda natureza. São Paulo: Ática, 1989. MURIEL, Elena. Não compreendo o silêncio à volta de Ferreira de Castro. In: Diário de Notícias, 11 ago. 1985. p. 29-33. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Apresentação. In: BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 7-14. QUINTINHA, Julião. Perante o cinquentenário literário. Porto: O Comércio do Porto, 25 jul. 1966. REDOL, Alves. Pórtico. In: Gaibéus. Lisboa: Caminho, 1989. ROSAS, Fernando; BRITO, José Maria Brandão de (coords.). Dicionário de História do Estado Novo. v. 2. Lisboa: Bertrand, 1996. p. 1006-1008. ROSSI, Giuseppe Carlo Rossi. Ao reler Emigrantes e A Selva. Lisboa: Diário de Lisboa, 14 jul. 1966; 28 jul. 1966. p. 29-30; p. 29; p. 31. SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993. VIANA, Mário Gonçalves. A Selva, uma obra-prima. Lisboa: Jornal do Comércio e Colónias, 1930.

 

117  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

INVENTÁRIO ANALÍTICO DA OBRA PICTÓRICA DE HAHNEMANN BACELAR (1962 – 1969) Décio Viana da Silva54 Prof. Dra. Luciane Páscoa 55 RESUMO Este artigo trata da análise iconográfica da obra do Artista Plástico Hahnemann Bacelar tomando como referência o contexto histórico do artista ligado aos acontecimentos de época, anos de 1960, que lhe serviram como ideal criativo, poético e critico. Mais do que a descrição de imagens o texto propõe indagar sobre a realidade do artista dentro de um cenário de condição de pobreza e o testemunho de sua observação, que nos garante hoje visualizar Manaus de modo preciso e crítico. Pretende-se ainda averiguar os elementos simbólicos que reconhecem o caboclo amazônico e sua natureza simbólica nas obras do artista.

Palavras-chave: Hahnemann Bacelar; pintura; iconografia.  

INTRODUÇÃO

O estudo destaca o período da década de 1960 do ponto de vista da história – a condição de vida pessoas que assim como ele vivenciaram esses anos e que fazem parte da concepção de sociedade na obra do artista. Os autores como Luciane Páscoa (2010), Otoni Mesquita (2000), Marcio Souza (2010) são pontos de partida do estudo em relação à cultura amazonense. Na questão iconográfica, iconológicas e análise artística Erwin Panofsky (2002) e Omar Calabrese (1977). Analisar aspectos que caracterizam o costume da região amazônica e a cultura nas obras de Hahnemann Bacelar fundamentá-las sob análise de narrativas em fontes que possam significar a dinâmica social da cidade de Manaus presentes, como conteúdo temático e estético de suas obras. A iconografia também nos permite expor através da análise das imagens elementos que comprovam e isolam Hahnemann no seu universo introspectivo reproduzido em suas telas                                                                                                                 54  UEA. Universidade do Amazonas. Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes.

Aluno da disciplina Estudo de Iconologia, turma 2012, do Curso de MESTRADO. Email: [email protected]. 55  UEA. Universidade do Amazonas. Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes. Professora Orientadora. Email: [email protected]

 

118  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   e não um opositor direto da degradação do ser humano como mártir de uma luta calada. Dá-se a possibilidade de conhecermos Manaus de outra vertente, o lado que não queria ser mostrado e muito menos falado, excluso no mesmo espaço. Amazonense, nascido em 1948, teve a vida interrompida precocemente em 1971, deixou uma obra madura, forte e significativa que sem dúvida o fazem hoje um dos artistas mais autênticos que o Amazonas conheceu e deve receber merecido tratamento. Configura-se o olhar do artista e sua preocupação com o cenário de sua região, não enquanto paisagem, mas em suas relações, seus valores, suas exclusões, interseções, conflitos que se concretizavam em sua obra, sua inquietação por torná-la notória. Sua falta de maturidade não permitiu perceber que suas preocupações manifestadas teriam um alto preço em sua vida. Os comentários aferidos e textos escritos nos remetem a ideia de um artista com todos os méritos de revolucionário, que pelo pouco espaço de tempo que teve para formar seu conhecimento estético percebeu de maneira sensível o que muitos intelectuais e artistas de sua época não conseguiram com tanta perspicácia e concretude. A fatalidade de vida é a base de sua indignação e descontentamentos que o firmou como o pintor de sua própria pobreza. São colocações dadas que determinam e direcionam a biografia do artista, como se as obras não precisassem ser interpretadas, pois os enunciados significativos as determinam. A conquista do 1º lugar na exposição do Clube Madrugada e a “consagração” aos 16 anos de idade como artista plástico não o isentaram de falsos olhares e do desconforto de uma minoria conservadora. Contudo não podemos desconsiderar o início de uma voz que soa com suas vibrações sutis na mentalidade da juventude artística de Manaus como possibilidade de transitar de uma camada para outra. O estudo de época caracteriza os fatos históricos representados através dos estilos artísticos vigentes, em especial os anos de 1960, identificando no caráter estrutural (o significado das cores, das formas, da textura, luz e sombra) e temático, bem como sua corrente artística de influência e o desafio de relacioná-lo esteticamente ao trabalho de outros artistas. Temos a chance de resguardar um patrimônio cultural com o estudo científico, além de ser fonte de pesquisa para futuros estudos nessa temática.

 

119  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   1. BREVE BIOGRAFIA Nascido em Manaus no dia 22 de fevereiro de 1948, filho de Adélia Bacelar de Aguiar - jamais soube a identidade de seu pai - Hahnemann Bacelar não poderia ficar no esquecimento; nem permanecer alheio a um momento em que o mundo transbordava de novidade e a juventude reagia contra amarras e repressões. Muito menos ser visto por sua postura e comportamento que o levaram a não ser compreendido como artista com rótulos que se repetem a comentários distantes e incertos. Muitos destes priorizam o ocorrido em Belém do Pará em 1971, descrevendo detalhes minuciosos que perturbam qualquer um antes de ter contato como suas obras. Isso caracteriza a sobreposição do ato em detrimento da figura prestigiosa de um garoto que queria ser artista e o torna uma espécie de “mito” enunciador, seguro em suas concepções e de alta habilidade técnica de representação. Faz–se crer num assassino, louco, drogado. Menino pobre, mulato, Hahnemann desafiou seu próprio tempo e com suas pinceladas fortes e pesadas transpassou o equilíbrio entre a brutalidade instintiva do gesto à serenidade da representação do individuo que vive na Amazônia. Resolveu com sua arte produzir um novo “herói” de corpo cansado, marcado e aspecto desfigurado, de mãos e pés descalços atrofiados. Morava no subsolo, ou porão do conhecido Palácio Rio Branco no centro dessa cidade, ali realizava seus desenhos e praticava ensaios de pintura, bem como elaborava sua condição de conhecedor da História da Arte em meios a livros que certamente serviram de referência para se consolidar em um estilo único e autêntico de característica e tendência expressionista como também alguns indícios do neo-realismo. Pouco se sabe da breve carreira de Hahnemann. Seus dados biográficos são contraditórios (Páscoa, 2002) por isso é necessário destacar atribuições de valor as suas obras, não nos atendo somente aos fatos de sua vida inicialmente, mas chagarmos a um entendimento de suas obras pictóricas através da análise iconográfica, indagações e questionamentos do material visual que nos é acessível, levando em consideração que muitos de seus trabalhos encontram-se fazendo parte de coleções particulares ou espargido pela cidade se não a outras regiões do país. Pintou diversas telas. Em conseqüência de sua morte prematura, surgiram depoimentos e opiniões controvertidos sobre sua vida e personalidade, mas muito pouco foi dito sobre sua produção artística. Sabe-se que teve orientação do gravador Álvaro Páscoa e freqüentara a Pinacoteca do Estado, participou de alguns eventos artísticos e seu

 

120  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   trabalho parecia muito bem-aceito pela classe artística e ganhava espaço. (MESQUITA, 2000, p. 185).

Sabe-se de um artista que denunciava através de suas obras seu universo introspectivo que vinha a tona com o desejo de gritar diante da repressão e da ignorância declarada que observava com tanta clareza. Assim “ele quis retratar o que via e vivia de outro jeito, não a paisagem do “realismo socialista”, mas o sentimento convulsionado do seu tempo.” (SOMALU, 2005 p.15) A pobreza e sofrimento fazem parte de sua temática através de personagens retorcidos e solitários que se misturam entre si e ao mesmo tempo se integram a cenários tímidos e encobertos. Não queria somente ser artista. Desejava a mudança de vida, o valor do povo da região de que fazia parte e o respeito à condição humana. Sofria juntamente com aquele quede perto conhecia: o “esquecido” – o ribeirinho, a prostituta, o trabalhador, o servil de rostos nus, onde a expressão da dor pouco importava. Talvez a perturbação e desassossego intelectual estejam em perceber o significado das coisas sem ter muita elucidação ou a falta de quem o orientasse e pessoas que o compreendesse. Mesmo assim não deixou de viver ser tempo e acreditar na arte. Sabe-se que se envolveu com drogas e foi influenciado por movimentos da contra cultura e ideologias que defendiam a negação da arte e o culto a liberdade. Os fatos ocorriam, o mundo se transformava, as injustiças perduravam e nenhum impacto favorável a condição de vida do amazônida se prometia. O povo abandonado e excluso de sua própria história que mesmo sendo ignorado sujeitou sua força de trabalho a enriquecer muita gente estranha e aproveitadora. Desenvolveu o conteúdo de suas obras através de desenhos que o fizeram na pintura ser insaciável e imparcial com realidade que ninguém queria ver: a miséria de sua gente, a melancolia e dor. Isto é perceptível pela espontaneidade e rapidez traço no registro do momento oportuno de quem estivesse na mira de seu lápis. Aplicava cores em camadas espessas e os impactava em meio ao amarelo intenso como uma forma de expressar sua índole indomável, forte e original que o caracterizam como expressionista. O contato com outros artistas e a convivência foi favorável para que pudesse conhecer o que estava sendo produzido artisticamente. Foi um dos membros mais jovens do então conhecido movimento Clube da Madrugada que permeou os anos iniciais da segunda metade do século passado e se configura hoje como um grande acontecimento cultural e intelectual em Manaus.  

121  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Este movimento tinha o compromisso de divulgar novos talentos e incentivar a produção de seus membros através do desejo de renovação estética vivida por um grupo de poetas, escritores, intelectuais e artistas plásticos que estavam cansados do isolamento cultural proporcionado por dificuldades econômicas e geográficas (Páscoa, 2011). Hahnemann Bacelar viveu dentro de um ambiente cultural evoluído para as artes em Manaus desde o ciclo da borracha, respectivamente os anos 1960, período de produção das obras pictóricas analisadas que hoje deixam qualquer um a indagar e o desafio de compreendê-las a partir da dinâmica social que o envolveu e serviu como estopim de seu próprio fim. Com o intuito de identificar na obra de Hahnemann características da relação homem/natureza dedicamos este trabalho com a atitude de formar novos caminhos que sugerem abrir outros que reforcem e/ou acrescente diálogos e indagações pertinentes a qualidade estética e, sobretudo atribuições que confrontem uma identidade cultural primeira, primitiva, pura no sentido da vida que posteriormente foi deturpada pelas transformações de seu tempo.

2. ANÁLISE DAS OBRAS PICTÓRICAS Mãe do Corpo

- Óleo sobre tela, 1966,

Pinacoteca do Estado do Amazonas.

Lavadeiras - Óleo sobre tela, 1968, 77 x 95 cm, acervo da Família Páscoa.

Sem Título - Óleo sobre tela, 1968. 93 x 133 cm, col. Pinacoteca do Estado do Amazonas.

Miséria

- Óleo sobre tela, 1968. 93 x 133

cm, col. Pinacoteca do Estado do Amazonas.

Cafuné - sobre tela, S/D, 85 x 74 cm, col. Pinacoteca do Estado do Amazonas.

Mulheres -

Óleo sobre tela, S/D, 76 x

x95 cm, col. Pinacoteca do Estado do Amazonas.

 

122  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A análise iconografia das obras de Hahnemann Bacelar nos permite, pela sua amplitude, relacionar e fazer comparativos que envolvam a dinâmica da vida cabocla e a realidade da cidade de Manaus nos anos de 1960. As relações de aproximação de conteúdo temático, elementos fomais, técnicos e a História da arte se complementam às referências textuais nas literaturas que fundamentam a leitura das imagens de maneira ampla e correta. Uma das características iniciais a serem abordadas é a identificação de aspectos regionais que se misturam nas diversas ações dos personagem que no discurso visual recriam a natureza cabocla através da figura feminina: o contato direto e a dependência clara à região, mesmo de maneira sugestiva direta notória nas representações. “Existe uma sobreposição de corpos em varias posições. Inicialmente observamos a preocupação social do artista com a condição da mulher, pois essas são mãos recorrentes em suas obras.” (Páscoa, 2011, p.190) Os anos 60 estavam ainda numa condição critica repetitiva do fim do que veio a considerar-se Belle Époque no auge da borracha. A prostituição evidenciou o desespero de centenas de mulheres na busca da utopia da “cidade rica”, vítimas em grande parte de informações distorcidas e de promissoras perspectivas de vida melhor deixaram seus sonhos e praticamente a dignidade moral para sujeitar-se ao “Baixo Meretrício”, que foi uma saída principalmente para aquelas que ficaram perdidas no tempo, com marcas do trabalho pesado e cicatrizes do fracasso. Vale lembrar que grande parte da população de Manaus era de outras regiões do país como também estrangeiros, que fortalecidos por especulações convincentes e mesmo incerto deixaram-se tomar por decisões levianas, como os nordestinos que procuraram fugir da seca para não morrerem da fome juntamente com suas mulheres e um numero avantajado de filhos. O governo prometia trabalho, mas logo os abandonava. Depois foram avisados de que se preparassem, pois viriam para o Amazonas, todo mundo ficou entusiasmado e queria vir. O anúncio correu logo, apregoando as vantagens do governo e a alta da borracha que iria fazer a gente rica depressa (Benchimol, 2010, p. 345)

O que se observa é que os aspectos referentes à apresentação dada pelo artista asseguram o contato próximo e dependente entre mulher e natureza. Como esta é feminina reflete toda uma gama simbólica quanto protetora e sustentadora de tudo o que é vivo e a faz viva. Não podemos considerar aqui uma privação da representação feminina como

 

123  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   depravação do corpo, mas com dada importância as atribuições de suas funções e atividades que parecem estar em harmonia como ciclo natural das coisas. A figura feminina se repete em diversas funções e momentos diferenciados apresentando vens particulares que as descrevem separadamente seu modo de vida tradicional, fazendo parte de uma mesma realidade. Com vestuário simples em sua maioria vestido e trajes em duas peças (blusa e sais), que contrastam cores predominantemente escuras e claras aliadas aos gestos, tornam-se complemento simultâneo da evocação sensual do corpo em que braços (destaque para os ombros nus) e pernas volumosos não se perdem na leveza e delicadeza de determinada ação, ou seja, a originalidade da beleza feminina primitiva se condensa nas atitudes em meio a afazeres comuns. Outro ponto comum que se soma são os cabelos, extremamente negros e principalmente soltos, longos ou médios, que se elevam e encantam quando, sempre despenteados são arrumados improvisadamente para realizar alguma atividade. As mãos exercem essa tarefa imprescindível – o toque, a mímica, a maneira de segura uma fruta, de acariciar e manusear objetos - parecem ser o resultado de uma forte atração ou satisfação diante do subjugo e descriminação à mulher através dos estereótipos de moralização da época e o próprio afastamento marginal. Manifesta sua indignação no nu como denúncia crítica através da representação do corpo em que este deve ser visto, mostrado e apresentado como apelo da condição social da tantas mulheres que fazem parte da realidade vigente e que sua existência não se confere certamente a preocupações humanísticas, mas ameaça a preceitos socialmente estabelecidos pela sociedade. 3.1 Posição das Pernas Nas obras de Hahnemann Bacelar há uma característica comum nas imagens em estudo, o modo de sentar, típico do caboclo com funcionalidades que divesificam-se em suas atribuições fazem parte dos afazeres rotineiros. Sempre no chão com variações nos gestos e movimento espontâneo das articulações dos braços. Na obra “Miséria” o personagem abaixo a direita descansa sobre uma das pernas enquanto a outra se mantém erguida com o joelho para cima, o que não se repete nas demais telas. Posição esta para execução de tarefas de longo tempo, que exige concentração e habilidade como também uma maneira de visualizar toda a área necessária para o processo de desenvolvimento do trabalho, proximidade às ferramentas e comodidade que a posição  

124  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   oferece, aparentemente confortável, para que a perna erguida dê a possibilidade de levantar a qualquer instante sem o uso das mãos. Já em “As lavadeiras” e “Mulheres” as pernas estão abertas, o corpo é sustentado pelos pés solados no chão e os joelhos para cima servem de apoio. A primeira projeta-se a uma função específica, rápida, limpa exige somente o uso das mãos devido o banho de crianças no interior serem breves e obedecem ao rigor das crenças lendárias. Quanto à segunda imagem, a personagem que se apresenta de perfil, nos remete a noção de equilíbrio espontâneo com total elasticidade e domínio do corpo ao mesmo tempo em que leva a mão direita à boca para morder uma fruta e segura outras com o braço estendido apoiado no joelho à mostra, que pelo contexto geral da pintura estaria urinando. Diferente da primeira a posição é de estabilidade e de observação do que está à frente. Em “Miséria” a personagem a abaixo a esquerda refaz a posição, mas se deixa cair para o lado como uma maneira de dialogar em risos com personagem mais próximo. As nádegas sobre o chão como em “Cafuné”, as pernas parecem tocar o assoalho como correspondendo ao relaxamento e flexibilidade de todo o corpo das duas mulheres, o toque está para parte externa e interna das pernas esquerda e direita da personagem de trás. Já em “Sem Título” aparecem duas personagens sentadas, as posições se apresentam somente nesta obra. Uma de frente com os joelhos unidos e as pernas separadas com os pés para dentro, iguais as do único homem na tela “Miséria” representado nas obras, só que este está com as pernas abertas. A outra personagem de costas descansa o peso do corpo todo sobre suas coxas e panturrilhas, quase escondida entre as mulheres da cena. 3.2 Mãos e Braços As posições de mãos e braços representam as mais diversas e comuns gesticulações.

Inscrevem-se na repetitividade das atividades cotidianas, bem como nas

atividades do ambiente em que se encontram. As duas obras que se encenam dentro de moradias são “Mãe do corpo” e “Cafuné” que demonstram o momento de descanso depois de realizadas as tarefa rotineiras da primeira parte do dia, ou são destinadas somente para aquele momento de sossego diário, como catar, bordar, deitar, conversar, etc. é uma das características do povo amazônico gesticular ao falar para reforçar o causo contado. Na obra “Sem Título” as mãos parecem estar fechadas e juntas ao corpo como querendo protegê-lo. Do conteúdo geral que a obra investe, a timidez é presente pela exposição do nu que se tenta sutilmente quase imperceptível esconder o todo e não as partes que se disfarçam  

125  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   pela expressão facial num sorriso desprovido de vitalidade, pois estão a mostrar um cenário triste e apelativo, sendo uma obrigatoriedade a sujeição moral. A personagem em primeiro plano coloca a mão direita entre as pernas e a outra para o lado direito do rosto dobrando torcendo o corpo, este gesto se confirma na personagem deitada de “Mãe do corpo”. As mãos levadas à cabeça das personagens do mesmo quadro se repetem noutras obras. Abaixo um descompromisso da ação, acima um leve passar dos dedos entre os cabelos, assemelha-se a “As lavadeiras” na figura central e “Miséria” das personagens acima, que contrasta com dedilhar do homem, e das mulheres da obra “Cafuné”. 3.3 Rostos e Expressões As obras que mais chamam atenção neste sentido são “Sem Título” e “Miséria”, que mesmo não sendo pinturas que definem detalhes da figuração, remete certa indagação favorável a investir nessa incógnita da expressão. Na primeira os olhares são densos e misteriosos, ao mesmo tempo cansados e apáticos que se direcionam a lugar nenhum criam um impacto visual do nu conflitando com uma sensualidade forçada, uma elegância falsa, ratificada pela expressão facial das personagens. Olhos possuem um pequeno detalhe escuro repuxados enquanto as bocas variam em formas e tonalidade. Em “Miséria”, ao contrario da anterior, a expressão cômica das personagens sugere uma alegria espontânea, simples, que integra a todos e convence através das cores. Enquanto esta apresenta ausência de complicação e conflito, a outra se abre a passividade da leitura, na obra “Mãe do corpo” os olhares convergem para um gesto dado pelo pé da personagem sentada no banco com expressões sérias e pouco observadoras. Nas demais obras “As lavadeiras”, “Cafuné” e “Mulheres” os rostos aparecem ocultos, não definidos, pois apenas agregam sugestões da maneira como o corpo intenta a ação. Em outras obras talvez a evidência das imagens aos fatos, a beleza do corpo, a valorização da trivialidade da cena seja mais importante do que são retratados. 3.4 Corpo e Sensualidade O nu na obra “Sem Título”, já foi citado com falseador da beleza que representa. Assim como de imediato esta obra impõe a nudez de maneira objetiva, clara, que em outras obras pequenos detalhes se repetem e valorizam a sensualidade da pureza inata do corpo feminino intrínseca nas três obras subseqüentes.  

126  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   As personagens apresentam-se inocentemente com as pernas a mostra, o que qualifica a cultura da mulher nativa da região, não há intenção proposital, as formas sinuosas e cilíndricas dadas pelo artista sugerem a dinâmica, a força e a resistência física das personagens. Outro item comum a todas são os cabelos, extremamente negros e soltos, longos ou médios, que se elevam e encantam quando, sempre despenteados são arrumados improvisadamente para realizar alguma tarefa. As mãos exercem essa tarefa imprescindível o toque, a mímica, a maneira de segurar uma fruta, de acariciar e manusear objetos - parecem ser o resultado de uma forte atração do artista. Nas obras “Miséria”, “Cafuné” e “Mulheres” o mesmo gesto se repete. Na primeira tela há uma personagem com o seio à mostra, se olharmos mais detalhadamente, ao lado, sua mão está com a palma para frente seu polegar devolve a alça da blusa para se recompor num ato involuntário. Na segunda obra a personagem em primeiro plano foi pintada com a alça de sua blusa caída sobre o braço, o que também é presente em “Mulheres” na personagem de roupas íntimas branca. O destaque do corpo revela que a naturalidade da vida é o respeito e a simplicidade das coisas. 3.5 Ambientes, luz e sombra O espaço ambiente composto une as personagens à natureza destacando sua relação de conhecimento e subsistência. Duas obras representam o ambiente interno de casa, bem como os acessórios que as compõem: redes, esteiras, tapetes, outros. O céu sempre presente timidamente e o horizonte se destaca em azul pouco predominante e fragmentado. Os restantes das obras se passam em ambiente natural do contato direto como o chão, os pés sempre descalços e atrofiados. O fundo muito próximo dos personagens, mas se distancia em detalhes entremeados entre as personagens. Há uma divisão nas telas que separa céu e terra. A linha do horizonte é subtraída pela proximidade do recorte. Dá-se uma leve noção de perspectiva da relação figura fundo nas insinuações de fração de céu, objetos e tecidos. Um destaque maior para as obras “Cafuné” que mantém um distanciamento do primeiro plano para o fundo - e ”Mulheres” – onde a luminosidade no terreno e a convergência das folhas de bananeira sugerem profundidade. O primeiro plano tem como base de sustentação e peso dos personagens. A leitura é direcionada de baixo para cima como se a pretensão do artista estivesse a ser imitada pelo  

127  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   espectador à maneira como observava. O olhar se projeta primeiramente da fruição do centro da imagem para os planos posteriores. O segundo plano mistura elementos diversos em ambientes que recriam o nativismo na periferia da cidade. Ao mesmo tempo o todo é condensado num foco de realidade que situa instantes da vida do artista. Nada mais interessa ou seu mundo é esse limitado e finito. Um protesto veemente, porém tímido de existência. Os pedaços de céu é o inexplicável, o que não se conhece ou a simples noção temporal. Personagens se destacam em primeiro plano colados um no outro, exceção para obra “Mulheres” e “Lavadeiras”, mas a proximidade se apresenta. O espaço da obra é mantido num ponto de vista fechado, o horizonte pouco aparece, mas pedaços do céu brilham em azul claro entremeado à textura de massa branca que o cobre e se desenha em pequenos espaços da tela (exceção para “Cafuné” onde o céu ocupa uma faixa de um quinto da altura da tela), que vem refletir-se dentro do ambiente de maneira generalizada provocando a volumetria da oposição entre tons claros e escuros da representação dos personagens. A estrutura física rude com textura de pele grosseira e áspera que visualmente se harmoniza com as linhas sinuosas de pinceladas rápidas e espontâneas. Contornos falhos e escuros que valorizam parcelas de sombra intensa. Os ambientes são iluminados por forte incidência de luz geralmente por um foco da esquerda para a direita sendo intensificado nas telas “Sem Título”, - de intenso amarelo-ocre nos corpos sem contorno, que destacam suas formas pelo brilho do “rosa-claro” polido que reafirma o foco de incidência - “Miséria” divide verticalmente a dimensão da obra em duas partes iguais com claro à esquerda e escuro do outro lado com focos de penetração da luz que se ajustam e equilibram ambas as partes. Intensidade branda nas obras “Cafuné” – com o foco de luminosidade produzindo forma cilíndrica nos membros superiores e inferiores (realce para o relevo dos seios e alça da blusa na tonalidade azul transitando bruscamente para o negro). Na região inferior da imagem o marrom reflete a claridade lateral e justapõem-se paralelamente ao branco matizado de azul na figuração do céu no alto da tela. O mesmo resultado volumétrico acontece com “Mulheres”. Agora a orientação do foco de claridade corta a tela com um feixe largo vertical no centro da imagem que transita do verde para o marrom-terra de cima para baixo e deste para o verde como fusão divina entre chão e natureza; aquele que está abaixo, porém consonante e responsável com o que brota, visto e deslumbrado. As mulheres são nitidamente definidas pela vigor que a luz reflete no

 

128  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   tecido branco que se espalha nos corpos e a leitura se completa nos pontos de pequenas frações isoladas claras e brilhosas na superfície do terreno. Este efeito se repete na obra “Mãe do Corpo”; o branco é valorizado nas vestes e acrescenta mais vigor à luminosidade lateral; as tonalidades nas variações de vinho e marrom, as peles alaranjadas com linhas de sombreamento azulado sugerem a obscuridade do espaço lateral direito e propõem sensações de peso, mistério, tormento e agonia. Já ”Lavadeiras” o foco luminal é menos expressivo, porém é destacado pelo volume dado aos membros do corpo na tonalidade amarela. A transição de tons claro-escuros nos corpos é aplicada também no chão – o amarelo-ocre corre para o vinho até chegar ao tom mais escuro da escala. Deve-se reconhecimento do preciso desenvolvimento técnico e apurado de Hahnemann Bacelar às orientações técnicas e estética do Mestre Álvaro Páscoa quanto professor e amigo. 4. Considerações finais Observar as obras de Hahnemann Bacelar, conhecer sua técnica a partir da análise da representação e compreender seu universo interrogativo passou a ser o desafio de experimentar e poder repassar a imagem do artista através de sua pintura. Longe definí-lo em rótulos pré-concebido como tantos o fizeram! Misturar elementos ilícitos com arte ou se atrever em delírios a tudo que ultrapassa o convencional não torna ninguém artista. O que se pode provar com esse estudo baseia-se na sua produção e o reflexo que esta permite dialogar com a história. As experiências de Hahnemann o fizeram assim. Jamais se negou ao absurdo ou se curvou a normalidade. Para a juventude rebelde tudo poderia ser possível. Assim como qualquer outro artista que vivesse os anos de 1960, a rebeldia e sede de liberdade não poderiam deixar de se manifestar no comportamento revolucionário. Estavam atentos aos acontecimentos e a busca de respostas para suas indagações do que não compreendiam. Por que seria diferente com Hahnemann? Os fatos ocorriam, o mundo se transformava, as injustiças perduravam e nenhum impacto favorável a condição de vida do amazônida se prometia. O povo abandonado e excluso de sua própria história que mesmo sendo ignorado sujeitou sua força de trabalho a enriquecer muita gente estranha e aproveitadora. O contexto, evidentemente o influenciou, mas não foi o único. Outros artistas aqui também sofreram com o descaso e falta apoio e repressão. Levemos em consideração os anos  

129  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   60 como início do que viria a ser um período conturbado pelo regime militar. Louva-se a este período o desenvolvimento do Clube da Madrugada, independente e revolucionário. Hahnemann nos deixou, sem saber, a possibilidade de considerarmos aspectos do amazônida e transitar no processo da criação que nos concede percorrer os caminhos do nosso entendimento diante da vida. Somente a arte pode retomar convicções que ajudam a enunciar os desejos da Amazônia. Uma nova poética de valoração de dentro para fora. O desejo se projetando numa nova maneira de mostrar a dignidade da arte com significado explícito a atingir no espectador sua própria imagem. Temos agora a condição de compreensão mais profunda dos aspectos que caracterizam a cultura amazônica nas obras de Hahnemann Bacelar, fundamentadas sob análise de narrativas de fontes vivas que possam significar a dinâmica social da cidade de Manaus. Abrir espaços e curiosidades; servir de base a outros para que se possa sustentar o interesse de se aproximar da Hahnemann Bacelar. É a oportunidade de adquirir conhecimento a respeito da Amazônia, entendendo-a através da obra deste artista que através de sua a pintura pode nos deixar um legado critico da condição humana na Amazônia e persiste até hoje. A Hahnemann nosso respeito e tamanha admiração pelo instante de vida que permite a Amazônia ser eterna através de sua poesia.

REFERÊNCIAS BATISTA, Djalma. Amazônia - Cultura e Sociedade. 3ª Ed. organização de Tenório Telles. Manaus: Editora Valer, 2006. CALABRESE, Omar, Como se lê uma obra de arte, Edições 70, Lisboa, 1997. DUBE, Wolf-Dieter. O Expressionismo. Editora Verbo-Edusp : SP, 1976. ECO, Umberto, A definição da Arte, Edições 70, Lisboa, 1981. ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. EVANGELISTA, Roberto. Catálo Hahnemann Bacelar. Edições do Governo do Estado do AM. Fundação cultural do AM, ano 313. Manaus, 1981. OLIVEIRA, José A. de. Manaus de 1920-1960. A cidade doce e dura em excesso. Manaus: Editora Valer. Governo do Estado do Amazonas. Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2003.  

130  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Coleção Debates. Tradução: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. Editoria Perspectiva S.A. São Paulo, 2002. PÁSCOA, Luciane V. B. As artes plásticas no Amazonas – o Clube da Madrugada. Manaus: Editora Valer, 2011. PASCOA, Luciane V. B. Expressionismo no Amazonas. Manaus: edições Governo do Estado, 2002. PÁSCOA, Luciane V. B. Relações Culturais e Artísticas entre Porto e Manaus através da obra de Álvaro Páscoa, em meados do século XX. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. (Tese de Doutorado). SOMANLU. . Publicação da Universidade do Federal do Amazonas – Vl. 01, nº 01, 2000. Disponível em http://www.periodicos.ufam.edu.br/index.php/somanlu/article/view/254/127. SOUZA, Márcio. A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. Manaus. São Paulo; Alfa-ÔMEGA, 1977. ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte um paralelo entre arte e ciência. Coleção polemica do nosso tempo, 59. 3ª ed. rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2006.

 

 

131  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   NARRATIVAS SATERÉ-MAWÉ NO PALCO: ORALIDADE, CRIAÇÃO E TEATRALIDADE Dilce Pio Nascimento – CESP/UEA/PPGLA56 RESUMO: Esta pesquisa faz parte da Dissertação intitulada “Narrativas Orais Sateré-Mawé: Oralidade e Dramatização” do Programa de Mestrado em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas. Este artigo, em princípio, apresenta uma reflexão sobre as fronteiras entre a narrativa oral e o teatro. Posteriormente, mostram-se algumas marcas do processo de criação das narrativas Sateré-Mawé para a linguagem teatral. A configuração teórica dá-se a partir dosestudos orais de Zumthor (1997, 2007) que tratam da performance oral, da presença da voz e do corpo como partes constituintes de um texto literário. Analisam-se também os estudos de Lehmann (2003) ao abordar uma nova concepção de teatro, com ênfase na liberdade criadora e na experimentação dramática, apresentado diferentes formas de representação de um mesmo conteúdo. Nessa concepção de teatro, o texto é sempre novo, podendo assumir diferentes formas de acordo com o público ou personagens, uma forma teatral livre de modelos preestabelecidos. No que tange ao processo criativo das peças teatrais, reflete-se sobre a experiência de vida, de leituras, da visão de mundo da própria pesquisadora ao imprimir suas marcas discursivas e estilísticas no texto dramático. PALAVRAS-CHAVE: Narrativas Sateré-Mawé. Teatro. Processo de Criação. Marcas discursivas. ABSTRACT: This research is part of the dissertation entitled “Oral Narratives of the SateréMawé: Speech and dramatization” in Masters program in Letters and Arts of the Amazonas State University. This paper, in principle, portrays a reflection on the frontiers between oral narratives and theatre. After, we show some of the marks of the creation process of the SateréMawé narratives in the theatrical language. The theoretical configuration comes from the oral studies of Zumthor (1997, 2007) that look at the oral performance, the presence of the voice and body as constituent parts of a literary text. Also Lehmann’s studies (2003) where he looks at a new concept of theatre with emphasis on creative liberty and the dramatic experimentation, showing different types of representation of the same content. In this concept of theatre, the text is always new and is able to assume different forms in accordance with the audience or characters, a type of free theatre based on pre-established models. In regards to the creative process of the theatrical plays, there is a reflection on the life experience, interpretations, world vision of the researcher when stamping her discursive and stylistic marks on the dramatic text. KEYWORDS: Sateré-Mawé narratives,Theatre, Theater, Creation Process, Discursive Markers.   Introdução A poética da oralidade apresenta algumas estratégias de recepção performática e uma das mais relevantes é a relação que se estabelece entre o executante (intérprete, atores), o                                                                                                                 56

Professora da Universidade do Estado do Amazonas, no Centro de estudos Superiores de Parintins. Mestre em Letras e Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas. Email: dilcepio12@gmal. com

 

132  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   texto e os ouvintes. A forma de apresentação de um texto dramático geralmente se dirige a uma demanda ou classe social. No Brasil, pouco se investe em espetáculos que alcance as áreas periféricas do país. Isto não se restringe somente ao teatro, a difusão de alguns estilos musicais é um exemplo desastroso de como a indústria cultural impõe um gosto à sociedade. Muitas sociedades tradicionais ainda conservam suas práticas, na maneira de narrar uma história, devendo ser improvisada conforme o tipo e o gosto do público. Nesse sentido, o narrador oral é um ator, por excelência, por ter a capacidade de improvisar sem perder a arte criadora no processo mimético. Dessa forma, verifica-se que as práticas teatrais estão presentes em todas as manifestações humanas como na religiosa, na dança, nas mortes e rituais de ressurreição. As sociedades tradicionais recorrem à forma dramática com intenção de manter “vivo” seus mitos. Esta forma de narrar é muito comum entre várias etnias indígenas. O corpo e a indumentária fazem parte da história, na medida em que expõem os motivos principais da narração. Entre os Sateré-Mawé esses simbolismos são mais comuns nos rituais de iniciação, como a Dança da Tucandeira. O teatro tem uma relação muito próxima com o texto oral já que ambos se reportam a um público e trabalham com a performance. Os repentistas nordestinos são excelentes na arte performática de improvisação. Assim como no espetáculo teatral, toda apresentação é única no sentido de que os atores podem improvisar, modificando a performance. Na narrativa oral, além da improvisação, o corpo do narrador carrega o próprio cenário daquilo que está sendo dito, numa maneira peculiar de contar história, envolve os ouvintes por meio de uma percepção sensorial dos sentidos, utilizando a voz e o corpo, idêntico a um ator no palco. AS FRONTEIRAS ENTRE O TEATRO E A “LITERATURA ORAL” Zumthor entende que a “noção de ‘literatura’ é historicamente demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo: ela se refere à civilização europeia, entre os séculos XVII ou XVIII e hoje” (2007, p. 12). No âmbito acadêmico ainda se estuda o texto oral com certo receio, uma vez que os parâmetros de análise são, na maioria, os mesmos da literatura clássica. Zumthor prefere substituir o termo “literatura oral” por poesia vocal. O fenômeno da voz humana é uma realidade concreta que pode ser aplicada “àescrita literária ou inversamente”(ZUMTHOR, 2007, p. 18). Dessa forma, o medievalista ao se referir à poesia oral, percebe que na origemdesse gênero, o poeta pode exercer vários papéis seja de ator ou de intérprete que se apresentam de  

133  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   forma individual ou em grupo. Diante disso tem-se o ato da performance através da relação entre intérprete e poema manifestado “segundo a forma de dramatização vocal e gestual” (p. 237). O texto oral apresenta algumas estratégias de recepção performática e uma das mais relevantes é a relação que se estabelece entre o executante (intérprete, atores) o texto e os ouvintes. Sobre esta relação,o autor escreve que, As peripécias do drama a três que se encena assim entre o intérprete, o ouvinte e o texto, podem influir de várias maneiras nas relações mútuas dos dois últimos, adaptando-se o texto, em alguma medida, à qualidade do ouvinte [...]. Subsistem entre nós os vestígios dessa velha prática: nós a vivemos como resposta a uma demanda; elas se integram ao projeto estético (ou tratando-se das mídias, comercial) que determina sua colocação formal (ZUMTHOR, 1987, p. 245).

Zumthor observa que “os narradores africanos [...] quando cantavam nas aldeias das montanhas, no meio de um incessante vai-e-vem de curiosos, submetiam seu texto a esse ruído, cortando, duplicando, transformando segundo a necessidade da hora e do lugar” (ZUMTHOR, 1987, p.246). Na concepção linguística é objeto passível de análise. Esta assertiva é mais fácil de ser compreendida da escrita, pois as marcas do texto oral está “nas relações instáveis das quais resulta em níveis das concatenações de elementos e de seus efeitos de sentido” (ZUMTHOR, 1997, p.132). Em um texto escrito, perde-se, por exemplo, um gesto, um estalo, uma repetição, pois nada é gratuito. Nesse sentido, a voz é um elemento marcante de oposição entre o oral e o escrito. A presença do corpo e da voz faz com que o texto oral seja sempre único, naquele instante, novo, pois as vozes que o evoca trazem inovações através das improvisações dos conteúdos. O texto oral carrega em si a riqueza da forma espontânea de expressão ao se manifestar no ato da performance. Nesse campo de análise ainda existe muitos equívocos de estudiosos do texto oral que persistem em submetê-lo a um modelo científico a partir da análise do texto escrito, levando a um resultado de análise do texto oral como “pobre” de literariedade ao observar os aspectos verbais como prolixidade, repetições, assovios, risos. Nessa concepção, o texto oral apresenta uma linguagem não elaborada, “isto é um ponto de vista de pessoas de escrita” (ZUMTHOR, 1997, p. 134). O texto dramático, assim como oral trabalha com a performance da presença, numa comunicação que implica uma recepção de contato no olhar, no ouvir, no sentir. No transcurso da performance os ritmos, os gestos se manifestam de forma “viva”, ou seja, a linguagem à serviço da “condução dramática da performance” (ZUMTHOR, 1997, p.244). Dessa forma, a performance se constitui como elemento unificador entre o texto oral e o dramático.  

134  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A concepção de teatro tem sofrido mudanças, na atualidade, principalmente a partir dos estudos de Lehmann (2003) sobre o teatro pós-dramático. Nesse tipo de teatro existe uma liberdade criadora. O texto dramático passa a ser um texto experimental, um guia, não é um objeto acabado, pois está sempre em transformação assim como os textos orais, os espectadores são geralmente, também atores. O conteúdo permanece, mas a forma de representá-lo muda de acordo com as circunstâncias do momento, com o tipo de público. Nessa concepção de teatro, verifica-se um texto em movimento e inacabado, pois a cada espetáculo carrega novas experiências, já que “a performanceconfigura uma nova experiência, mas ao mesmo tempo é a própria experiência” (ZUMTHOR, 1997, 247). Para Lehmann o teatro pós-dramático é acima de tudo político, mas “a questão do teatro ser político, [...] não é simplesmente tratar de temas e tratar de um conteúdo político,mas é ter essa forma política, [...]. É a forma que vai definir” (HANS-THYES , 2003, p. 09). Em outras palavras, as formas como se pode trabalhar e representar as percepções cotidianas é uma prática política.Mas ao contrário de como a maioria tem compreendido, Lehmann afirma que “o teatro pós-dramático não é a destruição do teatro [tradicional], mas uma nova etapa que, com esse distanciamento pode ser percebido dentro da história do tetro, que tem um desenvolvimento” (HANS-THYES, 2003, p. 11). Entre os elementos que constitui a dramaturgia (em ação) estão o tempo, o espaço e as pessoas. Nessa nova concepção de teatro há uma tendência em alongar ou encurtar o tempo, deixa de ser um elemento constituinte passando a ser um tema. A respeito disso, Lehmann (2003) dá um exemplo de um texto lido dentro dos cômodos de uma casa, a Illíada de Homero. As pessoas entravam e saiam dos cômodos, podiam falar, interromper a leitura, mas não faziam por uma questão ética. Enfim, a leitura duravacerca de vinte e duas horas e muitos traziam sacos de dormir. Lehmann saiu e voltou para assistir/ouvir o final porque era a parte que mais gostava. Esse exemplo de teatro mostra a forma política da arte, pois se quebra com a continuidade com aquela aura de lugar sagrado, buscando espaços do cotidiano para a representação. AS NARRATIVAS SATERÉ-MAWÉ NO PALCO Uma das questões teóricas, suscitadas por vários pensadores sobre o gênero dramático, incide em dois elementos básicos: a ação dramática e o conflito. Para Aristóteles (1992) a ação deve ser completa (início, meio e fim), na prática essa estrutura não é tão fácil  

135  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   de justificar como se imagina. Diante de um texto narrativo, o mais difícil é a escolha das partes que deverão ser dramatizadas. Geralmente se privilegia as ações mais dinâmicas ou imagens que sintetizem as ideias gerais do texto. As narrativas orais Sateré-Mawé apresentam certo dinamismo dramático. A “História do Guaraná”, traduzida por Uggé, é envolvente por conta dos inúmeros acontecimentos. Para a montagem da peça “O Mito do Guaraná”57, utilizaram-se, em princípio, as pesquisas sobre os aspectos culturais dos índios bem como suas relações simbólicas com a bebida feita do guaraná. Dessa forma, a primeira cena foi uma criação extra-textual no sentido de manteruma unidade às ações das personagens, criando uma ambientação verossímil, pois o principal motivo da trama gira em torno do guaraná. A dramatização do mito foi divido em oito cenas e dois planos: o presente e o passado (plano da memória). Na primeira cena (plano do presente) aparece um grupo de índios sentados em círculo, tomando çapó (guaraná ralado) numa cuia, que passa pelas mãos de todos do grupo, em sentido anti-horário. Levanta o narrador/ator, se dirigindo à platéia, e começa a contar a história do guaraná. A partir desta cena, todas as ações acontecem no plano da memória. Em outras palavras, a voz do narrador traz a dinamicidade, dando vida às personagens. Na última cena, volta o tempo presente, acena inicial se repete, sinalizando que todas as ações aconteceram apenas no plano da memória do narrador. A partir dos estudos de Zumthor (2007) sobre a performance, percebe-se uma estreita relação da linguagem dramática com o texto oral. O texto teatral é a volta à oralidade no sentido de que o teatro trabalha coma fala. Cabe ao dramaturgo instigar nos seus textos, a reflexão sobre os aspectos político e cultural de uma sociedade além se ser porta-voz da língua de uma nação. A dramaturgia de Shakespeare é um exemplo do compromisso e da função social que a literatura alcança. O processo de criação da escritura teatral é tão complexo quanto qualquer produção artística e essa complexidade toma outra proporção quando se propõe criar a partir do estudo de outra cultura, outra língua, recriando a fala, o modo de vida de uma sociedade que para muitos nunca existiu e nem existirá. Ao adaptar as narrativas Sateré-Mawé para a linguagem teatral, além da apreciação estética tem-se uma visão da pluralidade cultural do Amazonas.

                                                                                                                57

Peça escrita pela própria pesquisadora e encenada pelos acadêmicos do curso de Letras no I Festival de Teatro/CESP/UEA em novembro de 2011.

 

136  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O PROCESSO DE CRIAÇÃO DAS NARRATIVAS TEATRALIZADAS Walter Benjamin, no ensaio “Experiência e Pobreza” comenta uma leitura que fizera de uma parábola “de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos (BENJAMIN, 1994, p. 114). A moral desta parábola está no tesouro da experiência que uma pessoa adquire ao ouvir uma narrativa, ao socializar um saber. O processo criativo parte de uma experiência, de uma lembrança, de uma imaginação fertilizada por outras experiências. Benjamim trata desse tema no contexto da PrimeiraGuerra Mundial, de como ela trouxe tanta pobreza de experiência. Não serão discutidos aqui os fatores que influenciam na pobreza de experiência, nesse momento histórico, mas apenas um exemplo de que a experiência é o lenitivo da criatividade. Ao ler as narrativas Sateré-Mawé se imaginava, primeiramente, a voz do narrador, as pausas, os gestos. Essa imaginação parte da experiência que se tem como ouvinte de histórias de boto, de cobra grande, de curupira. No centro da mesa a lamparina, todos atentos na magia daquela narração, a entonação da voz, as diferentes musicalidades do riso. A história, geralmente, já havia sido contada inúmeras vezes, mas cada vez que se recontava, havia algo novo acrescentado. É difícil falar com propriedade de algo que não se sente. Então, a primeira fase do processo criativo parte das várias vozes, das experiências de leituras de mundo. De acordo com Ostrower, “os processos de criação ocorrem no âmbito da intuição, embora integrem [...] toda experiência possível ao individuo, também a racional, trata-se de processo essencialmente intuitivos (OSTROWER, 2003, p. 11). É evidente que a intuição está a serviço da experiência que se acumula. Geralmente, a forma surge como lembrança de algo que já se viu ou se ouviu, mas se acrescenta alguma coisa a partir do contexto cultural em que se vive bem como das experiências adquiridas em contato com outras culturas. Esses contatos culturais geralmente ocorrem através da influência que um autor ou vários servem de base para enxertar a criatividade. A propósito dessa questão, Harold Bloom escreve que, O sublime, na poesia, é sempre (como veremos) o ponto da citação: da citação sublimada. E é precisamente nesta relação entre poetas e precursores que se estabelece o texto da literatura, que é a dramatização de um embate sublime contra figuras de anterioridade e modernidade com uma e outra se alternando como ponto de origem. Em termos maisrecentes, seu nome – que deve ser compreendido sem indevidas cargas de sentimentalismo – é ‘angústia da influência (BLOOM, 1991, p. 14-15).

 

137  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Nessa obra, Bloom reflete sobre os “estágios” de “apropriação”, de precursores que influenciam no processo de criação poética. O autor mostra os mecanismos ardilosos de apropriação de uma ideia pondo em cheque todos os poetas, pois “o bom poeta furta enquanto que o mau poeta revela uma influência” (BLOOM, 1991, p. 63). Nesse sentido, o escritor estaria sempre recortando outros textos, pois é dessa que se estuda e se analisa uma obra literária no ocidente, procura-se menos as marcas de uma autenticidade do que as influências que sinalizam a continuidade de pensamentos fixados em moldes preestabelecidos. A base para as produções das quatro peças foram as narrativas contidas no livro “As Bonitas Histórias Sateré-Maué”, de padre Henrique Uggé. Sabe-se que as narrativas orais apresentam um enredo simples não de conteúdo, mas de peripécias, pois ocorrem infindáveis repetições da mesma ação. É evidente que esse recurso, no ato da fala, é pertinente, pois o narrador deseja reforçar aquela lembrança para que não venha ser esquecida pelos ouvintes, uma vez quealguns deles serão os futuros narradores. No processo de criação das ações a serem encenadas, como por exemplo, a “História do Guaraná”a primeira cena inicia com um grupo de índios sentados no palco, em círculo, o narrador sentado na posição central deste círculo e todosbebemçapó. A cuia passa em sentido anti-horário. Enquanto o grupo bebe o çapó, está tocando a música “Caminhos de Rio” (Raízes Caboclas). A música termina, o narrador levanta e conversa com o público, levandoos a um tempo passado, conforme a divisão dos planos temporais das ações: o passado e o presente. O narrador sai e volta somente no final da apresentação que se configura na mesma cena inicial. Esta ação não existe na narrativa. Esses detalhes surgiram a partir das conversas com os próprios Sateré-Mawé que moram na casa de trânsito, em Parintins. Os atores são o Pai do Timbó e Santa Maria, a mãe do menino guaraná. No processo da escrita do texto, imaginava-se uma peça tragicômica, mas como resultado, na recepção do público, foi riso do início ao fim, até mesmo no momento em que Santa Maria arranca o olho do menino. Dessa forma, percebe-se que o público faz parte da ação cênica. Qual foi a reação? É através desse processo experimental que se pensa a escrita dramática, em outras palavras, o teatro só existe de fato, como as narrativas orais, no instante da performance corporal, da presença da fala. As duas primeiras peças: “A História do Guaraná” e “Puratin e a Jiboia Grande” foram encenadas, no I Festival de Teatro, no Centro de Estudos Superiores de Parintins. Havia uma vontade de experimentar o texto em cena a fim de verificar a teatralidade da presença do corpo com a voz, com os gestos, com a música, movimentando as ações. Há dois espaços da encenação da “História do Guaraná”, a saber, o da casa e o da floresta. Esse  

138  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   segundo espaço ocorreu no meio do público. Quando santa Maria ia até o mato, uma música indígena tocava (do CD União dos Povos). A música está presente em todas as cenas. Assim com sons de cigarra, de pássaro (cena no instante da morte do menino guaraná) que reforçam a encenação. Na peça o “Puratin e a Jiboia Grande” fez-se uma montagem de duas narrativas. Como a história do Puratin era mínima, quase sem movimento, une-se à história da Jiboia Grande. A primeira apresenta algumas semelhanças com a “História do Guaraná”, no que se refere ao consumo da bebida, o çapó. A música de abertura58 mostra a primeira cena que é apenas visual: uma velha sentada no chão do palco, ralando o guaraná. Há também várias crianças esperando a bebida aprontar. Em seguida entra o narrador, com indumentária comum de pescador ribeirinho: chapéu, calça arregaçada até as pernas e camisa velha, traz em suas mãos o Puratin. O remo sagrado será o fio condutor para emendar a segunda parte da peça. A história da “Jiboia Grande” passa a ser apresentada por um narrador-personagem o deus que está dentro do grande narrador, o velho da primeira cena. Na primeira parte da peça há um ritmo mais tenso, por conta dos acontecimentos como a morte do irmão do demônio, o veadinho. E a música59 intensifica a cena. Já a segunda parte, é totalmente cômica. Destaca-se a cena do encontro entre o homem perdido com a Jiboia grande: JIBOIA: você está com medo de uma cobrinha, como eu? Não tenha medo. Entra na minha casa junto comigo, vai? HOMEM PERDIDO: E eu tenho outra alternativa? Pois fique sabendo que eu não tenho medo de cobra! (música).

A música60 e a dança coreografada do ator trazem toda uma carga intersemiótica, amplificando a cena, chamando o espectador para interagir no espetáculo. Imagina-se um público partícipe, atuante. Na cena final do espetáculo, imaginou-se uma dança dramática, com movimentos que sugerissem a imagem da serpente. Sabe-se que a cultura brasileira, em particular a folclórica, é muito fecunda nessa forma de manifestação musical. Mário de Andrade foi um dos pioneiros, no Brasil, a pesquisar o estilo musical brasileiro, o que não foi fácil estabelecer um estilo, uma vez que estava contaminado por tantos outros como o africano, o lusófono e, principalmente, o aborígene. No que se refere ao estilo musical deste último, Alvarenga (1960) escreve que,                                                                                                                 58

Cantos da floresta – Raízes Caboclas. SkrillexOrchestral suíte byvarienbonusversion – Skrillex – bumpthatish.com 60 Homem com H – Ney Mato Grosso. 59

 

139  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A música dos aborígenes do Brasil, como qualquer música primitiva, foi e é essencialmente religiosa, ligadas a cerimônias e atividades de que dependia diretamente a vida da tribo: cantos e danças de guerra, de caça, de invocações e homenagem a entidades sobrenaturais de que se consideravam dependentes, animais totens, e espíritos e, finalmente, de celebração dos fatos sociais, morte, doenças (ALVARENGA, 1960, P. 18).

É inegável que em algumas músicas indígenas ainda predominam certa influência religiosa. Mas percebe-se que o estilo musical da etnia Satere-Mawé passa por mudanças, há muitas influências e misturas de estilos. Nas comunidades do Andirá, existem bandas musicais em que os indígenas tocam teclado e cantam na língua materna músicas do grupo Kalipso, por exemplo, entre outras músicas de forró, de carimbó etc. O único elemento étnico que permanece é a língua. As danças e os rituais indígenas, apresentados no Festival Folclórico de Parintins, são espetacularização de um estilo construído que quase nada diz da realidade cultural indígena do Amazonas. As transformações culturais são visíveis. Existem políticas culturais que procuram unificar os elementos como se refletissem a essência da nacionalidade brasileira. Nesse sentido, “celebra-se o patrimônio histórico construído pelos acontecimentos fundadores, os heróis que o protagonizam e os objetos fetichizados que o evocam. [...] As relações entre governo e povo consiste na encenação do que se supõe ser o patrimônio definitivo da nação” (CANCLINI, 2003, p. 163). Nas duas últimas peças houve uma liberdade criadora maior do que nas duas primeiras. Ao escrever a peça “A Saga da Mandioca Satere-Mawé: aqui tem chibé? Tem!” se imaginava as cenas. Antes da escrita, fez-se alguns rituais como conversar com o espelho, vestir-se, maquiar-se e dançar como se estivesse no espetáculo. A respeito das etapas do processo criativo, Bordini, ao estudar a criação literária de Érico Veríssimo, constataque: O processo criativo em Érico Veríssimo, pode ser analisado em dois planos entrelaçados: o histórico, em que o Autor escreve num determinado espaço, valendo-se de rituais para invocar o momento criativo e estabelecendo rotinas para disciplinar o desenvolvimento de seu trabalho; e o protextual, em que Érico compõe seus romances, optando por um método e executando a obra por etapas, desde a ideia até o original definitivo (BORDINI, 1995, p. 101).

Os elementos pré-textuais referem-se às fontes primárias que servirão de base para a construção do texto, ou seja, são todos os empréstimos, todos os modos de apropriação de uma história, de uma fala, de um riso etc. Um dos recursos mais fecundos, no processo criativo, é a memória, as lembranças de uma história, envolvendo todo umjogo performáticoentre narrador/ator e ouvinte/espectador ao sair de um plano reale passando para um plano ficcional.  

140  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O texto vai tomando forma a partir da imaginação e de lembranças de outras vozes, de expressões populares que a maioria daquela sociedade conhece como “mas quando já” “espia só”, “taqui pra ti”, além de risos musicados, lembranças da infância, dos parentes, dos vizinhos. Compara-se essa mistura a um escabeche de peixe: apropria-se de vários temperos e o resultado final é outra coisa, bem diferente do peixe cozido na beira do lago, apenas com água e sal, ambos são saborosos. No texto “A saga da mandioca Sateré-Mawé, aqui tem chibé? Tem!” a primeira imagem construída é de uma narradora intrusa, uma animadora, que conversa com o público durante toda a encenação. Imaginou-se uma mulher, puxando um bordão, como nas brincadeiras de roda. Ela é o estribilho de toda a encenação. Gilda de Melo e Souza, ao estudar o processo de composição de Mario de Andrade, observa que este utilizava o principio da variação. De acordo com Souza (s/d), O principio da variação é como a suite, uma regra básica de compor e consiste em repetir uma melodia dada, mudando a cada repetição um ou mais elementos constitutivo dela de forma que, apresentando uma fisionomia nova, ela permanece sempre reconhecível na sua personalidade (SOUZA, s/d, p. 19).

A música e a dança estão presentes em todos os textos que foram teatralizados. É comum, na atualidade, incorporar-se à encenação a música e a dança. Mário de Andrade foi um dos primeiros pesquisadores brasileiros a observar, na cultura popular, a predominância das danças dramáticas.

Segundo Alvarenga, “a expressão danças dramáticas foi criada por

Mario de Andrade, a fim de designar os bailados populares brasileiros que tem uma parte representada ou que se baseiam num assunto” (ALVARENGA, 1960, p. 29). Essa forma de representação parece pertinente nas danças e rituais indígenas, mesmo sabendo que muitas danças estão desaparecendo ou já desapareceram. Os Sateré-Mawé têm uma dança que se chama “mãemãe”. Nessa dança, os índios imitam ou sugerem os movimentos de algum animal. Se o animal escolhido for um pássaro, todos os movimentos devem sugerir o voo dos pássaros, movimentos das cobras, dos peixes etc. Na peça, “O Puratin e a Jiboia Grande”, a cena final é encerrada pela dança da cobra, pois o conteúdo da última parte do texto dramatizado se refere à cobra como elemento fundador da origem do caminho, conforme esta passagem do texto: NARRADOR: Ouçam meus filhos! Não deixem que essas histórias caiam no esquecimento. Essa é a origem do caminho, está escrito aqui no Puratin. Nunca digam: “estou fazendo o meu caminho” porque o caminho é de cobra. É por isso que até hoje ela aparece nas beiras dos caminhos para picar os homens que se esquecem que o caminho foi feito pela JIBOIA GRANDE. (todos levantam com o tipiti, com o paneiro, a

 

141  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   peneira,todos os artesanatos feitos de Arumã e iniciam a dança da cobra (movimentos sinuosos semelhante aos da serpente – música de encerramento).

A dança dos peixes está presente no texto “A saga da mandioca Sateré-Mawé: aqui tem chibé? Tem!”: Todos dançam fazendo movimentos como se fossem mergulhar. O primeiro da fila inicia o movimento e todos o acompanham (música). No texto “O lamento do Gavião Real” é apresentada a dança mais conhecidas dos Sateré-Mawé : a Dança da Tucandeira, apresenta o colorido dos peixes da Amazônia, principalmente a cor vermelha que se destaca nesse texto, simbolizando o sangue do jabuti. No que tange aos matizes que envolvem os textos teatralizados se imaginou as cores do cenário, da indumentária, da pintura dos corpos, todos esses elementos estão fundidos ao conteúdo exposto. Na peça “O lamento do Gavião Real” a primeira cena surgiu da tela “Mãe do Corpo” do artista plástico amazonense Hahnemann Bacelar. Bacelar descreve com precisão uma cena não só dos índios, mas também dos ribeiros amazônicos. A ideia é que as personagens saíssem da tela. A tela “Mãe do corpo” apresenta características expressionistas, com pinceladas violentas e brutas apresentando uma etnia indígena amazônica. O tema mãe do corpo aponta para um aspecto cultural das tradições regionais. Acredita-se que a mãe do corpo fica alojada no diafragma. Mas em algumas situações de fraqueza do organismo, geralmente após o parto, a mãe do corpo pode “sair do lugar” e somente por meio de uma reza e massagem no estômago e na genitália poderá “voltar” para o seu lugar. Portanto, foi este aspecto cultural dos povos autóctones da Amazônia que Hahnemann Bacelarprocurou representar nesta tela: num barracão de palha há quatro mulheres retratadas,bem fortes, sobressaindo-lhes o estômago. Uma das mulheres está deitada de peito para cima e outra pisando-lhe o estômago. Uma terceira mulher está em pé com um menino nu que segura seu vestido vermelho. E uma quarta mulher à esquerda, sentada no chão, segura um objeto escuro, uma cuia. No fundo da tela surge o firmamento de um azul forte com alguns traços de branco. Por trás das mulheres há uma rede num tom de marrom e azul. O branco das roupas das mulheres com o amarelo dos corpos dá uma claridade intensa.O lugar é de muita simplicidade. Por detrás das palhas pode-se vislumbrar um riacho com um tom discreto de verde. As mulheres deformadas apresentam movimentos como se estivessem praticando um ritual e fossem sair da moldura. A linguagem, no processo de construção do texto apresenta a estética verbal. Das várias narrativas estudadas, sobre povos indígenas verifica-se que ao se escrevê-la, o texto torna-se imaleável, muda de forma. Pensando nessas questões sobre o texto oral em oposição  

142  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ao escrito, se procurou experimentar no texto dramatizado uma linguagem quese aproximasse dos narradores orais. Em “O lamento do Gavião Real” está explícito esta oposição, uma vez que o coro fala em uma linguagem culta e os demais atores, bichos e homens se comunicam com uma linguagem comum dos ribeirinhos amazônicos. Considerações finais Márcio Souza, um dos maiores estudiosos da cultura, da literatura no Amazonas, afirma que o teatro sempre esteve presente na vida dos amazonenses, principalmente no período opulento da borracha. Ressalta-se que, nesse período, o teatro está presente na vida de um pequeno grupo endinheirado que pouco conheciam dessa arte, mas frequentar o Teatro Amazonas

era estar inserido num grupo elitizado dominante. “O teatro do “ciclo da

borracha” será basicamente, um teatro importado, apontando muito fugazmente para uma dramaturgia e produções locais” (SOUZA, 2003, p. 235). Assim como na História do Brasil, as primeiras manifestações teatrais no Amazonas foram introduzidas pelos jesuítas, com o propósito de catequização dos índios. Mas foi com Tenreiro Aranha, no século XVIII, que o Amazonas vai ter a primeira experiência teatral de um dramaturgo da região. Passado mais de dois séculos, entre a produção de Tenreiro Aranha e de Márcio Souza, constata-se uma dramaturgia local ainda pouco conhecida, com escassos investimentos nessa área artística, restando para os artistas anônimos um palco improvisado nas salas de aula ou nas quermesses religiosas. Mesmo sem incentivo, esses autores anônimos insistem numa produção sem ecos nos meios de comunicação de massa, mas livres de aparelhos ideológicos controladores. Os textos teatralizados, baseados na obra “As Bonitas Histórias Sateré-Maué” de Uggé, nãos nasceram em um único momento. Eles são frutos de uma reflexão sobre o passado, as vivências, o respeito à memória, em particular, aquela individual que permanece latente nas vidas dos inúmeros narradores anônimos. Memórias também da pesquisadora que fala a partir de um locusde pertencimento por isso ter elegido um tema que tivesse estreita relação com a vida e a memória das vivências nas margens do rio Amazonas, ouvindo histórias de boto, de cobra-grande, de curupira, à luz da lamparina. Sair desse mundo de encantamento mágico, conhecendo as experiências dos povos ribeirinhos, auxiliou de forma significativa para pensar numa literatura “viva” a partir das narrativas orais dos índios SateréMawé.

 

143  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Esse estudo reflete-se sobre o processo de ressignificação das narrativas orais da etnia Sateré-Mawé, numa perspectiva literária, na área da dramaturgia. Nesse contexto, observa-se que a cultura é um veículo transformador de hábitos e práticas que antes pareciam imutáveis. Ressalta-se que a narrativa oral continua existindo, mas coexistindo com outros meios de comunicação, principalmente, as multimídias que modificam as práticas de oralidade, acrescentando novos ritmos, novos gestos, novos modos de expressão. Dessa forma, as narrativas Sateré-Mawé são resultados de uma cultura em transformação por isso apresentam vários elementos híbridos que são as marcas da mistura como a religiosa cristã ou como os diferentes gostos musicais. Os textos teatralizados apresentam essas características da mistura cultural, pois não poderia ser diferente, já que a produção parte de alguém de “fora” da etnia sateré, do não-índio que imprime no texto suas marcas individuais. No processo de escritura das peças, procurou-se preservar o conteúdo das narrativas. A forma de expressão, a linguagem é outra, mas o mito permanece latente. Mesmo aparentando uma maneira despretensiosa de mostrar o mito, tirando-o de seulugar sagrado, profanando-o, os mitos Sateré-Mawé, contidos nas narrativas teatralizadas, continuam “vivos”. Certamente que o espetáculo não tenha o mesmo significado para o espectador sateré e o citadino, pois este último se detém mais no prazer estético e na função lúdica que o teatro possa lhe proporcionar. Referências ALVARENGA, Oneyda. Música Popular Brasileira. 1ªed. 2ª impressão. Globo de Ouro. Porto Alegre, 1960. BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Imago, Rio de Janeiro, 1991. BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Érico Veríssimo. L&PM/EDIPUCS, Porto Alegre, 1995. BENJAMIN, Walter. Experiência e PobrezaIn:/Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura Walter Benjamin; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin.– 7. Ed. – São Paulo: Brasiliense, 1994. –(obras escolhidas; v. 1). CANCLINI, Néstor García. Culturas Hibridas: Estratégia para entrar e sair da modernidade. 4ª ed. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003.

 

144  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   HANS-THYES Lehmann. Teatro Pós-Dramático e Teatro Político. Seminário – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas ECA/USP –setembro, São Paulo, 2003. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processo de criação. Petrópolis, Vozes, 1987 SOUZA, Gilda de Melo e. O tupy e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. Livraria Duas Cidades, São Paulo, s/d. SOUZA, Márcio. A expressão amazonense – do colonialismo ao neocolonialismo– . Manaus: Valer, 2003. TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria Literária. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 2002. UGGÉ, Henrique. As Bonitas Histórias Sateré-Mawé – S.1, p/d 1ª edição. ZUMTHOR, Paul.Introdução à Poesia Oral. Tradução: Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. São Pulo: Hucitec, 1997. _______________. Performance, recepção, leitura. Tradução: Jerusa Pires e Suely Fenerich. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

145  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   BREVE HISTÓRICO DA ILUSTRAÇÃO EM LIVROS INFANTIS Eli Neuza Soares da Silva61 Resumo: O livro ilustrado infantil pode ser caracterizado pelo detalhe, pelo conjunto de imagens e pelas leituras da ilustração que, além de suas inter-relações com o texto, possui qualidades configuracionais e estruturais perfeitamente explicáveis e analisáveis. Ao longo de sua evolução histórica, conheceu grandes inovações, culminando com o formato atual, em que, gradativamente foi conquistando um espaço determinante, construindo sua própria história. No contexto estrutural, podemos dizer que as imagens se originam de outras. Nesse sentido, esse estudo busca traçar um panorama da história da ilustração no livro infantil. A sequência de estudos adotada para estas reflexões teve como prioridade a análise das principais influências que constituíram a linguagem da arte de ilustrar livros para crianças, assim como um estudo sincrônico das principais mudanças ocorridas nesse contexto. Palavras-chave: Imagem. Arte. Livro ilustrado.   Abstract: The illustrated children's book can be characterized by the detail, the set of images and the readings of illustration that, beyond its interrelations with the text, has configurational and structural qualities perfectly explicable and analyzable. Throughout its historical development, met great innovations, culminating in the current format, in which gradually was conquering a determinant space, building their own history. In the structural context, we can say that the images are originate from others. Thus, this study aims to give an overview of the history of illustration in a children's book. The sequence of studies adopted for these reflections had as a priority to analyze the main influences that constituted the language of art to illustrate books for children as well as a synchronous study of the principal changes occurred in this context.     Key-words: Image. Text. Art . Illustrated book.

Introdução. Ao longo da história, o ato de aprender por meio das imagens, sempre se mostrou um mecanismo de importância inquestionável para uma melhor compreensão da realidade observada, criando sentido e significado próprios, de acordo com suas vivências. Nesse contexto, a imagem pode ser concebida como uma forma de aproximação do leitor para com a obra literária, tornando-a muito mais representativa e facilitando a compreensão do mundo. Não podemos nos esquecer que a imagem de um personagem de uma história acaba, por vezes, também se transformando num símbolo, todos conhecem seu significado, mas podem retratá-lo de diferentes maneiras. A ilustração cumpre a tarefa de

                                                                                                                61

Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes (PPGLA) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), sob a orientação da Prof.ªJuciane Cavalheiro, Drª.

 

146  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   mostrar o invisível, o imaginário, de nos encantar, de trazer a tona nossas lembranças repletas de outras imagens. No entanto, tal facilidade só foi possível após muitas experiências realizadas por importantes autores literários, que buscaram em cada experimento criar novas possibilidades para a produção de obras capazes de atrair a atenção do leitor, por meio da utilização de imagens. Nesse sentido, este artigo propõe-se a fazer uma análise descritiva de acontecimentos que contribuíram significativamente para a trajetória da ilustração de livros para crianças. 1.

O que é ilustração? A ilustração possui características próprias, em que as imagens se originam de outras

imagens. Nesse sentido, e quase de maneira inexorável, a ilustração de livros infantis tem seguido essa mesma lógica. Luís Camargo afirma que a ilustração do livro infantil é relevante desde as primeiras décadas do século XX no Brasil. A obra Páginas infantis, da poetisa Presciliana Duarte de Almeida (1908), é citada na referida obra para confirmar o fato, que é assim expresso: Para mim, livro bonito/ É aquele que tem figuras,/Pra você não é, Carlitos?/- Para mim é o que tem doçuras, /E nossas almas retrata/E da terra as formosuras!/Mas a mim também é grata/ Uma gravura risonha/Com vermelho, azul e prata.../Perto d’água uma cegonha,/E, nos verdores da mata,/Um passarinho que sonha... (CAMARGO, 1995, p.11)

Para o escritor, ilustração é toda imagem que acompanha um texto, podendo ser representada por desenho, pintura, fotografia ou gráfico. “Coisas iguais podem ter nomes diferentes e coisas diferentes podem ter o mesmo nome através do tempo. É o caso da palavra ilustração” (CAMARGO, 1995, p. 28). O ilustrador e escritor André Neves afirma que é muito difícil falar sobre ilustração, principalmente quando se pensa em imagens para livros infantis. O conjunto de imagens que uma obra reúne possui uma história, uma orientação, que necessita a compreensão que entre pinceis e textos interpõe-se uma nova criação (OLIVEIRA, 2008, p.169). Compartilha dessa definição, Rui de Oliveira, ao afirmar que só haverá interesse na ilustração se ela possibilitar a criação de um novo texto visual, que não apenas configure uma versão do texto, mas que favoreça a criação de outra literatura, uma espécie de livro e imagem  

147  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   pessoais dentro do livro que se lê. A imaginação verbal e a imaginação visual devem ser o equilíbrio e a harmonia na arte de ilustrar (OLIVEIRA, 2008, p. 33). A história da ilustração possui sua própria essência, por conta disso, associar o seu desenvolvimento ao das artes plásticas seria totalmente inadequado, tendo em vista que a arte de ilustrar possui linguagem e sintaxe específicas. O que significa de fato despertar a atenção por uma determinada imagem? A ilustração – sempre vale rememorar –, diferentemente de uma pintura exposta numa galeria ou impressa num álbum, está inserida em um livro e relacionada a um texto específico, e acontece na passagem sequencial das páginas. Ou seja, ela não dispõe de um ritual de fruição e percepção comparado a quando estamos, por exemplo, diante de um quadro em um museu ou galeria. (OLIVEIRA, 2008, p.127)

O que se espera das ilustrações de um livro para crianças? Para Margaret Meek a página em um livro-ilustrado é um ícone para ser contemplado, narrado explicado, pelo expectador. Ela guarda a história até que a narração seja despertada. As palavras surgem são poucas, enredo da história está na ilustração que forma um texto polissêmico (HUNT, 2010, p.234). No que diz respeito a terminologia, Linden (2011, p. 23) afirma que os conceitos sobre livro ilustrado são pouco conhecidos e em muitos países não há um termo definido. Na França, recebe o nome de “Album” ou “livre d’images”, em Portugal “álbum ilustrado”, em espanhol “álbun” e em língua inglesa “picturebook”, “picture book” e “picture-boook”. Nikolajeva (2011, p. 23), em sua obra, adota o termo “livro ilustrado” [picturebook], para distinguir dos livros com ilustração [picture-boook] ou com imagens [books withpictures]. No Brasil, “livro ilustrado”, “livro de imagem”, “livro infantil contemporâneo” ou mesmo “picturebook” são designações que se mesclam e muitas vezes se confundem de modo geral com o “livro com ilustração” ou o “livro para crianças”. No prefácio da obra Traço e Prosa, Odilon faz a seguinte reflexão: A primeira vista pode parecer apenas falta de convenção linguística, mas de fato ainda é necessário determinar o que constitui a diferença entre um livro ilustrado e um livro com algumas ilustrações. Seus extremos são difíceis de apontar, pois uma obra cuja ilustração apareça apenas na capa não deve ser chamada de livro ilustrado, e um livro com narrativa construída só com imagens é claramente um livro ilustrado. (MORAES, 2012, p.9)

A ilustradora Márcia Széliga considera que a ilustração deve tocar a essência que em todos reside, vinda de uma mesma origem. Lugar em que a imagem se comunica em linguagem universal. Que toca a porção viva de cada leitor. Ilustrar? Ilustrar é despertar o aventureiro que existe em cada leitor (OLIVEIRA, 2008, p.181).  

148  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

2.

O processo evolutivo da ilustração As aventuras das ilustrações decorrem antes mesmo do surgimento do códice, formato

do livro que antecede o volumen. Afinal, ao se refletir sobre ilustração não há como não imaginar nossos antepassados com suas pinturas rupestres nas cavernas. E como seria o Livro dos Mortos, apenas com os hieróglifos? E o diálogo com o Buda no mais antigo livro impresso, o sutra do diamante (868, dC), sem as xilografias? No decorrer da história, é perceptível que a ilustração não foi privilégio apenas dos livros infantis. Há registros na decoração das paredes de antigos mosteiros (século IV), em cenas do Velho e Novo Testamento que ficaram conhecidas como os livros para os iletrados. Segundo Mangel (1997), estes livros ensinavam aos analfabetos a história bíblica e incutia neles a “crônica da misericórdia de Deus”. Essas imagens podiam ser lidas como se fossem palavras de um livro, e as escrituras eram compreendidas por meio da leitura dessas imagens. No século XIII, em pleno florescimento da arte gótica, as pinturas nas paredes das igrejas foram abandonadas. A iconografia bíblica transferiu-se do estuque para vitrais, madeira e pedra. No início do século XIV, iluminadores e gravadores começaram a representar as imagens em pergaminho e papel. Observando esses aspectos, Fischer chama a atenção para o fato de que: Um dos exemplos mais antigos da iconografia cristã vinculando cenas do Antigo e do Novo Testamentos a serem “lidas” simultaneamente aparece em dois painéis de portas da igreja de satã Sabina, em Roma, esculpidos em cerca de 430. Qualquer pessoa que conhecesse a Bíblia iria imediatamente reconhecer ali os milagres de Cristo em oposição aos de Moisés. Os que a não conhecessem teriam que inventar ou pedir que alguém explicasse. [...] Por esse motivo, quando solicitado a opinar sobre a decoração de uma igreja,são Nilo de Ancira (c. 430. dc) sugeriu cenas bíblicas em ambos os lados da Cruz Sagrada, as quais serviriam de livros para os iletrados, ensinar-lhes-ia A história das Escrituras e os marcaria com o selo da compaixão de Deus. (FISCHER, 2006, p.87)

Assim, não há como dissociar a história da ilustração, da história do livro e da leitura. Lyons (2011, p. 8) destaca que antes mesmo da invenção da imprensa por Gutenberg, nos anos 1440, houve mudanças na história do livro e nos modos de ler. De acordo com o autor: Uma das primeiras revoluções do livro foi a invenção do códice, originário do livro cristão dos séculos II e III, quando o livro deixou de ser um rolo, ou volumen, e tornou-se uma coleção de folhas individuais frouxamente unidas entre si. O códice era um livro com páginas a serem viradas em vez de uma longa tira de material a ser

 

149  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   desenrolada. Diferentemente da invenção da imprensa, o códice revolucionou o conceito de livro e nos deu uma nova forma material que perdurou por séculos.

