Manoel Bomfim e o \"O Brasil na história\" (UFF, 2001) - dissertação de mestrado

June 1, 2017 | Autor: Rebeca Gontijo | Categoria: História Intelectual, História da historiografia brasileira
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

REBECA GONTIJO

MANOEL BOMFIM (1868-1932) E O BRASIL NA HISTÓRIA

ORIENTAÇÃO: Profa. Dra. Gladys Sabina Ribeiro

Dissertação apresentada ao PPGH da UFF, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em História Social.

NITERÓI DEZEMBRO DE 2001

REBECA GONTIJO

MANOEL BOMFIM (1868-1932) E O BRASIL NA HISTÓRIA

Data da aprovação: 17/12/2001

BANCA EXAMINADORA:

Profa. Dra. Gladys Sabina Ribeiro (Orientadora) Universidade Federal Fluminense

Profa. Dra. Ângela de Castro Gomes Universidade Federal Fluminense / CPDOC – Fundação Getúlio Vargas

Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães Universidade Federal do Rio de Janeiro / Universidade do Estado do Rio de Janeiro

ÍNDICE

Introdução

1-17

Capítulo I – Leituras e memórias: representações sobre um autor e sua obra

18-84

Capítulo II – A história no Brasil e O Brasil na História

85-133

Capítulo III – Construindo histórias da nação

134187

Conclusão e apontamentos para outra história

188195

Bibliografia

196206 207-

Anexos

Bibliografia de Manoel Bomfim

216 208210

Sumário do livro O Brasil na História

211215

Modelo de ficha utilizado na análise das leituras sobre Manoel Bomfim

216

Introdução

“Vimos as nossas tradições desnaturadas, os seus heroísmos infamados, falseada a essência da sua história (...) Inimigos, não caluniaram a Nação Brasileira como fizeram os seus historiadores, repetidos nos políticos. Em suas obras, confusas e opacas, desaparecem as qualidades características do povo, qualidades propositadamente escondidas, quando não são ostensivamente negadas. Histórias – essas páginas dadas ao registro dos nossos feitos?... Não: cavalariças... Um legítimo historiador teria de varrer tudo isso, expurgando, assim, os vícios e defeitos nacionais apontados, cotejando-os com a realidade, para, desassombradamente, limpar o passado nacional, e deixá-lo nos valores demonstrados pelos fatos”.1

Essas palavras foram escritas na segunda metade dos anos vinte do século passado. O autor se empenhava em criticar os historiadores e os políticos do Brasil que, segundo ele, teriam deturpado a história nacional e cont ribuído para a “degradação” da nação. Interessado em resgatar as “qualidades características do povo” brasileiro – que considerava esquecidas pela historiografia –, ele desenvolveu uma reflexão sobre o país e seus habitantes, onde é possível identificar diálogos com pensadores de seu tempo e de outros tempos. Seu nome era Manoel José do Bomfim (1868-1932). Nascido em Aracaju, Sergipe, foi o sexto dos treze filhos de Paulino José, 2 um vaqueiro que, posteriormente, tornou-se dono de loja e de engenhos, ao lado da esposa, Maria Joaquina, filha de comerciantes portugueses. 3

1

BOMFIM, Manoel. O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930, p.139. 2 Segundo Ronaldo Conde Aguiar, biógrafo de Manoel Bomfim, Paulino José não possuía sobrenome. Por ocasião de seu casamento com Maria Joaquina, por volta de 1858, ele obtivera seus primeiros documentos de identificação, onde fez constar o nome da localidade de onde viera – Bom Fim do Carira, Sergipe – como sobrenome. Daí, Paulino José do Bomfim. Ver AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Brasília: Dep. de Sociologia/UnB, tese de doutorado, 1997, p.50. Posteriormente publicado no Rio de Janeiro, pela Topbooks (2000). 3 Todas as informações sobre a biografia de Manoel Bomfim, assim como aquelas que dizem respeito a outras personalidades contidas nesta dissertação, foram extraídas – salvo informação em contrário – de: BITTENCOURT, Liberato. Homens do Brasil, vol. I. Sergipe. 2a. edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, Typ. Mascotte, 1917; VELHO SOBRINHO, J. F. Dicionário Bio-Bibliográfico Brasileiro, vols. 1 e 2. Rio de Janeiro: [Irmãos Pongetti], 1937; vol. II. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1940; GUARANÁ, Armindo. Dicionário Bio-Bibliográfico Sergipano. Rio de Janeiro [Empresa Graphica Editora Paulo, Pongetti & C.], 1925; BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliographico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Nacional [e] Imprensa Nacional, 1883-1902, 7 vols.; ABRANCHES, Dunshee de. Governos e Congressos da República, 1889-1917. Rio de Janeiro: M. Abranches, 1918, vol. II; GUIMARÃES, Argeu. Dicionário BioBibliográfico Brasileiro de Diplomacia, Política Externa e Direito Internacional. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1938; CORTÉS, C. Homens e Instituições do Rio. Rio de Janeiro: s.e., 1957; SOUSA, J. Galante de. O teatro no Brasil, tomo II. Subsídios para uma biobibliografia do teatro no Brasil. Rio de Janeiro: INL, 1960; MELO, Luís Correia de. Subsídios para um dicionário dos intelectuais riograndenses. Rio de Janeiro: Typ. Nacional [e] Imprensa Nacional, 1883-1902, 7 vols.; STUDART, Guilherme. Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense. Fortaleza: Typo-Litografia a vapor e Typ. Minerva, de Anis Bezerra, 1910-1915, 3 vols.; AGUIAR, op.cit.; GRIMAL, Pierre (dir.). Dicionário Internacional de Biografias. São Paulo: Martins Fontes, 1969; e da Grande Enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro: Delta, 1978.

