Mannheim e Fleck e a compreensão humana do mundo, cap. do livro \"Fleck\" de Mauro Condé 2010

July 1, 2017 | Autor: Carlos Maia | Categoria: History of Science, Social Studies Of Science
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Mannheim e Fleck e a compreensão humana do mundo Carlos Alvarez Maia Este artigo tem um duplo objetivo: sugerir uma possibilidade de desenvolvimento para o estilo de pensamento do qual Fleck é o mais acabado representante e, por outro lado, indicar motivos para que este estilo de pensamento se tornasse inadequado para aqueles tempos e lugar, em 1935. A pertinência dessas questões advém de que, apesar de permanecer praticamente incógnito durante 44 anos, Fleck ainda seja uma alternativa consistente para os desafios dos estudos de ciência, hoje. Há duas categorias ontológicas que servem de base – já arcaica – para a compreensão do mundo: Sociedade e Natureza. De um lado encontra-se a existência humana, de outro, todas as demais entidades que povoam esse mundo. Nesta separação, o Homo sapiens ganha um diferencial, recebe uma proeminência que o apresenta como personagem destacado no drama que se desenrola no mundo. Torna-se o centro das meditações, ocupa a posição de protagonista no cenário que já estava presente no aforisma platônico “o homem é a medida de todas as coisas”1 e permanecerá em circulação pelos tempos bíblicos nos quais o trabalho da divindade é coroado pelo surgimento mítico desse Ser. Ao acompanhar essa divisão ontológica faz-se sua consequência direta: a separação cognitiva dos saberes que se constituíram sobre tal dicotomia. São duas formas de conhecimento: um, sobre a Natureza e outro, sobre o Ser social. Um saber que especifica aquilo que é do homem e, outro, que se dedica aos demais entes naturais, animados ou não. O saber que observa a Natureza toma como molde explicativo e princípio heurístico o ato de desvendar as relações de causalidade existentes entre os elementos naturais, são relações que desconsideram qualquer participação humana nessa lógica causal. Por hipótese, a Natureza é regida pela causalidade. Diz-se que seu conhecimento é objetivo pois emergiria do objeto, a Natureza, sem sofrer qualquer interferência das subjetividades humanas, da Sociedade. Seria um conhecimento objetivo por ser sem sujeito. Sua meta: desvendar as Leis da Natureza. Por outro lado, o saber que se estabelece sobre a Sociedade, abre-se para os eventos subjetivos, observa a natureza humana marcada, não pela causalidade objetiva e material, mas pelo estabelecimento de propósitos que direcionam o agir desse Ser, uma entidade volitiva e intencional: o homem. O conhecimento sobre o homem possui a meta de desvendar esses propósitos e intenções nos jogos societários. Há ainda outro par conceitual que acompanha a partição Sociedade-Natureza: o realismo em oposição ao relativismo. Originariamente a physis grega expressava de forma ampla a concepção de realidade, uma realidade unitária.2 Entretanto ao se traduzir Professor de Teoria da História e de História da Ciência, Departamento de História, UERJ. Coordenador do Laboratório de estudos históricos da ciência, Lehc-UERJ. E-mail: [email protected]. 1 Em um dos clássicos diálogos de Platão – “Protágoras” – encontramos a referência a esse fragmento de um pensamento devido a Protágoras de Abdera (489 a.C. – 410 a.C.): “O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”. Podemos dizer que assim inaugura-se o relativismo como orientação explicativa. (Mora, 1981: 2719, tradução minha) 2 Mas já no pensamento grego encontram-se igualmente raízes da bifurcação entre realismo e relativismo. “O contraste entre ‘o que é por natureza’ e o que é por convenção foi tratado pelos sofistas (e logo por

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em seu termo latino, natura, mais restritivo, passa a designar aquilo que está fora e além dos propósitos humanos e, assim, aquela totalidade – seja pragmática como a realidade, ou seja metafísica como o Real – torna-se partida.3 Engendram-se duas formas de conhecimento: uma, aquela denominada de conhecimento científico, da “filosofia natural” tipicamente renascentista e moderna; e outra, a que se especializa no reino das coisas humanas, a história.4 Assim, estruturou-se uma realidade natural diferente da realidade histórica, tal como a lógica das leis naturais difere da gramática que organiza os propósitos humanos. Enquanto a causalidade natural apresenta-nos resultados unívocos – como: todas pedras que caem de uma certa altura estão submetidas à mesma dinâmica ou, ainda, a água ferve a 100o C – já a gramática dos propósitos humanos não permite univocidade, é plural e diversificada. Eis aí e assim o Leitimov da perene ruptura entre realismo e relativismo, entre os saberes – ditos – objetivo e subjetivo. Até na clássica disputa entre Hobbes e Boyle o tom da polêmica encontrava-se assentado na polaridade entre a objetividade natural e a subjetividade social. Boyle saiu vencedor definindo o rumo e o padrão futuro do conhecimento científico encerrado em “laboratórios”, uma “ciência sem sujeito”, objetiva e neutra, sem contágios da opinião subjetiva de um público. E isso contra os apelos de Hobbes em favor de que o saber da ciência fosse constituído de forma pública, inclusive nas sessões da Royal Society, pois o saber conteria ingredientes políticos que extrapolavam o laboratório.5 Esta situação não apresentou alterações substantivas até que, por força do Iluminismo, no século XIX, a formação das disciplinas acadêmicas sofreu uma “domesticação” promovida pelo pensamento cientificista, o positivismo de então, que exibia um modelo hegemônico de “fazer ciência”. Durante algum tempo a história perseguiu esse ideário e lutou para tornar-se uma das disciplinas “científicas” nos departamentos da recém estruturada universidade. Assim, a história conquistou uma vaga como disciplina universitária e alcançou o rigor conceitual e metodológico que lhe permitiu a profissionalização acadêmica.6 Mas a reação a essa euforia de certezas ilusórias (de fatos-acontecimentos e seus documentos monumentais) não tardou. E ela veio com o historicismo hermenêutico de Dilthey que atentava para dois aspectos: de um lado, as leis objetivas e determinísticas que regem a natureza, e de outro, as idiossincrasias das volições da vida humana em sociedade. Dilthey separou as Naturwissenschaften, ciências da natureza, das Geisteswissenschaften, ciências do espírito. Platão e outros autores) para distinguir entre aquilo que tem um modo de ser que lhe é próprio e que há de conhecer tal como efetiva e ‘naturalmente’ é, e aquilo cujo ser, ou modo de ser, é determinado de acordo com um propósito (humano)”.(Mora, 1981: 2309, tradução minha) 3 Faço aqui a distinção entre dois termos, a “realidade” do “Real”, que refletem dois suportes compreensivos – um dado pela vivência coletiva em sua prática e outro como um conceito metafísico. 4 Bacon propugnava por três formas historiográficas: história da Natureza, história dos homens e história sagrada. A história dos homens estaria preocupada em compreender a “realidade histórica” como distinta da “realidade natural”. Voltaire pensava essa história humana como filosofia da história o que alimentou uma longa tradição na qual “a realidade histórica é uma realidade sui generis”, nela a “historicidade” torna-se o “constitutivum da realidade histórica”.(Mora, 1981: 1520, tradução minha) 5 Dizia Hobbes: “Os métodos do filósofo natural eram, em aspectos cruciais, idênticos aos do filósofo moral”, que se dedicava ao estudo do homem. Já Boyle, o vencedor da disputa, forjador das bases modernas do “método científico” estabelecia: “O estudo experimental da natureza estava visivelmente afastado dos ‘assuntos humanos’. ... O estudo da natureza ocupava um espaço bastante diferente do estudo do homem e seus assuntos: objetos e sujeitos não deviam e não podiam ser tratados como parte da mesma empresa filosófica”. (Shapin and Schaffer, 1989: 337, minha tradução) 6 Entretanto essa conquista mostrou-se uma vitória de Pirro – a história tornava-se subserviente ao modelo mecanicista da física do oitocentos. A história comparava o acontecimento histórico a um fato natural e tomava os documentos como representação verídica desses fatos. Fazia-se uma “história sem sujeito”. O custo dessa subordinação metodológica às ciências da natureza foi alto e até hoje ainda há a luta para a história escapar da aspiração à objetividade e neutralidade axiológica daquele positivismo.