Em sua pesquisa, o autor destaca que até o século XIX textos e imagens para o mesmo livro impresso eram produzidos por distintos processos e em locais diferentes. Destacavam-se nesse contexto três técnicas de reprodução de imagens: a xilografia, a gravura em aço e a litografia. A primeira permitia compor em uma mesma página caracteres e figuras. Foi com essa técnica que se realizaram os primeiros livros para crianças que continham imagens (Linden, 2011, p. 11). No caso da gravura em aço, esta proporcionava uma definição mais nítida e detalhada. Por último, a litografia, que foi inventada em 1819, pelo dramaturgo austro-alemão Johann Alois Senefelder, que consentia maior variedade textual e precisão, uma vez que o artista podia desenhar diretamente na placa de impressão. Os jornais da época davam preferência à litografia, enquanto que nas ilustrações dos livros impressos empregavam-se os três métodos de reprodução, às vezes em um único volume. Sobre as possibilidades técnicas da ilustração, Oliveira descreve: Inicialmente, a reprodução das ilustrações em livros eram feitas por meio de xilogravuras, a partir do original em papel fornecido pelo artista. As artes eram transferidas para a madeira ou, então, desenhadas sobre elas, para depois serem trabalhadas pelo gravador. Nesse último caso, havia o inconveniente da perda, no ato de gravar do original do artista. Porém, o maior problema era a excessiva padronização, tão visível nas ilustrações de livros daquela época, sem contar que essa “tradução” visual do desenho original do ilustrador frequentemente era realizada por de um gravador (OLIVEIRA, 2008, p. 17).

As subdivisões existentes nos processos de gravação se davam pelo fato de os gravadores possuírem aptidões diversas, ou seja, havia os especialistas em figuras humanas, em paisagem, animais. Não havia uma unidade estilística que respeitasse o modo e o estilo do trabalho do ilustrador. Mesmo com alguns entraves, é inegável o grande desenvolvimento ocorrido nos processos de captura e reprodução de imagens. Tais avanços tecnológicos permitiram que os ilustradores pudessem inovar suas criações. Linden (2011, p. 15) chama a atenção para o fato de que o surgimento do livro ilustrado moderno ocorre em 1919 com a publicação da obra Macao et cosmage, do ilustrador e pintor francês Edward Louis Warschawsky Leon, conhecido como Edy-Legrand. A autora destaca que a obra inaugura a inversão da relação vigente, a predominância do texto sobre a imagem no livro com ilustração, em que o olhar do jovem leitor é orientado para as imagens, o formato quadrado implica uma diagramação que  

150  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   as coloca em evidência. O texto é curto, manuscrito, não raro envolto pelas cores das imagens. As primeiras publicações especificamente destinadas às crianças continham poucas ilustrações. Segundo Cunha (2003, p. 22), a literatura infantil começa a se firmar por volta do século XVIII, após a consolidação da burguesia que, através de novos valores familiares e um olhar sensível à infância, estabeleceu novas formas culturais e de educação. Houve, nesse momento, uma reorganização do ensino e a fundação do sistema educacional burguês. Antes disso a infância não era considerada da maneira que a conhecemos, o mundo da criança não era visto como um espaço separado. Elas eram vistas como adultos em miniaturas e participavam das mesmas atividades socioculturais, inclusive lendo os mesmos livros. Com a estabilização do sistema burguês, a criança começa a ser vista como um ser diferente do adulto, com necessidades e características próprias. De acordo com Regina Zilberman (apud CUNHA, 2003, p. 23), com o novo olhar para a infância, houve maior união familiar, o que gerou os meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e manipulação de suas emoções. Evidencia-se uma forte ligação entre a literatura infantil e a pedagogia, com a preocupação de se desenvolver uma literatura para crianças e jovens com intenções formativas e informativas. Não havendo livros, nem histórias dirigidas especificamente a elas, não existiria nada que pudesse ser chamado de literatura infantil. Assim, as origens da literatura infantil estariam nos livros publicados a partir dessa época, preparados especialmente para crianças com intuito pedagógico, utilizados como instrumento de apoio ao ensino. No capítulo “Conhecimento para todos”, Lyons afirma que os livros destinados às crianças eram de cunho educacional (Abecedários simples, livros de conduta) e as ilustrações retratavam com frequência animais, plantas e letras antropomórficas. Segundo o autor, até o século XIX, as crianças oriundas de países com predominância da língua inglesa, muitas vezes aprendiam a ler a partir de um “livro de chifre”, um pedaço de madeira pequeno e achatado, com uma folha de papel protegida por uma folha fina e transparente de chifre, que geralmente continha o alfabeto (uma lista de sílabas elementares composta de duas letras cada), e uma prece como o Pai Nosso (LYONS, 2011, p.186). O livro Orbis Sensualium Pictus, de 1658, de Johann Amos Comenius, obra criada com o intuito de ensinar latim através de gravuras, é considerado o primeiro livro didático ilustrado para crianças. Nele é encontrado um ABC com imagens de animais. O texto traz os ruídos característicos dos bichos, para ensinar o som de cada letra (LINDEN, 2011, p.11). Segundo Hunt (2010, p.96) essa obra, assim como, os Escritos Sumérios de 2112 a.C e  

151  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Tratado sobre o astrolábio, c.1391, de Geoffey Chaucer, deveriam ser excluídas de um estudo prático dos livros para crianças, para o autor, mesmo se tratando de um livro infantil, já que foi destinado a uma criança específica, a infância daquele período é tão díspar, que, hoje esses livros só seriam interessante apenas para as prateleiras dos sebos ou lojas de livros raros e antigos. Oliveira (2008,p14), afirma que publicação de livros, especificamente para crianças abrange período compreendido entre o século XIX e a década de 1930, onde historicamente observa-se que a ilustração de livros se caracteriza como arte, como linguagem de massa, e como realidade industrial e profissional. O autor destaca três motivos para adotar essa delimitação. O primeiro é o inegável aspecto industrial, pois o livro para crianças com o formato que conhecemos hoje, se consolidou tanto sob o aspecto gráfico, conceitual no período vitoriano. O segundo motivo é que a partir do século XIX a ilustração do livro infantil começa a estabelecer códigos que permeiam essa arte atualmente. Destaca-se que nesse século outros países também publicavam livros infantis, mas o livro como objeto de arte, entretenimento e propagação de valores morais e educacionais foi consequência direta da Revolução Industrial, pelas grandes transformações econômicas e sociais oriundas do desenvolvimento do comércio e dos transportes de mercadorias o que contribuiu para a comercialização e difusão. A esses fatores se agregam também os processos educacionais da época que apesar do conservadorismo começaram a visualizar, compreender e aceitar a criança com ser único, possuidor de características e necessidades próprias e não um adulto em miniatura. Tais posturas trouxeram profundas influências na literatura e ilustração de livros infantis. Além desses aspectos, o surgimento de uma nova classe de trabalhadores assalariados e a consolidação de uma classe média tornou-se elemento determinante para a expansão dos livros ilustrados para pequenos leitores. Destaca-se que mesmo com todo tradicionalismo desse momento, a literatura e ilustração infantil como entendemos hoje, originou-se nesse período. No decorrer do século XIX, os títulos infantis tornaram-se famosos textos de leitura em sala de aula. A esse respeito Lyons destaca que as primeiras ilustrações passaram a se popularizar, inspirando fantasias e contos de fadas para crianças, com seus animas falantes e objetos mágicos (LYONS, 2011, P.186). Dentre as principais obras pode-se destacar os contos de fadas de Hans Christian Andersen, uma série de histórias originais, que incluía modernos clássicos dos contos de  

152  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   fadas, como a Pequena Sereia, e A princesa e o grão de ervilha, publicado em 1835-1845, que gradualmente se tornou um sucesso internacional. Ainda nessa linha de observação, verifica-se que em 1865 Lewis Carroll publicou As aventuras de Alice no País das Maravilhas e foi imediatamente aclamado; Avventure di Pinocchio (1886), de Carlo Collodi, foi uma série de sucesso na Itália antes de se transformar em um favorito global na forma de livro. (LYONS, 2011, p.186) Os livros infantis tornaram-se, assim, um componente essencial no mercado do livro. Editoras passaram a se preocupar com textos para crianças, bibliotecas públicas inauguraram salas específicas para o universo literário infantil. A primazia da ilustração enquanto arte provém das novas técnicas de impressão que surgiram no início do século XX. Antes disso, a conservação dos originais das ilustrações era impossibilitada devido aos processos arcaicos de impressão empregados. Esses originais começaram a ser valorizados e a circular pelas galerias de arte. E os livros infantis tornaram-se um símbolo de bom gosto. 2. Últimas palavras O trajeto que percorremos teve como objetivo nos conduzir a um entendimento maior sobre a Arte de ilustrar. Houve um longo caminho até que a ilustração pudesse ganhar prestígio. Até metade do século XX, as ilustrações das obras literárias infantis foram secundárias. O livro ilustrado, caracterizado pela concisão ou pela ausência de texto, não podia ser visto com seriedade em uma cultura que subestimava o valor da imagem. Hoje, as páginas que se abrem aos leitores são outras. Não apenas o uso de códigos visuais, mas a rapidez e a fragmentação das narrativas, a simultaneidade de ações, a metalinguagem, recursos típicos de grande parte dos atuais livros parecem vir ao encontro dos interesses dos leitores, sejam eles leitor criança ou leitor adulto. Para Fischer, atualmente a humanidade está além da própria linguagem articulada transcendendo o tempo e o espaço em virtude desse extraordinário hipersentido chamado leitura. A exploração dos recursos visuais na literatura infantil conduz ainda a uma nova fronteira: a dos livros eletrônicos, ou e-books. O desafio para as editoras, escritores e ilustradores é usar as possibilidades da tecnologia sem transformar o livro ilustrado em um longo jogo, num objeto que rola, pula, desconecta. O gerenciamento focado da informação por si conduz a leitura à sua finalidade máxima: conhecimento. Informações que não fornecem conhecimento são dispensáveis (FISCHER, 2006, p. 315). Toda a imagem tem uma história pra contar. Compreender esse processo é se transportar para um mundo além das palavras. A ilustração de livros é a imagem do não  

153  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   representado. A ilustração, desde que bem executada, no sentido de não apresentar uma única verdade, traduzindo o texto, mas mostrar novas possibilidades ao leitor, independente da faixa etária empregada, será sempre um recurso lúdico para conquistar o leitor e conduzi-lo a uma prazerosa viagem a um mundo desconhecido. REFERÊNCIAS CAMARGO, Luís. Ilustração do Livro Infantil. Belo Horizonte, MG: Ed. Lê, 1995. CHARTIER, Roger. A aventura do Livro: do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo Carmello Corrêa de Morais. São Paulo: Editora UNESP, 1998. CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura infantil - teoria e prática. 18ª ed. São Paulo, Ática, 2003. FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004. FISCHER, Roger Steven. História da Leitura. Tradução Claudia Freire. São Paulo: Editora UNESP, 2006. HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. Ed. Rev. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LINDEN, Sophie Van Der. Para ler o livro ilustrado. Tradução: Dorothée de Bruchard. São Paulo: Cosac Naify, 2011. LYONS, Martyn. Livro: uma história viva. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2011. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MORAIS, Odilon, HANNING, Rona, PARAGUASSU, Maurício. Traço e prosa: entrevistas com ilustradores de livros infantojuvenis. São Paulo: Cosac Naify, 2012. OLIVEIRA, Ieda de. O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008. OLIVEIRA, Rui de. Pelos jardins de Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens. Rio de janeiro: Nova fronteira, 2008. SIMÕES, Lucila Bonina Teixeira. Literatura infantil: entre a infância, a pedagogia e a arte. Cadernos de Letras da UFF Dossiê: O lugar da teoria nos estudos linguísticos e literários nº. 46, p. 219-242. NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. Tradução: Cid knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2011.  

154  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Interpretação Iconológica da Fotografia O guerreiro Xingu de Pedro Martinelli Fabio Nutti Marangoni62 Universidade do Estado do Amazonas - UEA Resumo Este artigo propõe descrever e compreender as três etapas do processo descritivo, analítico e interpretativo de uma obra de arte, no caso em questão, da fotografia O guerreiro Xingu, produzida por Pedro Martinelli em Amazônia, o povo das águas. A disciplina que aborda a compreensão intrínseca da obra de arte é, a Iconologia, ciência que estuda os ícones, as imagens representadas em diversas superfícies de impressão e que tem como objetivo inerente, aplicar determinadas regras de descrição à obra de arte (a etapa pré-iconográfica); da classificação, teorização e reconstrução dos temas históricos comparados aos motivos artísticos da obra de arte (a etapa iconográfica) e da interpretação e simbolização de múltiplas significações e significâncias da obra artística (a etapa iconológica). A Iconologia, como nova disciplina humanística, tem suas origens sedimentadas no início do século XX, através do historiador e crítico de arte alemão Erwin Panofsky. Complementar a visão estruturalista e metódica de análise da obra artística de Panofsky, emerge Aby Warburg, considerado o pai da iconologia e antropólogo das culturas humanas, adepto de uma visão humanista, o historiador de arte hamburguês enxerga a obra artística como um objeto de múltiplas conotações e expressividades comunicacionais. Desenvolve o conceito de “fórmulas de patético” (as Pathosformeln) emanado pela obra artística e utiliza-se de métodos de pesquisa bipolar, de dois princípios antagônicos, à maneira de duas categorias nietzschianas, do conteúdo grego e apolíneo ao conteúdo bárbaro e dionisíaco. Essa tensão característica do princípio metódico de Warburg, propicia um campo fértil e renovável de compreensão de uma obra de arte. Martinelli em sua obra Amazônia, o povo das águas, possivelmente, conduziu seu ensaio fotográfico convicto de que a gênese da arte é vinculada ao dualismo do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco, da razão e do sentimento, da clareza e da escuridão, da contemplação e do transe. (NIETZSCH apud SAMAIN, 2012, p.81) Palavras-chave: Iconologia, iconografia, representação artística, fotografia, Pedro Martinelli.

Introdução Esta aqui é uma história inédita da Amazônia. Por quê? Porque a Amazônia até hoje foi vista pelo Brasil e pelo mundo inteiro por três temas principais: fauna (bichos maravilhosos, araras, onças, os animais, insetos, tudo perfeito), pelos índios (preferencialmente fantasiados para o Quarup; essa é a ótica que se tem do índio, fantasiado, colorido) e pelas imagens aéreas magníficas, das Anavilhanas (aquela cena clássica do tapete verde, como se isso fosse o paraíso). (MARTINELLI, 2000, p. 11)

                                                                                                                62

 

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes, bolsista FAPEAM.

155  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Martinelli busca em sua obra, retratar a Amazônia não pelo viés da Amazônia mitológica, da perspectiva eurocêntrica que nós sulamericanos herdamos de nossos antepassados, não pelo ponto de vista do estrangeiro, ou até mesmo do próprio brasileiro, que enxerga a região amazônica sob o olhar retiniano, o olhar banalizado, amarrado, reduzido e cristalizado em pré-conceitos propagados e reverberados pelos grandes meios de comunicação de massas, mas sim, pelo viés humanista, preocupado em desvandar o caboclo da Amazônia. Pedro Martinelli, o renomado fotojornalista, que a mais de trinta anos havia deixado para trás o emprego de fotógrafo fixo no jornal O Globo em favor de uma nova experiência profissional, vislumbrou uma notável oportunidade de se expressar artisticamente. Comportando-se como um antropólogo visual, decidiu desbravar a região amazônica para se dedicar à documentação do cotidiano do ribeirinho amazônida. Ele se propôs a investigar a realidade, a cultura do povo amazônico, junto a ele, sentir e retratar suas necessidades e anseios através da fotografia. Revelar o sujeito amazônico com identidade e alma própria, sob a ótica das objetivas e através do processo de construção da imagem fotográfica. Uma fotografia tomada pelo espírito do observador selvagem (ANDRADE, 2002, p. 25), o autor, o fotógrafo-pesquisador como agente e paciente na criação do documento fotográfico como fonte primária para o estudo humanista e antropológico de um povo ainda pouco conhecido e ignorado por grande parte da população mundial. Foi justamente como um observador selvagem, que Martinelli, deixou-se penetrar por uma cultura distinta da dele, sua pesquisa fotográfica exigiu uma metodologia de trabalho de campo segundo a qual o fotógrafo não poderia se colocar do lado de fora da experiência social pesquisada, mas vivenciá-la e estar integrado a ela, experimentá-la como um ritual de iniciação. Não é preciso ser selvagem para pensar selvagem, mas é necessário ver o mundo com olhos livres, libertos das amarras culturais, do olhar estreito do homem eurocêntrico confinado a sistemas de valores pré-determinados. Ver com olhos livres, é ver com um olhar curioso, de espanto e com uma vontade inesgotável de conhecer o desconhecido. O olhar selvagem, característica marcante de todo observador selvagem é como o de um artesão que transforma o objeto e a realidade a sua volta. São olhos que não se cegaram para o ordinário, que ainda podem enxergar transgredindo e reconstruindo a realidade em obra artística, compondo outros significados que não apenas funcionais e práticos. O antropólogo, o etnólogo, o artista, assim como o fotógrafo Pedro Martinelli, identificados com este olhar selvagem, ao se depararem com seu objeto de pesquisa, penetram e percebem os diversos sentidos do objeto artístico inserido em uma realidade mutante, possível de ser ressignificada, desvelada em significâncias multifacetadas.  

156  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Neste sentido, vendo com olhos livres, Martinelli libertou-se das amarras de uma mentalidade moldada por gerações de cartesianismo, e pôde então, produzir seu objeto de pesquisa com base numa metodologia de observação participante, o sujeito comumgado com o objeto. O fotógrafo e seu olhar único, singular, preocupado em se redescobrir no outro e o outro em si mesmo, edificou um processo solidário de construção do conhecimento, de certa forma, uma licença ao inconsciente, ao imaginário e ao delírio. Foi com este comportamento que ele percorreu durante as três últimas décadas do século XX, a Amazônia “encantada”. Outra questão extremamente relevante no ensaio fotográfico de Pedro Martinelli é o resgate de parte da memória de um povo ignorado e subjulgado pela “neo-aristocracia” brasileira e por extensão, mundial. Neste sentido, o pesquisador e historiador alemão Andreas Huyssen faz considerações pertinentes sobre os fatores atuais que constroem uma civilização excessivamente dedicada à memória e atormentada pelo medo do esquecimento. Diz ele Se o sentimento de tempo vivido está sendo renegociado nas nossas culturas de memória contemporâneas, não devemos esquecer que o tempo não é apenas o passado, sua preservação e sua transmissão. Se nós estamos, de fato, sofrendo de um excesso de memória, devemos fazer um esforço para distinguir os passados usáveis dos passados dispensáveis. Precisamos de discriminação e rememoração produtiva, e, ademais, a cultura de massa e a mídia virtual não são incompatíveis com esse objetivo. Mesmo que a amnesia seja um subproduto do ciberespaço, precisamos não permitir que o medo e o esquecimento nos dominem. Aí então, talvez, seja hora de lembrar o futuro, em vez de apenas nos preocuparmos com o futuro da memória. (HUYSSEN apud SAMAIN, 2012, p.147)

Há um contraste abissal entre o referente fotográfico do guerreiro Xingu na fotografia de Martinelli, a tradução concreta de um traço real e peculiar, petrificado num determinado espaço e momento histórico, carregado de múltiplos significados e significâncias atemporais e anacrônicas, se comparado com o instante histórico no qual vivemos, dos ícones banais, estéreis e infinitamente reprodutíveis, mergulhados no abismo alienante do cirberespaço.

O Guerrreiro Xingu como espelho do real

 

157  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Fotografia 1 – O guerreiro Xingu

  Fonte: MARTINELLI, Pedro. Amazônia, o povo das águas. 2. ed. São Paulo: Terra Virgem, 2000. p. 217. Fotografia feita no Xingu, em outubro de 1995.

  Em pleno século XIX, na esteira do Romantismo, surge em 1839, a fotografia através do então inédito processo ótico-químico conhecido como Daguerreótipo de Louis Mandé Daguerre, desenvolvendo-se por meio de diversas técnicas de reprodução de imagens fotográficas. Os artistas plásticos da época, prontamente se exaltam contra o domínio crescente da indústria técnica na arte, posicionam-se contra um suposto afastamento da criação e do criador, contra a fixação do “real” em detrimento da intuição, das riquezas do imaginário, das “realidades interiores”. Inúmeros pintores naturalistas tornam-se obrigados a trabalhar com a nova modalidade técnica, entendida à época como a “cópia fiel” da natureza. Durante o século XIX, a sociedade européia converte-se à idéia da perfeição imitativa da fotografia. Vêem esta nova técnica como uma impressão fiel do “real”. Encantam-se com o realismo fotográfico, a fotografia como espelho do real, emerge então, o discurso da mimese e se faz prevalecer principalmente entre os mais abastados da realeza européia. Muitos álbuns de família afloram

 

158  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   no continente europeu e americano, ícones fotográficos passam a facinar e a perpetuar no imaginário coletivo. No livro Estudos em Iconologia, de 1939, o historiador e crítico de arte Erwin Panofsky, “nadando contra a corrente” do discurso realista, elabora idéias originais sobre os três níveis de compreensão da obra artística, além de apresentar a clássica distinção entre o conceito de iconografia como o estudo do tema, do assunto, e seu diálogo com os motivos artísticos (as formas, cores, traços, linhas, composições), e posteriormente, o conceito de iconologia como o estudo, a interpretação intrínseca do conteúdo da obra artística, a descoberta de valores simbólicos carregados de significâncias que até mesmo o próprio autor da obra de arte pode ignorar ou desconhecer. Os predominantes valores românticos do início do século XIX, e mais tarde, a perspectiva naturalista e realista que pemeiam a sociedade européia durante o transcorrer do século XIX, se desfiguram em favor de modelos expressionistas e abstratos de percepção e criação artística vindoura. A fotografia contribuiu de forma decisiva para a libertação das artes plásticas de sua obsessão pela semelhança. A partir do século XX, novos estudos se desenvolvem no campo da antropologia visual e da semiótica, principalmente, pelo filósofo e semiólogo norteamericano Charles Sanders Pierce, que em seu livro Semiótica e Filosofia, descreve uma concepção de signo como sendo qualquer coisa que representa alguma coisa para alguém. Para Pierce, o signo é um elemento em que se relacionam três outros elementos chamados de representamen que é esta coisa que representa, o objeto que é esta coisa que é representada, e o interpretante que é uma terceira coisa criada na mente do interprete. Ao se transportar o conceito de signo em Pierce para a ontologia da imagem fotográfica, nota-se um signo elaborado a partir de uma tríade, onde o representamen, remete ao índice (a fotografia como traço de um real: o discurso do índice e da referência), o objeto ao ícone (a fotografia como espelho do real: o discurso da mimese) e o interpretante ao símbolo (a fotografia como transformação do real: o discurso do código e da desconstrução). (DUBOIS, 1993, p. 26) Retornando o olhar para a leitura da fotografia O guerreiro Xingu de Pedro Martinelli, e sob a ótica de Panofsky, verifica-se, num primeiro estágio de reconhecimento da obra artística, a descrição dos significados primários (naturais), compreendidos pelos significados factuais e expressionais vistos e descritos no estágio pré-iconográfico. Nota-se, claramente, na figura do índio, um plano fechado no personagem indígena, próximo do close-up, revelam-se as formas do guerreiro em contra-luz, corpo magro e esguio segurando seu antigo retrato, feito em 1973, ambos em preto e branco, valorizando os traços corporais e seu significado expressivo tencionado pelas rugas na testa e um certo “ar” de tensão, revela-se um  

159  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   personagem compenetrado. Um duplo de olhos fixos fitando a câmera. Nota-se o recurso da metalinguagem presente na fotografia menor segurada pelo índio da imagem maior. O guerreiro Xingu, índio Kôkriti, posando para foto, em frente a uma aldeia indígena. Em segundo plano, vê-se alguns chapéus de palha, assentamentos indígenas fora do campo de foco, mesmo assim, designando e contextualizando os motivos artísticos da foto e descrevendo também seus significantes imagéticos impressos, sem distrair a atenção visual do primeiro plano focalizado no personagem central da fotografia. A fotografia emerge assim como ícone, revela-se e duplica-se em sua superfície de inscrição, instaura-se como campo visível, perceptível do senso comum, e a fotografia O guerreiro Xingu, se reproduz ao infinito. Materializa-se em semelhança e similaridade com seu objeto, o guerreiro Xingu e seu reflexo estampado na imagem e reproduzido como ícone fotográfico. A metamorfose, de índio Kôkriti à guerrreiro Xingu Se, de modo geral, o discurso do século XIX, sobre a fotografia era da semelhança, da cópia do “real”, do realismo estético nas artes em geral, pode-se dizer também de modo global, que o século XX incorpora o discurso da transformação do real pela fotografia, a desconstrução dos códigos de representação da imagem fotográfica. Uma importante vertente estruturalista já comentada anteriormente, como o próprio Charles Pierce, Panofsky, além de Umberto Eco e Roland Barthes, entre outros filósofos, semiólogos e pensadores da arte, constituiram um movimento crítico de denúncia do “efeito real” da imagem fotográfica. Diversos estudos se insurgem contra o discurso da mimese e da transparência e ressaltam que a fotografia é codificada sob diversos pontos de vista, da perspectiva cultural, histórica, sociológica, antropológica, psicológica e estética. Prosseguindo em nossa jornada, rumo à tentativa de leitura da fotografia O guerreiro Xingu, nos deparamos com o segundo estágio de análise de uma obra artística, como atesta Panofsky, a etapa de identificação iconográfica, a qual consiste em compreender os significados secundários (convencionais) de uma determinada obra. Neste nível, avança-se um degrau e traz-se à tona a equação cultura, os fatos e temas históricos reconhecidos no espaço-tempo produzidos pelo autor da obra, e concomitantemente amalgamado com os motivos artísticos emergidos da obra fotográfica em questão. Historicamente, o índio, guerreiro Xingu, duplamente retratado por Pedro Martinelli, em seu caráter metalinguístico evidenciado na obra, acabara de ser transferido de sua terra natal logo após o contato com o “homem branco”. Seu assentamento original ficava na margem esquerda do rio Peixoto de Azevedo, afluente do rio Xingu, na divisa entre Pará e  

160  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Mato-Grosso. Hoje, neste local passa a rodovia Cuiabá-Santarém, entre as cidades de Matupá e Peixoto de Azevedo. Fato ocorrido no início da década de 70, sob regime militar que se gabava de viver o “milagre econômico”, implantava na Amazônia o chamado Plano de Integração Nacional e pretendia conduzir o país à sua vocação de “Brasil Grande”, mas para isso, literalmente, passou por cima dos nativos brasileiros, os “índios gigantes”, também conhecidos por índios Panará, ou “tribo Kranhacãrore”, viviam exatamente no traçado da rodovia Cuiabá-Santarém. Os índios, que habitavam o local, se viram obrigados a fugir dos brancos, mas sem antes, e de forma valente, tentarem atingir com flexas os aviões das expedições que sobrevoavam suas aldeias. Um quarto de século depois, os herdeiros daqueles destemidos índios, agora parecem ter conquistado aquelas aeronaves. Muitos deles viajam para outras regiões sob a tutela da Funai, que em 1975, planejou uma ação de remoção dos índios para o Parque Nacional do Xingu, assentando-os em seu novo território, sendo mais respeitados pelos brancos e com alguma infra-estrutura disponível. Mesmo assim, muitos índios Panará morreram durante esse processo de reconquista de terra (MARTINELLI, 2000). Os “Kranhacãrore” viveram uma das maiores tragédias da história das tribos indígenas brasileiras do século XX. Em apenas dois anos, os quase seiscentos índios que compunham a tribo no momento do contato, foram reduzidos a setenta e nove pessoas, já enfraquecidas por um coquetel de doenças, como a gripe, o sarampo, a malaria e até mesmo a AIDS. Crianças morriam de fome e doenças enquanto assistiam seus pais padecendo e definhando. Somente depois de alguns anos é que os remanescentes e descentes dos Panará perceberam que sua antiga moradia era agora apenas uma referência na memória dos últimos sobreviventes (MARTINELLI, 2000). Retornando o olhar para a fotografia O guerreiro Xingu, nota-se uma postura contundente e crítica de um índio destemido que se propôs a preservar e resgatar sua identidade, e consequentemente, de sua comunidade através das lentes de Pedro Martinelli. Ao posar deliberadamente para a câmera, o índio pôde revelar sua “verdade autêntica”, o traço marcante do guerreiro plasmado na imagem. Através do dispositivo fotográfico, o personagem da foto alcançou sua realidade intrínseca, mais verdadeira que ao natural. Diante da objetiva, posando para a foto, o guerreiro Xingu revelou-se integralmente em sua própria imagem, de como gostaria de ser retratado. Coaduna-se com essa questão a afirmação de Barthes: “Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu

 

161  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele serve para exibir sua arte” (1984, p. 27). O anacronismo do referente guerreiro Xingu Para se compreender o anacronismo emanado pelo referente Xingu na fotografia de Pedro Martinelli e sua complementar característica de metalinguagem revelados na obra através dos elementos plásticos constituintes, torna-se necessário, antes de tudo, o entendimento da ontologia da imagem fotográfica, a partir do “coração do dispositivo”, a definição da própria natureza, da essência, do nível mais elementar, da imagem fotográfica como traço. Uma impressão luminosa, mais precisamente como o traço, fixado num suporte bidimensional sensibilizado por cristais de haleto de prata, de uma variação de luz emitida ou refletida por fontes situadas a distância num espaço de três dimensões. (DUBOIS, 1993). Em sua noema, disse Roland Barthes que a foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real que estava ali, são partes das radiações que vêm me tocar, eu que estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios atrasados de uma estrela. (BARTHES, 1984). A fotografia é antes de qualquer outra aplicação representativa, da ordem da impressão, do traço, da marca, do registro. Nesse sentido, a imagem fotográfica pertence à categoria dos signos indícios, chamado pelo filósofo e semiótico Charles Sanders Pierce de “índice”, por oposição a “ícone” e a “símbolo”. Pierce considera que o ícone, assim como o símbolo são signos “mentais” e “gerais”, porque são separados das coisas, enquanto que o índice será sempre “físico” e “particular” pois está unido às coisas. Os índices são signos que mantêm ou mantiveram num determinado momento do tempo uma relação de conexão real, de contiguidade física, de copresença imediata com seu referente, enquanto que os ícones se definem por uma simples relação de semelhança atemporal, e os símbolos por uma relação de convenção geral. Na “pele” da imagem fotográfica, O guerreiro Xingu, nota-se que, através da emanação luminosa do referente Xingu, Martinelli revela o anacronismo inserido nos recortes temporais através da guilhotina do corte, o golpe do instante fotográfico plasmado na imagem. Evidencia-se aqui, a metalinguagem, petrificada está a foto da foto, a figura do guerreiro Xingu posando para foto, mostrando uma outra foto, sua foto-retrato feita pelo mesmo autor, pouco tempo antes de ser retirado a força pelas instituições federais brasileiras. Um elemento explícito de metalinguagem, o referente emanado e posteriormente plasmado, recortado em dois tempos e

 

162  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   espaços

diferentes.

Reproduzido

e

copiado

num

terceiro

momento

e

espaço,

metamorfoseando-se em ícone. Martinelli, na fotografia O guerreiro Xingu, resgata parte da memória ao reencontrar um dos remanescentes que com sua foto-retrato em mãos, e sendo novamente fotografado, descreve na imagem seu referente em duplicidade temporal e espacial, tanto em processo de imersão da memória criada pela dualidade temporal da combinação de duas imagens petrificadas em uma só, como também pelo processo de emanação do referente fotográfico, morto e ao mesmo tempo ressuscitado, plasmado em três épocas distintas. Ao olhá-la, o observador da obra situado no terceiro instante de reaparição do referente, agora enxerga a fotografia como um ícone indicial. Vivencia-se dessa forma, o guerreiro Xingu representado na obra sob o efeito da mimese, enquanto cópia do real por semelhança física, e como índice, reapresentado em metalinguagem, impresso e evocado em momentos distintos. O traço referencial do índio novamente “esculpido” na superfície da obra. Na era do simulacro virtual Mergulha-se hoje na era do “simulacro virtual”, da tirânica e massificante reprodutibilidade técnica, sedimentada pelo modelo de produção e de consumo de bens culturais e econômicos da pós-modernidade capitalista, alimentado pelos grandes veículos de comunicação de massas e por extensão pela própria internet através de suas redes sociais, responsáveis por reforçar e reproduzir uma estética social, econômica e cultural replicante e alienante. Esta estética capitalista de reprodução em massa de “produtos replicantes”, é armazanada e cristalizada no inconsciente coletivo do público receptor. Infindáveis “ícones fetichistas” são criados pelo modelo vigente, sendo expostos e replicados pelos grandes midias. Como produto deste modelo, resultam os “ícones replicantes” e estéreis, sendo reproduzidos e projetados no campo da “memória virtual”; a reprodução de “ícones replicantes” em tela midiática, como em outros campos do ciberespaço, alojam-se em “memória real”; “ícones replicantes” plasmados no inconsciente do público receptor. Assim sendo, vivencia-se hoje, em profusão virtual o bombardeamento de ícones insignificantes, e o desenvolvimento de uma sociedade alienada, erigida sob a configuração de registro do simbólico, a compreensão da realidade a partir de elementos por ela expostos, questão alusiva ao estudo do inconsciente em Lacan, o elo psiquico-cognitivo. (LACAN, 1974) Em contrapartida, a fotografia documental de Martinelli rompe com o modelo estético replicante e alienante de produção em massa. Ele propõe um modo de produção e  

163  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   interpretação humanista da obra de arte, exalta a fotografia de caráter antropológico preocupada em compreender o objeto de estudo, vivenciá-lo, experimentá-lo em sua gênese, a fim de revelar novos significados e significâncias, com conteúdo e forma singulares. Inspirado pela fotografia direta, a straight photography, uma concepção estética oriunda da fotografia de imprensa da Revista São Paulo, publicada em dezembro de 1935, e de O Cruzeiro, a partir da reformulação editorial da década de 1940, apresentavam a seus leitores, uma verdadeira pedagogia visual, alicerçada em recursos como primeiros planos, composições oblíquas, ângulos superiores e ângulos inferiores. (SAMAIN, 2012, p. 177). Em meados do século XX, surgem outras fontes de iluminação artística que chamam a atenção de Martinelli, como a revista Íris e o Foto Cine Clube Bandeirante. Eles abandonam a concepção pictorialista da fotografia, adepta de contornos suaves, iluminação atenuada, perspectiva atmosférica e leves desfoques, em favor da straight photograph; um modelo de construção de imagem objetiva e documental, assim como é apresentada a fotografia O guerreiro Xingu, revelando-o da forma mais objetiva possível, com ênfase no primeiro plano, foco no personagem principal, com luz construtora de formas e tomadas precisas. O fotógrafo é quem seleciona o motivo, domina a proporção de luz e sombra e o contraste geralmente acentuado entre ambas. Planeja a composição no visor da câmera, avalia a realidade que quer revelar, constrói o enquadramento antes do “click”, tendo como resultado imagens intencionais. Ele é mais importante que seu equipamento, domina a expressão e o significado da imagem que retrata. A fotografia antropológica, documental e singular de Pedro Martinelli, revelada pelo guerreiro Xingu, respeita e eleva o valor ímpar de uma obra artística despreocupada em seguir modelos de valores universalistas. É uma obra de resistência estética, social e política. Valoriza a fotografia como transformação do real, a desconstrução de códigos préestabelecidos são redescobertos através da imagem. Propõe uma estética fotográfica e artística diametralmente oposta aos valores universalistas disseminados pelo modo de produção replicante de bens culturais do capitalismo pós-moderno. A singularidade do guerreiro Xingu, transcende em seu espaço-tempo, ele é único, inesquecível, atesta que esteve de corpo presente num determinado contexto histórico, clamando por existência, torna-se inseparável de sua experiência referencial, do ato que o funda, da fotografia de Martinelli.

 

164  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   REFERÊNCIAS ANDRADE, Roseane de. Fotografia e antropologia: olhares fora-dentro. São Paulo: Estação Liberdade; EDUC, 2002. BARTHES, Roland. A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Tradução de Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução Marina Appenzeller. Campinas, SP : Papirus, 1993. (Série Ofício de Arte e Forma) GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das letras, 1989. LACAN, Jacques. RSI. O seminário 20. 1974/1975. MARTINELLI, Pedro. Amazônia, o povo das águas. 2. ed. São Paulo: Terra Virgem, 2000. p. 217. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976. PIERCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. São Paulo: Editora Cultrix, 1972. SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.

 

165  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Clarice Lispector de papel63 Fabricio Magalhães de Souza (Seduc-AM/UEA)64

Resumo: O renovado interesse sobre a vida e a obra de Clarice Lispector vem ao encontro de uma nova tendência literária: transformar escritora em uma personagem (Clarice, 1997, de Ana Miranda) e reescrever seus personagens (Personagens reescritos, 2012, organizado por Luis Maffei e Mayara Guimarães). Esta é não só uma das possíveis formas de tratar com o arquivo pessoal/literário clariceano, mas de reinterpretá-lo à luz da extratextualidade, da metaficção biográfica (historiográfica) e da biografia como gênero híbrido entre realidade e ficção. Dentro desse contexto, alguns textos podem se tornar esclarecedores ao iluminar uma teia textual de diálogos onde aparece, primeiramente, a Clarice cronista que, ao escrever, faz confluir a escrita da jornalista com a da contista, como ocorre exemplarmente em Mineirinho, crônica escrita em 1962 onde se pode visualizar mais do que o registro e comentário de um fato; ou pelo menos nas aberturas das biografias escritas por Nadia Batella Gotlib (Clarice: uma vida que se conta, 2011) ou Benjamin Moser (Clarice,, 2011) que, além de lançarem luz em aspectos diversos da biografia de Lispector, levantam um importante questionamento: o processo de ficcionalização da escritora, o que, em tese, pode dizer que a Clarice das biografias é também uma personagem. O texto sobre a personagem de ficção de Antonio Candido é importante para testar essa hipótese. Aliás, esse empreendimento é levado a cabo por Ana Miranda, e os personagens também não escapam desses movimentos: são extraídos de seus livros, vão para outras experiências de escritura, conforme textos que reescrevem, por exemplo, a Macabéa de A hora da estrela [1977], na linha dos extratextos.

Palavras-chave: Clarice Lispector – arquivos – biografia – personagen(s) 1. Um arquivo em processo de ficcionalização A obra e o arquivo de Clarice Lispector (1920-1977) têm suscitado duas tendências de produção editorial: uma linha de estudo crítico, que se debruça sobre os temas da epifania e do mal, por exemplo, e uma outra ficcional, que transforma escritora em personagem e que reescreve seus personagens (essa tendência é a mais recente). A visitação (visada) crítica e criativa ao arquivo tem possibilitado o raiar dessa Clarice de papel e desses personagens que ficam além do ponto final das histórias onde figuravam. O transbordamento de Clarice e seus personagens em circuito com a metaficção biográfica (ela personagem) e a extratextualidade (reelaboração) que os desprende de seus “lugares originais” e os reconduz para novas experiências narrativas põe em relevo a perspectiva de um arquivo que está se ficcionalizando                                                                                                                 63

Artigo originalmente apresentado à disciplina Arquivos Literários/PPGLA-UEA 2013/1 (ministrada pelo professor. Dr. Allison Leão). 64 Professor pela Seduc-AM / Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes/UEA (turma 2012/1)

 

166  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   desde o começo. Primeiro porque o arquivo pessoal do escritor converte-se em arquivo literário, uma vez que ele é testemunho (vestígio) da irrecuperável cena das decisões pessoais de se recolher do mundo, do trabalho do cotidiano, para escrever. Depois, o escritor convive, ao mesmo tempo, com papéis pessoais e de trabalho ficcional, misturando-os no seu cotidiano, e só depois ele os reúne para escrever, separando o que é seu do que é dos personagens. Em alguns autores, como em Clarice, isso fica evidente no seu trabalho como cronista, por exemplo, onde esse processo de laboratório de escrita ficcional aparece abertamente. A leitura de um arquivo armado sobre interpretações ficcionalizantes da autora, em vez da fixação puramente documental de fatos, na medida em que as biografias de Lispector partem do pressuposto de que a figura a ser retratada é toda ela ficcional, não deixa de permitir “encontrar” uma representação de autora nos momentos de sua criação, sem o domínio sobre a obra, revelando-se assim marcas de hesitação, tendo de vantajoso para uma desconstrução que a abordagem biográfica possa propor, desnudar a poderosa figura do escritor, tendendo dar lugar a uma figura mais humanizada, sem enfraquecê-la, mas proporcionando outra forma de percebê-la. O retorno crítico à Clarice a partir das biografias, contudo, só parece se completar ao juntar-se a essas biografias uma personagem, que permite reencontrar também uma outra Clarice, a dona de casa que gostava de escrever e publicar, mesmo com receio da crítica, a que em certos comentários demonstrava estranhamento às obras sem enredo, o mergulho numa “ação” psicológica, num estado de epifania a qual seus personagens se deparavam, enquanto esbarravam no cotidiano e nunca mais retornavam os mesmos para ele. Ou flagrar a jornalista que trabalhava escrevendo colunas femininas e crônicas para ter uma renda. A esposa de diplomata que passava meses, anos entediosos longe de casa, estrangeira até mesmo na sua terra natal, que mantinha correspondência com as irmãs e os amigos escritores para matar as saudades. O trabalho de desconstrução e reconstrução ficcional que aparece nas recentes obras Clarice (1997), de Ana Miranda, e Personagens reescritos (2012), organizado por Luis Maffei e Mayara Guimarães, faz aproximar uma personagem em meio aos conflitos expostos pela folha de papel em branco e pelo cotidiano em aberto para a literatura e, por assim dizer, integram um trabalho de amostragem de uma personalidade fugidia, fragmentada a partir de um arquivo incerto nas suas bases. Essa possibilidade de leitura das biografias com elementos literários é forjada desde o momento em que as noções de “real” e “ficcional”, que serviriam para manter a literatura  

167  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   longe do cotidiano, se misturam. Os espaços mais particulares da autora, ao qual se pode intuir dizer que são os biografemas de que Roland Barthes se referiu ao escrever seu Roland Barthes por Roland Barthes, em 1975, permitem encarar também a ficcionalização da escritora como uma alternativa às biografias, reafirmando, por esse viés, o fato de que elas são uma organização, um fictio, no sentido original da palavra (“fazer”). Enquanto a biografia geralmente opera sobre uma noção linear da vida do seu biografado, destacando os grandes acontecimentos como passagens para as transformações que forjam uma brilhante carreira rumo ao sucesso, levando, segundo Sérgio Vilas Boas (2008), o leitor a crer que é inevitável que o biografado alcance os louros da glória, colocando-o como um personagem em um jogo de cartas marcadas (p. 114), o biografema, como proposto por Barthes, “Ao invés de [destacar] aquilo que é exemplar, ilustrativo e explicativo (...) testemunha o traço insignificante produzido pelo que foge, por aquilo que é comum e ordinário numa vida” (COSTA, 2011, p. 12). Portanto, essa abordagem permite um “mergulho” naquilo que escapa, e em vez de prender-se numa perspectiva linear dos acontecimentos, que Vilas Boas chama, acertadamente, de atitude fatalista para uma biografia, organiza a escrita de vida a partir do reconhecimento de que a realidade é fragmentária. Esse trabalho fragmentar é feito por Ana Miranda na novela Clarice, em que a metaficção biográfica aposta numa atitude ficcionalizante da própria Clarice Lispector para a criação da personagem, impulsionada pelas leituras da obra e da biografia escrita por Nadia Gotlib que, por sua vez, aposta que não só a obra ficcional da escritora brasileira é um exercício de autobiografia ou autoficção, como também propicia, além do reconhecimento de uma personalidade, o de uma personagem. O retorno ao conceito de personagem na ficção proposto por Antonio Candido permite ver como o ser biográfico Clarice Lispector das biografias poderia ter sido revestida de elementos que são ou eram atribuídos, até então, ao personagem de ficção (a própria natureza incerta de algumas informações sobre a autora requerem do seu biógrafo um exercício de preenchimento lacunar por meio de uma escrita que embala a inscrição documental e a narrativa ficcional na mesma rede). 2. A ficcionalização da autora a partir da abordagem biográfica e da crítica Se o arquivo for encarado sob duas perspectivas, uma strictu sensu, que se refira propriamente aos arquivos pessoais dos escritores e, outra, latu senso, que abarque como arquivo a própria obra produzida, bem como aquilo acerca do que foi construído pela crítica  

168  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   em torno da figura do autor/obra, é possível depreender daí como o arquivo (em sentido estrito e amplo) de Lispector vem se ficcionalizando (isto é, construindo uma certa imagem da escritora para o público) e sendo desconstruído pelas novas experiências narrativas. Esse trânsito de metáforas entre literatura e vida é flagrante na abordagem que os primeiros críticos de Clarice fazem à recepção de sua obra. Se, ao lançamento de Perto do coração selvagem, em 1943, Clarice declararia anos depois, que o livro foi escrito “com muita angústia”, em depoimento a Leo Gilson Ribeiro em 1969, intitulado “Que mistérios tem Clarice Lispector?”, é exatamente esse sentimento – de mistério, que facilmente vai pender para o mito - que alimentará a figura da escritora. A revisitação crítica do arquivo pessoal de Clarice, para Gotlib, por exemplo, trás a seguinte constatação: “Clarice parece, progressivamente, reconhecer-se dominada pelo próprio mundo da ficção em que aos poucos mergulhou, ao longo de sua experiência de quase 57 anos completos de vida” (p. 16). Em outras palavras, Clarice se ficcionalizou. Mesmo sendo permeada pelo caráter documental e pela busca da “veracidade” dos fatos, Gotlib reconhece que o documental e fictício se misturam na biografia que dedicou à escritora. Nádia deixa que as origens do nascimento de Lispector fiquem nas sombras do indeterminado, ela não vai a fundo como o faz Moser quando se trata de propor uma hipótese que “consegue” conciliar datas contraditórias que fazem Clarice nascer em 1920 ou 1925 numa viagem de passagem pela Ucrânia ou numa fuga das perseguições e condições precárias de vida em que sua família judia – Mania, Pedro, os pais; Tânia e Elisa, as irmãs – estava enfrentando. Mas longe de ter sido empecilho ao trabalho, a farta referência documental de todo espécie traça dados de vida da pequena imigrante que se tornaria dona de casa, esposa de diplomata, escritora. Gotlib analisa o contexto do processo de escrita e de recepção dos textos de Lispector, acrescentando a esses dados análise literária que procura captar características do estilo, que vão culminando, a cada vez, para o amadurecimento (se bem que ela deixa entrever que Clarice já era uma escritora pronta. Silviano Santiago mesmo lembra que a prosa inaugural de Clarice exige um novo leitor) patente em obras como A hora da estrela, de 1977, que no entanto passeia pelo lado das outras obras, sem abandonar, contudo, a atmosfera intimista característica de escrita. Ela entende que cada uma das impressões de Clarice, em diferentes fases da vida, convergem, como resquícios, materiais para sua ficção. Assim, no casarão velho onde morava, em Recife, que propiciou a menina viver cercada de bichos no quintal, é a impressão que aparecerá mais tarde na história de gatos que a narradora de A mulher que

 

169  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   matou os peixes [1968] contará aos seus leitores ou a emblemática figura da galinha, que aparece em O ovo e a galinha [1971], num conto, e A vida íntima de Laura [1977], noutro. A tese de Gotlib, de que Clarice se ficcionalizou por meio de sua obra passeia por dois dados: primeiro, com a dificuldade de escrever gêneros que a expusessem, como as crônicas. Nádia afirma que Clarice tinha conflitos para navegar nesse gênero porque a prendia a escrever coisas pessoais. Esse impasse é resolvido, porém, com ela escrevendo essas “coisas pessoais”: Embora afirme que quer escapar das memórias, não escapa. E escreve textos autobiográficos justamente quando afirma que não quer desempenhar esse papel (...) finge que não quer quando já talvez se sentisse querendo (...) “desempenha um papel no momento exato em que está prestes a ser o personagem que representa” (p. 119, 120).

O segundo dado é a da mitificação da escritora. Inclusive, relembra Gotlib, ela escreveu uma crônica no Jornal do Brasil em 1970 esclarecendo isso que a incomoda. Para a própria biógrafa de Clarice, reside a dificuldade de se desvencilhar do mito – ao escrever sobre esse processo de mitificação, não com a intenção declarada de desmistificar a figura da autora – mitifica mais ainda, ao falar de uma autora mascarada pela ficção que produziu. Benjamin Moser eleva o mito Clarice Lispector a patamar mais alto ainda: “é talvez a maior autobiografia espiritual do século XX” (p. 17). Moser investe na mesma hipótese de Gotlib, a de que Lispector escreveu sua biografia em sua obra, mas partindo agora para outra direção explicativa: ao querer apagar dados do seu currículo, por meio da escrita e de depoimentos que negavam ou silenciavam fatos obscuros de sua vida, ela, por outro lado, se expôs na sua obra. Moser vai buscar na história não narrada nas outras biografias (como sua hipótese, deixada no ar, não abertamente declarada, que Clarice é fruto de um violentado sofrido pela mãe) uma personalidade genial que enriquece não só a literatura brasileira, mas a literatura latino-americana e a literatura mundial. Dispendendo uma minuciosa descrição histórica que conta, paralelo à biografia de Clarice, fatos históricos do Brasil, da Ucrânia (e de vários lugares por onde ela passou acompanhando seu esposo diplomata) de onde viera ainda bebê de colo, Benjamin Moser atesta, nessa montagem, uma abordagem que foca o detalhe da peculiaridade literária e biográfica da escritora nas letras brasileiras. Moser se preocupa também em compreender a construção dessa personalidade, que ele constata que caminhou, assim como o fez Gotlib, para a mitificação. Ele lembra que Clarice se tornou uma lenda e o início dessa lenda “pode ser situado no influente ensaio de Sérgio

 

170  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Milliet de janeiro de 1944” (p. 227). Milliet notou a singularidade do estranho e até desagradável nome, “pseudônimo, sem dúvida”. A lenda Clarice Lispector pôde dali em diante ser livremente adornada, em parte porque ela não estava próxima para desmentir o que era falso. Menos de um mês depois da publicação de Perto do coração selvagem ela deixou o Rio de Janeiro [foi para o Pará e em seguida Nápoles]. Por quase duas décadas ela quase não retornaria para passar uma longa temporada (p. 227).

Antonio Candido, possivelmente o primeiro crítico a se pronunciar sobre escritora – “até então completamente desconhecida para mim” (p. 127) – declara no No raiar de Clarice Lispector, artigo publicado em 1943, que A autora (ao que parece uma jovem estreante) colocou sèriamente [sic] o problema do estilo e da expressão (...). Sentiu que existe uma certa densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos quebrar o quadro da rotina e criar imagens novas, novos torneios, associações diferentes das comuns e mais fundamente sentidas (1970, p. 128).

Já Benedito Nunes, que escreveu ensaios dedicados à obra da autora em O dorso do Tigre, em 1969, diz que ela “tem marcantes afinidades com a filosofia da existência, como no-la revela, para darmos um só exemplo (...) a experiência da náusea nos contos e romances da escritora de Laços de Família” (p. 94). Para Gotlib, a crítica de Nunes redireciona radicalmente a forma como, a partir daí, serão interpretadas as obras de Lispector. Mesmo essas visões dadas pelos críticos à obra da autora serão conjugadas à personalidade dela: misteriosa, reservada, enigmática. 3. A personagem das biografias e de Ana Miranda Antonio Candido (2007) escreve que “a personagem se define com nitidez somente na distensão temporal do evento ou da ação” (p. 23). Ao perceber que em vários textos, inclusive o de um historiador, é possível encontrar uma “personagem”, Candido mostra que na ficção, o gênero narrativo faz surgir “formas de discurso ambíguas, projetadas ao mesmo tempo em duas perspectivas: a da personagem e a do narrador fictício” (p. 25) e acrescenta: existem sintomas linguísticos da ficção no texto, como a função do pretérito (o era uma vez) e das marcas temporais (em discurso indireto livre): “amanhã”, “hoje”, “daí a dias”, “aqui”, “ali”, além dos verbos que sondam o interior da personagem e, por causa disso, revelam processos psíquicos: “pensava”, “duvidava”, “receava”. Essas atitudes só podem ser assumidas por um  

171  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   narrador fictício que queira revelar e fazer seus leitores participarem dos eventos, fazendo-os enxergar com transparência a interioridade de uma pessoa que é, de fato, imaginada. Como a visão do ser humano da realidade e em particular dos seus semelhantes é fragmentária e limitada (p. 32), a personagem de ficção, em contrapartida, parece assumir uma coerência frente a outras representações, já que ela atende exatamente à coerência interna do texto de ficção, mesmo que essa coerência a coloque em peripécias ou situações fantásticas. Assim, o enredo existe através das personagens (p. 53) e, se na vida a maneira fragmentária com que ela é percebida impede uma elaboração completa e satisfatória do semelhante, no romance, a caracterização de uma pessoa “é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro” (p. 58). Candido elenca várias maneiras de se caracterizar as personagens, levando em conta o grau de afastamento da realidade, mas vai interessar aqui a que mais se aproxima da perspectiva biográfica com que Clarice foi construída pelo discurso de seus biógrafos: personagens transpostas de modelos anteriores, que o escritor reconstitui indiretamente – por meio de documentação ou testemunho, sobre os quais a imaginação trabalha (p. 71). Nesse caso, recriar por meio das pistas uma personalidade é um trabalho no limite entre literatura (ficção) e história (real). As biografias escritas por Gotlib e Moser reconhecem e adotam uma perspectiva ficcionalizada da pessoa que vão representar, já deixando abertamente declarado, no caso de Gotlib, que existe uma representação na vida da escritora, adotando o discurso indireto, isto é, escrevem em terceira pessoa. Mesmo que haja a tentação, não existe a adoção do discurso indireto livre: quando se trata de a “própria” Clarice falar, são reproduzidos fragmentos de textos da autora escritos em crônicas, correspondências ou entrevistas – e mesmo na lembrança de entrevistados, que reproduzem conversas que tiveram com a escritora. Essa constatação já deixaria de lado a hipótese de a construção do ser ficcional Clarice assumir características de uma personagem de romance nas duas biografias em questão. Se a própria representação de Lispector não permite sair dos limites característicos à biografia (documentar uma vida, preencher lacunas de forma imaginativa, como é de se esperar), pode-se concluir então que a Clarice biográfica não adere características do personagem de ficção. Mas se se pensar na natureza construtiva das biografias, então pode-se encarar que é a hipótese dos biógrafos (a da escritora que se ficcionalizou) que permite entender, senão uma personagem de ficção nas biografias, pelo menos um “laboratório” para que romancistas possam, a partir dele, criar, de fato, uma personagem. É exatamente isso que  

172  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Ana Miranda faz, ao reconhecer que misturou, em sua novela, fragmentos de vários textos literários e da biografia de Clarice para criar sua própria personagem, podendo fazer o que a biografia “proíbe” a seus biógrafos: ver Clarice por dentro: faz as compras da casa: arroz, óleo, sabão, café, pacotes de cigarro, doces para as crianças, papel para a máquina. Precisa chamar um bombeiro para consertar o encanamento, mas o telefone nunca dá sinal. Vai à cozinha ver se a comida está pronta, os meninos precisam ir para a escola na hora certa. O telefone toca, ela atende, é um convite para um chá de caridade. O correio traz cartas de leitores e livros, Clarice recebe muitos livros e muitas cartas. Às vezes três livros num só dia. A mão dói. As crianças estão atrasadas, Clarice as apressa. Prepara o lanche das crianças e fecha a porta depois que eles saem. Ufa! [...] Vai para o quarto. Tem tempo para si mesma. Senta-se com a máquina no colo. Põe o papel no colo. Chora (32).

Ou: “Clarice pensa: antes encontrasse a mim mesma dentro de mim. Não estou nem em mim nem fora de mim. Não estou em lugar nenhum. De onde sou? De onde vim?” (p. 57). E: Clarice não tem lugar. Carlos tem Itabira. Rosa o sertão. Todo mundo tem um lugar. Clarice sofre por não ter um lugar. Sempre fala que é brasileira, que é pernambucana, que sua língua é a portuguesa e que antes não tivesse aprendido nenhuma outra (...). O lugar de Clarice a língua na qual ela escreve (...) (p. 46).

Ana Miranda, reconhecida pela escrita de metaficções biográficas, ao escrever ficcionalmente personalidades da literatura brasileira, portanto históricas, dentro da imersão ficcional, refletindo enquanto escreve o próprio processo da escrita e as nuanças da narrativa imaginária, cria, de fato, uma personagem que, para amigo próximo de Clarice, não era ela. Mesmo assim, é a novela de Miranda, ao adotar o episódico e o insignificante, o cotidiano, para retratar Clarice, que consegue realizar o trabalho de desmistificação da autora, por meio da ficção. Por outro lado, as crônicas de Clarice acabam, também, por revelar os espaços íntimos da autora. 4. “Não há mistérios” e “o décimo terceiro sou eu” Se for verdade que na sua obra Lispector escrevia-se, pode-se esperar que as diversas personagens femininas, ou mesmo as masculinas (pense-se no narrador Rodrigo S. M. que não deixa de ser um personagem) são facetas da personalidade de Clarice Lispector pessoa, processadas na ficção pela escritora em formato de uma galeria de personagens onde ela vai se fragmentando. Mas é interessante destacar aqui textos onde isso fica evidente, como ocorre nas crônicas “Esclarecimentos – explicação de uma vez por todas” (1970) e “Mineirinho”  

173  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   (1962). Na primeira, Clarice declara de uma vez por todas: “não há simplesmente mistério que justifique mitos. Lamento muito” (p. 319). Ela esclarece, enfim, se é russa ou brasileira e as circunstâncias de seu nascimento. Além de seu modo de falar, confundido com sotaque, que ela diz, é apenas erro de dicção. Se na crônica ela procura se desmistificar – sem sucesso, como prova sua recepção atualmente – na crônica sobre a morte de Mineirinho, famoso bandido do Rio de Janeiro morto pela polícia em inícios dos anos 60, a escritora demonstra perplexa revolta com o destino do bandido, algo fica evidente tanto na crônica quanto numa entrevista feita a Junio Lerner em 1977, ao relembrar o texto. Seu texto aliás, revela outro lado da questão, o direito de punir, quando comparado com a notícia da morte noticiada pela imprensa. Veja-se: José Rosa de Miranda, o Mineirinho, foi encontrado morto, ontem na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio, com 13 tiros de metralhadora em várias partes do corpo - três deles nas costas e quatro no pescoço - uma medalha de ouro de S. Jorge no peito e Cr$ 3.112 nos bolsos, e sem os seus sapatos marca Sete Vidas, atirados a um canto (Correio da Manhã, 1º de maio de 1962).

Ou:

  Suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo (Lispector, p. 123).

Mineirinho, na pena de Clarice, ganha contornos de personagem. Ela irá relembrar a profundidade ante o espanto da tragédia que abre o cotidiano nas páginas de jornal (notícia policial) alguns anos depois numa entrevista onde as vozes da performance cronística e da narradora de ficção se confundem (confluem) com o sentimento do bandido, ante uma constatação catártica: eu era o Mineirinho. As reflexões sobre o direito de punir (1943), escritos pela jovem advogada, reaparecem na crônica. A entrevista deixa patente essa possibilidade de leitura: JUNIO: Sobre esse seu trabalho em torno de Mineirinho, qual o enfoque você deu? CLARICE: Eu não me lembro muito bem, já foi bastante tempo. Há qualquer coisa assim como: o primeiro tiro me espanta, o segundo tiro...não sei quê, o terceiro tiro, um coisa, o décimo segundo me atinge, o décimo terceiro sou eu [pausa]. Eu era me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava. O resto era vontade de matar...era prepotência (Trecho da entrevista).

 

174  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Assim como para os biógrafos de Clarice seus arquivos são fonte para o trabalho deles, e para Ana Miranda a biografia de Clarice e toda a sua obra (que é, de todo modo, um tipo de arquivo também) é fonte de inspiração para escrever sua personagem, as crônicas de Clarice são para ela um tipo de laboratório onde ela não só reflete o cotidiano, os acontecimentos, mas ensaia seus personagens, fixando, por exemplo, a morte de Mineirinho como um caso para a literatura também se debruçar. 6. “Macabéa – Flor do Mulungu” e “A redenção” Em A hora da estrela a escritora apresenta ao seu leitor um narrador hesitante (Rodrigo S.M.) que, só depois de algumas boas páginas, inicia propriamente o enredo: “Tudo isso eu disse tão longamente por medo de ter prometido demais e dar apenas o simples e o pouco. Pois a história é quase nada” (p. 45). A história de Macabéa é o desafio de escrever sobre uma personagem que não sabe manejar com a linguagem. A metaestrutura que reflete seu próprio fazer narrativo enquanto narra, apresentando a personagem principal e tentando “salvá-la” pela escrita, torna esse romance, que tem treze títulos, como alegoria do drama do ser e da linguagem. Se Macabéa pouco maneja a palavra em A hora da estrela, na Macabéa, Flor do Mulungu, conto de Conceição Evaristo, ela tem sua “chance”: a contista retorna à biografia da personagem que o narrador anterior não dissera, reflete teoricamente, num formato entre o conto e o ensaio, as várias interpretações sobre a personagem Macabéa, até encontrar a “pessoa” que está além da teoria sobre ela, retirando-a novamente, estrela, da Clarice, para reencontrá-la não mais incompetente para a vida, como diz Rorigo S.M., antes, Das competências não anunciadas de Macabéa, Flor do Mulungu, além de ótima cerzideira, a moça tinha o ofício de parteira. Quem via os seus morosos dedos tropeçando nas teclas da máquina de datilografia não concebia, para suas mãos, o dom de amparar a vida em sua chegada ao mundo (p. 17).

A contista encontra Macabéa morrendo e, identificando-se com ela ao relembrar Flaubert (Eu sou Macabéa), revela-lhe aspectos esfumaçados pelo primeiro narrador, reconhecendo sem o receio dele a grandiosidade modesta da menina que se tornou parteira e depois estrela. Se no conto e no romance Macabéa morre, em A redenção, escrito por Vera Duarte, Macabéa sobrevive ao atropelamento e a narradora não só conta a vida de Djosinha, o culpado pelo atropelamento, quanto o processo parado na justiça pelo atropelamento e o coma que Macabéa sofre até que, recuperada, fique com o estrangeiro, e possa haver o fim anunciado em A hora da estrela pela cartomante que, contudo, naquele não se realiza:  

175  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Quando pôde ir ao tribunal depor, Macabéa garantiu que ela é que se tinha atirado na frente do carro em momento de fracasso e desespero. Garantiu assim não só a inocência de Djosinha como, sobretudo, o seu eterno reconhecimento (...) Macabéa aceitou o amor de Djosinha e foi-lhe devotada (p. 117).

Macabéa não só ganha voz, como muda, mudança essa que, apenas ensaiada, não acontece no romance porque ela não sabia lidar com a linguagem. O fim menos trágico e mais nos moldes felicitários em que o terceiro conto reconduz a personagem Macabéa, além de dar uma “biografia” ao gringo que a atropela em A hora da estrela, deixa claro, sobretudo, que as personagens de Clarice já não pertencem à escritora que os criou. Quando toda a sua obra em movimento é considerada como arquivo, ela possibilita essa revisitação que tira de lá não só aspectos autoficcionais que Lispector teria deixado escapar quanto retiram de lá também os personagens, para novas experiências narrativas onde eles são reconstituídos, como o flagrante de uma composição dos bastidores da criação que, tendo deixado rastros no próprio texto original (em A hora da estrela Rodrigo S.M. não cansa de refletir os modos como compõe sua personagem) permitem retirá-los de lá e leva-los embora. Segundo Yudith Rosenbaum, que prefacia o livro sobre os personagens reescritos, “As narrativas publicadas (...) querem dizer o que ficou escondido nas entrelinhas do original” (p. 9). Além de a reescrita das personagens de Clarice requererem uma reformulação sobre a natureza da personagem de ficção que, em atendimento à coerência interna do texto, fica presa ao papel que desempenha na obra original, pede também uma ressignificação de toda o arquivamento da vida/obra da escritora, já que este arquivo saiu dos limites do documental e tem se reinventado na ficção, de modo que ele tem ficado mais estendido do que o era antes dessas novas abordagens ao arquivo clariceano. 7. Considerações finais Clarice perdeu a noção e o controle de seus personagens e de sua personagem, Clarice Lispector, cuja criação não foi só “culpa” dela. A bem da verdade, foi uma personagem escrita a várias mãos, que transformou a dona de casa em feiticeira, a escritora não profissional e seu gosto de se apegar a personagem mais do que ao enredo em explosão e exemplo de escritora intimista que mudou os rumos da literatura brasileira e a ucraniana naturalizada brasileira que se tornou cidadã da república das letras. Como se um gesto, uma declaração, um depoimento fosse uma metonímia do que é o escritor, sem levar em conta que a obra é fingimento e a vida é fragmento, discurso, narrativa, Clarice pessoa se tornou Clarice Lispector de papel.  

176  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Referências bibliográficas CANDIDO, Antonio [et al.]. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva: 2007 (Debates; 1).   _________. No raiar de Clarice Lispector. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades: 1970; p. 125-131. GOTLIB, Nádia Batella. Clarice: uma vida que se conta. 6 ed. rev. e aum. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2011. GUIMARÃES, Mayara R.; MAFFEI, Luis (org.). Extratextos 1: Clarice Lispector – personagens reescritos. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2012 (Travessia). LISPECTOR, Clarice. Esclarecimentos – uma explicação de uma vez por todas. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999; p. 319-320. ___________. A hora da estrela. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1984 (Autores da literatura contemporânea). ___________. Observações sobre o direito de punir. In: Outros escritos. Org. Teresa Montero e Lícia Manzo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005; p. 45-49. __________. Mineirinho. In: Para não esquecer: crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999; p. 123-127. __________. Programa “Panorama especial”. São Paulo, tv Cultura. Entrevistador e produtor: Junio Lerner (levado ao ar pela primeira vez em 28 dez. 1977, 20h30). MIRANDA, Ana. Clarice. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify: 2011. POSSANI, Taíse Neves. Ana Miranda, leitora de Clarice Lispector. Dissertação de mestrado orientada por Aimée Teresa C. Bolaños. Rio Grande: Rio Grande, 2009. NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectivas, 1969 (Debates, 17).   VILAS BOAS, Sérgio. Biografismo: reflexões sobre escritas de vida. São Paulo: Unesp, 2008.   “O conto Mineirinho”, . Acesso em: 03 de julho de 2013.

 

177  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   MANIHOT ESCULENTA: DO VISUAL AO MUSICAL Flaviana Xavier Antunes Sampaio (UESB) RESUMO: Este escrito propõe difundir o processo de construção do espetáculo Manihot Esculenta. Trata-se de uma obra realizada por treze discentes do curso de Licenciatura em Dança, UESB, campus de Jequié, através de estratégias de criação com apelos textuais e, principalmente, estímulos sonoros e imagens sobre a mandioca. O senso de identidade desenvolvido pela plateia e os criadores (estudantes) motivaram o interesse de refletir um pouco mais sobre o potencial que as artes cênicas têm a partir da pesquisa músico-visual. As referências utilizadas tratam de processos criativos (Fayga Ostrower), improvisação em dança (Mara Guerreiro), comunicação visual (Donis Dondis), imagem em dança (Tiago Costa e Andrea Bardawil) e características histórico-descritivas da mandioca a partir de sete autores distintos.   Palavras-chave: Dança. Som. Imagem. Preparando a terra Manihot Esculenta foi produzida ao longo dos meses de outubro/2012 a março/2013 com uma pausa no mês de janeiro devido às férias. Neste período, a turma ingressa no ano de 2011 no curso de Licenciatura em Dança da UESB estava na última produção após experimentarem por três semestres consecutivos montagens de Dança e Teatro com diferentes professores. O estudo sobre “mandioca” foi apresentado pela professora em meio a outros dois temas: Um romance de Jorge Amado e o artista jequieense Zéu Britto. A princípio os discentes ficaram em dúvida quanto à escolha de “mandioca” ou Zéu Britto. Dessa forma, uma semana foi dedicada para pesquisas e debates. Em qualquer trabalho artístico, tanto no âmbito das artes plásticas como nos de música, dança, teatro etc., haverá escolhas a serem feitas. Ou seja: dentre numerosos rumos possíveis, o artista escolhe algum que ele sinta como apropriado [...] (OSTROWER, 1999, p.18)

As opções de tema foram importantes para fomentar interesse e identificação dos discentes. As sugestões foram informadas de modo aberto, estando em pauta à consideração de outro assunto além dos citados previamente. Devido a questões de ordem afetiva (aproximação com o tema) e artística (riqueza atrelada não apenas a raiz, mas ao cultivo, derivação de produtos e aspectos históricos ligados ao sertão) os discentes optaram por “mandioca”.

 

178  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A temática escolhida extrapolou os limites da montagem ao mobilizar os estudantes não apenas fisicamente, mas também despertando memórias de infância, gerando depoimentos ricos de detalhes que motivaram as investigações coreográficas. Isto foi alcançado uma vez que todo o elenco é natural de cidades interioranas e muitos tiveram contato com a mandioca no campo quando criança. Alguns, inclusive, têm familiares que possuem roças de plantação e casas de farinha. Tão logo houve decisão sobre o tema de estudo, um cronograma de atividades foi elaborado para além de nortear as etapas de montagem, buscando, sobretudo, indicar que as mesmas seriam definidas a partir da disposição e empenho da turma. O roteiro de ações para montagem foi feito pela professora, mas sofreu ajustes durante o semestre por razões pessoais mútuas (docente-discentes). A distribuição da carga horária da disciplina – 105 horas – ocorreu a partir de encontros que privilegiaram pesquisas corporais através de música, sons, vídeos e textos. Houve também uma visita técnica junto ao curso de Agronomia para provocar mais estudos sobre a mandioca e rodízios de oficinas criativas em pequenos grupos. Algo recorrente no processo de criação da montagem foi à diversidade de apelos visuais e sonoros. Uma vez que visualizar é ser capaz de formar imagens mentais, segundo Donis Dondis (2007, p.14), as investigações propuseram seleção de dados que fomentassem interpretações e familiaridade do público. Antes de adentrarmos nas questões específicas de Manihot Esculenta, faz-se pertinente apresentar o grupo responsável pela montagem: Flaviana Sampaio (professora), Mabel Almeida, Luanna Azevedo, Daniela Ribeiro, Tainan Galdino, Everton Paixão, Flávia Sanctus, Ian Pecorelli, Silvana Santos, Solange Souza, Saulo Oliveira, Mylena Oliveira, Jamile Santana e Anderson Neves (estudantes).

O plantio da mandioca O início do processo de construção de Manihot Esculenta ocorreu a partir de apelos sonoros. A primeira música apresentada para turma foi “Chão” do pernambucano Lenine. As investigações realizadas partiram da melodia e da letra: “Chão! Chega perto do céu Quando você levanta a cabeça e tira o chapéu Chão!

 

179  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Cabe na minha mão O pequeno latifúndio do seu coração Chão! Quando quer descer Faz uma ladeira Chão! Quando quer crescer Vira cordilheira”

A composição de Lenine (2011) possibilitou um contato subjetivo com a mandioca. Tanto a professora, que orientou o processo, quanto os discentes partilhavam a opinião de não criar uma narrativa ou pesquisa que remetesse obviamente o tema. O desejo de investigar e propor movimentos distintos surgiu pela consciência do convívio que temos através das músicas e alimentos derivados da raiz como bolo, farinha, biscoito, etc. No Brasil, a plantação da mandioca ocorre por todo o país, mas a região nordeste lidera esse ranking porque a população consome com freqüência produtos oriundos da raiz e, também pelo fato do período da estiagem não prejudicar muito o cultivo, sendo a principal fonte de renda e sustento de muitas famílias. As características da terra seca, típico do sertão de Jequié e outras cidades da região sudoeste da Bahia, promoveram explorações da letra da música “Chão”. As metáforas possibilitaram leituras sobre o aspecto vertical da planta; a porosidade e deslocamento do solo, dentre outras. Outra música utilizada no processo de criação do espetáculo foi “Cio da Terra” de Milton Nascimento e Chico Buarque. Essa canção trouxe reflexões mais diretas despertando ações de movimentos relacionados com as etapas do cultivo (preparar a terra, lançar a maniva, cobrir, arrancar a mandioca, raspar, etc). As variações da própria música – versão cantada por Milton Nascimento e um coral com vozes caipiras – também foram fonte de inspiração. Ao ouvirmos a música, nossa atenção extrai espontaneamente certos padrões estruturais, onde se ordenam e esclarecem emoções e pensamentos que afloram neste momento (ou fragmentos emocionais que não chegam a se tornar inteiramente conscientes). Na sucessão de sons em passagens menores ou maiores, somos levados a notar certas regularidades que ocorrem, repetições, semelhanças, variações em torno de uma matriz básica (cuja existência intuímos sem ela precisar estar presente), e também notamos pausas, cortes ou os diversos andamentos que modulam o fluir das sequências [...] (OSTROWER, 1999, p. 37-38).

A identificação das seqüências musicais colaborou na proposição de movimentos. Daí buscou-se realizar partituras corporais fluídas e entrecortadas, além de ater atenção à configuração da obra quanto às cenas visando uma articulação entre as movimentações das imagens e os sons trabalhados.