Manoel José, o Nezinho, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1886. Lá tornou-se amigo de Alcindo Guanabara (1865-1918),4 que o apoiou na decisão de concluir os estudos no Rio de Janeiro, para onde migrou em 1888. Obteve o diploma em 1890 e logo começou a exercer a profissão, tendo sido médico da Secretaria de Polícia e tenente-cirurgião da Brigada Policial, de 1891 a 1892. Em 1893, foi viver em Mococa, no interior paulista. De acordo com Ronaldo Conde Aguiar, esta saída repentina da então Capital Federal ocorreu devido a perseguições políticas. Bomfim estaria entre os intelectuais antimilitaristas que apoiaram eleições imediatas para presidente, contra a permanência de Floriano Peixoto (1839-1895) no poder. 5 Em 1894, após a morte da filha, deixou São Paulo e a medicina. Demitido da Secretaria de Polícia aos vinte e seis anos, voltou ao Rio disposto a recomeçar a vida como jornalista. Quando ainda era estudante, ele freqüentara a redação do Cidade do Rio, jornal fundado por José do Patrocínio (1853-1905), onde muitos jovens iniciaram a carreira como escritores. 6 Além disso, publicara artigos nos jornais Correio do Povo e O Republicano. 7 O jornalismo era, então, uma porta de entrada para o mundo literário. Além disso, propiciava a remuneração necessária para a sobrevivência dos escritores e abria possibilidades para que estes ocupassem um lugar na burocracia oficial ou no mundo da política. 8

4

Alcindo Guanabara nasceu em Magé, Rio de Janeiro. Abandonou a faculdade de medicina para dedicar-se ao jornalismo. Foi diretor do jornal republicano Correio do Povo, além de atuar em O Paiz e A Tribuna. Fundou, junto com Manoel Bomfim, o jornal A Nação (1904). Fez parte da roda boêmia carioca que reunia, além de Bomfim, Olavo Bilac (1865-1918), Luís Murat (1861-1929), Guimarães Passos (1867-1909), Aluísio de Azevedo (1857-1913), entre outros. Seus escritos versavam, principalmente, sobre política e finanças. Escreveu História da revolta de 6 de setembro de 1893 (1894), A dor (1905), Discursos fora da Câmara (1911). Também atuou como deputado federal e senador. Foi amigo pessoal de Bomfim, que lhe dedicou o livro Pensar e dizer, de 1923. 5 AGUIAR, ib., p.110. Floriano Peixoto foi Presidente da República de 23/11/1891 a 15/11/1894. A intelectualidade da época dividia-se, de modo geral, entre os que apoiavam sua permanência no poder e os que defendiam a realização de eleições diretas para a presidência da República. No primeiro grupo era possível encontrar nomes como Raul Pompéia (1863-1895), Medeiros de Albuquerque (1867-1934), Paula Ney (18581897), Lúcio de Mendonça (1854-1909) e Emílio de Menezes (1867-1918). No segundo estariam Pardal Mallet (1864-1895), Coelho Neto (1864-1934), Luís Murat (1861-1929), Guimarães Passos (1867-1909), Aluízio de Azevedo (1857-1913), José do Patrocínio (1853-1905), Rui Barbosa (1849-1923), Carlos de Laet (1847-1927), Capistrano de Abreu (1853-1927) e Manoel Bomfim. Tais indicações estão em AGUIAR, op.cit., p.110. 6 De acordo com Marialva Barbosa, o Cidade do Rio pode ser considerado como tendo sido um verdadeiro quartel general da “literatura jornalística” ou do “jornalismo literário” em fins do século XIX. Desenvolveu forte campanha abolicionista, mas perdeu força após 1888. Sobre esse assunto, ver BARBOSA, Marialva. Boemia literária. In: _____. Imprensa, poder e público. Os diários do Rio de Janeiro, 1880-1920. Niterói, RJ: Dep. de História/UFF, tese de doutorado, 1996, vol.1, p.148. Este trabalho foi publicado recentemente, com o título de Os donos do Rio. Imprensa, poder e público. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2000, 257 págs. 7 Uma lista de artigos de Manoel Bomfim pode ser encontrada em anexo. 8 Ver BARBOSA, op.cit., p.138-39; e também GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.45-6.