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Essa demarcação de Dilthey pretendia encontrar um lócus específico para as ciências históricas que se encontravam escravizadas ao positivismo de então. A libertação que propôs para a história, para as ciências do espírito, decorria de emparelhar duas formas independentes de fazer ciência – a explicação causal para as Naturwissenschaften e a compreensão empática para as Geisteswissenschaften. Compreender e explicar tornavam-se dois modos específicos para essas atividades cognitivas e que, afinal, fortaleciam a separação entre Natureza e Sociedade. Davam-lhe um suporte teórico. De um lado a “compreensão histórica” associada à noção de “experiências da vida coletiva”, de “valores compartilhados”, da “vida em comunidade”, (Dilthey, 1978: 164165) de outro, a explicação científica estabelecida pela causalidade que conectava os eventos da natureza em uma cadeia de causa e efeito. Até esse momento, início do século XX, o relativismo não se constituía como um problema, era uma solução. Os espaços de validade de cada proposta – realismo científico ou relativismo histórico – encontravam-se bem demarcados. As ciências históricas afastavam-se das ciências naturais. Uma solução pacificadora resolvia a soberba iluminista, dissolvia as agressivas invasões cientificistas e consolidava os territórios nos quais dois conjuntos de saberes passavam a atuar separadamente com legitimidade. Uma Natureza – una, uma entidade ontológica – que autorizava um realismo efetivo e, do outro lado, uma Sociedade – um conceito – que simplesmente designava uma diversidade de formas sociais; um conceito que se mostrava adequado e coerente com o relativismo cultural. Não havia maiores divergências ou disputas nesta convivência do realismo com o relativismo. São dois objetos e dois saberes. Entretanto, nessa aquietação do cenário de luta, surge Mannheim. Produz-se um conflito, de interesses entre corporações acadêmicas e de legitimidade cognitiva dos saberes. Mannheim causa problemas ao ocupar a posição de sujeito em um dos territórios – do relativismo social – e observar o outro como seu objeto – o do naturalismo epistemológico. Ele promove uma mistura, um cruzamento entre os dois mundos. Assim, comete uma heresia, a partir de um lugar considerado menor – o das ciências humanas – questiona a validade dos protocolos cientificistas. Sentou-se no trono de uma história sociológica e, nessa entronização, mirou o conhecimento como súdito, como um processo societário: eis sua sociologia do conhecimento. Ele constata como a ausência de uma fundamentação teórica consistente para as Ciências Humanas e Sociais – que as proteja da cáustica do solo epistemológico cientificista autoritário – as impede de aflorar ao patamar respirável da legitimidade já alcançada pelas Ciências Naturais. “As concepções positivista e kantiana da ciência, que tomaram as ciências naturais exatas como o único protótipo ideal aos quais todas as ciências, incluindo as ciências culturais, se devem conformar, pretenderam sujeitar mais ou menos a sociologia a esse modelo.”7 Com isso, Mannheim entoa um canto libertário ao propor “uma teoria do conhecimento que se baseia não nas ciências exatas, mas na história.” (Mannheim, 1952: 101, tradução minha) Ele sugere a “extinção temporária dos problemas epistemológicos” e decreta “o aparecimento da sociologia do conhecimento como disciplina central.”8 7

(Mannheim, 1952: 126, tradução minha) Um pouco antes, diz Mannheim: “a sociologia desenvolveu-se originalmente após o padrão generalizador das ciências naturais. Logo, ela só estava apta para trabalhar com o método generalizante e ignorava a dimensão especificamente histórica de seu objeto.” (Mannheim, 1952: 125, tradução minha) 8 (Mannheim, 1952: 136, tradução minha) “Nenhuma afirmação acerca da história é possível sem que as pré-concepções histórico-filosóficas do sujeito observador entrem no seu conteúdo”. (Mannheim, 1952: 101, tradução minha)

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Mannheim observa a “sociologia do conhecimento”, conservadora e idealista de Max Scheler e a incorpora. Mas, ele a retira do discurso scheleriano permeado de absolutos e a desloca para o registro relativista do historismo materialista.9 Afinal, Mannheim identificara-se fortemente com o conceito de historicidade que se tornou a base para a “sua” sociologia do conhecimento, construída também com uma acentuada participação marxista, apesar de crítica.10 Mannheim compartilha duas propostas com Dilthey: um horror ao positivismo e uma afinidade com o condicionamento histórico da vida social. De Marx ele recolhe a condição de que o “pensamento [é] existencialmente determinado”11 e “ao fim, nomeará diretamente a ‘sociologia do conhecimento’ como a sucessora da epistemologia” e que “ela virá a ser de fato a ciência mestre no tratamento da validade do conhecimento, tomando o lugar da epistemologia”, como resenhou Paul Kecskemeti. (Mannheim, 1952: 14 e 18, tradução minha) Através desses parâmetros, ele critica a “teoria do conhecimento antiga” por desconhecer o “intercurso entre as condições de existência e os modos de pensamento”. As condições epistemológicas deste velho tipo de pensamento modelavam o “conhecimento a partir de protótipos estáticos semelhantes ao que se poderia exemplificar pela proposição 2X2=4.” (Mannheim, 1986: 104-105) Mannheim é insistente contra as compreensões estáticas e absolutizadas, a-históricas, que desconsideram as evidências históricas em favor de um entendimento relacional e dinâmico para o evolver dos acontecimentos.12 Já: “uma teoria moderna do conhecimento que considere o caráter relacional (...) deve partir da suposição de que existem esferas de pensamento em que seja impossível conceber uma verdade absoluta, independente dos valores e da posição do sujeito, e sem relações com o contexto social. Nem mesmo um deus poderia formular uma proposição sobre questões históricas semelhante a 2X2=4.” (Mannheim, 1986: 105) Apesar de Mannheim, diversas vezes, falar de forma genérica sobre o conhecimento ser existencialmente determinado, parecendo abarcar todas as formas de cognição, há declarações específicas que este não é o caso. Mannheim exclui as ciências naturais exatas e a matemática desse condicionamento ou determinação social.13 9

Prefiro usar historismo em vez de historicismo como tradução do termo alemão “Historismus” – apesar da ambiguidade de serem intercambiáveis na historiografia, em geral – para marcar a diferença entre um conceito apoiado na historicidade das formas de vida, como em Dilthey e Mannheim, e outro teleológico que foi bastante difundido por Popper, historicismo, que enfatizava a pretensão de uma lógica absolutista, de leis na história. Sérgio Buarque de Holanda já havia observado essa distinção em português. 10 Mannheim reconhece a contribuição marxista (Mannheim, 1986: 102) mas critica especialmente dois aspectos. O primeiro é o conceito de ideologia que deveria ser aplicado também ao próprio marxismo, ao contrário do que prega a vulgata do cientificismo marxista – “o pensamento de todas as partes em todas as épocas é de caráter ideológico”. (Mannheim, 1986: 103) O segundo ponto de crítica é o economicismo, em geral, de raiz positivista. Mannheim vai contra a idéia de “homo economicus” pois a “sociologia tem, na verdade, de examinar o homem como um todo”. (Mannheim, 1952: 184, tradução minha) Mannheim se refere “não apenas a classes, como o faria um tipo dogmático de marxismo, mas também a gerações, grupos de status, seitas, grupos ocupacionais, escolas etc.” (Mannheim, 1986: 297) 11 (Wolff, 1993: 401) “A soma de todo o conhecimento existente em um determinado momento nasce em estreita dependência do processo social real”. (Mannheim, 1952: 179, tradução minha) “Assim, torna-se a tarefa da história sociológica do pensamento analisar (...) todos os fatores da situação social efetivamente existente que possam influenciar o pensamento.” (Mannheim, 1986: 104) 12 O “lugar da epistemologia como uma ciência fundamental será tomado pela filosofia da história como uma metafísica dinâmica” (Mannheim, 1952: 97, tradução minha) 13 No artigo Historismus, 1924, Mannheim já menciona: “as ciências exatas podem fazer afirmações em cujo conteúdo não entram a posição histórica e local do sujeito conhecedor”. (Mannheim, 1952: 101, tradução minha) Ver também o artigo sobre competição (Mannheim, 1952: 193). No artigo sobre sociologia do conhecimento, 1925, ele insiste em fazer a distinção. (Mannheim, 1952: 135, 170) Meja e