 

180  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Durante as pesquisas sonoras, houve exploração também de uma música que versa sobre passagem, trajetória. Esta investigação almejou reflexões sobre as pessoas que lidam com a roça da mandioca. “Travessia do Eixão” (Nonato Veras, Nicolas Behr) cantada pela Legião Urbana funciona como mantra por ser uma música cíclica que oportunizou pesquisas corporais baseadas nos movimentos repetitivos, como o ato de raspagem. Um ponto particular das investigações sonoras é a diversidade de movimentação alcançada. Os estudantes fizeram emergir processos individuais que aos poucos passaram a ser socializados e pertencerem ao coletivo. Essa exploração promoveu consciência, percepção, autopercepção e senso de identidade: Tais conhecimentos básicos, assim como o próprio senso de identidade, são adquiridos por todos do mesmo modo: estruturando-se em termos de espaço, a partir de espaços vividos, em formas espaciais (OSTROWER, 1999, p.81). Dessa forma, a etapa de pesquisas através de apelos sonoros ocorreu com grande identificação dos estudantes e oportunizou a responsabilidade da turma ao trabalhar com autonomia. Brotar do chão O documentário “Raízes do Brasil” colaborou com a pesquisa de criação de Manihot Esculenta quanto à proposição de imagens. Os discentes assistiram ao vídeo em dois dias e foram distribuídos em pequenos grupos para escreverem sobre o que mais lhe chamou atenção e apontarem uma proposta criativa a partir deste ponto. Durante a realização dessa atividade os estudantes compartilharam suas vivências com a mandioca. Isto foi importante para nivelar as informações com as pessoas que não tinham tanto conhecimento sobre o assunto incluindo aí a professora, que nasceu e vive na capital, Salvador, e sabia pouco sobre o tema. A questão da autonomia retratada desde o início do processo foi bem aceita, mas de algum modo arriscado, porque a professora-orientadora não detinha muitas informações sobre o tema em comparação aos estudantes. Em contrapartida, essa lacuna foi anulada pelo conhecimento acerca de processos de criação colaborativo o que deixou a turma bastante segura e consciente das etapas traçadas durante o período de pesquisas. O processo de criação de Manihot Esculenta partiu também de buscas de informações sobre a mandioca através de textos. A professora utilizou o google acadêmico para selecionar

 

181  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   quatro artigos para discussão e os distribuiu em pequenos grupos responsáveis pela leitura, compreensão e retorno para os demais colegas. As estudantes Luanna Azevedo e Daniela Ribeiro analisaram o texto “A palavra mandioca do verbal ao verbo-visual”, de Beth Brait. Trata-se de um texto onde a palavra mandioca localiza-se como referência para apresentação de sentidos construídos por diversos discursos e pontos de vista, tendo em comum a aproximação com o sagrado, o nacional, o primitivo e o contemporâneo. “Aspectos agronômicos da cultura da mandioca”, de Edgard Normanha e Araken Pereira, foi investigado por Anderson Neves e Jamile Santana. A dupla constatou que o texto aborda de forma técnica as espécies, tipos e características do plantio e produção de mandioca de acordo com o clima de cada região brasileira. Segundo o texto, há dois tipos de mandiocas; as mansas ou doces também chamadas macaxeiras ou aipins, com baixo teor de ácido cianídrico nas raízes, e as venenosas ou bravas, com teor mais elevado do ácido que são capazes de causar envenenamento, mesmo depois de cozida. Sobretudo é destacada também a importância para o homem do campo, agricultor que tira o sustento da terra. A professora orientadora, Flaviana Sampaio, ficou responsável pela tradução e explanação do texto Effects of length in stem cutting and its planting position on cassava yield, de Anselmo Viana, Tocio e Carlos Sedyiama, Sandro Lopes, e Valterley Rocha. Esse estudo apresenta dados sobre a plantação da mandioca a partir do tamanho da maniva (pedaço do caule de 20 e 30cm) e sua posição de aterramento (vertical e horizontal). Essa informação foi importante para compreender as relações entre o modo de plantação e a consequência disto no cultivo da raiz, colaborando como imagem para a proposição de movimentos no nível espacial baixo. A partir dos textos de cunho técnico e descritivo sobre a plantação e características da mandioca, os estudantes identificaram imagens para uso durante o processo de criação. A transposição para o corpo de algo que está em desenvolvimento, enraizando, o preparar a terra, a etapa de cultivo, etc., são exemplos das imagens utilizadas. Além dos estudos teóricos em busca de mais informações sobre a mandioca, houve também análises de materiais escritos pautados na ementa da disciplina. Em destaque, dois artigos foram aprofundados durante o processo de criação da montagem. Flávia Sanctus e Ian Pecorelli analisaram o texto “O meu corpo, a minha imagem”, de Tiago Costa. Este artigo traz a ideia de que o espectador precisa reconhecer-se nos outros o  

182  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   seu próprio corpo. Assim, intérpretes e espectadores desempenham papéis semelhantes no processo de descoberta do corpo, da cena, do espetáculo. A interação público-dançarino foi prática constante durante a criação de Manihot Esculenta. As cenas foram decididas a partir de experimentações em que os estudantes se revezavam entre propositor e apreciador, ao mesmo tempo em que buscavam internalizar as imagens/estímulos nos seus corpos. Dessa forma, houve pesquisas para promoção de diálogos entre o elenco e a plateia. O texto “A construção poética do visível. Anotações para pensar uma Dança/Imagem” de Andrea Bardawil foi objeto de estudo de Everton Paixão e Saulo Oliveira. Os discentes ressaltaram a informação de que a cena é uma imagem onde o corpo se configura numa dança instaurada dentro de uma atmosfera, nitidamente desenhada, construindo movimentos ora sutis, ora não sutil. Houve destaque também sobre as considerações de pensar no corpo/imagem como contribuição para a construção poética e suas relações possíveis: a composição (o pensamento sobre). “Formas de improvisação em Dança”, de Mara Guerreiro, foi estudado por Mabel Almeida e Tainan Galdino. Uma frase de Helena Katz (2005) chamou atenção ‘Tudo que brota, brota como forma’. Essa afirmação possibilitou mais sensibilidade e observação sobre o processo criativo para o cuidado de editar materiais. A improvisação em dança pode se distinguir em suas formas específicas, vistas que segundo Guerreiro a improvisação é muito genérica. A leitura de Bardawil, Costa e Guerreiro foram importantes para identificar o processo de criação de Manihot Esculenta baseado em metodologias de criação colaborativas. Houve estímulos advindos de pesquisa de movimentos através de imagens, sensações e improvisações individuais e coletivas que promoveram cenas correlacionadas com as histórias de corpo do elenco articulado com o tema proposto. Outro ponto relevante foi à prática de improvisação a partir de acordos prévios. Além disso, foram utilizadas improvisações com roteiros com adoção de regras específicas que instrumentalizaram o processo criativo. Assim, a composição foi concebida através de materiais decididos conjuntamente.

 

183  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Chuva de tormenta DISCIPLINA

TEXTUAL

BARDAWIL, Andrea BRAIT, Beth COSTA, Tiago GUERREIRO, Mara NORMANHA, Edgar; PEREIRA, Araken VIANA, Anselmo; SEDIYAMA, Tocio; LOPES, Sandro; SEDIYAMA, Carlos; ROCHA, Valterly.  

TEMA

IMAGEM

MÚSICA

VIVÊNCIAS

Documentário Raízes do Brasil Direção -Ângela Machado IRDEB - Bahia Ritmo popular, pop, rock; Letras diversas   1. Aula em campo:

- Dados históricos (regiões, quantidade de produção); - Tipos (brava e mansa); Variedades de espécies; - Cultura indígena (lenda da mandioca); - Produtos derivados (batom, brigadeiro, shampoo, etc.); - Identificação das características da planta, textura; -Retirada da mandioca: Identificação do peso e características da raiz. 2. Memórias: - Partilha de vivências familiares com pequenos produtores de mandioca.  

O diagrama acima demonstra que os textos foram apenas mais um estímulo para as criações. A apreciação do vídeo documentário “Raízes do Brasil” colaborou para reacender as lembranças dos estudantes. Oriundos de cidades que possuem produções de mandioca, todos de algum modo tinham familiaridade com o assunto.  

184  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   As imagens do vídeo atrelado a alguns cantos, como um trecho de descasque da mandioca, propiciaram a recordação de outras músicas despertando lembranças enquanto apreciador e executor: Parte dos estudantes já teve a chance de descascar ou ajudar no processo de tratamento da mandioca para virar farinha. Outros já presenciaram cultivadores em ação. Embora o diagrama aponte relações pontuais através de setas diretivas, há um entendimento de que o processo foi circular, transitório. A ilustração sobre pesquisas a partir de imagens, por exemplo, poderia atingir outros dados como o texto, as músicas e as vivências. No meio do processo de criação de Manihot Esculenta, mais precisamente em 21 de Dezembro de 2012, houve um seminário de criação. Nessa ocasião foi apresentada uma cena curta iniciada com movimentos individuais com pausas acompanhadas com sons feitos pelos dançarinos que remetiam barulhos existentes na natureza (sobretudo pássaros) e em seguida uma coreografia foi executada a partir da música “Massa de Mandioca” (Mastruz com Leite). O seminário de criação teve como intuito compartilhar os estudos que seriam abordados na montagem. Além da apresentação artística os estudantes construíram uma ambientação específica e fizeram exposições orais sobre o processo, dando dicas sobre o que viria a ser o espetáculo. O público circulou sobre esse espaço e pôde fazer perguntas para o elenco ou apenas apreciar a estrutura feita com elementos que remetiam à mandioca ou aos seus cultivadores como enxada, bule, fotos de trabalhadores rurais, etc. De saída, a percepção se estrutura através de processos seletivos, a partir das condições físicas e psíquicas de cada pessoa, e ainda a partir de certas necessidades e expectativas. Frente aos incontáveis estímulos que nos chegam continuamente, esta seletividade representa uma primeira instância de filtragem de significados (OSTROWER, 1999, p. 25).

A dança a partir da música “Massa de mandioca” foi escolhida com o propósito de mobilizar o público de modo direto e uniforme. Por tratar-se de um tema amplo, que aguçou a curiosidade de muitas pessoas, foi acordada uma coreografia bastante óbvia para entreter os espectadores. Isto foi proposto também porque a turma por um instante ficou dividida com a questão de fugir do óbvio ou assumi-lo. A solução encontrada foi admiti-lo no seminário (que não demandou muitos ensaios coreográficos, por ser, sobretudo, um acompanhamento da letra e movimentos já conhecidos pelo elenco) e resignificá-lo para a construção do espetáculo. Esta ação contribuiu para a aproximação do público com o tema sob estudo e ainda possibilitou identificar a aceitação sobre o mesmo.  

185  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Das entranhas da terra para o ar A etapa mais curiosa, no sentido interno da turma e dos colegas de outras áreas do conhecimento da Universidade, foi uma visita técnica realizada no curso de Agronomia. As aulas do curso de Dança ocorrem em Jequié, que fica 3 horas de distância do campus de Vitória de Conquista, onde o curso de Agronomia está sediado. A visita propunha conhecer um pouco mais sobre a mandioca a partir do contato com profissionais que estudam o tema. Fomos recebidos por Adriana Cardoso, pesquisadora, que proferiu uma palestra com informações científicas, mas também introduziu a lenda da Mani, uma índia que teria dado o nome à mandioca. O título do espetáculo foi decidido através desta visita quando informado o nome científico da planta: Manihot Esculenta. A turma ficou encantada ao saber sobre os produtos derivados da mandioca como shampoo, pão, aguardente e brigadeiro. A explanação sobre as diferenças entre a mandioca brava (uso industrial) e mandioca mansa ou de mesa (alimentação) e as variedades de tipos espalhados pelo Brasil também foram materiais interessantes. Ressalta-se ainda um resultado não esperado ocorrido através do contato com as técnicas de plantio, onde os estudantes adquiriram conhecimentos para que seus familiares melhorassem o cultivo da produção. O ponto principal da visita técnica foi à ida a uma área de plantação onde arrancamos raízes de mandioca e verificamos os detalhes das plantas. O peso, a relação com o solo e o vento, tudo isto foi registrado e usado na investigação do espetáculo através de oficinas criativas. Criar significa dar forma a um conhecimento novo que é ao mesmo tempo integrado em um contexto global. Nunca se trata de um fenômeno separado ou separável; é sempre questão de estruturas. Através da forma criada se intensifica um aspecto da realidade nova e com isso se reformula a realidade toda. (OSTROWER, 2010, p.134).

Embora descrito em etapas distintas, faz-se importante salientar que a construção de Manihot Esculenta ocorreu de forma crescente, agregando informações e detalhes à estrutura coreográfica. As oficinas e as outras demandas criativas foram experimentadas e depois organizadas. Essa escolha foi feita pelo entendimento de que, caso fosse adotada uma metodologia de colagem, já durante as pesquisas, os arranjos entre as cenas seriam previstos com antecedência. O interesse de organizar as cenas após o levantamento geral do material coreográfico teve como foco aprofundar as cenas e só depois, intuitivamente, propor as transições. Neste sentido, algumas cenas não entraram no espetáculo pelo cuidado de não

 

186  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   propor algo muito longo. Em contrapartida, ideias dessas “cenas cortadas” foram usadas nas transições ou reformuladas em outras. Nada foi perdido ou deixado a parte. Além das atividades já citadas onde os estudantes/artistas puderam contribuir e intervir no processo de criação, o cronograma da disciplina contemplou a divisão de seis comissões: Figurino, maquiagem, luz, cenário, produção e trilha sonora. A concepção de cada informação cênica que fez parte do espetáculo, além dos meios de arrecadação de verba para oportunizar a compra dos materiais acordados foi organizada pelo grupo. As decisões advindas das comissões enfatizaram o senso de identidade da turma. Durante o processo de criação os estudantes, desde o início, foram incitados a tomar a produção para si com a consciência de fazerem parte de um coletivo que, para elaborar algo conjuntamente, tinha que se empenhar individua e coletivamente a partir de negociações amigáveis.

Farinhada A estreia de Manihot Esculenta em 16 de Março de 2013 foi bastante conturbada. O espaço teatral previsto apresentou problemas no circuito de ar-condicionado, sendo a realização do espetáculo transferida para o Auditório Waly Salomão, Jequié, campus da UESB. A necessidade de adaptação dos efeitos planejados, que dependiam de uma estrutura específica teatral, deixou os estudantes ansiosos quando souberam da mudança do local. Porém, com o esforço do grupo e o apoio da Universidade, as apresentações ocorreram sem problemas e com todos os efeitos previstos. Quando uma pessoa é aberta à vida, sem preconceitos, e receptiva às novas experiências, quando ela é capaz de diferenciar-se e reintegrar-se, de amadurecer e crescer espiritualmente, ela terá condições para criar. Cada um poderá então selecionar intuitivamente, livremente, entre as várias áreas de interesse, aquelas que correspondam às suas reais necessidades e potencialidades, e se sentirá motivado a buscar na linguagem artística, também intuitivamente, certas ordenações que expressem seus sentimentos [...] (OSTROWER, 1999).

O ato de criar permeou todo o período de montagem, mas a estreia trouxe uma tensão que até então não havia sido experimentada entre os estudantes. O tempo para organização espacial tal qual desejado demandou uma série de ações conjuntas e a receptividade à nova experiência articulada com a aceitação e consciência de que trabalhar junto seria a melhor opção, possibilitaram a execução da proposta.

 

187  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Obras de Dança algumas vezes carecem de pesquisa. Ainda é comum vermos dançarinos e coreógrafos focados apenas na encenação dos movimentos através da combinação de passos com pouca variação de ritmo e/ou qualidade expressiva. Defendemos a ideia de que essa busca deve vir acompanhada de uma motivação de desafio que se reverbere no corpo, na cena. Manihot Esculenta baseou-se em um roteiro flexível através de negociações entre as pessoas envolvidas. O material coreográfico, por exemplo, foi elaborado a partir da espontaneidade dos corpos no espaço onde não havia movimento prescrito ou preciso como ideal. Buscamos também demonstrar o potencial da expressão do rosto. A cena intitulada “Envenenamento” traz o elenco dividido em grupos de envenenados (que consumiram a mandioca brava, nociva) e envenenadores (o ácido cianídrico presente nas mandiocas bravas):

Daniela Ribeiro - ao fundo - e Mabel Almeida (envenenadas); Saulo Oliveira e Anderson Neves (envenenadores)

Os comentários do público de Manihot Esculenta apontam que a escolha pelo tema foi válida porque tocou a emoção. Algumas pessoas choraram ao assistir ao espetáculo e o elenco recebeu cumprimentos de agradecimento por suscitar memórias agradáveis.

 

188  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Elenco completo na cena “Cio da Terra”

A relação de nomes no início do texto visa valorizar os personagens de um processo coletivo e articulado. Além disso, houve o desejo de destrinchar o papel de cada pessoa no processo de criação para melhor entendimento do trabalho. Afinal, espetáculos de Dança são materiais recorrentes de pesquisas no campo acadêmico. Atualmente existe mais de 35 cursos de Licenciatura em Dança no Brasil. A proposta deste escrito é dar visibilidade sobre um processo de criação árduo e prazeroso, que pode servir para estudantes das artes cênicas em geral. Que este estudo desponte desdobramentos no universo da Dança e seus modos de interação músico-visuais.

Fotos: Leonardo Duarte

Referências BRAIT, Beth. A palavra mandioca: do verbal ao verbo-visual. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v. 1, p. 142-160, 2009. BARDAWIL, Andrea. A construção poética do visível: anotações para pensar uma dança/imagem. IN: Dança em Foco vol.3: entre imagem e Movimento. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008, p.13-18. COSTA, Tiago. O meu Corpo, a minha Imagem. Idanca txt. Volume 1. Setembro 2010. DONDIS, Donis.A Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: MartinsFontes, 2007

 

189  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   GUERRERO, Mara. Formas de improvisação em dança. In: Anais do V Congresso Abrace. Belo Horizonte, 2008. NORMANHA, Edgard S.; PEREIRA, Araken Soares Aspectos agronômicos da cultura da mandioca (Manihot utilissima Pohl). Bragantia, Jul 1950, vol.10, no.7, p.179-202.     OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 2010. _______________ Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Elsevier, 1999. VIANA, Anselmo; SEDIAM,Tocio; LOPES, Sandro; SEDIYAMA, Carlos; ROCHA, Valterley. Effects of length in stem cutting and its planting position on cassava yield. Acta Scientiarum 2000 Vol. 22 No. 4 pp. 1011-1015 Consultas via Internet: www.emec.mec.gov.br

Flaviana Xavier Antunes Sampaio: Docente dos cursos de Licenciatura em Dança e Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Alvorada: Estratégias de Criação Cênica a partir de estudos em Iluminação, Cenário, Figurino e Maquiagem (CNPQ). Mestre em Dança pela Universidade Federal da Bahia.

 

190  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   INSCRIÇÃO DO PROCESSO DE REVISITAÇÃO DA LENDA DO MAPINGUARI NA ESTRUTURA DRAMÁTICA DO DRAMA PASTORIL OS PASTORES DO AMAZONAS Gislaine Regina Pozzetti (UEA-PPGLA)65 RESUMO: Os textos dramáticos da atualidade têm se caracterizado pela construção coletiva em processos colaborativos de montagens. Contrariando essa tendência, revisitam-se os processos criativos de escritura dramática de único autor, de maneira a construir um texto que independe da encenação, mas, igualmente, oferece uma experiência estética capaz de suscitar o imaginário tanto de um leitor como de um espectador. É nesse contexto que a dramaturgia A captura do Mapinguari se inscreve: utiliza-se a lenda como temática, assim como a estrutura dramática realizada por Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha em Os pastores do Amazonas para a composição do texto teatral. Desta forma, a revisitação se concretiza por meio da adaptação, na qual o trabalho dramatúrgico permite total liberdade para montagem e colagem de elementos de outras fontes. É no diálogo entre revisitação e adaptação que se estabelece a reflexão acerca do fazer teatral e da reflexão lúdica sobre as construções do imaginário, que são a essência do lendário. PALAVRAS-CHAVE: Texto dramático; Revisitação; Adaptação; Lendas. As grandes transformações científicas, tecnológicas e sócio-culturais do final do século XIX e início do século XX marcam também o nascimento do teatro moderno, preocupado em avançar na compreensão da subjetividade humana e da realidade imperfeita, em dilatar os limites da significação em cena, rompendo com a estrutura linear e deixando espaços para que o público deduza ou crie partes do espetáculo. A hegemonia do texto dramático, que por longo período foi considerado o centro do espetáculo, passa a ser questionada ao mesmo tempo em que surge a figura do encenador. Este, conforme Oliveira e Pereira, rompe as fronteiras impostas pelo texto e pelas características de cada gênero, entra no universo da criação subjetiva. Sua leitura passa a ser autoral, relativa e, posteriormente, nas criações coletivas, uma leitura grupal. Multiplicam-se, desde então, novos gêneros e formas de teatro. [....] O texto se transforma em mais um elemento da encenação, com a mesma importância da luz, do som, dos figurinos, dos cenários e da interpretação. (2011, p. 14)

O rompimento com o textocentrismo, leva o teatro a rever seus valores, resultando em “estéticas que utilizam o modelo de construção não linear, constroem poéticas, às vezes, irracionais, destroem tradições e, muitas vezes, são anti-sociais (sic). Muitas são caracterizadas pela desintegração de sentido” (Oliveira, 2011, p. 33-34). Neste contexto,                                                                                                                 65

Mestre em Letras e Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas.

 

191  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   observa-se que o fazer teatral vem sendo caracterizado pelas experimentações estéticas e pelas vivências múltiplas, de acordo com a leitura de cada encenador. Tais experimentações estéticas e vivências múltiplas não se restringem à montagem do espetáculo: permeiam igualmente as dramaturgias de texto, uma vez que a escritura dramática de um único autor já não significa a essência da prática teatral, e que as dramaturgias de texto, tal como as demais provenientes de processos colaborativos, tornam-se cada vez mais presentes nas montagens atuais. Observa-se assim, que os dramaturgos do século XX criam novas teorias de forma a atender suas propostas estéticas, o que resulta num teatro tolerante e acolhedor de várias práticas e pesquisas, não necessariamente desvencilhadas da estética aristotélica. Ao contrário, submetem-se a ela, como forma de dar legitimidade ao novo. Segundo Roubine (2003), para que o teatro dialogue constantemente com os cânones e as controvérsias, é necessário a cada criador “elaborar uma estética que convenha a seu projeto e a sua visão de mundo” (2003, p. 89). Apesar de, atualmente, o espaço para as teorias engessadoras ser diminuto, Esslin (1978, p. 13) estabelece que pensar e falar a respeito destas são inquietações próprias da natureza humana, e que, portanto, elas devem ser testadas de tempos em tempos por meio de experiências práticas. Isto leva a compreender que as estéticas hoje são construídas pelos praticantes do teatro, não mais pelos intelectuais e dramaturgos. É certo que as experiências do passado não podem ser reproduzidas, mas são passíveis de serem revisitadas e abertas a outras experiências estéticas que oportunizem nova percepção para o mundo contemporâneo. Registrar e descrever os processos de revisitação, adaptação, releituras e atualização é fundamental, pois se transformam em instrumentos de reflexão sobre as relações com o mundo atual, ressignificando as estéticas e ampliando os espaços de enunciação para o teatro. É nesta direção que se inscreve o processo de revisitação da lenda do Mapinguari por meio da estrutura dramática do drama pastoril de Bento Figueiredo Tenreiro Aranha, Os pastores do Amazonas, de 1793: pensar a escritura dramática no contexto de espaço de enunciação para as práticas teatrais e oferecer um texto que dilata os limites do real e do imaginário, sendo destinado também à leitura – uma preocupação presente desde Sêneca. Bento Aranha nasceu em Barcelos, vila então pertencente à Capitania do Rio Negro, e que hoje pertence ao Estado do Amazonas. Aos doze anos, órfão, muda-se para Belém, local em que apura sua afinidade com as “bellas-letras”. Como país colonizador, Portugal estende suas leis, regras de sociedade, cultura e estética por todo o território brasileiro. As regras portuguesas transformam-se em peso e medida para os trabalhos artísticos aqui produzidos,  

192  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   portanto, é natural que Bento Aranha tenha estabelecido sua estética dramática a partir dos modelos portugueses, desenvolvendo sua dramaturgia a partir do drama pastoril lírico e inocente. Bento Aranha também se utilizou do recurso laudatório para compatibilizar-se com as autoridades, o que lhe rendeu reconhecimento artístico e alguns empregos públicos, como fica claro na inscrição de abertura de Os pastores do Amazonas: Os pastores do Amazonas DRAMA PASTORIL Que se representou no Theatro da Cidade do Pará no Dia faustíssimo e anniversario de Sua Magestade no qual festejarão juntamente com este o Feliz nascimento de sua recém-nascida e Augusta Neta a Serenissima Senhora Princeza da Beira Os índios Paraenses À custa dos quaes se fez esta funcção, dirigidos pelo seu respectivo Intendente e Thesoureiro OFERECIDO Ao Illmo Exmo Snr. D. Francisco de Souza Coutinho DO CONSELHO DE SUA MAGESTADE GOVERNADOR E CAPITÃO GENERAL DO ESTADO DO PARÁ E á exigências do dito Snr. Composto por BENTO DE FIGUEIREDO TENREIRO ARANHA Natural do mesmo Estado ANNO de 1793

Têm-se como registro apenas três dramas atribuídos a Bento Aranha, publicados postumamente por seu filho. Em todos, observa-se a influência da estrutura em versos e do gênero laudatório da dramaturgia portuguesa do XVII. É, consequentemente, uma dramaturgia primitiva – basicamente declamação de poesia e de poucos recursos cênicos. Contextualizando brevemente o período, ressalta-se que o teatro português vinha de uma longa decadência pós-Gil Vicente (século XVII). O teatro, censurado e enclausurado em ambientes fechados e restritos, só ressurge na segunda metade do século XVIII com Antonio José da Silva, “O judeu”. O gênero predominante passa a ser o Drama Pastoril, introduzido em Portugal por Domingos dos Reis Quita, tendo este gozado de considerável reconhecimento à época. Sobre os dramas pastoris e a censura da Casa Real Portuguesa dessa época, Izabel Pinto, do Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa em seu artigo “as entranhas

 

193  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   palpitantes: Drama Pastoril e Censura”, contribui para a compreensão das estéticas do drama pastoril: Um conjunto de textos de teatro da segunda metade do século XVIII dá a entender uma recepção favorável da Real Mesa Censória ao estilo pastoril, cujo valor estético foi também incorporado pelo movimento árcade. A virtude conotada com uma determinada vivência da natureza e, paralelamente, a sua funcionalidade na reinvenção da estética literária portuguesa desembocam na conciliação de perspectivas, à partida pouco provável, entre censores e autores. Neste âmbito, Il Pastor Fido, de Giovanni Battista Guarini (1538-1612), e os dramas pastoris Erasto e Evandro e Alcina, de Salomon Gessner (1730-1788), a par com o original português de Domingos dos Reis Quita (1728-1770), Licore, constituem referências do papel, simultaneamente, moralizante e renovador que coube ao drama pastoril protagonizar num dado momento histórico, quer através de traduções que conseguem preservar o “ardor poético” do original, sem comprometer a “santa lei”, quer através de originais portugueses, que recriam na língua mãe um modo de vida exemplar. De facto, na primeira edição das obras de Reis Quita, em 1766, é incluída uma Carta sobre a Utilidade da Poesia, na qual se explicita, sobretudo, a necessidade de reinventar o próprio teatro, sugerindo, a bem das “leis do decoro”, a substituição do seu carácter dissoluto e corrupto pelos ensinamentos do teatro grego. (s/d.)

Observa-se no texto de Pinto a preocupação dos intelectuais portugueses em dotar o gênero pastoril dramático a uma reforma na dramaturgia que considere a estética e valores do teatro grego, usando a voz dos pastores para o questionamento da ordem estabelecida, deixando que o arrebatamento humano perturbe seus cantares e amores, em que o lírico e o inocente se deixem contaminar pelas questões humanas. É também nesse período que as apresentações em praças públicas e igrejas voltam a ser admitidas. No Brasil, considerando que a colonização inicia em meados do século XVI, quando Gil Vicente já havia morrido e Portugal vivia um aparente vazio teatral, há de se supor que a colônia também não produziria um grande teatro. Assim, até meados do século XVIII o Brasil vive o teatro das festividades religiosas; pouco se pode acrescentar pela ausência de documentos, mas pode-se conjecturar que o teatro de catequese não cabia às grandes cidades da época, já que portugueses e nativos deveriam se unir no combate aos holandeses e franceses. Reforça essa conjectura a existência das Casas de Ópera a partir de 1748 no Rio de Janeiro, o que propicia o surgimento dos atores, autores e cenógrafos. Entretanto, dramaturgicamente, à ausência de documentos seguem-se caminhos pouco concretos, destacando somente o texto O Parnaso Obsequioso, do inconfidente Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e, de forma a ampliar esse repertório, tal como se fez com Anchieta, repatria-se Antonio José da Silva – O Judeu. Contudo, se o período não produziu autores de projeção nacional, ao menos proporcionou o inicio de uma atividade artística

 

194  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   regular no Brasil. É nesse contexto que se localiza Os pastores do Amazonas, publicado em 1794 em Lisboa e, posteriormente, republicado em coletânea no ano de 1850. Ressalta-se que, o Teatro Brasileiro, só surgirá alguns anos após a morte de Bento Aranha (25.09.1811), e que as condições mínimas para as apresentações teatrais são da época da borracha, ainda assim, apresentações populares aconteciam nas ruas, no teatro municipal (caso de Belém) ou próximo aos rios. Permite-se, assim, inserir Bento Aranha na categoria de dramaturgos que preenchem o vazio da vida cênica brasileira, ainda que prejudicado pela localização geográfica da Capitânia do Rio Negro em relação a São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife, capitais culturais do Brasil Colônia. Os pastores do Amazonas, apesar de pouco conhecido, é provável que seja a primeira dramaturgia genuinamente produzida por um amazonense. Escrita em ato único com cinco cenas, tem como espaço dramático o ambiente amazônico, conforme mostra as rubricas de abertura: “A scena se figura nas margens do dito Rio Amazonas, ou nas do Guajará, que he como feúdario d´aquelle, e o em que se acha a cidade de Belém do Pará”66 (p. 111). Propôs-se, a partir do texto de Bento Aranha, a revisitação da lenda do Mapinguari em que se preserva a estrutura dramática e se utiliza da intertextualidade para a nova escritura, observando a estética aristotélica: unidade de ação – conflitos; unidade de tempo – 24 horas; unidade de lugar – a floresta. Essa escolha busca imprimir no texto de revisitação os confrontos próprios da natureza humana: vício e virtude, amor e ódio, poder e submissão, etc. O conflito é o elemento invasivo na adaptação, uma vez que o drama pastoril não se ocupa de confrontos, apenas da lírica e do canto, preservando a inocência como característica de seus personagens, o que se repete em A captura do Mapinguari. Além da estrutura do texto Os Pastores do Amazonas, para a adaptação com a lenda do Mapinguari, na construção da dramaturgia os cenários descritos nas rubricas são recortados e inseridos como cenários d’A Captura do Mapinguari. Assim, o espaço dramático no texto observa a mesma organização cênica de Os pastores do Amazonas – um palco com dois quadros que se desvelam à medida que as cenas evoluem. Na primeira cena, também as rubricas assemelham-se: margens do Rio Negro, uma grande pedra onde o protagonista, Timbira, descansa, e uma enorme sumaumeira forma com seu tronco uma gruta e ao fundo tem-se a grande floresta amazônica. O segundo quadro destitui o altar à Excelsa Diana, inserindo o cotidiano de uma tribo indígena onde vive Timbira. O real e o fantástico

                                                                                                                66

 

Tradução nossa.

195  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   misturam-se, deixando espaço para a subjetividade do leitor de maneira a oportunizar uma outra vida que não a sua cotidiana. A intertextualidade com o drama de Bento Aranha é frequente na nova dramaturgia, com textos utilizados, algumas vezes, na integralidade do original, como por exemplo a fala dirigida a Timbira pelos membros da tribo: “Aceita o tributo que nós te rendemos, pelo bem, que agora de ti recebemos” (1794). Em Os pastores do Amazonas, Bireno ouve o canto de uma Napéa e o confunde com a voz de Elysa. Esclarecido o engano, ambos são conclamados a anunciar o aniversário e o nascimento das soberanas Maria, respectivamente, avó e neta. Seguindo essa estrutura, a primeira cena de A captura do Mapinguari é uma versão atualizada do texto de Bento Aranha. O protagonista Timbira descansa após uma noite de caça ao monstro devorador de cabeças, Mapinguari; um coral de peixes tenta acordá-lo, e tal como Bireno, Timbira pensa ser a voz da sua amada Jarina. - Que vozes são essas que me acordam? De onde vêm? Sobre as margens do Amazonas nunca ouvi semelhante vozes. - [...] - Salve, doce Jarina! Sua voz suave vem descansar meus ouvidos do silêncio da floresta. Repare que dos raminhos já pendem para ouvi-la os passarinhos.

Sendo o texto de Bento Aranha: Que vozes; que suave melodia Do sonno me desperta! Quão sonora! Quem será! Donde vem tanta harmonia? Nunca a ouvi semelhante sobre as margens Do famoso Amazonas... [...] Adeos, presada Elysa, Dize-me, acaso forão tuas vozes Sempre doces, mas hoje mais suaves, As que, soando neste bosque (...) Dize, amavel Serrana; e se tú foste, Continua a cantar, que dos raminhos Já pendem para ouvirte os passarinhos.

Como se observa no exemplo acima, a intertextualidade faz-se por meio de manobras textuais, especificamente, colagens que atualizam o texto ao mesmo tempo em que preservam sua essência. Mantém-se o duo de personagens centrais, Bireno e Elysa, que passam então a ser Timbira e Jarina; as Napéas – elementos fantásticos, são substituídas pelo coral de peixes. A inscrição do processo de revisitação da lenda do Mapinguari na estrutura dramática do drama pastoril Os pastores do Amazonas, dá-se a partir da revisitação da lenda,  

196  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   considerando três formas de adaptação, segundo Patrice Pavis (2007): a primeira é a transposição da lenda, advinda do registro escrito da oralidade para o gênero dramático, em que se manteve a fidelidade de conteúdo; a segunda forma concentra-se no trabalho dramatúrgico em que se permite total liberdade para a redução de textos. A terceira é a ampliação de personagens, colagens de elementos de outras fontes, atualização da linguagem ao contexto atual de recepção, omissões e acréscimos julgados relevantes à reelaboração, tal como se faz nas releituras de clássicos ou nas traduções de textos estrangeiros, até a modificação do final da história. Como temática organizadora da dramaturgia, foi escolhida a lenda do Mapinguari que, pouco difundida nas áreas urbanas, é mais conhecida no interior do estado, onde funciona como estratégia para amedrontar caçadores inescrupulosos e manter as crianças longe da floresta densa. A atualidade e o poder de provocar o imaginário – uma vez que a possibilidade de o animal existir ou ter existido como um ancestral do bicho-preguiça suscita debates no meio acadêmico – foi a determinante para a escolha do elemento lendário como organizador da dramaturgia, além do fascínio que a representação do Mapinguari como um monstro suscita: hálito malcheiroso, andar desconjuntado e a boca na barriga. São, sem dúvida, fatores estimulantes para a construção de imagens lúdicas. Sob este prisma, a dramaturgia foi desenvolvida visando atingir também ao público infantil associando-o às situações imaginárias que facilitam a relação do indivíduo com o mundo real. Contrariando a tendência contemporânea de escritura dramática em processos colaborativos, optou-se pelo trabalho solitário do autor de gabinete, para o qual se desenvolveu um roteiro de condução e orientação na construção do texto dramático, pensado no âmbito de colagens e intertextualidade com a obra de Bento Aranha. Este roteiro registra as escolhas para o desenvolvimento de A captura do Mapinguari: título, gênero, modo de referência, tempo e espaço dramático e cênico, personagens, argumento, antecedentes da ação dramática, divisão do texto, pesquisas e empréstimos. No entanto, o entrelaçamento da experiência do real e do imaginário suscitaram outras experimentações estéticas, pois, segundo Esslin, “o drama é tão multifacetado em suas imagens, tão polivalente em seus significados, quanto o mundo que ele espelha” (1978, p. 129). Neste contexto, A captura do Mapinguari foi construída de forma a não se deixar engessar a Os Pastores do Amazonas, sendo o gênero a principal mudança. É uma comédia direcionada às novas gerações, pois se preocupa em oferecer ao leitor/espectador uma reflexão sobre os acontecimentos fantásticos que cercam a vida humana, de maneira a propiciar uma relação prazerosa entre o indivíduo e os aspectos lúdicos do cotidiano.  

197  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O Mapinguari não se apresenta como herói ou vilão. As lendas, diferentemente das fábulas, não comportam uma moral, tampouco se preocupam em oferecer finais felizes. Elas são, antes de tudo, transmissão de conhecimentos, comportam ensinamentos que viabilizam a convivência pacífica entre homem e natureza, evocam a relação e a crença incontestável do homem amazônico de que as águas e a floresta são espaço de habitação, sobrevivência, conhecimento, enfim, espaço de vida. Assim, vislumbra-se que A captura do Mapinguari possa contribuir para a permanência da lenda no mundo contemporâneo. É com o olhar voltado para a convivência pacífica que se articula o conflito da dramaturgia e os argumentos para o desencadeamento das ações dramáticas. Tem como ponto de partida a história do índio Timbira que, desejoso de se casar com a filha do Tuxaua, vê na captura do Mapinguari a oportunidade de provar que é digno de desposar a índia Jarina. Porém, Timbira é um índio um tanto medroso e ingênuo, sua ingenuidade o favorece na relação com os elementos da fauna amazônica, garantindo o sucesso da captura do Mapinguari e a transformação de Timbira em herói da tribo. Tal como no drama pastoril Os Pastores do Amazonas, o texto está organizado em dois quadros que se desvelam à medida que a dramaturgia A captura do Mapinguari evolui. No primeiro quadro, as cenas têm como espaço dramático uma floresta à beira de um rio. No segundo, a floresta abre-se à proporção que os personagens adentram-na, revelando uma comunidade indígena. Este espaço dramático é idealizado de maneira a oferecer diversas possibilidades de encenação, não o engessando ao palco italiano, posto que não demanda maquinarias complexas. Os personagens foram construídos deixando em evidência seu caráter e personalidade. O Mapinguari é um ser fantástico, com um olho no centro da testa e a boca na barriga. Mede de dois a quatro metros de altura, parece uma preguiça pré-histórica, além de exalar odor fedorento. Apresenta-se como um monstro feroz, que devora cabeças humanas, como instinto de sobrevivência e defesa. Timbira é um índio medroso e ingênuo, apaixonado por Jarina, e trava um duelo interno entre o medo do Mapinguari e a coragem necessária para provar ser digno de Jarina. Por sua ingenuidade e agilidade em sair de situações embaraçosas, é um personagem inspirado em Arlechino, da Commédia dell`Arte. Jarina, filha do Tuxaua, é romântica, não consegue perceber as limitações do amado, e o vê valente e corajoso. Percebe na captura do Mapinguari a chance do pai aceitar Timbira para seu esposo.

 

198  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O coral de peixes, elemento fantástico da dramaturgia, representa a voz da razão e a harmonia entre o homem e a natureza. O Tuxaua, chefe da tribo e pai de Jarina, não acredita que Timbira possa ser um bom marido para a filha, e se esquiva sempre da permissão para o matrimônio. A índia velha e as três índias têm como função articular a reflexão acerca da vaidade. Somam-se aos personagens o Pajé e alguns guerreiros, que protagonizam as ações do cotidiano da tribo. A narrativa literária escolhida como referência para o desenvolvimento da escritura dramática foi o registro realizado de Apolonildo Britto, em seu Lendário Amazônico (2007, p. 73-77). Na pesquisa da lenda, tentou-se descobrir a sua possível origem, uma vez que não se encontram, em relatos como de Stradelli (2009), Antônio Coutinho Oliveira (2007), e outros estudiosos que pela Amazônia andaram durante o Período Imperial, registros de sua existência. Isto nos leva a concluir que o Mapinguari seria um monstro relativamente novo, uma vez que só aparece nas narrativas dos seringueiros. Esta talvez fosse, aos olhos e ouvidos dos seringueiros, a explicação para os sons produzidos pela floresta, que desafiavam os mais corajosos. O domínio do Mapinguari comporta os estados do Pará, Amazonas e Acre, sendo o monstro mais popular nas zonas rurais da Amazônia. As inúmeras versões, que variam da quantidade de olhos até a posição da boca, trazem a natureza do devorador de cabeças, ora descrito como um macaco, ora como um ancestral da preguiça, ou ainda, simplesmente, como um ser fantástico. Contudo, na abordagem do Mapinguari como tema da dramaturgia, não se pretende comprovar ou não sua existência, mas ampliar a visibilidade da lenda. REFERÊNCIAS BRITTO, Apolonildo Senna. Lendário Amazônico. Manaus: Norte Editorial, 2007. ESSLIN, Martin. Uma Anatomia do Drama. Tradução de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. [Tradução Nanci Fernandes]. São Paulo: Perspectiva, 2008. Estudos 247. OLIVEIRA, Joana Abreu Pereira de; PEREIRA, Ricardo Augusto. Módulo 30: Processos de encenação final. Brasília: Artecor, 2011 OLIVEIRA, José Coutinho. Imaginário Amazônico. Organização: Ana Paula Rebelo Silva, Maria Madalena de Oliveira Rebelo, Paulo Maués Corrêa. Belém: Paka-tatu, 2007.  

199  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   PINTO, Izabel. “... as entranhas palpitantes”: Drama pastoril e censura. Disponível em: , Acesso em: 14 Jul de 2013. ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. STRADELLI, Ermanno. Lendas e notas de viagem: A Amazônia e Ermanno Stradelli. São Paulo: Martins, 2009.

 

200  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A CRÍTICA GENÉTICA NA ERA DA INTERNET: UMA LEITURA DO PROJETO AMORES EXPRESSOS Graziela Ramos Paes (UEA)67

Este artigo, inserido no campo dos arquivos literários, lança mão de considerações da crítica genética a fim de fazer uma leitura sobre o projeto Amores Expressos. Iniciado em 2007, o projeto teve como finalidade a publicação de obras literárias por escritores brasileiros contemporâneos que, enviados a diferentes países, tinham como missão criar uma história de amor ambientada no respectivo destino. O projeto contou com uma série de etapas antecessoras à escrita dos romances, como a criação de blogs alimentados pelos escritores e depoimentos concedidos por eles para um documentário sobre o projeto. Nesse sentido, percebe-se que Amores Expressos buscou estreitar a relação entre autor e público, sobretudo concedendo a chance destes de acompanhar as impressões e o amadurecimento das ideias do autor, anteriores à escrita e publicação da obra. Sob esse ponto de vista, nos interessa discutir, por meio deste material virtual antecessor à publicação, quais os caminhos da crítica genética na atualidade, uma vez que as mídias sociais parecem figurar uma importante fonte para as investigações do geneticista.

Palavras-chave: Amores Expressos. Crítica genética. Mídias sociais.

1 Introdução

Em 17 de março de 2007, numa matéria de intitulada “Bonde das letras”, a Folha de São Paulo anuncia em primeira mão o projeto Amores Expressos. O redator da matéria, Cadão Volpato, explica que o projeto consiste em enviar – durante um mês – 16 autores brasileiros68, novos e veteranos, para 16 cidades do mundo, a fim de que cada um escreva uma história de amor que poderá ser publicada pela Companhia das Letras. Volpato ressalta que o projeto é idealizado pelo produtor Rodrigo Teixeira, mas conta com a parceria de João Paulo Cuenca e os recursos da Lei Rouanet. Além disso, a matéria assinala que Rodrigo Teixeira tem arquitetado diversos projetos multimídia e, segundo ele, em Amores Expressos “um livro pode virar um filme que pode virar um DVD que pode virar um programa de televisão”.                                                                                                                 67

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), e pesquisadora do projeto Amazônia Audiovisual - Representatividades Contemporâneas, do Núcleo de Antropologia Visual da Universidade Federal do Amazonas (NAVI-UFAM). 68 Nas matérias que foram publicadas depois, constam 17 autores. Por razão da desistência de Marçal Aquino, os escritores Paulo Scott e Daniel Pellizzari foram anunciados para integrar o projeto.

 

201  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Desde o início do projeto, a utilização de recursos midiáticos foi planejada. Assim, antes da publicação dos livros escolhidos, os escritores tinham a missão de escrever em um blog suas impressões e experiências durante suas respectivas estadias, como também participar de um documentário, no qual cada um dava seu depoimento sobre o projeto, abordando algumas questões, tais como: como é aquela cidade, o que é ser estrangeiro, o que o lugar proporciona para a criação literária, o que é o amor, etc. Hoje, seis anos depois da publicação da matéria de Volpato e após muitas polêmicas em relação aos recursos destinados ao projeto (que, ao fim e ao cabo, não contou com o apoio financeiro da Lei Rouanet), nos interessa tecer uma discussão não apenas sobre o Amores Expressos e seu desenvolvimento ao longo desses anos, mas também – e principalmente – sobre a relação atual que as mídias sociais69 estabelecem com a literatura e o processo da criação artística. Para que haja compreensão sobre a relação que desejamos investigar, é importante pensar sobre as conexões que os indivíduos estabelecem com o mundo na atualidade, tendo em vista as tecnologias disponíveis. Somos testemunhas de uma realidade cada vez mais voltada para a apreensão do “agora”, da necessidade do arquivamento, aparentemente saciada por meio dos (cada vez mais modernos) suportes eletrônicos que nos são oferecidos: Gravar e arquivar o nosso passado parece-nos hoje algo de muito necessário, tão indispensável como catalogar cada momento da nossa própria experiência, fotografando as imagens colhidas durante as viagens, gravando em vídeo os momentos da vida de nossos filhos ou os programas televisivos que mais nos parecem dignos de serem “conservados”, amontoando no computador nossas receitas culinárias e os números de telefone, os gostos dos amigos e o faturamento do último mês. (COLOMBO, 1991, p. 19).

A necessidade do arquivamento não é nova, afinal, o ser humano sempre buscou registrar a sua história, documentar sua vivência. Durante a Era Moderna, o documento manuscrito foi bastante valorizado, sendo o papel o suporte principal para reter os eventos e informações de outrora. No entanto, para retermos os conhecimentos e informações na atualidade, contamos também com o uso simultâneo de outras tecnologias, como a fotografia,                                                                                                                 69

Segundo a Wikipédia, “o conceito de mídias sociais (social media) precede a Internet e as ferramentas tecnológicas - ainda que o termo não fosse utilizado. Trata-se da produção de conteúdos de forma descentralizada e sem o controle editorial de grandes grupos. Significa a produção de muitos para muitos. Mídias sociais se referem aos meios de interação entre pessoas pelos quais elas criam, compartilham, trocam e comentam conteúdos em comunidades e redes virtuais”. (MÍDIAS SOCIAIS. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013. Disponível em: . Acesso em: 4 jul 2013).

 

202  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   a filmagem, o editor de textos do computador, o telefone móvel etc. Essas tecnologias, além de possuírem suportes utilizados para os mais variados fins, são cada vez mais dinâmicas e atualizadas, pois agregam o uso da Internet: vídeos, imagens e textos vão parar na web, muitas vezes as mídias sociais são o destino final dessas produções. Naturalmente, a literatura também se encontra vinculada à tecnologia. Basta pensarmos, por exemplo, na quantidade de autores contemporâneos que utilizam ou utilizaram o blog para publicar e arquivar seus textos, ou naqueles que utilizam as demais mídias sociais para compartilhar seus escritos com o público. O fato é que, de uma forma ou de outra, a Internet proporciona uma maior circulação dos textos, bem como uma visibilidade maior dos escritores, uma vez que estes constantemente cedem entrevistas para sites, revistas e jornais online. Esses fatores, para os estudos literários, especialmente aqueles que se propõem a investigar o processo de produção da obra, são marcantes, pois apontam novos rumos dentro da crítica genética. A presente investigação, inserida no campo dos arquivos literários, lança mão de considerações da crítica genética a fim de fazer uma leitura sobre o projeto Amores Expressos. Percebe-se que o projeto buscou estreitar a relação entre autor e público, sobretudo concedendo a chance do público de acompanhar as impressões e o amadurecimento das ideias do autor, anteriores à construção narrativa. Sob esse ponto de vista, nos interessa discutir, através dessas etapas (especialmente a da escrita dos blogs), quais os caminhos da crítica genética na atualidade, uma vez que as mídias sociais parecem figurar uma importante fonte de estudos para o geneticista. 2 A crítica genética na atualidade: novos rumos Philippe Willemart, no texto A crítica genética hoje, faz um questionamento fundamental para este trabalho: “Hoje, embora bastantes escritores continuem com a caneta e o papel, a maioria digita, deleta e imprime somente a última versão. Ainda é possível a crítica genética nestas condições?” (2008, p. 136). Para responder a essa pergunta, precisamos refletir um pouco sobre a situação do escrito e do escritor na atualidade. Primeiramente, precisamos lembrar que ainda existem muitos arquivos manuscritos (cujo suporte é o papel) a serem explorados; como também ainda existem e sempre existirão autores que terão preferência pelo manuscrito no papel em detrimento ao escrito digitado nas teclas do computador. No mais, muitos escritores que utilizam o computador para escrever  

203  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   optam por imprimir as versões de seus textos, pois assim podem fazer modificações diretamente no documento impresso. Em segundo lugar, o geneticista não carece exclusivamente de manuscritos para desenvolver sua investigação. Segundo Cecília Almeida Salles e Daniel Ribeiro Cardoso (2007): A crítica genética, em seu surgimento, propunha o acompanhamento teóricocrítico do processo de criação na literatura; no entanto, já trazia consigo a possibilidade de explorar um novo campo transdisciplinar, que nos levaria a poder discutir o processo criador em outras manifestações artísticas. Essa ampliação dos estudos genéticos parecia já estar inscrita na própria definição de seu propósito e de seu objeto de estudo. Se os estudos genéticos tinham como objetivo compreender o processo de constituição de uma obra literária e seu objeto de estudo eram os registros do escritor encontrados nos manuscritos, esse campo de pesquisa deveria quase que necessariamente romper a barreira da literatura e ampliar seus limites para além da palavra, pois processo e registros são independentes da materialidade na qual a obra se manifesta e independentes, também, das linguagens nas quais essas pegadas se apresentam. Seria possível, portanto, conhecer alguns dos procedimentos da criação, em qualquer manifestação artística, a partir desses registros deixados pelos artistas. (p. 44)

Sales e Cardoso (2007) parecem nos apontar que, uma vez que a crítica genética ultrapassou o campo da literatura, adentrando nas demais manifestações artísticas, ela também ampliou suas ferramentas e linguagens, rompendo sua ligação intrínseca com o manuscrito, expandindo seus limites para além da palavra, especialmente da palavra escrita. Dessa forma, como demonstram os autores, os processos e registros são independentes da materialidade na qual a obra se manifesta, e os artistas, por sua vez, deixam registros que nos permitem conhecer alguns procedimentos da criação. Desse modo, tendo em vista o cenário artístico atual, quais seriam esses registros? Talvez nem todos estejam ligados à tecnologia digital, entretanto, difícil é não encontrarmos pistas que apontem para esse rumo. No caso da literatura, que essencialmente pressupõe o processo textual, é impossível não admitirmos que a maioria dos autores contemporâneos lança mão das teclas do computador para escrever seus textos. De fato, o uso dessa ferramenta facilita muito o processo da escrita, uma vez que, para o autor que utiliza somente papel e caneta, as tentativas da escrita demandam uma série de folhas em branco, uma série de rascunhos e textos passados a limpo. É claro que esse pode ser também um processo semelhante ao uso do computador, uma vez que é possível salvar inúmeras cópias e rascunhos dos documentos digitais. Entretanto, o escrito oriundo das teclas do computador – e  

204  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   mesmo aquele da avó dos processadores, a máquina de escrever – permite a conversão mais veloz do pensamento em texto escrito, facilitando a apreensão de ideias, de modo que muitos processos psíquicos iniciais do autor podem ser conservados, transformando-se em importante fonte de investigação para o geneticista. Portanto, retornando ao questionamento de Philippe Willemart presente no início deste tópico, sim, a crítica genética ainda é possível nessas condições (as da era digital). Os escritores salvam cópias de seus arquivos, muitas vezes por medo de perdê-los, e assim o computador pode ser uma importante ferramenta para o acesso aos textos iniciais ou progressivos de uma obra ou autor. Além disso, esses diferente arquivos digitais de um mesmo texto permitem a melhor visualização de modificações efetuadas pelo escritor, e até cronologicamente, basta clicar no documento e consultar a opção “Propriedades” para saber as datas. E temos ainda alguns autores que, além de salvarem seus arquivos em computadores pessoais, também possuem o hábito de disponibilizar na Internet fragmentos de seus escritos, ou enviá-los via e-mail para diferentes pessoas. Sob essa perspectiva, o processo genético deveria contar cada vez mais com a investigação dentro das mídias sociais, pois elas são ferramentas muito utilizadas na contemporaneidade, sobretudo por profissionais que trabalham com produção textual. Voltemos ao caso do manuscrito. Desde a fundação da Associação dos Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML) em 1985, os estudos de crítica genética no Brasil permaneceram concentrados no estudo do manuscrito. No entanto, segundo Philippe Willemart, no decorrer das pesquisas e com a integração de novos membros, notadamente pesquisadores da PUC de São Paulo que estudam as artes e as mídias, a APML operou três mudanças, e percebeu, primeiro, que o estudo da crítica genética não abrange necessariamente e somente os manuscritos literários, mas o universo sem fim da criação humana, incluindo as artes, a literatura e até mesmo a mídia; segundo, que o objeto da crítica genética se concentra no estudo dos processos de criação que podem ser captados tanto nos rascunhos, croquis ou esboços quanto na obra exposta para o pintor, no texto publicado para o escritor, na dança executada para o dançarino ou no jogo do ator para o teatro etc., sem o estudo obrigatório do que antecede as obras; terceiro, que a crítica genética ainda é possível na era do computador, já que o disco rígido mantém todas as mudanças provocadas pelas rasuras ou substituições do escritor. (2008, p. 130)

 

205  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Aqui já é evidente que Willemart admite o potencial das mídias para os estudos da crítica genética, bem como vê a crítica genética “ainda ser possível na era do computador”. Mas será que a sobrevivência da crítica genética deveria ainda ser posta em dúvida na era digital? E será que, para além do uso arquivístico do computador pelos autores literários, a crítica genética não deveria também buscar na Internet, através da variadas mídias sociais existentes, outras formas de investigar a gênese literária, aproximando-se mais da palavra do próprio autor, facilmente encontrada na rede? As entrevistas escritas ou audiovisuais estão lá, disponíveis para qualquer internauta. Segundo Louis Hay (2002) não se pode “traçar entre a escritura e o escrito uma linha de separação absoluta; mas é igualmente impossível confundi-los [...] a gênese é outra coisa, diferente do escrito” (p. 41). Ora, se a gênese compreende uma abstração muito mais ampla sobre a criação literária, é fundamental que o geneticista beba de todas as fontes possíveis para descobrir as pistas deixadas pelo artista. Uma forma de discutirmos um pouco acerca dessas fontes, e também sobre as questões supracitadas, é fazendo uma leitura do projeto Amores Expressos. 3 Amores Expressos e os rastros geneticistas

Como sabemos, o projeto Amores Expressos teve início em 2007 e enviou 17 escritores brasileiros da atualidade para 17 países diferentes, dando-lhes a possibilidade de publicar seus livros pela Companhia das Letras, caso fossem aprovados. Hoje, seis anos depois, o projeto já conta com dez livros publicados pela editora: Cordilheira (Daniel Galera, 2008 – cujo destino foi Buenos Aires), O filho da mãe (Bernardo Carvalho, 2009 - São Petersburgo), Estive em Lisboa e lembrei de você (Luiz Ruffato, 2010 – Lisboa), O único final feliz para uma história de amor é um acidente (João Paulo Cuenca, 2010 – Tóquio), Do fundo do poço se vê a lua (Joca Reiners Terron, 2010 – Cairo), O livro de Praga: narrativas de amor e arte (Sérgio Sant’Anna, 2011 – Praga), Nunca vai embora (Chico Mattoso, 2011 – Cuba), Digam a satã que o recado foi entendido (Daniel Pellizzari, 2013 – Dublin), Ithaca Road (Paulo Scott, 2013 – Sydney) e Barreira (Amilcar Bettega Barbosa, 2013 – Istambul). Desta quantidade expressiva de romances lançados pelo projeto, percebemos que as temáticas dos livros estão basicamente centradas no amor, é claro, e na temática da viagem. Entretanto, esse amor não se resume em uma visão idealizada ou clichê, mas transita em

 

206  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   manifestações nas quais o tema do amor está presente. O livro de Bernardo Carvalho, por exemplo, é sobre um amor homossexual entre um refugiado de guerra e um recruta. O depoimento dos escritores tornou-se um documentário, dividido em episódios com cada participante, e foi transmitido pela TV Cultura em abril de 2011, sob direção de Estela Renner e Tadeu Jungle. O documentário foi baseado nas experiências vividas pelos escritores participantes do projeto, que, durante três dias da viagem, foram acompanhados pela equipe de filmagem. Nesses vídeos, antes veiculados pelo canal da TV Cultura na televisão e no Youtube, hoje parecem não estar mais disponíveis na web. Possivelmente, o produtor Rodrigo Teixeira, como já havia anunciado em entrevistas, pretende lançar um DVD contendo todo o material. Os blogs, no entanto, estão disponíveis até hoje na rede. O material dos blogs dos escritores é, sem dúvida, uma das fontes mais interessantes para a crítica genética. Primeiramente pela quantidade e diversidade de textos postados, em segundo lugar pela semente que se lança ali para dar origem aos romances publicados. Desse modo, os blogs transitam entre diários de viagem, exercício de escrita literária, reflexão sobre o papel do escritor nos dias de hoje e sobre a condição de ser estrangeiro. Sobre esta última, vejamos o que João Paulo Cuenca escreve em seu blog: A verdade é que, no fim das contas, não me sinto mais estrangeiro aqui do que andando em qualquer lugar da minha cidade. Sempre tenho a impressão de que estou fora de lugar e do tempo no Rio de Janeiro, não menos ou mais do que aqui. Andando em Copacabana, Belford Roxo ou Shinjuku o sentimento de alienação e estranheza é exatamente o mesmo. Para onde vão todas essas pessoas? Obviamente não me sinto capaz de compartilhar nada com elas. Estar num lugar tão diferente e supostamente “estranho” como Tóquio me faz perceber isso com uma clareza inédita: não há diferença. É uma conclusão triste, talvez meio infantil. Na minha cidade natal há pessoas que amo, e sinto falta delas. Mas não sinto que pertença a nenhum lugar específico. Nesse sentido, é como se estivesse descolado dos lugares do mundo. Não é uma liberdade confortável. Não há liberdade confortável. Pensando nisso, posso dizer que, para mim, o prazer que há em viajar passa por sentir-se estrangeiro quando se realmente é. De certa forma, um alívio. Voltarei a escrever sobre isso. (CUENCA, 2007)70.

Percebe-se que a própria escrita do autor do blog, talvez mesmo sem pretensão, trabalha com uma poética, na qual percebemos um pouco do seu estilo. Nesse sentido, “o                                                                                                                 70

Por uma questão de organização, para não citar repetidas vezes os endereços dos blogs dos autores, coloco aqui em ordem o endereço de cada um, por ordem de aparição neste tópico do trabalho: , , , e . Todos os blogs foram escritos no ano de 2007 e foram acessados para este trabalho em Julho de 2013.

 

207  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   crítico da gênese, além de extrair e de expor as riquezas encontradas, pretende tal qual um alquimista, discernir e entender o processo de criação, isto é, aproximar-se deste mistério e desvendar a montagem da narrativa e o estilo do autor” (WILLEMART, 1993, p. 19). Vejamos agora, na escrita de Daniel Pellizzari, que possui um estilo mais irônico e humorístico, como o relato de sua chegada na Irlanda foi feito: [...]o funcionário da imigração não dava nenhum sinal de estar inclinado a acreditar que eu estava entrando no país como visitante. [...] Respondi onde moro no Brasil, informei a distância exata de Porto Alegre a São Paulo em quilômetros. Confirmei que aquele era realmente meu primeiro passaporte e que estava fazendo minha primeira viagem à Europa. [...] Mesmo assim ele não parecia nada feliz. Balançava a cabeça, repetia no, no, no num tom de voz um tanto funéreo e me olhava nos olhos como se eu fosse o maior aplicador de sambarilove da história da espécie humana. [...] Então ele perguntou mais uma vez o que eu tinha ido fazer na Irlanda e senti vontade de voltar pra casa sambando de bombacha em cima de um camelo flutuante. [...] Então bueno, a única saída que me restava era fazer o que eu menos queria: explicar o Amores Expressos. Bastou eu dizer "olha, fui contratado para escrever um livro que se passa em Dublin, vou passar um mês aqui para pesquisar" para a expressão do funcionário se transmutar. Como num clichê de romance esloveno, o antigo funcionário parecia ter se desvanecido em fumos invisíveis e teve seu lugar tomado por um duplo mais bem-humorado. O sósia fanfarrão cruzou os braços, me olhou de novo nos olhos, agora como quem pensa "essa desculpa é nova" e fuzilou: - Tem alguma prova disso? [...] Mencionei o site do projeto, sabendo que de nada serviria. Que tipo de prova ele queria, um contrato com tradução juramentada? Segurei o away tae fuck, mate que me ejetaria em dois segundos pro amor eterno e os raios vívidos do Braza e encarei o interrogatório com calma. Algumas respostas: a) Não, eu não me considero famoso; b) Sim, é provável que meu nome seja familiar para quem se interessa por literatura brasileira contemporânea; c) Que tipo de livro se escreve em um mês? Olha, vários. Mas não é o caso. Como já falei, estou aqui para pesquisar, lembra? [...] E a partir da letra g, como costuma dizer meu pároco, fudeu, gaúcho. O funcionário da imigração era formado em Literatura. (PELLIZZARI, 2007).

É evidente que o estilo de Daniel Pellizzari se transparece na forma de sua escrita no blog, desde o uso de termos estrangeiros até as comparações usadas em seu relato, que dão um tom humorístico ao ocorrido. Além disso, percebemos, através do trecho, que o escritor possui a preocupação de pesquisar sobre aquele lugar que locará sua narrativa. Essa também parece ser a preocupação de Lourenço Mutarelli: Ontem comecei a trabalhar pra valer. Fiz uma minuciosa varredura na área em que meus pombinhos iram percorrer (não esqueçam que o projeto Amores Expressos trata de histórias de amor. Amor de qualquer natureza). Encontrei a loja onde meu personagem irá trabalhar “True Value” esquina da Court St com a Schermerhorn St. [...] Será preciso voltar algumas vezes lá, mas consegui fazer uns primeiros registros. Do outro lado da rua há uma incrível livraria a “Barnes & Noble” onde comprei alguns livros que servirão de material de pesquisa [...]. Voltando ao trabalho. Agora comecei a trabalhar para valer em minhas pesquisas, é a melhor parte, sempre achei. Ir construindo a estrutura em que irá se apoiar a trama. Como não sabia o que compra na loja-pesquisa acabei pegando um par de luvas para trabalho pesado. Nunca se sabe o dia de amanhã. (MUTARELLI, 2007).

 

208  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Sabemos que a crítica genética é um campo relativamente novo de estudo. Seu interesse incide no processo de criação artística que, como já sabemos, se manifesta para além da materialidade da obra artística. Segundo Philippe Willemart (1993), em vários autores, há dois momentos dialéticos na criação: o primeiro, “consiste em anotar tudo o que interessa sem critérios aparentes: observações de viagens, trechos de livros, nomes estranhos, páginas de listas telefônicas etc., que denotam uma ânsia de copiar e uma verdadeira paixão pelo significante” (1993, p. 15). O segundo, consiste em “uma preparação imediata nos rascunhos, em que aos poucos o escritor deixa a iniciativa à instância narrativa e torna-se instrumento de sua cultura e de sua escritura” (Idem). Ao tomarmos por base os blogs dos autores Antonio Prata e Daniel Galera nos respectivos posts abaixo, vejamos como esses momentos dialéticos estão presentes: Mao veio até meu hotel, me comprou um cartão que serve para metrô, ônibus e táxi, me levou até a casa dele e falou durante horas sobre a cidade, sua vida, a revolução cultural, a China e o mundo, enquanto eu anotava, avidamente, no meu caderninho. Se voltasse para o Brasil imediatamente, já teria material para um livro. Ou mais. (PRATA, 2007). Olá. Ainda estou aqui. Deixei definitivamente de ser um turista. Cheguei em tal ponto de entrosamento com a cidade que a idéia de ir embora já me dá uma certa ansiedade. Até parei de pensar no livro. Não sinto que estou aqui para escrever. Estou aqui, é só. Meu bloquinho está forrado de anotações, e agora quero me dedicar a esquecer do motivo que me trouxe para cá. Tenho certeza de que esses próximos dias serão importantes para assentar as memórias e arquivá-las adequadamente. (GALERA, 2007).

Percebemos, através desses dois trechos dos blogs, que o processo descrito por Willemart foi utilizado por ambos os autores. A viagem que cada um fez para países distintos foi fundamental para que esse desejo de apreensão ocorresse, uma vez que ambos estavam em contextos novos. Além disso, é importante salientar que essa apreensão não se restringiu à palavra escrita, mas se inseriu nas memórias da experiência que ambos tiveram com o lugar e as pessoas que encontraram. No mais, o desejo de apreensão também foi manifestado pelo registro fotográfico, no caso de Daniel Galera (e outros autores): a imagem como uma espécie de instrumento de memória, uma tentativa de apreensão e conservação do vivido. No caso de Antonio Prata, não há registro fotográfico no blog, no entanto, o autor opta por um recurso imagético dos lugares, situações e pessoas através da palavra, a construção do texto como uma imagem, sobretudo poética. Notemos se, no texto abaixo, somos ou não capazes de

 

209  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   visualizar uma fotografia mental desta “Pequena fábula” (como o próprio autor intitula o texto): Os andaimes de várias obras são de bambu. Impressionante, eles construindo esses prédios modernésimos trepados em estrutu-ras de bambu! Vejam só que imagem mais óbvia para o crescimento chinês: eles crescem 12% ao ano, entre outras coisas, porque a mão de obra é quase de graça. A economia chinesa é o prédio sendo construído. A mão de obra é o frágil andaime de bambu. (A realidade, às vezes, trabalha com imagens tão pobres. Po-bres de nós, escritores, que temos de achar uma maneira original de dizer as coisas). (PRATA, 2007).

O projeto Amores Expressos, além de nos apontar claramente vários aspectos relacionados ao processo inicial da escrita – sejam anotações, rascunhos, ou observações de viagens –, nos mostra ainda, de uma forma bastante sutil, a relevância da palavra do autor para o processo da compreensão da gênese, uma vez que o documentário e o blog são espaços abertos para que o escritor se expresse sem interrupções ou censuras. Louis Hay (2002) chama nossa atenção para a questão do autor, ao alegar que este foi posto de lado durante muito tempo pela crítica contemporânea. Segundo o crítico, isso se deve, primeiramente, devido à descrença que esse sujeito teve em frente a banalidade das explicações biográficas, e, em segundo lugar, por sua exclusão do texto graças ao rigor teórico das análises formais. No entanto, Hay (2002) considera que o escritor aparece hoje no centro de interrogações novas, pois “ao abordar a escritura, a crítica depara inelutavelmente uma instância que é própria da escritura, situada entre o vivido e a folha em branco [...]. Ele [o escritor] o é também no seu próprio trabalho, onde os mecanismos do imaginário estão implicados do mesmo modo que os cálculos do pensamento” (p. 42). Os autores do projeto Amores Expressos, ao longo do processo de seus blogs, falam sobre os suportes da escrita, outra questão interessante de ser pensada quando situamos o escritor da atualidade em íntima relação com o uso do computador. Essa relação, entretanto, nem sempre aponta para um domínio total da ferramenta. Segundo Robert Darnton (2010), “a explosão dos modos eletrônicos de comunicação é tão revolucionária quanto a invenção da impressão com tipos móveis. Estamos tendo tanta dificuldade em assimilá-la quanto os leitores do século XV ao se confrontarem com textos impressos.” (p. 14). De fato, temos que reconhecer que essas tecnologias ainda são muito recentes, e suas falhas dificultam o processo da escrita, visto que o autor conta com o uso da máquina para a criação. Vejamos o que

 

210  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Daniel Pellizzari publicou em seu blog, em uma situação a qual seu notebook, única ferramenta disponível para seu trabalho naquele lugar, apresentou falhas no funcionamento: Escrevo os posts numa condição mui precária. Meu velho notebook pára de funcionar quando bem entende. Às vezes resolve bloquear grupos aleatórios de teclas. Nunca são as mesmas. Não faz sentido algum. Preciso deixar o bicho sozinho num canto, resolvendo sozinho seus problemas existenciais. Quando ele deixa o teclado em paz, o ponteiro do mouse começa a flutuar a esmo pela tela ou estacionar num dos quatro cantos, resistindo a qualquer tentativa de controle. Faço de tudo para ele se acalmar, uso de paciência e firmeza, mas nem sempre funciona. Sei que vai soar ridículo, mas lidar com tanta inconstância enquanto se tenta escrever um texto gera um desgaste emocional considerável. (PELLIZZARI, 2007).

Como vemos, há também muitos empecilhos no processo da criação das obras do projeto, como naturalmente os escritores contemporâneos têm ao lidar com as ferramentas digitais. Essa dificuldade, muitas vezes, é descrita dentro dos romances, especialmente quando estes refletem sobre o processo da escrita, seja ele material ou intelectual. 4 Considerações finais Por ser a crítica genética um campo ainda muito aberto, o que para nós parece ser uma característica positiva, é essencial ressaltar que “não existe um modelo de crítica [...]. Qualquer teoria deve ser encarada como uma proposta, ou melhor, uma ficção, isto é, uma história realista, fantasiosa ou maravilhosa, que explica de uma forma “objetiva”, imaginária ou encantadora fatos literários para o leitor”. (WILLEMART, 1993, p. 19). Portanto, longe de nos apoiarmos excessivamente em teorias, neste trabalho propusemos fazer uma leitura sobre o projeto Amores Expressos e verificar de que modo ele contém importantes rastros e pistas para a compreensão do processo da gênese literária, aspecto evidente nos estudos da crítica genética. Além disso, destacamos que “assistimos [...] ao nascimento de um novo modelo de arquivo, que não é mais o conservatório do passado, mas o reflexo do presente” (HAY, 2003, p. 70). Portanto, para o geneticista atual, as mídias sociais são plataformas do presente necessárias para a investigação, pois estão inseridas na vida e no trabalho dos autores contemporâneos. É absolutamente normal que hoje, para se alcançar visibilidade ou conquistar um público, a arte se insira em diversos espaços, sobretudo o virtual. Se antes os passos da caminhada criativa de um artista eram apagados, voluntariamente ou não, hoje, de uma forma ou de outra, os bastidores são abertos ao público, a gênese da obra de arte deixa rastros

 

211  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   espalhados pelo caminho. Cabe ao investigador buscar as pistas. Atrevemo-nos a apontar o meio pelo qual ele pode iniciar essa empreitada: navegando, sobretudo pela Internet.

Referências

COLOMBO, Fausto. Arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. São Paulo: Perspectiva, 1991.

DARNTON, Robert. A questão dos livros: presente, passado e futuro. Tradução: Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HAY, Louis. A literatura sai dos Archivos. In: SOUZA, Eneida M. de; MIRANDA, Wander Melo (orgs.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. ______. “O texto não existe” Reflexões sobre a crítica genética. In: ZULAR, Roberto. (org.) Criação em processo. Ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002.

SALLES, Cecília Almeida; CARDOSO, Daniel Ribeiro. "Crítica expansão", Ciências e cultura v. 59, n. 1, São Paulo: SBPC, 2007: 46.

genética

em

WILLEMART, Phelippe. Universo da criação literária. Crítica genética, crítica pósmoderna?. São Paulo: Edusp, 1993.

______. A crítica genética hoje. Disponível Acesso em: 21 jun 2013.

 

212  

em:

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Os aspectos musicais do passado e a interpretação da atualidade: uma problematização a partir de excertos da Paixão Segundo São João Gustavo Angelo Dias - Universidade Estadual de Campinas

RESUMO - Neste artigo buscamos tecer algumas reflexões sobre as questões com que a interpretação da música do passado tem se confrontado na atualidade. Buscamos refletir, mais especificamente, sobre a relevância que a busca por aspectos musicais do contexto histórico de uma obra teria durante a construção da sua interpretação. Apresentamos aqui uma análise do arioso Betrachte, meine Seel e da aria Erwäge wie sein blutgefärbter Rükken, extraídos da Paixão Segundo São João, BWV 245, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Esta análise apontou aspectos de harmonia, discussões sobre a escolha dos tons e sua relação com os afetos apontados por Johann Mattheson, reflexões sobre o contexto dramático da Paixão e, sobretudo, apontou elementos retórico-musicais encontrados no excerto estudado. Através da análise e da observação dos aspectos analíticos apontados, pudemos refletir, de forma relativizada, sobre a questão da retomada de aspectos interpretativos e sonoros (instrumentais) do passado para a interpretação do arioso e da ária selecionados. Pudemos observar que, deixando de lado a dualidade simplista entre 'interpretação histórica' ou 'interpretação moderna', uma execução atual pode ter características de ambas, mudando apenas o quanto cada aspecto musical identificado irá influenciar na construção da performance. Palavras-chave: Performance da música Barroca; análise; retórica musical; Johann Sebastian Bach. ABSTRACT - This paper aims to build some reflections on the issues that the interpretation of the music of the past is confronted today. More specifically, our reflection aproaches the relevance that the search for musical aspects of the historical context of a musical work may have during the construction of its interpretation. We present here an analysis of the arioso Betrachte, meine Seel and the aria Erwäge wie sein blutgefärbter Rükken, extracted from the St. John's Passion, BWV 245 by Johann Sebastian Bach (1685-1750). This analysis revealed aspects of harmony, discussions on the choice of tones and its relationship with the affections mentioned by Johann Mattheson, reflections on the dramatic context of the Passion, and especially pointed rhetorical-musical elements found in this musical work. Through the analysis and observation of the analytical aspects pointed out, we could reflect on a relativized way on the issue of resumption of interpretive and sounding aspects (instrumental) from the past to the interpretation of the arioso and aria selected. We observed that, leaving aside the simplistic duality between 'historical interpretation' and 'modern interpretation' a current performance of this repertoire may have characteristics of both, just changing how much each musical aspect identified will influence the building of the musical performance. Key-words: Barroque music performance; analysis; musical rhetoric; Johann Sebastian Bach.

 

213  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

1. INTRODUÇÃO O debate sobre a interpretação da “música do passado” parece gravitar em torno do trabalho realizado por duas “correntes” de interpretação musical: a chamada "música historicamente informada", e a informalmente denominada "música moderna" (este segundo termo estranhamente adotado por pura oposição ao grupo dos performers "históricos"). As convicções interpretativas dessas duas "tendências", especialmente no que diz respeito ao repertório Clássico ou Pré-Clássico, frequentemente incitam debates e discordâncias.   Os músicos ligados à tradição de performance herdada de maneira contínua (embora, obviamente, em constante mudança) desde o Romantismo – os “músicos modernos” – normalmente tendem a abordar o repertório de períodos anteriores a esta tradição seguindo mais ou menos os mesmos parâmetros técnicos e interpretativos que utilizam para a execução da música dos séculos XIX e XX. A outra concepção de interpretação, não necessariamente antagônica, mas de certa forma divergente desta, acredita que na interpretação do repertório do passado devem ser levadas em conta as evidências históricas extraídas de tratados, textos, partituras originais e que também (algumas vezes, principalmente) essas interpretações devem se valer do uso de instrumentos históricos ou cópias destes instrumentos. Sem que mencionemos aqui as divergências “técnicas” (por exemplo, a respeito da afinação dos instrumentos, da ornamentação, da articulação, do uso de vibrato) entre esses dois grupos, o que talvez marque com mais veemência a diferença existente entre eles são questões interpretativas de natureza mais geral, a respeito do valor da "intenção do compositor" na construção da performance, sobre a importância do meio material utilizado pelos músicos – ou seja, dos chamados "instrumentos históricos" – na criação da interpretação, e a respeito da busca por uma sonoridade que se assemelhe à originalmente cultivada numa época remota. As discussões já não são mais tão simples como costumavam ser há algumas décadas, graças à publicação de obras analisando as diferentes concepções de performance da música histórica, produzidas por autores que questionam a maneira como a retomada de aspectos históricos na interpretação musical vem sendo feita. Esses debates colocam em xeque as convicções de qualquer intérprete, ao menos em alguma medida. Frente a esse cenário, com certeza surgem dúvidas aos performers sobre como devemos, afinal, construir uma interpretação da música do passado. É necessária ou  

214  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   irrelevante a busca pela forma de fazer e ouvir música dos séculos que nos antecederam? Devemos ou não dar ouvidos às vontades, aos desejos e às intenções do compositor? Como devemos guiar nossas escolhas interpretativas? Neste trabalho pretendemos abordar alguns temas desta discussão a respeito da performance historicamente informada, e exemplificar, a partir de um exemplo musical selecionado, algumas destas inquietações. Desta forma, versaremos sobre propostas de interpretação do arioso Betrachte, meine Seel e da aria Erwäge wie sein blutgefärbter Rükken, da Paixão Segundo São João, BWV 245, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Por fim, buscaremos esboçar parâmetros para uma performance que dialogue com o que algumas reflexões teóricas recentes vem apontando. Este exemplo musical foi escolhido especialmente por envolver, além das questões técnicas mais comuns (fraseado, ornamentação etc), um contexto específico na finalidade de sua composição (por ser uma obra sacra voltada ao ofício luterano), além de trazer um rico uso da retórica musical na composição, como elemento de persuasão característico do contexto em que se insere. Através da reflexão sobre estes elementos, poderemos discutir com mais abrangência sobre a possível retomada de aspectos musicais do passado (procurando atribuir-lhe elementos que se aproximem de sua concepção original), e sobre a relevância que esta escolha interpretativa pode ter no contexto atual da execução música do passado. As reflexões aqui apresentadas sobre a interpretação do repertório selecionado, serão formadas a partir de uma análise musical do trecho citado da Paixão Segundo São João, buscando relacionar esta análise às discussões sobre a prática da música do passado pelas diferentes linhas de interpretação.