No final do século XIX e início do século XX, Manoel Bomfim era freqüentador das palestras na Livraria Garnier, dos Cafés e das conferências do Instituto Nacional de Música.9 Além disso, participava da roda boêmia 10 de Coelho Neto (1864-1934). 11 Nas palavras do próprio Manoel Bomfim:

“A vida da boêmia era feita nos cafés, para onde se ia depois do trabalho no jornal. Não podendo ficar no Java ou no Londres após o trabalho de redação, ao lado dos companheiros, levava-os Coelho [Neto] para a sua casa, onde ficavam todos até alta madrugada. Quando era, por qualquer motivo, obrigado a ficar em casa, eles iam para lá, reconstituindo a roda como em qualquer café da cidade”.12

Muitos dos freqüentadores dessas rodas boêmias – reunidas nas confeitarias, nos cafés e nos salões – eram egressos das faculdades de Direito, Medicina ou Engenharia, 13 sendo que alguns não chegaram a concluir seus estudos, abandonando-os pelas letras e pelo jornalismo. Através dos jornais, tornavam-se conhecidos do público leitor, primeiro passo para a publicação de livros (romances, crônicas, poesias e ensaios) e para o reconhecimento como “verdadeiros” literatos, sobretudo por parte daqueles que seriam seus pares – outros literatos – potenciais auxiliares no trânsito social. 14 Assim, observam-se verdadeiras “redes de sociabilidade int electual”, 15 por meio das quais travavam-se contatos, desenvolviam-se 9

Sobre os encontros na Livraria Garnier, ver, por exemplo, ABREU, Regina. O enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: Funarte/Rocco, 1998, p.177-79; sobre os cafés, ver VELLOSO, Mônica Pimenta. Cafés, revistas e salões: microcosmo intelectual e sociabilidade. In: _____. Modernismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.35-85; a respeito das conferências, ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.113. Em 1905, Bomfim ministrou uma conferência no Instituto Nacional de Música sobre o ciúme, posteriormente publicada como artigo na revista Os Annaes, n.49. O assunto da conferência gerou discussão nos jornais. É interessante observar que o artigo conclui com uma exortação através da qual o autor procura unir conhecimento psicológico e análise sociológica no estudo do sentimento de posse. Ver AGUIAR, op.cit., p.245-48. 10 Segundo Marialva Barbosa, “para se distinguir nessa república das letras era preciso mover-se por entre ela, freqüentando as confeitarias e os cafés da moda, onde os homens de letras e de imprensa – posições que ocupavam concomitantemente – se reuniam, formando a opinião. O escritor precisava ser visto e ser reconhecido pelo público leitor”. Ver BARBOSA, op.cit., p.149. Ainda sobre as rodas boêmias no Rio de Janeiro, do início do século XX, ver MACHADO NETO, A. L. A boêmia literária. In: _____. Estrutura social da república das letras. Sociologia da vida intelectual brasileira, 1870-1930. São Paulo: Edusp/Grijalbo, 1973, p. 91-98; e, também, VELLOSO, op.cit. 11 Henrique Maximiano Coelho Neto nasceu em Caxias, Maranhão. Abolicionista e republicano, escreveu A Capital federal (1893); A conquista (1899), A esfinge (1908) e Fogo fátuo (1928). Abandonou a faculdade de Medicina no Rio e a de Direito, em São Paulo. Além de atuar como jornalista na imprensa carioca, foi professor, funcionário público e deputado. 12 BOMFIM apud CAMPOS, Humberto de. Diário secreto, vol. II. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1954, p.102. Entre os principais cafés da cidade estava, além dos citados Java (Largo de São Francisco) e Londres (rua do Ouvidor), o Café do Rio (Rua do Ouvidor com Gonçalves Dias), o Café Papagaio (rua Gonçalves Dias, entre as ruas do Ouvidor e Sete de Setembro) e o Café Inglês (rua do Ouvidor). Cf. AGUIAR, op.cit., p.150. 13 Sobre o prestígio das faculdades de Direito, Medicina e Engenharia, em fins do século XIX, ver ABREU, op.cit., p.65-105. 14 BARBOSA, op.cit., p.152. 15 A idéia de “redes de sociabilidade intelectual” é explorada por GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio... Modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. Tais “redes” não serão analisadas nesta dissertação, porém, cabe destacar a importância de sua investigação para a compreensão da trajetória de um indivíduo. Através do mapeamento dessas “redes” é possível localizar as relações pessoais e profissionais de

afinidades ideológicas e afetividades, competições e hostilidades, além da solidariedade expressa através de apoio econômico e político. 16 Foi devido à existência dessas “redes” que, em 1895, Manoel Bomfim foi apresentado pelo amigo Alcindo Guanabara – que era deputado federal naquele momento – ao então Prefeito do Distrito Federal Werneck de Almeida. 17 Este o convidou para o cargo de subdiretor do Pedagogium, um instituto dedicado a promove r pesquisas na área da educação. 18 Foi nomeado em 1896 e no mesmo ano passou a atuar como redator e secretário do jornal A República. Em artigo de 1897, fez crítica à política de instrução popular dizendo que:

“Todos os governos das nações cujas condições políticas mais se aproximam das nossas, intervêm na organização moral e política da escola primária e contribuem largamente para a instrução popular. (...) O que não conheço é país onde o governo central se despreocupe tão absolutamente da instrução primária como entre nós; não sabendo o que o povo aprende nem se há escolas, nem o que nelas se ensina; não concorrendo com um ceitil para a instrução do povo, ignorando, por inteiro, tudo o que a isto se refere”.19

A preocupação com a instrução pública marcou a trajetória intelectual de Manoel Bomfim. 20 Com o apoio de outro amigo, o jornalista e deputado Medeiros e Albuquerque (1866-1934)21 – diretor da Instrução Pública Municipal –, ele continuou a atuar no campo educacional, agora como diretor geral do Pedagogium (cargo no qual permaneceu de 1896 a seus participantes. Como observou Gomes, “se os espaços de sociabilidade são ‘geográficos’, são também ‘afetivos’, neles se podendo e devendo captar não só vínculos de amizade/cumplicidade e de competição/hostilidade, como igualmente a marca de uma certa sensibilidade produzida e cimentada por eventos, personalidades ou grupos especiais. Trata-se de pensar em uma espécie de ‘ecossistema’, onde amores e ódios, projetos, ideais e ilusões se chocam, fazendo parte da organização da vida relacional”. Id. ib., p.20. 16 Essa rede de solidariedade econômica e política pode ser observada através dos pedidos de emprego, das apresentações e indicações de nomes para cargos públicos, dos empréstimos financeiros etc. Bomfim, por exemplo, nomeado por três prefeitos para cargos na área de educação, não se esquivou de indicar o nome de seu amigo, Olavo Bilac, para o cargo de inspetor escolar, em 1899. Ver AGUIAR, op.cit., p.160-61; e, também, GOMES, Angela de Castro. O ministro e sua correspondência: projeto político e sociabilidade intelectual. In: _____ (org.). Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p.13-47. 17 Francisco Furquim Werneck de Almeida, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi Prefeito da Capital Federal entre 01/01/1895 a 15/11/1897 e deputado pelo Distrito Federal. 18 Ver referências ao Pedagogium em PENNA, Antônio Gomes. Acerca dos psicólogos-educadores na cidade do Rio de Janeiro: Manoel Bomfim, Maurício Campos de Medeiros, Plínio Olinto e Lourenço Filho. Forum Educacional. Rio de Janeiro: FGV, vol. 13, n.3, jun./ago., 1989. 19 BOMFIM apud AGUIAR, op.cit., p.128. O trecho foi extraído do artigo Instrução popular, publicado no jornal A República, em 02/09/1897, posteriormente publicado no livro Cultura e educação do povo brasileiro (1932). 20 Bomfim refere-se à leitura que fez do Report of the Commissioner of Educations, elaborado pelo governo norte-americano em 1893. Este relatório ter-lhe-ia despertado para os problemas relativos à instrução pública no Brasil. Diz o autor que: “foi tão profunda a impressão que me causou essa leitura, pela insignificância e pobreza patentes dos nossos recursos, que nunca mais pude furtar ao desejo de observar e estudar o problema da instrução popular entre nós”. BOMFIM apud AGUIAR, ib., p.129. 21 José Joaquim de Campos da Costa Medeiros e Albuquerque nasceu no Recife, Pernambuco. Foi professor de História das Artes, na Academia de Belas Artes do Rio. Escreveu, entre outras coisas, Homem prático: contos (1898), Literatura alheia (1914), Páginas de crítica (1920), Quando eu era vivo (s/d). Além de deputado (1894) e jornalista, foi nomeado Diretor de Instrução Pública em 1897.

1905 e de 1911 a 1919). Durante essa época, fundou e dirigiu o mensário Educação e Ensino (1897) – revista oficial da Diretoria de Instrução Pública. Em 1898, ingressou no magistério ensinando Moral e Cívica na Escola Normal, 22 onde logo começou a dar aulas de Pedagogia e Português. Dirigiu a Escola por um curto período (de maio a outubro), até que, no mesmo ano, substituiu Medeiros e Albuquerque na Diretoria da Instrução Pública – onde permaneceu até 1900 –, a convite do novo Prefeito, Cesário Alvim (1839-1903). 23 No ano seguinte passou a fazer parte do Conselho Superior de Instrução Pública do Distrito Federal. 24 Ainda em 1899, publicou o Livro de composição para o curso complementar das escolas primárias, escrito em parceria com Olavo Bilac (1864-1934), 25 com quem ainda escreveria dois livros. 26 Iniciava, com este trabalho, uma série de publicações relativas à educação, que incluíam livros contendo compilações de outros autores, didáticos, paradidáticos e estudos teóricos. Em fins do século XIX, a formação escolar das crianças no Brasil era guiada pelo uso de literatura portuguesa como material didático. No início do século XX, observa-se – diante da constatação da ausência do que era definido como “sentimento nacional” 27 – o empenho da intelectualidade no sentido de produzir um material mais adequado às necessidades locais, o que implicava no abrasileiramento dos temas, personagens e histórias, dando origem a uma nova modalidade literária, dirigida aos alunos da escola primária: a chamada “literatura escolar nacional”. 28 Manoel Bomfim conquistou espaço como um importante autor desse tipo 22