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Mannheim forja o conceito estilo de pensamento, Denkstil, a partir do entendimento da Weltanschauung de Dilthey e da compreensão da noção de estilo em história da arte. Em 1923 ele lança o artigo sobre a interpretação da Weltanschauung e destaca a importância de uma “entidade chamada estilo” para o pensamento histórico avaliar as obras de arte.14 Em 1924 ele escreve o artigo Historismus em que constata como a determinação posicional entre conhecimento, cultura e as vivências pode ser estabelecida através da “coordenação e afinidade entre estilo de pensamento e vida por um lado, e certos grupos sociais e sua dinâmica particular, por outro.” (Mannheim, 1952: 125, tradução minha) Em 1925 lança o texto sobre sociologia do conhecimento, Das Problem einer Soziologie des Wissens, no qual o conceito de Denkstil já aparece com uma formulação teórica mais elaborada.15 Finalmente, em 1927, em Das konservative Denken, ele apresenta o conceito de estilo de pensamento como “o coração de seu método” inovador de fazer uma história do pensamento diferente da que é desenvolvida pela narrativa típica da história das idéias, usual naqueles dias.16 Esse método inaugural ele designa como a sua sociologia do conhecimento. “A história do pensamento deste ponto de vista [de seu método] não é a mera história das idéias, mas uma análise de diferentes estilos de pensamento, de como eles crescem e se desenvolvem, fundem-se e desaparecem; a chave para a compreensão das mudanças nas idéias deve ser encontrada no contexto social que se modifica, no destino dos grupos sociais ou classes que transportam esses estilos de pensamento.”(Mannheim, 1993: 260, tradução minha) Nesse artigo, Mannheim exemplifica como a noção de estilo aplicado à história da arte é um instrumento poderoso de análise histórico-sociológica. O estilo de um artista é a garantia do pertencimento do gênio individual à sua condição histórica. Uma obra de arte anônima pode ser investigada a partir de seu estilo. “Nós somos cegos para a existência de estilos de pensamento porque nossos filósofos nos fazem acreditar que o pensamento não se desenvolve como parte essencial do processo histórico”. Situação semelhante dessa ocultação da existência de estilos de pensamento ocorre entre os analistas literários que procuram “persuadir a si próprios que o manancial de todo pensamento é a personalidade do indivíduo.”(Mannheim, 1993: 262, traduções minhas) E Mannheim ainda esclarece mais: o estilo está invariavelmente vinculado a um grupo e às formas pelas quais esse grupo situa-se e desloca-se na malha societária. Os pensadores de determinado período são representativos de diferentes estilos de pensamento. “Nós procuramos descrever seus diferentes modos de olhar as coisas como se eles refletissem as mudanças de olhar de seus grupos”.(Mannheim, 1993: 262, Stehr anotam igualmente essa questão e suas ambiguidades (Meja and Stehr, 1990: 286, n 9 e 10) Em Ideologia e utopia, Mannheim trata de questões similares. “É verdade, quanto a este tipo de conhecimento, [referido como do tipo 2 X 2 = 4] que sua gênese não interfere nos resultados do pensamento”. (Mannheim, 1986: 313 ss) Longhurst também examina essa questão. (Longhurst, 1989:45 ss) Interessante observar, ainda no Historismus, sua compreensão do evolver histórico considerado “progressivo” para as ciências naturais exatas e que pode ser descrito “nos campos psíquicos culturais como uma transformação de Gestalt” (Mannheim, 1952: 115, 111, tradução minha). Ver também (Mannheim, 1952: 116-124). 14 (Mannheim, 1952: 35, tradução minha) Vimos “como a história dos estilos constitui um novo objeto científico” e adequado para estudar cientificamente as obras de arte. (Mannheim, 1952: 72, tradução minha) No “Ideologia e utopia”, Mannheim menciona como o estilo de pensamento expressa uma Weltanschauung, (Mannheim, 1986: 327) e como os estilos estão associados a formas artísticas (Mannheim, 1986: 293). 15 Ver menção ao Denkstil: (Mannheim, 1952: 146-147). 16 Karl Mannheim. “Conservative Thought” in Kurt Wolff (ed.). From Karl Mannheim. New Brunswick, Transactions Publishers, 1993. 260-350.

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tradução minha) Esta relação entre o indivíduo portador de um estilo de pensamento e o seu grupo de pertencimento é essencial. “Mannheim afirma, que grupos concretos organizados em torno de certos interesses dominantes estão ‘comprometidos’ com certo ‘estilo’ de pensamento e de sensibilidade”, declara Paul Kecskemeti e acrescenta adiante que correntes doutrinais e estilos de pensamento “estão ligados a grupos concretos, a suas aspirações e a suas interações.” 17 Em 1928, Mannheim explode na academia, ascende à ribalta entre seus pares. Ele apresenta no “Sexto Congresso dos Sociólogos Alemães”, em Zurich, um trabalho sobre a competição como fenômeno cultural. Sua “apresentação triunfante” neste congresso, “já é notável”, e “recebe uma audiência bastante respeitosa para a tese complexa na qual argumenta que o conhecimento no domínio social e político é conectado com a existência”.(Meja and Stehr, 1990: 5, tradução minha) A discussão com Mannheim é intensa e merece uma leitura cuidadosa para compreender o cenário da sociologia alemã naquele momento. O debate foi conduzido por Ferdinand Tönnies, presidente da Sociedade Sociológica Alemã, e dele participaram: Alfred Weber, Werner Sombart, Wilhelm Jerusalem, Kurt Singer, Adolph Löwe e Norbert Elias dentre outros.(Meja and Stehr, 1990: 86-106) Esse debate será o embrião do que ficou conhecido na historiografia como der Streit um die Wissenssoziologie, a disputa da sociologia do conhecimento, que produzirá – ao se alimentar dos desdobramentos que se seguiram – uma forte resistência às idéias de Mannheim e à possibilidade de uma sociologia do conhecimento. O passo seguinte do desenvolvimento dessa resistência dá-se quando a obra clássica de Mannheim, Ideologie und Utopie, é editada em 1929. Um público mais amplo é atingido e a ressonância alcançada pela sociologia do conhecimento é igualmente maior. Foram mais de “30 artigos publicados em resposta ao livro de Mannheim cobrindo uma considerável extensão de posições teóricas, a maioria das respostas e críticas vieram” de marxistas ortodoxos, como Otto Neurath, de marxistas anti-positivistas, como Max Horkheimeir e Herbert Marcuse, ou de social-democratas como Hannah Arendt, mas houve outras também, da direita.18 Algumas críticas são ácidas e agressivas – Mannheim foi acusado de “cripto-marxista”, de produzir uma “teoria social fascista” ou de apresentar “um marxismo burguês”.(Meja and Stehr, 1990: 8) Ao lado da Streit um die Wissenssoziologie ocorre uma outra frente de franca oposição à sociologia do conhecimento. Tratam-se dos neopositivistas – ou empiristas lógicos, como ficaram conhecidos posteriormente nos EUA –, sediados em Viena e em Berlim. Otto Neurath, um dos criadores do Wiener Kreis, Círculo de Viena,19 além de sua crítica já presente na “disputa da sociologia do conhecimento”, também fará oposição a Mannheim através daquele mesmo conceito de Weltanschauung ao fornecer a linha diretriz do Círculo, em favor de uma ciência neutra e objetiva: “Não opomos aqui uma concepção de mundo nova às velhas, nem substituímos algumas destas por meio do esclarecimento dos conceitos, mas sim que frente

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(Mannheim, 1952: 19-20, tradução minha) Diz ainda Mannheim: a principal tarefa da sociologia do conhecimento consiste em especificar as diversas posições intelectuais nas quais o pensamento de indivíduos e grupos criativos estava baseado. (Mannheim, 1952: 189) 18 (Meja and Stehr, 1990: 6) Este livro contém uma seleção dos trabalhos críticos: pp. 107-282. 19 Esse grupo foi formado pelo matemático Hans Hahn, o físico Philipp Frank e o economista político e sociólogo Otto Neurath, que se opôs duramente a Mannheim durante a “disputa da sociologia”. Nos anos vinte, já maduro, o grupo terá em Neurath seu estrategista, “l'âme politique”, com diz Jan Sebestik. Jan Sebestik et Antonia Soulez(org.) Le Cercle de Vienne: doctrines et controverses. Paris: Meridiens Klincksieck, 1986. p. 15, 22.