2. ANÁLISE INTERPRETATIVA DE EXCERTOS DA PAIXÃO SEGUNDO SÃO JOÃO, DE JOAHANN SEBASTIAN BACH Procuramos, nesta sessão, apresentar algumas possibilidades interpretativas para o arioso Betrachte, meine Seel, e da aria subsequente Erwäge wie sein blutgefärbter Rükken da Paixão Segundo São João, BWV 245, de J. S. Bach. Estes excertos seguem-se, no contexto do oratório, ao momento em que Pilatos açoita Jesus, e antes deste ser levado à cruz. Trata-se portanto de um momento de grande contemplação e reflexão espiritual no "sermão sonoro" (Sonora praedicatio) representado  

215  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   pelo oratório de Bach. No contexto da prática musical na Alemanha luterana, "o emprego de artifícios retóricos, entre os quais das figuras retórico-musicais, passou a ser de fundamental importância, na medida em que estas deixaram de ter finalidade decorativa e adquiriram capacidade exegética" (JANK, 2007, p.2). A aplicação dos princípios persuasivos da retórica figura entre as funções esperadas de um Capellmeister do século XVIII, como afirma Justi: Bach, talvez o maior compositor da linhagem da Musica Poetica, tinha muita familiaridade com a arte da retórica e em suas cantatas [e oratórios] utilizava-se com grande competência de estruturas, métodos e artifícios retóricos análogos aos dos sermões. Do mesmo modo que o sermão, a composição musical também era considerada a “voz viva do Evangelho” (viva vox evangelii) e os compositores, assim como os pastores, deveriam usar os artifícios artísticos necessários para convencer os ouvintes, afetando-os e levando-os à virtude (JUSTI, 2009, p. 72-73).

Tanto o arioso quanto a aria trazem em sua instrumentação duas violas d'amore e contínuo, porém o arioso traz uma parte de alaúde obligatto. Juntas, as duas partes representam um momento de contemplação no qual a narração se interrompe por um tempo maior que o usual. O alaúde obligatto no arioso representa um acompanhamento especialmente designado pelo caráter que Bach parece querer evocar. Sobre um baixo praticamente estático, em forma de pedais harmônicos, Bach utiliza as harmonias harpejadas em figuras melódicas e harmônicas que se identificam com o estilo brisé, caracterizando enquanto acompanhamento uma apresentação suavizada da harmonia. O fato de ser escrito para alaúde enfatiza o caráter suave do acompanhamento pelas próprias características do instrumento. Também as características das violas d'amore, com maior ressonância devido às cordas simpáticas e com sonoridade mais doce e de menor volume do que os violinos e violas tradicionais, contribuem para a delicadeza da sonoridade. Desta forma, é ressaltado o contraste do arioso com o trecho anterior, quando o povo, em agitação, pede que seja solto Barrabás ao invés de Jesus, e este na sequência é açoitado, o que aparece fortemente enfatizado pela hypotiposis representada pelas rápidas figuras em pé dáctilo na voz do Evangelista (JANK, 2009, p. 133-134). O arioso traz elementos com os quais Bach provavelmente procurou trazer para a música aspectos de suavidade e contemplação do texto. Depois dos momentos tempestuosos que decidiram o destino trágico de Jesus, surge uma aura de contrita reflexão e talvez uma beleza poética que procure aproximar o ouvinte do compartilhamento com a dor de Jesus.

 

216  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Contempla ansiosa ó minha alma, contente e amedrontada, Com amargo prazer e coração oprimido Nas penas de Jesus o teu maior tesouro Como, dos espinhos que o atravessam, floresce a flor da primavera * E da sua amargura podes colher doces frutos Olha, pois, para Ele, sem cessar! * ou chave-do-céu

Betrachte mein Seel mit ängstlichen vergügnen mit bitter Lust und halb beklemmtem Herzen dein höchste Gut in Jesu Schmertzen, wie dir auf Dornen,so ihn stechen, die Himmelsschlüsselblumen blühn! Du kannst viel süsse Frucht von seiner Wermut brechen, drum sieh ohn Unterlass auf ihn!

Tradução: Helena Jank

Segundo Johann Mattheson (1713, p.5), a tonalidade do arioso, mi bemol maior, "tem muito de patético em si; só que saber de coisas séria e lamentosas; é também inimigo mortal do toda suntuosidade". Aparentemente, a julgar pelo caráter das tonalidades apresentado por Mattheson e pelo uso das mesmas por Bach, inclusive levando-se em consideração o caráter do texto, este concordava ou talvez mesmo chegasse a seguir as descrições daquele. Portanto, provavelmente estes afetos são esperados de serem evocados por Bach no arioso.  

217  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Um exemplo do que poderíamos considerar um engenhoso uso da retórica musical a serviço do sermão sonoro é a maneira com que os afetos são evocados e conduzidos por Bach logo no início do arioso. A contemplação suave nas primeiras palavras “Betrachte mein Seel” (Contempla ansiosa ó minha alma), inteiramente dentro da harmonia de dó menor, contrasta com o dó maior com sétima menor que surge logo na primeira sílaba de ängstlichen (ansiedade), o que é enfatizado pelo posicionamento da sétima na voz solista. A chegada da sílaba tônica de Vergügnen (prazer) coincide com a entrada do lá diminuto, que deixa em suspenso a resolução harmônica pela própria ambiguidade que o acorde causa ao discurso harmônico, devido a suas diversas possibilidades de resolução. Ao longo das palavras mit bitter Lust und halb beklemmtem Herzen/ dein höchste Gut in Jesu Schmertzen/ ,wie dir auf Dornen, so ihn stechen/ die Himmelsschlüsselblumen blühn! (Com amargo prazer e coração oprimido/ Nas penas de Jesus o teu maior tesouro/ Como, dos espinhos que o atravessam,/ floresce a flor da primavera), a sequência harmônica não apresenta nenhum ponto de repouso até a palavra “florescer”. A sequência a partir do lá diminuto de Vergnügnen é sol maior 7b, dó maior 7b, ré# dim 7b, si diminuto, dó# diminuto, ré# diminuto 7b, r por fim sol menor, na chegada da palavra blühn (florescer). Levando-se em consideração que praticamente todas as harmonias têm duração de um compasso, esta longa sequência sem pontos de repouso harmônico, passando por harmonias que certamente possuem uma grande tensão em qualquer sistema de temperamento praticado à época de Bach, representa um trecho de grande tensão sonora que aplica-se e ressalta o significado do texto. Desta forma, a partir uma aparente e deliberada suavidade que Bach anuncia logo no início do arioso, o compositor cria uma representação musical relacionada à dualidade do próprio texto (o amargo prazer, a ansiedade e a contemplação, os espinhos e a flor da primavera) ao sobrepor a tensão harmônica e melódica à suavidade do acompanhamento, da instrumentação e da escrita harpejada. Outro detalhe facilmente identificável neste trecho é o salto de quarta ao registro agudo da voz do baixo na palavra Himmelsschlüsselblumen, (flor da primavera) que pode representar um segundo significado: “chave-do-céu” (JANK, 2009, p. 134). Este movimento, que aparece na primeira sílaba de Himmel (céu), enfatizaria este segundo significado através de uma Hypotiposis, ou seja, uma figura de representação. Pensando nos aspectos de performance, os intérpretes historicamente informados teriam de levar em consideração elementos como os apontados acima (ou outros que ele  

218  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   identifique), caso queiram ressaltar aspectos históricos ligados à função desta música em seu contexto original - como cantar as primeiras palavras e tocar o acompanhamento instrumental com suavidade, enfatizando a tensão das harmonias e das notas presentes na voz solista no trecho de tensão harmônica, ou conferindo algum outro tratamento que julgar adequado, desde que atento aos elementos de retórica trazidos no texto musical. O uso da voz deve ser especialmente cuidadoso, pois além da necessidade de se compreender claramente o texto (que afinal é a base de significado a partir do qual a retórica musical é construída), é necessário que a voz possa representar a suavidade esperada pelas características de escrita, de instrumentação, e pela própria demanda poética sutil do texto. O uso do alaúde também seria recomendado. Sua substituição dificilmente teria o mesmo efeito, já que a sonoridade do instrumento é de uma delicadeza dificilmente encontrada em outro instrumento, motivo que provavelmente determinou sua escolha. A aria que segue traz o texto apresentado abaixo: Pondere, como as Suas costas tintas de sangue, se igualam ao céu em todas as suas partes. Assim, passadas as vagas da torrente de nossos pecados, como sinal da misericórdia divina, aparece o mais belo arco-íris!

Erwäge wie sein blutgefärbter Rükken in allen Stükken, dem Himmel gleiche geht; daran, nach dem die Wasserwogen von unsrer Sündflut sich verzogen, der aller schönste Regenbogen als Gottes Gnadenzeichen steht!

Tradução: Helena Jank  

219  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

O andamento um pouco mais movido e a figura temática - acéfala (a pausa no tempo forte pode ser associada à figura retórica suspiratio, ou seja, um “suspiro”), subdividida ritmicamente e em forma de arco – pode estar relacionada a um relaxamento das tensões acumuladas nos ouvintes logo após o arioso. Também o Tenor como voz solista e a escolha da tonalidade parecem contribuir a este efeito. Como afirma Jank: A aria Erwäge...está na tonalidade de do-menor, descrita por Mattheson como “extremamente suave, mas ao mesmo tempo triste” (MATTHESON, Das Neueröffnete Orchestre 1713) Aqui, a qualidade principal é a suavidade da paz, do amor divino, da redenção. O acompanhamento “obbligato”, mais uma vez com as duas violas d´amore, repete a sonoridade clara e brilhante do arioso. A célula rítmica – o dáctilo – está agora presente em todos os motivos melódicos, tanto das violas, quanto do tenor solista e do baixo que acompanha. A organização em graus conjuntos alternando sempre o movimento ascendente e descendente (anabasis e catabasis) materializa a metáfora do arco-íris, não só como idéia ou como figura auditiva, mas agora, pela imagem na partitura, também como referência visual – o desenho de um arco que se repete no decorrer de toda a aria (JANK, OSTERGREEN, 2009, p. 136).

Nesta aria as harmonias se movimentam de forma mais suave, diferentemente dos passos tensos do arioso anterior. Sobre um baixo que ecoa e varia a figura das violas d’amore, o texto pode fluir mais facilmente (o texto se movimenta com mais frequência nas pausas das violas), narrando o texto sem a importância contemplativa de cada palavra encontrada no arioso e enfatizada pelos passos harmônicos lentos. Novamente, há elementos retóricos que devem ser ressaltados caso a intenção da performance seja trazer elementos característicos da execução musical em seu contexto original, ou seguindo as intenções expressivas do compositor. A figura motívica em pés dáctilos seguida por pés díbracos, que forma a representação do arco-íris, pode ser ressaltada na execução com o uso de articulação e dinâmica. Esta figura, que traz movimentação rítmica, aparece constantemente em pelo menos uma das vozes. Outro elemento retórico que poderia ser enfatizado é a palavra Regenbogen (arco-íris), que aparece especialmente elaborada pelos melismas derivados da segunda parte do tema e por cromatismos que oferecem um “colorido” maior nesta parte da aria, como que oferecendo uma contemplação do arco-íris. A interpretação do Concentus Musicus de Viena, apresentada na Áustria em 1985 sob a condução Nikolaus Harnouncourt, traz uma possibilidade interessante. O alaúde, que tinha  

220  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   uma parte obligatto no arioso, é mantido na aria seguinte como instrumento que realiza o contínuo, o que confere às duas partes a mesma instrumentação. Considerando as duas partes juntas como um momento de contemplação dentro da narração, como dito anteriormente, a instrumentação mantida na performance ajudaria a conferir unidade ao trecho. 3. CONCLUSÕES Uma performance histórica deste repertório, bem como de outras obras sacras germânicas do mesmo período, provavelmente levará em consideração o uso da retórica musical e sua função no contexto para o qual esta música foi composta, dada a importância dela na própria construção musical, e dada a relevância atribuída a retomada da estética e dos elementos característicos do repertório em seu contexto original. No entanto, como trata-se de uma área de grande especificidade (a retórica musical), baseada em vasto referencial teórico ao longo dos séculos desde a antiquidade, muitas vezes os intérpretes optam por apenas "pincelar" suas performances com alguns elementos da retórica musical que eventualmente sejam apontados ou identificados. Mesmo entre intérpretes especializados, é comum observar que o conhecimento sobre retórica que possuem é bastante limitado se pensarmos na importância que ela representa neste repertório. Obviamente, um conhecimento amplo desta área implica em grande quantidade de estudo teórico, especificamente dedicado ao tema, e talvez aqui seja o caso de pensarmos se não haveria o problema que Taruskin resume em poucas palavras: "Em caso de conflito, eles [os performers históricos] inevitavelmente atropelam a evidência histórica" (TARUSKIN, 1995, p. 169). Voltando à distinção entre performance historicamente informada e a peformance "tradicional" ou "não-histórica", elementos como a retórica, que cumpriu um papel histórico diferente do contexto em que esta música é geralmente apresentada hoje, podem simplesmente não figurar entre as preocupações interpretativas de muitos intérpretes, desde que a proposta não seja a de retomar os elementos que historicamente fizeram parte de sua execução. Como afirma Justi, Bach aperfeiçoa o sermão sonoro luterano em suas cantatas, aproximando-o ainda mais ao análogo sermão falado, cujas intenções específicas podem, contemporaneamente, passar despercebidas pelo ouvinte, apreciador apenas da beleza sonora (JUSTI, 2009, p. 69)

A busca por esta beleza sonora, se tratada como o objetivo principal da performance, não pode absolutamente ser desacreditada ou inferiorizada por aqueles que acreditam na  

221  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   necessidade de re-contextualização da música de Bach (ou de outros do passado) através do uso de elementos que lhe seriam relacionados. Trata-se simplesmente de um outro fenômeno artístico. Ambos convivem como fenômenos modernos, com buscas estéticas distintas, para os quais não caberia julgamentos taxativos ou excludentes, pelo simples fato de representarem manifestações artísticas. Em se tratando da performance no tempo e contexto atuais, seria utópico, ou ao menos uma idealização de difícil aplicação, pensar em uma interpretação unicamente baseada em nossas crenças sobre o contexto histórico da obra e as intenções expressivas do compositor. Ao tecer um pensamento sobre a interpretação estamos a uma só vez sujeitos às crenças que desenvolvemos por nossa própria experiência e pensamentos (não necessariamente as mais adequadas à obra musical), e à possibilidade prática de aplicação deste ideal musical. Em outras palavras: qualquer sugestão de performance elaborada teoricamente contará em algum grau (ainda que, às vezes, insondável) com questões de gosto e convicções pessoais. Este mesmo ideal musical ainda estará sujeito a questões práticas em sua aplicação, como os ideais e as convicções dos próprios intérpretes, suas possibilidades técnicas, os instrumentos que utilizam, e sua disposição e simpatia em compreender e aplicar as ideias apresentadas a eles. Por este ponto de vista, as sugestões aqui apresentadas aparecem como habitantes do mundo da imaginação, no melhor sentido do termo: trata-se de algo que idealizamos com base em nosso conhecimento (e em nosso gosto) e que queríamos ver aplicado musicalmente (e é possível que toda essa imaginação e busca venham a ser o "motor" de nossa busca artística e profissional). Neste sentido, o exercício de idealizar parâmetros interpretativos pode ser, para o intérprete, tão útil quanto o próprio questionamento sobre suas crenças musicais (tarefa que alguns teóricos como Kivy, Taruskin ou Haynes ajudam a empreender com suas próprias reflexões). Através das discussões aqui apontadas e da análise realizada, podemos esboçar talvez uma tentativa de resposta às questões que apontamos na introdução. É possível que o primeiro passo para a construção de uma performance histórica seja a escolha de um “ponto de vista”. Em outras palavras, a escolha de um objetivo de apreciação ou de compreensão da obra: queremos que a música que interpretamos seja compreendida como um produto histórico, resultado do trabalho e das escolhas de um indivíduo (o compositor)? Ou queremos que ela seja ouvida como um “simples” objeto estético, que sobrevive ao tempo e nos leva a experiências estéticas não restritas ao caráter histórico da

 

222  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   peça? Essas duas opções não são excludentes – acreditamos que um ouvinte pode ouvir uma peça tendo em mente esses dois “objetivos” ao mesmo tempo. Ao que nos parece, o intérprete precisa ser, contudo, o primeiro a definir com clareza os seus “objetivos”. Uma interpretação focada, principalmente, nos aspectos estéticos e atemporais da obra pode abdicar das supostas intenções do compositor e de uma busca pelo modo histórico de fazer e compreender música sem prejuízos – ao que nos parece – sobre o resultado final. Esse resultado pode ser esteticamente prazeroso para um ouvinte que não esteja buscando na obra aspectos relacionados ao seu contexto histórico, e sim o resultado artístico da excecução musical. Por outro lado, uma interpretação voltada para a retomada de elementos históricos pode ser igualmente interessante – inclusive do ponto de vista estético – para um ouvinte que busque identificar na performance elementos que ele julgue ligados a esta música por seu contexto original. Acreditamos que o intérprete não deve se prender exclusivamente aos elementos históricos ou a uma negação completa deles. Ele deve ter autonomia e autoridade, como defende Kivy (1995), para escolher aquilo que julga melhor para a criação de sua interpretação – já que a interpretação correta nunca existirá. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BACH, Johann Sebastian. Johannes-Passion BWV 245. Ed. Bärenreiter 1973. HAYNES, Bruce. The end of early music: a period performer’s history of music for the twenty-first century. New York: Oxford University Press, 2007. KIVY, Peter. Authenicities: philosophical relfections on musical performance. Ithaca: Cornel University Press, 1995. JANK, Helena. ... E chorou amargamente... In: ANAIS DO CONGRESSO DA ANPPOM, 17, 2007, São Paulo. Anais... São Paulo: ANPPOM, 2007, p. 1-11. JANK, Helena. OSTERGREEN, Eduardo. A. O pé dáctilo como elemento organizador em uma alegoria factual, na Paixão Segundo João, de J. S. Bach. Música Hodie, Goiania, Edição Especial, p. 129-140, 2009. JUSTI, Katia Regina Kato. A música poetica e a importância da retórica nas arias das cantatas sacras de Johann Sebastian Bach. Música Hodie, Goiania, Edição Especial, p. 69-96, 2009.

 

223  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   MATTHESON, Johann. Das Neueröffnete Orchestre. Hamburg: Schiller, 1713. TARUSKIN, Richard. Text and act: essays on music and performance. New York: Oxford University Press, 1995.

 

224  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O PROJETO LITERÁRIO ROMÂNTICO DE ALENCAR EM LUCÍOLA E SENHORA Isadora Santos Fonseca (UFAM)71 Rita Barbosa de Oliveira(UFAM)72

O Romantismo tem como algumas de suas principais características a valorização e a idealização da mulher; José de Alencar, por ser uma das maiores expressões desse estilo na Literatura Brasileira alia esse fato, em seus romances urbanos, com o aspecto psicológico das suas personagens femininas sem, no entanto, retirá-las do contexto patriarcal no qual a sociedade brasileira estava inserida. Isso o levou à construção de verdadeiros caracteres em conflito ou consigo mesmo ou com a sociedade. Essas mulheres completamente diferentes da mulher burguesa da época romântica experimentam os mesmos conflitos que envolvem as mulheres desse modelo de sociedade e que, ao final de suas tramas, assumirão o papel destinado à mulher na sociedade burguesa em questão. Em que pese que o amor era outra das principais temáticas dessa estética, o narrador apresenta os aspectos morais e sociais aos quais as personagens Aurélia e Lúcia, como outras personagens de outros romances alencarianos, foram sujeitadas pelo amor, como o efeito que esse conceito de amor produz nas personagens, os efeitos surtidos em ambas e a concepção, por fim, de que elas próprias formularam para si. A análise dessas mulheres permite ainda traçar um paralelo entre a realidade social do Romantismo, o tipo de feminilidade abordado por Alencar e a influência dessa literatura na sociedade do século XIX, através da reflexão sobre a função, a formação da identidade e de ideologias a partir da literatura. Segundo Alfredo Bosi e também Afrânio Coutinho, o estilo de José de Alencar se desenvolveu em duas das três vertentes do Romantismo: o nacionalismo-indianismo e o ultrarromantismo, não explorando de forma intensa o “condoreirismo”. A partir de ambas as vertentes ele criou perfis de mulher: Iracema, exemplo da fase indianista do autor, é um perfil                                                                                                                 71Discente do curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas. Instituto de Ciências Humanas e Letras – DLLP (Departamento de Letras Língua Portuguesa); [email protected]; membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa – GEPELIP. 72  Professora Adjunta do Departamento de Língua e Literatura Portuguesa do Curso de Letras (DLLP) e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado, ambos do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) da Universidade Federal do Amazonas; [email protected]; líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa – GEPELIP.

 

225  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   de mulher voltado para a realidade do início da população miscigenada do Brasil na tentativa de instigar o nacionalismo à burguesia que, no século XIX, importava da Europa desde as vestes até a cultura, confrontando essa atitude com a da mulher indígena, supervalorizada. Mas a crítica alencariana ultrapassa essa reflexão ao escrever segundo a vertente dos romances urbanos. Nesse mesmo contexto do século XIX, a mulher representava significativa parcela de consumo da literatura; as jovens burguesas passavam a maior parte do seu tempo ocioso adquirindo dotes que as preparavam para futuros maridos por meio de uma educação fundamentada em padrões europeus e na leitura de folhetins (capítulos de romances publicados em jornais direcionados principalmente ao público feminino) escritos por homens com a visão masculina, e por vezes machista, sobre o papel da mulher na sociedade. A vida, aqui, não possuía outro sentido senão a busca por um bom casamento e uma vida privada estabilizada moral e economicamente. Porém os romances de José de Alencar, também pertencentes a esses romances folhetinescos, apresentam uma peculiaridade: a críticaà hipocrisia das relações humanas através do modelo imposto para a mulher urbana. Com suas personagens de traços marcantes, num quadro analítico entre o ideal burguês e a realidade psicológica feminina e masculina (abrangendo suas dúvidas, temores e anseios) e entre a cultura brasileira e a europeia, esses romances utilizavam-se do Romantismo para expor e centralizar o ser humano. A mulher dessa sociedade é, então, educada para obter feminilidade, o que é até certo ponto o curso natural da vida, para os relacionamentos adultos heterossexuais, onde é “orientada para o homem”, para ser passiva no relacionamento com o homem e subordinada à procriação; passividade esta que é tida por Freud, contraditoriamente, como uma escolha ou preferência da mulher (1932-1936, p 77). A feminilidade é uma construção psicológica e ideológica, mas as suas principais características vistas pela ótica psicanalítica são fundamentadas a partir da natureza sexual da mulher. A psicanalista e socióloga Nancy Chodorow (1978. p.263) analisa a influência materna na construção da feminilidade, já que a psicanálise admite a influência do círculo familiar nessa estruturação. A mãe da menina e outras mulheres com as quais a menina se relaciona passam a servir de modelo de identificação, iniciando o aprendizado do modo de ser familiar na vida diária. Ela assim assume as funções relacionadas com a afetividade no lar, de esposa e de mãe. Por sua vez, Anne Martin-Fugier no artigo Ritos da vida privada (2001, p. 193,194), e outros autores reunidos no livro História da vida privada, volume 4 (2001), escreve que, para a mulher na sociedade burguesa da segunda metade do século XIX, é destinado o sentimento, a emoção,  

226  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   sendo sua principal função a de prover o bem estar da sua família na vida privada (lugar ao qual é unicamente destinada). A felicidade da mulher daquele século restringe-se a fazer feliz e harmonioso o dia a dia dos filhos e do marido, tanto na intimidade familiar quanto nas relações familiares com o círculo social (serões, visitas, recepções). Para tanto, a educação feminina, desde bem cedo, é direcionada ao casamento e à vida familiar, educação que se dá principalmente através de manuais do lar (destinado apenas às mulheres). O foco de Alencar dirige-se justamente ao choque entre o modelo social imposto para a mulher dessa sociedade, o aspecto psicológico destas e os elementos da moral que eram ignorados por parte dessa mesma sociedade. Como exemplo disto, o romance Senhora traz uma mulher, Aurélia, que se revolta com a hipocrisia dos casamentos arranjados em vista da riqueza e resolve se vingar do seu grande amor; no romance Diva, Emília é capaz de, com sua altivez, deixar homens a seus pés, humilhados e embasbacados; enquanto em Lucíola, a personagem Lúcia traz à tona toda a realidade de prostituição na burguesia brasileira daquela época e a falsa moral levantada pelos burgueses patrocinadores da prostituição. Salienta-se que todas essas críticas são evidenciadas e descritas minuciosamente através da voz e da perspectiva do narrador, a entidade da ficção que estrutura a narrativa. Mas afinal, como esse narrador aborda a figura feminina para desenvolver a sua crítica? Ele descreve e narra a trajetória da mulher como consequência dos males burgueses, que consistem na falta de valorização do que é nacional, da natureza e dos costumes indígenas, e confronta-as com os dilemas sociais enraizados, vinculando à mulher perfeita, pura e de refinada educação (sonho masculino e ideal do romantismo) à “realidade” (não como o realismo o faz ao apresentar os “males” e instintos naturais, principalmente sexuais femininos). Ocorre, então, mais um choque, demonstrado nas relações afetivas que Lúcia e Aurélia desenvolvem, de forma conturbada; o marido de Aurélia e o amante de Lúcia também serão foco da narração para que seus inconscientes sejam revelados, e isso se dá apenas pelo foco narrativo. Antonio Candido, em Literatura e sociedade (2000, p. 18), escreve que a sociologia é disciplina auxiliar à artística e que sua influência sobre a obra se limita à medida que a arte é a expressão da sociedade ou criação “independente” desta e até o ponto em que ela está interessada nos problemas sociais. Com base nestes aspectos, entende-se que a obra de José de Alencar se apropria de alguns processos e características do Romantismo, como a idealização da mulher, sonho, liberdade criadora e subjetivismo para a construção de personagens sob o viés da feminilidade e para efetuar sua critica sociológica dando certa

 

227  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   “liberdade” (aqui, liberdade ainda em esquema patriarcal) ou “ousadia” às mulheres por ele retratadas. Candido (2012, p. 539), ainda, em seu estudo sobre Senhora e Lucíola define-os como romances em que o homem e a mulher se confrontam num plano de igualdade e estão passíveis de um mesmo sentimento, fazendo de Alencar um sociólogo nato por focalizar a alma, inclusive no que diz respeito à consciência em relação ao dinheiro. Porém, mesmo que estivessem em um mesmo nível psicológico, a superioridade feminina no quesito financeiro acaba por limitar a atitude masculina desses romances. É curioso constatar que: José de Alencar, então, reproduz o sistema patriarcal de forma integral mesmo que Lúcia e Aurélia pareçam fugir deles, tendo em vista que o ideal de amor unido ao estereótipo de feminilidade exposto por toda e qualquer narrativa romântica ou escrito religioso esteja associado à realização pessoal da mulher através da união ao homem e à resignação dela à passividade. Com essa disparidade de aspectos psicológicos, Alencar buscava atingir seus dois objetivos: um, moralista, por meio do qual buscava desenvolver temas que pedagogicamente ensinassem os leitores, as leitoras em sua maioria, aquilo que era socialmente correto e o resgate dos valores da nobreza; outro, em que exercia sua crítica à hipocrisia burguesa e àqueles que defendiam uma falsa moral que elevaria á qualidade do ideal social. É por esse motivo que ambas as personagens chegam aos “finais felizes” que lhes foram destinados e direcionados às leitoras daquele momento: Lúcia morre para obter sua redenção, enquanto Aurélia consuma seu casamento com Fernando, entregando, assim, a ele toda a herança dela, pois, no patriarcado, o homem assume a administração dos bens da família. Além das duas faces do Romantismo mais conhecidas em José de Alencar: o heroísmo indianista e o romance romântico puro destinado às jovens burguesas, como já dito acima, pode ser claramente distinto um terceiro estilo adquirido com o passar dos anos; a sensibilidade fez de Alencar um desenvolvedor do olhar analítico sobre os aspectos social e psicológico. Essa última face, muito mais complexa, é um misto entre o heroísmo e o romance, acrescidos da crítica social à consciência do indivíduo e à transparência da alma dos indivíduos. Ou seja, em uma trama pouco mais realista que o costumado para a época, o homem e a mulher se deparam com seus sonhos pessoais em conflito com a realidade social e principalmente desta com o seu eu interior. As tramas pertencentes a esse estilo são marcadas de uma complexidade dicotômica; existirá sempre uma constante antítese entre a vontade de ceder aos próprios desejos contra o que é imposto socialmente. Os próprios personagens são

 

228  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   marcados pela bipolaridade de comportamento, como afirma o autor Dante Moreira Leite e como será explanado em seguida. Lucíola e Senhora são exemplos extremos disso. Os personagens principais de ambos são casais que descobrem possuir um amor verdadeiro, mas esse amor será todo engate para o sofrimento. As dúvidas sobre o caráter moral da pessoa amada, a rivalidade entre dinheiro e afeição pessoal, as pressões sociais sobre como obter bons casamentos, os julgamentos préformados na sociedade fluminense e muitos outros serão alguns aspectos aqui abordados. A grande dúvida quanto ao real caráter da obra de Alencar é se ela é de cunho moralista ou completa ficção revolucionária; esta dúvida permanece constante nesses dois romances. Os aspectos morais de bom comportamento estão presentes em ambas as tramas, com caráter inovador romântico de exposição do subjetivismo da donzela rica que fora enjeitada, do rapaz pobre que se vende ao casamento, do rapaz boêmio que descobre o amor nos braços da prostituta e da cortesã que descobre o amor, mas não se perdoa para ter uma nova vida. Lucíola e Senhora marcarão, mesmo não fugindo do estilo romântico, uma transição entre a dúvida constante e a realidade psicológica, ambas absolutamente sublimadas e contornadas, ao final, pelo sentimentalismo e heroísmo (aqui feminino). Existe, em ambos os romances, uma atmosfera absolutamente onírica. As circunstâncias, ambientes e a soturnidade nas relações presentes são tão impossíveis para a época que assumem a postura de sonhos ou pesadelos, algo que, de fato seria inconcebível a ponto de ser considerado fora de realidade: A estrutura dos romances evidencia, também, o tipo das relações e conflitos que serão trabalhados. Senhora é divido em quatro partes as quais são intituladas: Preço, a primeira; a segunda, Quitação; a terceira, Posse; a última, Resgate. Essa transação comercial ressalta com a grande descrição de todos os momentos, com poucos e raros diálogos, uma análise da situação de mercado, da mercadoria e das condições em que a compra se deu. Lucíola, no entanto, não evidencia nenhuma divisão além da capitulação; seus capítulos são subsequentes e de ideia continuada, repletos de diálogos; uma constante conversa amorosa que cede pouco às descrições do mundo externo; o mundo de Lúcia e de Paulo está sempre voltado para o prazer entre ambos que se transforma em amor. O sentimentalismo, o exagero alencariano, fica por conta dos conflitos amorosos. O amor sempre sofre pressões e é posto em dúvida com a impossibilidade dos personagens serem felizes no meio dessa sociedade. Os sonhos e ambições frustrados correm sempre para o desejo libertário que só ocorre de fato com Aurélia e Fernando, os únicos que alcançam o happy end. Quanto a Lúcia e a Paulo, por se tratar de uma paixão considerada leviana naquele  

229  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   modelo social e naquela época, só têm a vida sossegada com a morte de Lúcia que leva à libertação das duas almas. Os sentimentos pessoais, inclusive dos homens, serão sempre, apesar dos enlevos eróticos, os mais puros possíveis para compensar, ou mesmo contratar, as faltas anteriores. As cenas de maior sentimentalismo são, com certeza: o

desfecho de

Senhora, quando Aurélia e Fernando não resistem mais ao amor verdadeiros e rompem com o orgulho para dar voz a felicidade; enquanto que, em Lucíola, o ponto alto acorre durante a discussão entre Lúcia e Paulo, quando este se arrepende de tê-la obrigado a ter outro amante para que ele não fosse humilhado socialmente. Ambos os trechos estão descritos abaixo, respectivamente: - O passado está extinto. Estes onze meses, não fomos nós que os vivemos, mas aqueles que se acabam de se separar, e para sempre. Não sou mais sua mulher; o senhor não é meu marido. Somos dois estranhos. Não é verdade? Seixas confirmou com a cabeça. - Pois bem ajoelho-me eu a teus pés, Fernando, e suplico-te que aceites meu amor, este que nunca deixou de ser teu, ainda quando mais cruelmente ofendia-te. [...] Seixas ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os lábios de ambos se uniam já em férvido beijo, quando um pensamento funesto perpassou no espírito do marido. [...] - Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre! [...] – Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando. É o meio de a repelires. Se não for o bastante, eu a dissiparei. (ALENCAR, 1875. p. 235, 236) “Eu! Não fui atirada contra minha vontade à lama de que desejava erguer-me? Recuando ainda, não fui à noite repelida cruelmente e lançada nos braços desse homem, que no meu desespero eu procurei por ser mesmo o ente mais vil e ignóbil que eu conheço pois era preciso que o suplício fosse bastante violento para matarme logo, e sem lenta agonia! No baile, apesar de tudo, não esperei uma palavra, um sinal para correr a seus pés e suplicar-lhe como agora o meu perdão! - Quem deve pedir perdão desta como de todas as vezes, Lúcia, sou eu: mas não o mereço não. [...] Sou um miserável, indigno de ti.Eu só com o meu orgulho estúpido fui causa do que temos sofrido; mas e justo que a punição recaia sobre mim unicamente.” (ALENCAR, 1862. p. 102, 103)

Observa-se, também, a existência de um eu ficcional, uma entidade, na obra alencariana como a voz do inconsciente. Quanto à revelação desse eu ficcional pode-se admitir a noção de Alfredo Bosi sobre o narrador quando este declara que: Ser narrador ou fantasista depende de fatores múltiplos, psicológicos e sociais o que torna igualmente difícil tentar uma sociologia de caráter positivista, ao menos no que se refere ao autor. (BOSI, Alfredo. 2006. p. 134)

Partindo desse princípio o narrador é o elemento da obra que deflagra a sua realidade, seja ela qual for, e geralmente é complexa e pouco heroica. Mas, de que forma isso é trabalhado por José de Alencar? A crítica literária recorre à psicanálise para explicar esses fatores. A psicanálise freudiana, por sua vez, declara que a interpretação do inconsciente traz à tona a incoerência, monstruosidade ou tudo aquilo que esteja oculto; que a literatura,  

230  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   portanto, é a revelação de pulsões e desejos humanos, não exclusivamente do seu autor, mas sim da sociedade humana condizente com a realidade deste; e que deve ser feita a interpretação da realidade das expressões das personagens e até mesmo dos elementos imagéticos que a circundem (a atmosfera onírica dita anteriormente). Partindo da textanálise, pode-se admitir que o inconsciente do texto é um intermediário, é uma voz que libera explica, descreve e principalmente liberta aquilo que moralmente não é permitido. O inconsciente associado com o consciente, a partir de cuja relação se aproxima a teoria psicanalítica à estética do Romantismo, são, segundo os românticos alemães: “os aspectos mais noturnos e doentios da personalidade humana,” (BÉGUIN, Albert. 1954 apud LEITE, 1987, p. 28) que transparecem através de comportamentos como sonho, sintomas neuróticos ou psicóticos, atos falhos, motivações e imaginação livre e criadora, já que são símbolos do sofrimento do indivíduo. Isso culmina no Romantismo como as características da liberdade de criação e imaginação, a presença constante do elemento onírico e a subjetividade. O inconsciente nas obras de José de Alencar pode ser transferido para a voz do narrador, pois é através dele que o leitor se torna conhecedor de todas essas pulsões existentes nos personagens, principalmente no que diz respeito aos desejos íntimos dos protagonistas. Lucíola e Senhora são narrados, porém, de forma muito distinta um do outro, de forma que a própria construção estrutural se dá de maneira diferente justamente pela intervenção deste ente. Ou seja, é ele o responsável pelo sentimentalismo e o subjetivismo das cenas. Em Senhora, o narrador é apenas onisciente, não está presente e não intervêm na trama; descreve muito mais as situações, com minúcias, do que em Lucíola, e dá espaço a poucos diálogos; é conhecedor de tudo, inclusive de muito mais do que os próprios personagens, sabendo inclusive de sentimentos dos protagonistas que estes não percebem já que suas falas encobrem completamente seus eus, apenas nas falas finais do romance, quando o amor prevalece, o diálogo travado entre ambos revela os verdadeiros sentimentos de Aurélia por Fernando e de Fernando por Aurélia. Em contrapartida, Lucíola apresenta um narrador personagem intradiegético, que sofre e age em toda a trama, Paulo Silva só tem o nome verdadeiro revelado após boas páginas do romance já iniciado. Um fator crucial na desenvoltura deste narrador é que ele não é onisciente, ele só vai descobrindo o verdadeiro caráter de Lúcia, apesar de suas impressões, com a convivência e a partir do momento em que ela própria se determina a contar e demonstrar ao seu amante; a recíproca é verdadeira, Paulo só se dá a conhecer, bem como seus verdadeiros sentimentos, a partir do momento em que Lúcia o vai descobrindo.  

231  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Na teoria Gestalt, Leite (1987, p. 35) afirma que a revelação do eu é explicada como resultado da interação um com outro; o autor afirma que Freud, por sua vez, alega que o eu verdadeiro só se revela a partir do amor e da sua revelação. É a partir dos olhos e dos comentários de Paulo e de um narrador oculto, em Senhora, que os maiores choques de conflito são revelados, estes podem ocorrer pela constante relação entre os conceitos muito opostos: a donzela rica e astuta contra o jovem ambicioso e oportunista, o amor verdadeiro versus a consciência moral e social, desejo carnal e orgulho, dentre outros. Porém, “Alencar cria personagens que, nos melhores momentos são reveladores, para logo caírem no convencionalismo.” (LEITE, Dante Moreira. 1987. p. 160). Nesse processo de narração, fica claro que Lúcia e Aurélia sofreram e sofrem grandes transformações ao avançar do romance. O id de ambas vai sendo revelado. Como Lúcia não tinha pretensão ao casamento, mas era uma por imposição social, não dedicava seu tempo a bordados, aprender a tocar piano, línguas estrangeiras, feitura do enxoval e trabalhos manuais em geral, mas esse era o seu real desejo, vez por outra ela é encontrada ao piano, lendo romances ou admirando prendas puras. Sua educação foi para a sedução e, apesar de atitudes atrevidas, ela castiga a si mesma e busca incessantemente a pureza que possuía no passado. Lúcia tinha obsessão por Paulo, o único homem que dera valor a ela e que a compreendia, mas ocorre nela uma mudança de comportamento um tanto bipolar, muito notada por Paulo, pois em certos momentos ela demonstra desejos sexuais ardentes, em outros, eles são trocados por sua face lívida ou até mesmo cândida, ocasião em que ela tenta fugir das carícias do amante: Era outra mulher. O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua se transformara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes das narinas que tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra. A suave fluidez do gesto meigo sucedeu a veemência e a energia os movimentos. O talhe perdera a ligeira flexão que de ordinário se curvava, com uma haste delicada ao sopro das auras; e agora arqueava enfunando a rija carnação do colo soberbo e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento voluptuoso. [...] Era uma transfiguração completa. (ALENCAR. 1862 p. 30)

Quanto a Aurélia, a donzela mais bela da corte guarda em si verdadeiras dúvidas sobre seus sentimentos, suas atitudes, sua beleza,mas demonstra completa segurança de si na frente dos outros. A inteligência, superior à masculina, ora dá lugar à beleza o mais pura possível, ora a laivos de fetichismo sexual em que a astúcia dela completa este quadro:

 

232  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Quem a visse nesse momento assim resplandecente, poderia acreditar que sob as pregas do roupão de cambraia estava a ondular voluptuosamente a ninfa das chamas, a lasciva salamandra, em que se transformara de chofre a fada encantada. [...] A ferocidade da mulher enganada, sanha de leoa ferida, nunca teve de exprimi-la nem mesmo na exímia cantora, uma voz mais bramida, um gesto mais sublime. As notas que desatavam-se dos lábios de Aurélia, possantes de vigor e harmonia, deixavam após si um frêmito, que lembrava o silvo da serpente, sobretudo quando este braço mimoso e torneado distendia-se de repente com um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo. (ALENCAR. 1875. p. 23)

Se a teoria freudiana de que a racionalização é uma consequência dos sofrimentos da vida afetiva fosse comprovada, o que não o foi, a mudança de comportamento de Aurélia e de Lúcia estaria explicada, mas o potencial energético da donzela já era descrito pelo seu narrador como pertencente a sua vida passada, e Paulo descobre que, mesmo prostituída, Lúcia ainda guarda laivos emotivos da sua vida passada de pureza. O narrador de Senhora, por sua vez, revela que a inteligência e senso crítico da moça já fazia parte de seu caráter antes da sua decepção amorosa. O amor, porém, não é o foco principal do romance de José de Alencar, mas é através dele que todas as outras temáticas, críticas e problemas do estilo romântico se desenvolvem. O romance urbano alencariano está longe, também, de ser passivo; ele estabelece uma crítica social profunda, e essa crítica se constrói a partir do elemento até então considerado mais frágil no sistema burguês: a mulher. Ela passa a possuir atributos que lhe são negados para enfatizar a que convenções a vida burguesa está ligada: economia, hipocrisia, falso moralismo, humilhação de pessoas marginalizadas etc. O temerário torna-se concreto com a revelação de Lúcia e Aurélia; mulheres autônomas que, segundo a conveniência, se mostram passivas; inteligentes e narcísicas, mas com uma docilidade, dependência e necessidade de carinho evidentes; que se deixam, na medida do socialmente possível, guiar pelos instintos; dotadas de vergonha, mas potencial suficiente para a agressividade, mesmo que ela não seja evidente; vaidade física, inveja, ciúme e muitos outros atributos que socialmente não podiam ser evidenciados. Apesar desses fatores através dos quais as referidas personagens puderam subverter e controlar o mundo masculino, surpreendentemente, ao final das duas narrativas, ambas as personagens abrem mão desse privilégio para não fugir, de todo, ao projeto literário do Romantismo que também valorizava a nobreza moral e também à temática alencariana. O homem se torna, então, o ser dominado por essas mulheres poderosas, sendo tomado pelo sentimentalismo, pela busca incessante de liberdade para que a vida atinja novamente a nobreza das almas de forma que tudo seja conciliado, mas de acordo com as conveniências da época; o amor verdadeiro é conquistado, os conflitos econômicos são solucionados, a pureza da alma é atingida, mesmo que com a separação da alma pela morte, e, enfim, os conflitos e desejos internos são completamente saciados.

 

233  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

REFERÊNCIAS ALENCAR, José de. Lucíola. (1 ed. de 1862) Porto Alegre: L&PM, 2010. _______________. Senhora. (1 ed. De 1875) São Paulo: Martin Claret, 2011. BÉGUIN, Albert. El Alma romântica y elsueño: Ensayo sobre el romanticismo alemán y lá poesia francesa.1954, apud LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. 4ª Ed. São Paulo: HUCITEC: Editora Unesp, 1987, p. 24-30 BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 39ª ed. São Paulo: Cultrix, 2001. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de Teoria e História Literária. 8ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. _________________. Formação da Literatura Brasileira - momentos decisivos (1750 1880). 13ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012, p. 536-548. CHODOROW, Nancy. Psicanálise da maternidade. Uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1978, p.261-271. COUTINHO, Afrânio(Dir.). COUTINHO, Eduardo Farias (Co-dir). A Literatura no Brasil. 3º v – Parte II/ Estilos de Época, Era romântica. 4ª ed. São Paulo: Gobal, 1997. ________________(Dir.). SOUZA, J. Galante de. Enciclopédia de Literatura Brasileira. São Paulo: Global; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, DNL: Academia Brasileira de Letras, 2001, p. 179 -183. FREUD, Sigmond. Conferência XXXIII. Feminilidade. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. Ed. Standar Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud. Imago, 1932-1936, p.75-91. LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. 4ª Ed. São Paulo: HUCITEC: Editora Unesp, 1987, p. 24-30 MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida privada. In: PERROT, Michele. (Org). História da Vida Privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 193-261.

 

234  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   IDEALIZAÇÃO E IDEOLOGIA: O SERTÃO NA CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA (1910-1960)     Joêzer de Souza Mendonça, Doutorando em Musicologia (IA/UNESP)    

Resumo Na trajetória da canção popular brasileira, a música que canta o sertão remete a conceitos românticos e idealizados e também a ideais utópicos e ideologizados. Os gêneros musicais, primeiramente a toada sertaneja, e depois o baião, o xote e o forró, incorporaram o bucolismo das descrições dos cenários e atividades sertanejas, a jocosidade dos comportamentos e festejos permeados pelo imaginário lúdico local e a formação de uma consciência crítica em relação ao subdesenvolvimento econômico de uma enorme região do país. A partir dessas características enunciadas pelos conteúdos das canções, o objetivo deste artigo é oferecer uma configuração de três momentos históricos da representação do sertão na música popular brasileira, desde a idealização pastoril no início do século XX à ideologização do sertão nos anos 1960. Nossa proposta de delimitação temática em três fases históricas resulta da distinção de ênfase concedida por alguns dos principais cancionistas nacionais a determinados temas e interpretações do imaginário e da realidade do sertão brasileiro. Palavras-chave: sertão; canção popular; ideologia

Introdução A música popular brasileira que aborda o locus do sertão se caracteriza por entoações permeadas de idealização e também de ideologia. Nesse sentido, os gêneros musicais, a partir da toada sertaneja, e depois o baião, o xote e o forró, incorporaram o bucolismo das descrições da vida sertaneja, a jocosidade do imaginário lúdico representado em comportamentos e festejos, e a formação de uma consciência crítica do subdesenvolvimento econômico em regiões nordestinas. Estas três características de conteúdo não incidiram na música de modo sequencial/diacrônico ou assincrônico, mas receberam ênfases distintas em períodos históricos distintos. Muitas vezes, essas temáticas se apresentam historicamente simultâneas, pois, se há grande variedade de compositores e intérpretes, há menor variação na catalogação dos problemas sociais e econômicos não solucionados. John Blacking avalia que a música é não apenas reflexiva; ela é também generativa, tanto como sistema cultural quanto como capacidade humana, e uma importante tarefa da musicologia é

 

235  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   descobrir como as pessoas percebem a música em uma variedade de situações sociais e em diferentes contextos culturais (BLACKING, 1995, p. 223).

Este pensamento indica que a música não é um espelho da história, mas ela possibilita a leitura e a reinterpretação dos fatos históricos por meio da percepção e do fazer musical dos indivíduos. Portanto, sem subestimar a presença concomitante desses três modos (bucolismo, jocosidade e consciência ideológica) de tematizar o sertão, e de acordo com a afirmação de que “ela [a música] atua com a história e sobre a história” (ASSIS, et al, 2009, p. 14), este breve estudo oferece uma cronologia de três ênfases históricas da representação do sertão na música popular brasileira. 1ª fase: o sertão idealizado O exame de letras das canções populares no início do século XX mostra que o retrato do sertão está marcado pelo bucolismo, pelo excesso sentimental derivado da saudade e da melancolia, mas também derivado de tentativas de se fazer “poesia culta”. Não raro, as letras se mostram carregadas de um romantismo que idealizava a rusticidade do cenário sertanejo. O conteúdo pastoril e rural encontrava sua modulação musical nos estilos da toada, da embolada e do batuque sertanejo. Nas primeiras do século XX, os gêneros musicais de extração rural, por meio de músicos urbanos, repercutiram a influência melódica da modinha urbana, aludindo a “um trabalho de recriação que algumas vezes parecia alcançar o nível do folclore” (TINHORÃO, 2013, p. 49). A idealização do sertão tem na toada “Luar do sertão” (1914) sua grande propulsora. Com letra de Catulo da Paixão Cearense e música de autoria controversa (a melodia é atribuída ao músico João Pernambuco, mas também seria uma apropriação do tema popular anônimo “É do Maitá”), essa canção contrapõe a beleza da paisagem do campo à frieza da vida urbana e descreve o cenário campestre com alto teor de romantismo. Ah que saudade / Do luar da minha terra Lá na serra branquejando / Folhas secas pelo chão Este luar cá da cidade tão escuro Não tem aquela saudade / Do luar lá do sertão Não há oh gente oh não / Luar como este do sertão Não há oh gente oh não / Luar como este do sertão A gente fria / Desta terra sem poesia  

236  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Não se importa com esta lua / Nem faz caso do luar Catulo da Paixão e João Pernambuco já haviam sido parceiros na embolada “Cabôca de Canxagá”, gravada em 1913 por Eduardo das Neves. A letra dessa canção congrega a fauna e a flora do sertão, tudo mesclado a nomes de pessoas, localidades e expressões do linguajar regional: Laurindo Punga, Chico Dunga, Zé Vicente Essa gente tão valente do sertão de jatobá [...] Cabôca di caxangá / Minha cabôca venha cá Queria ver se essa gente também sente Tanto amor como eu senti Quando eu te vi em Cariri Atravessava um regato no patau E escutava lá no mato O canto triste do urutau [...] Há muito tempo lá nas “moita” da taquara Junto ao monte das “coivara” Eu não te vejo tu passar Todo os “dia” até a boca da noite Eu te canto uma toada Lá de baixo do indaiá Maria Amélia de Alencar (2000, p. 6) avalia que essa forma de tratamento nostálgica e idealizada obedece à “tradição romântica do motivo do exílio, adequada à nostalgia dos que haviam deixado o campo em busca da cidade, como ocorria no Brasil da época. Nessas canções surgia um campo edenizado, distante e puro, para o qual se sonhava voltar um dia”. Esse modelo de representação idílica do sertão está presente em canções como “Maringá”, de Joubert de Carvalho; “Tristeza do Jeca”, de Angelino de Oliveira; “No Rancho Fundo”, de Ary Barroso e Lamartine Babo; “Casa de Cabôclo”, de Heckel Tavares e Luiz Peixoto. Curiosamente, assim como Catulo da Paixão Cearense, estes são compositores que não habitavam a caatinga nordestina ou a roça do caipira paulista. A representação musical do sertão não teria apenas o substrato de romantismo bucólico. A gravação de “O Matuto”, de Marcelo Tupinambá (pseudônimo de Fernando Lobo) e Cândido Costa, em 1918, alavancou o tratamento satírico das temáticas sertanejas por meio de cocos, cateretês e emboladas que alcançariam grande sucesso popular.

 

237  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Nos anos 1920, conjuntos como o Grupo de Caxangá, os Turunas da Mauriceia e os Turunas Pernambucanos ampliaram o domínio das músicas regionalistas. O violonista João Pernambuco, componente do terceiro grupo, legou alguns clássicos do cancioneiro sertanejo que acentuavam o teor cômico e lúdico que caracterizavam aquelas canções: “Seu Coitinho pegue o boi”, “Sodade Cabocla” (em parceira com E. Tourinho), “Perigando”, “Catirina”.73 Para José Roberto Zan,74 o apelo regionalista e nacionalista desse repertório ecoava as propostas dos grupos intelectuais modernistas, que criticavam as canções urbanas e massificadas e valorizavam os estilos e temas rurais. Como veremos adiante, o debate sobre a autenticidade de uma manifestação cultural nacional retornaria na década de 1960. Desta vez, matizada por ideais de politização da cultura popular. Até a metade da década de 1940, as principais referências geográficas e culturais presentes nas canções sobre o sertão eram o interior da região Sudeste ou os costumes e festejos nordestinos. No entanto, nem sempre as canções que entoavam a saudade de casa ou a sátira dos costumes sertanejos eram próprias para os salões de dança. As marchinhas de carnaval e o samba cumpriam mais adequadamente esse papel de convite à dança. Naquele período, porém, a música de carnaval passava por uma fase de declínio. Além disso, vivia-se a novidade do samba-canção de conteúdo romântico e até depressivo. O sanfoneiro Luiz Gonzaga seria, então, responsável por acrescentar o baião aos ritmos dominantes e apropriados para a dança. 2ª fase: o sertão lúdico-idealista Eu vou mostrar pra vocês Como se dança o baião E quem quiser aprender É favor prestar atenção (“Baião”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) Humberto Teixeira que o baião era um ritmo comum no Nordeste e que ele e Luiz Gonzaga teriam somente urbanizado o baião (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 22). Assim como a indumentária de Gonzaga, adaptada do figurino do cangaceiro Lampião, a música também passava por um processo de estilização. Os ritmos e temas eram de extração direta da vivência sociogeográfica do autor dos xotes, xaxados e arrasta-pés, e as letras apresentavam uma paisagem mais realista do sertão                                                                                                                 73

Estas duas últimas canções são temas de origem folclórica que receberam arranjos de João Pernambuco. José Roberto Zan, Da Roça a Nashville, Universidade Federal de Uberlândia, s/d, mimeo. Citado por Maria Amélia de Alencar (2000, p. 6). 74

 

238  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   nordestino. Em boa parte das canções que tematizavam o sertão, o conteúdo nostálgico expressava uma saudade sem sentimentalismo e seu conteúdo lúdico acentuava a jocosidade e o duplo sentido. Essas características estão presentes numa das canções mais representativas do sertão musical: “Asa Branca”, de Gonzaga e Teixeira. Gravada em 1947, a canção é uma toada imemorial retrabalhada pela dupla. O retrato realista (Que fornalha, nem um pé de plantação / Por falta d'água perdi meu gado...) se combina à poesia sem melodrama (Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação / Eu te asseguro, não chore não, viu...). O cantador e trabalhador que foi tentar a vida em paragens menos áridas só voltará quando a chuva possibilitar melhores condições de subsistência. Não por acaso, anos depois, Luiz Gonzaga gravou “A volta da Asa Branca”, em que há “terra molhada”, “mato verde” e “a asa branca canta”. As canções sertanejas das primeiras décadas do século XX não faziam menções à estrutura de opressão dos latifúndios e do coronelismo. A discussão do modelo agrário e da subserviência também não comparece diretamente nas canções de Gonzaga e Teixeira, visto que o eu-lírico sertanejo tudo atribui aos desígnios sobrenaturais (Deus). Entretanto, nota-se que, embora de modo pouco explícito, a música de Gonzaga adentra questões políticopartidárias, mesmo que o texto sobre a participação do governo da Paraíba nos eventos que levaram à Revolução de 1930 viesse a tomar um sentido malicioso para se referir a mulheres fortes: Hoje eu mando um abraço p'ra ti, pequenina Paraíba masculina muié macho, sim, senhor (“Paraíba”, 1950) Com o novo parceiro Zé Dantas (José de Souza Dantas Filho), Luiz Gonzaga expressaria de forma mais contundente as diferenças de tratamento do governo brasileiro em relação ao Sul e ao Norte. Zé Dantas emprega a estrutura do cordel e firma tonalidades mais diretas e politizadas: Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage (“Vozes da Seca”, 1953) Outra característica das letras dos sucessos nordestinos nos anos 1950 era a ambiguidade licenciosa, o duplo sentido malicioso. É evidente que, devido ao contexto social de moralidade sob maior restrição, o conteúdo sensual das canções dos anos 50 estava longe  

239  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   da malícia escancarada do forró dos anos 1970, como nas canções de Genival Lacerda e João Gonçalves, e do teor altamente erotizado do forró eletrônico dos anos 1990/2000. Zé Dantas não investiu na ambiguidade, mas na descrição poética e sem rodeios da capacidade de sedução do corpo feminino (“O ‘chero’ da Carolina” e “Cintura Fina”), incluindo o próprio despertar e autoconsciência da feminilidade juvenil no “Xote das Meninas”, que enuncia as demandas de “toda menina que enjoa da boneca” e que não quer mais usar sapato baixo, e sim “meia comprida” e “vestido bem cintado”. O lúdico malicioso se apresentava na música do maranhense João do Vale, como na satírica “Peba na Pimenta” (xote em parceria com José Batista e Adelino Rivera), gravada por Marinês em 1957, e em canções do paraibano Jackson do Pandeiro, como no sucesso “Sebastiana”, coco de Rosil Cavalcanti. Estreada em 1953, essa canção divertia o público com o molejo rítmico da voz de Jackson e com a brincadeira da “umbigada” de sua parceira de palco Almira Castilhos no refrão: “E gritava A-E-I-O-U-Ipsilone”. O ano de 1953 também marca a internacionalização do sertão nordestino por meio do sucesso de “Mulher Rendeira”, tema popular adaptado pelo compositor Zé do Norte (Alfredo Ricardo do Nascimento) que faz parte da trilha sonora de “O Cangaceiro”, filme premiado no exterior que também estilizava o imaginário do cangaço. Assim como ocorrera no processo de popularização musical e midiática do baião, o cinema também contribuía para a criação de um sertão imaginário e idealizado por meio de figurinos, imagens e enredo. Nesse caso, as vozes de Luiz Gonzaga, Marinês e Jackson do Pandeiro ao menos providenciavam um escape realista, seja pelo retrato mais crítico (embora sem descartar o romantismo e a idealização) da vida sertaneja, seja pela sátira maliciosa dos comportamentos sociais. No final da década de 1950, a apresentação ora lúdica ora realista do sertão seria recontextualizada em novo modelo de tratamento a partir de uma mentalidade ideológica e partidária. Momento histórico em que a canção sertaneja deixou de ser vista como o ópio do povo para se tornar a razão crítica do engajamento popular.

3ª fase: o sertão ideologizado No início dos anos 1960, alguns grupos intelectuais estudavam propostas de desenvolvimento econômico para a região Nordeste. As análises dos especialistas visava o combate a alguns dos principais males que assolavam a região: as relações de trabalho entre latifundiários e trabalhadores rurais, a seca empobrecedora e a migração de grandes contingentes humanos para outras regiões do país.  

240  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Essas questões permearam o cancioneiro popular sobre o sertão nordestino. O repertório passava a dar maior ênfase à situação de miséria e abandono em virtude da crescente conscientização ideológica em relação ao subdesenvolvimento econômico. Não significa que os compositores nordestinos só tivessem enxergado criticamente seu contexto local por meio do engajamento político e ideológico. Como exemplo, no disco Marinês e sua Gente, lançado em 1960, ouve-se a canção “Depois da Asa branca”, de Antonio Barros, cujos versos resumem o diagnóstico sobre as dificuldades da terra: Os açude da água doce, com os tempos, se secou Como os óio que chora muito com saudade de quem lhe deixou Na década de 1960, havia círculos intelectuais que fomentavam manifestações artísticas capazes de mobilizar a ação política. A arte engajada na conscientização crítica e na contestação ideológica desfrutava de maior prestígio entre os músicos politizados quando ligada à visão cultural nacional-popular. Essa visão partilhava o conceito de cultura popular como fator legitimador da autêntica identidade nacional (NAPOLITANO, 2002, p. 54). Em se tratando de música, os ritmos e instrumentos musicais de raiz brasileira eram valorizados em detrimento da cultura do exterior do país. Segundo essa perspectiva, os gêneros musicais de matriz nordestina e sertaneja, e também os gêneros atrelados à cultura afro-brasileira, recebiam o selo da ideologia nacional-popular. O sertão idealizado de décadas passadas passava a ser ideologizado. A canção “Carcará”, de João do Vale e José Cândido, espelha essa faceta de ideologização do sertão. A canção fazia parte do espetáculo teatral de protesto “Opinião”, lançado no Rio de Janeiro em dezembro de 1964, ano do golpe militar no Brasil. Nesse musical, os três protagonistas eram três músicos de fato: Nara Leão, representando a juventude burguesa, Zé Keti, o músico urbano, e João do Vale, o retirante nordestino. A letra de “Carcará” propicia um realismo descritivo sem metáforas de esperança: Carcará, pega, mata e come Carcará, um vai morrer de fome Carcará, mais coragem do que homem A descrição da luta pela sobrevivência da ave carcará, representação da brutal e inóspita condição humana, ganhava o acréscimo da declamação de dados sociogeográficos das graves dificuldades da região nordestina coletados de um relatório da SUDENE, órgão federal criado para o desenvolvimento socioeconômico do Nordeste.

 

241  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Em 1964, o cineasta Glauber Rocha lançava Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme que é uma alegoria política e um manifesto cultural desafiador que envolvia a consciência do subdesenvolvimento, a frustração das esperanças do morador do sertão, o imaginário religioso e folclórico e a revolta do homem do campo. Como trilha sonora, foram providenciadas canções ao estilo do cordel. As canções funcionam como comentários dos acontecimentos passados no filme. Acompanhada de um rascante violão, a voz do cantor Sérgio Ricardo entoa o desejo de liberdade dos personagens, como em “Perseguição/O sertão vai virar mar”, em que o narrador canta o verso “Se entrega, Corisco”, o qual é seguido da resposta “Eu não me entrego, não, eu não sou passarinho pra viver lá na prisão [...] Me entrego só na morte de parabelo na mão”.75 O conjunto de canções contextualiza as encenações alegóricas do filme e ainda faz prognósticos de revolução para o locus sociogeográfico: “o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”. A canção que fecha o filme diz: Tá contada minha história / Verdade, imaginação Espero que o sinhô tenha tirado uma lição Que assim mal dividido / O mundo anda errado Que a terra é do homem / Nem de Deus nem do diabo A relação do nordestino sertanejo com a religião comparece no enredo do filme desde seu título. Os personagens Deus e Diabo não seriam indivíduos, mas símbolos da religião ou da fé (Deus) na forma do poder terreno da igreja ou do messianismo independente, e da opressão agrária (Diabo) na forma do coronelismo e dos grandes latifúndios. Todos esses sistemas, muito de acordo com a visão marxista que vários artistas incorporavam na época, estavam em dívida com o sertanejo desprovido de posses, terras ou paraísos. Ainda nos anos 1960, a radicalização da cultura nacional-popular e o engajamento político estudantil podiam ser visualizados nos festivais de música. A ideologização do sertão delimitava o que era um autêntico estilo musical brasileiro ao conceder menor importância a ritmos e letras associados com o entretenimento e ao priorizar canções que simbolizassem o ideal revolucionário. Assim, dava-se preferência a ritmos menos animogênicos ou dançáveis e estimulavase um direcionamento logogênico, isto é, a letras que representassem a revolução. Segundo essa perspectiva, “somente a arte política pode ser considerada como legítima, uma vez que ela encarna a única forma possível de réplica ao processo de alienação” (ORTIZ, 1986, p. 75).                                                                                                                 75

Parabelo é a corruptela de “parabellum”, por sua vez, apelido da pistola Luger P08. Arma empunhada por cangaceiros como Lampião.

 

242  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   “Disparada”, canção de Téo de Barros e Geraldo Vandré, cantada no Festival da TV Record, em 1966, simboliza o teor ideológico que se inseriu na música de feição popular. É um cântico contagiante pela sua construção musical simples aparelhada de poesia descritiva da tomada de consciência crítica. O narrador da canção diz que “na boiada já fui boi” e que vivia como num sonho, pois ser “boiadeiro era rei”. Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando As visões se clareando, até que um dia acordei [...] Porque gado a gente marca Tange, ferra, engorda e mata Mas com gente é diferente Nessa época, Luiz Gonzaga não promovia o mesmo olhar em suas canções sobre o sertão, ainda que sua visão não fosse desprovida de crítica. O sertão musical de Gonzaga dava proeminência à memória nostálgica, aos festejos alegres, às danças e à culinária, enfim, a um imaginário simbólico de afetividade. De outro lado, a cantora Marinês aceitou entrar no projeto musical de resistência política. Ela, que já havia substituído Nara Leão em algumas apresentações do show “Opinião” (no mesmo papel que viria a ser de Maria Betânia), lançou em 1967 o disco Marinês repleto de canções de protesto: “Disparada”, “Procissão”, “Aboio”, de Gilberto Gil e Capinam, “Mutirão”, de Sérgio Ricardo, entre outras. No entanto, por uma combinação de pressões políticas e artísticas, esse disco teve pouca divulgação, levando Marinês de volta às canções que abordavam um sertão sem enunciações políticas e ideológicas. Considerações finais As referências sociais e culturais de um compositor musical passam por integrações e rupturas que alteram sua consciência histórica. Da construção de novos referenciais surge a intenção de cantar temas relacionados ao contexto histórico em que o compositor está situado. Assim, se no começo do século 20 o sertão esteve representado em retratos musicais de tintas pastoris e se, nos anos 1960, o sertão foi visualizado no cenário de protesto político, essa diferença se deve aos processos históricos e sociais distintos mobilizados naqueles períodos. Desse modo, nossa delimitação temática em três fases históricas resulta da distinção de ênfase concedida pelos principais compositores a determinados temas.  

243  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O contexto social ao qual um compositor se subscreve alimenta sua relação com a sociedade e pode levá-lo a efetuar mudanças em seus modelos de elaboração musical. Por sua vez, sua produção musical pode manifestar desejos e potencialidades latentes na mentalidade de um grupo social. De toda forma, a análise musicológica com fundamentos na pesquisa histórica pode contribuir para a compreensão da escuta e do fazer musicais quando a observação é empreendida a partir do contexto histórico. Referências Bibliográficas ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Cultura e identidade nos sertões do Brasil: representações na música popular. In: Atas do III Congresso Latinoamericano de Músicas Populares, Bogotá, 2000. ASSIS, Ana C.; LANA, Flávio B. J.; CARDOSO FILHO, Marcos. Música e história: desafios da prática interdisciplinar. In: BUDASZ, Rogério (org.). Pesquisa em música no Brasil: métodos, domínios, perspectivas. Goiânia: ANPPOM, 2009, p. 5-39. BLACKING, John. Music, culture and experience: selected papers of John Blacking. Chicago: University od Chicago Press, 1995. MARCELO, Carlos; RODRIGUES, Rosualdo. O fole roncou! Uma história do forró. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. NAPOLITANO, Marcos. História e Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. OLIVEIRA, Francisco de. “Nordeste: a invenção pela música”. In: Cavalcante, Starling, Eisenberg. Decantando a república: inventário historico e politico da canção popular moderna brasileira, vol. 3. RJ/SP: Nova Fronteira/Fundação Perseu Abramo, 2004, p.123-138. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular segundo seus gêneros. 7ª ed. revista. São Paulo: Editora 34, 2013.

 

244  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   POR QUE LER CLÁUDIA TAJES? Joicylene Sabóia de Oliveira (PPGLA-UEA76) RESUMO: A indústria cultural de massa globalizada busca intensificar nos seus produtos, como filmes, seriados, jogos e música, a disseminação da cultura. Diante disso, perspectivas otimistas, ou não, quanto à leitura são recorrentes no meio acadêmico. Nesse caminho, sabemos que a figura do autor mudou bastante. Não somente este, mas também os livros e os leitores mudaram em muitos aspectos, o que de fato que nos motiva a pensar: Se esse mundo letrado fosse uma feira ambulante, quais textos sairiam ganhando? Seriam aqueles que acertam as estratégias mercadológicas? Ou seriam obras cujas temáticas sejam específicas e centradas na faixa etária do leitor? Assim, diante desses e outros questionamentos selecionamos para a abordagem neste artigo uma figura singular no campo literário, Cláudia Tajes. Esta última tem-se mostrado relevante na literatura sulista pelo caráter irreverente e, por vezes, humanístico de seus textos. Em verdade, entender o porquê de ler tal autora, diante de tanta diversidade, torna-se claro mediante alguns teóricos da leitura, como Regina Zilberman, Alberto Manguel e Roger Chartier. PALAVRAS-CHAVE: Cláudia Tajes. Literatura. Leitura.

Introdução Os desafios da sociedade diante da quantidade de informações existentes podem ser contornados com criatividade. A literatura insere-se neste espaço e como parte do sistema cultural acaba cercada por um modelo capitalista, mas como arte supera-se e assume um papel de destaque. Em vista disso, algumas alterações atingiram os autores e as compreensões acerca do tema. Aos autores, uma atuação exemplar: precisam ser criativos ao publicar em periódicos impressos e eletrônicos, principalmente, ao promover ou compor participação nos eventos de incentivo à leitura. A estes últimos, somam-se os congressos e simpósios, voltados ao público acadêmico, além das Feiras Literárias, destinadas ao que se pode designar “grande público” leitor. Percebe-se outra situação latente: A leitura mudou. E neste artigo são realizadas incursões na história da leitura, através das contribuições teórico-analíticas por Lajolo e Zilberman (2002), Chartier (1998) e Manguel (1997). Neste trabalho, analisaremos a produção e a figura da escritora gaúcha Cláudia Tajes, que, para atingir seu público leitor,                                                                                                                 76

Artigo desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes, da Universidade Estadual do Amazonas.

 

245  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   apela por meio de variados mecanismos. Iniciaremos pelos livros por ela publicados; na sequência, pelo contato nas rodas de leitura e eventos de coautoria, e por último, focaremos no blog da autora. Exigências modernas para o escritor: escrever, publicar, divulgar e postar. 1. Cláudia e os livros Mulher, mãe, trabalhadora. Palavras comuns a milhares de pessoas, porém para Cláudia Tajes, de Porto Alegre, nascida em 1963, o cenário literário mostra-se particular. Após abandonar a redação publicitária, a autora escreve sobre o comportamento das mulheres da classe média brasileira, bem como os desencontros amorosos de forma bem humorada. O primeiro livro publicado, em 2000, bem como nos sete que se seguiram, garante a Cláudia Tajes a proximidade com a temática urbana. Apesar de publicações em outras editoras, a parceria com L&PM Editores mostrou-se frequente, com previsão de lançamento Sangue Quente - contos com alguma raiva. A autora escolhe títulos interessantes e curiosos, além da abordagem de temáticas e tipos humanos, que aparentemente chamam a atenção de um público particular, o público feminino. Cosson (2007), em adição, destaca na crítica feita para Dez (quase) amores77, a leveza do texto, o qual “transforma os dramas nossos de cada dia em situações de riso”. De fato, isso ocorre nesse e em outros livros precedentes. No livro Dez (quase) amores, a personagem Maria Ana tem a atribulada vida amorosa sintetizada no “quase”. A narrativa segue das primeiras experiências com o sexo oposto até o número delimitado no título, dez. Notamos ainda os nomes estranhos dos namorados, as relações familiares, o ofício de jornalista, até os absurdos e maldades motivadas pelas emoções. Em outra publicação, temos a fuga das regras sociais, em que Sampaio, um professor de Literatura, experimenta a infidelidade conjugal. As pernas de Úrsula e outras possibilidades78 conta ao leitor algumas peripécias pelas quais o personagem enfrenta, tais como inventar desculpas para sair, as explicações e as mentiras para manter o relacionamento extraconjugal. Após as narrações de Maria Ana e Sampaio, no próximo livro, Dores, amores e assemelhados79, acompanhamos dois personagens, os quais transformam o leitor em voyeur, onde Júlia e Jonas são tomados pelo cotidiano e reagem a isso.                                                                                                                 77

Publicado pela L&PM Editores em outubro de 2000. Publicado pela L&PM Editores, em formato convencional em 2001. 79 Publicado pela L&PM Editores em 2002. 78

 

246  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Em 2003, o romance Vida dura, lançado pela Editora Planeta, conduz o leitor às ruas de Porto Alegre. O trânsito e as distâncias sociais da periferia são retratadas na difícil vida de Leonel, este, às voltas para garantir o sustento, torna-se doador para clínicas de fertilização. A relação com a mãe, as mulheres, os amigos e as inspirações para o trabalho fazem desse personagem um caso particular. Cláudia Tajes mostra-nos, no quinto livro, o comportamento social em relação aos padrões de beleza. Em A vida sexual da mulher feia80, Jucianara assume as obsessões que rondam a cabeça das mulheres diante da sociedade de comunicação, a qual enxerga as aparências como algo fundamental. De fato, mais uma vez, as experiências amorosas compõem o enredo. Aparências também são importantes para Graça, em Louca por homem – histórias de uma doente de amor81. Neste, encontramos uma nova mulher a cada relacionamento iniciado, obsessões e manias alheias assumidas tão prontamente a paixão se instaura. No jogo das personalidades múltiplas, em pouco tempo a personagem experimenta tipos masculinos, entre eles, de ordem religiosa, atleta, depressivo, viciado em limpeza, fumante. No livro Só as mulheres e as baratas sobreviverão82, deparamo-nos com Dulce preocupada com uma barata descansando no vestido, daí, a sessão de terapia inicia, numa divagação refinada de humor. É momento para discursos sobre fobia, leituras, reflexões sobre a vida. No último livro publicado, temos a complicada relação de Sara Gomes, em Por isso sou vingativa83. Revoltada com a situação em que se depara, a personagem resolve fazer uma lista com os nomes das pessoas merecedoras de uma lição. O problema fica evidente na falta de experiência da moça em lidar com tamanha pressão e convida o leitor a acompanhar uma doce vingança. Consideramos apenas os resumos dos livros, porém Tajes ampliou sua produção. Para citar um exemplo, Espelho de corpo inteiro, uma edição comemorativa das Lojas Pompéia, publicado em 2010 e distribuído em áreas de grande circulação em Porto Alegre. Neste, há conjecturas sobre a vida, em forma de crônicas, diante do chamado espelho feminino, masculino e o que a autora aponta como “espelhou geral”. Percebemos que há uma atenção do público na questão dos preços dos livros, de baixo custo, somados à preferência pela prosa mais enxuta, em geral, crônicas, novelas. No percurso                                                                                                                 80

Publicado pela Editora Agir, 2005. Publicado pela Ediouro, em 2007. 82 Publicado pela L&PM Editores, em 2009. 83 Publicado pela L&PM Editores, em 2011. 81

 

247  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   histórico do livro e nas vantagens surgidas pós-Gutenberg, seja nos volumes grandes ou pequenos, luxuosos ou populares, um ponto de destaque reside nessa análise: Os livros declaram-se por meio de seus títulos, seus lugares num catálogo ou numa estante, pelas ilustrações em suas capas, declaramse também pelo tamanho. Em diferentes momentos e em diferentes lugares, acontece de eu esperar que certos livros tenham a aparência, e, como ocorre com todas as formas, esses traços cambiantes fixam uma qualidade precisa para a definição do livro. Julgo um livro por sua capa; julgo um livro por sua forma. (MANGUEL, 1997, p. 149) Julgando-se o livro pela capa, os de Tajes são bem sugestivos no título, que exaltam o corpo, comportamento e amor, também pelo tamanho adequado do objeto, que permite ao leitor mantê-lo confortavelmente nas mãos. Notamos que as edições da L&PM publicadas no formato de livro de bolso, são mais acessíveis tanto na questão monetária quanto nos locais de distribuição, sendo comuns também em bancas de revista e aeroportos. No que se refere ao design gráfico escolhido nas capas, a presença do colorido nas imagens atraem um público mais jovem e disposto a uma leitura breve. Notamos que as ilustrações das capas ora são feitas nos estúdios, ora recorreram à fotografia.

Assim,

surpreende e desperta a curiosidade nos livros de Tajes84: uma jovem segurando uma linha repleta de corações; exibição de pernas femininas estonteantes; um título em letras grandes, verdes sob um fundo lilás; o travesseiro cobrindo o rosto de uma pessoa; cuecas de todos os estilos penduradas em um varal; uma mulher apavorada, enrolada na toalha perto de uma barata; bonecos masculinos de todos os estilos, com alfinetes no corpo, uma prática vodu. Em verdade, estes elementos convidam o leitor a folhear o livro pela capa. 2. A leitura e a figura feminina nas obras de Cláudia Tajes. A condição da mulher no passado, como lembra Chartier (1998, p. 109), era a de ser submissa a um rígido controle e às severas desconfianças de que ser instruída implicava em dirigir bilhetes a amantes, daí, uma restrição da Igreja e da sociedade, por temor das interpretações selvagens. Em contrapartida, as personagens de Cláudia destacadas na sequência, Jucianara, Graça e Dulce, leem com assiduidade Kafka, Drummond, Clarice Lispector também autores não canônicos. Em A vida sexual da mulher feia, a atividade jornalística permite à Jucianara o papel de leitora inserida na comunicação em massa Eu já havia lido milhares de vezes nos livrecos de papel jornal que minha mãe comprava nas bancas de revistas: Julia, Sabrina, Barbara Cartland. Em dezoito anos de vida, eram

                                                                                                                84

 

As capas, em sua maioria, referem-se à reedição dos livros pela L&PM.