A Escola Normal foi fundada em 1880. Corresponde ao atual Instituto de Educação. Obtive algumas informações sobre ela no texto de PENNA, já citado. 23 Cesário Alvim, bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo, deputado geral (Império), senador da Constituinte, Presidente de Província, Governador de Minas Gerais, Ministro da Justiça e Interior, no governo Deodoro (15/11/1899 a 23/11/1891), Prefeito do Distrito Federal de 31/12/1898 a 31/01/1900. 24 Como Diretor de Instrução Pública, em 1899, emitiu um parecer favorável sobre a monografia Compêndio de história da América, escrito por Rocha Pombo. Esta monografia disputava num concurso, além de um prêmio e dinheiro, a chance de ser adotada nos cursos de história da América da Escola Normal. Interessado no tema tratado, Bomfim procurou justificar sua iniciativa em emitir tal parecer, mesmo em se tratando de um tema fora da sua alçada. Disse ele: “tal era o interesse que esse assunto apresentava para mim; e só assim se explica essa pretensão de tratar de matéria fora da minha especialidade, e a qual não podia apresentar nenhum título de competência oficial”. Ver BOMFIM, A América Latina..., op.cit., p.35. 25 O poeta e jornalista Olavo Bilac foi amigo pessoal de Manoel Bomfim, que publicou um artigo sobre ele na revista Kosmos, “Olavo Bilac: estudo sobre a vida intelectual desse poeta” (abril, 1904). 26 Os livros escritos com Bilac foram os seguintes, além do citado: Livro de leitura para o curso complementar das escolas primárias (1901) e Através do Brasil (1910). Todos publicados pela Francisco Alves. A lista dos livros de Manoel Bomfim encontra-se em anexo. 27 André Botelho considera o livro A educação nacional (1891), de José Veríssimo como um exemplo paradigmático da constatação da ausência de uma “história-pátria”, necessária para formar o “sentimento nacional” nos jovens brasileiros. Ver BOTELHO, André Pereira. O batismo da instrução: atraso, educação e modernidade em Manoel Bomfim. Campinas: Unicamp, dissertação de mestrado em Sociologia, 1997, p.36 e 79. 28 Botelho destaca como principais livros escolares – designados genericamente por “livros de leitura” – do início do século XX: Contos pátrios (1904), A pátria brasileira (1911), todos de Olavo Bilac e Coelho Neto; Através do Brasil (1910), de Bilac e Bomfim; Minha terra e minha gente (1916), de Afrânio Peixoto (18761947); Jornadas do meu país (1920), de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Narizinho arrebitado (1921), de Monteiro Lobato (1882-1948). Este último sendo considerado um marco na ruptura dos cânones da literatura

de literatura, além de exercer cargos públicos, através dos quais era- lhe permitido opinar ou intervir na escolha e produção de livros dessa especialidade. Em 1901, fundou, com Tomáz Delfino (n.1860) e Rivadávia Correia (1866-1920),29 a revista quinzenal A Universal, apresentada em cada número como a “revista das revistas, resenha da vida nacional e estrangeira”, que teve vida até o ano seguinte. Foi redator de Leitura para todos (1904) e colaborou com os jornais: A Notícia, Tribuna, Jornal do Commercio, O Paiz, A Nação, A Academia, O Correio da Semana, Correio do Brasil, A Crônica e A Rua. 30 E revistas: Ilustração Brasileira, Os Annaes e Kosmos. Em comissão pedagógica nomeada pela Prefeitura, seguiu para a Europa em 1902, onde estudou psicologia com Alfred Binet (1857-1911) e George Dumas (1866-1946).31 Retornou ao Rio em 1903 e montou no Pedagogium um dos primeiros laboratórios de psicologia experimental do Brasil. No ano seguinte, apoiou a criação da Universidade Popular de Ensino Livre (UPEL), ligada ao Partido Operário Independente, de inspiração anarquista. Ele seria encarregado de administrar os cursos de psicologia e pedagogia. Elysio de Carvalho (1880-1925) fora o idealizador do empreendimento, que acabou tendo vida curta. Fundada em março, durou até outubro do mesmo ano. 32 Em 1905, foi convidado pelo Prefeito Pereira Passos (1836-1913) 33 para assumir novamente na Diretoria da Instrução Pública, exercendo o cargo até 1907, quando foi nomeado deputado federal por Sergipe. 34 Sua curta atuação como deputado foi inteiramente dedicada a causa da instrução pública, como revela este trecho de seu único discurso:

escolar existentes até aquele momento. Sobre a “literatura escolar nacional” na virada do século XIX, ver id. ib., 77-108. 29 Thomaz Delfino dos Santos, médico e político nascido no Rio de Janeiro. Além de propagandista republicano, foi senador e deputado. Rivadávia da Cunha Correa, nasceu no Rio Grande do Sul. Bacharel em Direito e jornalista, foi deputado federal, Ministro do Interior, no governo de Hermes da Fonseca (de 15/11/1910 a 15/111914) e Prefeito do Distrito Federal entre 15/11/1914 e 05/05/1916. 30 Sobre os periódicos Jornal do Commercio e O Paiz, ver o estudo de Marialva Barbosa, que também analisou o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil e a Gazeta de Notícias. Mais, especificamente, BARBOSA, Jornais, numa cidade em mudança, in op.cit., p.25-82. 31 O médico e psicólogo francês Alfred Binet foi um dos pioneiros nos estudos sobre mensuração de “habilidades mentais” ou “testes de inteligência”. Fundador do Laboratório de Psicologia da Sorbonne, do qual também foi diretor, de 1892 a 1894. Criou o periódico L’Année Psychologique (1895) e a Société Libre pour L’Étude Psychologique de L’Enfant (1900). Filósofo e psicólogo francês, George Dumas fundou o Journal de Psychologie e organizou o Traité de Psychologie, em 2 vols., publicado entre 1923-34. Essas referências foram extraídas de BOTELHO, op.cit., p.55, nota 111 e da Grande Enciclopédia Delta Larousse, op.cit. 32 Ver AGUIAR, op.cit., p.189-191. Elysio de Carvalho escreveu As modernas correntes estéticas da literatura brasileira (1911), Sherlock Holmes no Brasil (1921), Os bastiões da nacionalidade (1922), etc. 33 Pereira Passos, Prefeito do Distrito Federal entre 29/12/1902 e 15/11/1906, também era engenheiro civil, formado em Ciência Físicas e Matemáticas pela Escola Central (posteriormente, Politécnica). 34 Manoel Bomfim ocupou a vaga deixada pelo general Manoel Valladão (1849-1860) – que fora indicado para o Senado – durante a 6a. Legislatura (1906-1907). Foi eleito em 09/07/1907, não tendo sido reeleito no ano seguinte.

“(...) a instrução primária é a mais importante, principalmente (...) nos regimes democráticos. Desde que a soberania deixou de ser exercida por um indivíduo só, para ser partilhada pela generalidade dos indivíduos de uma nação, é crucial, é lógico, é imprescindível que estes cidadãos sejam preparados para exercer tal soberania. Isto é irrefutável”.35

Ainda em 1905, Bomfim se envolveu com um empreendimento editorial que viria a ter grande sucesso. Junto com o jornalista Renato de Castro e com o poeta Cardoso Júnior, ele desenvolveu o projeto de uma revista semanal voltada para o público infantil, que veio a se chamar O Tico-Tico. Passou a circular no mesmo ano, com o apoio de Luís Bartolomeu (1866-1932), proprietário da Sociedade O Malho, tornando-se um fenômeno de vendagem. Com preocupação pedagógica, a revista tornou-se conhecida por seus concursos, pela publicação de novelas infanto-juvenis, pela correspondência enviada por crianças, pelas charadas e ilustrações. 36 No mesmo ano, Bomfim publicou, pela livraria Garnier, A América Latina: males de origem, um ensaio escrito durante sua temporada européia, com amplo uso de categorias explicativas extraídas das ciências naturais. O objetivo era explicar as razões do atraso das nações latino-americanas, cujos “povos possuem todos os elementos para ser prósperos, adiantados e felizes, e que, no entanto, arrastam uma vida penosa e difícil”. No dizer do autor, o livro era um “estudo de parasitismo social” em busca da “causa efetiva” dos males que atingem as ex-colônias ibéricas na América. Tal causa derivaria do “parasitismo” da metrópole sobre a colônia. 37 Bomfim utilizou uma metáfora biológica para falar sobre o problema da dominação e exploração da América Latina pelos países ibéricos e da conseqüente transposição dos vícios parasitários para a sociedade colonial. Este é considerado seu livro mais polêmico, entre outras coisas, por ter suscitado a crítica furiosa de Silvio Romero (1851-1914), 38 um dos mais conhecidos críticos literários do período, para quem “só a geral ignorância do mundo legente no Brasil pode explicar a atenção despertada por um livro tão mal feito, tão falso, tão cheio dos mais grosseiros erros”. 39 Mas, 35

Discurso proferido e transcrito em 04/11/1907, publicado nos Anais da Câmara, no mesmo mês e ano, p.63 em diante. 36 AGUIAR, op.cit., p.250-56. 37 BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993 [1905], p.50. 38 Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero nasceu em Lagarto, Sergipe. Autor de Contos populares do Brasil (1833), História da literatura brasileira (1888), Ensaios de sociologia e literatura (1901), etc. Foi um dos mais importantes críticos literários da virada do século. Estudou na Faculdade de Direito do Recife e ajudou a divulgar as então modernas teorias científicas européias no Brasil. 39 Romero escreveu uma série de 25 artigos para a revista Os Annaes, posteriormente coletados, ampliados e transformados no livro A América Latina: análise do livro de igual título do dr. Manoel Bomfim. Porto: Chardron, 1906, p.92. Como réplica à crítica de Romero, Bomfim publicou uma carta na revista Os Annaes, ano II, n.74, 1906.