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a todas as concepções de mundo surge, em oposição, a ‘ciência sem concepção de mundo’.”20 Este artigo de Neurath, Soziologie im Physikalismus, de 1931, reafirma o “manifesto” do Círculo de Viena – Wissenschaftliche Weltauffassung: Der Wiener Kreis (A visão de mundo científica: o Círculo de Viena) – de 1929, subscrito por Hans Hahn, Otto Neurath e Rudolf Carnap.21 Mas, tavez, a mais eficiente formulação surgida, ainda na década de 20, seja Der logishe Aufbau der Welt. Versuch einer Konstitutionstheorie der Begriffe (A estrutura lógica do mundo. Ensaio de uma teoria da constituição dos conceitos) de Rudolf Carnap, editada em Berlim, 1928. Em seus prefácios ao Aufbau, Carnap já aponta para a “reconstrução racional” (Carnap, 1967: vi) como objetivo da nova filosofia, científica, dos neopositivistas, que se opõe à “atitude do filósofo tradicional” a qual é “mais como a do poeta”, enquanto a do novo tipo de filosofia é a de seguir a orientação científica como guia de seu trabalho filosófico. (Carnap, 1967: xvi, tradução minha) “A exigência de justificação e fundamentação conclusiva para cada tese deve eliminar todo trabalho especulativo e poético da filosofia”, o resultado que decorre daí é que “toda metafísica foi banida da filosofia, desde que suas teses não possam ser racionalmente justificáveis”. (Carnap, 1967: xvii, tradução minha) Por esses caminhos, de valorizar exclusivamente a justificação racional do resultado da investigação científica, Carnap retira a importância da gênese histórica de um conceito, das maneiras idiossincráticas que envolvem o surgimento desse conceito. A maneira pela qual um conceito emerge não tem interesse científico, é uma curiosidade histórica. O fator decisivo é que “para a justificação de uma tese um físico não cita fatores irracionais mas fornece uma justificação puramente empírico-racional.” (Carnap, 1967: xvii, tradução minha) Este novo eixo da epistemologia entrará em rota de colisão com as pretensões da sociologia do conhecimento. O propósito de Carnap – por uma “reconstituição racional do efetivo processo genético”, (Pasquinelli, 1983: 27) em detrimento da descrição historicamente situada – é voltado ao combate às inclusões de motivos psicológicos ou de gestos histórico-sociológicos no fazer científico. Não importam as constatações sobre a origem social ou psicológica de um saber, o fundamental é que este saber seja justificado racionalmente. O esforço de Mannheim parece insuficiente para atender às demandas do Wiener Kreis em favor de considerar o conhecimento científico como um saber que independe das formas (sejam mágicas, místicas ou acidentais) pelas quais uma “teoria” ou uma “lei” é descoberta ou construída. Para o Wiener Kreis o que importa é a sua validade, dada pela reconstrução racional, pela justificativa logicamente consistente e empiricamente testada. O fato do conhecimento ser existencialmente condicionado, ou determinado, nada garante sobre sua validação para ingressar no 20

A. J. Ayer (comp.). El Positivismo Lógico. México: Fondo de Cultura Económica, 1965. p. 288. Em Soziologie im Physikalismus, diz Neurath: “Continuando a obra de Mach, Poincaré, Frege, Russell, Wittgenstein e outros, o assim chamado ‘Círculo de Viena para a Concepção Científica do Mundo’ trata de criar uma atmosfera livre de metafísica para promover estudos científicos em todos os campos por meio da análise lógica. Seria menos desorientador falar de um ‘Círculo de Viena para o Fisicalismo’, já que o termo ‘mundo’ está ausente da linguagem da ciência, e que concepção de mundo (Weltauffassung) confunde-se em geral com visão de mundo (Weltanschauung). Todos os representantes deste Círculo estão de acordo em que a ‘filosofia’ não existe como disciplina, ao lado das ciências, com proposições específicas: o corpo de proposições científicas esgota a soma de todos os enunciados dotados de sentido”. (Ayer, 1965: 287, grifos no original) 21 Alberto Pasquinelli. Carnap e o Positivismo Lógico. Lisboa: Ed. 70, 1983. p. 9. Como curiosidade, Carnap usa “style of thinking”, “estilo de pensamento”, em seus argumentos. (Carnap, 1967: xvi)

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território legítimo do saber científico. Este é o calcanhar-de-aquiles da sociologia do conhecimento que será bem explorado por Carnap e os neopositivistas. Tal sistema apresentará uma evolução natural no interior do Wiener Kreis com a proximidade de Carnap e Hans Reichenbach, o líder do Círculo de Berlim, um grupo ativo e bastante próximo dos vienenses.22 A partir de 1930, Reichenbach dividirá a direção da revista Erkenntnis – o principal veículo das idéias do Círculo – com Carnap. No ano seguinte à publicação em Bonn do Ideologie und Utopie de Karl Mannheim, sai a ácida “resposta” de Hans Reichenbach no jornal pela ciência unificada Erkenntnis (1930). No artigo, Reichenbach formula uma elaborada distinção sobre a atividade científica e seus produtos, demarcando fortemente a origem de uma idéia de sua validade.23 A formulação original de Carnap desenvolvida no Aufbau consolida-se com Reichenbach, estreitando ainda mais os vínculos entre os grupos de Viena e de Berlim. Reichenbach separa habilmente os momentos envolvidos na construção de uma hipótese ou teoria científica quebrando-a em duas, antes-depois. Por um lado, os procedimentos envolvidos na gênese de uma idéia, pelo outro, as reconstruções racionais desta idéia garantindo-lhe validade. Dois instantes que refletem uma distinção profunda, a cientificidade de uma proposição independe da forma pela qual o cientista a produziu. A origem de uma idéia não a desmerece nem é garantia de sua legitimidade, esta origem não afeta o seu conteúdo cognitivo. Este é da alçada do exame lógico posterior, independente da fonte inspiradora que a levou até a seu autor. “Vou introduzir as expressões contexto de descoberta e contexto de justificação para marcar a diferença (...) entre o modo que o pensador chega à sua teoria e o seu modo de apresentá-la ao público.”24 A longevidade e vitalidade da dicotomia de Hans Reichenbach, que sobrevive – subrepticiamente, ou não – até nossos dias, é devedora da ampla atividade dinâmica dos empiristas lógicos refletindo-se até em alguns de seus críticos como foi o caso de Popper. Abraçando imediatamente a proposta de Carnap-Reichenbach, Popper difundiu a análise epistemológica da demarcação descoberta-justificação, ao apresentá-la e firmála na literatura especializada com a força de uma evidência simplificadora. Essa dicotomia de Reichenbach foi legitimada em sua Logik der Forschung (Lógica da Pesquisa), de 1934. Ela recebeu grande difusão através do ardor popperiano como conferencista e pensador combativo (basta recordar a “Miséria do Historicismo”, sua presença ativa em Londres, os debates com Adorno e Kuhn). “O estágio inicial, o ato de conceber ou inventar uma teoria, parece-me não reclamar análise lógica, nem ser dela suscetível. A questão de saber como uma idéia nova ocorre ao homem – trate-se de um tema musical, de um conflito dramático ou de uma teoria científica – pode revestir-se de grande interesse para a psicologia empírica; mas não interessa para a análise lógica do conhecimento científico. Esta última diz respeito não a questões de fato (o quid facti? de Kant), mas apenas a questões de justificação ou validade (o quid juris? de Kant).”25 Esta associação de conflitos, entre der Streit um die Wissenssoziologie e o Wiener Kreis, foi uma fatalidade para Mannheim. Impuseram-lhe um estigma: o de relativista. 22

A relação estreita que mantinham é retratada na autobiografia de Carnap (“cada um de nós, mal esboçava uma nova idéia, considerava o outro como o melhor crítico”) e seguramente estimulou o intercâmbio e continuidade entre os trabalhos de ambos.(Pasquinelli, 1983: 18) 23 Hans Reichenbach. Moderna Filosofía de la Ciencia. Madrid: Tecnos, 1965. Augustine Brannnigan. A Base Social das Descobertas Científicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. p. 18. 24 Hans Reichenbach. Experience and Prediction. Chicago: University Chicago Press, 1961, p. 6-7. Brannigan, 1984: 67. 25 Karl Popper. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo. Cultrix. 1975. p. 31, grifos do autor.

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Doravante a sociologia do conhecimento ficará confinada ao contexto da descoberta, ao lado de uma “psicologia” dos atos criativos. O território da validade das teorias e conceitos – o contexto da justificação – pertencerá estritamente às análises lógicas e epistemológicas.26 A sociologia do conhecimento estava, assim, banida das discussões sobre o conteúdo das idéias e das práticas científicas. Com este quadro inóspito como cenário e com a hostilidade nazista como fato, Mannheim vê-se obrigado a escapar da ascensão hitlerista em 1933 e se refugiar em Londres, mas, já será um outro Mannheim ... 27 A sociologia do conhecimento que surgiu com impacto considerável e apresentou um rápido florescimento foi, assim, abortada. Instalou-se então o que denomino de “hiato historiográfico” – uma interrupção, um longo período de silêncio na historiografia – impedindo que as análises histórico-sociológicas sobre o saber científico fossem produzidas. Durante o período em que predominou este “hiato”,28 a epistemologia reinou absoluta nos estudos sobre o conteúdo da atividade científica alimentando a denominada “querela internalismo-externalismo”.29 Em 1936 sairá a edição inglesa, Ideology and utopia, composta da edição originária de 1929 com algumas alterações e ampliada por um capítulo introdutório e por um artigo de Mannheim, de 1931.30 A recepção de Mannheim em inglês não lhe foi favorável. O estigma relativista prevaleceu e pairou como uma sombra ameaçadora legando à sociologia do conhecimento a penumbra ante os acontecimentos historiográficos futuros. (Meja and Stehr, 1990: 301, n 19) O relativismo durante o “hiato historiográfico” tornou-se um espectro fantasmático enquanto a epistemologia encontrou sua fase áurea, contrariando o prognóstico de Mannheim de que seria sucedida pela sociologia do conhecimento. No episódio da recepção de Mannheim em inglês, a análise de Robert Merton é exemplar, inclusive pela notoriedade que este autor alcançará na sociologia e na área dos estudos de ciência. É justamente o conteúdo epistemológico do trabalho de Mannheim que Merton dispensa de examinar em seu artigo “Karl Mannheim e a sociologia do conhecimento”31, por considerar que as análises realizadas por Alexander Von Schelting, em 1932 e 1936, seriam já “críticas acabadas”.32 Após esses confrontos restou o silêncio. Retornamos assim a uma situação análoga à anterior, antes do aparecimento de Mannheim, na qual havia dois saberes distintos – o das Naturwissenschaften e o das 26