248  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   toneladas de noveletas devoradas, e não existia uma sequer em que a heroína e seu príncipe não se antipatizassem à primeira vista, sintoma inequívoco de que uma grande paixão estava por vir. (TAJES, 2005, 45)

Um dos namorados de Jucianara a faz relembrar personagens de suas leituras: Por coincidência ou premonição, dona Matilda batizou de Otelo o homem mais ciumento que eu jamais conheci. Tal o personagem de Shakespeare, o meu Otelo se debatia em dúvidas e suspeitas e, quanto mais o tempo passava, mais desconfiava de estar sendo traído por mim, ainda que não fosse absolutamente verdade. (TAJES, 2005, p. 65)

Também na profissão de locutora, sobretudo lendo e respondendo as cartas dos ouvintes da rádio para qual é contratada, a personagem Jucianara tem a leitura como hábito. Já para a professora universitária Graça, em Louca por Homem, a leitura diferencia-se, pois a cada relacionamento há uma nova leitura da vida e do amor. Sempre gostei mais de prosa, mesmo que meu pai tivesse Mário Quintana, Manuel Bandeira e Drummond nas prateleiras centrais da estante lá de casa. E ainda que, na saída de suas aulas de francês, minha mãe insistisse em recitar versos para treinar a língua e intrigar a filha. (TAJES, 2011, p. 61)

O término do encantamento por um poeta deixou reflexões: Coloquei o livro de Kleber K. na estante, a uma respeitosa distância dos Jonh Donne do meu pai e dos Rimbaud da minha mãe.Não existia a menor hipótese de eu ver poeta tão cedo, mas isso não me causava qualquer dor. Por estranho que pareça, eu até prefiro o lirismo de encontrá-lo nas páginas de um livro. (TAJES, 2011, 72)

Um relacionamento com um cidadão brasileiro e daí novas aquisições “todas as noites leio para Tito um trecho das memórias musicais brasileiras do Nelson Motta, Noites tropicais”. (TAJES, 2007, p.121). Graça lê as revistas e livros de esoterismo, assuntos da cultura judaica, bem como das áreas das ciências sociais e humanas, seja para o exercício da profissão ou para a conquista de um namorado. Encontramos outra personagem-leitora, Dulce, que na obra Só as mulheres e as baratas sobreviverão lembra “A paixão segundo G.H”, de Clarice Lispector, tratando similarmente sobre o encontro com uma barata. A recomendação de leitura surge da faxineira Suzana, leitora assídua, em um diálogo pelo telefone: “Clarice Lispector já escreveu sobre isso? E você recomenda?” (TAJES, 2012, p. 52). Outra referência de leitura, A metamorfose, de Kafka, sobre transformações da personagem em um inseto “Quer saber? Eu entendo Gregor Samsa. Às vezes eu também acordo transformada em barata”. (TAJES, 2012, p. 97). 3. Cláudia Tajes e as divulgações nas rodas literárias e feiras No percurso histórico, sabemos que os tipos de leitura eram regulados pelo silêncio Os regulamentos reconhecem esta nova norma e a impõem àqueles que não teriam ainda interiorizado a prática silenciosa da leitura. Pode-se supor que antes, nas scriptoria monásticas ou nas bibliotecas das primeiras universidades, ouvia-se um

 

249  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   rumor, produzido por essas leituras murmuradas, o que os latinos chamavam de ruminatio. (CHARTIER, 1998, p. 121)

Esse silêncio ritualístico, pouco admitiria a leitura em voz alta, mas acompanhavam sua leitura com um zumbido que intriga e impõe respeito. Por outro lado, no momento doméstico, Fabre cita que prestigiosos leitores eram apreciados por uma dinâmica no seio familiar, onde o pai lia os grandes autores, enquanto mulheres e crianças escutavam. De fato, o conteúdo do livro pouco importava, dava-se valor à confrontação pessoal e pública com o livro. (FABRE, 2011, p. 204-207) Havia valor na erudição e na sensatez ligada ao ato de ler. A leitura pública era realizada em casas respeitáveis. Às mulheres, enquanto tricotavam e bordavam, era-lhes permitido que participassem como ouvintes da leitura em voz alta. Hoje, as escolas endossam tal prática como forma de atingir aos jovens, reunidos em um auditório para ouvir especialistas. Na televisão, em programas de auditório, há uma condição de audiência, de escutar a fala alheia. Essa prática, a leitura em voz alta, ainda está presente e saber se expressar através dos dons da oratória chama atenção na sociedade. A leitura pública supõe que a biblioteca saia de seus muros, vá ao encontro dos leitores, com os ônibus-bibliotecas, as bibliotecas circulantes instaladas nos bairros, as bibliotecas nas empresas. Os resultados foram bem concretos, ainda que tenha havido uma certa decepção quanto à transformação das práticas de leitura. É um movimento cuja inspiração continua sendo muito útil. (CHARTIER, 1998, p. 123)

Nesse contexto, o espaço para divulgação de livros ocorre mediante iniciativas articuladas seja das editoras, nos contratos assinados e no apoio à divulgação, seja no empenho dos próprios autores em ampliar seu trabalho criativo e manter um contato mais próximo do público. Um exemplo dessa aproximação foi a iniciativa “Mais que Prosa”, onde um grupo de pessoas acompanhou a conversa entre Cíntia Moscovich e Cláudia Tajes. Na biblioteca, tal roda literária compartilhou ideias com o público acerca da escolha do título, escolha dos nomes das personagens, e do próprio processo de criação e inspiração das autoras. Isso não é um fato inédito, Nas sociedades do Antigo Regime, ler em voz alta era uma forma de sociabilidade compartilhada e muito comum. Lia-se em voz alta nos salões, nas sociedades literárias, nas carruagens ou nos cafés. A leitura em voz alta alimentava o encontro com o outro, sobre a base da familiaridade, do conhecimento recíproco, ou do encontro casual, para passar o tempo. […] Durante todo um período do século XIX, a leitura em voz alta foi também vivida como uma forma de mobilização cultural e política dos novos meios citadinos e do mundo artesanal e depois operário. (CHARTIER, 1998, p. 142-143)

Tajes tem ainda buscado participar ativamente em concursos e feiras literárias. No que se refere aos concursos de contos, surgiu uma proposta de coautoria. Em novembro de 2011, o jornal Zero Hora, lançou edital à possibilidade de seis leitores tornarem-se coautores do  

250  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   conto. Seria dada a cada pessoa a responsabilidade de dar continuidade à narrativa História Coletiva, iniciada por Cláudia Tajes. Uma proposta semelhante foi realizada em maio de 2013, desta vez para uma Feira Literária de Porto Alegre, a 6ªFestipoa, outros leitores complementariam o conto Flor Roxa, que já possuía o início no cartão-postal distribuído em vários locais da cidade. Quanto às Feiras, este constitui um espaço verdadeiramente especial, pois é significativo aos leitores, para que este obtenha novas aquisições, aos autores, nas devidas exposições, e às editoras, para sondar os anseios do público. Percebemos, portanto, as possibilidades em deixar o público em contato com o texto e com o autor, os quais graças às tecnologias podem ser bem mais ampliados, conforme abordagens do próximo item. 4. Cláudia Tajes e o blog Sarau Elétrico O Sarau, evento temático nas noites de Porto Alegre, reúne artistas, escritores, entre outros intelectuais, para um descontraído momento literário e cultural. Tajes, contudo, estendeu as conversas do evento e lançou um blog intitulado Sarau Elétrico. No blog Sarau Elétrico, cujo primeiro post já lançado em outubro de 2007, o espaço foi destinado à escrita da situação do time de futebol, divagações pessoais, memórias e rememorações, entre outras temáticas. No artigo sobre a literatura da era digital, Freitas ressalta O espaço cibernético proporcionou também a aproximação do escritor com seu leitor. Há menos de quinze anos, o escritor era um completo desconhecido. Comprávamos um livro e o líamos sem grandes possibilidades de contato com o autor. Hoje, ao lermos um livro impresso ou digitalizado, podemos encontrar sites e blogs que trazem mais informações sobre o autor e seus processos de escrita, entrevistas, curiosidades sobre personagens e todo tipo de informação que puder advir da obra em questão. (FREITAS, 2008, p. 25)

A acessibilidade do autor proporcionada na internet implica diretamente no redimensionamento da literatura. Essa participação e aproximação, limitada no passado pelo fato da literatura considerada profana, como as sátiras e os versos maldizentes de Gregório de Matos, pudessem dar aos leitores maus exemplos da comédia e se “contaminassem com o profano”. (LAJOLO e ZILBERMAN, 2002, p. 53,54). Isento desses receios, percebemos nas visitas à página que os comentários revelam os leitores, dentre estes, muitos relacionados aos encontros culturais semanais daquelas salas de leitura, ou seja, o blog acaba tornando o leitor mais próximo para elencar as impressões acerca das publicações e ficar mais familiarizado à autora.

 

251  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Em um comentário no Sarau Elétrico, Cláudia Tajes usa a expressão “leitoresescritores”: O Rodrigo, a Clarissa, a Sabrina, a Larissa e, às vezes, o Mauro, andam movimentando o blog com seus comentários. Venham sempre, o blog agradece! (Postado por TAJES, em 28/02/2013)

A divulgação do Sarau não para e no livro Louca por homem: histórias de uma doente de amor, o leitor dispõe das informações do evento: Mas naquela noite, não sei por qual iluminação, resolvi ir ao Sarau Elétrico, um tradicional encontro de literatura das terças-feiras na cidade, para a apresentação de um jovem poeta local […]. Só que eu não queria mais que o tempo passasse quando os três apresentadores do Sarau começaram a ler os textos do novo poeta. (TAJES, 2007, p. 62)

Nessa visita e muitas que se seguiriam, devido ao súbito interesse da personagem por um poeta, são citadas no livro as figuras do Sarau, como Fabrício Carpinejar, Paula Taitelbaum, Professor Moreno, Fisher, Kátia, Everton Behenck. É a ficção servindo à uma pitada da realidade. A problemática a que se dispôs o presente texto delineou os seus norteadores para as questões sobre quem lê um texto cuja capa, título, design gráfico e autoria sejam femininos? Afinal, quem lê Cláudia Tajes não é somente o público feminino, pois no universo de leitores há uma diversidade no acesso. Alguns fatos comprovam isso. As críticas realizadas por Rildo Cosson (2007), o qual garante encontrar no livro de Tajes “leveza, simplicidade, cotidianidade, tom de conversa fiada, a espontaneidade do cronista, humor e uma certa poesia”; Um outro fato, a existência dos contos de coautoria, que tem leitores-escritores, ansiosos em assumir um trabalho de parceria com a autora; E, a presença dos homens nas rodas de leitura e dos comentários postados no blog. Pensar que apenas mulheres se interessam por Tajes significa reduzir o papel do leitor ao gênero e, portanto, às circunstâncias limitantes irreais. No que tange às leituras, quando circunscritas na pós-modernidade são inegavelmente realizadas de maneira diferente, como consequência das tecnologias, dos formatos adotados, das técnicas instauradas, sobretudo dos leitores, que não são alheios a toda a dinâmica. Em verdade, cada leitor é único, mas múltiplo nas suas competências e experiências.

 

252  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Referências CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/UNESP, 1998. COSSON, Rildo. Quase (um) romance. Artigo publicado em Portuguese Culture Studies, 2007. Disponível em < www2.let.uu.nl/solis/PSC/P/.../P1COSSON.pdf> Acesso em: 30 de jun. 2012.   FABRE, Daniel. O livro e sua magia. In: CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. Trad. Cristiane Nascimento. 5. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. FREITAS, Míriam de. A literatura da era digital. Revista Conhecimento Prático Literatura. São Paulo: Editora Educacional, n.28, p. 24-29, 2008. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A leitura rarefeita: a leitura e o livro no Brasil. São Paulo: Ática, 2002. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares – São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MORAES, Rubens Borba de. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. 2. ed. – Brasília, DF: Briquet de Lemos/Livros, 2006. TAJES, Cláudia. As pernas de Úrsula e outras possibilidades. Porto Alegre, L&PM, 2011. _____________. A vida sexual da mulher feia. Rio de Janeiro: Agir, 2005. _____________. Dez (quase) amores. Porto Alegre: L&PM, 2000. _____________. Espelhos de corpo inteiro. Porto Alegre: WS Editor, 2010. _____________. Louca por homem: histórias de uma doente de amor. Porto Alegre: L&PM, 2011. _____________. Por isso sou vingativa. Porto Alegre: L&PM, 2011. _____________. Só as mulheres e as baratas sobreviverão. Porto Alegre: L&PM, 2012. _____________. Vida dura. Porto Alegre: L&PM, 2011. TAJES, Cláudia. Blog Sarau elétrico. Disponível Acesso em 30 de jun de 2013.

 

253  

em

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   APROXIMAÇÕES ENTRE ÁLBUM DE FAMÍLIA E TOTEM E TABU Julius François Cunha dos Santos85 PPGLA-UEA Álbum de família (1946), a terceira peça teatral de Nelson Rodrigues, é, talvez, sua obra mais polêmica. O texto passou dezenove anos censurado, sem poder ser representado nos palcos brasileiros. Tornou-se conhecido pelo público apenas devido o esforço individual do próprio autor que conseguiu publicá-lo por meio de uma pequena e misteriosa editora, a Edições do Povo, mas sendo impressa nas oficinas do jornal O Cruzeiro (Castro, 1992, p. 197). O dramaturgo gostava de dizer que essa peça inaugurava seu “teatro desagradável”, e explica a classificação: Com Vestido de noiva86, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o, e para sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade. Há simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua aceitação. Pois a partir de Álbum de família – drama que se seguiu a Vestido de noiva – enveredei por um caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito. Que caminho será este? Respondo: um teatro que se poderia chamar assim – desagradável. Numa palavra, estou fazendo um teatro desagradável, peças desagradáveis. No gênero destas incluí, desde logo, Álbum de família, Anjo negro e a recente Senhora dos afogados. E por que peças desagradáveis? Segundo já disse, porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia (Rodrigues, 2004a, p. 275).

Essa afirmação de Nelson Rodrigues reproduz com bastante clareza a recepção que a peça sofreu na época, e que gerou verdadeiro debate público sobre se era lícita ou não sua censura. Entre defesas e acusações, o que chocava na obra era o excesso de incestos, como sublinha Álvaro Lins, redator do Correio da manhã, jornal de grande circulação no Rio de Janeiro nos anos 40, responsável por iniciar a discussão: “Jonas ama a filha Glória; Glória ama o pai Jonas; dona Senhorinha ama os filhos Guilherme, Edmundo e Nonô; Edmundo e Nonô amam a mãe, dona Senhorinha; Guilherme ama a irmã Glória. Que família! ‘Se todos são incestuosos, onde está a tragédia?’ perguntava Álvaro Lins” (Castro, op. cit., p. 197). Nelson Rodrigues, por seu lado, defendia-se: “Mas como podem censurar? ‘Álbum de família’                                                                                                                 85

Graduado em Letras – Língua e Literatura Portuguesa (UFAM), Mestre em Letras e Artes pelo Programa de Pós-graduação em Letras e Artes (UEA). 86

Segunda peça de Nelson Rodrigues, de 1943. É a obra que o alçou ao sucesso devido a estrutura cênica inovadora para a época: palco dividido em três planos: realidade, memória e alucinação, com as ações constantemente se confundido nos planos. Além dos recursos cênicos, a linguagem também mereceu destaque, por estar mais próxima à fala cotidiana, verdadeira revolução na época em que foi escrita.

 

254  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   é uma peça bíblica. Então teriam que censurar também a Bíblia, que está varada de incestos!” (Ibidem). Sem entrar no mérito da causa, julgando se foi justa ou não a condenação, interessanos refletir sobre esse drama, pois o incesto, ou, mais precisamente, sua interdição, é um dos contratos fundamentais para a regulação da vida social. É a proibição dessa prática que põe fim à barbárie primitiva em que os machos de uma horda lutavam entre si pelo controle absoluto das mulheres e do clã. Quebrado ou ausente esse acordo, qualquer tentativa de esforço coletivo falha: as sociedades complexas não se formam. Recua-se, enfim, para um estado anterior da nossa humanidade, em que a sexo suplanta a civilização. Em Álbum de família veremos como as relações incestuosas levam à destruição do corpo social, principalmente de sua forma mais nuclear: a família. Para tanto, partirmos das análises realizadas pelo psicanalista Sigmund Freud, em sua obra Totem e tabu (2012). Nesse ensaio Freud defende que o desenvolvimento das sociedades só foi possível com o estabelecimento de regras para a prática do sexo, principalmente através da instauração da exogamia, que gerou o impedimento do incesto. Afirma ele que nas sociedades humanas primitivas, o pai primevo tinha monopólio sexual sobre todas as mulheres do clã. Os machos rivais, mesmo da família, eram mortos, exilados ou mutilados87. Freud sugere que os irmãos banidos resolvem juntar-se e voltam para matar e devorar o pai. Este banquete canibal88 seria uma forma de incorporar a força patriarcal. Deposto o pai-rei cada filho desejou ocupar seu lugar e nesta luta as consequências foram a rivalidade sexual e o fratricídio. Para estabelecer uma ordem, os irmãos fazem novamente um pacto. Com remorso pela morte do pai, eles ressuscitam sua imagem, tomando-o como modelo a ser adorado (totem) e ao desistirem de ser o novo pai-rei tornam todas as mulheres da família proibidas (tabu89). As companheiras e companheiros devem ser de fora do clã. Neste ato de renúncia, afirma o Freud, nascem as leis, a moralidade e a religião.                                                                                                                 87

As inferências de Freud se basearam, sobretudo, nas descrições que o naturalista Charles Darwin fez de comunidades primatas em que um único macho mantinha o controle de todas as fêmeas – modelo que o psicanalista atribuiu aos humanos primitivos. 88

“Comer e beber com alguém era, ao mesmo tempo, um símbolo e um robustecimento do vínculo social e da adoção de obrigações recíprocas. A refeição sacrificial exprimia diretamente o fato de que o deus e os adoradores são comensais” (Freud, op. cit., p. 206). 89

Em Totem e tabu Freud apresenta diversas definições para estes conceitos, mas que podemos resumir, por suas características principais, em: totem: ancestral comum do clã, e também seu espírito protetor; tabu: “algo simultaneamente sagrado, acima do habitual, e perigoso, impuro, inquietante” (Freud, op. cit., p. 48), enfim, objeto pelo qual se tem veneração e horror.

 

255  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Os irmãos haviam se aliado para vencer o pai, mas eram rivais uns dos outros no tocante às mulheres. Cada um desejaria, como o pai, tê-las todas para si, e na luta de todos contra todos a nova organização sucumbiria. Nenhum era tão mais forte que os outros, de modo a poder assumir o papel do pai. Assim, os irmãos não tiveram alternativa, querendo viver juntos, senão – talvez após superarem graves incidentes – instituir a proibição do incesto, com que renunciavam simultaneamente às mulheres que desejavam, pelas quais haviam, antes de tudo, eliminado o pai (Freud, op. cit., p. 220).

Biologicamente sabemos que uma criança gerada em uma relação incestuosa tem grandes chances de nascer deformadas e, a nível de espécie, também não é vantajoso devido à perda de variedade genética causada pela consanguinidade. Esses fatores naturais seriam, então, o suficiente para que o incesto fosse interditado nas comunidades humanas90. Freud, contudo, argumenta que é bastante improvável que o homem primitivo se preocupasse tanto com a qualidade de seus descendentes, visto que vivia apenas o instante e se guiava mais pelo instinto do que pela racionalidade. Diante deste pressuposto, o psicanalista sugere que a organização social foi o fator determinante para a proibição da relação sexual entre parentes (a priori não apenas familiares, mas de todo o clã), pois uma vez que a prática fosse liberada, iniciaria uma guerra entre os machos pelo controle absoluto do bando, colocando abaixo qualquer tentativa de cooperativismo que propicia o desenvolvimento da sociedade. Com base nessa teoria de Freud podemos pensar que é a partir da regulação do sexo, que tem no tabu do incesto um importante marco, que se inicia o processo de civilização, que termina por separar a atividade sexual dos fins meramente reprodutivos, atribuindo-lhe outros significados, como o prazer do gozo. Evidentemente a separação absoluta não se concretiza, sendo sempre uma relação tensa. De toda forma, para Freud, a proibição da prática sexual entre membros de uma mesma família é um dos pontos de partida para o surgimento de sociedades complexas. Vejamos então como ocorre esse processo, e as consequências do seu fracasso, na peça Álbum de família.                                                                                                                 90

Se fosse um simples caso de por em risco a espécie, tal cuidado não se faria necessário, uma vez que o desejo de preservação impediria naturalmente estas relações, em resumo, elas não existiriam. Como observa J. G. Frazer, citado por Freud: “A lei os proíbe apenas de fazer o que seus instintos se inclinam a fazer; seria supérfluo que a lei proibisse e punisse o que a natureza mesma proíbe e pune. Assim, podemos tranquilamente supor que os crimes proibidos por lei são crimes que muitos homens têm propensão natural a cometer. Se não houvesse tal propensão não haveria tais crimes, e se tais crimes não fossem cometidos, que necessidade haveria de proibi-los? Portanto, em vez de supor a proibição legal do incesto, que há uma aversão natural ao incesto, deveríamos supor que há um instinto natural para ele, e que se a lei o reprime, como reprime outros instintos naturais, assim o faz porque os homens civilizados chegaram à conclusão de que a satisfação desses instintos naturais é nociva aos interesses gerais da sociedade” (Frazer apud Freud, op. cit., p. 190-191). Temos, então, que a exogamia tem valores muito mais culturais que naturais. E embora não seja objeto deste estudo, e por isso não nos fixaremos a ele, é válido pensar que mutações genéticas o incesto provocou na espécie humana, levando em consideração que sua prática foi muitas vezes aceita, contraditoriamente, inclusive sob o argumento de preservar determinadas características das famílias. A tolerância ao incesto é tanta que ele está presente na mitologia de muitos povos antigos, casos do deus grego Zeus, casado com sua irmã Hera, e que se disfarça de serpente para seduzir a própria filha Perséfone; e do patriarca Abraão, do Antigo Testamento, marido de sua meia-irmã Sara.

 

256  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Álbum de família inicia com o speaker91 comentando sobre a foto de casamento do casal principal: Jonas e Senhorinha. O ano é 1900. Ele está com 25 anos, ela, 15. Ambos posam para o fotógrafo com a austeridade típica da época. O speaker surgirá em vários momentos do drama, fazendo comentários sobre a ação, às vezes, inclusive, dando informações contrárias ao que acontece no palco. Este recurso pode ser entendido como a máscara com a qual se tenta encobrir o que se passa dentro do lar. Em outras palavras, a família sempre tenta passar à sociedade uma imagem de harmonia e amor, quando, na verdade, caminha rumo à destruição. Importante notar o ano em que inicia a peça: 1900. Além de remeter a um período histórico fortemente patriarcal (por isso, não será de admirar certos comportamentos e discursos fortemente machistas proferidos pelo pai), também nos traz a ideia de ancestralidade, de início dos tempos – referência de suma importância para nossa análise. Corrobora para o clima genesíaco de Álbum de família o lugar em que se passa a ação: a fazenda de Jonas, na fictícia cidade mineira de São José de Golgonhas. Segundo Sábato Magaldi este nome “parece fundir o Gólgota de Cristo e Congonhas, a cidade colonial que ostenta os profetas de Aleijadinho. O diálogo menciona a proximidade de Três Corações e ainda Belo Horizonte, cidade e capital mineira, talvez o Estado de mais enraizadas tradições no País. As rubricas remetem, assim, aos símbolos do nascimento e da ancestralidade do mundo” (2004, p. 51). Desta forma é que embora tenha definições de tempo e espaço, podemos afirmar que a terceira dramaturgia de Nelson Rodrigues se dá em um período primitivo, de formação da nossa humanidade. Após o retrato do casamento de Jonas e Senhorinha, a narrativa dá um salto de vinte e quatro anos, diretamente para um colégio de freiras onde Glória, filha do casal principal, então com quinze anos, faz juras recíprocas de amor eterno com uma colega, Teresa. Elas selam a promessa com um beijo na boca. Este momento lésbico, que sem as alunas perceberem foi flagrado por uma feira, é o responsável pela expulsão da filha de Jonas da escola, fazendo-a retornar à fazenda, mudança que acarretará em importantes revelações na família. Quanto ao homossexualismo presente, ele é unilateral, pois apenas Teresa gosta de fato de meninas, Glória, quando a beija, fecha os olhos e vê a fisionomia do pai. A cena corta para a fazenda, onde Senhorinha conversa com sua irmã, Rute, sobre Nonô, filho que enlouqueceu e agora vive no mato próximo, nu, grunhindo como um animal. Ao fundo ouvem-se os gritos de uma moça de quinze de anos em trabalho de parto. Jonas entra e reclama que o médico não chega para socorrer a garota. Durante quase toda a peça, a                                                                                                                 91

 

Neste caso, narrador.

257  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   jovem gritará de dor. O patriarca então se dirige à cunhada perguntando se ela conseguiu mais meninas para ele – Tia Rute é uma espécie de cafetina particular que arranja meninas virgens para Jonas. Solteirona e feia, ela nunca casou, nem teve namorados. Apenas o cunhado a possuiu, uma única vez, enquanto estava bêbado, como gratidão por este momento, ela faz tudo que ele deseja. Diante da aquisição da virgem, D. Senhorinha tenta ainda protestar, mas é rechaçada pelo marido. Fica em suspenso um segredo terrível que a condena e a obriga a suportar todos os desmandos do esposo. JONAS (aproximando-se da mulher) – E para que essa pose que você tem?... (com uma raiva que aumenta) Você falou em sem-vergonha (com doçura sinistra) Agora vai-me dizer uma coisa; aqui há uma sem vergonha. Mas quem é? D. SENHORINHA (perturbada) – Não sei. JONAS (avançando, enquanto ela recua) – Sabe, sim. Quem é? D. SENHORINHA (evadindo-se) – Nós três. JONAS – Diga direito. D. SENHORINHA (acuada) – Eu. A sem-vergonha – sou eu! (Rodrigues, 2004b, p. 44)

Volta o speaker e uma nova foto da família, descobrimos que Jonas e Senhorinha são primos. Trata-se do primeiro incesto da família, embora tratado com naturalidade, afinal, o casamento entre primos era comum na época, principalmente em comunidades rurais mais afastadas, como a que eles viviam. Novamente em 1924, Edmundo, um dos filhos do casal, chega à fazenda. Ele havia brigado com a esposa e estava separado. Pai e filho não se dão bem. Jonas o havia agredido e expulsado de casa anos antes. A indignação do rapaz é latente ao perceber o que o pai faz com as garotas. Ele tenta interceder em favor da mãe, mas é impedido por ela. Invés disso, D. Senhorinha pede para que o filho a peça benção ao pai. Edmundo e Jonas discutem, mas antes de capitular e beijar a mão paterna, o jovem faz uma revelação: EDMUNDO – Penso NUMA MULHER, o que é muito diferente! Numa só! (...) É outra coisa. (com ódio) Eu não ando atrás de vagabundas no mato, que, ainda por cima, devem ter doença, o diabo! (gravemente) Só tenho e só tive um amor! JONAS (sardônico) – Não é sua esposa? Ou é? EDMUNDO – Não. D. SENHORINHA (fascinada) – Então, quem? JONAS – Diga! EDMUNDO (baixando a cabeça, com toda seriedade) – Não digo. (para D. Senhorinha, olhando-a bem nos olhos, baixando a voz) Talvez você saiba um dia! (Rodrigues, 2004b, p. 47)

O casamento de Edmundo acabou justamente por esse amor ilegítimo que ele nutria por outra mulher, tão forte que o impedia de possuir a esposa. Em três anos de matrimônio ele nunca tocara em Heloísa, sua cônjuge.

 

258  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   No mesmo dia em que Edmundo chega à fazenda, Guilherme, outro filho de Jonas, também aparece. Ele é seminarista e vem comunicar que Glória fora expulsa do colégio de freiras, depois que uma irmã a vira beijando uma colega. O patriarca não se convence dessa história e discute com o filho, principalmente porque Guilherme diz que Glória não poderá ficar naquela casa, pois todos ali eram impuros. Apenas ele pode tocá-la, pois havia se mutilado e passara a ser casto (subentende-se que se castrou). Após esta cena com a família, Guilherme aparece em uma pequena igreja com Glória. Os dois estão ensopados devido um temporal. Ele foi buscá-la na estação e agora se abrigavam na capela. A jovem se impressiona com o retrato de Cristo, considerando-o muito parecido com o pai. Há no amor de Glória por Jonas algo de inocente. Embora ela saiba que esse sentimento é diferente de todos os outros que sente. Sem prestar muita atenção, Guilherme tenta despir a irmã a pretexto de enxugá-la. Glória estranha a insistência, ele termina se declarando apaixonado por ela, e confessa ter entrado para o seminário para tentar esquecê-la, e que no seu desespero acaba mutilando suas genitais. Percebendo que Glória só tem olhos para o pai, e que nunca terá chances com a irmã, Guilherme a mata com dois tiros. O último ato inicia com nova discussão entre Jonas e Edmundo. No ápice da briga, o chefe da família conta que D. Senhorinha o traíra com um jornalista da cidade anos atrás e, por essa razão, ela deveria suportar tudo que ele fizesse. O filho, desacreditado, pede que a mãe negue, mas ela confirma. Nesse momento a jovem grávida morre sem conseguir dar a luz. Ficam a matriarca e Edmundo. Eles vão para o quarto e lá ela conta quem foi realmente seu amante. Estarrecido com o nome, Edmundo suicida-se. A cena seguinte é o duplo velório de Glória e Edmundo. A mãe vela apenas o filho. Neste momento chega Heloísa, esposa de Edmundo. Ela e D. Senhorinha travam um diálogo ríspido, em que a nora conta saber do amor de seu ex-marido pela mãe, sentimento que havia destruído seu casamento. Comenta ainda que sente mais compaixão pelo homem que se jogou na frente do trem (o texto deixa transparecer tratar-se de Guilherme), do que por aquele com quem dividiu a mesma cama. Rancorosa, mas tentando passar indiferença, ela se despede. Logo em seguida levam o corpo de Edmundo. Neste momento Jonas chega para velar a filha. Seu estado é desesperador. D. Senhorinha, então, decide acabar com a farsa e conta que foi Nonô quem a possuiu e, por isso, enlouqueceu. Ela e o marido discutem. Ele oferece uma arma à esposa. Ao ouvir Nonô gritar, D. Senhorinha sente que é um chamado. Pega o revólver e desfere dois tiros no peito de Jonas e foge para viver no mato com o filho louco. Sob a perspectiva freudiana defendida em Totem e tabu, Álbum de família pode ser lida como uma narrativa sobre o período humano anterior à interdição do incesto, o que  

259  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   justifica o seu excesso. Vimos que antes desta proibição, os machos do clã lutavam pelo controle das mulheres da família. O que aparece nesse drama é justamente isso: filhos competindo com o pai pela posse da mãe e da filha. Jonas é a personificação do pai-primevo, todo-poderoso que se vale da força para se impor sobre os demais. Esta visão está claramente exposta em uma de suas falas: “Mas ELES estão enganados comigo. Eu sou o PAI! O pai é sagrado, o pai é o SENHOR! (Rodrigues, 2004b, p. 41)”. Ao patriarca é conferido um poder quase divino. Sua autoridade, às vezes, é suficiente para coagir os demais machos que tentam ocupar seu espaço. Em Álbum de família, os filhos são incapazes de combater o pai, por isso buscam asilo distante do lar: Guilherme vai para o seminário e Edmundo se casa. Percebe-se que há também certa consciência de que consumado o incesto, a destruição torna-se iminente. Desta forma, entende-se que esse distanciamento foi uma forma de preservar a família. Vale observar que o próprio Jonas coloca a filha em um colégio interno, justamente para não a macular, e tenta compensar essa falta com meninas da mesma idade. O desejo, contudo, é mais forte, e faz com que os filhos retornem e tentem tomar o lugar do pai. Em Totem e tabu, Freud sugere que para conseguir derrubar o pai-rei os filhos devem fazer um acordo no exílio, unindo suas forças. Esse pacto não é realizado por Edmundo e Guilherme. Eles voltam tão fracos quanto na partida. Nenhum deles é capaz de ameaçar Jonas. Por esta razão é que eles destroem o objeto de desejo e em seguida se destroem: Guilherme mata Glória e depois se suicida; Edmundo não consegue assassinar Senhorinha, mas também comete suicídio. Ruído seu clã, Jonas tenta ainda reconstruí-lo, mas sem grandes esperanças. Quase delirando ao ver morta a caçula, ele tenta um último movimento: propõe à esposa que tenham uma nova filha. É quando a matriarca revela ter sido Nonô o seu amante. Sentindo-se finalmente derrotado, ele entrega a arma para que sua mulher o mate. O assassinato de Jonas por D. Senhorinha nos permite algumas reflexões. Não teria ele se suicidado, pois tal ato revelaria uma fraqueza, igualando-se aos filhos. Assim, prefere com dignidade aceitar a perda e concede àquela que foi mais corajosa – por ter se entregue ao desejo proibido, como ele sempre desejou – o direito de eliminá-lo. A união final de Nonô com sua mãe, tampouco, representa uma vitória. Pelo contrário, eles se encerram no mato voltando ao estado de extrema animalidade. Com isso Nelson Rodrigues sublinha aquilo que, de forma diversa, foi apontado por Freud: o desrespeito à interdição do incesto coloca o homem em igualdade com os animais. A civilização sucumbe à sexualidade. Fazemos ainda uma observação sobre Álbum de família. De acordo com a teoria apresentada em Totem e tabu, a exogamia é um estado posterior à interdição do incesto. Ela é  

260  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   resultado da totemização do pai, quando ele é tornado sagrado e os filhos acordam de encontrar parceiras fora da família. Na terceira peça de Nelson Rodrigues, essa totemização não ocorre. Contudo, há uma passagem em que se vislumbra essa consciência. Novamente ela parte de Jonas, o que à primeira vista parece contraditório, uma vez que ele é apresentado como o mais terrível de todo o clã. Diz o patriarca: “Nunca suportei mulheres que não desejo... POR ISSO DETESTEI SEMPRE MINHA MÃE E MINHAS IRMÃS... (com sofrimento e a maior dignidade possível) Não sei, não compreendo que um homem possa tolerar a própria mãe, a não ser que...” (Rodrigues, 2004b, p. 55). Como é comum no texto rodriguiano, a frase incompleta deixa a sugestão, que, no contexto da narrativa, podemos completar com “a não ser que possamos possuí-la”. Percebemos com esta fala que, apesar de todos os abusos, é forte o desejo do patriarca de manter a ordem na família, sem, é claro, ter seu poder questionado. Primeiro com o afastamento da filha, seu maior objeto de desejo. E, agora, pelo repúdio que as mulheres proibidas lhe causavam. Evidentemente, ele está longe de ser completamente humanizado, seu lado bestial ainda é muito latente, prova disso são os diversos estupros que pratica em moças menores de idade, como forma de compensar o desejo incestuoso. Porém, é inegável a ciência que tinha da necessidade da interdição. Ele é, em suma, uma personagem em conflito entre o instinto e a racionalidade. Impasse esse que não consegue resolver e por fim capitula junto com sua família. Diante do posto, podemos afirmar que Álbum de família é uma alegoria do homem no princípio dos tempos, no momento crítico de formação da humanidade, em que ele precisa se abster da compulsão sexual e fazer acordo com os demais membros do grupo, sob o risco de exterminar com o próprio corpo coletivo. A indicação mais latente desta afirmação é uma fala proferida por Edmundo em conversa com D. Senhorinha: EDMUNDO (mudando de tom, apaixonadamente) – Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer, você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e a primeira. (numa espécie de histeria) Então o amor e o ódio teriam de nascer entre nós. (Rodrigues, 2004b, p.71-72)

E não poderia ser diferente. Uma vez que a peça é uma espécie de mito da Criação, é necessário que tudo surja no seio da mesma família. Embora não se possa afirmar a intenção do autor de chocar o público, o que não seria estranho dado o caráter polêmico do artista, tampouco se deve concluir que Álbum de família é uma peça gratuita, apenas um amontoado de aberrações. É antes, uma narrativa sobre a origem do mundo, uma alegoria do momento de formação da civilização.

 

261  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   REFERÊNCIAS CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 11: totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. MAGALDI, Sábato. Teatro da Obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004. RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo de Nelson Rodrigues. v.1. peças psicológicas. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004a. __________. Teatro Completo de Nelson Rodrigues. v.2. peças míticas. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004b.

 

 

262  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   RECEPÇÃO LITERÁRIA DO QUIXOTE NO BRASIL: ADAPTAÇÕES E RECRIAÇÕES Karen Reginne Amorim de Melo - UEA/PAIC/FAPEAM Juciane Cavalheiro – UEA/PAIC/FAPEAM O objetivo deste trabalho é apresentar um panorama das adaptações e recriações de Dom Quixote no Brasil. Este panorama foi construído com os resultados obtidos a partir de uma pesquisa, de cunho bibliográfico realizada entre 2012 e 2013. A pesquisa intitulada “Recepção literária do Quixote no Brasil” foi desenvolvida através do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC), com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) e deu-se através de leituras dos textos-fonte (Tomos I e II do Dom Quixote, edição bilíngue e tradução de Sérgio Molina), de adaptações como as realizadas por Ferreira Gullar, Monteiro Lobato e Bira Dantas e das demais recriações inspiradas pelas personagens de Cervantes como a obra O amor de Dulcineia de Menotti del Picchia, ou ainda as 21 ilustrações de Portinari, que posteriormente motivaram Drummond na escrita de seus 21 poemas a partir das ilustrações de Portinari e de sua leitura do clássico de Cervantes. Palavras-chave: recepção, Quixote, Brasil, adaptações, recriações.   Considerações Iniciais Esta pesquisa consiste de um recorte do projeto intitulado Recepção literária do Quixote no Brasil. Além de realizar alguns comentários acerca do que se observou no cenário da recepção quixotesca com relação as adaptações e às recriações, elegemos quatro obras para tecer breves comentários acerca da sua importância para esse cenário. Com relação as adaptações, as obras escolhidas foram, "O cavaleiro do Sonho", de Ana Maria Machado e "Dom Quixote" (HQ), de Bira Dantas. Para as adaptações, optou-se pelo álbum "Cervantes Portinari Drummond", especificamente duas ilustrações de grande importância para iconografia do Quixote, juntamente com a obra "Máscaras" de Menotti del Picchia. As adaptações do Quixote O conceito de adaptação utilizado neste trabalho é aquele em que, no texto original, são operadas mudanças no sentido texto-leitor, ou seja, em que há "adequações, modificações, cortes, supressões e acréscimos, de modo a ficar o mais próximo possível do universo do receptor" (PRADO, 2007). O levantamento de dados das adaptações foi baseado no método utilizado por Silvia Cobelo (2010) em seu estudo historiográfico das traduções do Quixote no Brasil. A autora utilizou o portal Estante Virtual e complementou as informações através da ferramenta de busca do Google. O diferencial em nossa pesquisa foi o cruzamento das informações obtidas a partir do Estante Virtual, com as informações levantadas pelo portal da  

263  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Livraria Cultura que, atualmente, também conta com um sistema de venda de livros usados. Nesta parte da pesquisa, não se buscou o aprofundamento no que concerne ao número de reedições, embora tenham sido consideradas adaptações do mesmo autor para diferentes editoras e coleções. Tabela 1: Adaptações

ANO

DESCRIÇÃO

ADAPTAÇÃO

EDITORA

PÁGINAS

1936

Dom Quixote das crianças - 1ª edição

Monteiro Lobato

Editora Brasiliense

-

1970

Dom Quixote Coleção Jovem Círculo de Aventuras

-

Círculo de livros

137

1972

Dom Quixote

Orígenes Lessa e Ilustrações de Walter Hune

Editora Abril Cultural

191

1985

Dom Quixote, o cavaleiro da triste figura - 1ª edição (Série Reencontro)

José Angeli e ilustrações de Salmo Dansa

Editora Scipione

136

1989

Dom Quixote no Brasil

Teresa Noronha

Editora Loyola

29

1995

Dom Quixote

Orígenes Lessa

Editora Ediouro

186

2002

Dom Quixote

Paula Adriana Ribeiro

Editora Rideel

32

2002

Dom Quixote de La Mancha

Ferreira Gullar

Editora Revan

224

2003

Dom Quixote

Michael Harrison

Editora Atica

120

2004

Dom Quixote (HQ)

Márcia Williams  

Editora Ática

32

2005

Dom Quixote

Sandra Nunes e Eduardo Fava RubioCaco e ilustrações

Editora Peiropolis

48

 

264  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

2005

Era uma vez Dom Quixote

2005

O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha

de Galhardo Marina Colasanti e Ilustrações de Nivio Lopez Vigil Angeles Durini/Frederico Jeanmaire

2005

Dom Quixote

Global Editora

111

Martins Editora

292

Luiz Antonio Aguiar

Editora Melhoramentos

48

2005

Dom Quixote em cordel/Ilustrador: Jo Oliveira

J. Borges

Editora LGE

44

2005

Dom Quixote

Rosana Rios

Editora Escala Educacional

96

2006

Dom Quixote

Editora DLC

112

2006

Dom Quixote

Editora DLC

112

2007

Dom Quixote para crianças

Edições Consultor

56

2008

Dom Quixote em quadrinhos

Bira Dantas

Editora Escala Educacional

88

2008

Dom Quixote das crianças

Rosa Navarro Duran e ilustrações de Francesco Ravira

Editora Paulinas

248

2009

Dom Quixote das crianças – HQ

André Simas

Editora Globo

64

2009

O cavaleiro do sonho

Editora Mercuryo

50

2010

Dom Quixote das crianças

Editora Globo

151

Fábio Bortolazzo Pinto

Editore L&PM

96

Antonio Klevisson Viana

Editora Manole

72

Dom Quixote, versão adaptada para neoleitores As aventuras de Dom Quixote em versos de cordel

2010 2011

Leonardo Chianca e ilustrações de Gonzalo Cárcamo   Leonardo Chianca e ilustrações de Gonzalo Cárcamo   Arnaldo Niskier e Ilustrações de Mário Mendonça

Ana Maria Machado com ilustrações de Cândido Portinari Monteiro Lobato e Ilustrações de Camilo Riani

2012

Dom Quixote

Walcyr Carrasco e ilustrações de Weberson Santiago

Editora Moderna

208

2012

Dom Quixote

Eduardo Rado

Editora Abril

259

2012

Dom Quixote

Cristina Klein

Editora Todolivro

-

 

265  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Com base nos dados expostos acima, é possível perceber que houve um boom muito maior de adaptações após os anos 2000. Editoras menores passaram a lançar os mais variados tipos de recortes da história do Quixote, rendendo até mesmo uma versão em cordel lançada pela editora Manole em 2011. Essa variedade se estendeu também às ilustrações, com os trabalhos de Caco Galhardo, Gonzalo Cárcamo, Francesco Ravira, Cândido Portinari e Mário Mendonça. Antes disso, havia uma concentração maior nos relançamentos das edições dos trabalhos de Lessa, Angeli e Lobato. Das obras levantadas aqui, elegemos duas para realizarmos uma breve análise e ressaltarmos alguns pontos que afirmam a sua importância dentro deste panorama. 2.1 Ana Maria Machado e as aventuras e desventuras do Cavaleiro do Sonho (2005) Ao iniciar com o tão famoso "era uma vez...", Ana Maria Machado entrega de cara a proposta de sua adaptação do Quixote, a autora intenta tratar do sonho, do sonhador e do preço da tentativa de realização desse sonho. Já na apresentação, a autora alguns tipos de sonhadores, além de destacar a importância da ação, do esforço que se faz para que os sonhos aconteçam. A autora inclui Dom Quixote no grupo de sonhadores que arriscam a própria vida em benefício dos outros. Em uma narrativa que mescla a voz de Cervantes à da própria autora, vemos um destaque aos feitos heroicos e à condição de sonhador de Dom Quixote. Outros valores são também trabalhados ao longo da narrativa, a amizade, o valor do livro e as injustiças sociais. A obra se destaca ainda mais pela sintonia entre o texto e as 14 ilustrações de Portinari e a dispostas ao longo do livro, acompanhadas por única ilustração da série realizada por Gustavo Doré. As ilustrações destacam episódios emblemáticos e populares da iconografia quixotesca, como o embate do cavaleiro com os moinhos de vento, o manteamento de Sancho e a aventura no cavalo-de-pau. A autora tem ainda a preocupação de inserir ao final da narrativa um texto, que segue o mesmo nível de linguagem utilizada na narrativa, informando aos seus pequenos leitores sobre a trajetória e o estilo do pintor, além de uma biografia de Cervantes. Nos dias de hoje, esses detalhes explorados pela autora, conferem uma característica inestimável a uma adaptação infantojuvenil, pois, mostra que, apesar da linguagem simplificada, a narrativa não subestima a capacidade de seus leitores. Pelo contrário, é uma forma inteligente de estimular seu público a expandir cada vez mais o conhecimento acerca do universo cervantino.

 

266  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   2.4 Bira Dantas e o Dom Quixote em quadrinhos (2008) Em 20 de dezembro de 2008, Bira Dantas, artista conhecido pela adaptação dos clássicos Memórias de um sargento de milícias e O ateneu lançou seu Dom Quixote em versão quadrinhos, um trabalho que - segundo ele - em entrevista ao portal Zine Brasil, tomou pelo menos um ano de preparação, entre a leitura do material original, estudo de personagens, roupas, arquitetura e cenários. O resultado foi um álbum de 88 páginas, das quais as primeiras 40 correspondem ao Tomo I e as outras 40 ao Tomo II da obra de Cervantes. O Quixote em quadrinhos de Dantas traz desenhos coloridos em aquarela, marcas do trabalho do artista, além de um roteiro que enfoca os principais acontecimentos do texto original. As ilustrações, em conjunto com o texto, merecem uma análise à parte. Logo na abertura do livro, temos uma ilustração que parece ter sido inspirada na ilustração de Doré, o que confirma mais um forte traço da iconografia quixotesca, a influência das ilustrações nas demais releituras ao longo dos anos. Outro ponto que merece destaque é que a história é narrada por Cervantes, que é ilustrado várias vezes ao longo do livro, fazendo intervenções 3. As recriações do Quixote Para esta etapa da pesquisa, foram escolhidas duas recriações: a obra Cervantes, Portinari, Drummond e O amor de Dulcinéia, de Menotti del Picchia. 3.1 - Cervantes Portinari Drummond Ao final das décadas de 50 e início de 60 as obras de Portinari "tomam um novo brilho" (ALJEMBERG, 2012). Esse "novo brilho" diz respeito à predominância de cores claras e quentes, além da forte presença de um lirismo, perceptível na série de 21 desenhos a lápis intitulada Dom Quixote (1956). Esse trabalho constituía, inicialmente, uma encomenda da Editora José Olympio para a ilustração de uma edição de Dom Quixote de La Mancha. A ideia do projeto trouxe grande satisfação ao autor que, na época, estava limitado ao uso do lápis de cor por conta da intoxicação que sofrera com as tintas que utilizava. Chegou inclusive a organizar uma viagem à Espanha para aprofundar o trabalho das ilustrações, no entanto, essa viagem nunca ocorreu por conta do agravamento de seu estado de saúde. Com o engavetamento do projeto e a morte de Portinari em 1972, a coleção fora doada para o patrimônio privado de Raimundo Castro Maya e em julho de 1973 exposta no MASP. Na ocasião fora lançado também, pela editora Diagraphis, um álbum que unia as 21 ilustrações a uma série de 21 poemas de Carlos Drummond de Andrade intitulado Cervantes, Portinari, Drummond. A série de poemas, assim como as ilustrações, constitui uma síntese da jornada  

267  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   do Quixote e, embora tenham sido criadas com base nas pinturas de Portinari, há traços que revelam Drummond como um leitor atento da obra cervantina, de forma que, os poemas podem ser lidos desvinculados das ilustrações. A variedade de estilos presente nos poemas de Drummond intensifica e concretiza o diálogo entre o elemento plástico-pictórico e o linguístico, mas também enfatiza a leitura única do poeta. Como pode-se notar no poema, Aventura do Cavalo de Pau, enquanto Portinari pinta a visão de Dom Quixote e Sancho, enfatizando o aspecto de "tapeçaria flamenga, pintada ou tecida nalgum triunfo romano" (CERVANTES, LIVRO II - XLL, p.778), pintando uma cena carregada de elementos fantásticos, em que a lua e o sol dividem o mesmo plano e a terra pode ser vista abaixo dos pés dos dois, Drummond realiza a quebra desse cenário fantástico ao falar em "ilusão", "farsa" e "risos" em seus versos.

Imagem 1: Dom Quixote e Sancho Pança no Cavalo de Pau

corta-vento

rompe-nuvem

fura-sol

beira-céu

espeta lua

apaga-estrela

vai cavalo-estrela

cavalo-abalo

cavalo-bala

em demanda do Gigante Malambruno vai voando vai chispando vai levando a coragem com o medo na garupa vai guerreiro vai certeiro vai a lugar nenhum vai na ilusão da farsa no jardim entre risadas (A Aventura do Cavalo de Pau, p.76)

 

268  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Ao fazer essa quebra, Drummond traça um diálogo direto com a passagem original em que a aventura no cavalo não passa de uma peça pregada pelos duques. A disposição do poema também não é por acaso, o alinhamento das palavras compostas é a forma que Drummond encontra para tecer as imagens de Dom Quixote e de Sancho sob o cavalo Clavilenho em sua própria "tapeçaria flamenga". 3.2 - O amor de Dulcinéia - Menotti del Picchia Este D. Quixote era uma velha obsessão do meu espírito. Escrevio em setembro de 1928 – conservando a forma exata com que o poema se gestou dentro de mim. Sancho, o supremo idealista, é o microcosmo eterno da humanidade, que se completa com o espírito adjetivo do Cavaleiro da Triste Figura. Heróis comuns a todas as latitudes geográfica vivem seu instante nacional no território brasileiro da língua deste poema, porque são os dois pólos universais do próprio homem, cidadãos de todas as pátrias, alegorias internacionais do egoísmo e da espiritualidade. (PICCHIA, n/d)

A obra O amor de Dulcinéia, de Menotti del Picchia, foi publicada em 1926, pela Companhia editora naciona, a edição utilizada para essa análise foi lançada pela editora Ediouro. Essa edição, infelizmente, apresenta referências insuficientes, não informando ano de publicação ou se trata-se de uma reedição. As informações levantadas através do site Estante Virtual, bem como as cruzadas com a da Livraria Cultura e Google, também não permitiram maiores esclarecimentos respeito desta edição. A obra de Del Picchia é mais um exemplo do poder que tem as figuras cervantinas para com seus leitores. Na citação que abre a obra, Del Picchia fala dessa "velha obsessão" que tinha com a figura que ele criou do D. Quixote. O mote de Del Picchia é muito claro, a subversão. O autor inverte a personalidade dos protagonistas, tornando Dom Quixote, o cético e Sancho, o sonhador. O livro é dividido em três partes, por sinal, os três momentos mais significativos e emblemáticos no texto original de Cervantes. São eles, o confronto com os moinhos de vento, o encontro com Dulcinéia e a morte de Dom Quixote. Del Picchia rege os três atos ao seu bel-prazer e os intitula, "Os moinhos de vento", "O amor de Dulcinéia" e "O ideal de Sancho". Nas três partes, Sancho assume a personalidade que na obra original condiz a Dom Quixote. Há inversão, inclusive, na fala dos protagonistas. Enquanto Sancho assume o lirismo característico do cavaleiro, Dom Quixote faz uso dos provérbios de Sancho. As personagens reconstruídas ganham uma imagem cada vez mais concreta quando o leitor se depara com as ilustrações rascunhadas por Del Picchia. São três no total. A primeira  

269  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   é Dom Quixote curvado e com um semblante derrotado. O oposto total do Quixote de Cervantes. A segunda é a imagem de Sancho, que traz um semblante mais firme, também em oposição ao Quixote em questão. E, por fim, a última ilustração é a de Sancho no leito de morte, com a "pança" inchada, a pança que afirmam ser a causa da loucura do escudeiro.

Imagem 3: sem título (Del Picchia)

Em meio aos delírios de Sancho, ocorre o desfecho da reconstrução de Del Picchia. Sancho expira e, com ele, o poema e, junto com ele, expira e se desfaz o subvertido interlúdio do autor. Referências AJZENBERG, E. M. . Portinari: Três Momentos. 1. ed. São Paulo: EDUSP, 2012. v. 1. 167p. CERVANTES, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. Primeiro Livro. Edição bilíngue. São Paulo: Ed. 34, 2011. _____. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha. Segundo Livro. Edição bilíngue. São Paulo: Ed. 34, 2012. CERVANTES, M. de, PORTINARI, C., ANDRADE, C. D. de, D. Quixote, Cervantes, Portinari, Drummond. Rio de Janeiro: Diagraphis, 1973. DEL PICCHIA, Menotti. Máscaras. Ediouro. ESTANTE Virtual. Disponível em: http://www.estantevirtual.com.br/. Acesso em 29 de junho de 2013  

270  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   PORTINARI. Disponível em < http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/1227> acessado em 06 de julho de 2013 LIVRARIA Cultura. Disponível em acessado em 29 de junho de 2013. MACHADO, Ana Maria. O Cavaleiro do Sonho. As aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Mercuryo Jovem, 2005. PRADO, Amaya Obata Mouriño de Almeida. Adaptação, uma leitura possível: um estudo de Dom Quixote das Crianças, de Monteiro Lobato / Amaya Obata Mouriño de Almeida. ZINE Brasil. Disponível em <  http://zinebrasil.wordpress.com/2008/12/13/dom-quixote-emquadrinhos/> acesso em 06 de julho de 2013

 

271  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O MANUSCRITO AMG 117.30, A ÓPERA A MULHER AMOROZA E O LIBRETO GOLDONIANO: SUBSÍDIOS PARA CONSTRUÇÃO DO REPERTÓRIO OPERÍSTICO NO AMBIENTE LUSO-BRASILEIRO NO SÉCULO XVIII Maíra Dessana Ferreira da Silva Universidade do Estado do Amazonas

O acervo de música dramática pertencente ao Paço Ducal de Vila Viçosa, foi reunido a partir do espólio adquirido pelo então Príncipe Regente e futuro Rei D. João VI, quando este criou o Teatro Real de São João no Rio de Janeiro. A compilação do acervo originou-se do material pré-existente pertencente ao Teatro de Manuel Luiz (1775-1809). O manuscrito AMG 117.30, a ópera A Mulher Amoroza, totalmente em língua portuguesa, nos apresenta importantes informações acerca da música desenvolvida nos setecentos. A ausência de autoria do manuscrito sobrepõe-se com a possibilidade de múltiplas impressões acerca da ópera, e é difícil constatar o real ano de sua estreia. Existe, portanto necessidade de estabelecer parâmetros seguros de identificação da época de composição, providência fundamental para garantir o estudo de seu significado e contextualização sócio-culturais. A possibilidade de relação do manuscrito do Acervo Musical de Vila Viçosa com o libreto traduzido para língua portuguesa, atribuído a Carlo Goldoni, da Colecção Forjaz de Sampaio, Cota TC 212, Fundação Calouste Gulbenkian, nos ajuda relacionar e perceber o tipo de obra musical cultivado nesse período, e a possível utilização do libreto para a produção textual da ópera A Mulher Amoroza. A construção de uma identidade cultural A produção cultural/musical no reinado de D. João V foi intensa por toda a corte. Apreciador de boa música, principalmente a religiosa, D. João preocupou-se por contratar, e essa contratação músicos de boa reputação para compor o perfil musical do reinado e configurou-se de fundamental importância na concepção do cenário português mudando sua fisionomia artístico-musical. Ainda assim, esta influência, longe de descaracterizar a música, ajudou a reformular e construir o que era consumido, principalmente com pelo público

 

272  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   português92 o que fomentou uma necessidade natural de gosto pelos espetáculos em língua portuguesa, e permitiu a tradução de diversos libretos para língua vernácula. Pode-se associar isso a um olhar voltado para o fato de o consumo de óperas italianas ser reduzido, pois poucos tinham acesso ao conhecimento da língua estrangeira. A ópera italiana, muito apreciada em toda Europa, possuía sua temática baseada nos textos de peças teatrais que abordavam o tema da antiguidade, grega ou romana, na qual o herói tem papel fundamental, o de comover e impressionar o público. Para isso não se mediu esforços na caracterização desse personagem, demonstrando seus feitos espetaculosos, bem como enfatizando suas virtudes e revelando os vícios do vilão, obtendo como resultado a função didático-moralista da obra. Nesse aspecto, ainda pode ser observada a relação de verossimilhança da figura do herói com o Rei D. João V, um vínculo estreito entre o herói virtuoso e comandante da nação, ou seja, das vicissitudes vividas pelo povo lusitano nesse período num processo de construção de uma identidade. No seu aspecto estrutural, a ópera italiana era dividida em três atos, quase “invariavelmente estruturados através da alternância de recitativos e árias”; das personagens temos: personagens principais, geralmente um casal protagonista e, vários outros personagens secundários participantes do desenrolar da trama (GROUT & PALISCA, 2007; p.496). Na tentativa de uma produção teatral/musical mais voltada para uma “concepção mais natural” (GROUT & PALISCA, 2007; p. 497), começa uma reforma da ópera com um conteúdo mais significativo e com mais recursos musicais. Quando alguns compositores italianos começaram a tentar seriamente harmonizar a ópera com os novos ideais da música e do teatro, os seus esforços foram no sentido de tornarem toda a concepção mais “natural”, ou seja, mais flexível na estrutura, mais profundamente expressiva no conteúdo, menos sobrecarregada de coloratura e mais variada noutros recursos musicais. A ária da capo não foi abandonada, mas modificada, e outras formas passaram a ser igualmente utilizadas; árias e recitativos começaram a alternar mais flexivelmente, de forma a veicularem a ação com maior rapidez e realismo; passou-se a usar mais recitativo obbligato; a orquestra tornou-se mais importante, quer em si mesma, que ao acrescentar profundidade harmônica aos acompanhantes; os coros, há muito caídos em desuso na ópera italiana, voltaram a aparecer; a generalidade dos compositores passou a opor uma resistência mais firme às exigências dos solistas. (GROUT & PALISCA, 2007; p. 497)

Goldoni e a Commédia dell’arte À medida, porém, que se percebe a necessidade de ampliar os espetáculos artísticos sem que com isso aconteçam interpolações no processo de formação do público, ou seja, a função didático-moralista das artes, faz-se importante a escolha de modelos de espetáculos                                                                                                                 92

As características acerca dos gêneros musicais consumidos pelo público português aparecem descritas no artigo O Drama Musical no Portugal Setecentista e a Influência do “Gosto Português” Através da Obra de Demetrio, de David Perez. AMORIM, 2012.

 

273  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   teatrais apropriados para a apreciação do público adotando modelos peculiares de formação artística. Nesse cenário, temos a predominância de vários gêneros na corte portuguesa e nos teatros espalhados pela cidade, e muitos desses gêneros oriundos, também, da tradição espanhola, entre os quais se encontra a commédia dell’arte (BRITO, 1989; p.3). É costumeiro situar o surgimento da commedia dell’arte em meados do século XVI. Nesse período, a prática teatral desempenhada consistia na total improvisação dos personagens, e várias eram as denominações utilizadas para designar essa prática artística teatral, nas quais constam comédia de máscaras, comédia bufonesca, entre outras, permanecendo o termo Commedia dell’arte, completamente contrária à Commedia Erudita. A commedia dell’ arte, por sua forma simples e popular baseava-se em torno de “personagenstipo” determinantes, como os personagens bufos ou cômicos, responsáveis, principalmente, pelas intrigas

no desenrolar da trama totalmente baseada em fatos do cotidiano. Esses

personagens eram facilmente reconhecidos pelo público devido à constância dos mesmos em diferentes peças, e muitos desses profissionais especializavam-se apenas em um único personagem por toda vida profissional (VENDRAMINI, 2001). As companhias artísticas, em sua maioria, viajavam de cidade em cidade, por vilas e arrabaldes, e devido a esse aspecto transitório predominou a realização de espetáculos ao ar livre. Finalmente, esse tipo de espetáculo acontecia ao ar livre, com cenografia simples, no geral telão pintado, representando uma rua, montado sobre um estrado que também servia de camarim para os atores. Adequado para o caráter ambulante das companhias, que atravessavam a Europa de feria em feira, essa solução cenográfica servia perfeitamente a um espetáculo baseado na arte do ator, na mecânica do efeito teatral e na ação propriamente dita, componentes de inegável eficácia cênica, apesar da precariedade dos meios materiais que lhes dava suporte. (VENDRAMINI, 2001)

Após anos de muito sucesso, a commedia dell’arte entra em declínio. São muitos os motivos dessa decadência, dos quais o exagero da obscenidade e vulgaridade contido no conteúdo dos espetáculos configurou-se no maior vilão, o que contrariava a preocupação da função moralizadora da arte. Diante desse cenário, Carlo Goldoni (1707-1793), figura importante da dramaturgia do Setecentos, um dos reformadores do teatro em sua época e quem introjeta novos aspectos perfeitamente cabíveis e equivalentes dentro da proposta didático-moralizadora da arte. Suas propostas, acerca da reforma, contemplam vários aspectos, tais como, o de que as histórias sejam reflexos da realidade, na qual os personagens tenham o lado psicológico mais trabalhado; o texto apareça na íntegra sem espaço para improvisações por parte dos atores, em direção a um teatro com função educadora (VENDRAMINI, 2001). Com a peça O teatro  

274  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   cômico, uma espécie de “metalinguagem”, Goldoni revela seu caráter vanguardista para época. O texto traduz a vida de uma companhia de teatro na qual os atores estabelecem discussões sobre se a companhia deve deixar de lado, ou não, a tradição, nesse caso, a comédia improvisada, como estava estabelecida, a commedia dell’arte. “Abrimos a temporada com uma obra intitulada O teatro cômico. Nos anúncios eu a apresentara como uma comédia em três atos, mas para dizer a verdade, tratava-se de uma poética em ação, dividida em três partes. Ao escrever essa obra tencionei utilizá-la como abertura de uma nova edição do meu Teatro. Por outro lado, também estava bem feliz por poder instruir as pessoas que não gostam de ler, obrigando-as a ouvir no teatro definições e correções que elas achariam um tédio ler em um livro”. (GOLDONI, 1993, p.331)

O libreto Goldoniano Uma versão do libreto A Mulher Amorosa (1778), atribuído a Carlo Goldoni (17071793), pertencente à Coleção Forjaz de Sampaio, cota TC 212, disponível na biblioteca virtual, em coleções digitalizadas, da Fundação Calouste Gulbenkian, consta o título 1778. Sua digitalização consta, segundo a Fundação do ano de 1998. Na primeira folha do libreto de cordel atribuído a Carlo Goldoni Consta a distribuição dos papéis e seus respectivos personagens, e que sua estreia se deu no Theatro do Bairro Alto e na última o ano em que foi encenada 1778 (GOLDONI, Carlos, 1778).

Figura 01. Folha de rosto do Libreto

Figura 02. Folha final do Libreto

Os personagens estão assim distribuídos: O Conde Octavio/ A Condessa Rosaura, sua Mulher/ A Marqueza Beatriz, Amada do Conde Octavio/ Lélio e Florindo, amigos dos ditos/ Rodolfo, Pai da Condessa Rosaura/ Trapola, Criado da Marqueza/ Pandorga, Criado de Octavio/ Coralina, Criada da Condessa Rosaura/ Criados que não falam.

 

275  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Figura 03. Folha de rosto do Libreto

O enredo do libreto é constituído de 3 atos, cada um deles com 3 cenas. O tema da obra é o constante nas obras de commedia dell’arte. A trama desenrola-se em Montopoli, onde um Mercador de Veneza, Rodolfo, casa sua filha, a plebeia Rosaura, a qualquer preço com um fidalgo. Rosaura é a protagonista da história, uma mulher recatada e, devido algumas de suas falas percebesse também uma mulher segura, que, depois de casada tenta manter seu casamento a muito custo. A esta luz, de certa forma, consola-se como esposa mal-amada e à sorte a lançada. Está rodeada por personagens diversos com diferentes papeis na trama, entre eles os personagens conhecidos por tolineiros – falsos amigos e aproveitadores de situações diversas geralmente contribuindo com muita confusão. Os personagens figurativos como tolineiros são Lélio e Florindo. O Conde Octavio, seduzido pelos fulgores da Marqueza Beatriz, estará disposto a largar seu casamento para ficar com sua amante aparentemente mais nova e voluntariosa. Outros personagens importantes são os graciosos com funções importantes para um final bem sucedido. Os personagens graciosos são imprescindíveis no teatro Setecentista. No libreto Goldoniano, Trapola, Pandorga e Coralina, são marcados por vários aspectos, um deles configura-se no linguajar utilizado visto a diferença social explorada; responsáveis pelo desenrolar da trama e principalmente fazer com que os personagens principais fiquem juntos no fim. Pandorga e Coralina constituem o par de graciosos servidores na casa do Conde Octavio. Ao observar o modo exigente e áspero com o qual o Conde Octavio trata a , Padorga passa a patroa, apresenta-se mais exigente diante de Coralina. Coralina, por sua vez, tem papel de alertar a Condessa a desconfiar do marido.

Descrição do Manuscrito AMG 117.30 O acervo de música dramática pertencente ao Paço Ducal de Vila Viçosa em Portugal, foi reunido a partir do espólio adquirido pelo então Príncipe Regente e futuro Rei D. João VI, quando este criou o Teatro Real de São João no Rio de Janeiro. A compilação do acervo originou-se do material pré-existente pertencente ao Teatro de Manuel Luiz (1775-1809) (BUDASZ, 2008; p. 40).

 

276  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A ópera A Mulher Amoroza93, é composta de 3 atos e um coro final. Os atos estão divididos em cantorias: no primeiro ato com 5 cantoria; o segundo também com 5 cantorias; o terceiro ato com 3 cantorias e o coro final. A primeira Cantoria (Pandorga) Eu não sei com amor doido; 2ª Cantoria (Rozaura) Quanto é grande e Que farei sem o consorte; 3ª Cantoria (Octavio) Sinto dentro do meu peito; a 4ª Cantoria (Dueto: Pandorga e Coralina) Eu sou muito tua amiga; 5ª Cantoria (Beatriz) Coberta de vergonha; 6ª Cantoria (Rozaura) Ai de mim triste!,O General esperto e Morrer mil vezes devo; 7ª Cantoria (Beatriz) A petulância dessa atrevida; 8ª Cantoria (Terceto: Beatriz, Lélio e Florindo) Ânimo pois: é justo; 9ª Cantoria ( Dueto: Octavio e Rozaura) Perdoai amada esposa;10ª Cantoria (Octavio) Os homens quando chegam ao extremo e o Coro Final, Tome este exemplo.

Figura 04. Folha de rosto da parte cava do Baixo contínuo

Devido alguns aspectos pode-se observar no manuscrito pontos correspondentes ao tipo de obra produzida no Setecentos e parte do repertório dominante tanto da Metrópole quanto da Colônia. O recitativo Quanto é grande, da personagem Rozaura, pertence ao recitativo de uma obra do compositor italiano Pietro Alessandro Guglielmi (1728-1804). A ária Que farei sem o Consorte , na qual a voz feminina canta uma lamentação de amor não correspondido por seu par romântico, é pertencente à ária Che farò senza Euridice, da ópera Orfeo e Eurídice de Christoph Willibald Gluck(1714-1787), na qual a personagem é um homem, Orfeo, a cantar a ausência de sua amada, Euridice. A esta luz não é possível passar desperebido Gluck como um dos grandes responsáveis pela reforma da ópera e não seria de se estranhar que uma de suas obras mais famosas fosse cantada em espetáculos com outros nomes e outros personagens, e, com isso sofresse a prática do pastiche94 muito utilizada nesse período.                                                                                                                 93

Não passa despercebida a relação dos nomes das obras tanto o do Libreto atribuído a Carlo Goldoni como a ópera A Mulher Amoroza sem autoria confirmada. No libreto Goldoniano a palavra Amorosa é escrita com “S”, já no manuscrito musical grafa-se com “Z”. 94   Explica-se o surgimento dessa técnica pelo fato de que as óperas foram, quase sempre, compostas para cantores

específicos e adaptadas às condições locais. Em obras deste período, as árias e os recitativos que estão intimamente ligados entre si precisavam de revisões de acordo com o tipo de música que se fazia. Neste período ainda não tendiam a ter a

 

277  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Considerações Finais A singularidade vivida por Portugal no cenário artístico musical nos traz a compreensão de vários aspectos acerca da produção cultural proveniente do Setecentos diferente do restante da Europa dado os vários tipos de gêneros encenados nos teatros entre eles obras cômicas e várias delas traduzidas para língua vernácula nos dar subsídios de situar obras desconhecidas por muitos dentro do repertório praticado no Setecentos. Portanto, a possibilidade de relação do manuscrito do Acervo Musical de Vila Viçosa com o libreto traduzido para língua portuguesa, atribuído a Carlo Goldoni, Colecção Forjaz de Sampaio, Cota TC 212, Fundação Calouste Gulbenkian, nos ajuda relacionar e perceber o tipo de obra musical cultivado nesse período, especialmente o pastiche, e a possível utilização do libreto para a produção textual da ópera A Mulher Amoroza. Pode ser ainda que, embora os indícios constantes de ambos os textos (das partituras e do libreto), coincidam e contrariem esta hipótese, de se tratar de obras distintas, apenas guardadas, por coincidência no mesmo arquivo e agrupadas por algum pesquisador pela coincidência de tema, título, motivos e enredo. Referências bibliográficas MANUSCRITOS Manuscrito AMG 117.30; Arquivo Musical de Vila Viçosa, Portugal. Libreto Comédia Intitulada A Mulher Amorosa. Colecção Forjaz de Sampaio, Cota TC 212, Fundação Calouste Gulbenkian BRITO, Manuel Carlos de. Opera in Portugal in the Eighteenth Century. (Cambridge, 1989). BUDASZ, Rogério. Teatro e música na América Portuguesa: convenções, repertório, raça, gênero e poder. Curitiba: DeArtes – UFPR, 2008. GROUT & PALISCA, Donald J., Calude V. História da Música Ocidental. Gradiva, 2007.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           característica fragmentária do pastiche. Com o passar do tempo e com as constantes mudanças de cenário/local/teatro, essas adaptações, feitas num prazo cada vez menor e para um público cada vez mais exigente, começaram a incorporar trechos de autores conhecidos, fato que derivou num emprego cada vez maior da técnica do pastiche, notadamente nas obras de veia cômica. Quase todos os avivamentos das óperas italianas nos últimos vinte anos do século XVIII foram submetidos ao processo do pastiche. (SADIE, 1994; p.705)

 

278  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ARTIGO MELO, Fábio Amorim de. O drama musical no Portugal setecentista e a influência do “gosto português”através da obra Demetrio, de David Perez. Simpom, 2012. VENDRAMINI, José Eduardo. A comédia dell’arte Trans/Form/Ação São Paulo, v. 24, p.57-83, 2001.

 

279  

e

sua

reoperacionalização.

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

LENDAS BRASILEIRAS: A ARTE MUSICAL NA INTERDISCIPLINARIDADE DA TRANSMISSÃO ORAL Maria Beatriz Licursi - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Maria Ione Silva - Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Sefisa Quixadá - Universidade Estadual Vale do Acaraú. Levi Leonildo - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.  

Resumo ___ Este trabalho constou de uma dramatização com a participação de oito alunos de várias regiões brasileiras no seminário “Didática Integrada às Expressões Artísticas” no Curso de Doutorado em Ciências da Educação na Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro em julho de 2013.A música foi condição essencial para o embasamento e inspiração artísticos na performance teatral de acordo com os enredos e características específicas dos personagens. As propriedades artísticas ajustadas a cada uma das lendas,a saber, Caipora, Iara, Mula sem Cabeça, Saci Pererê, Boitatá, Papa Figo, Vitória Régia e Negrinho do Pastoreio,nos permitiram revelar ao público as características brasileiras da nossa cultura através das expressões oral,corporal e facial ,aliadas aos recursos da maquiagem e indumentária . A participação integral dos “atores” para a seleção do repertório musical enriqueceu a nossa transculturalidade nesta produção acadêmica dos participantes com engajamento na atividade coletiva de discussão e construção dos pilares conceituais para o resultado de pesquisa do grupo.O objetivo foi realizar a interdisciplinaridade das áreas envolvidas neste processo artístico-educativo para divulgar uma particularidade da cultura folclórica brasileira.A metodologia compreendeu um relato de experiências pela interpretação individual revelando a narrativa de cada lenda selecionada.Como resultado apontamos a integralidade das didáticas aplicadas através da interface da música,artes plásticas,linguagem folclórica e expressão corporal preservando-se as peculiaridades do fato folclórico: anonimato, funcionalidade e transmissão oral.  

Palavras chave :lendas brasileiras-música- transmissão oral- transculturalidade   Abstract_ This work consisted of a theatrical drama with the participation of eight students from several regions in the seminar "Integrated Curriculum at Artistic Expressions" in the Course of Doctorate in Education at the University of Trás-os-Montes and Alto Douro in July 2013.A music was an essential condition for the foundation and inspiration in artistic theatrical performance according to the specific characteristics of the plots and artistic properties characters of the legends. .As adjusted to each of the legends, namely, Caipora, Iara, Mula sem Cabeça, Saci Pererê, Boitatá, Papa Figo, Vitória Régia e Negrinho do Pastoreio, allowed us to reveal to the public the national characteristics of our culture through the oral expressions, facial and body, combined with the resources of makeup and clothing. The full participation of the "actors" for selection of musical repertoire enriched our academic research of this transcultural participants to engage in the activity of collective discussion and construction of the conceptual pillars to the search result chain.The goal was to conduct interdisciplinary areas involved in this process artistic and education to promote a particular culture of Brazilian folklore.   The methodology included an account of the individual  

280  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   interpretation experiences revealing the narrative of each selected legend as a result aim completeness of didactic applied through the interface of music, plastic arts, folk language and body language while preserving the peculiarities of folk costume: anonymity, functionality and oral transmission.   Keywords: Brazilian legends-music-oral transmission-transculturation

Introdução Todo ser humano nasce com a capacidade de aprender a qual desenvolvemos em nossa trajetória de vida.Sendo a aprendizagem uma combinação de pedagogia,emoção,cultura e biologia,podemos a partir destes elementos desenvolver trabalhos educativos de cunho artístico através da música e da arte dramática.O folclore brasileiro nos privilegia com vasta riqueza de possibilidades para a educação e cultura através de recursos em diversos setores da arte como o teatro,a música,a literatura e as artes plásticas entre outros. “O drama,como necessidade humana,estende-se ao crucial dever de aliar a educação à formação escolar pois temos a referência histórica de que a educação é anterior à escola” (LEONILDO,2004). Este trabalho realizado através da formatação teatral apoiou-se nos pilares: ser,saber,saber fazer e aprender a viver juntos.Cada um de nós é um ser único promovendo-se continuamente a diversidade. “A pluralidade engrandece o trabalho do educador onde todas as culturas se assumem como riqueza estética e de referência educativa,constituindo exemplos de integração e educação multi e intercultural”(LEONILDO,2004). A transculturalidade aplicada ao ensino apoiado no teatro e na música ,pode constituir uma importante ferramenta para motivar,integrar e dinamizar elementos

que

proporcionem uma aprendizagem viva onde podemos exercitar a interdisciplinaridade aliada à cultura folclórica brasileira e à música através do drama vivenciado em aprendizagem partilhada e centrada no processo educativo-criativo.Entrementes,a musicalidade,entendida como uma construção dinâmica dos signos plásticos e sonoros do espetáculo remete-nos ao componente do fenômeno teatral que não se consegue explicar mas que faz do espetáculo uma verdadeira sinfonia(OLIVEIRA,2008). Esta dramatização é o resultado de um seminário intitulado Didática Integrada às Expressões Artísticas realizado no curso de doutorado em Ciências da Educação na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,Portugal.A estruturação deste espetáculo contou com a intensa participação da classe formada por oito alunos,  

281  

para todas as

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   necessidades de caráter artístico requisitadas a esta transmissão oral teatralizada.A música foi o elo relevante em todos os momentos, da a abertura de cena ao encerramento do espetáculo. Os processos de criação nos conduziram à montagem cênica cumprindo plenamente a nossa tarefa na referida disciplina.A oportunidade de apresentarmos a nossa cultura brasileira de forma viva e dinâmica

numa universidade portuguesa,serviu de estímulo aos participantes

reconhecendo e desenvolvendo os objetivos da tarefa acadêmica. Foi unânime a decisão da escolha do tema “lendas brasileiras” através das quais foram requisitadas as capacidades criativas de cada aluno pondo-as em prática através de diversos setores artísticos articulados para a realização do espetáculo. Sendo a população brasileira constituída por cidadãos de várias culturas e etnias ,podemos dizer que a nossa brasilidade é fruto desse rico e espontâneo diálogo permanente entre as diversas culturas

oportunizando uma renovação constante da cultura brasileira

preservando e enfatizando a nossa identidade nacional.