“A interpretação mística do método hipotético-dedutivo como um conjecturar irracional surge de uma confusão do contexto de descoberta e o contexto de justificação. O ato da descoberta escapa à análise lógica; não existem regras lógicas segundo as quais pudesse se construir uma ‘máquina descobridora’ que assumisse a função criadora do gênio. Porém a tarefa do lógico não é explicar os descobrimentos científicos; tudo o que pode fazer é analisar a relação que existe entre os fatos dados e uma teoria que se lhe apresente com a pretensão de que explica estes fatos. Em outras palavras, à lógica só importa o contexto de justificação”. (Reichenbach, 1965: 240) Ver também (Meja and Stehr, 1990: 301, n 12) 27 Remmling avalia diversas questões sobre Mannheim, inclusive as reações tanto da esquerda quanto da direita a seus escritos, bem como, a mudança de direção de seus trabalhos em Londres que se voltaram para a planificação. Gunter Remmling. The sociology of Karl Mannheim. Atlantic Highlands: Humanities Press, 1975. p 52-63. Ver também sobre as mudanças em Mannheim, (Meja and Stehr, 1990: 301, n 17) 28 Desde o silenciamento de Mannheim, após 1929, e até o aparecimento de Kuhn, em 1962, ou mais explicitamente e de forma mais incisiva e definitiva, até a década de 1970, com a emergência do “programa forte” de Bloor e Barnes. 29 Essa querela teve como marco inicial o II Congresso de História da Ciência em Londres, 1931, no qual marxistas ingleses desenvolveram uma compreensão “externa” sobre a ciência. Até então, a História da Ciência era uma empresa estritamente internalista, associada a uma clássica história das ideias. 30 Kurt Wolff avalia criticamente esta tradução em relação ao trabalho de 1929, ver: Wolff, 1993: 51ss. 31 Merton, R. Sociologia – Teoria e Estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970. p. 600. 32 Merton, R. “La Sociología del Conocimiento”. in Horowitz. Buenos Aires: Eudeba, 1964. p.72.

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Geisteswissenschaften – para dois objetos, a Natureza e a Sociedade. Nesta separação, o relativismo estava confinado ao registro social e não incomodava a epistemologia naturalista. Nessa década de 1930, a dicotomia de Reichenbach ao lado da Streit um die Wissenssoziologie calou a sociologia do conhecimento e voltou a confinar o relativismo em um território desimportante para a análise epistemológica – o contexto da descoberta. A Wissenssoziologie não alcançou o “direito” de examinar o conteúdo das práticas científicas. Após esse episódio, com Mannheim silenciado, Merton se tornará a personagem central nos estudos de ciência, com uma outra proposta, diferente: a sociologia da ciência. Esta nova “sociologia” estará restrita ao exame da ação sócio-política dos cientistas em sua corporação – ao exame de: normas de conduta, lutas por prestígio, regras hierárquicas, padrões de legitimidade corporativa etc. A distância entre a sociologia do conhecimento de Mannheim e a sociologia da ciência de Merton será medida pela pacificação epistemológica reencontrada. Com Merton a calmaria retorna às paisagens dos estudos de ciência, nada afronta o predomínio das análises do conteúdo lógico-epistemológico das ideias científicas. A sociologia mertoniana restringe-se ao exame do aspecto institucional da ciência, sem discutir a validade do saber científico.33 Ainda que esse período – do “hiato historiográfico” – seja dominado pela “querela internalismo-externalismo” não há efetivamente nenhuma disputa.34 O conteúdo cognitivo pertence, outra vez, à história das ideias, uma história interna. Já as condições sociais da prática científica, externas, pertence em geral aos marxistas. Mais externo ainda encontra-se Merton. Nenhuma agressão substantiva a partir do relativismo. Reinam serenos: Merton, de um lado, com a ciência como instituição, e de outro, Popper, respondendo pela epistemologia. Este é o cenário – de Mannheim amordaçado – que aguarda o aparecimento de Fleck. São chãos calcinados, especialmente em idioma alemão, inadequados para receberem sua história sociológica. Chãos e tempos impróprios para que Fleck encontrasse alguma audiência. Ficou incógnito. É uma ironia que a única referência de seu livro, em vida, seja a feita por Reichenbach. (Fleck, 2010: 33) Essa pacificação dada pelo “hiato historiográfico” somente chegará ao fim quando as condições históricas mudarem e a resistência ao relativismo desaparecer, na década de 1970, e assim o exame da ciência do ponto de vista do relativismo será autorizado pelos novos tempos. Tempos, ditos, pós-modernos – com uma aura de Romantismo.35 Após uma investida preliminar de Kuhn, (Meja and Stehr, 1990: 291) o hiato somente será rompido pelos sociólogos ingleses que resgatarão as posturas anteriores e promoverão o “programa forte da sociologia do conhecimento”, radicalizando ainda mais a orientação mannheimiana. Este será o momento historicamente propício para o reaparecimento de Fleck. Claro, é quando Fleck é traduzido e editado em inglês, em 1979. Mas, quais as últimas palavras de Mannheim sobre o episódio? Há vestígios. No capítulo adicionado à edição inglesa de Ideologie und Utopie, extraído do artigo de 1931, Mannheim faz diversas observações já como reação às polêmicas provocadas. Ao propor a necessidade da “revisão da tese que a gênese de uma proposição é, em 33

Merton, R. A ambivalência sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 52-53. A relação histórica entre a emergência simultânea desse “hiato” e da “querela” é já um sintoma da articulação entre ambas ocorrências. A “querela” demarcava espaços próprios para internalistas e para externalistas, como se fossem compreensões complementares da atividade científica. Afinal, o externalismo não ocupava o lugar do relativismo. Ao fim do “hiato”, década de 1970, verifica-se também o declínio de interesse na área dos estudos de ciência pelo tema do internalismo versus externalismo. 35 A tensão Iluminismo versus Romantismo explica a oscilação mostrada pelo hiato. Após a II Guerra, o Romantismo torna-se mais presente e prioriza a análise das vivências e práticas humanas, o que favorece um resgate da sociologia do conhecimento e da pragmática junto com a crítica ao racionalismo iluminista. 34