As lendas Uma experiência dessa natureza na qual o instrumento principal é

corpo em

linguagem teatral,dançante e musical, apresenta a oportunidade para trabalhar a expressão corporal propriamente dita, que trará inúmeros benefícios para além do exercício teatral.A prática de atividades artísticas contribui significativamente para um educação conciliada harmoniosamente com a evolução do aluno predispondo-o emoções

e experimentação

justamente

à

descoberta

da estética,

numa fase de reconhecimento de capacidades

intelectuais. As oito lendas selecionadas,Caipora, Iara, Mula sem Cabeça, Saci Pererê, Boitatá, Papa Figo, Vitória Régia e Negrinho do Pastoreio,foram de encontro à sensibilidade e personalidade artísticas natas em todo ser humano pois trata-se de um trabalho profissional enquanto educadores porém sem formação profissional na área do teatro. Os textos de todos os personagens foram criados pelos próprios alunos e a seleção musical recebeu diversas sugestões do grupo adequando-se ao enredo de cada lenda em sintonia com a performance dos “atores” que usufruíram de recursos da linguagem corporal sublinhados e embasados também pela seleção e improvisações musicais. A atuação solidária da classe para esta representação promoveu entre todos os componentes através da motivação,atitudes de alteridade,de cooperação e de conhecimento. A  

282  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   colaboração mútua na elaboração da performance foi elemento propulsor relevante para a união da turma que obteve o resultado artístico-educativo desejado. As lendas apresentadas têm a seguinte descrição concisa: Caipora-Representado por uma mulher ou um homem matuto, baixo, que aparece montado em um caititu ou porco-do-mato. Prega peças assombrando os homens que chegam às matas, querendo matar animais.   Iara-Linda sereia do rio Amazonas, costuma tomar banho nos rios .Tem o poder de cegar quem a admira e levar para o fundo do rio qualquer homem com que desejar se casar. Mula sem cabeça-É a forma que toma a concubina do sacerdote. Lança chispas de fogo pelo buraco de sua cabeça.     Saci Pererê- É um negro jovem de uma só perna cuja carapuça vermelha lhe concede poderes mágicos. Figura brincalhona, se diverte com os animais e as pessoas.   Boitatá-  Gigantesca cobra-de-fogo que protege os campos contra aqueles que o incendeiam.     Papa Figo-Homem velho e sujo, costuma andar pelas ruas no final da tarde durante o crepúsculo a procura de crianças desacompanhadas atraindo-as para extrair seus fígados. Vitória Régia –Uma linda virgem da tribo é transformada pela lua numa "Estrela das Águas", única e perfeita como a planta vitória-régia. Assim, nasceu uma linda planta cujas flores perfumadas e brancas só abrem à noite, e ao nascer do sol ficam rosadas. Negrinho do Pastoreio-É escravo de um fazendeiro muito rico porém com muita maldade no coração. O fazendeiro ordenava, exageradamente ,trabalhos para o Negrinho que era mal alimentado e o castigava muito cruelmente. Podemos assim constatar a diversidade de conhecimentos a serem transmitidos através da representação teatral das lendas brasileiras.

A música “A música e o teatro são duas vertentes expressivas natas e que no mundo da representação teatral tornam-se companheiras inseparáveisPodemos entender o quanto é importante esta unificação artística para que haja prazer e extravasamento da sensibilidade na performance em toda sua plenitude” (LEONILDO,2004). A montagem da trilha sonora para a dramatização das lendas brasileiras obteve a contribuição de outras áreas artísticas para podermos ,em nosso imaginário,estabelecer uma  

283  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   identificação do texto musical com as narrativas das lendas numa linguagem característica do nosso folclore porém com a inserção em alguns momentos, de obras do considerado repertório clássico tradicional preservando-se a autenticidade das composições em harmonia com a performance das lendas. “Quando observamos as relações existentes entre a música e a dança,além de constatarmos uma forte ligação,não podemos negar também que estas artes apresentam contribuições mútuas em seu processo de ensino.Todas são intraduzíveis em palavras,pois assim,certamente estaríamos reduzindo suas dimensões.Sendo a dança um fenômeno corporal, o gesto expressivo,liberado de forma espontânea, pode configurar-se em uma maneira diferente de entrar em contato com a música. A escuta está voltada de uma forma geral, para o movimento” (BEYER & KEBACH, 2009). Afirmava o grande diretor russo: [...] sentir a palavra. Linguagem é música. O texto do papel e da peça são melodias, óperas ou sinfonias. A pronúncia da cena é uma arte não menos difícil que a do canto. [...] Uma voz feminina pura e aguda [...] me lembra um violino [...] não sentem os atores uma orquestra inteira na linguagem humana? (STANISLAVSKI) A prática de atividades coletivas através do teatro e da música promove reconhecimento,a confiança

o

e a valorização do outro,para além de capacitar para a

mobilização dos saberes adquiridos.Permitem assimilar conteúdos do ensino escolar

mais

facilmente,questionar,experimentar, daí o constituir uma poderosa ajuda na melhoria das aprendizagens e no tornar mais relevante os conhecimentos.A atenção deverá estar voltada mais para o processo do que para o resultado pois este depende daquele. “O teatro e a música são instrumentos de trabalho magníficos no processo global de educação.Devemos sempre ter em mente que o componente lúdico é o primeiro princípio pedagógico que permite a aprendizagem” (LEONILDO,2004). “A música de cena coloca questões específicas que apresentam novas relações que só podem ser abordadas em seus contextos próprios,essencialmente diferentes do drama musical.É importante ter em mente que a hoje chamada música aplicada ou trilha sonora se insere numa tradição que no ocidente,já mesmo antes dos dramas gregos,dramatizava temas retirados do Antigo Testamento.É um poderoso meio de narrativa,resultado de um repertório  

284  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   específico desenvolvido a partir de interações entre o verbal,o sonoro e o gestual.A expressão musical da cena é herdeira de tradição responsável pela concepção de gêneros fundamentais como a tragédia,a comédia,a ópera,a canção,o balé e o musical.É imprescindível que haja uma real interação no contexto teatral evitando uma desconexão entre a música e a representação cênica, a partir de uma atuação polifônica do ator através da capacidade de se apropriar conscientemente das linguagens artísticas (música,literatura,arte corporais) para uma única concepção artística.É essencial integrar o desenho do espaço sonoro ao do espaço cênico e físico”(TRAGTENBER,2008). O repertório musical contribuiu muito para o aprofundamento da expressividade corporal

dos personagens e opções de coreografia coletiva.A fluidez das histórias narradas

com a respectiva sequência musical inspiraram a expressividade no uso da linguagem corporal cujo o ritmo do movimento explorando simultaneamente os recursos cênicos.Assim sendo foi possível,ao longo do espetáculo,ouvirmos o Clair de Lune (Debussy) ,o Prelúdio das Bachianas Brasileiras nº4 e Ária das Bachianas Brasileiras nº5 vocalizada (Villa Lobos) além de momentos improvisados pela pianista de acordo com os movimentos e expressões verbais vinculados ao perfil dos textos literários e também recursos sonoros onomatopaicos para determinadas passagens na performance.A música brasileira do repertório não erudito também foi inspiradora a esta direção musical contando com o Abre Alas (C.Gonzaga),Papa Figo (Reginaldo Rossi),Ciranda da Rosa Vermelha (Elba Ramalho),Caboclinhos (música folclórica),Vem (música de igreja),Saci Pererê (arranjo popular) e Ciranda de Itamaracá (música folclórica) . Dalcroze, Orff: Corpo e música Diretores musicais, músicos,maestros e atores são unânimes em afirmar que para além da presença ou não da música,para além da composição da trilha sonora,há um pensamento musical,que permeia a feitura de todo fenômeno teatral. Na Educação Musical ocidental, um pioneiro a se preocupar com a reintegração do corpo na prática musical e sistematizar este conhecimento foi Jacques-Dalcroze (1865-1950). “A música é composta por sonoridade e movimento. O próprio som é uma forma de movimento. Os movimentos desempenham papel primordial na compreensão e domínio rítmico. A música não se ouve somente com o ouvido, mas com todo o corpo” (DALCROZE, 1907 in BACHAMANN, 1998). Para cada som, existe um movimento análogo – dizia Dalcroze.  

285  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   De modo simplificado, esta concepção é a base do método criado no começo do século XX por este austro-suíço: a Eurritmia.”A Eurritmia ainda hoje é amplamente difundida na Educação Musical de todo o mundo, e em linhas gerais, promove a integração da música com a expressão corporal” (BACHAMANN, 1998). Partindo do princípio de que estar no corpo é a nossa forma de estar no mundo,a dança deve estar em diálogo “com” a música e, só assim, contribuirá efetivamente para o desenvolvimento artístico-humano de quem as vivencia. Na pedagogía de Dalcroze ,os exercícios propostos,em conjunto com o movimento, a expressão e a sensibilidade,visam otimizar a aprendizagem da música, o desenvolvimento da motricidade, a capacidade de pensar e o poder de expressão. Carl Orff (1895-1982),compositor alemão e educador musical de grande influência nacional e internacional,também defendia que a música nunca vem sozinha, mas sempre integrada ao movimento, e que esta deve ser escutada ativamente se quisermos que o aluno de música assimile aspectos como pulso, ritmo e andamento. Suas propostas pedagógicas incluem atividades de improvisação com movimentos corporais e danças de roda tradicionais como forma de proporcionar aos alunos vivência das linguagens artísticas (dança e música) de forma integrada (ORFF apud FRAZZE, 1987). É relevante divulgar no meio educacional ,e aplicar , o recurso da música aliada ao movimento através do teatro tendo e vista os inúmeros benefícios que esta combinação poderá efetivamente proporcionar para além das artes propriamente dita.O exercício do teatro e da música trabalha a improvisação,a oralidade, a expressão corporal, a voz, além de ampliar o vocabulário,promover a interdisciplinaridade e o incentivo à leitura.Indispensavelmente será estimulada a imaginação assim como a organização do pensamento.

Conclusão 1) A aprendizagem da cultura brasileira através da vivência teatral das lendas brasileiras, poderá ser um recurso criativo e dinâmico para que o educador musical desenvolva um magistério beneficiando o ensino pela interface da música

com vários setores da área

acadêmica. 2) As correlações das artes com a educação escolar exigem um trabalho multidisciplinar. 3) A musicalidade é inerente aos processos teatrais.

 

286  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   4) Na educação musical, as abordagens metodológicas fundamentadas na ideia de corpo como parte da formação em música ,pressupõem procedimentos que integram som e movimento, música , dança e teatro.

Referências Bibliográficas BACHMANN, M.L. La rítmica Jaques-Dalcroze: una educación por la música y para la música. Madrid: Ediciones Pirámide, 1998. BEYER,E. & KEBACH,P. Pedagogia da Música.EDITORA Mediação.Porto Alegre,2009. FRAZEE, J. Discovering Orff: a curriculum for music teachers. Schott Music Corporation. New York, 1987. LEONILDO,Levi-Teatro na Educação.Editora:I Forum Ibérico.Vila Real,2004. OLIVEIRA,JACYAN CASTILHO.O ritmo musical da cena teatral:a dinâmica do espetáculo de teatro.Tese de Doutorado.Escola de Dança/Escola de Teatro.Universidade Federal da Bahia,Salvador, 2008. STANISLAVSKI, C. El Trabajo del Actor Sobr Sí Mismo En el Processo Criador da Encarnação. Buenos Aires: Quetzal,1997. TRAGTENBERG,L Música de Cena,dramaturgia sonora.São Paulo.Perspectiva,2008.

 

287  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   AS TOADAS DE BOI-BUMBÁ: O PROCESSO CRIATIVO DOS COMPOSITORES Maria Celeste de Souza Cardoso95 RESUMO: Este artigo discorre sobre o processo criativo dos compositores das toadas de boibumbá das agremiações folclóricas da cidade de Parintins. Também faz parte do projeto de pesquisa de Mestrado em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas. É importante mostrar que as toadas fazem parte da vida comunitária parintinense e são peças fundamentais para o desenrolar do Festival Folclórico desta cidade. Compositores antigos e atuais contribuem de maneira significativa para o desenvolvimento do evento e enriquecimento da cultura musical. O artigo procura demonstrar como acontece o processo de criação das toadas que fazem do espetáculo folclórico representado pelos bois-bumbás um evento singular, pois nas toadas percebem-se verdadeiros jogos de palavras que envolvem entusiasticamente o público, porém demonstram também que o compositor faz pesquisa, escolhe palavras e linguagens até mesmo em consonância com os temas dos bumbás em cada festival. É também evidente que uma parte desse processo criativo acontece de acordo com os regulamentos exigidos nos eventos folclóricos e com as necessidades de cada boi. E é exatamente a maneira como acontece esse processo de criação que será discutido neste artigo, através das entrevistas feitas com compositores antigos que não fazem mais parte do mercado musical parintinense e com os atuais que continuam a fazer parte desse mercado de toadas. PALAVRAS-CHAVE: Processo criativo. Toadas. Compositores. Boi-bumbá. Parintins. INTRODUÇÃO Em Parintins, a toada representa o arcabouço do Festival Folclórico. Sem toada que chame a atenção do público não há espetáculo. Sem toada que exalte os itens principais do boi-bumbá não há festival. E, principalmente, sem toada não há brincadeira folclórica nem manifestação cultural. É evidente que a toada faz parte da vida do parintinense e é essencial para o desenvolvimento do Festival Folclórico durante os três dias de festa. Neste artigo, será evidenciado o processo de criação literária das toadas de boi-bumbá. Para isso, faz-se necessário entrevistar alguns compositores das agremiações folclóricas para conhecer como acontece o ato de criação e também para demonstrar o pensamento desses artistas a respeito do conceito de toada, sobre a toada de desafio, os elementos que fazem parte de suas composições, a utilização ou não de rascunhos e a influência de outros artistas, compositores ou poetas em suas obras artísticas. Desse modo, discorrer sobre a Crítica Genética é importante para enfatizar o processo de criação, pois se sabe que pesquisas nessa área são poucas e ainda estão em andamento, porém, nos últimos anos alguns questionamentos foram respondidos e vários dados foram reunidos. O interesse pelos rascunhos e manuscritos de grandes autores cresceu                                                                                                                 95

Professora da Universidade do Estado do Amazonas-UEA/CESP. Mestre em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas-UEA.

 

288  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   consideravelmente, principalmente no sentido de perceber como esses autores percorrem o caminho até chegar à obra pronta. A ideia da musa inspiradora sofreu modificações e, hoje, já se sabe que um escritor ou um poeta fazem registros ao longo do processo de criação que nem sempre são encontradas na obra e geralmente também não são mostradas publicamente. Na Grécia Antiga, Platão já levantava essa questão primordial sobre a criação poética: é arte ou inspiração? Para ele, é no “estado de possessão divina que o poeta compõe; o poema é, assim, tão irracional como as manifestações dos Coribantes e das Bacantes”. (p.16) Para Aristóteles (1992) a obra de arte é uma obra de imitação. “O poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro imaginário, por isso sua imitação incidirá num desses três objetos: coisas quais eram ou quais são, quais os outros dizem que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser”. (p.133) Autores como Salles (2008), Ostrower (1987), Bordini (1995), Willemart (1993) e outros, se reportam sobre o processo de criação de obras artísticas, além de explicitarem sobre a utilização de manuscritos ou rascunhos para melhor compreensão do caminho percorrido pelos artistas. Assim, este artigo trata de questões relativas ao ato de criação das toadas, enfatizando as modificações ocorridas nos últimos tempos nessas canções e a forma como elas são importantes para o desenvolvimento do Festival Folclórico como espetáculo para os turistas e para a própria comunidade parintinense. Além disso, é necessário demonstrar o que pensam os compositores mais antigos e os atuais a respeito das modificações sofridas pelas toadas ao longo do tempo. O PROCESSO CRIATIVO DOS COMPOSITORES DE TOADAS DE BOI-BUMBÁ Há algum tempo o ser humano se pergunta a respeito do processo de criação, que não se contenta mais somente com o texto pronto, acabado. A curiosidade é muito grande sobre como acontece esse ato criativo e também em saber os caminhos percorridos pelo artista durante a criação de uma obra. Salles (2008) afirma que o ato criador é resultado de um processo. Sob essa perspectiva, a obra não é, mas vai se tornando, ao longo de um processo que envolve uma rede complexa de acontecimentos. Assim, a obra de arte é resultado de um trabalho, caracterizado por transformação progressiva, que exige, do artista, investimento de tempo, dedicação e disciplina. A obra é, portanto, precedida por um complexo processo, feito de

 

289  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ajustes, pesquisas, esboços, planos, etc. Os rastros deixados pelo artista de seu percurso criador são a concretização desse processo de contínua metamorfose. É dessa forma que, nos últimos anos, a Crítica Genética vem conseguindo espaço no campo da pesquisa sobre o processo da criação artística. “Trata-se de uma investigação que indaga a obra de arte a partir de sua fabricação. Como é criada uma obra? Essa é sua grande questão”. (SALLES, 2008, p.28) Então, a Crítica Genética traz uma luz a respeito desse assunto. Mas, engana-se quem pensa que a partir desses estudos, todo o processo criativo será desvelado, pelo contrário, apenas alguns indícios serão conhecidos. Não existem fórmulas prontas para explicar esse acontecimento, porém o avanço nas pesquisas demonstra que muita coisa ainda pode ser desvendada, pois depende da boa vontade da família do artista, das condições dos rascunhos existentes e até mesmo do crítico genético ou pesquisador responsável pela pesquisa. Pois este, ao investigar a obra em seu vir-a-ser, se detém, muitas, na contemplação do provisório. Ele reintegra os documentos preservados e conservados – um objeto, aparentemente, parado no tempo – no fluxo da vida. Ele tem, na verdade, a função de devolver à vida a documentação, na medida em que essa sai dos arquivos ou das gavetas e retorna à vida ativa como processo: um pensamento em evolução, ideias crescendo em formas que vão se aperfeiçoando, um artista em ação, uma criação em processo. (SALLES, 2008, p.28-29)

Dessa forma, percebe-se a importância da Crítica Genética para o avanço da pesquisa nessa área. É necessário saber o que acontece durante o processo de criação de uma obra de arte. Nos dias atuais, não interessa somente a obra pronta, mas também todo o caminho percorrido pelo artista. Salles (2008) enfatiza essa questão quando afirma que o fascínio da obra entregue ao público não é suficiente, talvez, porque a questão da origem desperta no homem uma curiosidade muito grande: origem da vida, sua própria origem e, aqui, origem de uma criação que nasce de sua própria mente. É próprio do ser humano essa curiosidade, principalmente pelo ato criativo. Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse “novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. (OSTROWER, 1987, p.9)

Pode-se dizer que o ser humano, ainda nas palavras de Ostrower (1987), cria, não somente porque quer ou porque gosta, e sim porque precisa; ele só pode crescer, enquanto ser humano, ordenando, dando forma, criando. Neste sentido, os processos de criação ocorrem no âmbito da intuição. Embora integrem toda experiência possível ao indivíduo, também a  

290  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   racional, trata-se de processos essencialmente intuitivos. Assim como os processos intuitivos, os processos de criação também se interligam intimamente com o ser sensível existente dentro e cada um. Mesmo no âmbito conceitual ou intelectual, a criação se articula principalmente através da sensibilidade. As considerações da autora a respeito do assunto são interessantes, pois integra os processos de criação com a intuição e a sensibilidade e, mais adiante, com a cultura. Pois como explicita muito bem, não são somente os artistas capazes de ser sensíveis, mas todo ser humano possui esse potencial, alguns com menor ou maior capacidade, “o ser humano cria porque é próprio de sua natureza” (BORDONI, 1995, p.14). Quanto à cultura, existe um potencial consciente e sensível dentro de cada um, porém esse potencial só se realiza sempre e unicamente dentro de formas culturais. Em consonância com esse pensamento, talvez se possa dizer, que o ambiente cultural da cidade de Parintins torne possível o desenvolvimento do potencial consciente e sensível do artista parintinense? É possível perceber que esse ambiente que respira boi-bumbá se torne propício ao processo de criação de toadas? Toda essa criatividade latente e pronta a surgir a qualquer momento decorre da miscigenação cultural cantada e decantada nas toadas de boi? Quais os elementos que contribuem para o processo de criação dessas toadas? Afinal, como acontece esse processo criativo? À procura dessas respostas, foi possível entrevistar alguns compositores das duas agremiações folclóricas para se refletir melhor sobre o assunto. Primeiro, o compositor Marcos Lima, acadêmico do curso de Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Amazonas, compositor do Garantido, em uma conversa informal, enfatizou a importância da toada para o desenvolvimento do espetáculo folclórico na cidade de Parintins. Em entrevista afirmou que “a toada é um meio de comunicação da cultura que expressa a particularidade amazônida. É uma cantiga saudosista. E que as toadas de desafio retratam o DNA do boibumbá quando fala de suas qualidades; é ela que faz toda a diferença do bumba-meu-boi”. Nesse ponto, o entrevistado compara as toadas de desafio com aquelas cantadas no bumba-meu-boi, no Nordeste. Ele afirma que é um ponto de semelhança entre as duas brincadeiras e é o que ficou da brincadeira nordestina no boi-bumbá de Parintins. Ainda diz que, antigamente, essas toadas de desafio exaltavam as características do boi e chamavam o adversário para a disputa. No entanto, nos dias atuais, as toadas não desafiam mais o adversário e apenas expõem o lado pessoal de alguns brincantes. Em relação aos elementos presentes na composição de suas toadas, o compositor que já está há 20 anos no meio artístico parintinense, diz que “o ritmo, a rima, a novidade da  

291  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   informação e principalmente a valorização do regionalismo” são essenciais em suas composições. Isso demonstra que alguns elementos citados por Graça (1999) em sua obra, tais como o ritmo, a musicalidade, as imagens, a emoção, também fazem parte da composição das toadas de boi-bumbá. O entrevistado discorreu sobre a valorização do regionalismo, o qual apontou como o ponto mais importante de suas toadas, pois este demonstra o quanto a cultura influencia no processo de criação e o quanto essa toada pode ser representada em qualquer parte do país, nesse caso, aproxima-se cada vez mais da música popular. Quanto ao ato criativo, o processo acontece de forma intuitiva, geralmente quando algo chama a atenção do compositor, mas em seguida, ele parte para a pesquisa em torno do tema e, às vezes, dependendo da composição, leva algum tempo para organizar e escolher as palavras necessárias para concluir o trabalho. No entanto, o interessante não é somente a busca pelas palavras certas, e sim o que elas representam em termos de musicalidade e semântica, porque este compositor preocupa-se muito com o entendimento do público em relação à sua música. Para demonstrar que o processo criativo acontece através da intuição, o entrevistado citou uma de suas toadas produzidas dessa forma, após conversar com um pescador de uma comunidade próxima, o qual no mês de junho deixa seus afazeres e vem para a cidade para ensaiar na batucada do boi, passando por inúmeras dificuldades. Então, depois da conversa com o “batuqueiro”, surgiu a ideia de escrever a toada (exemplificada abaixo) enfatizando o amor do brincante pelo boi preferido. Apesar de essa toada fazer menção ao boi, a maioria de suas composições são mais regionais e o nome do bumbá nem sempre é mencionado. Coração de batuqueiro96 Deixa a poesia da toada te levar Num eterno mundo de prazer E Parintins é tão gostoso declarar Garantido eu sou feliz por ter você O sentimento mais sublime desse povo Surge na voz do cantador a ecoar O toque forte da cadência ritmada Dos batuqueiros da Baixa No touro branco vêm brincar Raça e emoção, raça e tradição (2x)                                                                                                                 96

 

Autor: Marcos Lima. Ano: 2004. Fonte: CD Garantido.

292  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

Bate mais forte o coração da batucada Contagiando livremente a galera avermelhada E o batuqueiro é quem conduz essa magia Traduzindo em harmonia no batuque do tambor E no compasso o coração deixa o cansaço O Garantido é minha vida e meu amor Raça e emoção, raça e tradição (2x) Sangue, suor e paixão Assim, o que chama a atenção nesse momento da entrevista é a preocupação que o artista demonstra para com o público que vai receber essa obra, isso é evidente quando fala sobre a escolha de palavras que valorizem a região e não somente o local. A preocupação em substituir palavras inadequadas, rimas que não combinam, correções, modificações, etc.; em um exercício que tem como função principal: atingir o leitor. Dessa forma, a toada se torna universal e pode atingir tanto o público local quanto aquele que não faz parte da realidade vivida pelo compositor. Como exemplo desse regionalismo presente em suas composições, coloca-se, aqui, a toada DNA Caboclo, a qual representa muito bem o que foi dito pelo compositor na entrevista. Oficialmente, a toada foi inscrita no “Concurso de Toadas”, promovido pela Prefeitura, através da Secretaria de Cultura em nome de outros compositores, por questões políticas dentro da agremiação folclórica. DNA Caboclo97 Meu pecado é te amar, infinito amor Não dá pra disfarçar Te levo aonde vou, aonde vou, aonde vou Te levo aonde vou, aonde vou, aonde vou Vou contigo Amazônia Tá no meu coração, tá no meu linguajar Tá na pele morena, tá no DNA caboclo (2x) Tá no meu guaraná, ta no meu tambaqui Farinha d’água cai bem com tucumã e açaí Bala de cupuaçu, bolo de piracuí, filé de pirarucu Molho de pimenta murupi no tucupi E a saudade do meu boi bumbá Só não é maior que o meu rio Que o meu rio Amazonas Aonde vou, aonde vou,                                                                                                                 97

 

Autores: Marcos Lima/Enéas Dias. Ano: 2012. Fonte: CD Garantido.

293  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Te levo aonde vou Aonde vou, aonde vou Vou contigo Amazônia Sobre a questão dos elementos presentes em uma obra, Salles (2008, p.33) afirma que existem “critérios que regem as opções com as quais o artista se defronta no decorrer de seu processo de criação. Esses critérios estão presentes, para um poeta, por exemplo, na substituição de uma palavra, no corte de um trecho, na adição de um poema ou na eliminação de uma vírgula”. Em relação ao compositor supracitado, percebe-se a existência de alguns desses critérios quando ressalta a preocupação com a escolha de palavras, a musicalidade e a combinação de rimas. Já o segundo entrevistado, Carlos Magno Ferreira Costa, formado em Ciência Política, músico, compositor do Caprichoso desde a década de 80, preocupa-se mais com as características locais em suas composições. Isso é evidente em suas palavras quando diz que para fazer toadas não há necessidade de pesquisa, o compositor parintinense conhece a brincadeira de boi, conhece a tradição, então não é preciso pesquisar. Pesquisar para quê? Para esse compositor, toada é inspiração, que fala diretamente sobre todos os pontos básicos da brincadeira de boi, que se transforma em uma musicalidade própria, o ritmo é nosso, é de Parintins. Sobre a toada de desafio diz que valoriza a brincadeira, os desafios são no bom sentido e não para ofender ninguém, e também sem uso de palavras de baixo calão. E fala sobre uma toada de desafio feita por ele em resposta a uma toada do Emerson Maia, na década de 80, o qual desafia o contrário dizendo que vai à lua e mandar lindos cartões postais de lá. E os seguintes versos da toada de Emerson “Pra te fazer inveja, já sou campeão da terra, vou ser campeão lunar”, mexeu com os brios do compositor do Caprichoso e com raiva compôs uma toada de desafio em resposta à toada do contrário. Toada de desafio98 O contrário falou que quer ir à lua Olha Contrário, deixa de ser sonhador Apaga essa tua ilusão Contrário quer ir à lua (bis) Não sabe nem que é avião (bis) Pega a tua canoa, teus parentes e irmãos Pega a tua família E vai pra Boca do Limão99

                                                                                                                98 99

 

Autor: Carlos Magno. Ano: Década de 1980. Fonte: O próprio autor. Boca do Limão é o nome de uma comunidade próxima à cidade de Parintins.

294  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Diferente de Marcos Lima, Carlos Magno acredita que o ato criativo é resultado da intuição do artista. Neste sentido, em consonância com o que já foi dito neste artigo, Ostrower (1987) afirma que os processos de criação são intuitivos, mas se tornam conscientes na medida em que são expressos, isto é, na medida em que lhes damos forma. Acredita-se, então, que este compositor, ao falar sobre intuição, esteja evidenciando o lado sensível do artista que o leva à criatividade, ao mesmo tempo em que está inserido em um ambiente cultural, pois “... entendemos que precisamente na integração do consciente, do sensível e do cultural se baseiam os comportamentos criativos do homem” (OSTROWER, 1987, p.11) No decorrer da entrevista, quando foi perguntado sobre os elementos que fazem parte da composição de suas toadas, enfatizou que depois que fez faculdade, ficou mais preocupado com o tema, com a organização e a forma poética. Evidenciou a questão da intuição, que antes escrevia sem conhecer técnicas, só na base intuitiva, mas que hoje suas toadas são mais poéticas e que procura incluir o tópico frasal, o desenvolvimento e a conclusão, além de rimas, musicalidade e emoção. Para ele, a inspiração vem dos compositores do passado, tanto do Garantido quanto do Caprichoso, e as toadas possuem letras curtas e falam do sentimento pelo boi. Sobre a preocupação com a estrutura da toada, diz que o início, meio e fim molduram a poesia. E, a partir dessa preocupação, procurou analisar suas composições e produzir as próximas dentro desse contexto. É o que acontece com esse exemplo abaixo, a toada é inédita porque o autor não apresentou para concorrer na agremiação folclórica, mas também houve a preocupação com a estrutura, com a qual ele é enfático quando afirma que a 1ª estrofe representa o tópico frasal, a 2ª e 3ª estrofes representam o desenvolvimento e a última estrofe é a conclusão. Isso demonstra que, após cursar faculdade, o compositor está mais atento para questões técnicas que antes não era motivo para preocupação. Toada Inédita (sem título)100 Mês de junho vem chegando Eu preciso me arrumar Pra brincar na marujada Do meu lindo boi-bumbá É brincadeira, é festa, é paz, é alegria Surge no campo o Caprichoso pra vocês Índios guerreiros, meus vaqueiros, Pai Francisco, Catirina, Meu bailado, meu gingado                                                                                                                 100

 

Autor: Carlos Magno. Ano: 2007. Fonte: O próprio autor.

295  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   E o sorriso da menina Meu boi já ouço o rufar do teu tambor Meu boi já ouço o rufar do teu tambor Nessa hora ferve o sangue Pula o peito, o coração Morena eu trouxe meu boi Pra você apreciar Meu boi entrou emocionando Começou a arrepiar Obrigado, Caprichoso É tão grande a emoção Todo ano se revela Dentro do meu coração Ainda sobre as toadas, comparando as atuais com aquelas da década de 90, diz que a mudança não ocorreu porque os brincantes do boi-bumbá quiseram, mas sim, porque os produtores e a mídia impuseram, o formato do festival mudou e isso é perigoso. As letras das toadas também mudaram, ficaram mais longas e o ritmo mais dançante. A esse respeito diz que é perigoso porque não constitui como folclore, esse processo pode descaracterizar a brincadeira como folclore e constituir a toada como música popular brasileira. O exemplo abaixo mostra essas mudanças ocorridas no interior da toada. O compositor entrevistado, desde a década de 80 até metade da de 90, era assíduo em suas composições musicais, suas toadas foram bastante cantadas nos festivais desse período e estas, como no exemplo abaixo, eram curtas e musicais. Esse ano eu vou101 Esse ano eu vou, Erguer minha bandeira (2x) Eu vou, tu vás, eu vou, eu vou Reuni meus vaqueiros Pra tocar a boiada Convidei a morena pra ver de pertinho A minha vaqueirada Quem ouvir urro forte Que vem lá do norte Pode preparar É meu boi Caprichoso Alegria do povo Que está pra chegar (2x)                                                                                                                 101

 

Autor: Carlos Magno. Ano: década de 1990. Fonte: O próprio autor.

296  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Percebe-se, dessa forma, uma preocupação com o rumo do festival na cidade, principalmente quando se fala sobre as toadas, pois, para o entrevistado, a transformação sofrida por essas cantigas demonstra a confusão que hoje as pessoas fazem a respeito do que é ou não folclore. Para ficar como está, então, de acordo com esse compositor, não deveria mais ser chamado de folclore e, sim, de festa popular. Além disso, assim como Marcos Lima, também faz comparações com o bumba-meu-boi, quando afirma que na brincadeira nordestina não houve esse processo de transformação que ocorreu com o boi-bumbá em Parintins. E essa transformação nas toadas de boi-bumbá deixou de fora da brincadeira muitos compositores, os quais, ainda nas palavras do entrevistado Carlos Magno, não acompanharam e também não concordam com essas mudanças que não estão presentes somente no aceleramento do ritmo, mas também no tema, na forma e no próprio espetáculo. Sobre essas mudanças, Fernandes (2002, p.112) ressalta que foi o ritmo da toada que sofreu modificações, antes era o dois pra lá, dois pra cá e, hoje, não existe espaço para esse ritmo, o espaço agora é para o ritmo mais acelerado, parecido com axé, cheio de coreografias e rebolados. Enfim, durante a entrevista, percebeu-se a emoção com que o compositor fala sobre as toadas, como elas eram, como ele mesmo faz suas composições, utilizando a “inspiração”, olhando o luar, a natureza, as coisas do dia a dia, da vida do caboclo, da história do boibumbá. “A toada é o canto da floresta, dos rios, das tribos dizimadas, dos costumes. A toada é como a Amazônia, quem não a conhece, não a entende, tenta modificá-la ou moldá-la de acordo com os interesses, assim como fizeram os colonizadores, como fazem agora os capitalistas”. (PIMENTEL, 2002, p.47) Outro entrevistado foi Braulino Lima, compositor antigo do Garantido, o qual, apesar de continuar compondo, está fora do mercado da indústria cultural de toadas de boi-bumbá, porém, assim como tantos outros, resiste a esses meandros do capitalismo e persiste a compor e guardar suas toadas, talvez para fazer um “arquivo” ou continuar tentando, como ele mesmo diz. Essa é uma forma de resistência. Muitos compositores da ala antiga dos dois bumbás resistem às mudanças ocorridas nas agremiações folclóricas e continuam a compor suas toadas mesmo que estas não sejam escolhidas para fazer parte do festival. Nogueira (2008) ressalta a formação de grupos de resistência, como o grupo chamado Tradicional, o qual é “foco de resistência ao apagamento da memória musical dos bumbás parintinenses que, por sinal, é o item que mais mudou dentro da estrutura da folia do boi-bumbá”. (p.204)

 

297  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Este grupo, assim como Braulino Lima, tenta “mostrar e até denunciar que o ritmo comercial dos bumbás tem uma referência anterior, da qual não podem se afastar abruptamente para não negar a própria existência histórica”. (NOGUEIRA, 2008, p.204). Neste sentido, há consonância com a fala de Carlos Magno, quando este questiona sobre o que é ou não folclore na brincadeira de boi-bumbá, porque as agremiações acabaram por criar novos ritmos que estão mais de acordo com as exigências de mercado do que com a tradição cultural. Dessa forma, quando questionado sobre o que é toada, o compositor de Tic-tic-tac, a que levou o boi-bumbá para a mídia internacional, diz que existe a toada e a música de boi, a toada é a verdadeira, fala de coisas nossas, é antiga do boi, fala da tradição, e a música de boi são essas que estão aí, diferentes e aceleradas, mas não falam das coisas verdadeiras do boi. Qualquer um pode fazer música de boi, mas a toada não, não é qualquer um que pode fazer, não. O compositor para ilustrar o que fala sobre toada, demonstra cantando trechos de suas composições antigas e explicando sobre o que fala cada uma delas. Por exemplo, sobre Tic-tic-tac, diz que não pensou que fosse fazer tanto sucesso fora do país, pois é uma composição simples que fala sobre a vida do caboclo, o rio que comanda a vida do pescador e o toque da caixinha tocada pelo batuqueiro do boi. Tic-Tic-Tac102 As barrancas de terras caídas Faz barrento o nosso rio-mar Amazonas, rio da minha vida Imagem tão linda que meu Deus criou Fez o céu, a mata e a terra Uniu os caboclos, construiu amor Bate forte o tambor Eu quero é tic-tic-tic-tic-tac É nessa dança que meu boi balança E o povão de fora vem para brincar Bate forte o tambor Eu quero é tic-tic-tic-tic-tac É nessa dança que meu boi balança E o povão de fora vem para brincar Em relação ao processo de criação é taxativo, diz que é pela inspiração. O amor pelo boi dá inspiração para fazer as toadas. Não é preciso fazer pesquisa, porque conheço e acompanho o boi há muito tempo. Platão (1988) enfatiza o que foi dito por Braulino sobre a                                                                                                                 102

 

Autor: Braulino Lima: Ano: 1993. Fonte CD Garantido.

298  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   inspiração: “O poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão” (p. 51) O compositor faz letra e música de suas toadas, diz que é mais fácil, por isso não usa rascunho, pois compõe diretamente acompanhado do violão. Mas, enfatiza que nesse processo, o que dá inspiração é o sentimento de amor pelo boi do coração, e isso os compositores atuais não têm, pois se eles precisam pesquisar é porque não conhecem e não têm amor pelo boi, é isso que faz a diferença. As palavras do compositor são comprovadas pela letra de suas toadas. Em Tic-tic-tac, ele fala que a inspiração veio quando foi pescar no interior do município e lá viu as terras caídas do rio, naquele mesmo momento compôs os primeiros versos da toada. Já em outras composições, como por exemplo, Vem te perfumar, de 1991, ele canta e decanta o amor pelo boi Garantido. Vem te perfumar103 Preparei banho de cheiro De rosas vermelhas e flor de sucena Pro meu boi Garantido Perfumar seu povo quando entrar na arena Vem, vem morena Vem se perfumar Vem tomar banho de cheiro Do meu touro branco Na luz do luar Ele dança, ele roda E balança Faz meu povo cantar com emoção Garantido é a chama viva Que explode no meu coração Neste sentido, Graça (1999) afirma que o poeta tem intuição poética, o que significa intuição da melodia, intuição do ritmo, intuição do poder descritivo de uma imagem. E, às vezes, com uma série de conhecimentos técnicos e com o poder da imaginação ele consegue chegar a achados interessantes. Um poeta sem ritmo é uma contradição em termos, uma impossibilidade. Sem imaginação também. Com insights, o poeta/compositor de toadas pode trabalhar e tornar seus poemas mais provocantes, carregados de significados imprevistos e recursos incalculáveis.

                                                                                                                103

 

Autor: Braulino Lima. Ano: 1991. Fonte: CD Garantido.

299  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Quanto à participação no mercado de toadas, Braulino diz que desde o sucesso de Tictic-tac, mais nenhuma de suas toadas foram escolhidas para o festival, porém, ainda vive até os dias de hoje dos direitos autorais dessa toada, a qual ficou conhecida na França levada pelo Grupo Carrapicho. Até hoje, o compositor é procurado e entrevistado para documentários pelos franceses e alguns estudiosos, mas, aqui na cidade de Parintins quase não é lembrado. O tipo de toada que produz não atende aos apelos do mercado capitalista, que é o formato atual do festival. “A lógica do mercado é o lucro e este se tira de algum lugar. No caso das festas populares, o lucro é obtido pela fetichização do tradicional, do lugar social, que se expressa na soma dos bens simbólicos e materiais de um determinado grupo social”. (NOGUEIRA, 2008, p. 206). Para Adriano Aguiar Padilha, compositor atual do Caprichoso desde 2007, a toada é uma mistura de vários ritmos, é axé, é samba, pode ser uma canção romântica, é algo ritualístico, tribal, pesado, vários ritmos cabem nela. Ela não segue apenas uma linha, segue os vários itens do boi, ela fala de meio ambiente, da sinhazinha, do amo, dos rituais das tribos, do Pajé. Toada é uma manifestação cultural musical, é mestiça, antes se resumia a falar do boi, da vaqueirada, da sinhazinha, hoje é diferente, fala dos vários itens do boi. Sobre a toada de desafio, diz que é tradicional, não é muito valorizada nos dias de hoje, já esteve ausente do boi-bumbá, mas está de volta e deve fazer parte do espetáculo para manter as raízes. A respeito do processo de criação, esse compositor enfatiza que não está preocupado com a parte teórica da poesia e que não pensa nos elementos que fazem parte do texto poético. Quando compõe, geralmente em parceria com outro compositor, não segue um modelo, porque pega o violão e compõe diretamente a letra e a música. Para ele, é importante acertar primeiro a melodia, a letra vem depois. Diz que utiliza a intuição quando é uma toada sobre a galera, sobre o boi, mas a pesquisa é utilizada quando se volta para as lendas, para as tribos e os rituais, nesse caso a pesquisa é obrigatória. Utilizar a pesquisa nas toadas é mais difícil, porque precisa fazer o caminho inverso, primeiro a letra e depois a melodia. Assim como já foi dito por Carlos Magno, Adriano Aguiar também mencionou a questão da estrutura da toada: cabeça, desenvolvimento e final. Também falou sobre o tamanho, geralmente, hoje, em quatro estrofes, com um ritmo crescente, começa de forma lenta e explode no refrão. Esses são os elementos presentes nas toadas desse compositor: não há preocupação com rimas, imagens, palavras, mas com a estrutura definida pelos bumbás atualmente. Nesse caso, os itens são o ponto de partida para a criação das toadas, se não

 

300  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   seguir o que foi estabelecido pela Comissão de Arte de cada agremiação, o compositor corre o risco de não ter aprovada sua obra. A toada “Deusa do amor”, de 2007, representa essa estrutura colocada pelo compositor na entrevista e evidencia a inspiração. Além disso, um dos recursos utilizados por ele em suas composições é o uso do dicionário, para que as palavras não fiquem repetitivas, e também mostra a parceria que mantém com mais dois compositores, os quais nessa toada retratam a beleza de um dos itens importantes da evolução do boi-bumbá: a porta-estandarte. Deusa do amor104 Deusa do amor Me conduz em um sonho Ao dançar ao redor da fogueira Deusa da paixão Teu olhar penetrante me lança Um calor que incendeia Meus sentimentos fluem Desaguando nesse mar de emoção Viajo em meio às curvas Do teu corpo E nesse sonho de magia Conquistou meu coração Porta-estandarte Deusa menina criatura de rudá A tua dança sintetiza os elementos Em completa harmonia Terra, fogo, água e ar. O vento noturno Que beija teus cabelos ao luar É o mesmo que tremula o pavilhão Essa bandeira De um povo aguerrido A raça de um boi campeão A mais bela poesia Se revela em forma de mulher Eu quero te ver bailar feliz Empunhando o estandarte Com as cores do meu boi Porta-estandarte Deusa menina criatura de rudá A tua dança sintetiza os elementos                                                                                                                 104

 

Autores: Adriano Fonseca/Adriano Padilha/Elton Jr. Ano: 2007. Fonte: CD Caprichoso.

301  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Em completa harmonia Terra, fogo, água e ar. Porta-estandarte Deusa menina Flor singela do amor Tua beleza me fascina Traz o azul do caprichoso Que cintila no toque do meu tambor Às vezes, para uma toada ser aprovada é preciso “cortar” alguma palavra, frase ou verso inteiro. Os compositores não gostam muito, mas quando necessário, ele permitem que a toada seja “mexida”, geralmente quando é alguma coisa pequena, o compositor permite a mudança, no entanto, se for sugerida uma mudança no tema ou coisa maior, não é dada a permissão, porque tolhe a liberdade do artista e destrói todo um processo pelo qual a toada passou até chegar à fase final. Desde quando começou em 2007 até os dias de hoje, o compositor produziu muitas toadas, as quais fazem parte do repertório do boi-bumbá Caprichoso. Como exemplo de toada que mostra a pesquisa como um dos elementos principais em seu processo criativo apresentase a que se intitula “Nirvana Xamânico”, que narra o ritual de transformação de um pajé e a evocação de Tupã, utilizando uma linguagem completamente indígena. Nirvana Xamânico105 No nirvana do pajé Transmutado feito bicho Se transforma em animal De escamas, de penas, da pele, de couro Alucinam tua mente Em transe dormente Em um lúdico voo paranormal Possuído Em mundos estranhos Lugares ocultos, loucos absurdos Que teus sonhos te levam Canta a tua reza Pajé! Ao som, o tambor O fumo é tragado As ervas transportam às visões No sopro, o rapé, O pó é inalado para evocar os espíritos                                                                                                                 105

 

Autores: Geovane Bastos/Adriano Aguiar. Ano: 2010. Fonte: CD Caprichoso.

302  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Na cuia, a ayahuasca transpassa os Portais do Cosmo No transe, o sacaca xamânico Canta a tua reza Pajé! Canta, dança! Na cura, o mago, o bruxo, xamã Canta, dança! Na reza evoca Tupã Canta, dança! Na cura, o mago, o bruxo, xamã Na reza evoca o grande Tupã. É notório, no momento atual, a presença de elementos indígenas na composição de toadas enfatizando o ritual das tribos e a pajelança, os quais foram acrescentados no decorrer da festa folclórica e com as mudanças que aconteceram nos últimos anos. Assim, além dos sentimentos e exaltação da figura do boi, compositores e brincantes cantam a beleza da floresta, a biodiversidade do ambiente, a galera, porta-estandarte e a cunhã poranga, figuras representativas da cultura parintinense. Percebe-se, então, que os entrevistados demonstram seus sentimentos e até mesmo ressentimentos sobre as mudanças ocorridas nos últimos anos no cerne da brincadeira de boibumbá. É claro que as transformações não aconteceram somente nas toadas, mas também em toda a estrutura das duas agremiações e no próprio festival. Isso é evidente quando os compositores falam sobre o processo de criação de suas toadas. No entanto, mais importante ainda para esses compositores, é mostrar a arte, a cultura, a habilidade e a criatividade dos artistas parintinenses, que não se sabe de onde vem, mas que é natural ao ambiente cultural da cidade. De onde vem tanta habilidade, essa infinita criatividade? Uns dizem que vem com a cheia do rio Amazonas, trazida lá do alto dos Andes. Outros alegam que é realmente dádiva divina. Será que está na memória genética, na marcante influência indígena do povo parintinense? Verdade é que – e em muitos outros – aspectos, Parintins é única. Em nenhum outro lugar da região Norte faz-se tanta arte, com tamanha intensidade e facilidade. E não apenas para o festival. Em qualquer canto da cidade, basta olhar em volta, para as delicadas casinhas de madeira, pintadas de azul e/ou de vermelho, com padrões gráficos e proporções de fazer inveja a Mondrian! A cada ano aumenta o número de artistas e artesãos que começam a ter seu trabalho reconhecido e admirado. O parintinense é talentoso, sagaz, inteligente e bemhumorado. (VALENTIN, 2002, p.158)

Portanto, não é fácil falar sobre um assunto como o processo de criação de artistas diferentes entre si, mas com a criatividade fazendo parte do trabalho artístico de cada um dos entrevistados. Alguns pesquisadores tentam descobrir o que faz a diferença nas obras desses artistas para demonstrar se é o ambiente ou se realmente existe algo que contribui para tanta  

303  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   habilidade. A festa do boi-bumbá ainda é pouco conhecida, apesar da exposição na mídia, e faz-se necessário cada vez mais “preservar e divulgar a arte parintinense, valorizando cada vez mais o talento e a criatividade deste povo”. (VALENTIN, 2002, p.158) CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de criação, segundo Willemart (1993), tem dois momentos importantes, a saber: uma preparação que consiste em anotar tudo o que interessa sem critérios aparentes, como observações de viagens, trechos de livros, nomes estranhos, etc.; e uma preparação imediata nos rascunhos. (p. 15-6). No entanto, durante o decorrer das entrevistas, não se percebe exatamente esses momentos no discurso dos entrevistados, eles quase não utilizam o rascunho para efetivar suas criações, pelo contrário, os mais antigos ressaltam a inspiração como ponto de partida para o ato de criar suas obras artísticas e os mais novos geralmente partem da pesquisa, sem deixar de mencionar a inspiração ou intuição como parte integrante de seus trabalhos. Bordini (1995, p. 13) em sua análise da obra de Érico Veríssimo afirma que “discutir a criação literária significa, antes de tudo, desafiar o transitório, porque o objeto a ser examinado só se entrega à investigação por vislumbres, em processo, ou já transmudado em obra, quando sua origem desvaneceu”. Essa dificuldade foi percebida durante as entrevistas com os compositores parintinenses, pois alguns afirmaram a presença de rascunhos, porém outros produzem diretamente utilizando um instrumento musical e não há preocupação em registrar as produções de arte. Todavia, é evidente em todas as falas dos entrevistados, a admiração, o carinho e a exaltação ao boi de sua preferência, e é também perceptível que cada um deles tem experiência suficiente para criticar o rumo que o boi-bumbá tomou nos últimos anos. As transformações incomodam principalmente os compositores mais antigos, aqueles que não conseguem mais colocar suas composições em evidência nas agremiações folclóricas, mas que continuam criando, mesmo que seja para as toadas ficarem guardadas. Já os compositores atuais, os quais continuam no mercado com suas toadas, estes são menos críticos, pois conseguem com facilidade acompanhar as mudanças, até mesmo porque não viveram em tempos anteriores nesses bumbás. Em resposta aos diversos questionamentos colocados neste artigo, acredita-se que alguns elementos poéticos enfatizados por Graça (1999), Aristóteles (1992) e Platão (1988) em suas obras estão presentes nas criações artísticas dos compositores parintinenses, essencialmente aqueles que falam sobre rima, ritmo, musicalidade, inspiração e intuição, os  

304  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   quais foram os mais comentados durante as entrevistas. Além disso, pesquisadores e estudiosos têm enfatizado a questão do ambiente cultural de Parintins ser propício à disseminação da criatividade artística latente entre os habitantes locais e das redondezas. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. Eudoro de Souza [trad.]. São Paulo: Ars Poética, 1992. BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Érico Veríssimo. Porto Alegre: L&PM/EDIPUCRS, 1995. FERNANDES, Ana Rúbia Figueiredo. Festival folclórico: o que muda em Parintins? In: SOMANLU. Revista de Estudos Amazônicos. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Natureza e Cultura na Amazônia, da Universidade do Amazonas. Ano II, nº 2: edição especial. Manaus: Editora Valer, 2002. GRAÇA, Antônio Paulo. Como funciona a poesia. Manaus: Editora Valer, 1999. NOGUEIRA, Wilson. Festas Amazônicas: boi-bumbá, ciranda e sairé. Manaus: Editora Valer, 2008. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1987. PIMENTEL, Ângelo César Brandão. Parintins: turismo e cultura. SOMANLU. Revista de Estudos Amazônicos. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Natureza e Cultura na Amazônia, da Universidade do Amazonas. Ano II, nº 2: edição especial. Manaus: Editora Valer, 2002. PLATÃO. Íon. Victor Jabouille [trad.]. 2.ed. Lisboa: Editorial Inquérito Limitada, 1988. SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3.ed. revista. São Paulo; EDUC, 2008. VALENTIN, Andreas. Parintins: brincando com arte. SOMANLU. Revista de Estudos Amazônicos. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Natureza e Cultura na Amazônia, da Universidade do Amazonas. Ano II, nº 2: edição especial. Manaus: Editora Valer, 2002. WILLEMART, Philippe. Universo da criação literária: crítica genética, crítica pósmoderna? São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.

 

305  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A INTRODUÇÃO DE “A GUIDE TO MUSICAL ANALYSIS”, DE NICHOLAS COOK: UMA TRADUÇÃO Márcio Pacheco de Carvalho Universidade do Estado do Amazonas Este trabalho consiste na tradução, da língua inglesa para a portuguesa, da Introdução do livro A Guide to Musical Analysis (“Guia de Análise Musical”), de Nicholas Cook, publicado pela primeira vez em 1987. Nele, seu autor apresenta as práticas analíticas mais influentes de até o final dos anos 80 e estabelece reflexões revigoradas e profundas em torno das mesmas. Ele refuta a possibilidade de a análise musical ostentar uma condição científica por excelência. Para ele, é um engano sujeitar a obra musical ao método analítico, na busca por validar um modelo teórico, como se o mesmo possuísse um estatuto científico autônomo. A abordagem de Cook prefere considerar as qualidades específicas de cada peça e manter sempre em mente que tipo de perguntas determinado método pretende responder sobre uma música em análise. Por isso, ele adverte para a necessidade de se entender com clareza os pressupostos que fundamentam um método de análise musical, à luz dos quais uma leitura possível da obra se faz; o autor do Guide também se preocupa com a questão de em que situações musicais cada método pode ser bem sucedido ou não. Todas essas concepções ficam claras já desde a Introdução, e nos inspiram afirmar encontrarmos um Cook numa espécie de atitude estruturalista interpretativa, preocupado menos com questões epistemológicas, e mais com questões relacionadas ao fazer analítico. Cook publica seu Guide numa época de predominância dos referenciais estruturalistas e positivistas em análise musical. Contudo, ele no mínimo questiona e revisa essa lógica. PALAVRAS-CHAVE: Análise Musical; Métodos; Questionamentos; Fazer Analítico. “Introdução”, traduzida de “Introduction”, do livro A Guide to Musical Analysis (“Guia de Análise Musical”) Nicholas Cook Tradução: Márcio Pacheco de Carvalho Há algo de fascinante na verdadeira ideia de analisar música. Seguramente, a música se encontra entre as mais impressionantes das artes, pelo seu poder de mexer com as pessoas profundamente, tenham elas, ou não, qualquer perícia técnica ou entendimento intelectual em música. Ela mexe com as pessoas involuntariamente, até mesmo subliminarmente, e tudo isso ainda se dá por meio de técnicas aparentemente das mais precisas e racionais. Se umas poucas combinações de valores de altura, duração, timbre e intensidade têm o poder de abrir os mais ocultos conteúdos do ser espiritual e emocional do homem, o estudo da música deve ser uma  

306  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   chave para o entendimento da natureza humana. A música é um código no qual os segredos mais profundos da humanidade são escritos: este impetuoso pensamento assegurou aos estudos musicais seu lugar central no pensamento antigo, medieval e renascentista. E embora o estudo da música não mais ocupe uma condição tão elevada assim nos círculos intelectuais, algumas das mais importantes tendências atuais nas ciências humanas ainda lhe devem algo. Por exemplo, o estruturalismo: Basta ler um pouco de Levi-Strauss para perceber quão grande influência exerceu, a música, sobre seu pensamento. Este livro, no entanto, é muito mais modesto em sua alçada. Versa sobre o processo prático de examinar peças musicais a fim de descobrir, ou de decidir, como elas funcionam. E isto é fascinante, porque, ao analisar uma peça musical, você a está, com efeito, recriando para si; você termina com a mesma sensação de posse que um compositor experimenta sobre uma peça composta por ele. Analisar uma sinfonia de Beethoven significa pôr-se em convívio com ela, por um dia ou dois, semelhante em muito a um compositor com uma obra em curso: convivendo com a música dia e noite, você desenvolve uma espécie de intimidade com ela que dificilmente alcançaria de qualquer outra maneira. Você experimenta uma vívida sensação de se comunicar diretamente com os mestres do passado, o que pode ser uma das mais agradáveis experiências que a música tenha a oferecer. E desenvolve um conhecimento intuitivo sobre o que funciona ou não funciona em música, o que está correto ou não, que em muito ultrapassa nossa capacidade de formular tais coisas em palavras ou explicá-las intelectualmente. Essa qualidade de abordagem confere à análise um valor especial no treino composicional, em contraste com os velhos livros de teoria e exercícios estilísticos, que reduziam as conquistas do passado a um conjunto de normas e regras pedagógicas. Não surpreende, portanto, que a análise musical tenha se tornado a espinha dorsal do ensino de composição. Mas se a análise permite apreender peças musicais de uma forma bastante direta, estas não lhe revelarão seus segredos a menos que você saiba quais perguntas fazer a elas. Aqui é onde entram em cena os métodos analíticos. Há uma grande quantidade deles, os quais, à primeira vista, parecem muito diferentes; mas, de fato, tantos deles fazem a mesma sorte de indagações. Eles indagam se é possível recortar uma peça musical em uma série de seções mais ou menos independentes. Indagam como os componentes da música se relacionam uns com os outros e quais relações são mais importantes do que quais outras. Mais especificamente, eles indagam até onde esses componentes extraem seu efeito do contexto em que se encontram. Por exemplo, uma dada nota tem um efeito quando faz parte do acorde X e outro efeito, muito diferente, quando faz parte do acorde Y; e o efeito do acorde X, por sua  

307  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   vez, depende da progressão harmônica na qual ele toma parte. Ou ainda, um determinado motivo pode ser inexpressivo em si mesmo, mas adquirir uma relevância impressionante no contexto de um determinado movimento como um todo. E se você conseguir resolver como isto se dá, alcançará renovar seu entendimento de como a música funciona. É difícil imaginar que pudesse haver algum método analítico o qual não fizesse perguntas sobre essas coisas – sobre divisão em seções, sobre as importâncias das diferentes relações e sobre a influência do contexto. Mas, a despeito de tal unidade de propósitos, os vários métodos de análise são frequentemente adotados de maneira isolada ou, pior ainda, em acrimoniosa rivalidade entre si. Muito amiúde, um analista vai adotar um método e ignorar ou denegrir os demais: tal que se tem o analista motívico, o analista schenkeriano, o analista semiológico, e assim por diante. Cada qual aplica seu método exclusivo para qualquer música que lhe cruze o caminho e, no limite, o resultado é o equivalente musical de uma máquina de salsicha: tudo o que entra sai brutamente empacotado, uniformizado. Isto acontece especialmente quando o analista tenha vindo a acreditar que o propósito de uma peça musical seja o de provar a validade de seu método analítico, ao invés de o propósito deste ser o de lançar luzes sobre aquela: Em outras palavras, quando ele tenha se tornado mais interessado na teoria do que em sua aplicação prática. Não acho possível desdizer isto em alguns casos. Rudolph Reti é um bom exemplo do que estou dizendo: Ele está sempre ansioso, acima de tudo, para provar sua teoria como certa, sem consideração pelas particularidades da música sobre a qual esteja falando. E basta dar uma olhada nos periódicos especializados de hoje em dia para perceber o quanto se costuma premiar a formulação de métodos cada vez mais precisos e sofisticados, mais ou menos como um fim em si mesmo. No decorrer dos últimos vinte anos, a análise musical se tornou profissionalizada: entrou em voga salvaguardar analistas, ao invés de, simplesmente, músicos que porventura venham a analisar. Eu, particularmente, desgosto da tendência da análise a se transformar em uma disciplina quase científica com direitos próprios, essencialmente independente dos interesses práticos da performance, composição ou educação musicais. Na verdade, eu não acredito que a análise resista a um exame intenso quando vista dessa maneira: ela simplesmente não apresenta base teórica suficientemente sólida para tanto. (Isto será detalhado no Capítulo 6.) Penso que a ênfase tantas vezes depositada na objetividade e imparcialidade só pode desencorajar o envolvimento pessoal, que é, afinal de contas, a única razão sensata para quem quer que seja se interessar por música. Também não vejo mérito intrínseco no desenvolvimento de métodos cada vez mais rigorosos e sofisticados: embora haja áreas analiticamente subdesenvolvidas (das quais, música antiga é um importante exemplo), creio  

308  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   que, em geral, nossas técnicas atuais estão bastante bem-sucedidas. Da maneira como vejo, o importante não é tanto inventar novas técnicas, nem prosseguir refinando interminavelmente as que já temos, mas antes fazer o uso mais pleno possível das mesmas. Uma maneira de torná-las mais úteis é empregá-las em combinação umas com as outras, e alguns importantes passos nessa direção foram dados nos últimos anos. (Estou pensando, por exemplo, na síntese de Epstein das técnicas schenkeriana e motívica, na formalização feita por Lerdahl e Jackendoff de técnicas esquadrinhadas a partir de Schenker e Meyer e no tratamento schenkeriano de Forte e Gilbert das formas tradicionais de música tonal: não é por acaso que a análise schenkeriana é o fator comum a todos estes casos.) Mas o jeito mais importante como as ferramentas analíticas de hoje em dia podem se tornar mais úteis é mais pessoas utilizaremnas. Eu gostaria de ver o instrumental delineado neste livro incorporando-se à aparelhagem profissional do musicólogo histórico e do etnomusicólogo. Coisa que só pode acontecer se a análise for vista como um componente central da educação musical, e não como algum tipo de especialismo esotérico. Este livro é, então, essencialmente pragmático em sua orientação. Ele é primariamente um guia prático de análise musical como ela é, e não um tratado teórico sobre a análise musical como ela deveria ser. O que significa refletir os prejuízos e limitações da prática corrente. Por exemplo, ele reflete o interesse avassalador de tantos analistas em o que confere unidade e coerência às obras primas, visando respostas principalmente nas estruturações formais e harmônicas de composições individuais. É possível argumentar que tais prejuízos e limitações sejam perfeitamente justificáveis; por exemplo, se os analistas estão menos interessados em estrutura timbrística do que em harmonia e forma, isto pode ser simplesmente porque estrutura timbrística seja menos interessante, ou – o que dá no mesmo – menos submissa à compreensão racional. Mas é incontestável haver, aqui, pressupostos tácitos sobre a natureza da análise musical, e este livro está modelado mais ou menos dentro do esquema desses pressupostos.106 A orientação pragmática do livro é refletida também em sua organização. A primeira parte delimita, um de cada vez, o que considero os mais importantes métodos de análise musical correntes no mundo de língua inglesa. A apresentação é método a método (ao invés de organizá-la, por exemplo, por parâmetros musicais), porque cada qual deles envolve um conjunto característico de crenças sobre música e os propósitos do fazer analítico, e é                                                                                                                 106

Para visões críticas sobre análise relacionada ao campo completo dos estudos musicais, veja Musicology, de Joseph Kerman (Fontana/Collins, 1985), Capítulo 3, e Structural and Critical Analysis, de Leo Treitler, em Holoman e Palisca (eds), Musicology in the 1980s, Da Capo Press, 1982, p. 67-77. (NA)

 

309  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   importante ficar claro quais sejam tais crenças: de outra forma, você se arrisca a aplicar as técnicas de qualquer dado método de maneira indiscriminada e, assim, enterrar-se em uma montanha de dados que não lhe signifiquem realmente nada. Contudo, se essas crenças incorporadas a um método analítico são verdadeiras ou não em âmbito teórico não é algo tão importante: o que interessa é o quanto, e sob quais circunstâncias, o método nelas baseado revela-se útil. A questão de como decidir qual método adotar – ou se se improvisa uma nova técnica – em cada conjunto de circunstâncias é abordada na segunda parte do livro, na qual o ponto de partida são determinadas composições, ao invés de dados métodos. Nessa segunda parte, cada uma das análises foi projetada para realçar algum diferente aspecto, do procedimento analítico, e a ideia é que cada capítulo deva ser lido como um todo. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA COOK, Nicholas. A Guide to Musical Analysis. Oxford: Oxford University Press, 1994.

 

310  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

A INTERAÇÃO ARTÍSTICA MÚSICA E DANÇA E SEUS ASPECTOS SOCIOCULTURAIS Marcos Alan Costa Farias107 RESUMO O presente artigo apresenta um estudo bibliográfico que faz alusão a interação artística, música e dança, apresentando essas atividades e seus aspectos socioculturais. A música possui a flexibilidade de alcançar diversas áreas artísticas, a dança é uma que ao longo do tempo tem se relacionado com bastante frequência e ambas constroem aspectos de grande relevância. No decorrer deste se encontram abordagens que condizem sobre os aspectos inerentes a música e a dança, e, assim como, ambas se relacionam e constituem em duas atividades socioculturais importantes para o ser humano. Para a realização deste estudo foi realizado uma revisão na literatura, visando questões que embasassem a fundamentação teórica, a construção e o desenvolvimento deste artigo. Palavras-chaves: Música, Dança, Aspectos socioculturais.

INTRODUÇÃO O universo artístico é bastante variado, o mundo das artes é completo por atividades que a tornam sociável. A música é uma dessas atividades, a mesma possui grande relevância no campo das artes. A natureza musical é vasta e flexível a diversas outras atividades artísticas, a música é comunicativa com diversas áreas de conhecimento e isso a torna sociável, neste sentido, aspectos socioculturais são notáveis como a socialização da música com diversos outros campos, ainda, a música proporciona a diversidade cultural por estar ligada a diferentes manifestações. A dança por sua vez, constitui em uma forma de conhecimento que transmite o que deseja através do corpo, a dança, assim como a música também possui a flexibilidade de alcançar diversas áreas artísticas e outros campos de conhecimento. É também uma arte de aspectos socioculturais, assim, a dança está em algumas situações ligadas a outras áreas e a ainda possui uma diversidade cultural vasta, isso pelo fato da dança está associada a diversas culturas.                                                                                                                 107

Graduado em Licenciatura Plena em Música pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Email: [email protected].

 

311  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Logo se observa que música e dança mesmo possuindo suas peculiaridades, possuem características em comum. Ambas formam uma interação artística de bastante utilidade, música e dança são artes que se comunicam entre si e formam uma relação que possuem bastantes aspectos socioculturais, como a interação do homem com o meio em que vive, o acesso à cultura e a formação da identidade cultural do indivíduo. A MÚSICA A música teve seus primeiras formas de manifestação através da voz, sendo antigamente uma das únicas formas utilizadas para se obter música, uma outra forma era através do corpo e de utensílios que pudessem servir como uma possibilidade sonora, essas foram uma das primeiras formas de manifestação sonora do homem. Bündchen destaca que: [...] podemos pensar que o canto aliado à dança foi uma das primeiras manifestações musicais do homem. Dessa forma, poderíamos dizer que o ato de fazer música teve seus primórdios no ritual e seguiu, na Antigüidade, apresentando funções religiosas, cívicas e sociais. [...]. (2005, p. 22).

A música ao longo dos tempos passou por diversos períodos e cada fase proporcionou mudanças e características que tornaram a música como ela é atualmente. Com o passar dos tempos a música ganhou grandes proporções no âmbito social, hoje a música se faz presente nas mais diferentes formas. Atualmente a música se manifesta em diversas possibilidades, cantar, tocar, ensinar música, enfim, a música ultrapassou muitas fronteiras que a possibilitou grande ênfase no fazer artístico. O universo musical se tornou com o passar do tempo, uma forma de manifestação do homem e isso em diversas possibilidades. A música está fortemente presente na sociedade, Hummes destaca a realidade da música no século XXI: [...] nos defrontamos com os mais variados suportes em que a música está presente. Ela está nos meios de comunicação, nos telefones convencionais e celulares, na Internet, vídeos, lojas, bares, nos alto-falantes, nos consultórios médicos, nos recreios escolares, em quase todos os locais em que estamos e em meios que utilizamos para nos comunicarmos, ou nos divertirmos, e também nos rituais de exaltação a determinadas entidades, enfim, nos eventos mais variados possíveis. (HUMMES, 2004, p. 17-18)

A música não só está presente na sociedade, mas também possui várias funcionalidades para esta. Através da música é possível proporcionar entretenimento, é possível se comunicar, a música ainda pode ser ensinada e, este ensino, pode ocorre de várias formas, inclusive através da relação com outros campos das artes e outras áreas de estudo.  

312  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A diversidade musical é algo muito presente na cultura de diversas sociedades. Existem sociedades de culturas plurais, lugares que possuem suas particularidades. É possível encontrar contextos socioculturais distintos, são realidades diferentes, isso tudo, torna cada sociedade pertencente de uma identidade cultural própria e a cada lugar isso se aplica também a música, desta forma, obtendo uma variedade musical. Compreender a cultura em que o homem vive, é uma possibilidade de compreensão de suas relações com a música, pois a cultura abrange diversas características, inclusive a música. A DANÇA A dança é uma atividade que se desenvolve através do corpo e este é o instrumento essencial para a construção da dança. O movimento corporal é a principal característica da dança, é através da construção de um determinado movimento realizado pelo corpo que a dança se desenvolve. O homem está sempre em movimento, realizando alguma atividade, como correr, pular, saltar, girar, enfim, na busca de compreender o seu corpo, pois o ser humano expressa todos seus sentimentos através dele, o corpo é algo que ocupa espaço e tem forma, interage com o universo ao redor e possui expressão (BOTELHO, 2003). O movimento está presente em diversas situações do cotidiano do homem e através do movimento surge a dança, isso ocorre através da interação do indivíduo com o movimento que este realiza, Soares destaca que: O recurso básico da linguagem da dança é o movimento e o gesto, diferentes dos movimentos motores usuais, pois se transformam em dança a partir de fatores espaciais, temporais, rítmicos, dinâmicos que exigem novas posturas e atitudes, o que poderíamos dizer, transformam-se a partir da intenção neles impressa. (SOARES, 2011, p. 36).

O movimento e o gesto se tornam recursos da dança a partir do momento em que o indivíduo impõe suas atitudes, no sentido de transforma-los em dança, isso ocorre através da maneira como ele ocupa e modifica o espaço, o tempo utilizado e o ritmo atrelado aos movimentos e aos gestos. O fato do homem sempre movimentar o corpo, remete a ideia que o movimento dançado é algo que acontece a muito anos, desta forma, “[...] “considera-se que a figura do primeiro homem dançando tenha 14.000 anos” [...]”. (BOURIER, 2006, p. 2 apud SOARES, 2011, p. 21).

 

313  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O uso do corpo para movimentos dançados é uma manifestação de muitos anos, Botelho destaca que: O movimento dançado é datado de muitos anos, e de todos os usos do corpo, o mais desenvolvido até hoje por todas as culturas foi á dança. Ela foi um dos primeiros transbordamentos emotivo de manifestações desordenadas dos afetos, iras e recusas, a partir das quais a própria estrutura do corpo revela uma grande paixão e atração por ritmos. Como nos mostram os desenhos rupestres, o homem primitivo já dançava, expressando pelo movimento corporal seus medos, seus louvores, suas alegrias por uma boa colheita e caça. (2003, p. 9).

A dança pode ser um conjunto de movimentos, sendo estes realizados por coreografias determinadas ou apenas por movimentos não coreografados e é neste sentido que a dança cria forma e se torna possível na sociedade. MÚSICA E DANÇA E ASPECTOS SOCIOCULTURAIS A música e dança são duas atividades de grande relevância dentro do universo artístico, ambas constroem um fazer bastante apreciável e possuem aspectos socioculturais de grande valia. A música e dança acompanham o homem a muito tempo, Soares destaca que: O surgimento da música e da dança entrelaça-se à origem do próprio homem. Fácil é constatar, que o homem nasceu num mundo repleto de sons, concebendo-se a música desde suas expressões mais rudimentares no seio da natureza e das várias formas de vida que ela produziu. Acredita-se, como todas as artes, que a gênese de ambas seja fruto de uma necessidade básica do homem – a necessidade de se exprimir. Neste universo, o ambiente sonoro, os movimentos, os ruídos produzidos ao seu redor e através de seu próprio corpo, a exploração da própria voz, fizeram parte da descoberta de si mesmo e do mundo que o envolvia. [...]. (2011, p. 20).

A música e dança são atividades artísticas que ao longo dos tempos estão presentes no mundo: A música é com a dança a mais velha e antiga de todas as artes. Mais justo pensar, que ambas surgiram quase que concomitantemente e que caminharam juntas ao longo dos séculos, acompanhando a evolução do pensamento humano e do contexto histórico, político e social em que estavam inseridas. (Ibid).

Música e dança aos longo dos tempos tem se relacionado e essa relação tem se mostrado essencial para a formação da identidade cultural de diversas sociedades. A música provoca sensações diversas e movimentos que são respostas à escuta, esses movimentos são corporais e o corpo quando solicitado nos conhecimentos musicais, parece assistencial na concentração e na sensibilidade perceptiva, desta forma, ocorrendo a possibilidade de fazer várias relações no momento da interação (BÜNDCHEN, 2005).

 

314  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A relação música e dança é um fazer artístico aplausível, ambas se completam. Estas duas artes possuem um elo muito forte, em muitos casos existe uma dança que está relacionada a determinadas músicas, isso ocorre em manifestações tradicionais, em outros casos existe uma determinada dança para algum estilo musical, isso ocorre frequentemente nas músicas da mídia, existem músicas em que a letra incentiva ao movimento de uma determinada coreografia. São casos que estão diretamente ligados a aspectos socioculturais, mostrando que existem muitas formas em que, música e dança se fazem presentes. Essa relação é frequente, é muito difícil ter dança sem música, ambas possuem um ligação importante. Música é dança são formas de comunicação. Botelho afirma que dizemos através da dança “[...] o que não conseguimos comunicar de outras maneiras. A dança vem da necessidade do indivíduo comunicar algo. As diversas formas artísticas existem para responder as diferentes necessidades de expressão do ser humano.” (2003, p. 9). Na música se encontra também essa característica de comunicação. A música consegue transmitir sentimentos, ela impulsiona o ser humano a se expressar. Música e dança talvez seja uma das relações mais participativas entre si, Botelho destaca: [...] O movimento e a música caminham juntos e se completam um com o outro. Dança sem música e ouvir música e não se movimentar é quase que impossível, pois as ligações dos nervos auditivos estão largamente espalhadas pelo nosso corpo e são mais longas que quaisquer outros nervos. (2003, p. 10).

O ser humano ao ouvir música, senti vontade de se movimentar, isso em muitas ocasiões ocorre de forma natural, o mesmo ocorre quando o indivíduo realiza determinado movimento e este impulsiona a atividade de cantar. Música e dança se correspondem. Na dança o movimento corporal corresponde ao ritmo musical, a dança é sempre executada de acordo com a música. No momento em que “[...] se dança uma música a primeira prioridade é sincronizar os movimentos do nosso corpo aos movimentos sonoros [...]” (FERNANDES, 2006, p. 11). A sincronia da música com a dança é um dos momentos essenciais, pois é neste momento que a relação entre ambas se torna mais consistente. Ainda sobre a ação de sincronizar música e dança, Fernandes afirma: Considerando que a música cria sua própria dimensão de tempo onde a pulsação é a sua medida, mas ela está fora da nossa linha cotidiana de tempo, a ação de dançar uma música tende a entrar naquela dimensão de tempo, porque o nosso objetivo maior é sincronizar os nossos movimentos com a música. [...]. (2006, p. 11).

A música e dança a partir do momento em que se comunicam, ambas iniciam um processo de transmissão, a música possui o papel de incentivar o corpo do indivíduo para o

 

315  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   movimento e o corpo é receptivo e desta maneira, corresponde a música, assim, proporcionando a dança. “Cada manifestação artística é caracterizada pela especificidade de sua linguagem. Os recursos de cada linguagem expressiva estão atrelados ao desenvolvimento técnico de cada época e de cada cultura.” (SOARES, 2011, p. 36). A música e dança são linguagens que se expressam em conjunto, propiciando a compreensão e o desenvolvimento cultural das sociedades. A música e a dança contribuem para o desenvolvimento sociocultural do indivíduo e são presenças frequentes nas diferentes culturas. Do ponto de vista sociocultural, a música e a dança sempre caminharam juntas, desta forma, ajudando o homem a adquirir sua identidade particular de acordo com o grupo em que vive, a música e a dança dão sentido a identidade cultural do indivíduo, agregando significados e desenvolvendo a sociedade na qual o indivíduo está inserido. CONSIDERAÇÕES FINAIS A música e a dança foram umas das primeiras manifestações do homem, essas manifestações surgiram no intuito do homem encontrar uma forma de interagir com o meio em que vive, sempre buscando formas de se comunicar com o mundo através de sua arte, desta forma, música e dança tornaram instrumentos artísticos de suma importância na vida do homem. Essas duas artes evoluíram com o passar dos tempos. Antes eram apenas manifestações que o homem encontrava para interagir com si mesmo e com o mundo ao seu redor, mas elas foram se transformando e atualmente, música e dança estão presentes em diversas situações do cotidiano do homem. A música e dança são importantes na construção da identidade cultural do homem. Música e dança são elementos fundamentais na vida sociocultural do indivíduo, são linguagens distintas, que possuem suas características próprias, mas que apresentam uma relação de grande relevância, essas artes possibilitam informação e aprendizagem, o fato de ambas caminharem em diversas situações juntas contribuiu e contribui de forma positiva para a construção e compreensão de várias sociedades.

 

316  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOTELHO, Iguaraciara da Silva Zeferino. A dança e a música como elementos construtores no processo ensino–aprendizagem. 2003. Disponível em: . Acessado em: 20/09/2012. BÜNDCHEN, Denise Blanco Sant’anna. A relação ritmo-movimento no fazer musical criativo: uma abordagem construtivista na prática de canto coral. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa de Pós-graduação. Porto Alegre, 2005. Disponível em: . Acessado em: 10/11/2012. FERNANDES, Adriana. O PARADOXO DE ANA: MÚSICA E DANÇA – UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO DESTA RELAÇÃO. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Vol. 3, Ano III, nº 4. 2006. Disponível em: . Acessado em: 22/08/2013. HUMMES, Júlia Maria. Por que é importante o ensino de música? Considerações sobre as funções da música na sociedade e na escola. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 11, 1725, set. 2004. Disponível em: Acessado em: 18/11/2012. SOARES, Daniela Luciana Pereira. Diálogos entre música e dança: A Formação Musical do Artista da Dança. Monografia do Curso de Especialização em Educação Musical – Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011. Disponível em: . Disponível em: 22/08/2013.

 

317  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   PROCESSOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA NAS PERSPECTIVAS DE LUIGI PAREYSON, FAYGA OSTROWER E HOWARD GARDNER Meireane R. R. de Carvalho Universidade do Estado do Amazonas - UEA Esta comunicação tem o propósito de apresentar pressupostos teóricos sobre criação artística a partir das concepções de Pareyson (1993), Ostrower (1987) e Gardner (1997), os quais foram selecionados como referenciais para este estudo por compreender o próprio processo de criação de uma forma multifacetada. Os processos formadores da criação artística que serão apresentados por Pareyson, Ostrower e Gardner, ao longo desta comunicação, não constituem um pensamento fechado, pois são reconhecidos pelos próprios autores como experiências estéticas que aludem possibilidades de criações estéticas. Considerá-los é, portanto, ampliar referenciais acerca dos princípios que norteiam significativamente o estudo da criação em dança. A relevância desses autores é que eles discutem em seus estudos a natureza da criação, correlacionando-a com questões como processos intuitivos, processos cognitivos no desenvolvimento da criação e a experiência estética na formação da obra de arte. Daí a contribuição desses pensadores para correlacionarmos diferentes perspectivas sobre processos criativos com a criação em dança. Palavras-chave: Processo de criação. Formatividade. Dança. INTRODUÇÃO A fundamentação teórica está centrada em estudos que discutem processos de criação, por isso, optou-se por selecionar autores aqueles que, mesmo apresentando elementos convergentes, fazem uma abordagem ao campo dos processos criativos em uma dimensão estética, intuitiva e cognitiva. O autores, relavam em seus conceitos, perspectivas teóricas que tratam sobre: o fazer da criação considerando a própria experiência do artista como parte primordial do processo de formação da obra; a criação artística a partir do perceber, sentir e fazer sob a concepção cognitivista do desenvolvimento humano na arte; o processo de criação sob o campo da intuição em que no artista, a capacidade de criar, imaginar, associar e relacionar sobre as coisas ocorre por que o homem possui uma natureza intuitiva. E é sobre essas três vertentes conceituais que pretendemos abordar neste estudo. PROCESSO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA – LUIGI PAREYSON

Dentro dos aspectos discutidos por Pareyson, a pesquisa artística se fundamenta em dois pontos abordados quanto à teoria da formatividade, a saber: conteúdo e matéria – o conteúdo refere-se à teoria e a toda a vida do artista; e matéria diz respeito à matéria física em sua constituição natural. Conteúdo e matéria são indissociáveis, sua separação nesse contexto  

318  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   se faz mediante a necessidade de explicar acerca de seus conceitos, entendendo, assim, que ambos (conteúdo e matéria) não são vistos pelo autor de forma separada no processo de criação. Esses aspectos da formatividade (conteúdo e matéria) estão presentes em diferentes estados da criação, como aqueles que envolvem operação, atividade e experiência humana. Assim, Pareyson (1993) observa a operação das ações formativas como inerente às experiências e interesses do homem. Segundo o autor: Como operação própria dos artistas a arte não pode resultar senão da ênfase intencional e programática sobre uma atividade que se acha presente em toda a experiência humana e acompanha, ou melhor, constitui toda manifestação da atividade do homem (PAREYSON, 1993, p. 20).

O operar humano é indissociável das experiências estéticas, pois elas contêm um caráter ativo de receptividade e atividade que remetem a estímulos, informações, correlações com o contexto do estudo e a vida do artista. Assim, no operar ocorre o acontecimento, que é o próprio processo criativo em desenvolvimento. Toda atividade operativa é sempre formativa, porque forma realizando, fazendo, criando, compondo, pensando e agindo ao seu propósito. A operação artística é formação, portanto, é um processo de invenção e produção que envolve uma intencionalidade em que toda a vida do artista se coloca sob o prisma de caráter formativo. Assim, colocam-se no processo formativo: pensamento, reflexões, atos, costumes, aspirações, afetos, infinitos aspectos da experiência humana que caminham em uma direção formativa, com intuito formativo e capacidade formativa: “o artista, pensa, sente, vê, age através de formas” (PAREYSON, 1993, p. 26). Desta maneira, estando sob o fazer da arte, o artista nesse processo operativo da obra imprime o seu fazer, e seus atos orientam seus objetivos, que são a própria arte. Partindo do pressuposto que a formatividade está relacionada às experiências humanas e que estas colaboram naturalmente com as experiências estéticas, pela própria relação do artista com o mundo, pode-se dizer que o artista é, também, o conteúdo da arte, que reage ao ambiente histórico onde residem os próprios pensamentos, costumes, sentimentos, ideais, crenças e aspirações. Neste contexto, “a obra de arte tem como conteúdo a pessoa do artista, com determinada e irrepetível espiritualidade”108 (PAREYSON, 1993, p. 31).                                                                                                                 108

A espiritualidade aqui adotada pelo autor refere-se não somente ao sentido religioso, mas remete às crenças, valores mortais, experiências, suas ideias, aspirações, escolhas, crenças etc., que se colocam sob o signo de formatividade.

 

319  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Nesta associação da obra de arte com a pessoa do artista, Pareyson (1993) refere-se ao conteúdo do processo de criação como todo pensar e o realizar das ideias do artista, estando relacionado a vivências e experiências, o que se dá a partir do conhecimento do artista e suas relações com o ambiente. Conteúdo, nesse sentido, expressa a noção da vida do artista. Referindo-se à matéria como qualquer forma ou fonte geradora que possa germinar ideias para criação artística, reforça, nesse sentido, a necessidade do exercício intenso sobre o que deseja enquanto experimento e obra artística. Conforme Pareyson (1993), a adoção primeira da matéria se reveste em experimentos e, desta forma, são ampliados os modos de utilizá-la e interpretá-la, constituindo o princípio da tensão da matéria109. Este experimento é um procedimento apontado por Pareyson e ocorre quando se estabelece a matéria a ser estudada, através do processo de manipulação, o que gera inúmeras possibilidades de se compreender e interpretá-la sob diferentes ângulos. Nesse entendimento, a manipulação é vista como um mecanismo gerador de criação e está em constante tensão formativa. Observa-se, neste contexto, a necessidade do exercício como forma de configurar um trabalho de experimentação e de vivências acerca do objeto de estudo. O exercício pode constituir tanto um processo de experimentações e improvisações acerca da matéria quanto o delinear de uma proposição durante o processo. Pareyson (1984) ressalta que, ao mesmo tempo em que se efetuam como tentativas, organizam-se como um exercício e podem se tornar um campo fértil de ideias. Para tanto, o artista adota a matéria para fazê-la sua, cujo resultado do experimento pode se mostrar favorável quando a materialização das explorações é satisfatória às intencionalidades do artista da obra, configurando, assim, nesse momento, a autonomia do artista. A materialidade enfocada por Pareyson (1984) está relacionada às configurações concretas do fazer, no fazer da criação artística, o que se dá a partir da prática, dos conhecimentos do campo teórico da pesquisa, das aspirações, dos desejos e do campo das ideias. A materialidade resulta, para o artista, em possibilidades de ações e de outras configurações da matéria que também devem ser reconhecidas como orientadoras no percurso do processo criativo, podendo corresponder como possibilidades sugestivas para o trabalho, ampliando direções novas.                                                                                                                 109

O princípio da tensão é cultivado no processo de criação, permite a identificação da matéria por meio da interpretação em que o artista a mantém e cultiva, e põe a sua matéria, por assim dizer, diante si, conferindo-lhe aquela independência necessária para um esforço de interpretação.

 

320  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   O autor mostra, ainda, a complexidade e a natureza constitutiva dessas experiências, ao mesmo tempo em que amplia o campo de visão sobre as experiências estéticas e sobre o processo criativo na vertente da pesquisa artística, o que pode ser correlacionado ao processo de criação na dança quando esta se efetua dentro dos aspectos criativos, tendo como pressupostos as experiências estéticas e humanas. O recorte metodológico que Pareyson (1993) apresenta está relacionado às metodologias próprias, sugeridas, criadas e experimentadas pelo artista, sendo as mesmas definidas no percurso da criação; todo o êxito da obra depende da escolha de técnicas, modos de realizar o processo aliados às experiências individuais, o que só é possível pelas tentativas. Nesse sentido, conforme o autor, as tentativas se dão a partir de um julgamento crítico, verificação e comparação, saindo, assim, do âmbito da busca para o âmbito das descobertas. Para se chegar a uma intencionalidade muitas ações acontecem, já que o processo de criação é constituído por diferentes formas de indagar a matéria. É, na realidade, um processo de investigação, capaz de provocar fontes geradoras de ideias desencadeadoras de estruturas, organização e configuração do trabalho artístico. Sendo assim, quanto maior forem as possibilidades sugeridas na criação, maior será o campo a ser acessado de materiais, de escolhas e de definição de uma intenção do objeto de criação.110 E, diante de possibilidades de referenciais (matérias), há o refinamento das ideias a partir de experimentos e de escolhas, afunilando, neste universo de informações, a composição estética e o propósito individual.

A INTUIÇÃO COMO DESENCADEADORA DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA – FAYGA OSTROWER

O conceito de intuição, exposto pela autora, é aplicado aos diversos campos das artes, apesar de, em alguns momentos, dedicar especial atenção às artes visuais. No entanto esse mesmo conceito é pertinente aos processos compositivos em dança. Segundo Ostrower (1987), ao configurar a forma, ao estudar a matéria ou explorar diversos materiais, exploram-se os processos intuitivos, são postas em operação as capacidades de operar cognitivamente na significação da forma, permitindo, ainda, visualizar                                                                                                                 110

Apesar de reconhecermos a importância da observação in loco para que se analise a prática pedagógica, o recorte feito para esta pesquisa utilizará os Projetos Pedagógicos e Planos de Curso para perceber indícios do uso de diferentes propostas e recursos de criação.

 

321  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   instantaneamente os acontecimentos de fenômenos, o que envolve a percepção e significação por meio das experiências. A intuição está relacionada ao momento de operação cognitiva que acontece repentinamente, aos aspectos relevantes e coerentes dos fenômenos que, por sua vez, são internalizados, são momentos em que o artista apreende, ordena, reestrutura e interpreta, nesse estado. Ao intuir, o artista ordena suas opções, compara, avalia, decide e dá visões de coerência, já que a intuição está na base dos processos criativos como operação cognitiva. O que caracteriza os processos intuitivos e os torna expressivos é a capacidade perceptiva, que é a forma pela qual a intuição se conecta com os processos de percepção e essa interconexão reformula os dados circunstanciais a um novo grau de essencialidade, tanto de intuição quanto de percepção, ou seja, “são modos de conhecimento, vias de buscar certas ordenações e certos significados” (OSTROWER, 1987, p. 57). Dessa forma, pode-se intuir sobre o mesmo dado da matéria em exploração, reformulando a própria matéria, liberando outra possibilidade de significação ou projetando melhor o entendimento acerca do mesmo pensamento, das ideias e da matéria do fenômeno. É importante percebermos que outros modos cognitivos atuam dentro desses acontecimentos, haja vista que da mesma forma que a intuição e percepção são processos dinâmicos que configuram uma busca e captura de “conteúdos significativos”, o intuir relaciona-se ao perceber. A percepção faz parte da intuição pela resposta aos estímulos de imagens referenciais, logo, a ação intuitiva acontece por meio de “operações mentais instantâneas e de nivelamento, de comparação, de construção de alternativas e de conclusão, essas operações envolvem o relacionamento e a escolha [...]” (OSTROWER, 1987, p. 67). Diretamente relacionada aos processos criativos, a intuição forma e faz, realiza modos de operação. Segundo Ostrower (1987), os processos intuitivos se relacionam com a forma, com os processos criadores – neles estão contidos os processos intuitivos, contudo são processos formadores. Vale salientar que intuindo se realiza um fazer, ou seja, se intuição envolve a capacidade de selecionar, relacionar e integrar os dados do mundo no intento de transformá-lo num sentido mais completo, toda essa operação é, senão, um concreto fazer. O formar, nessa condição, é o fazer da obra (OSTROWER, 1987). A partir dos conceitos propostos por Ostrower sobre a intuição, são apresentados alguns aspectos relevantes e basilares acerca do processo de criação em geral, o que nos permite correlacionar com os processos de criação em dança. No fazer artístico em dança a intuição é uma das constituições operativas da criação e acontece quando ocorrem explorações e vivências acerca de diferentes assuntos, dando  

322  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   possibilidade de maior recorrência a dados significativos. São os mecanismos geradores de criação (exploração, vivências, experimentação etc.) que dão acesso às experiências intuitivas. De modo mais específico, os processos geradores da intuição, como jogos, improvisação e outras diferentes técnicas de criação, promovem o contato com os materiais de estudo e dão vazão à criatividade e descobertas de potencialidades do coreógrafo ao seu objeto (matéria) de estudo. A intuição como base da atividade de criação gera significação do mundo a uma lógica singular no percurso da criação, torna-se um processo de apreensão do fenômeno por intermédio de processos sensório-perceptivos, implicando coerência, transformação e configuração da obra coreográfica. Em dança, as atividades sensório-perceptivas acerca da criação se efetuam a partir de processos operativos que se configuram a partir de experimentações, vivências e articulação de ideias que estimulam a discussão crítica e orientam acerca da pesquisa, do processo e do resultado coreográfico. Daí existirem diversas atividades de criação em dança que ativam a intuição para apreensão dos acontecimentos, tornando favoráveis os processos compositivos em dança, como a pesquisa coreográfica, que assume funções de significar os dados referenciais, analisando, selecionando, estruturando, experimentando, avaliando, de modo a compor ideias; experimentação de assuntos de interesse pessoal; abordagens de temas com experimentações corporais, dando-lhe a possibilidade de diferentes discursos e de interpretá-los; a manipulação e significação diversa do mesmo objeto de estudo; a reconfiguração do material de pesquisa, propondo outra perspectiva estética, ampliando seu discurso e possibilidade a outra leitura; a percepção do objeto de estudo para significá-lo em diferentes proposições; explorações de movimentos; improvisações. Os processos criativos em dança promovem, nesse sentido, a excitação da sensibilidade sensório-perceptiva, o que pode promover motivações para experiências artísticas. PROCESSOS CRIATIVOS A PARTIR DO SISTEMA QUE FAZ, PERCEBE E SENTE – HOWARD GARDNER

Os estudos de Gardner (1997) sobre os processos criativos trazem abordagens do desenvolvimento artístico a partir de três sistemas, quais sejam: o fazer, o perceber e o sentir. Na perspectiva desse autor, os processos criativos e sua abordagem conceitual aplicam-se a  

323  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   todas as formas de arte e da natureza humana. Nesse contexto, os sistemas apontados pelo autor transitam no âmbito da criação na perspectiva cognitivista do desenvolvimento humano na arte, área em que concentra seus estudos. No campo do desenvolvimento das habilidades artísticas, com a educação dos sistemas fazer, perceber e sentir, o indivíduo se torna capaz de operar, efetivamente, no processo artístico manipulando, compreendendo, relacionando com “os meios simbólicos de maneiras especificáveis” (GARDNER, 1997, p. 286). Sendo assim, os sistemas apontados pelo autor descrevem o sistema que faz, o que percebe e o que sente, como sistemas que operam no desenvolvimento humano e na atividade artística. De modo simplificado, as definições estão resumidas nos seguintes entendimentos: os resultados dos sistemas que faz são os atos ou ações; nos produtos do sistema que percebe estão as discriminações ou distinções; os resultados do sistema que sente são os afetos. Segundo Gardner (1997), as unidades básicas dos sistemas são, geralmente, identificadas por padrões ou esquemas comportamentais. Ampliando o entendimento acerca dos três sistemas no âmbito do desenvolvimento do processo artístico, tem-se como definição do sistema que faz o desenvolvimento de esquemas em que o organismo é capaz de executar e estão relacionados ao campo sensório-motor. O sistema que percebe se refere aos aspectos do ambiente, em que o organismo é sensível, sua percepção promove afetos ou pode ser resultado de ações. Mas nem sentimentos subjacentes experienciados, nem atos objetivamente determináveis são essenciais para que ocorra uma discriminação, já que o resultado pode não incluir efetivamente o sistema que sente e o sistema que faz, pelo fato que “se eu não experimento nenhum sentimento fenomenal ou mudança de afeto, meu sistema que sente não foi e não pode ter sido mobilizado. Se eu não realizei qualquer ação ou não fiz nada, meu sistema que faz também permaneceu em repouso. Apesar disso, o sistema perceptivo foi utilizado” (GARDNER, 1997, p. 59). Quanto ao sistema que sente, tem-se um esquema voltado para a experiência do fenômeno. Gardner define esse sentimento como: Aquilo que é experienciado fenomenalmente por uma pessoa e sobre o que ela pode falar ou revelar para os outros através de seu comportamento e reações. Nem sempre podemos determinar quando uma pessoa experiência sentimentos, ou mudanças de sentimentos, uma vez que eles não precisam ser transmitidos em ações ou testemunho diretos; mas não é plausível não haver nenhuma correlação entre as experiências subjetivas de uma pessoa e sinais mais públicos desses sentimentos [...]. (GARDNER, 1997, p. 92).

 

324  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Sob o olhar da neurociência, Damásio (2004, p. 92) afirma que “o sentimento é uma percepção de um certo estado do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela percepção de certo modo de pensar”. Damásio oferece o olhar de Langer sobre esse assunto, quando diz que “o sentimento começa quando a atividade do sistema nervoso atinge uma ‘frequência crítica’” (LANGER, 1942 apud DAMÁSIO, 2004, p. 92). O autor aprofunda o entendimento acerca do assunto concluindo que, [...] o conteúdo essencial do sentimento é um estado corporal mapeado num sistema de regiões cerebrais a partir do qual uma certa imagem mental do corpo pode emergir. Na sua essência, um sentimento é uma idéia do corpo quando o organismo é levado a reagir a certo objeto ou situação (DAMÁSIO, 2004, p. 95).

Gardner entende que existe uma crescente integração do sistema de sentimento com outros sistemas, operando em um funcionamento em conjunto com o processamento simbólico. Isso mostra que a operação do sistema de sentimento se torna fundamental na produção e percepção do artista. Nesse sentido, Gardner (1997, p. 97) diz que “o artista, frequentemente, busca, no seu próprio trabalho artístico, capturar um sentimento ou uma série de sentimentos que experienciou que depende de sua reação subjetiva para determinar a efetividade com que o sentimento foi capturado e comunicado”. Nesse desenvolvimento, percebe-se a relação de outras operações de sistemas quando a experiência do sentimento se efetiva no corpo e se comunica. Aí se entende que ocorreu o sistema que faz (o sensório-motor) e o sistema que percebe (pois o sentimento envolve a percepção). Os sentimentos são provocadores de um estado do corpo e partem de operações perceptivas. Segundo Damásio (2004), os sentimentos são percepções, já que a percepção tem um papel fundamental na efetivação do sentimento, por isso a visão integradora dos sistemas que Gardner apresenta como essencial no desenvolvimento humano. Nesse sentido, Gardner mostra a indissociabilidade existente nas diferentes integrações dos sistemas para operação do comportamento humano. Nos sistemas podem operar infinitas combinações, tais como: percebendo e sentindo, percebendo e fazendo, sentindo e percebendo, sentido e fazendo, fazendo e percebendo, fazendo e sentido etc., o que os torna (os sistemas) integradores entre si. Os sistemas (o que faz, o que percebe e o que sente) abordados por Gardner são discutidos e relacionados diretamente ao desenvolvimento da criança, numa perspectiva da

 

325  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   arte, e associada aos animais. Embora seja um fato, o autor argumenta que muito pode ser analisado sob a ótica dos processos criativos na arte de modo geral. Os conceitos trazidos por suas correlações se estendem aos diversos campos do desenvolvimento humano, das artes e dos processos artísticos. Todavia, em alguns momentos de seu estudo, trata sobre o assunto de maneira mais específica em relação aos processos criativos. E é esse recorte que será tratado nesse momento. Sabe-se que o desenvolvimento artístico envolve a educação dos sistemas de fazer, perceber e sentir, em que o indivíduo, ao desenvolvê-los, torna-se capaz de tomar parte do processo artístico, de manipular, compreender e se relacionar com os meios simbólicos de forma específica. Para dialogar com as proposições do desenvolvimento artístico diretamente no sistema que faz, Gardner toma como exemplo Ghiselin, que apresenta indicações para o desenvolvimento de habilidades no artista: Todo profissional genuinamente criativo precisa atingir de uma maneira ou de outra aquele entendimento completo do seu meio e aquela habilidade, engenhosidade e flexibilidade em seu manejo, para poder utilizá-lo de maneira nova para inventar alguma coisa que, quando utilizada habitualmente pelos outros, organizará a experiência dos outros da maneira pela qual sua experiência foi organizada (GHISELIN apud GARDNER, 1997 p. 286).

Ghiselin demonstra claramente que a experiência no ambiente, o exercício intenso no sistema simbólico111 pode ser profícuo, entendendo que pode ser a melhor forma de o artista adquirir domínio – através do conhecimento do seu uso, de seus potenciais e suas limitações. Ressalta, ainda, que o modo como é adquirido talvez seja a questão mais importante da educação estética. Compreende-se, nesse sentido, que o desenvolvimento corporal para determinada habilidades deve ser considerado importante para o bom desempenho dos processos de criação. O artista precisa assegurar o domínio de certas competências e habilidades corporais, já que sua execução compreende aspectos necessários para o desenvolvimento da obra. Vale ressaltar que aqui não se refere somente às técnicas tradicionais, como aquelas baseadas na                                                                                                                 111

Por meio de uma sutileza de linguagem, os objetos de arte e os elementos que os estruturam são entendidos como símbolos. Mesmo que obras inteiras sejam consideradas como símbolos, elas também são criadas a partir de elementos que constituem referências simbólicas. As palavras, os sons, versos, tons, cores e formas obtêm matizes de significado no decorrer das experiências quando incorporados ao objeto artístico e se dá a perceber simbolicamente desempenhando um papel de significado ao trabalho, confluem para o argumento da obra e uma sintaxe característica (GARDNER, 1997). Nesse contexto, o autor observa que o sistema simbólico em seu estudo envolve tanto as diferentes linguagens artísticas como os seus referenciais simbólicos, que colaborarão para sua constituição.

 

326  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   dança clássica e moderna, mas a tantas outras que possam constituir maior interesse para a experiência estética. O sistema que percebe concentra, no estímulo, o desenvolvimento das habilidades que colaboram para o poder de discriminação. Gardner revela que relatos esparsos na literatura sugerem que uma experiência intensa com objetos distintos pode aguçar a capacidade perceptiva da pessoa e sua comparação com outros que estejam dentro do mesmo contexto do estudo ou diferente a ele. Esse caminho traz uma compreensão multidimensional na composição dos conhecimentos da criação em dança, possibilitando no fazer da criação articulação de referenciais distintos para a experimentação e vivências do/no corpo em processo criação. É interessante saber que a corporificação das experiências deve ser compreendida aqui não como algo somente motor, mas efetivado através de processos de ordem cognitiva, como evidencia a teoria de Gardner quando menciona o desenvolvimento da capacidade perceptiva a partir de experiências no campo teórico-prático do fazer e perceber. Daí a essencialidade da compreensão integrada desses dois aspectos (teoria e prática) nos processos compositivos em dança, já que a fundamentação, a partir de diferentes referenciais, estimula a elaboração de argumentos da obra em andamento. Gardner (1997), ao se referir ao sistema que sente, observa que esse sistema precisa ser desenvolvido de forma intensa e que possivelmente depende de várias experiências para o conhecimento de código e das relações interpessoais para que a pessoa possa corporificar afetos e modos específicos de sentimentos. A esse respeito, Gardner compreende que: Na medida em que essas experiências se acumulam, os indivíduos devem poder corporificar em seus trabalhos e discernir nos trabalhos alheios aspectos mais sutis de sentimento: eles também devem se tornar sensíveis à relação entre sentimentos e modos articulados num dado trabalho (1997, p. 293).

O sistema que sente, pensado como processo compositivo, envolve a integração de operações desenvolvimentais cognitivas dos sistemas, e pode gerar determinados sentimentos. É sabido que a inclusão de outras experiências artísticas pode oferecer e desenvolver a sensibilidade para o sentimento. As abordagens conceituais dos sistemas (fazer, perceber e sentir) reúnem aqui aspectos relevantes pensados no contexto dos processos artísticos. Ao olhar para o universo da dança, percebe-se que o processo criativo, pensado a partir desses sistemas, colabora para o desenvolvimento de domínios na esfera das experiências corporais, perceptivas e afetivas.  

327  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Desta forma, tem-se a possibilidade de desenvolver habilidades investigativas acerca da criação e de uma corporalidade, desenvolvendo, assim, uma educação estética. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em vias de conclusão sobre os conceitos aqui trazidos, podemos compreender que Pareyson (1993) lida com a análise da formatividade e da experiência estética a partir do estudo do homem como autor da arte e de seu ato, que é o processo de criação. A partir desse contexto, traz reflexões filosóficas sobre experiências estéticas da obra de arte, estabelece uma discussão sobre o conceito central da formatividade artística, entendida desta forma como “união inseparável de produção e invenção” em que o ato de formar realiza-se no próprio fazer. Os sistemas abordados por Gardner abrem uma reflexão acerca das experiências do corpo no desenvolvimento do processo artístico. O processo criativo, em seu ato de criar, desenvolve, de modo geral, uma educação do fazer (habilidade e experiências corporais), do perceber (capacidade de discriminação) e do sentir (experiências com meio simbólico e percepção dos significados). E no desenvolvimento dos sistemas a experiência corporal e sua relação com o meio pode ser frutífera, pois se entende como uma das formas de o artista conhecer potenciais e suas limitações. Assim, o modo como são adquiridas as experiências corporais, através de domínios corporais, talvez seja a questão mais importante da educação estética (GARDNER, 1987). Diante dos conceitos abordados por Ostrower (1987), observa-se a relevância em valorizar o desenvolvimento das experiências formativas do processo de criação em dança, considerando, como elementar, os processos intuitivos que geram referenciais de informações oriundas do campo do sensório-perceptivo, por serem estes modos de conhecimento experienciados pelo corpo que dança. Por meio da intuição é que exploramos o ato de criação. Quando se explora materiais distintos, exploram-se os processos intuitivos nos quais são desenvolvidas as capacidades de operar cognitivamente na significação da forma, permitindo, ainda, visualizar instantaneamente os fenômenos envolvendo, desta forma, a percepção e significação por meio das experiências. Os processos formadores da criação artística apresentados por Pareyson, Ostrower e Gardner, ao longo deste estudo, não constituem um pensamento fechado, pois são reconhecidos pelos autores como experiências estéticas que aludem a possibilidades de criações estéticas. Considerá-los é, portanto, ampliar referenciais acerca dos princípios que norteiam significativamente o estudo da criação em dança.  

328  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   REFERÊNCIAS ALENCAR, E.S. de; FLEITH, D. Criatividades: múltiplas perspectivas. 3. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, p. 13-57. _______. Contribuições teóricas recentes ao estudo da criatividade. Scielo, Jun-Abr, Vol. 19 n. 1 pp. 001-008, 2003. AQUINO, Dulce. Dança e universidade: desafio à vista. In: PEREIRA, Roberto e SOTER, Silvia (Org.). Lições de dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2003. DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. Adaptação Brasil: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. GARDNER, H. As artes e o desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artmed, 1997. GIL, A. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009. IANNITELLI, L.M. Dança corpo e movimento: A criação artística. In: BIÃO, Armindo; Pereira, A.; CAJAIBA, Luiz e PITOMBO, R. (Org.) Temas em contemporaneidade, imaginário e teatralidade. São Paulo: Annablume; Salvador: GIPE-CIT, 2000, p.247-256. OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. 5. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999. ______. Criatividade e processo de criação artística. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. PAREYSON, L. Estética: teoria da formatividade. Traduzido por Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1993. ______. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1984. SALLES, Cecília. Gesto inacabado: processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: FAPESP; Annablume, 2003.

 

329  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Animais da Terra, do texto ao filme. Reflexões sobre o processo de adaptação da obra literária de Vicente Franz Cecim para o formato cinematográfico Michelle Marques de Moraes Programa de Mestrado Profissional em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas – UEA

RESUMO: Na filmografia que aborda a Amazônia é freqüente encontrar produções

impregnadas com uma visão colonizadora e cheias de personagens estereotipados. Por outro lado, na literatura é possível se deparar com exemplos em que o tema é abordado sem cair no lugar comum dos clichês amazônicos. A obra “Os Animais da Terra”, que compõe o ciclo “Viagem a Andara” – oO livro invisível, de Vicente Franz Cecim, é um exemplo, fala da Amazônia, sem ser óbvia, de forma transfigurada e metafórica. Partindo-se desse texto, buscase, na possibilidade de transpor a obra literária para o formato cinematográfico, vislumbrar de forma concreta uma proposta plástica que trabalhe uma visualidade amazônica próxima a sugerida no texto. E nesse processo de transposição da obra, ao se utilizar da linguagem fílmica, observar as características ou estruturas fundamentais do texto que, ao passar pela adaptação, permitam com que permaneça a identidade da obra. O objetivo desse trabalho é analisar o processo de transposição sígnica da obra mencionada, propondo ao final, uma construção estética que se equipare ao texto literário, e contribuir com a possibilidade de construção de uma filmografia amazônica não estereotipada. PALAVRAS-CHAVE: Cinema; audiovisual; adaptação; discurso; estética

Se fizermos uma busca por filmes que tratam ou trazem alguma referência da Amazônia é comum nos depararmos com cenas carregadas de estereótipos, seja por meio dos personagens ou no próprio discurso construído ao longo do filme. Quem nunca viu a história de um aventureiro estrangeiro que vem desbravar um universo (no caso, a Amazônia) ainda desconhecido? Que encontra os nativos indígenas em meio à vida considerada primitiva e se coloca em uma posição de superioridade? A índia que se apaixona pelo pesquisador estrangeiro e sonha em fugir com ele? São muitos os exemplos em que a Amazônia é colocada como um zona desconhecida e exótica. Claro que a proposta dessa pesquisa não é a de fazer e apresentar um levantamento preciso sobre os filmes que incluem cenas com discursos estereotipados ou abordagens que privilegiam uma visão colonizadora. A intenção é sinalizar para novos caminhos de abordagens dessa Amazônia, ainda desconhecida por muitos sim, mas, com possibilidades de representação ainda pouco exploradas. E é exatamente uma dessas possibilidades que buscamos apresentar nessa pesquisa que prevê a adaptação de uma obra literária para os

 

330  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   formatos de roteiro112 e storyboard113. O ponto de partida foi a escolha da obra “Os Animais da Terra”, do paraense Vicente Franz Cecim. A eleição desse texto foi feita inicialmente por se tratar de uma obra de ficção que aborda a Amazônia de modo não estereotipado, apresentando visualidades que fogem das simples paisagens e de personagens miméticos, principalmente o índio que aparece com bastante recorrência. A primeira etapa foi estudar o livro para identificar e escolher uma forma de representar o texto em imagens, buscando é claro, expressar a essência da obra. Pode-se dizer que a tarefa não tem sido fácil, pois trata-se de uma forma de representação da Amazônia que se mostra transfigurada, cheia de metáforas; chaves postas pelo autor que para fazer uso delas depende muito do nível de preparo de cada leitor. Muitas são as chaves para entrar no universo denominado pelo autor de Andara. Sim, esse é o lugar que representa de forma transfigurada a Amazônia e onde ocorrem todas as cenas escritas por Cecim, nos seus livros. Adentrar nesse universo foi, é e continua sendo desafiador; afinal, a proposta de se adaptar o livro para o cinema também passou naturalmente por questões referentes à fidelidade. É possível se manter fiel plenamente a uma obra literária no momento da transposição? Pensar em fidelidade no sentido fechado e rígido talvez não seja pertinente nesse processo de tradução de um sistema sígnico para outro. O processo de transposição, tradução ou adaptação como é comumente chamado no meio cinematográfico, requer uma atenção cuidadosa. Antes de entrar propriamente nesta fase, é importante ressaltar que esse critério da “fidelidade”, tantas vezes levantado em debates sobre o tema adaptação de obras literárias para o cinema, não será levado em consideração aqui, pois o ponto de vista defendido nessa pesquisa é que, independente dos esforços de se atender a esse quesito, o resultado será sempre o de uma nova criação, isso pelo simples fato de que uma obra traduzida se materializa em nova linguagem, novo suporte que requer transformações estruturais. Dessa forma, a preocupação em ser fiel perde-se o sentido.     Adaptar uma novela, livro, peça de teatro ou artigo de jornal ou revista para roteiro é a mesma coisa que escrever um roteiro original. “Adaptar” significa transpor de um meio para outro. Adaptação é definida como a habilidade de “fazer corresponder ou adequar por mudança ou ajuste” – modificando alguma coisa para criar uma mudança de estrutura, função e forma, que produz uma melhor adequação. ( FIELD, 2001, P. 174).  

 

                                                                                                                112

Roteiro é a forma escrita de qualquer produção audiovisual. Storyboard é um roteiro representado através de uma sequência de desenhos com a finalidade de prévisualização de um filme. 113

 

331  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A discussão mais apropriada talvez fosse de se tentar buscar e respeitar a essência da obra, o que também não é garantia de que essa essência será encontrada e mantida no resultado final. Segundo Field “Adaptar um livro para um roteiro significa mudar um( o livro) para outro (o roteiro), e não superpor um ao outro. Não um romance filmado ou uma peça de teatro filmada. São duas formas diferentes. Uma maça e uma laranja” ( 2001, p.174).     É comum se deparar com a afirmação ilusória de alguns roteiristas que adaptaram obras dizendo “Eu fui fiel à obra”. Será mesmo possível? Como comprovar tal afirmação? Como medir o grau de fidelidade de uma obra traduzida? Como podemos identificar se o conjunto de referências simbólicas, icônicas e indiciais114 foi lido, respeitado e mantido, igualmente como foi concebido pelo o autor. A verdade é que essa discussão sob o ponto de vista da fidelidade já não tem mais sentido; nem se fosse o mesmo autor da obra literária o responsável pela tradução para uma outra linguagem. O máximo que poderia se aproximar é da essência dessa obra, considerando a priori que o autor mais do que ninguém conhece bem a sua criação, desde os estímulos que levaram a escrever determinada obra, a criar os personagens... Enfim, é um trabalho de observação atenta para identificar detalhes que nem sempre estão explícitos na obra textual, principalmente se tiver sido escrita por meio de metáforas.     Trata-se da busca por um entendimento e para um melhor aproveitamento dos elementos que a narrativa literária tem a oferecer. Vale ressaltar que houve a preocupação em querer compreender o que o autor quis dizer em cada passagem da narrativa escrita por ele. No entanto, até certo ponto, dependendo do grau dessa preocupação isso pode se tornar um entrave quando o assunto é adaptação. Cada leitor pode desvendar parte dos mistérios, mas, não todos. Além do que, cada leitor faz uma leitura diferente, por esse motivo, deixar de lado esse sobrepeso de querer traduzir o que o autor idealizou com todos os pormenores já é um bom começo para o roteirista que pensa em adaptar um livro. Por outro lado, ignorar a oportunidade de aproximação com o autor do livro que você quer adaptar pode parecer de inicialmente um desperdício; principalmente sabendo que ele está vivo e que é possível contactá-lo para trocar idéias e tirar dúvidas; porém, nos deparamos com a questão: Até que ponto o contato com o autor pode contribuir nessa busca pela essência?                                                                                                                     114

 

Icônica, simbólica, indicial: Terminologia utilizada por Pierce

332  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Um caminho proposto é o do aproveitamento de todas as fontes possíveis: livro-fonte, no caso “Os Animais da Terra”, e os demais livros que compõem a obra do autor, já que os mesmos de alguma forma estão interligados formando o conjunto de obras intitulado “Viagem a Andara – oO Livro Invisível”; além de críticas acadêmicas e jornalísticas e, obviamente, os canais de comunicação (blog, email, rede social) oferecidos pelo próprio autor. Durante o processo de adaptação, aí sim você decide o que irá utilizar. O importante é estar ciente de que a adaptação, seja ela baseada ou inspirada na obra, é o resultado de uma entre várias leituras possíveis sobre o texto-fonte, e, principalmente, se trata de uma espécie de reformulação, a fim de se chegar a solução estética desejada.   Adaptar é, portanto, não apenas efetuar escolhas de conteúdo, mas também trabalhar, modelar uma narrativa em função das possibilidades inerentes ao meio. Em regime de adaptação deve ter-se em cota um contexto artístico que procura além da interpretação do objeto literário, a reconfiguração estética deste. O adaptador da literatura para o cinema distancia-se do leitor que a lê, já que procede a um redimensionamento do livro numa nova obra de arte. Assim, a literatura ao ser adaptada posiciona-se com um material estético desterrado a outro campo da estética, o qual poderá beneficiar-se com essa inversão (ARAUJO, Naiara. Cinema e Literatura: adaptação ou hipertextualização? LITTERA ONLINE, Suplemento Literário da UFMA, Número 3, p.16, 2011).

  A continuidade do processo de adaptação da obra “Os Animais da Terra” em direção a solução estética desejada se deu através da busca por outras referências textuais e visuais que pudessem interagir com o texto principal. Para isso, o blog, mantido pelo autor, tem sido bastante útil. Tem sido uma forma de aproximação do universo do autor. Além de textos, também são postadas imagens/figuras e vídeos.  

  Fig. 1

 

Fig. 2 - Curau da capa do livro “Os Animais da Terra”  

333  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

  Fig. 4  

Fig. 3

   

  Fig. 5

Fig. 6 - Ofélia pintada por John Everett Millais  

  Imagens encontradas no blog: http://cecimvozesdeandara.blogspot.com.br/

  Aliás, Cecim tem uma relação intensa com as imagens. Curiosamente, na década de 70, antes de se dedicar a sua obra literária, ele produziu vários filmes experimentais em super-8115. A essas criações deu-se o nome de “kinemAndara”, ciclo de filmes que leva a reflexões e evocam a permanente tensão de sua escrita entre o visível e o invisível.

Cena filme “Permanência”, 1976  

Cena filme “Matadouro”, 1975

                                                                                                                115

Super-8 é um modelo de filmadora analógica que grava em formato cinematográfico de fita com bitola de 8 mm. Desenvolvido nos anos 60 pela empresa Kodak, foi um aperfeiçoamento do antigo formato de 8mm.

 

334  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

  Cena filme “Sombras”, 1977

Cena filme “Rumores”, 1979

  Imagens encontradas no blog: http://cecimvozesdeandara.blogspot.com.br/

Depois de quase trinta anos depois, em 2007, voltou a filmar em parceria com seu filho, o fotojornalista Bruno Cecim, o filme “Marráa Yaí Makúma - Aquele que Dorme Sem Sono”, disponível no Youtube. Posteriormente também passou a utilizar as imagens como característica da sua obra literária. Em “Iconocanto”, é possível ver a presença de ícones.   A partir desses referenciais, está sendo possível aprofundar a busca por uma estética visual. Nas fontes citadas anteriormente, principalmente no blog, Cecim reúne praticamente todo o material necessário para que o pesquisador possa conhecer mais sobre seu universo criativo. Esse aprofundamento tem sido primordial para que se possa realizar uma leitura mais ampla em torno desse ciclo de escrituras pertencentes a “Viagem a Andara - oO livro invisível”, da qual “Os Animais da Terra” faz parte e que de acordo com Cecim, é a viagem a Amazônia, não de forma figurativa, óbvia, mas sim, representada de forma transfigurada, como região metafísica, a metáfora da vida. Lá tudo é possível, as noites que vem e vão em um curto espaço de tempo, a natureza que se faz e desfaz diante dos olhos, local de personagens oníricos que vivem no espelho e seres híbridos, como a mulher que se transforma em pássaro. Características da obra de Cecim que pesaram desde o primeiro momento em que foi escolhida, oferecendo a possibilidade de se falar, abordar a Amazônia sem ser óbvia, estereotipada.   Após a imersão, nos deparamos novamente com o desafio de transpor o texto para algo que seja visualmente interessante e, ao mesmo tempo, conseguir manter os elementos essenciais que possam, ao final, caracterizar a relação de identidade entre a obra literária e o produto cinematográfico. Sem dúvida, Andara, região sobrenatural que representa a Amazônia, faz parte da essência que deve ser respeitada e mantida nos formatos cinematográficos. Segundo Cecim, Andara é uma região imaginária, toda ela onírica, que tem como matéria prima a Amazônia, considerada por ele como a Floresta Sagrada, com suas águas, seus  

335  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   peixes, suas aves, seus insetos, seus animais, suas árvores. Em Andara tudo pode acontecer, mais até do que acontece na região Amazônica, que em si já é uma região naturalmente encantada: árvores podem falar com os homens, aves que caem do céu se transformam instantaneamente em terra, retornando ao pó, o vento vem nos contar histórias, é possível nos deparar com seres alados, talvez anjos ou demônios, que descem do céu para conviver com os seres humanos. Andara é lugar de sonhar, é a imaginação em liberdade, onde a fronteira entre o natural e o sobrenatural praticamente inexistem.   Após o contato com as descrições do que vem a ser Andara, região onde acontecem todas as histórias do ciclo literário, tornou-se possível pesquisar outras referências visuais que fossem compatíveis com as cenas do livro e, principalmente, com esse universo onírico. Chegamos a algumas imagens:     Referências de cenários  

  Cachoeira da Porteira  

  Presidente Figueiredo/AM  

 

336  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

 

  Referências encontradas em pesquisa por meio do Google e grupos do Facebook  

  Já que a Amazônia é a principal fonte de inspiração, obviamente os cenários farão parte das locações. Porém, as imagens deverão ter um tratamento, desde a concepção no storyboard, quanto na gravação com a direção de fotografia, até a pós-produção, quando as imagens forem editadas; com intuito de se conseguir uma plasticidade visual que proporcione essa sensação de sonho. Isso pode ser alcançado através de alguns recursos técnicos utilizados na hora da captação e edição, relacionados à coloração, filtros e efeitos esfumaçados, com a presença de névoa, neblina, dando a sensação de estarmos em meio ao um sonho.   Para embasar o processo de adaptação no que se refere à parte estrutural de transposição para o formato de roteiro estão sendo utilizados como referência alguns livros que tratam especificamente sobre o assunto, dentre eles: “Manual do Roteiro, de Syd Field”, “Da Criação ao Roteiro, de Doc Comparato”, e “O Roteirista Profissional – Televisão e Cinema, de Marcos Rey”. Esse referencial teórico vem com a intenção de possibilitar a organização do texto-fonte em uma estrutura com algumas características próprias. Para isso, tem sido necessário identificar os elementos dentro dessa “nova” estrutura. Dentre esses elementos podemos apontar os seguintes: o conflito-matriz ou storyline, que segundo Doc Comparato é uma frase que sintetiza toda história a partir de uma visão de conflito. Ela deve ser breve, concisa, eficaz e não deve ultrapassar cinco linhas; os personagens; as cenas que irão compor a ação dramática, ou a maneira como será contado o conflito, devendo saber quem, onde,  

337  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   quando e como será contada a história; o tempo dramático da obra; o plot point ou ponto de virada, que é um incidente ou evento que move a história no sentido que se deseja direcionar a narrativa; até se chegar à unidade dramática, que é o roteiro final.   A definição da storyline está muito relacionada à leitura e ao destaque de situações que se queira dar no filme. Por isso, dependendo da elaboração desta, o direcionamento de toda a narrativa pode apresentar variações. O livro “Os Animais da Terra” tem personagens que poderiam gerar várias storylines, dependendo da ênfase dada aos conflitos de cada um. Dentre os personagens podemos listar:   • Coronel Victor Nunes Sombra - homem misterioso que tinha negócios suspeitos e foi morto misteriosamente;   • Araujo - policial que fez parte da equipe que encontrou o Coronel morto e insiste em tentar desvendar pistas que possam explicar o crime;   • Cego Dias - administrador de uma plantação de urtigas, trabalhava para o Coronel e sonhava voltar a enxergar;   • Caminá - mulher de Cego Dias, ser híbrido, alado, que atrai os seres vivos com sua energia;   • Duplos do Cego - seres oníricos que vivem dentro de um espelho;   • Homens da plantação - trabalhavam noite e dia na plantação de urtigas     Conhecendo um pouco das características dos personagens, é possível apresentar algumas propostas de storylines que podem ou não se aproximar da essência do livro.   1. A partir do conflito do policial Araujo:   A história conta a busca de um policial que não se conforma enquanto não desvenda um crime misterioso envolvendo um coronel. O que ele não contava é que durante essa busca, ele iria se deparar com situações mais estranhas ainda e até sobrenaturais.   2. A partir do Cego Dias:   Um homem cego que administra uma plantação de urtigas, distribui amargura a todos que convivem com ele. O que esse ser rude nunca imaginaria era receber uma proposta que poderia fazê-lo voltar a enxergar. Mas, para isso teria que deixar o orgulho de lado e confiar em um menino.

 

3. A partir de Caminá:   Caminá é uma mulher alada, um ser híbrido que encanta e atrai a todos, homens e animais. Porém, seu marido cego e rude não aceita bem essa virtude e vive

 

338  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   aprisionando-a, até que um dia a energia de Caminá se transforma em luz e resulta em um desfecho surpreendente.

 

Como podem ver, a determinação da storyline é fundamental para o direcionamento da narrativa no processo de adaptação. Ela é o fio condutor que vai tecendo com os outros elementos toda a trama da unidade dramática. E dessa forma vamos elegendo o conteúdo a ser trabalhado e modelando a narrativa de acordo com indicações estéticas oferecidas por meio de imagens, tanto por parte do universo do autor da obra literária, quanto por parte do responsável pela tradução que irá compor e, por que não dizer, recriar uma nova roupagem à obra, oferecendo uma releitura complementar em forma de imagens em movimento, com base na linguagem cinematográfica.     REFERÊNCIAS     ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: Uma Introdução. Tradução: Teresa Otoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. AUMONT, Jacques e outros. A estética do filme. Tradução Marina Appenzeller. 9 ed Campinas, SP: Papirus, 2012. CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Tradução: Fernando Albagli e Benjamin Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. CECIM, Vicent. Os animais da terra. Pará: Mitograph Editora, 1980.     CECIM, Vicente. Viagem a andara: o livro invisível. São Paulo: Iluminuras, 1988. COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: O mais completo guia da arte e da técnica de escrever para televisão e cinema. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.   EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. _________________. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. FIELD, Syd. Manual do roteiro: Os fundamentos do texto cinematográfico. Tradução de Alvaro Ramos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. REY, Marcos. O roteirista profissional: Televisão e Cinema. São Paulo: Editora Átida, 2001. Artigos científicos ARAUJO, Naiara. Cinema e Literatura: adaptação ou hipertextualização? LITTERA ONLINE, Suplemento Literário da UFMA, Número 3, p.16, 2011. Sites e blogs  

339  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   http://cecimvozesdeandara.blogspot.com.br/ ______________. Andara: a voz do silêncio. Disponível em: http://cecimvozesdeandara.blogspot.com.br/ Acesso em: 20 de maio de 2012 Entrevista de Vicente Franz Cecim. Título: O Escritor e a palavra. 12.04.2011 http://oescritoreapalavra.wordpress.com/2011/04/12/entrevista-de-vicente-franz-cecim/ Visitado em: maio 2012     Fragmento do Manifesto Cural. 10.05.207.   http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=2418   Visitado em: maio 2012     http://www.jornaldepoesia.jor.br/vcecim.html   Visitado em: maio 2012

 

340  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   UM ESTUDO DE ICONOGRAFIA MUSICAL DO PANO DE BOCA DO TEATRO AMAZONAS ATRÍBUIDO A CRISPIM DO AMARAL (1858-1911) Raúl Gustavo Brasil Falcón Universidade do Estado do Amazonas-UEA RESUMO O artigo consiste no estudo da obra pictórica - que integra o conjunto artístico da sala de espetáculos do Teatro Amazonas: O Pano de Boca conhecido como Alegoria do Encontro das Águas, atribuído ao artista pernambucano Crispim do Amaral (1858-1911). O objetivo deste artigo foi reunir e analisar as informações referentes ao Pano de Boca do Teatro Amazonas, através de estudos de História da Arte e da Iconografia Musical, procurando estabelecer relações estéticas entre a decoração e a cenografia do teatro como espaço da música. Para a análise iconográfica utilizou-se como principal referência a teoria da arte de Erwin Panofsky, que estabelece os processos de análise e interpretação artística, além de outros teóricos que abordam a intertextualidade. A partir da análise dos aspectos formais, técnicos, estilísticos e simbólicos da obra, verificou-se a aproximação temática do Pano de Boca, com o assunto da ópera Jara, do compositor paraense, José da Cândido da Gama Malcher. Palavras-chave: Crispim do Amaral; Pano de Boca; Iconografia Musical; Teatro Amazonas, Encontro das Águas. Inaugurado em 31 de dezembro de 1896, no governo de Eduardo Gonçalves Ribeiro, o Teatro Amazonas, considerado um dos monumentos que melhor representa essa fase de riqueza, também foi palco para o crescimento do cenário artístico em Manaus. Para a construção do teatro, foi assinado o contrato em 23 de agosto de 1883, mas o início das obras ocorreu somente no ano seguinte, em 14 de fevereiro de 1884, pois, o terreno não estava preparado para a construção desse monumental prédio na época. Infelizmente, nesse mesmo ano faltou muita mão de obra e material, levando à suspensão do contrato em 12 de janeiro de 1886 (MESQUITA, 2006, p.211). Sete anos se passaram para retomar a construção do Teatro Amazonas, que ocorreu somente no governo de Eduardo Gonçalves Ribeiro. Para a construção desse prédio, foram contratados vários artistas vindos do exterior, pois a cidade não supria a demanda exigida e necessitava de artesãos e decoradores. De acordo com Valladares (1974, pg 54), a partir dos dados do historiador Mário Ypiranga Monteiro, o atual governador da época, Eduardo Ribeiro não poderia trabalhar sem técnicos, e ainda tinha o problema de mão-de-obra. A partir da lei n° 8 de 21 de setembro de 1892, o governador Eduardo Ribeiro Gonçalves Ribeiro, mandou conceder passagens gratuitas de 3ª classe a artistas nacionais e estrangeiros para fixar residência no Amazonas. E através dessa  

341  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   lei vieram artistas de todos os lugares do país, principalmente do Maranhão e da Bahia, além de vários artistas europeus, como italianos, portugueses e franceses, para trabalhar no Teatro Amazonas. (Idem), Entre os artistas que o governador mandou buscar, se destaca Crispim do Amaral, que ficou encarregado da decoração interna do Teatro Amazonas, das pinturas, telões de cena, bastidores, colocação da rosácea do plafond da sala de espectadores, construção do maquinário do palco, assentamento das cadeiras da plateia, arrumação da mobília, das peças de artes, etc. Atribui-se a ele também os projetos da parte frontal do edifício, com o antecorpo, tímpano, frontão circular, acrotérios, óculos e bustos, incluindo plantas e reformas, decoração interna e mobiliária. (BITTENCOURT, 1948, pp. 115 e 117). De acordo com Luiz Miranda Corrêa (1966, p. 36), o plafond da sala de espetáculos, que alguns autores mencionam ser de autoria de Crispim do Amaral, supostamente foi executado em Paris, pela casa francesa Capezot. Entretanto, não há concordância acerca dessa informação. Crispim do Amaral nasceu em Pernambuco, na cidade de Olinda em 1858. A sua atuação no campo das artes era bem variada, conhecido por seus múltiplos talentos como ator, caricaturista, pintor, escultor, cenógrafo, desenhista, aquarelista. Também foi um músico que participou de saraus e concertos. Irmão de dois artistas conhecidos, o caricaturista Amaro do Amaral e o pintor e fotógrafo Libânio do Amaral, esse trabalhava como professor da Academia Amazonense de Belas Artes e também foi sócio de George Hübner na casa fotográfica Hübner & Amaral no Rio de Janeiro e em Manaus (PÁSCOA, 1997, p.19). Entre os principais biógrafos de Crispim de Amaral, se destaca o historiador Herman Lima, em História da Caricatura do Brasil (1963). Crispim do Amaral, teve seus ensinamentos de pintura e cenografia com o pintor e cenógrafo Léon Chapelin, embora haja uma dúvida em relação ao seu mestre. De acordo com Teixeira Leite (1983), pode haver um equívoco em relação a Léon Chapelin, pois esse trabalhava em Salvador, como cenógrafo entre os anos de 1854 e 1859, como auxiliar de Tassagne na execução do Pano de Boca do Teatro de São João. Havia em Recife, um escultor francês, cujo sobrenome é igual ao do cenógrafo, o artista François Etienne Chapelin, que trabalhava para o Departamento de Obras Públicas de Recife. Residia na capital pernambucana desde o ano de 1836, e tornara-se mais tarde, professor de escultura. Depois da dúvida apresentada por Leite, fica a indagação de com quem Crispim do Amaral aprendera pintura e cenografia: se fora com Léon Chapelin, ou François Chapelin. Crispim do Amaral chegou ao norte do Brasil com 18 anos, junto com a companhia teatral de Vicente Pontes de Oliveira, residindo por seis anos em Belém para trabalhar como  

342  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   cenógrafo, não no Teatro da Paz, mas em outros teatros da cidade, onde prestava serviços de iluminação, decoração e cenografia (PÁSCOA, 1997, p.19). Em seguida, mudou-se para Manaus. Após essa permanência no Norte, retornou para Pernambuco, onde viveu por volta de dois anos. De acordo com o artigo Teatro da Paz: Histórias invisíveis em Belém do Grão-Pará (2009) de Roseane Silveira de Souza, Crispim do Amaral conhecera Domenico De Angelis em 1881, artista italiano formado pela renomada Academia di San Lucca, quando chegara a Belém junto com seu sócio Giovanni Capranesi para a execução da decoração do Teatro da Paz. Ainda em Belém, De Angelis contratou artistas locais para compor sua equipe, e Amaral se encontrava presente nela. No ano de 1883, Crispim do Amaral tentava ir à Roma para se aperfeiçoar em pintura, buscou auxilio na Assembleia Legislativa Provincial para conseguir uma bolsa de estudos, mas infelizmente lhe foi negada. Agindo por conta própria, publicou no jornal local para a sociedade comparecer em seu concerto vocal e instrumental, com o intuito de arrecadar recursos para seus estudos na Europa. (SOUZA, 2009,pg.164). Crispim do Amaral “Sentindo-se com a irresistível vocação para a arte da pintura, da qual tem alguns princípios, mas não sendo possível aperfeiçoar-se pela falta de recursos pecuniários, visto que até hoje tem falhado todos os meios de que lançado mão, tendo ainda ultimamente a assembléa provincial lhe negado a subvenção que pediria para esse fim, resolveu recorrer á generosidade do publico, nunca desmentida em iguaes circunstancias. Na quinta-feira, 26 do corrente, Chrispim do Amaral dará um concerto vocal e instrumental, offerecendo occasião ao magnânimo publico paraense para manifestar mais uma vez a benevolência com que lhe acolhe todas as pretenções justas. Pretende ir até a corte do Imperio, a fim de reunindo ao produto d’este e de outros concertos, ir concluir seus estudos em Roma. Espera, por consequência, que o publico o protegerá e desde já antecipa o seu reconhecimento, que será perpetuo e acima de toda a expressão. Do intimo d’alma agradece ás exmas. Sras. DD Julia Cordeiro, Celina Coimbra, Maria Eliza da Rosa, Margarida Costa Pinelli [sic], Arcalina Pinheiro, Santa Monteiro e aos ilms srs. Professores Pereira, Kièné, Roberto Barros, Zeller, Panario e ao inteligente senador Magalhães Castro, que honram com o seu valioso concurso, ajudando-o a chegar onde almeja.” ( DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24 jul. 1883, p.3 apud SOUZA).

No ano de 1888, por intermédio de Domenico de Angelis, foi concedida a Crispim do Amaral, uma bolsa de estudos do governo paraense para aperfeiçoar-se em pintura na Academia Real di San Lucca. (SOUZA, 2007, p.159) Em Paris, Crispim do Amaral, teve uma carreira jornalística intensa, pois trabalhou no jornal Le Rire como cartunista, e foi nesse jornal que publicou uma charge de repercussão internacional, que adiantaria seu retorno ao Brasil. De acordo com Teixeira Leite, a famosa caricatura representando a Rainha Vitória,  

343  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   presa como uma criancinha, que vestia a saia e batia palmada, em alusão à Guerra Anglo Bôer, resultou em um processo da justiça francesa, contra o editor e o caricaturista, sendo condenado a três anos de prisão, o que apressou sua volta para o Brasil antes de cumprir a pena. No Rio de Janeiro, também exerceu atividades como cenógrafo, pintor e decorador, executou os cenários da ópera Moema, de Delgado de Carvalho, além da produção de outros cenários para operetas e revistas montadas no Cinematógrafo Rio Branco. Usava o pseudônimo de Punk, dirigiu o jornal A Semana Ilustrada (1887-1888) onde fazia crítica, ironizando os hábitos da sociedade burguesa dos paraenses, com ilustrações bem jocosas. No ano de 1902, retomou suas atividades no jornal, sendo diretor de A Avenida (1903), e em 1905 fundou seu próprio periódico O Pau, trabalhando também, como caricaturista em O Século. Crispim do Amaral teve um ataque de uremia quando retornava para sua casa da redação de bonde, chegando a falecer na Assistência Pública do Rio de Janeiro, aos 53 anos de idade, em dezembro de 1911.

Fig.1. Pano de Boca do Teatro Amazonas atribuído a Crispim do Amaral (1858-1911). Óleo sobre lona , 10,50m x 6,40m. O Pano de Boca pertence ao conjunto pictórico da sala de espetáculos do Teatro Amazonas, mede cerca de 10,50m X 6,40m e foi realizado na técnica de pintura a óleo sobre lona crua, executado aproximadamente entre os anos de volta do ano de 1894- data em que o  

344  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   artista é contratado para a decoração interna do Teatro Amazonas- em 23 de fevereiro de 1894, pago com a quantia de Cr$220.000,00 (MESQUITA, 2006, pg. 219) Para a análise iconográfica deste trabalho, utilizou-se como principal referência a teoria da arte de Erwin Panofsky, na qual estabelece em três etapas os processos de análise e interpretação artísticas. O pano de boca ou telão de cena é uma antiga tradição do teatro romano e foi introduzido como elemento de cenografia por volta de 56 a.C. A introdução do pano de boca, ornamentado como hoje é conhecido, ocorreu durante o Renascimento, espalhando-se por toda a Europa. Antes disso era um simples pano branco, conhecido como siparium, (BERTHOLD, 2001, apud SOUZA, 2009, p. 151). “A diferença entre o siparium e o pano de boca é que se este se tornou um elemento para ser contemplado” (SOUZA, 2009, p. 137). A obra, de composição piramidal, encontra-se divida em três planos: em primeiro plano está a alegoria principal conhecida como “Encontro das Águas”; em segundo plano, acima da alegoria principal, encontra-se a representação de Vitória junto ao Brasão do Estados Unidos do Brasil; no terceiro plano constitui-se o cenário com os motivos regionais. As cores predominantes nessa obra são: o azul, o verde e suas variantes, o amarelo, o vermelho, o dourado, entre outras. As relações possíveis com a iconografia musical se devem a este Pano de Boca pertencer a um teatro de ópera, o Teatro Amazonas. É importante mencionar o fato de que Crispim do Amaral, também exerceu função de músico (flautista), chegando a substituir membros da orquestra do Teatro da Paz, e que frequentemente fazia apresentações em saraus em Manaus. Outra aproximação da iconografia musical refere-se ao tema abordado no Pano de Boca, com a menção indireta à ópera Jara, do compositor paraense José Cândido da Gama Malcher, pela relação dos elementos simbólicos presentes nas obras. A alegoria “Encontro das Águas” representa a união dos dois rios mais importantes da Amazônia, o Rio Negro e o Rio Solimões, que quando unidos formam o grandioso Rio Amazonas. O artista Crispim do Amaral, utiliza em sua obra, como destaque, quatro representações humanas. Observou-se que a alegoria apresenta uma similaridade com certos personagens da mitologia clássica greco-romana. A alegoria presente está em concordância os padrões em vigor na pintura acadêmica brasileira, um desses aspectos é afirmação do nacionalismo pré-estabelecido pela Academia Imperial de Belas-Artes. Este elemento pode ser percebido principalmente pela utilização do cenário amazônico com representações do indígena, mesmo que discretas em segundo plano.

 

345  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   No centro da alegoria, há uma figura feminina em cima de uma concha, acompanhada por outros três personagens que parecem saudá-la com a sua vinda ao encontro das águas. O artista utiliza como tema, o nascimento de Vênus ou Afrodite. De acordo com Mavromataki, em Mitología Griega (1997), o nascimento de Afrodite ou Vênus, tem como símbolo a beleza e o amor. Muito adorada e louvada na antiguidade, seu nascimento tem sido fonte de inspiração para artistas de todos os tempos. ‘‘O mito do nascimento de Afrodite surgiu do mar, muito provável que reflita também a relação da água com o amor, a sexualidade e a fertilidade. De acordo com a tradição, a deusa havia tido relações com Poseidon, o deus dos mares, com quem teve a Erica e Rodo. Com frequência os artistas a representam sentada sobre um Hipocampo, e acompanhada de tritões e nereidas.’’(MAVROMATAKI, 1997, p. 86).

Existem várias versões a respeito do nascimento de Vênus. Os escritores da antiguidade clássica mencionam que Afrodite nasceu com a união de Zeus com Dione. Mas, de acordo com a versão mais aceita, Vênus era filha de Urano, sendo uma das principais divindades do Olimpo:   “Quando Cronos cortou os órgãos genitais de Urano, seu pai, o jogou no mar e ensanguentados ficaram a flutuar nas ondas, conforme as correntes e as ondas arrastavam a genitália, foi envolto uma espuma branca que crescia sem parar até tomar forma de uma mulher. Passou por Citera e chegou a Chipre onde da espuma surgiu (segundo outras versões de uma concha) a belíssima deusa, a surgida das ondas, Afrodite, assim que tocou a terra firme foi recebida pelas Horas, as quais as vestiram e enfeitaram com um colar e a coroaram. E a seguir foi conduzida ao Olimpo, onde foi apresentada aos deuses, os quais ficaram perplexos diante de sua beleza.” (MAVROMATAKI, 1997, p. 82).  

  A pintura apresentada por Crispim do Amaral é similar com as outras representações do nascimento de Vênus ou Afrodite, pois teve como referência a mitologia clássica para compor a alegoria principal de sua obra.   A representação pictórica de Crispim do Amaral segue os padrões neoclássicos, estilo dominante na arte ocidental do fim do século XVIII até aproximadamente 1830. A experiência na Academia di San Lucca proporcionou-lhe o contato com os ensinamentos acadêmicos e tradicionais, que podem ser observados na obra.   A soterrada cidade de Pompéia foi descoberta no ano de 1748, renovando assim o interesse pela antiguidade clássica, onde foram descobertos diversos afrescos, com temas mitológicos e cotidianos da vida da cidade de Pompéia e do mundo romano. O movimento neoclássico, também era denominado de “classicismo arqueológico” e buscava reviver o espírito das grandes civilizações da Grécia e de Roma antiga, com o intuito de reagir ao hedonismo e a frivolidade do movimento rococó. Este movimento foi impulsionado por  

346  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   pensadores e filósofos, e combatia a ausência do estilo moral no rococó, no lugar disso, estabeleceram que a arte fosse racional, moral e intelectualizada (FARTHING, 2011). Hauser descreve claramente esse movimento:   “ Essa simplificação sem precedentes e esse nivelamento por baixo dos critérios estéticos, significa o triunfo de um novo idealismo puritano dirigido contra o hedonismo da época. O desejo da linha pura, nítida, nãocomplicada, de regularidade e disciplina, harmonia e repouso “ a nobre simplicidade e calma grandeza... a insinceridade e a sofisticação, o virtuosismo e o brilho vazios do rococó, qualidades que começam agora a ser consideradas pervertidas e degeneradas, mórbidas e antinaturais” (HAUSER, 2000, p. 639)  

  Uma das principais fontes de inspirações para esses artistas neoclássicos vinha através das narrativas literárias e históricas dos gregos e romanos, na qual o artista Crispim do Amaral, provavelmente, utiliza o mito do nascimento de Vênus para a sua representação pictórica com adaptações e motivos regionais.   O cenário apresentado ao fundo da alegoria representa claramente a floresta Amazônica, com desenhos de árvores, flores e animais típicos da região, além da representação dos dois rios mais importantes do norte: o Rio Solimões que está a direita da alegoria, e o Rio Negro, que está a esquerda. A identificação dos rios se dá pelo detalhe presente na moldura pintada pelo artista para ornamentar a composição alegórica. Em cada lado do rio estão presentes duas representações masculinas que saúdam a presença da figura feminina, como deuses do Rio Solimões e Rio Negro.   As figuras masculinas presentes utilizam uma coroa de louros. De acordo com o Dicionário de Símbolos de Lexikon, a coroa tem um significado bastante representativo:     ‘‘Sobretudo por seu material, quase sempre de ramos e flores, na Antiguidade servia de adorno, condecoração e de sinal da graça de deus nos jogos esportivos. Soberanos costumavam ser representados, na Antiguidade com uma coroa de louros. A coroa de louros torna-se também popular condecoração de artistas, poetas sábios eminentes. A coroa é sempre expressão de dignidade e poder (LEXIKON, 1990, p. 65).  

  As duas representações masculinas são: tritões, filhos do deus Poseidon, representados como divindade dos rios:     “Tritão era filho de Poseidon e Anfitrite...A figura inicial de Tritão, representava as forças insondáveis do mar, e foi se modificando pouco a pouco e os gregos imaginavam um grupo de tritões que constituíam o coro marinho… seguidores leais de Poseidon, nadavam no mar, dançando, fazendo música soprando em caracóis do mar. (MAVROMATAKI,1997 , pg. 134)  

 

347  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades     Ao lado esquerdo da figura feminina, acima, há uma figura humana, de uma criança nua, que pode ser um Cupido, Eros ou Amorino, filho de Afrodite -Vênus.     “Filho de Afrodite e do violento Ares...o filho de Afrodite era um belíssimo menino, alado e armado com flechas mágicas com que atravessavam o coração tanto de homens como dos deuses...vinculado com Afrodite e a primavera, quando a natureza floresce...representa a resistência do coração antes da paixão erótica”. (MAVROMATAKI,1997, pg. 123).  

  No segundo plano, Crispim do Amaral, utilizou uma composição com a adaptação de temas regionais, como a floresta amazônica, a flora, a fauna e também retrata um pequeno grupo de índios ao fundo da alegoria, utilizando uma técnica de representação da profundidade.   Outro detalhe importante nesse Pano de Boca é a presença um ser alado junto ao brasão dos Estados Unidos do Brasil de 1889.   A figura do ser alado apresenta um par de asas, está seminu e possui características femininas. Segura o Brasão dos Estados Unidos do Brasil que está ornamentado em uma moldura em estilo art nouveau. Porta em sua mão esquerda, uma coroa de louros, “está ligado ao símbolo da imortalidade. Considerado na antiguidade como purificador físico e moral, atribui-se à ele a capacidade de estimular a inspiração poética, considerado como um símbolo da vitória , quase sempre sobre a forma de coroa” (LEXICON, 1990, p. 129), e na sua mão direita, um instrumento musical de sopro, uma possível trombeta, da família dos trompetes, sendo executada pela figura alada. De acordo com a iconografia tradicional é possível que se trate de uma representação da deusa Vitória, que premiava os vencedores com glória e fama, sendo um dos símbolos da deusa grega Atena.   Pela sua forma gestual e de acordo com os padrões clássicos, a figura alada com características femininas dando destaque ao brasão, poderia estar anunciando o novo regime. Logo abaixo da alegoria, consta a data em que foi proclamada a República.   Não era a primeira vez que o artista Crispim do Amaral utilizava o pano de boca para fazer propaganda do novo regime político. De acordo com Souza (2009, p.167) Amaral não foi um republicano assumido, mas aderiu aos movimentos que sucederam as mudanças políticas de sua época, principalmente aos movimentos abolicionistas, embora, muitas vezes tenha se beneficiado durante o Império, através de contratos e trabalhos importantes. Abraçou o novo regime sem qualquer conflito, “chegando a liderar um carro de artistas nas

 

348  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   inúmeras passeatas realizadas na cidade para comemorar o primeiro aniversário do novo regime.” ( SOUZA, 2009. p 168).   No Theatro da Paz, pintou o pano de boca conhecido como “Alegoria da Republica”, onde há representações de índios, mulatos, negros e brancos, reverenciando a nova república, considerado a “primeira representação artística republicana do estado do Pará” (SOUZA, 2009, p. 142).   A pintura feita por Crispim do Amaral para o pano de boca do Theatro da Paz, em Belém, lhe causou muitas críticas de reprovação: “o portador do pavilhão nacional é um genuíno moreno, esta composição gaulesa, impõem tanta revolta ao civismo nacional que, por tantas vezes tem sido vaiada” (DERENJI, 1996, p 53, apud SOUZA, 2009). Apesar das mudanças políticas que estavam acontecendo no país, à mentalidade da sociedade, dessa época - ainda estava atrelada ao antigo regime colonial, pois “essas manifestações atestam, o quanto estava distante a missão política e filosófica republicana brasileira” (SOUZA, 2009, p. 169). As críticas feitas a Crispim do Amaral não chegaram a afetar a sua influência e importância artística na região norte, tanto é que foi contratado para a decoração interna do Teatro Amazonas e pintou o pano de boca Alegoria do Encontro das Águas sem deixar de revelar na obra pictórica os seus ideais políticos.   Outro elemento decorativo, presente no pano de boca - é a variedade de arranjos florais retratando algumas plantas típicas da região, além da fauna. No centro da moldura que adorna a alegoria, encontra-se o nome do Rio Amazonas, que como efeito cênico, o artista retrata o encontro das águas, desaguando no palco. Nota-se também, como ornamentação, linha ondulares e assimétricas entrelaçadas, formas botânicas, muitos arabescos e volutas. A composição da moldura do pano de boca segue as mesmas características do art-nouveau, as cores vermelhas e douradas e, o estilo dos traços foi uma escolha intencional do artista, seguindo o mesmo padrão estilístico presente no Teatro Amazonas.   O art nouveau (finais do século XIX para o XX) foi um diferenciado estilo decorativo que ganhou imensa popularidade na Europa e nos Estados Unidos, influenciando todos os ramos da arte, desde a pintura e arquitetura, até as artes gráficas. Uma das principais características do estilo citado é a predominância das formas naturais estilizadas, como folhas, gavinhas e arabescos provenientes de uma eclética variedade de fontes. (FARTHING, 2011, p.346).   O Teatro Amazonas, configura-se com o estilo da época, eclético, “quando proliferaram múltiplas propostas do romantismo decadente, firmando-se na evocação de períodos estilísticos remotos” (VALLADARES, 1974, p. 42). A estilística presente se  

349  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   relaciona com o art-nouveau, como a serralheria fitomórfica, as colunas, os gradis das ordens de camarote, o varandim da orquestra, os lustres da plateia e do terraço, a rosácea, tudo importado da casa Koch Frères (VALLADARES, 1974, p.?), que são produtos da linhagem desse estilo.   De caráter eclético, apresenta alguns traços do rococó e a valorização pelas curvas como exemplo, o desenho da moldura que traz os nomes dos rios que formam o Amazonas.   Este pano de boca pode ser relacionado a outra obra, de natureza musical, realizada no mesmo período: a ópera Jara, de José Cândido da Gama Malcher, terminada em 1893 e estreada em 1895 (PÁSCOA, 2009, p.346). Existe a possibilidade, de Crispim do Amaral ter assistido as récitas desta ópera, tendo em vista que também trabalhou no Theatro da Paz como cenógrafo, deixando-se influenciar pelo tema. Márcio Páscoa cita em seu livro Ópera em Belém (2009) uma crítica de Euclides Faria para o jornal A Província do Pará, que faz referência aos aspectos da cenografia utilizada na execução da ópera:   “Aos múltiplos recursos de que se dispõem a arte cenográfica, está reservada uma boa parte do efeito teatral da ópera, especialmente no cenário do quadro final, onde o pincel reprodutor das belezas naturais tem uma palheta enriquecida de caprichosas tintas, nos variados matizes dessa eterna primavera que margina as caudalosas águas do Rio-mar.” (FARIAS apud PÁSCOA, 2009, p. 349).  

  Não se sabe ainda qual foi o primeiro elemento inspirador, mas de fato, percebem-se relações intertextuais entre a temática da ópera e a descrição do cenário utilizado em Jara no Theatro da Paz, com o pano de boca localizado no Teatro Amazonas.     REFERÊNCIAS:     DERENJI, Jussara. Teatros da Amazônia. Belém: Fundação Cultural do Município de Belém, 1996.   FARTHING, Stephen. Tudo Sobre Arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.   FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa. 2°. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.   GERVEREAU, Laurent .Ver, Compreender, Analisar as imagens. Lisboa: Edições 70, 2004.   GRASSI, Emili. A Arte no Séc. XIX. Florença: SCALA Group, 2011.   GONÇALVES, Augusto de Freitas Lopes. Dicionário Crítico e Literário do Teatro no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Cátedra, vol.1, 1976.    