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quaisquer circunstâncias, irrelevante para a sua verdade”, Mannheim reconhece a contundência da ruptura de Carnap-Reichenbach, exposta pelo que ele denomina de um dos axiomas da epistemologia idealista: o “dualismo abrupto e absoluto entre ‘validade’ e ‘existência’ – entre ‘significado’ e ‘existência’ – entre ‘essência’ e ‘fato’ é (...) o obstáculo mais imediato para a utilização (...) das descobertas da sociologia do conhecimento”. (Mannheim, 1986: 313) Ele reconhece igualmente que nas ciências naturais exatas (do tipo 2 X 2 = 4) que “a gênese não interfere nos resultados do pensamento” e observa o valor da ruptura do Wiener Kreis em outros casos. Dessa forma ele recoloca a tensão entre a sociologia do conhecimento e a epistemologia, no que parece conter um recuo de sua proposição mais ousada: “a epistemologia não é suplantada pela sociologia do conhecimento, mas faz-se necessário um novo tipo de epistemologia que tome em consideração os fatos revelados por aquela.” (Mannheim, 1986: 315) Mannheim assumiu sua derrota ... Adiante, neste mesmo texto, Mannheim é mais altivo e assume seu melhor lado, o da crítica demolidora. Ele examina as “ulteriores consequências da sociologia do conhecimento para a epistemologia” (Mannheim, 1986: 315-326) e constata que a epistemologia está “permeada pela percepção puramente contemplativa do conhecimento”, o que entra em contradição com a “descoberta do elemento ativista no conhecimento”, típica da compreensão sociológica. Ele considera que “o ato de conhecer, na concepção ‘idealista’ de conhecimento, como principalmente um ato puramente ‘teórico’, no sentido de percepção pura,” e assim, “na base desta epistemologia está o ideal filosófico da ‘vida contemplativa’.” (Mannheim, 1986: 315) Essas considerações merecem um realce. Aqui encontra-se um veio produtivo para a análise crítica: a epistemologia está imersa em uma atitude passiva de contemplação ante um saber que possui uma dinâmica e vitalidade próprias, que seriam independentes do agente social também visto como passivo. A dinâmica do saber seria dada por um motor interno – o agente ativo – constituído pela lógica das teorias, o que justificava uma história das ideias. Este é o modelo subjacente à noção de objetividade científica: objeto ativo e sujeitos neutros, inertes, passivos. Justamente esta noção será duramente combatida por Fleck. Dessa forma, após tantas lutas, ao fim dos debates, Mannheim coloca o aspecto fundamental da sociologia do conhecimento ante a epistemologia, expõe a novidade sociológica no cenário das análises sobre o saber: a questão do agenciamento. Afinal a sociologia trabalha com a perspectiva de que o ser social é um agente ativo. Ao aplicar a sociologia ao conhecimento, e fazer a sua sociologia do conhecimento, Mannheim está trazendo para a área dos estudos de ciência o diferencial sociológico básico: a atividade do ser social. Uma inovação no modelo compreensivo ortodoxo que grassava na história da ciência até então. Uma oposição ao ideal do saber como uma emanação do mundo exterior captada pelos humanos em contemplação passiva. Por isso, desde Galileo diziase que para fazer ciência, para desvendar os “segredos da Natureza”, para “descobrir suas Leis”, era necessário “saber ler o livro da natureza”. Isto é, captar – passivamente – uma verdade que já estava lá, no mais além, no mundo natural exterior àquele sujeito, o conhecimento científico seria produzido sem a interferência do sujeito. Nem o indivíduo nem a sociedade influenciam esse saber. Mas, a proposta de sujeito ativo é um grave problema, inaceitável, para a epistemologia que, com seu pressuposto de objetividade, solicita a passividade plena do observador. Nesse canto de despedida da discussão da Streit um die Wissenssoziologie e do Wiener Kreis, Mannheim ainda anota outras questões pertinentes.36 Merece destaque a 36

Mannheim produz substantivas críticas que não foram exploradas à época, como a negação da verdade em si e, outra mais geral, do “em si” kantiano. (Mannheim, 1986: 324-326)

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declaração – apesar de desnecessária ante o que já foi explicitado – em favor da sua opção pela pragmática, na qual o processo de produção do conhecimento é encarado mais como um fazer do que um saber especulativo – “em certos campos o conhecimento somente surge quando e na medida em que ele próprio é ação”.37 Assim nos despedimos de Mannheim e das polêmicas que provocou. Após o grande silêncio imposto à sociologia do conhecimento, nas décadas seguintes, o “hiato historiográfico” será interrompido pelo “programa forte” que resgatará esse papel ativo do agente social – um retorno romântico após o declínio da hegemonia iluminista. Tal resgate traz de volta o ônus da acusação de relativismo. Pensar em sujeito ativo implica em apresentar o conhecimento como decorrente da atividade desse sujeito, o conhecimento como relativo ao sujeito. Mas como os tempos agora são outros, as objeções também se modificam. A questão chave que seus críticos colocam – em particular, destaco Bruno Latour e Thomas Kuhn – é a que se refere a uma participação exclusiva da sociedade, do ser social, no agenciamento produtor de conhecimento. Perguntam-se: de que forma a natureza também participa das negociações que produzem as crenças a seu respeito? E a natureza não é ativa?38 Mas, ainda sem colocar Fleck em cena: essa questão fica sem resposta satisfatória, tanto em Bloor quanto em Latour ou em Kuhn. Já o livro de Fleck de 1935 – até então, em geral, inacessível – é publicado em inglês em 1979, três anos após a edição de Knowledge and social imagery de Bloor, e um novo manancial de ideias surge. Criamse assim condições materiais para retomar a discussão precocemente encerrada em 1933, com a fuga de Mannheim, e que ainda inquietam as pesquisas hoje. Enfim abre-se a cena para Fleck que invade o proscênio nesse drama mannheimiano. Encerra-se definitivamente o “hiato historiográfico” que silenciou Mannheim e obscureceu Fleck. Mas como Fleck respondeu a essa questão: e a natureza não participa? Somente há uma agência humana, social? A distinção típica, no realismo, entre ciência e outras formas de saber é dada pela crença no mito da objetividade que envolve a existência de um fato científico. Ante um fato o sujeito é suposto como absolutamente passivo, não interfere, é como se o sujeito não existisse em presença do fato – a única agência é a do fato. A ocorrência de um fato dáse “em si” independente de qualquer participação dos indivíduos, é um evento da e na natureza – e isso vale seja qual for a sociedade. Toda atividade é exercida pelo fato, está concentrada no fato, este é o único ator. O sujeito, social, é espectador dessa agência material – do fato natural. Nessa percepção de ciência como algo objetivo, o sujeito é mero assistente da cena que ocorre no mundo. Ao chover temos o fato; poderá ser uma inundação ou não; mas qualquer “dança da chuva”, qualquer ação dos sujeitos, parece ser ineficiente para controlar este fato. É justamente essa concepção de fato – autônomo e objetivo – que Fleck vai tomar como alvo de suas elaborações histórico-sociológicas.39 Aquilo que é considerado como fato será avaliado em seus contornos sociológicos e em sua herança histórica. Como algo alcança as propriedades de um fato? Quais são as qualidades de um fato? 37

E ainda acrescenta: “A filosofia idealista não se perturbava com a descoberta de que o tipo de conhecimento representado pela teoria pura era apenas um pequeno segmento do conhecimento humano, e que, em acréscimo, pode haver conhecimento onde os homens, enquanto pensam, estejam também agindo”. (Mannheim, 1986: 315) 38 A oposição de Latour e de Kuhn é bem retratada na proposta: “A própria natureza, seja lá o que for isso, parece não ter papel algum no desenvolvimento das crenças a seu respeito.” (Kunh, 2006: 139) 39 Fleck apresenta uma notável solução para esses impasses, denomino-a de sua “teoria” do ativo-passivo e a examino a seguir. É uma alternativa diferenciada para o dilema atual entre relativismo e realismo.

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Deixemos Fleck falar. “O trabalho do pesquisador consiste em diferenciar, no meio da confusão incompreensível, no caos que enfrenta, entre aquilo que obedece à sua vontade e aquilo que resulta de si mesmo e que resiste à sua vontade.” Assim, o pesquisador “procura a resistência, a coerção do pensamento, em relação às quais ele poderia se sentir numa posição passiva.” (Fleck, 2010: 144) Com esses dados, Fleck propõe o que seria uma definição para o conceito de “fato”, alinhada com a sociologia: “no campo do conhecimento, o sinal de uma resistência que se opõe à voluntariedade livre do pensamento, chama-se ‘fato’.” (Fleck, 2010: 151) Fleck explicita e explica a aparente “objetividade” do fato percebida pelo observador. Aquilo que é designado como “fato” – por um sujeito – deve apresentar-se como algo independente desse sujeito, algo que supostamente age por conta própria. Este é o entendimento do sujeito-cientista, testemunha do fato em questão. Mas, e o historiador? Qual seria o entendimento de um historiador sobre o depoimento de um cientista de que sua pesquisa trata de examinar um fato “objetivo”? Ora, o historiador localiza sempre cada texto em seu contexto, ele observa o tal “fato” na cena semiológica que lhe dá sentido, cena na qual o sujeito constrói o sentido: o significado de “ser objetivo”.40 Afinal, o historiador examina os bastidores do depoimento do cientista e, assim, aquilo que é dito ser um “fato objetivo” – independente do sujeito – mostra facetas outras. A “objetividade” ocorre dentro de um estilo de pensamento. O atrevimento de Fleck consiste em constatar que a “existência” do fato – isto é, a evidência de sua coerção – depende do estilo de pensamento do sujeito, depende da sua percepção.41 A chuva é um fato, eis o exemplo de um fato “universal” pois todos concordam com a existência e autonomia dessa ocorrência, todos são coagidos por ela. Até aqui não há dúvidas quanto ao caráter ativo da materialidade e o passivo para o sujeito. Mas a coação factual é variável, em função da situação, não é a mesma para todos os estilos de pensamento. Um miasma pode ser causa factual de patologias para uns e uma ficção para outros. Assim, dois sujeitos diferentes podem “ver” coisas diferentes, podem até nem perceber o mesmo fato. Pode até acontecer de algo ser percebido como fato em um estilo e permanecer invisível em outro.42 O que define algo como fato é que seja uma ocorrência no mundo percebida como algo independente do observador – Fleck diz: “resistente”. Há uma ênfase no termo “percebida”. “Assim nasce o fato: primeiro um sinal de resistência no pensamento inicial caótico, depois uma certa coerção do pensamento e, finalmente, uma forma (Gestalt) a ser percebida de maneira imediata. Ele sempre é um acontecimento que decorre das relações na história do pensamento, sempre é resultado de um determinado estilo de pensamento.” (Fleck, 2010: 144-145) A novidade do pragmatismo de Fleck está em não dissociar o fato de sua percepção. Não há uma ontologia para os acontecimentos independente de seu atestado dado pelos sujeitos. O Real metafísico está fora do cenário prático que somente considera realidades pragmáticas, experimentadas, vivenciadas pelos sujeitos. O Real idealizado é 40

Há uma distinção fundamental entre os termos “sentido” e “significado”. Em semiologia o sentido é uma significação extraída pelo sujeito em um contexto – é dependente de seu estilo de pensamento –, já em linguística o significado é algo exclusivamente definido pela palavra, independente do sujeito. 41 O estilo “é uma coerção definida de pensamento e mais: a totalidade das disposições mentais, a disposição para uma e não para outra maneira de perceber e agir. Evidencia-se a dependência do fato científico em relação ao estilo de pensamento.” (Fleck, 2010: 110) 42 Os conflitos entre os adeptos da teoria ondulatória e da corpuscular da luz, desde os tempos de Newton e Huygens até os tempos do alvorecer da mecânica quântica, no início do século XX, são exemplos canônicos na historiografia das ciências para essa questão. Os “fatos observados” por uma teoria – que serviam de sua comprovação empírica – não sensibilizavam os adeptos da teoria oposta. São dois estilos de pensamento, logo, são dois conjuntos de fatos comprobatórios.

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ilusório.43 Nada é “em si”.44 A realidade é constituída pelo conjunto articulado de fatos que habitam um dado estilo de pensamento. “Uma rede em flutuação constante, que se chama realidade ou verdade.” (Fleck, 2010: 127) Essa realidade não é estática, ela possui um evolver em função de novos acontecimentos acrescidos àquele estilo de pensamento – “uma proposição, uma vez publicada, pertence aos poderes sociais que formam conceitos e criam hábitos de pensamento, junto com todas as outras proposições; ela determina o que ‘não pode ser pensado de outra maneira’.” Assim modifica-se a realidade constituída. “Ela se transforma numa realidade evidente, que, por sua vez gera novos atos de conhecimento.” (Fleck, 2010: 80) Esta é a razão para Fleck usar enfaticamente a expressão “solo firme de fatos” ao referir-se à realidade, uma realidade decorrente da percepção e que germina nesse solo de fatos. (Fleck, 2010: 142, 145) A associação entre o estilo de pensamento, fatos e as percepções abrem as portas para um conceito fundamental e bastante produtivo em Fleck: o Gestaltsehen – percepção visual da forma. (Fleck, 2010: 133, 142) Denkstilgebundenes Gestaltsehen, trata-se da “percepção da forma vinculada ao estilo de pensamento”. (Fleck, 2010: 15) O Gestaltsehen é mais do que um ver, é “uma disposição para um sentir e agir de acordo com um estilo, isto é, um sentir e agir direcionados e restritos”. (Fleck, 2010: 133) Eis aqui uma revolução no sistema das ciências humanas. As ocorrências no mundo não se restringem a seus aspectos estritamente materiais. Os objetos e fatos do mundo estão inscritos no registro simbólico e possuem sentidos dados por sujeitos. Se há um agente humano envolvido nessas ocorrências elas invadem o espaço das significações. A significação instituída pelo Gestaltsehen, a percepção dada pelo estilo, é que fornece a bússola para nortear as vivências humanas. É neste espaço simultaneamente material e simbólico que a humanidade do homem se faz e a história é constituída como devir cultural, um devir sócio-material. Os estilos de pensamento transformam esses indivíduos em sujeitos históricos.45 Cada estilo de pensamento fornece uma determinada capacidade e possibilidade para ver, agir e sentir os acontecimentos; para ver, agir e sentir o mundo. Esta é a natureza do Gestaltsehen.46 Um objeto material, que compõe o mundo percebido, é acompanhado necessariamente de sua significação, do sentido que algum sujeito fornece. Um sujeito que tece a cena do mundo e localiza o objeto material significante nesse mundo. A materialidade está acoplada ao espaço simbólico das significações dadas pelos estilos de pensamento. Toda discussão que envolve dicotomias devidas ao confronto dos termos “Sociedade” e “Natureza”, ou a polêmica entre “relativismo” e “realismo”, deve ser recolocada nesse novo cenário ampliado. Eles constituem oposições que não se sustentam mais. Estes termos são usados aqui, ainda separados, simplesmente como artifício analítico no texto, nada mais. O mesmo vale para a materialidade e suas significações, a instância simbólica não está descolada da base material significante. 43

Fleck fala de “harmonia de ilusões” para o conjunto de percepções que forma o pretenso modo realista ilusório de entender o mundo. (Fleck, 2010: 69, 74, 81) 44 Fleck critica o uso de “conceitos abstratos” usados de “maneira absoluta” tal como “os conceitos de existência, de realidade, de verdade” usuais no kantismo que necessita, em seu sistema, da “coisa em si”. (Fleck, 2010: 70) Os conceitos não se separam de seu uso. “Na realidade, não existem doenças, mas apenas pessoas doentes.” (Fleck, 2010: 64, nota 1) 45 Os estilos são agenciamentos transformadores, tornam indivíduos meramente biológicos em sujeitos sociais. O Homem não nasce como tal, ele é constituído pelo estilo na história. Daí o aforisma: “não se nasce humano, torna-se”. 46 O estilo de pensamento e a maneira de “ver”, o Gestaltsehen, são intercambiáveis. Um decorre do outro. Ver a excelente síntese apresentada em Cohen and Schnelle, 1986: xxi.

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Não se pode continuar avaliando os fenômenos da natureza – se estivermos discutindo o conhecimento humano sobre esses eventos – fora do espaço simbólico. As chamadas “Leis de Newton” são significações dadas por um certo estilo para um conjunto de eventos. Ao cientista natural é dado o direito de realizar suas pesquisas omitindo (ou desconhecendo) o estilo de pensamento que o faz sujeito. Mas o sociólogo ou o historiador não possuem tal direito, ao contrário, eles devem observar esse cientista imerso no seu espaço simbólico que engendra as significações de sua pesquisa. O cientista natural está submetido a um pragmatismo da pesquisa que o coloca como um adepto do realismo naturalista, um realismo estritamente material. Ele observa a queda de uma pedra, marca sua altura e o tempo de queda, e só. Em seguida, procura uma relação causal entre as variáveis anotadas. Ele pesquisa uma relação causal simulando que esteja fora do espaço simbólico ao qual ele, o cientista, pertence. Já o historiador analisa quanto a relação causal que esse cientista estabeleceu é dependente do estilo de pensamento de tal cientista, em outro estilo haveria hipoteticamente outra relação. Estamos agora aptos a responder à questão de Kuhn em sua crítica ao relativismo sociológico do “programa forte” de Bloor: “E a natureza não participa?”. (Kunh, 2006: 139) Sim, evidentemente que sim, não estamos em alguma espécie de solipsismo sociológico. A estação e intensidade das chuvas independe da vontade do agricultor. Em uma história sociológica, tal como Fleck propõe, sociedade e natureza interagem, ambas participam do processo do saber, um saber sobre a natureza estabelecido em sociedade. A novidade fleckiana é que o saber da sociedade sobre a natureza não é dado por uma relação estrita entre coisas materiais (agenciamento material da Natureza, típico do realismo) nem por uma abstração de significantes descolados da materialidade (agenciamento simbólico da Sociedade, típico do relativismo), como se fosse possível pensar nesta ficção que torna disjuntos o simbólico e o material. A relação entre sociedade e natureza, tal como o saber, dá-se no registro simbólico-material. Devo enfatizar, para ser rigoroso com uma história sociológica: o simbólico não pode ser separado da materialidade tal como a sociedade não se separa da natureza.47 A natureza participa, sim, mas a interação ocorre na região simbólico-material das significações. As coisas materiais interagem com os indivíduos sociais através do Gestaltsehen. É através do Gestaltsehen que os sujeitos agem e interferem no mundo, e, reciprocamente, é por intermédio do Gestaltsehen que o mundo atua sobre as pessoas. Há um agenciamento recíproco entre coisas e pessoas. Mas a agência material sobre os humanos ocorre através da significação que o sujeito estabelece. Ao sofrer uma ação material, ao ser afetado, o sujeito a interpreta dentro de seu estilo de pensamento. Um exemplo esclarece mais, um exemplo que aprecio referir por sua clareza. Tomemos como fato documentado, “objetivo”, a imagem em uma ultrassonografia: é um registro factual, sim, porém isso não garante que seja expresso univocamente por todos, depende do estilo de pensamento de cada sujeito. Para um leigo são manchas de claros-escuros, entretanto, para o especialista trata-se de “um feto no 6º mês de gestação”. Ambos sujeitos, o leigo e o especialista, são afetados pelo agenciamento material mas este agenciamento depende do Gestaltsehen de cada um.48 47