350  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.   JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Lisboa: Edições 70, 1994.   LEITE, José Roberto T. Dicionário Crítico da Pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre, 1983.   _________________. Pintores Negros do Oitocentos. Rio de Janeiro: E. Emanoel Araújo e Indústria de freios KNORR/MWM motores, 1988.   LEXICON, Herder. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Cultrix, 1990.   MAVROMATAVI, Maria. Mitologia Griega, Atenas: Edição Haitalis, 1997.   MESQUITA, Otoni. Manaus História e Arquitetura (1852-1910). Manaus: Editora Valer, 3° Ed. 2006.   MONTEIRO. Mário Ypiranga. O Teatro Amazonas. Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1965/66, 3v.   MORAIS, Frederico. Panorama das Artes Plásticas: séculos XIX e XX. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1989.   PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva,1991.   PÁSCOA, Márcio. A Vida Musical em Manaus na Época da Borracha (1850-1910). Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas/FUNARTE, 1997.   PÁSCOA, Márcio. Crispim do Amaral. Série Memória, nº 17, Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, Coleção nº1, 2000.   PÁSCOA, Márcio. Ópera em Belém. Manaus: Editora Valer, 2009.   PECCARD, F. Les Dieux et les Héro de la Grèce Antique. Paris: Lanore, 1937.   PONTUAL, Roberto. Dicionário das artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.   ROSA, Cecília Amaral de. Dicionario Ilustrado de Símbolos. São Paulo: Escala, 2008.   SOUZA, Roseane Silveira de. Histórias invisíveis do Theatro da Paz: da construção à primeira reforma. Belém do Grão-Pará (1869-1890). São Paulo: PUC, 2009.   WILLIS, Roy. Mitologias- Deuses, Heróis e Xamãs nas Tradições e Lendas de todo o Mundo. São Paulo: PublicaFolha, 2007.   VALLADARES, Clarival do Prado. Restauração e recuperação do Teatro Amazonas. Manaus: Governo do Estado do Amazonas, 1974.    

351  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ZANINI,Walter, (org). História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Sales, Fundação Djalma Guimarães, 1983.    

 

352  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   DAS ARTES GRÁFICAS ÀS EDIÇÕES DE ARTISTA: BREVE PERCURSO Rômulo do Nascimento Pereira Primeiras páginas: da tipografia ao livro feio Neste breve relato busca-se encontrar caminhos, cruzamentos e marcos entre a produção de livros no Brasil e a inserção desse objeto no circuito das artes visuais. Percurso entre produção e proposição, objeto e conceito, que parte da implantação da tecnologia tipográfica em terras brasileiras até as edições de arte e artista nas décadas de 1950-60. Momento em que aparecem edições experimentais e proposições artísticas na forma de livros, e de onde já é possível vislumbrar o domínio, não da imagem, mas das artes visuais sobre a forma escrita: artistas conjugando outros verbos, tempos e meios em edições com poéticas particulares. Inicialmente observa-se a presença da arte como domínio técnico nas chamadas artes do livro: caligrafia, tipografia, ilustração, gravura, encadernação, ainda subordinado ao modelo tradicional de produção do livro. Depois começa a se fazer presente uma maior autonomia, em que o artista tem um papel mais atuante no mercado editorial, são chamados para ilustrar, dirigir edições e inclusive publicar trabalhos. Seguimos até o limite, nas décadas de 1950-60, em que as primeiras edições de artista surgem no Brasil, algumas advindas inclusive dessa tradição gráfica. Buscou-se aqui uma ampla gama de referências por se tratar de um campo de múltiplos domínios e de várias histórias, aqui reunidas para demonstrar não uma tradição, mas uma realização. A árvore genealógica dos livros inicia com um parente distante: a consolidação da produção do livro em terras brasileiras. Essa opção parece pertinente para se conhecer um pouco a história acerca do domínio técnico de fabricação do livro no Brasil. Os primeiros livros que aqui aportam vêm de Portugal, trazem uma língua que será materna de seus habitantes, e sua circulação ocorre, sobretudo, com a chegada de ordens religiosas, ainda no século XVI, e a fundação dos primeiros colégios, onde são formadas bibliotecas. O oposto se dá com a produção de livros, que ocorre de forma tardia, somente no século XIX. Os colonizadores portugueses não permitiram a instalação de empreendimento tipográfico em território brasileiro, mesmo com a tentativa feita, em 1747, pelo impressor português Antonio Isidoro da Fonseca, que, sem autorização, produziu o primeiro livro impresso no Brasil. A tecnologia tipográfica desenvolvida por Gutenberg, em 1455, somente se estabeleceu definitivamente no Brasil com a presença da corte portuguesa, em 1808.  

353  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Ressalve-se que esse nobre ato acontece em decorrência do cerco que tropas francesas impuseram a Portugal. A Impressão Régia iniciou oficialmente seus trabalhos no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1808, produzindo principalmente diversos impressos necessários ao funcionamento administrativo do governo recém-estabelecido e, em menor número, jornais, trabalhos de divulgação científica e literatura. Nessas obras já se encontra a presença de trabalhos em gravura, principalmente na forma de retratos e vinhetas. Durante seu funcionamento, a Impressão Régia, de 1808 a 1822, produziu mais de mil itens, em sua maioria impressos de poucas páginas, mas também algumas edições de maior fôlego, inclusive romances. Vale lembrar que alguns trabalhos eram feitos sob encomenda de particulares. Sobre a qualidade e perícia técnica dessas obras, relata-se a opinião duplamente qualificada do pesquisador e bibliófilo Rubens Borba de Moraes (1998, p.198): “não se pode deixar de ficar admirado com a qualidade dos livros e folhetos que publicou. (...) comparáveis às melhores composições saídas dos prelos famosos da França e da Inglaterra na mesma época”. Também havia flagrantes problemas como a falta de material tipográfico, o que obrigava seus técnicos a improvisos e comprometia a boa qualidade gráfica dos seus trabalhos (Rocha, 2007). A tipografia espalhou-se, chegou à Bahia ainda em 1811 e depois a outras províncias, novos empreendimentos estrangeiros também surgem no Rio de Janeiro, sobretudo franceses e alemães, que logo puseram a serviço dos brasileiros novos processos, como a litografia e a fotografia. Também influenciaram e aprimoraram as técnicas e estilos de composição e impressão do livro, diminuindo nosso atraso em relação aos maiores centros. Antes mesmo da chegada da tipografia a encadernação já era uma técnica presente para suprir uma demanda natural pelo ofício. Com a Impressão Régia começa a vigorar certo padrão de encadernação nas edições oficiais em que as armas do Império eram ostentadas (Moraes, 1998, p. 78). Novamente a presença estrangeira se fez presente, pois muitos livros eram enviados à Europa para serem encadernados ou ainda eram estrangeiros os artífices que aqui trabalhavam nesse ofício. Na imprensa periódica vamos encontrar uma apropriação e difusão maior da imagem, da gravura e posteriormente da fotografia. Inicialmente com grandes problemas técnicos, essa foi uma constante em nossa história gráfica – as dificuldades técnicas. Joaquim Andrade ilustra essa dificuldade em seu trabalho (2009, p. 52), quando cita a nota impressa no número 19, de A Pacotilha, de 1866: “Aos assinantes pedimos desculpas de mal impressos irem os textos, porque tendo adoecido o impressor, foi a última hora entregue a um que não conhecia o trabalho”. A solução encontrada para produzir impressos ilustrados, texto e imagem foi fazer vir dos centros produtores trabalhadores hábeis. Também

 

354  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   chegaram novos equipamentos, técnicas e desafios. Alguns, como a litografia, chegaram quase simultaneamente ao seu aparecimento nos países europeus (Andrade, 2009, p. 48). A imprensa, no início do século XX, se encontrava bastante difundida, utilizando em suas páginas modernos processos de impressão e reprodução de imagens, no entanto a qualidade dos livros impressos no Brasil havia decaído. Reflexo talvez da instabilidade política e econômica causada pela mudança do sistema político, ou também pela morte de importantes livreiros. Em artigo de jornal, de 1925, Gilberto Freyre nos diz a respeito do livro no Brasil e Portugal: “Este movimento de reabilitação estética da tipografia e da impressão e da encadernação – da estética do livro, em suma, quase não nos atingiu, aos brasileiros e portugueses. Nós somos os países do livro feio. Do livro incaracterístico, principalmente o Brasil”. No mesmo texto segue impiedosamente: Da minha parte, habituei-me a ver no atual livro brasileiro toda a negação da estética do livro. Toda a negação do decoro, já não digo artístico mas comum. E a mim parece certo o seguinte: que os poetas têm os tipógrafos que merecem; e o chamado “público intelectual” tem igualmente os livros que merece.

Não é de se estranhar tamanho conhecimento e, mais que desapontamento, a vergonha que causa a edição brasileira a Gilberto Freyre, que teve sua educação realizada no exterior e também por ter sido admirador de William Morris (Pallares-Burke, 2005), a quem cita no referido artigo. Conheceu, assim, a melhor produção gráfica feita em sua época, o trabalho das private presses. Editoras independentes que se esmeravam por produzir livros nos mais altos padrões materiais, técnicos e estéticos, resgatando a tradição e fazendo avançar os métodos e técnicas de impressores do passado, tendo como modelo a atuação da Kelmscott Press, do citado William Morris. Freyre, apesar do tom passional, fez a distinção nem sempre clara de que quem produz o livro não é o autor, este é responsável pelo texto, pelo conteúdo, não pela forma. A nota destoante desse pobre cenário, novamente em desacordo com Freyre, ocorreu com as revistas ilustradas. O desenho e planejamento gráfico dos livros de então são visualmente inferiores ao encontrado nas revistas Fon Fon, A Maçã, Malho e Para Todos. As edições brasileiras de livros com qualidade gráfica são raras, mas cabe destacar nesse cenário a atuação de Monteiro Lobato no mercado livreiro, e também o aparecimento de profissionais mais qualificados, como o português Fernando de Correia Dias, Di Cavalcante, Paim, Belmonte e posteriormente de Santa Rosa. As edições de autores modernistas merecem destaque pela diversidade e inovação de padrões gráficos, sobretudo nas capas, e a intensa colaboração entre artistas e escritores. Já as revistas modernistas talvez possam ser consideradas, no Brasil, um primeiro ponto de contato, de apropriação do meio impresso para expressar um ideário artístico. O mensário de arte moderna Klaxon é o exemplo inicial dessa atitude. Lan  

355  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   çado em 1922, teve nove edições até seu encerramento, em 1923, com a contribuição de diversos artistas. Outras revistas modernistas surgem, não só em São Paulo, também no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, todas com vida curta. Necessário citar, entre pioneiros, o artista plástico pernambucano Vicente Rego Monteiro, que realizou sofisticados trabalhos gráficos no Recife e em Paris, seja ilustrando, imprimindo ou editando livros. Destaque-se também um Flávio de Carvalho, que, em 1931, realizou sua Experiência n.º 2, título de seu livro e de evento que ele protagonizou ao intervir em uma procissão de Corpus Christi, caminhando de boné e em sentido contrário ao da multidão católica. As edições de arte No início do século XX, os primeiros livros de arte brasileiros começam a ser produzidos, na maioria das vezes, em edições particulares custeadas pelo próprio autor ou ainda na forma de álbuns ou portfólio de artistas. Quando fazemos referência ao termo, não se trata de livros que tenham a arte como assunto, mas sim de livros feitos com arte, com perícia e refinamento técnicos. Knychala (1984), em seu estudo pioneiro desse tipo de produção, assim os define: além de símbolo cultural de valores semânticos, apresenta-se como um objeto com valores artísticos tais como boa qualidade do papel, dos caracteres tipográficos e da encadernação, arquitetura e diagramação harmoniosas e não necessariamente ilustrado; mas se contiver ilustrações, são consideradas não só as ilustrações feitas com processos manuais, como a xilogravura, a gravura em metal, a litografia e a serigrafia, como também fotografias artísticas e reproduções por processos fotomecânicos.

Em recente publicação, Gisela Creni (2013, p. 22) faz uma distinção entre livros artesanais, objeto de sua pesquisa, e os de arte. Embora reconheça muitas semelhanças, ressalta ela que as edições de arte privilegiam textos consagrados e acabamentos luxuosos, o que não aconteceria com as edições artesanais. Diferenças que não se percebem nítidas quando se observa o conjunto dessas edições no Brasil e mesmo na definição citada acima. O que nítido se vê, e a autora ressalta, é o fato de serem quase sempre essas iniciativas solitárias, independentes e também passionais, mostrando em sua produção as evidências de uma paixão: pelo livro e pelo encanto de realizar a arte invisível de projetar uma edição, e depois torná-la visível pela arte negra da impressão. Produção que toma corpo nas décadas de 1930 e 40, como se observa na produção das mais significativas realizadas no Brasil, obra que uniu um texto modernista e um grande artista brasileiro em 1937: Cobra Norato, de Raul Bopp, uma edição de arte impressa em papel especial, com tiragem de 150 exemplares, assinados por Oswaldo Goeldi, que ilustrou e também dirigiu a edição. A gravura nessa obra é exuberante, seja em página inteira, ou em  

356  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   detalhes como nas capitulares, na vinheta que está na capa integrada ao título do livro, ou ainda no uso expressivo das cores. Outro marco, no casamento de edição e arte, ocorre com a fundação da Sociedade dos Cem Bibliófilos, em 1943. Nasceu por empenho e dedicação de Raymundo Ottoni de Castro Maya, a partir da reunião com sócios para a promoção de suas edições, sempre com tiragem limitada a 119 exemplares. Machado de Assis foi o primeiro autor publicado com Memórias Pósthumas de Braz Cubas, ilustrado com sete águas-fortes originais de Portinari; ressalte-se que as placas que serviram para a impressão das gravuras foram inutilizadas, conforme consta no seu colofão. Esse detalhe serviu para acentuar o caráter exclusivo da obra e foi repetido nas outras 22 publicações, totalizando 23 edições com a supervisão direta de Castro Maya. Nessas, tentava promover o perfeito casamento entre um texto de qualidade reconhecida de autor brasileiro ou sobre o Brasil e ilustrações de significativos artistas brasileiros. Suas edições possuem formatos e projetos gráficos variados, sempre fazendo uso intensivo da gravura, sobretudo em metal: águas-fortes, águas-tintas, buril e verniz mole, e pontualmente foram usadas a xilo, lito e a serigrafia (MONTEIRO, 2008). Isso sem mencionar a edição de Memórias de um Sargento de milícias, onde as gravuras em metal foram coloridas à mão, em aguadas, por Darel. Um processo demorado, mas que confere um caráter único a cada exemplar. Cada edição traz na diagramação do texto grande variedade de soluções planejadas de acordo com a obra, criando imponentes e ricas páginas. Esse cuidado exigiu sempre grande dispêndio de tempo e de capital a cada nova edição; algumas demoravam anos para serem finalizadas. Contudo, percebe-se, além do respeito à tradição gráfica, um desejo elitista pela aura do objeto de arte exclusivo. Seu último livro é publicado em 1969, no ano anterior morre o idealizador, Castro Maya. Assim, Compadre de Ogum, de Jorge Amado, marcou o fim da mais importante iniciativa editorial de livros de arte no Brasil. Na década de 1940-50, outras importantes editoras de livros de arte surgem, como as edições Condé, a Gaveta, a Dinamene, de Pedro Moacir Maia, a Hipocampo, dos poetas Thiago de Mello e Geir Campos, e a Philobiblion, do catalão Manuel Segalá, dentre outras. Algumas grandes editoras, como a José Olympio, produziram edições de arte. Muitas vezes faziam a impressão de parte da tiragem de suas obras em papel melhor, numeradas e assinadas, para poderem dar de presente ou mesmo por razões comerciais. Momento em que se percebe uma produção pródiga, mantida até a década de 1960, e não só pelo número de editoras, mas, sobretudo, pela qualidade e variedade de propostas. Também pelo surgimento no cenário artístico brasileiro da Arte Concreta, com desdobramentos na literatura, com o movimento de poesia concreta, de onde parte uma interessante produção entre arte e edição.  

357  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Aves raras, concretas e gráficas A apropriação do livro para a produção de uma obra artística se dá de maneira definitiva e madura nas décadas de 1950‐60. Livro de artista é o conceito que surge para tentar definir uma produção cada vez maior de obras artísticas construídas a partir do livro. Seus antecedentes podem ser encontrados em diversos momentos em que a arte e a edição misturaram seus papéis e lugares, gerando impressos híbridos e inovadores. Nessas ocasiões se começa a perceber uma apropriação de um objeto e das várias técnicas associadas à sua produção para a realização de edições incomuns e ativas na construção da significação da obra. Nesses impressos o acesso ao conteúdo passa a ser tátil, visual e também conceitual, exigindo a participação do leitor. O texto sendo trabalhado como imagem, como matéria manipulável, dividido em partes, em tipos, letras, sinais e espaços em brancos. A linearidade é perdida, assim vários tons e vozes podem ser então representados, ouvidos, sem medo de se perderem ou descaracterizarem, optam por misturar-se, para manter fronteiras abertas e passagens livres entre diferentes áreas e poéticas. A partir da perspectiva iniciada no modernismo brasileiro com a emblemática Semana de 22, temos a arte concreta; na década de 1950, como momento para várias redefinições. Defendia-se uma tentativa de superação do modelo anterior, de fundo nacionalista e figurativo, pela abstração, de onde emerge a arte concreta. “Ruptura”, assim foi chamada a exposição realizada em São Paulo, em 1952, e que marca o início da arte concreta no Brasil. Esse também é o nome que identifica o grupo paulista, formado por Waldemar Cordeiro, Luiz Sacilotto, Geraldo de Barros, Anatol Wladyslaw, Lothar Charoux. No Rio de Janeiro, a partir de 1953, formou-se o Grupo Frente, tendo como participantes Ferreira Gullar, Décio Vieira, Aluísio Carvão, Ivan Serpa, Lygia Pape, Lygia Clark. O grupo carioca aumentou por ocasião de sua segunda exposição, em 1955, com Abraham Palatnik, César Oiticica, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Rubem Ludolf, Elisa Martins da Silveira e Emil Baruch. Pela composição dos grupos, já se veem algumas diferenças: o paulista, mais coeso, menor, com participação de artistas estrangeiros; o carioca maior, aberto o suficiente para incluir uma pintora primitivista e a utilização mais lírica e pessoal da abstração em diversos suportes. Em paralelo à organização e realizações dos grupos Ruptura e Frente, há um movimento iniciado por poetas paulistas que se agrupam e publicam sua produção na revista-livro Noigandres, em 1952, e que daria corpo ao movimento de poesia concreta no Brasil. Nesse primeiro número ainda não houve poemas concretos, há a produção dos poetas e irmãos Augusto e Haroldo de Campos, e de Décio Pignatari que decidiram publicar em conjunto. O segundo número da revista foi publicado em fevereiro de 1955, com contribuições apenas dos  

358  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   irmãos Campos nas 27 páginas da edição de apenas cem exemplares. Essa pequena tiragem se justifica pela dificuldade em se imprimir a série de seis poemas concretos intitulado “poetamenos”, de 1953, de Augusto de Campos, que utilizou na sua composição tipográfica a combinação de diversas cores. Pignatari estava em viagem pela Europa estabelecendo contato com artistas, como o suíço-boliviano Eugen Gomringer, secretário de Max Bill na escola de Ulm e que desenvolvia uma produção poética com similaridades à poesia dos paulistas. Esse contato foi importante na difusão internacional da nascente poesia concreta. Lançada oficialmente na Exposição Nacional de Arte Concreta (São Paulo, dezembro de 1956; Rio de Janeiro, fevereiro de 1957), o movimento de poesia concreta foi representada pela já citada tríade paulista, com a contribuição de Ferreira Gullar, Ronaldo Azeredo e Wlademir Dias-Pino. Nessa exposição, a produção desses poetas foi exibida na forma de cartazes-poemas, interessante transposição da página do livro para o pôster, mudança não só de escala. No cartaz a voz precisa ir mais longe, ir mais alto, é necessário o contraste, o (ne)grito, uma composição visual forte para ganhar a atenção do público, conseguir, à força, uma leitura coletiva. Depois veio o livro-poema, o primeiro exemplo de livro de artista brasileiro. Essa mostra marcou o aprofundamento das divergências que levou o grupo carioca a lançar, em 1959, o manifesto neoconcreto, rompendo definitivamente com o concretismo. A origem da poesia concreta está ligada, segundo o “plano piloto para poesia concreta” (Campos, p. 154), aos precursores Mallarmé, Joyce, Apollinaire, e, no Brasil, a Oswald e João Cabral de Melo Neto. Gonzalo Aguiar (2005) assim descreve esse movimento: Com as artes das bienais – a pintura, a escultura, a arquitetura –, os poetas criaram um espaço de diálogo e de performance: ao tirar a poesia de seu lugar convencional, exigiram que esta se definisse com relação às demais artes. A poesia se apresentava como planejamento, design e construção, categorias que a aproximava das artes visuais e da poética de João Cabral de Melo Neto, mas sobretudo dessa disciplina que no Brasil se havia convertido em emblema de tradição modernista: a arquitetura.

Os poetas Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos são os principais expoentes, juntos defendiam, assim como seus pares paulistas das artes visuais, uma posição mais dogmática e rígida da arte concreta. Na referida exposição de 1956-57, o carioca Wlademir DiasPino expôs seu poema solida, uma proposta particular em quatro poemas-cartazes em que utiliza uma composição diagramática das letras da palavra solida. Outra proposta peculiar foi apresentada na mesma exposição pelo maranhense radicado no Rio, Ferreira Gullar: alguns poemas de uma obra ainda a terminar, intitulada O Formigueiro. Ambos os poetas prometiam o lançamento de seus livros experimentais na exposição. Wlademir o seu Ave, e Gullar o seu Formigueiro. Não sendo suficiente ter apenas o controle da página, chegaram até a reunião destas em cadernos, até o livro. A sequencialidade de suas folhas, o tamanho, cores,  

359  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   tipografia, encadernação, layout, enfim, seu conjunto material se fez necessário para dar voz a uma determinada poética, o livro todo devia falar. Este é o livro de artista, a apropriação de um objeto, o livro, para conter em cada dado material e simbólico a expressão de uma proposição artística, que pode ser apenas conceitual ou material. Esse também é Ave, edição lançando em 1956, constituindo-se a primeira edição de artista brasileira, ou ainda o Livro da Criação, de Lygia Pape, em 1959, abrindo-se assim definitivamente uma constelação de possibilidades, para produções artísticas na forma de livro. A editora pernambucana O Gráfico Amador mostra-se como um projeto coletivo, formado por «pessoas interessadas na arte do livro. Fundado em maio de 1954, tem a finalidade de editar, sob cuidadosa forma gráfica, textos literários cuja extensão não ultrapasse as limitações de uma oficina de amadores» (Lima, 1996). Vale citar que contaram com o apoio de João Cabral de Melo Neto, que além de poeta, publicou edições de arte na Espanha, em sua editora O Livro Inconsútil. As edições de O Gráfico Amador mostram uma mistura maior de linguagens e de abordagens em sua produção, como ocorre com o livro de João Cabral, Aniki Bobó, de 1958, obra realizada a partir de ilustrações de Aloísio Magalhães utilizando matrizes feitas com barbante colado em bloco de madeira e pochoir. O poema de João Cabral foi escrito depois das imagens estarem impressas, invertendo a primazia, mesmo nas edições de arte, do texto sobre a imagem. O Gráfico Amador marcou o panorama das edições de livro de arte também por nos apresentar um artista gráfico que produziu importante obra como designer, Aloísio Magalhães e seus livros de arte, híbridos e de artista. De suas fileiras também sai Gastão de Holanda, que manterá uma produção de edições de arte, algumas pela editora Fontana, com destaque para a produção de Escritura, edição que reúne textos de vários escritores e gravuras em variadas técnicas assinadas por diversos artistas em 1973. Aloísio Magalhães realizou diversas obras marcantes nesse cenário, destacando-se as duas produções em colaboração com o artista gráfico americano Eugene Feldman, dono da Falcon Press, onde essas edições são produzidas nos Estados Unidos. Doorway to Portuguese é uma produção de 1957 que se assemelha com um livro de viajantes, só que não narra ou mostra um lugar existente na Terra, mas uma língua, o português, com sotaque marcadamente brasileiro, de Pernambuco, único. Seu conteúdo é composto por nove duplas de páginas produzidas de maneira diversa e por vários colaboradores tendo letras e palavras-chave como fio condutor. Outra viagem acontece em Doorway to Brasília, de 1959, livro produzido a partir de fotos da construção de Brasília. Aloísio Magalhães ainda produziu várias edições interessantes, como Improvisação Gráfica, de 1958, edição em forma de portfólio realizada na oficina de O Gráfico Amador e utilizando diversas técnicas (Leite, 2003, p. 114). Na  

360  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   década de 1970 produziu livros utilizando folhas de outdoor e máquinas de xerox, também passando a atuar como designer gráfico produzindo edições de arte em seu escritório, além de atuar em âmbito governamental. Merecido reconhecimento também deve ser dispensado à editora paulista Massao Ohno, que leva nome de seu fundador e editor e torna-se importante pelos diversos autores que lançou, com destaque para novos poetas e pela atuação de vários artistas, não só ilustrando, mas produzindo obras artísticas na forma de livro. Iniciou seus trabalhos editoriais em fins da década de 1950 como uma duplicadora, imprimindo obras didáticas destinadas a cursinhos pré-vestibulares. Já no início da década seguinte seu perfil mudou completamente. Seu cartão de visita, que marcou sua posição única no mercado livreiro, aconteceu com a coleção dos novíssimos, a Antologia dos novíssimos, de 1961. Essa obra publicou vários autores então desconhecidos e uma de suas características foi o comprometimento com novas vozes, com proposições artísticas múltiplas e generosas. Também publicou a revista de poesia concreta Noigandres n.º 5, em 1962, e a Invenção: Revista de Arte de vanguarda n.º 2 no mesmo ano. Suas edições são muito bem cuidadas graficamente, várias são ilustradas ou dirigidas por artistas, e, em sua maioria, são impressas por meios convencionais, com tiragens variadas. Além disso, acolheu viagens a solo de artistas na forma de livros, projetos híbridos e proposições particulares, como aconteceu com a edição de Paranoia, de 1963, de Roberto Piva, fotografado e desenhado por Wesley Duke Lee a partir do encontro com o escritor. Editou vários trabalhos dessa natureza, como as produções, todas de 1978, de Betty Leinner, Squares of Light, de Gretta, em Auto-photos, em O que é arte? São Paulo responde, de Regina Vater, e também Ivald Granato, com a produção O domador de boca, em colaboração com o artista mexicano Ulises Carrión. O argentino Júlio Pacello realizou em São Paulo produções gráficas muito bem-acabadas de artistas plásticos brasileiros, a partir de 1964. A maioria na forma de portfólio de artista ou edições de gravuras acompanhadas de poesia de escritores brasileiros. Algumas produções são, efetivamente, livros de artista e não apenas edições de arte, como no caso de Objetos, de Júlio Plaza, de 1969. As técnicas empregadas em suas mais de 20 edições são diversas, assim como as tiragens e formatos, sempre com excelente qualidade gráfica. Algumas edições apresentam acabamento diferenciado, integrando a forma do objeto ao tema, como no livro que tem a capa em forma de oratório, de madeira policromada, para o trabalho de Djanira, intitulado Oratório, com poema de Odylo Costa Filho. A atenção ao detalhe, a valorização da arte da gravura, a graça, são evidentes.  

361  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Suas atividades terminaram com o falecimento de seu realizador, em 1977. Vários projetos de edições são deixados inacabados, mas a perda maior é o desaparecimento de uma figura capaz de acreditar na produção de obras de arte de forma impressa, imagem gravada em papel, com brilho de um projeto inventivo, atento e enriquecedor. Destaquemos ainda a Alumbramento, nome retirado de um poema de Manuel Bandeira, que identifica a editora idealizada por Salvador Monteiro. Suas edições de arte apresentam padrão que é reconhecível com o uso de papel especial, Fabriano, com ilustrações em serigrafia, e a impressão manual, tendo tiragens e tamanhos variados. Alguns artistas que ilustraram suas obras: Aldemir Martins, Darel, Carlos Leão, Di Cavalcanti, Eric Marcier, Carybé e ainda um livro-objeto de Frans Krajcberg. A partir de 1980, a editora passou a publicar livros de arte usando processos industriais de composição e impressão. São muitas as editoras que produziram edições de arte, algumas ainda não citadas, como a Macunaíma, a Noa Noa, que recentemente perdeu seu fundador, Cleber Teixeira,e as edições João Pereira, dentre outras. Buscou-se ressaltar aquelas editoras associadas à produção artesanal e as que mais se aproximaram de uma apropriação plástica ou crítica do livro, mesmo que de forma não intencional. As edições de arte têm uma forma refinada e quase sempre uma postura conservadora de edição, com as devidas exceções. Seguem sendo produzidas, principalmente em edições patrocinadas por empresas ou órgãos do governo ou ainda em edições comerciais e com ampla tiragem. Os incentivos fiscais permitiram uma nova onda edições de arte, sobretudo nas décadas de 80 e 90, e, diferente das iniciativas anteriormente citadas, houve um predomínio dos álbuns ilustrados por fotos, monografias de artistas, catálogos ou de edições temáticas, sempre impressos nos meios gráficos convencionais. Alguns ainda de restrita circulação, já que muitas vezes são edições distribuídas como brindes pelas empresas que as patrocinaram. Deve-se destacar uma editora que marca a produção de livros no Brasil a partir de 1997, com a publicação de Barroco de Lírios, do artista Tunga, edição em capa dura, profusamente ilustrada, com vários tipos de papéis, encartes, e com planejamento do próprio artista. A Cosac Naify passa a ser a casa das edições mais interessantes, dos projetos mais inovadores realizados no Brasil. Também se percebe um movimento que volta a crescer, o das iniciativas particulares que resgatam processos artesanais de produção do livro. Um exemplo é a Confraria dos Bibliófilos do Brasil, sediada em Brasília e em pleno funcionamento, além de várias outras independentes espalhadas pelo país, que revitalizam e reencontram a beleza de ver, sentir e produzir edições bem cuidadas, mesmo em tempos difíceis e digitais.

 

362  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Referências AGUILAR, Moisés Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: Edusp, 2005. ALENCAR, Vera de (Org.). Castro Maya bibliófilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. Processos de reprodução e impressão no Brasil, 1808-1930. In: Impresso no Brasil, 1808-1930: destaques da história gráfica no acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2009. BANDEIRA, João; BARROS, Leonora de. Grupo Noigandres. Coleção Arte concreta Paulista. São Paulo: Cosac & Naif / Centro Universitário Maria Antonia, da USP, 2002. BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo. Vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac &Naify, 1999. CALABRESE, Omar. A Linguagem da Arte. Rio de Janeiro: Globo, 2002. CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta – textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo: Edições Invenção, 1965. CRENI, Gisela. Editores Artesanais Brasileiros. Belo Horizonte: Autêntica Editora; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2013. COSTA, Cacilda Teixeira de. Livros de Arte no Brasil: edições patrocinadas. São Paulo: Itaú Cultural, 2000. FABRIS, Anna Tereza; COSTA, Cacilda Teixeira. Tendências do livro de artista no Brasil. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1985. FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e Letra: introdução à bibliologia brasileira: a imagem gravada. São Paulo: Melhoramentos / Edusp, 1977. FREYRE, Gilberto. O livro Belo. In: Diário de Pernambuco, em 18 de outubro de 1925. GULLAR, Ferreira. Etapas da Arte Contemporânea: do cubismo ao neoconcretismo. São Paulo: Nobel, 1985. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. Sua história. 2.ª ed. São Paulo: Edusp, 2005. IBÁÑEZ, Verónica Alarcón. Cuando el libro se hace arte. História de un genero artístico olvidado. Valência: Institució Alfonsel Magnànim, 2009. JÚLIO PACELLO e sua obra editorial (catálogo de exposição). São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1979. KNYCHALA, Catarina Helena. O livro de arte brasileiro. Rio de Janeiro: Presença; Brasília: INL, 1983.

 

363  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   LAGO, Pedro Corrêa do. Brasiliana Itaú: uma grande coleção dedicada ao Brasil. Rio de Janeiro: Capivara Editora, 2009. LEITE, João de Souza. A herança do olhar: o design de Aloísio Magalhães. Rio de Janeiro: Arteviva, 2003. LIMA, Guilherme Cunha. O Gráfico Amador – as origens da moderna tipografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. MONTEIRO, Gisela Costa Pinheiro. A identidade visual da Coleção dos Cem Bibliófilos do Brasil, 1943/1969. Rio de Janeiro: Esdi, 2008, 223 p. Dissertação (Mestrado em Design). MORAES, Rubens Borba de. O bibliófilo aprendiz. 3.ª ed. Brasília: Briquet de Lemos/Livros; Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1998. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. São Paulo: Unesp, 2005. PEREIRA, Rômulo do Nascimento. Livro de arte: contribuições ao projeto de livro no Brasil. In: Anais do 8.º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Design. São Paulo, 2009. ROCHA, Cláudio. Detalhes tipográficos na Impressão Régia. In: Revista da Biblioteca Mário de Andrade – Dossiê Impressão Régia, n.º 63. São Paulo: Departamento Biblioteca Mário de Andrade, 2007. SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. 2.ª ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. SOUZA, Márcia Regina Pereira de. Poesia concreta, experiências neoconcretas e os inícios do livro de artista no Brasil. In: Anais do 18.º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – Transversalidades nas Artes Visuais. Salvador, 2009. ZAMBONI, Sílvio. A Pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. 2.ª ed. Campinas: Editora Autores Associados, 2001.  

 

364  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

PROPOSTA DE EDIÇÃO CRÍTICA E ANÁLISE DE GLI EROI SPARTANI DE ANTONIO LEAL MOREIRA (1758-1819) Silvia Raquel de Souza Lima116 RESUMO: Antonio Leal Moreira (1758-1819) é, de acordo com as fontes sobreviventes, o segundo compositor a escrever ópera com texto em português, depois de Antonio Teixeira (1707-1774). Antes disso, entretanto, desenvolveu diversas obras congêneres em italiano, dentre elas a serenata Gli Eroi Spartani, terminada em 1788, que teve sua estréia no Palácio da Ribeira, no dia 21 de Agosto do mesmo ano. Durante a época da composição, as serenatas serviam às comemorações externas dos nobres da corte, geralmente para elogiar o caráter de uma pessoa específica; Gli Eroi Spartani foi composta para comemorar o aniversário de Dom José, Príncipe do Brasil (1716-1788). A pesquisa agora em curso envolve uma abordagem analítica da serenata Gli Eroi Spartani, com vistas a contextualizar uma edição crítica e de performance. Palavras-chave: Gli Eroi Spartani; Antônio Leal Moreira; Serenata; Edição crítica.

ABSTRACT: Antonio Leal Moreira (1758-1819) according to surviving sources, is the second composer to write opera with text in Portuguese, after Antonio Teixeira (1707-1774). Before that, however, he developed several similar works in Italian, among them is the serenade Gli Eroi Spartani, finished in 1788, which had its premiere at the Palácio da Ribeira, on 21 August of the same year. In the time of composition, serenades were used to outside celebrations of the nobles, usually to compliment the character of an specific person; Gli Eroi Spartani was composed to celebrate the anniversary of Don José, Prince of Brazil (1716 – 1788). The research now underway involves an analytical approach of the serenade Gli Eroi Spartani, in order to contextualize critical edition and performance. Keywords: Gli Eroi Spartani; Antônio Leal Moreira; Serenata; Critical edition.

Antonio Leal Moreira (1758-1819) estudou no Seminário da Sé Patriarcal de Lisboa, onde foi aluno de João de Souza Carvalho, conhecido compositor e professor de contraponto. Segundo Ernesto Vieira, Antonio Leal Moreira foi um dos mais notáveis alunos desta instituição, chegando a ser ajudante substituto de seus mestres e continuando no Seminário mesmo após terminar seus estudos.117 Leal Moreira foi organista da Patriarcal e com sua estréia como compositor, quando a Missa do Espírito Santo foi cantada em 19 de                                                                                                                 116

Licenciada em Música pela Universidade do Estado do Amazonas. É professora de violino e teoria musical no centro de artes da Universidade Federal do Amazonas (CAUA). 117 Vieira, 1900. pp. 105 e 106.

 

365  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Maio de 1777 durante a cerimônia de aclamação de D. Maria I, entrou para a irmandade de Santa Cecília. Posteriormente, como mestre da Capela Real e Patriarcal, passou a compor óperas em italiano para os teatros régios. Dentre suas muitas composições encontra-se a serenata Gli Eroi Spartani, terminada em 1788, que teve sua estréia no Palácio da Ribeira no dia 21 de Agosto do mesmo ano. Esta obra é considerada serenata por ser em um único ato, com cerca de uma hora de duração, ter poucos personagens e nenhum grande coro. Durante a época da composição, as serenatas serviam às comemorações externas dos nobres da corte e geralmente eram para elogiar o caráter de uma pessoa específica, Gli Eroi foi composta para comemorar o aniversário de Dom José, Príncipe do Brasil (1716 – 1788). A música de Antonio Leal Moreira foi bastante copiada no Brasil Colonial, servindo de fonte para jovens compositores ou aos músicos práticos que montavam repertório. Sua obra dramática envolve diversas escolhas, de formato e idioma, tendo sido também destinada a públicos diversos, uma vez que ele se dividia entre suas funções na Corte, na Real Patriarcal e na direção do Teatro da Rua dos Condes. Na pesquisa em andamento, foi proposta uma edição crítica da serenata Gli Eroi Spartani, tendo como bases o manuscrito proveniente dos acervos da Biblioteca da Ajuda e o do Paço Ducal de Vila Viçosa. O primeiro, da Biblioteca da Ajuda, é a grade com todos os instrumentos, cópia provavelmente feita para ser guardada, uma vez que as páginas estão em ótimo estado de conservação. A partitura apesar de ser muito bem escrita, e onde as notas podem ser facilmente identificadas, apresenta alguns erros de harmonia. Já o segundo manuscrito, o de Vila Viçosa, são partes cavas de um trecho da serenata, sendo partes de dois cantores, Lisandro e Alcibiade (com texto em português), e de instrumentos. O estado de conservação desse não é tão bom, o que é justificável pela aparente má qualidade do papel e o muito manuseio que deve ter tido, pois é possível ver algumas modificações feitas pelos próprios músicos que a utilizaram. Mas, apesar de alguns erros de grafia, não são encontrados tantos problemas de harmonia como no outro manuscrito, provavelmente também por ter sido usada em ensaios onde depois de escutar os erros a partitura era modificada. Em Portugal, no período em que Gli Eroi Spartani foi apresentada, o público agia de acordo com àqueles a quem a obra foi dirigida, o rei e a rainha. Se o rei aplaudia, o público se manifestava aplaudindo e só assim a música poderia ter sucesso. Em um espetáculo o resultado se dá muito da relação que acontece dentro da sala, ou seja, se na recepção existe algum tipo de retroação. Essa retroação que indica se o teatro público é do estilo italiano. O público wagnerino, por exemplo, é diferente, porque no espetáculo as idéias estão prontas, o público é de uma classe superior que não se manifesta fora da convenção social, e há um  

366  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   respeito à obra do autor na figura de gênio romântico. Esse público não retroage, gostando ou não vai aplaudir e nada mais acontece em seguida. A música composta para a corte era feita para agradar o rei, mas se essa música sai desse ambiente para um teatro público, ela precisa de mudanças para agradar e ter sucesso, um processo chamado de tradução cultural. Antonio Leal Moreira foi o segundo compositor a escrever música com texto em português, mas os trabalhos dele em português resultaram dos trabalhos que ele escreveu em italiano. Ele foi um dos compositores que abandonou a escrita em italiano, que era a língua canônica da ópera, para escrever em vernáculo. Ao que parece começou simplesmente traduzindo o texto para a língua vernacular, o que automaticamente modificaria a música por uma questão prosódica, mas só uma análise minuciosa pode explicar como foi esse processo. Nos arquivos de Vila Viçosa o texto da parte cantada está em português, o que comprova que houve tradução cultural. A tradução cultural é uma maneira de colocarmos nossos valores, nossa sensibilidade na interpretação de objetos culturais de outras origens. Ao fazer a edição crítica da serenata e comprovando que houve tradução cultural, isso se torna uma forma de promover nossa ecologia, ou seja, mesmo com a dominação política, econômica, ou cultural exercendo um impacto no dominado, este, antes de absorver, mediou os valores que quis para produzir a sua parte do produto. É como se o confronto do olhar gerasse um novo objeto: o que ambos fazem a partir do conhecimento que têm e que gera um impacto por mudar a perspectiva de produção cultural. O que é mais interessante com relação a isso, é que esse material de Vila Viçosa era proveniente do Brasil, ou seja, nós desempenhamos um processo de tradução cultural num momento em que a modernidade européia ainda imaginava que iria chegar ao auge homologador e emancipador universal. Mas o que poderia explicar essa serenata ter sido apresentada em teatros públicos, uma vez que não há indícios de que esse processo de sair da corte tenha ocorrido anteriormente com esse gênero de composição? Uma possibilidade é que a obra teve muito boa aceitação por parte do príncipe herdeiro, Dom José, e como este era muito bem visto pelo povo e morreu de varíola por volta de um mês depois da apresentação, Gli Eroi Spartani foi a última serenata feita em sua homenagem. Essa pesquisa está justamente nesse momento chave em termos de cultura, pois comprova que nós não estávamos replicando a Europa, não apresentávamos as coisas tais quais elas eram na Europa, mas nós as traduzíamos culturalmente. Essa recuperação de patrimônio musical é um importante trabalho não somente para o conhecimento da música que era praticada nos séculos passados, mas como ferramenta para construção da história e identidade cultural.  

367  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES Livros BRITO, Manuel Carlos de. Opera in Portugal in the Eighteenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. BUDASZ, Rogério. Teatro e Música na América Portuguesa: convenções, repertório, raça, gênero e poder. cidade: DeArtes UFPR, 2008. CARVALHO, Mario Vieira de. Ópera como Teatro. Porto: Ambar, 2005. VASCONCELLOS, Joaquim Antonio da Fonseca e. Os Musicos Portuguezes , Volume I. Porto: Imprensa Portugueza, 1870. VIEIRA, Ernesto. Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes: História e Bibliographia da Música em Portugal, I Volume. Lisboa: Typografia Mattos Moreira e Pinheiro, 1900. Manuscritos MOREIRA, Antonio Leal Moreira. Gli Eroi Spartani (serenata). Lisboa: 1788. MARTINELLI, Gaetano. Gli Eroi Spartani (libreto). Lisboa: 1788. Monografias LIMA, Silvia Raquel de Souza. Subsídios para uma Edição crítica de Gli Eroi Spartani de Antonio Leal Moreira (1758-1819). Monografia apresentada à Escola Superior de Artes e Turismo da Universidade do Estado do Amazonas, para obtenção do grau de Licenciatura em Música, sob orientação do Prof. Dr. Márcio Leonel Farias Reis Páscoa, Manaus, 2011

 

368  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   As Variedades de Proteu: Transcrição da Ópera de Antonio José da Silva e Antonio Teixeira

Tiago Rodrigues Soares118 RESUMO O presente artigo tem por objetivo contextualizar a ópera As Variedades de Proteu, com texto de Antonio José da Silva, O Judeu, e com música de Antonio Teixeira, partindo da transcrição das partes cavas manuscritas conservadas no arquivo do Paço Ducal de Vila Viçosa, em Portugal. Investiga-se, ainda, a crítica social e as ligações mitológicas do seu texto, e também a ligação desse gênero teatral com outros gêneros similares, especialmente a zarzuela. É investigada, ainda, a permanência dessa ópera, juntamente com as demais obras do Judeu, no repertório luso-brasileiro durante todo o século XVIII. Palavras chave: ópera, século XVIII, Antonio José da Silva, O Judeu, Antonio Teixeira ABSTRACT The purpose of this article is to present the context of the opera As Variedades de Proteu, with text by Antonio José da Silva, O Judeu, and music by Antonio Teixeira, made from the transcription of the parts preserved at the archive of the Paço Ducal of Vila Viçosa, Portugal. It investigates also the social critic, and the mithological relation on its text. It clarifies tha the connection of this theatrical genre with other similar genres, specially the spanish Zarzuela. The research investigates also the permanence of this opera, together with other operas by O Judeu, on portuguese and brazilian stages durig all over the 18th century. Keywords: opera, 18th century, Antonio José da Silva, O Judeu, Antonio Teixeira

No ano de 1737 o Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, viu estrear em seu palco duas óperas do Judeu. A primeira, que estreou no carnaval, foi Guerras de Alecrim e Mangerona. Esta é a única ópera do Judeu sobre um tema contemporâneo, já que todas as demais tratam de temas mitológicos ou literários. A segunda ópera deste autor que estreou em 1737, no mês de maio, foi As Variedades de Proteu. Segundo Budasz, esta ópera só é citada nominalmente uma vez no Brasil, durante o século XVIII. Isso se dá entre 1778 e 1790, na ópera nova do Rio de Janeiro, com outras nove óperas, três delas do Judeu (Budasz, 2008, p. 194). Mas é bastante provável que ela estivesse no repertório dos teatros brasileiros que montavam comédias de Antonio José. As informações sobre essas montagens são numerosas. Em 1762, ou antes disso, elas                                                                                                                 118

Bacharel em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Bacharel em Música pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

 

369  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   eram apresentadas na casa de ópera de Belém, no Grão-Pará, como afirmava o bispo de Belém, D. João de São José Queirós (Páscoa, 2012, p. 536). Após 1776, peças do Judeu, sem indicação dos títulos, foram montadas no Rio de Janeiro, na ópera nova (Budasz, 2008, p. 192). Em 1785, Guerras de Alecrim e Manjerona foi apresentada com mais duas óperas de Antonio José (Idem, p. 193). Sem indicação de título ou de autor, há também uma imensa quantidade de registros de óperas no Brasil do século XVIII. Em 1748, por exemplo, uma comédia foi levada à cena em Mariana, na investidura do primeiro bispo (Idem, p 185). Em Cuiabá, em 1761, comédias foram apresentadas em comemoração ao casamento da Princesa do Brasil, d. Maria, com seu tio, o Infante d. Pedro (Idem, p. 186). Entre 1762 e 1765, há informação de óperas e comédias no Rio de Janeiro, São Paulo e Cuiabá (Idem, 187). Essas informações se repetem durante toda a época colonial, dando uma ideia da popularidade que as óperas e comédias tinham na colônia portuguesa.

Antonio José da Silva, O Judeu Nascido no Rio de Janeiro em 1705, Antonio José da Silva provinha de uma família de longa linhagem judaica. Filho de João Mendes da Silva, homem de engenho na região de São João de Meriti, e também advogado, e de Lourença Coutinho, mulher também de família hebraica. Teve mais dois irmãos, e junto da família foi levado para Portugal, em 1712, em virtude de acusações feitas junto ao Tribunal do Santo Ofício. (Pereira, 2007, p. 20) Já em Lisboa, tendo perdido seu patrimônio, confiscado pela Inquisição, e após ser condenado num auto-de-fé em 1713 ao cárcere e hábito penitencial, João Mendes da Silva resolveu permanecer naquela capital com a família, estabelecendo-se como advogado. Antonio José, mais tarde, ingressou na Universidade de Coimbra em 1722, no curso de Cânones. Seu curso foi interrompido em 1726, quando foi submetido ao seu primeiro processo no Santo Ofício. Junto de sua mãe e seus dois irmãos foi encarcerado no palácio dos Estaus, sede da Inquisição portuguesa. (Barata, 1998, p. 47) Torturado para denunciar mais pessoas, inclusive sua mãe, após mais de dois meses foi solto da prisão, enquanto os demais parentes ficaram ali por mais tempo. Seus irmãos foram soltos em 1728, e sua mãe liberada em 1729. (Pereira, 2007, p. 23) Não se tem certeza, ainda, se concluiu o curso em Coimbra, tornando-se, de fato, advogado. O certo é que trabalhava no escritório de advocacia do pai, junto com o irmão Baltazar. Em 1735 se casou com Leonor Maria de Carvalho, também cristã-nova. Em 1737,  

370  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Antonio José, sua mulher Leonor, seu irmão André e sua mãe foram novamente presos. Acusaram-no de ter feito cinco jejuns judaicos na cadeia, pelo que foi sentenciado como "convicto, negativo, pertinaz e relapso no crime de heresia e apostasia" (Idem, p. 57), tendo seus bens confiscados e sendo declarado excomungado, liberando-o, como era costume, às mãos da justiça secular. Esta ficava, assim, encarregada da execução, ocorrida em 18 de outubro de 1739. (Idem, p. 27) Além de seu trabalho no escritório de advocacia, Antonio José da Silva tinha outra ocupação: era autor teatral. Entre 1733 e 1738 suas óperas "joco-sérias" foram apresentadas no teatro do Bairro Alto, em Lisboa. Joco-sérias "por lembrarem os recursos híbridos da tragicomédia, [...] mistura entre a elevação do trágico e o realismo do cômico" (Idem, p. 28). Essas peças, sempre com a presença de música (daí o termo "ópera"), foram encenadas por bonecos, os chamados bonifrates. Todas as óperas, exceto uma, tratavam de temas mitológicos ou históricos. (Idem, p. 28). Antonio Teixeira Antonio Teixeira nasceu em 1707, e ainda bem jovem foi enviado para Roma, com bolsa do rei D. João V, que tinha o objetivo de criar uma geração de compositores portugueses que fizessem música no estilo italiano. Em 1728 retornou a Portugal, trabalhando na Sé e na Corte, logo depois tendo atuado como compositor de óperas de bonecos do teatro do Bairro Alto. De acordo com José Mazza, no seu Dicionário de Músicos, foi mestre do Seminário Real de Música, compositor e organista da Sé Patriarcal de Lisboa, onde era capelão cantor e examinador do cantochão. Compôs sete óperas, dois Te Deum e diversas outras obras sacras. A música sacra era seu principal foco, já que as oportunidades nesse campo eram bem maiores na corte do religioso monarca português, especialmente para um sacerdote da Sé Patriarcal. Seu Te Deum de 1732 é uma das obras primas da música sacra portuguesa do século XVIII. É possível, de acordo com Stephen Bull, que durante sua estada em Roma tenha tido contato com a música de Giovanni Battista Pergolesi, morto em 1736. Pergolesi compôs, além de música sacra, óperas sérias, intermezzi e peças dramáticas em dialeto napolitano, o que poderia ter inspirado Teixeira a compôs óperas em português (Bull, 2005, p. 5). O texto de As Variedades de Proteu Em As Variedades de Proteu, Antonio José da Silva resgata um tema mitológico e literário popular na Europa de sua época, e trabalhado por diversos autores contemporâneos,  

371  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   tanto em Portugal, na Espanha ou mesmo na Inglaterra. As variedades fazem uma clara alusão às metamorfoses. Proteu, de acordo com a mitologia grega, era chamado de "o velho do mar". Tratava-se de uma antiga divindade marinha, filho dos titãs Oceano e Tétis. Como era comum aos deuses marinhos, mas em grau mais elevado, possuía o dom de se metamorfosear. (Hacquard, 1996, p. 249) Além de Proteu, outras personagens são retiradas do repertório mitológico. Nereu, outra divindade marinha benfeitora, é retratado como irmão de Proteu, na ópera. Nereu também possuía, de acordo com a mitologia, o dom da metamorfose, mas na obra do Judeu essa capacidade é reservada a Proteu, ou pode ser eventualmente concedida por ele, como o faz com seu criado Caranguejo. O Nereu mitológico era pai de cinquenta filhas, chamadas nereides, filhas dele e sua esposa Dóris, ou Dórida (Hacquard, 1996, p. 215) Esta também é personagem da ópera do Judeu, inicialmente noiva de Proteu, mas que acaba posteriormente comprometida com Nereu. Na ópera do Judeu essas personagens não aparecem como divindades, nem têm qualquer ligação direta com o mar. A ação se passa na corte de Flegra, e o único que demonstra qualquer poder sobrenatural é Proteu, que, segundo o argumento, tem suas variedades como um "privilégio que lhe concederam os deuses" (Silva, 1958, p. 5). Ja os graciosos Caranguejo e Maresia têm em seu nome uma das únicas ligações do tema de Proteu, Nereu e os demais com o ambiente marinho. Apesar dos textos tratarem sobre a antiguidade mitológica ou histórica, a atualidade sempre estava presente na obra do Judeu. Em seus textos é clara a crítica às instituições, aos costumes e às práticas comuns da Lisboa joanina, perceptível ao público que frequentava o teatro do Bairro Alto, ainda que as personagens estivessem retratadas como deuses, heróis ou monarcas. (Pereira, 2007, p. 29) Críticas ao governo e à justiça também estavam presentes. Outra presença constante na obra do Judeu são os graciosos. O gracioso é sempre alguém da plebe, próximo ao senhor numa relação de servidão e confiança. É ele que conduz a trama, sendo indispensável na resolução das intrigas que se desenrolam em cena. É também aquele que mais se aproxima do público, fazendo comentários que jamais seriam feitos por um nobre, mas que muitas vezes são reveladores da essência da história. Seu linguajar é popular, fazendo uso de expressões que sairiam da boca de um lisboeta comum, representando assim uma "consciência social" e um sentido prático da vida (Idem, p. 43). O gracioso, na obra do Judeu, sempre recebia um nome que evocava o riso, "antropônimo  

372  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   caricato", que ajudava a compor a personalidade de cada personagem. Tudo isto está presente em As Variedades de Proteu. Ainda segundo Pereira, nesta ópera o Judeu "utiliza o artifício da literatura clássica para radiografar o comportamento da nobreza de seu tempo: a vida parasitária, o casamento por encomenda, o desprezo e a arrogância com os plebeus." (Idem, p. 36) Grande parte dessa descrição corresponde à figura de Nereu, irmão de Proteu, que se interessa mais pela estirpe e pela nobreza de sangue do que por qualquer outra qualidade que sua noiva possa ter. Logo, sendo Cirene uma plebeia passando-se por princesa, instala-se uma situação de conflito da moça diante de seu compromisso: Cirene: visto isso, a não ser eu princesa, não seria objecto de teu amor? Nereu: Não suponhas um impossível, quando alcanço a fortuna de possuir-te princesa e formosa. Cirene: Pois averte, já que me apelidas de Vênus, que como deidade estimarei mais os cultos de formosa, que os atributos de princesa. Nereu: Para mim não há mais formosura que a nobreza; e, amando-te como princesa, te adoro como bela. (Silva, 1958, p. 29)

E ao final da ópera, ao descobrir a verdadeira identidade de Cirene, Nereu declara mais uma vez quais os valores que realmente preza: Nereu: Ainda te atreves, fementida, tirana, a lembrar-me o nome de esposa? Por isso intentavas com cautelas que te adorasse como bela e não como princesa? Pois agora, que não variei de sistema, não sendo tu quem eu imaginava, desprezo a tua formosura, por não ser adornada de majestade. (Idem, p. 89)

Ao mencionar que não "variou de sistema", a frase de Nereu remete diretamente ao título da ópera, às variedades de Proteu. Nereu mantém-se firme em seu "sistema", em sua crença no valor mais alto que tem o sangue, a aristocracia, a posição social. Proteu, com suas variedades, mostra ao público que há valores maiores, como o amor. Por isso é exaltado pelo criado Caranguejo, quando diz que "(...) Todos ficam acomodados e satisfeitos com as suas consortes, e Proteu, mais que nenhum, pois com as suas variedades e mudanças mostrou a maior firmeza nos amores de Cirene". (Idem, p. 90) A personagem de Cirene, por sua vez, traz questões interessantes a uma análise. Esta é uma plebeia que, por imposição de seu pai, deve passar-se por uma princesa. Desde cedo, já na primeira cena, Cirene deixa transparecer seu receio de ser desmascarada, quando pede a  

373  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Políbio, seu verdadeiro pai: Cirene: Políbio, não te apartes de mim um instante. (Idem, p. 12)

Sempre que encontra oportunidade, Cirene tenta fazer seu noivo Nereu perceber que há outras virtudes que não a realeza, mas este se encontra surdo a seus comentários. Ela, como plebeia, não compreende um casamento apenas por razões políticas, a ponto de queixarse ao rei: Rei: Que te aflige, Cirene? Cirene: Achar, senhor, um esposo que me adora por política, mas não por afecto. (Idem, p. 29)

Mas é também a condição de Cirene, plebeia passando-se por princesa, que ocasiona um dos mais interessantes comentários da ópera. No momento em que Proteu, tentando atingir Políbio, acaba ferindo Cirene, a criada Maresia faz um comentário sobre a moça: Maresia: Vamos. Coitadinha! Ainda assim, o sangue real é vermelho como os outros sangues. (Idem, p. 61)

Esse comentário não passou despercebido aos leitores mais modernos, como não terá passado despercebido pela plateia do Bairro Alto. José Pereira Tavares, responsável pelo prefácio e pelas notas da edição de 1958 da obra completa do Judeu, que dedica suas notas de rodapé a esclarecer expressões já em desuso, ou corrigir palavras arcaicas, comenta sobre esta fala de Maresia, citando-a como um "comentário algo arrojado". (Idem, p. 61) Paulo Roberto Pereira também identifica esta passagem como uma reação dos graciosos, "numa postura carregada de ironia ante o golpe do casamento como trampolim social". (Pereira, 2007, p. 37). Identificando algo com mais clareza do que se poderia esperar, Maresia acaba revelando um sentimento de rebeldia, ao cogitar que o sangue real é igual ao sangue plebeu, vermelho, e não azul. Apesar de sabermos que a teoria do “Sangue Azul” da realeza não era aceita como fato físico, apenas como uma definição intelectual que servia para distinguir entre uma estirpe real e uma linhagem plebeia, é impressionante ver essas palavras serem ditas tão claramente por uma personagem popular. No entanto, ao mesmo tempo em que serve de crítica a um pensamento bastante comum no Antigo Regime, essa afirmação pode ganhar novos significados mais à frente, quando todo o plano de Políbio, e consequentemente a origem plebeia de Cirene, vêm à tona. Logo após a revelação, diz maresia;  

374  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Maresia: Quando eu vi que tinha sangue vermelho como o meu, logo duvidei que fosse de sangue real. (Silva, 1958, p. 88)

A ousadia de Maresia pode ser aqui vista como uma reafirmação da diferença. Como Cirene tinha sangue vermelho só podia ser plebeia, pois se fosse princesa teria sangue azul. O Judeu, pela boca de Maresia, estaria assim confirmando uma distinção natural entre nobres e plebeus. Outra leitura possível é que o Judeu colocou essas duas frases na boca de Maresia para reforçar o apelo popular dessa crença. Maresia é a criada ingênua, que acredita facilmente no que lhe dizem, e por isso é desde o início enganada pelo outro criado, Caranguejo. Por ser crédula, ela refletiria a crendice popular, satirizando-a. Sob esse aspecto, a primeira afirmação, quando se surpreende ao constatar o sangue vermelho, não seria uma reação de rebeldia, mas sim a voz da ingenuidade popular em ainda acreditar numa distinção real entre os estamentos sociais. O mais justo seria, então, unir as visões, aceitando uma forte crítica do Judeu aos costumes arraigados na sociedade, utilizando-se para isso de uma personagem popular e ingênua, fazendo com que este comentário fosse, ao mesmo tempo, fortemente satírico e extremamente ingênuo. Maresia e Caranguejo, como casal de graciosos, são os responsáveis pelas principais situações cômicas da peça. Revelam uma visão prática do mundo. Caranguejo, em resposta aos arroubos poéticos e eruditos de Proteu, apaixonado por Cirene, revela seus ideais: Proteu: (...) Viste aquela perfeição que, imortalizando-se nas suas galhardias, se fez adorar como deidade? Viste aquela neve que, derretida de melhor estrela, soube congelar os corações? Viste aquele ondeado epílogo de luzes, em cujos anéis presa a memória não se lembra de outra igual maravilha? Viste... (...) Caranguejo:(...) Eu porventura vi nada disso que dizes? Eu vi astros, estrelas, deidades, nem luzes? (...) Eu cá, no meu amor, sigo outra filosofia mais natural: a formosura, cá para mim, há-de ser clara, palpável, que todos a entendam, como as pastoras do tempo antigo. (Idem, p. 15)

Podemos, ainda, encontrar outras sátiras, e outros costumes contemporâneos retratados na ópera. A ambição de Políbio, tentando ascender socialmente a uma posição que não é sua por direito, fazendo de sua filha moeda no seu arriscado jogo, pode ser um retrato da  

375  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   burguesia ascendente, que tramava laços de casamento para subir na sociedade. É notável que, no final da ópera, o intento de Políbio seja alcançado, e ele não seja punido por sua tentativa graças à intercessão de Proteu.

A música de As Variedades de Proteu Essas óperas joco-sérias do Judeu podem ser inseridas num cenário europeu onde floresciam óperas cômicas populares de resgate das raízes nacionais: a zarzuela espanhola, do início do século XVII; a ballad opera inglesa, impulsionada por Henry Purcell; o Singspiel alemão, que produziria obras como Die Zauberflöte, de Mozart; o vaudeville da França, ópera satírica e maliciosa herdeira das comédias de Jean-Philippe Rameau; e a opera buffa italiana, criada por Alessandro Scarlatti em 1718, onde já havia a figura do bufo, um criado equivalente ao gracioso da tradição ibérica.(Pereira, 2007, p. 49) Desses, a Zarzuela, por motivos históricos e geográficos, é a que parece ter tido mais influência sobre essa ópera joco-séria escrita pelo Judeu, e musicada por Antonio Teixeira. Segundo Barata, a Zarzuela era (...) muito próxima dos ballets de cour franceses ou ainda das court masques inglesas. Os ingredientes eram bastante idênticos nas três formas de espetáculo citadas. Espetáculo essencialmente visual, cortesão, onde as partes faladas alternavam com trechos musicais, tudo se exibia num espaço cênico enfatizado, ricamente decorado, e onde as personagens que conduziam a acção se cruzavam, em cena, com danças ou recitativos individuais. Os coros, villancicos, seguidillas, arias, alternavam livremente com recitativos ocasionais, estilisticamente despretensiosos. (...) (Barata,1998, p. 200)

José Máximo Leza, estudando as transformações da zarzuela ao longo de dois séculos, destaca algumas características presentes no gênero no início do século XVIII: Por lo que se refiere a los elementos "internos", la zarzuela va combinando rasgos de una dramaturgia heredada de la comedia mitologica española, con formas musicales y argumentos derivados del dramma per musica italiano. La mixtura de partes declamadas y cantadas junto a la combinación de personajes serios y cómicos son algunos de los aspectos que se mantendrán al comenzar el nuevo siglo; sin embargo la inserción de nuevas formas musicales altera significativamente la dramaturgia del género, convertiendolo en un lugar de encuentro en el que convivan coplas y seguidillas con recitativos y arias da capo. (Leza, 2003, p. 1701)

Ambos autores nos dão algumas características marcantes da zarzuela presentes nas óperas do Judeu, que podem ser claramente encontradas na ópera As variedades de Proteu. A  

376  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   primeira é a alternância entre trechos cantados e trechos falados. A estrutura da ópera jocoséria do Judeu mescla diálogos falados e partes musicadas, divididas estas em recitativos, árias, duetos, coros, etc. As variedade de Proteu conta com 23 momentos de música, sendo um coro inicial, que se repete ao final, um quarteto (ária a 4), um trio, dois duetos (ária a 2), doze árias e cinco recitativos (recitados), computando dezessete cantorias. A outra característica importante é a mistura de personagens sérios e cômicos, chamados de graciosos. Em As variedades de Proteu há seis personagens sérios (Proteu, Cirene, Nereu, Dórida, Ponto e Políbio) e um casal de graciosos (Caranguejo e Maresia), como era bastante comum nas obras do Judeu. Essa proximidade com a zarzuela pode explicar, ainda, o estilo musical escolhido por Teixeira ao compor a música da ópera. Interessante o comentário que faz Luís de Freitas Branco sobre a música das óperas do Judeu: A forma musical empregada por António José da Silva não era, nem os costumes teatrais da ópera o permitiam, a da ópera séria, com trechos a solo e de conjunto separados por recitativos, mas a da ópera jocosa ou bufa, em que se podiam empregar os dialectos, sendo faladas todas as partes não líricas. (...) (Barata, 1998, p. 203)

Apesar de encontrarmos bastantes informações sobre a estrutura musical escolhida por Antonio José da Silva para suas peças, raras são as referências sobre a música de Antonio Teixeira. Uma informação importante é sobre a orquestra que o compositor tinha à sua disposição. Segundo Luís de Freitas Branco, "a orquestra do Teatro do Bairro Alto, na época em que o Judeu estreou as suas óperas, constava em geral de: dois oboés, duas trompas, timbales e instrumentos de arco. As árias, canções a solo e os trechos de conjunto eram sempre acompanhados a orquestra." (Barata, 1998, p. 178) Apesar de não se saber onde Branco conseguiu essa informação, essa orquestração, com exceção dos timbales, corresponde exatamente à orquestração do manuscrito de As variedades de Proteu existente em Vila Viçosa. Apesar da influência da zarzuela na estrutura criada pelo Judeu, Stephen Bull salienta a influência italiana na música de Teixeira. Seu período de estudos em Roma, e o contato com a música dos compositores locais, especialmente Pergolesi, teriam sido fundamentais inclusive para a decisão do compositor de compor ópera em língua portuguesa (Bull, 2005, p. 5). E, especificamente sobre As variedades de Proteu, diz:

 

377  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   A variedade de estilos utilizados nesta ópera, incluindo minuetes cantados, canções quase à maneira de sonatas de Carlos Seixas, o uso de efeitos como o pizzicato na orquestra, parece reflectir o tema da ópera na constante alternância de formas. Embora estes estilos não sejam originais de per si, pois foram utilizados antes pelo próprio Teixeira, ou por Pergolesi, é a sua fusão numa única ópera que torna esta ópera distinta. (Idem, p. 5)

Essa ligação italiana se dá também através do napolitano Alessandro Scarlatti, autor da primeira opera buffa italiana, e possível mestre de Antonio Teixeira quando estava na Itália (Pereira, 2007, p. 50)

As partes cavas da ópera no acervo de Vila Viçosa A música da ópera As variedades de Proteu que chegou a nós provém do acervo do Paço Ducal de Vila Viçosa, em Portugal. As variedades de Proteu e Guerras de Alecrim e Manjerona, foram as primeiras partituras das óperas do Judeu encontradas no acervo por Luís de Freitas Branco, na década de 1940. Desde o início, foram atribuídas a Antonio Teixeira, fomentando um maior interesse dos pesquisadores a respeito desse compositor. Posteriormente João de Figueiredo, conservador do Paço Ducal, conseguiu identificar outras partes dessas óperas, permitindo sua reconstituição. Mais tarde o musicólogo Filipe de Souza aprofundou a pesquisa sobre a relação de Antonio José da Silva com Antonio Teixeira. (Idem, p. 50) Entretanto a história das partes cavas manuscritas de As variedades de Proteu, conservadas em Vila Viçosa, começa séculos antes. Stephen Bull, que regeu As variedades de Proteu na cidade de Alcobaça, em 2005, e a posterior gravação da mesma, escreve, no mesmo ano, sobre a partitura: (...) Desta obra, durante cuja produção são claros os sinais de adaptação e improvisação, não sobreviveu nenhuma partitura integral, apenas cópias avulsas para instrumentistas e cantores. Estas cópias, embora muito mais completas do que as da ópera As Guerras de Alecrim e Manjerona, e cujo conjunto ficou também conservado na biblioteca no Paço Ducal de Vila Viçosa, são de uma produção posterior da ópera, talvez no Teatro do Salitre nos anos 70 do século XVIII.(...) (Bull, 2005, p. 5)

Em pesquisa feita entre 2007 e 2008, David Cranmer foi mais a fundo nos estudos sobre o acervo de Vila Viçosa, e nele descobriu que grande parte do material lá depositado provém do Brasil. É possível que essas partes (a imensa maioria, como em As Variedades de  

378  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Proteu, são partes cavas) tenham origem brasileira, ou que, vindo de teatros portugueses, tenham passado pelo Brasil em algum momento entre 1778 e 1808 (Cranmer, 2009, p. 101) Sobre as partes das óperas do Judeu (incluindo As variedades de Proteu), Cranmer conclui que assim sendo, apesar da falta de indicações que liguem este material explicitamente ao Rio, a evidência circunstancial é altamente sugestiva neste sentido. Isso não exclui, no entanto, a hipótese de alguma parte desse material ser de origem portuguesa, em especial do Teatro do Bairro Alto, onde grande parte deste repertório se estreou.(Idem, p. 116)

No Rio de Janeiro, o único teatro que funcionou no período de 1778 e 1813 foi o que pertencia a Manuel Luiz Ferreira. Este teatro foi conhecido por vários nomes, como Opera Nova ou Casa de Ópera (Idem, p. 106). A partir de 1813 o teatro passou às mãos do Estado. Quando voltou a Portugal, em 1821, é bem provável que D. João VI tenha levado consigo o que pôde daquele teatro: as partituras e partes cavas ali acumuladas durante vários anos. Como sua propriedade pessoal, é bastante plausível que tenha guardado esses papéis em seu palácio particular, o Paço de Vila Viçosa, residência ancestral dos duques de Bragança.(Idem, p. 118) As partes da ópera preservadas em Vila Viçosa não apresentam música para todas as árias presentes no libreto publicado em 1737. Para uma ária, Em ti mesma considero, não há música para a parte B, concluindo-se apenas com a parte A. Outra situação mais significativa é a ausência de música para algumas árias. Uma ária de Dórida, Não tenhas por delírios, uma ária do rei, Refreia o pranto, Dórida, e uma ária de Cirene, Fortuna, que inconstante, não têm registro de música. Uma possibilidade seria que essas partes houvessem sido perdidas, mas não há qualquer resquício delas. O mais provável é que, segundo o costume comum na época, elas tenham sido suprimidas em algum momento posterior, entre a estreia, em 1737, e a década de 1770, quando se estima que as cópias das partes cavas foram produzidas. Outro fator que indica a supressão intencional dessas árias é a existência de um terceto, Que medo, que susto, nos quais participam exatamente as três personagens cujas árias não existem. Este terceto não consta no libreto original de 1737.

Considerações finais Ao aprofundar-se na obra, foi possível perceber na mesma várias dimensões.  

379  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Seu texto, fruto da pena do mais importante autor de teatro lusófono de sua época, Antonio José da Silva, alcançou diversas possibilidades de entendimento, tanto para o público do Bairro Alto, na época de sua estreia, como para diversos autores que se debruçaram sobre a peça. Nela, sob as aparências de um drama baseado na mitologia, se pode perceber algo do cotidiano da própria Lisboa, de seus governantes, de seus habitantes, e mesmo dos bonifrates, os bonecos usados para dar vida às personagens. Usando a boca dos graciosos, o Judeu conseguiu revelar conflitos sobre questões práticas e questionar o modo de ver os sentimentos: amor, casamento, nobreza, ambição, etc. Sua música, criada por Antonio Teixeira, um dos mais bem sucedidos bolsistas da coroa na Itália, revela a ligação deste compositor, mais conhecido por suas obras sacras, com a música teatral, de um teatro popular, para um teatro de marionetes, e em língua portuguesa. O próprio enredo, baseado nas metamorfoses de Proteu, ensejou a oportunidade para que usasse seu talento na criação de uma música original, que pudesse ser parte indispensável da obra do Judeu. A pesquisa pôde revelar ainda a estreia ligação entre as óperas joco-sérias do Judeu e o gênero espanhol da zarzuela, em um momento em que a música espanhola, muito influente até então em Portugal, perdia seu espaço na corte para a ópera italiana. Essas óperas jocosérias se aproximavam também de outros gêneros de teatro musical em voga em diversos países no século XVIII, como o vaudeville na França, o Singspiel na Alemanha e a opera buffa na Itália, inserindo assim o teatro português dentro do panorama cultural europeu do seu tempo. A transcrição e a contextualização da ópera As Variedades de Proteu mostra-se, portanto, um passo a mais para a compreensão da música luso-brasileira, esta que, apesar de todos os avanços do estudo de insignes pesquisadores, ainda mostra lacunas que devem ser, o quanto antes, devidamente preenchidas.

Fontes e referências: Fontes manuscritas [TEIXEIRA, Antonio]. As variedades de Proteu [Manuscrito]. Partes cavas da ópera. AM.Gprática6. Arquivo do Paço Ducal de Vila Viçosa, Portugal.

 

380  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   Livros BARATA, José Oliveira. História do teatro em Portugal (Séc. XVIII): António José da Silva (o Judeu) no palco joanino. Lisboa: Difel, 1998. BRAGA, Teophilo. História do Theatro Portuguez. A baixa comédia e a ópera (século XVIII). Porto: Imprensa portuguesa, 1871. BRITO, Manuel Carlos de. Opera in Portugal in the eigtheenth century. Cambridge: Cambridge Press, 1989. BUDASZ, Rogério. Teatro e música na América portuguesa: convenções, repertório, gênero e poder. Curitiba: Deartes UFPR, 2008. HACQUARD, Georges. Dicionário da mitologia grega e romana. Lisboa: Edições ASA, 1996. JUNQUEIRA, Renata S. & MAZZI, Maria Glória C. (Orgs.) O Teatro no século XVIII: presença de Antonio José da Silva, o Judeu. São Paulo: Perspectiva, 2008. MAZZA, José. Dicionário biográfico de músicos portugueses. Lisboa: Tipografia da Editorial Império, 1944. PÁSCOA, Márcio. As índias galantes: ópera na Amazônia durante o século XVIII. (Comunicação de pesquisa). Lisboa: Gulbenkian, 2008. In: As Músicas Luso-brasileiras ao final do Antigo Regime; repertórios, práticas e representações. Maria Elizabeth Lucas e Rui Nery (org). Fundação Calouste Gulbenkian/INCM, 2012. PEREIRA, Paulo Roberto. As comédias de António José da Silva, o Judeu. São Paulo: Martins Editora, 2007. SILVA, António José da. Theatro Comico Portuguez. Lisboa: Officina Patr. de Franc. Luiz Ameno, 1759. Tomo II. _____________________. Obras completas: prefácio e notas do prof. José Pereira Tavares. Vol. 4. Lisboa: Sá da Costa, 1958. Artigos e teses BARATA, José Oliveira. Da vida, Sofrimento e morte de Antonio José da Silva. Lisboa: Portugal Som, 2005. (Encarte de CD)

 

381  

Anais  do  IV  Seminário  de  Letras  e  Artes  e  II  Simpósio  de  música  Ibero-­‐americana:    transdiciplinaridade  e  temporalidades   ____________________. Sobre o texto de As Variedades de Proteu. Lisboa: Portugal Som, 2005. (Encarte de CD) BULL, Stephen. Sobre a música de As Variedades de Proteu. Lisboa: Portugal Som, 2005. (Encarte de CD) CÂMARA, José Bettencourt da. D. João V, o italianismo e a musicologia portuguesa. Colóquio-artes, No. 82. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989. ______________________________. A música em Portugal na primeira metade do século XVIII. Brotéria. Vol 168. Lisboa, fevereiro de 2009. CRANMER, David. Os manuscritos de música teatral no paço ducal de Vila Viçosa - a ligação brasileira. In: Callipole, revista de cultura. n. 17, 2009. pp. 101 - 118. LEZA, José Máximo. El teatro musical. in: CALVO, Javier Huerta. Historia del teatro español II: del siglo XVIII a la época actual. Madrid: Gredos, 2003. OLIVEIRA, José Luís de. O teatro de Bonifrates em António José da Silva, o Judeu. Dissertação de mestrado. Universidade de Trás-os-montes e Alto Douro. Vila Real, 2010.  

 

382  

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.