Com Marx a integração de sociedade e natureza já fora bem solucionada. O seu conceito de “trabalho” e a categoria de “modo de produção” – forjada com as forças produtivas materiais e as relações sociais de produção – tornam impensável a ruptura entre a Sociedade e a Natureza. 48 Ver o caso examinado por Fleck, em um artigo de 1935 (Scientific Observation and Perception in General), que trata do contraste entre a visão do leigo e do especialista, o qual me inspirou no exemplo citado: Cohen and Schnelle, 1986: 63-67. Há outro artigo de Fleck bastante pertinente, de 1947 – To

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O realismo ingênuo do senso comum ou o realismo científico padecem do mal de não considerarem a instância simbólica como constituinte da realidade, tal como o relativismo sociológico extremado não leva em conta a agência material das coisas do mundo – coisas que servem de âncora e de lastro significativo para os consensos sociais. O pragmatismo que nos orienta aponta para uma realidade que evidentemente é material mas que retém somente leves vestígios indiciais do Real metafísico das coisas “em si”. Porém esses vestígios podem ser enganosos se tomados como essências. Estamos imersos em uma realidade que é “mista”, ela é estruturada a partir das significações impostas às coisas materiais pelo Gestaltsehen. São significações e são materiais. A solução fleckiana reúne os dois lados em disputa – Sociedade ou Natureza ? – em uma alternativa mais fiel à história: os indivíduos sociais possuem um papel ativo (como quer o relativismo sociológico) mas também sofrem o agenciamento dos objetos naturais (como quer o realismo cientificista).49 Este é o agenciamento recíproco. Uma última questão para Fleck equacionar: qual sua resposta ao Círculo de Viena, à dicotomia de Reichenbach-Carnap que silenciou Mannheim? De posse da potência explicativa de seu arsenal conceitual, Fleck não parece dar muita atenção às propostas neopositivistas, ele nem gasta muita tinta para rebatê-los. “Deixemos, pois, a questão da observação sem pressuposições de lado, que, psicologicamente, é um contrassenso e, logicamente, uma brincadeira.” (Fleck, 2010: 141-142)50 Deve-se acrescentar: e historicamente é uma fraude falaciosa. O reino ontológico das coisas em si, doravante, encontra-se seriamente ameaçado. Esperamos que este seja um prognóstico para o futuro das pesquisas históricosociológicas sobre os saberes. Fleck ainda possui frescor e vitalidade admiráveis que podem iluminar os desafios atuais dos estudos de ciência. Nos despedimos de Fleck abrindo espaço para sua ironia refinada, demolidora das pretensões do Círculo de Viena: Look, To See, To Know –, no qual ele faz referência à necessidade de conhecer como condição anterior para ver. (Cohen and Schnelle, 1986: 129) 49 Como uma alternativa ao clássico formato de agenciamentos, fixos em agentes estáticos – exposta na questão defendida por Kuhn-Latour, sobre quem seria o responsável pela ação, se a sociedade ou a natureza –, Fleck desenvolve essa sofisticada “teoria” do ativo-passivo aqui apresentada. No núcleo dessa “teoria” fleckiana da ação, o agenciamento é definido pela relação entre o estilo de pensamento de um sujeito e a realidade – isto é, o conjunto de fatos estabelecidos naquele estilo – ao enfrentar-se uma determinada situação. Se o sujeito submeter-se à coerção do estilo, à sua resistência, ante aquela realidade então diz-se que há uma “conexão passiva” (Fleck, 2010: 50, 83) – um procedimento de obediência às conexões naturais inevitáveis. Esta seria a explicação típica do cientificismo. A natureza é que teria o papel ativo, objetivo, e o pesquisador estaria em uma posição passiva para que sua subjetividade não interferisse nos destinos da pesquisa. (Fleck, 2010: 83, 93, 127, 131) Já se o pesquisador fosse criativo, se exercesse um papel ativo, estaria rompendo com o sinal de resistência e de inevitabilidade dado pela realidade ante o estilo, estaríamos na situação típica do relativismo no qual os acordos sociais suplantam a coerção da natureza. Ou seja, o dueto ativo-passivo é tão dependente de seu contexto de referência quanto o par autor-ator. (Fleck, 2010: 50, 127, 145, 152) Ver comentário de Steven Shapin (Cohen and Schnelle, 1986: 372, n 73). 50 Dispersos em seu texto há mais alguns comentários: “Não existe uma „experiência em si‟, à qual se teria acesso ou não.”, p. 92, “Um outro erro, também muito característico, é cometido pelos cientistas-filósofos. Sabem que não existem ‘qualidades e condições exclusivamente objetivas’, mas apenas relações dentro de um sistema de referências mais ou menos arbitrário. Mas cometem, por sua vez, o erro de ter um respeito excessivo diante da lógica, uma espécie de devoção religiosa diante das conclusões lógicas.”, p. 94, e prossegue “Para esses teóricos do conhecimento com formação nas ciências exatas, por exemplo, do círculo de Viena (Schlick, Carnap e outros), o pensamento humano – pelo menos como ideal – é algo fixo e absoluto”. p. 94. Há outras referências nas páginas 141 e 169 (na qual cita a gênese da descoberta e a dos conceitos).

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“É uma ilusão acreditar que a história do conhecimento tenha tão pouco a ver com o conteúdo da ciência quanto, digamos, a história do telefone com o conteúdo das conversas telefônicas:” (Fleck, 2010: 62) Referências bibliográficas Ayer, Alfred J.(comp.). El Positivismo Lógico. México: Fondo de Cultura Económica, 1965. Brannnigan, Augustine. A Base Social das Descobertas Científicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. Carnap, Rudolf. The Logical Structure of the World and Pseudoproblems in Philosophy. Berkeley: University of California, 1967. Cohen, Robert and Schnelle, Thomas. Cognition and Fact. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1986. Dilthey, Wilhelm. El mundo histórico. México. Fondo de Cultura Económica. 1978. Fleck, Ludwik. Genesis and Development of a Scientific Fact. Chicago: University of Chicago, 1979. Fleck, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. Horowitz, Irving L. (dir.). Historia y elementos de la sociología del conocimiento. Buenos Aires: Eudeba, 1964. Tomo 1. Kuhn, Thomas. O caminho desde A Estrutura. Ensaios filosóficos, 1970-1993. São Paulo: Editora Unesp, 2006. Longhurst, Brian. Karl Mannheim and the contemporary sociology of knowledge. New York: St. Martin‟s Press, 1989 Mannheim, Karl. Essays on the Sociology of Knowledge. London: Routledge & Kegan Paul, 1952. Mannheim, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. Mannheim, Karl. “Conservative Thought” in Kurt Wolff (ed.). From Karl Mannheim. New Brunswick: Transactions Publishers, 1993. 260-350. Meja, Volker and Stehr, Nico (eds.). Knowledge and politics: the sociology of knowledge dispute. London: Routledge, 1990. Merton, Robert. “La Sociología del Conocimiento”. in Horowitz, Irving L. (dir.). 1964. 65-74. Merton, Robert. Sociologia – Teoria e Estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970. Merton, Robert. A ambivalência sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. Mora, José Ferrater. Diccionario de Filosofia. Madrid: Alianza, 1981. 4v. Pasquinelli, Alberto. Carnap e o Positivismo Lógico. Lisboa: Edições 70, 1983. Popper, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 1975. Reichenbach, Hans. Experience and Prediction. Chicago: University of Chicago, 1961. Reichenbach, Hans. Moderna Filosofía de la Ciencia. Madrid: Tecnos, 1965. Remmling, Gunter. The sociology of Karl Mannheim. Atlantic Highlands: Humanities Press, 1975. Sebestik, Jan et Soulez, Antonia (org.). Le Cercle de Vienne: doctrines et controverses. Paris: Meridiens Klincksieck, 1986. Shapin, Steven and Schaffer, Simon. Leviathan and the air-pump. Princeton: Princeton University Press, 1989. Wolff, Kurt (ed.). From Karl Mannheim. New Brunswick: Transactions Publishers, 1993.

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