encontrou opiniões favoráveis, como a de José Veríssimo (1857-1916), 40 outro importante crítico do período que, embora tenha identificado “falhas” no livro – sobretudo no que dizia respeito às informações e à composição –, reconheceu sua importância, afirmando que A América Latina “não é banal, nem medíocre”, sendo o seu autor um “espírito culto, uma inteligência iluminada”, que fora capaz de provocar discussão. 41 Em 1909, Bomfim foi novamente comissionado pelo governo municipal para estudar a organização do ensino profissional na Europa, para onde embarcou no ano seguinte, retornando em 1911, para retomar o cargo de diretor do Pedagogium. 42 Pouco antes de viajar, ele publicou, em parceria com Olavo Bilac, Através do Brasil, 43 um livro de leitura para o curso médio das escolas primárias que, até 1962, teve sessenta e quatro edições. No ano de 1912, Bomfim tornou-se sócio correspondente, do Instituto Histórico e Geográfico do Sergipe e três anos depois, em 1915, participou da recém criada Liga Brasileira pelos Aliados – contra a Alemanha e o Império Austro-Húngaro – presidida por Rui Barbosa (1849-1923). No mesmo ano passou a integrar a Sociedade Brasileira de Homens de Letras, cujo objetivo era, entre outras coisas, defender os interesses econômicos e sociais de seus membros, estimulando a publicação de trabalhos, realizando concursos, conferências, etc., além de promover a criação de leis em benefício do mundo literário e artístico. 44 A produção de Bomfim foi bastante eclética, revelando autodidatismo e integração no meio editorial de sua época. Seus livros foram publicados pela Garnier (3) e pela Francisco Alves (10), duas das principais editoras do período. 45 Autor de trabalhos sobre educação e ensino, também escreveu sobre zoologia e botânica, psicologia e psiquiatria. Mas, entre seus trabalhos mais conhecidos, além dos citados A América Latina e Através do Brasil, estão os livros da trilogia, dedicada à análise da formação da nacionalidade brasileira e das causas que teriam perturbado seu pleno desenvolvimento. A série é composta por: O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, escrito em 1925 e publicado em 1929; O Brasil na

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José Veríssimo Dias de Matos nasceu em Óbidos, Pará. Escreveu Estudos brasileiros (1889-1894), Estudos de literatura brasileira (1901-1907), História da literatura brasileira (1916), A educação nacional (1890), etc. Foi um dos principais críticos literários da virada do século. 41 VERÍSSIMO, José. Livros e autores de 1903 a 1905. In: Estudos de literatura brasileira, 6a. série. Belo Horizonte, MG: Itatiaia; São Paulo: USP, 1977 [1905], p.126-7. 42 A referência a esta segunda ida a Europa está em ABRANCHES, op.cit., p.209-11; em SILVEIRA, Juraci. Traços biográficos do professor Manuel Bomfim, mimeo, 1937; e também em AGUIAR, op.cit., p.282-3, que menciona os países onde Bomfim esteve: França, Inglaterra, Suíça, Áustria e Alemanha. 43 BOMFIM, Manoel e BILAC, Olavo. Através do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 1a . ed. publicada no Rio de Janeiro, pela Francisco Alves, em 1910. 44 A referência à participação de Bomfim no IHGS, é feita por AGUIAR, op.cit., p.185, nota 335. Sobre a Sociedade Brasileira dos Homens de Letras, ver o mesmo autor, p.309-10. 45 Seus outros livros foram publicados pela Tipografia da Gazeta de Notícias (1), Tipografia do Instituto Profissional (1), Tipografia Espíndola (2), pela Casa Electros (5), pela Tipografia São Benedicto (1) e pela Pongetti (1).

história: deturpação das tradições, degradação política, escrito em 1926 e publicado quatro anos depois; e O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, publicado em 1931. 46 Entre a publicação de A América Latina (1905) e o início da escrita da trilogia sobre o Brasil passaram-se vinte anos. A reedição de tais livros é recente, com exceção do livro de 1905, que foi relançado pela primeira vez em 1938 e, pela segunda, em 1993. Até o presente momento, apenas dois dos livros da trilogia tiveram uma segunda edição: O Brasil nação, em 1996 e O Brasil na América, em 1997. O livro escolhido como objeto de investigação desta dissertação é O Brasil na história, 47 que talvez seja o menos conhecido da trilogia, considerando a sua não reedição. São 527 páginas divididas em duas partes, cada uma das quais contendo seis capítulos, além do apêndice denominado História da Independência, com 32 páginas. 48 A opção por este livro deve-se ao seu conteúdo de crítica à escrita da história do Brasil, balizada pelos aspectos que seu autor valorizava e desprezava no trabalho do historiador. A partir da identificação desse conteúdo, a abordagem desenvolvida se aproxima de questões e problemas relativos à história da história no Brasil e das discussões sobre a chamada “questão nacional” na Primeira República, tecendo cruzamentos entre historiografia e nacionalismo. Em outras palavras, é possível localizar, em O Brasil na história, articulações entre o modo como seu autor pensava a história – como passado vivido e como narrativa deste passado –, elegendo temas, acontecimentos, personagens e chaves explicativas, a partir das quais ele compreendia a nação. Devo ressaltar que a reflexão de Manoel Bomfim não se apresenta como uma teoria da história ou um projeto historiográfico organizado em torno de proposições metodológicas sistematizadas. Porém, há considerações e posicionamentos sobre problemas de ordem epistemológica e política, formulados a partir de pressupostos científicos norteados por noções extraídas da Biologia, da Psicologia, da Sociologia e da História, assim como, por categorias morais. 46

BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, 2a. ed. [1929]; O Brasil na história..., op.cit.; O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, 2a. ed. [1931]. Sobre a Livraria Garnier, há referências no artigo de DUTRA, Eliana Regina de Freitas. O Almanaque Garnier, 1903-1914: ensinando a ler o Brasil, ensinando o Brasil a ler. In: ABREU, Márcia (org.). Leitura, história e história da leitura. São Paulo: Fapesp, 1999, p.477-504. Sobre a editora Francisco Alves, ver o artigo de BRAGANÇA, Aníbal. A política editorial de Francisco Alves e a profissionalização do escritor no Brasil, no mesmo livro organizado por Márcia Abreu, p.451-476. 47 O livro teve trechos publicados pela imprensa carioca antes de seu lançamento. Foi saudado como “(...) um novo livro (...) em cujos capítulos o formidável pensador nos revela o passado, nele encontrando as causas geradoras dos males do presente e apontando às futuras gerações o que elas terão que fazer”. Ver BARROS, Jayme de. O nacionalismo através da história. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 04/10/1931. E ainda como “(...) um livro em que se exprime a nobre preocupação de despertar a consciência de uma individualidade nacional, hoje mais necessária que nunca”. Ver AMARAL, Azevedo. As culpas de Portugal. Diário de Notícias, Porto Alegre, 13/03/1931. 48 Ver o sumário do livro em anexo.

O projeto inicial da pesquisa propunha investigar os modos de pensar e escrever a história no Brasil, bem como as relações dessa(s) historiografia(s) com modelos de identidade nacional, no Rio de Janeiro das primeiras três décadas do século XX. A investigação tinha como horizonte um cenário intelectual onde figuravam com destaque o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (fundado em 1838) e a Academia Brasileira de Letras (criada em 1898), como locais onde eram discutidos e apresentados discursos sobre vários temas, inclusive, sobre a história do país. Mas, para além dessas instituições, considerava-se a existência de um rico debate sobre a história ocorrido nos jornais e revistas, 49 assim como no mundo literário, em meio aos quais seria possível localizar divergências sobre como e porque a história deveria ser escrita. Desta visão geral sobre as primeiras décadas do século XX, destacavam-se alguns autores, livros e artigos que poderiam servir de guia no empreendimento de estudar os modos de pensar e escrever a história da nação. Mas, era preciso impor limites à escolha da documentação, sem os quais esta dissertação de mestrado seria inviável, pois se trata de uma produção bastante diversificada, que envolve um grande elenco de textos produzidos por um mesmo autor ou por vários. Além disso, muitos desses escritores eram ligados a instituições, academias, jornais e revistas, constituindo grupos distintos interna e externamente, cujos contornos seriam difíceis de precisar. Manoel Bomfim foi escolhido, sobretudo, porque seu livro – O Brasil na história – revelou-se uma interessante fonte de comentários a respeito da história e dos historiadores do Brasil, destacando aspectos que ajudavam a pensar os usos possíveis da história em sua época. Além disso, a reedição recente (nos anos 90) dos outros livros da trilogia despertou o interesse em compreender como e porque ele estava sendo relido. A partir dessa escolha, o objetivo passou a ser analisar seus textos sobre a história – destacando-se o referido livro. É preciso lembrar que, embora Bomfim tenha escrito sobre a história da independência e do descobrimento do Brasil, além de ter criticado diretamente aqueles que eram considerados como historiadores (“historiógrafos oficiais”), ele não figura na história da historiografia como um historiador. Ou seja, apesar do diálogo com a historiografia de sua época – e também com a do século XIX – ele não é reconhecido como um par no mundo dos historiadores, mesmo considerando que ainda não existiam especificidades disciplinares nítidas, nas primeiras décadas do século XX. 50

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Angela de Castro Gomes menciona que a Revista Brasileira e a revista Kosmos serviam como referência para os historiadores, por publicar “estudos históricos”, além de críticas sobre tais estudos. Ver GOMES, História e historiadores…, op.cit., p.52. 50 Id. ib., p.38.

Analisando seus escritos, visava-se compreender suas idéias sobre a história e sobre o Brasil, além de localizar sua inserção no mundo intelectua l. Deste modo, acreditava-se que a pesquisa poderia contribuir com os estudos sobre o pensamento social brasileiro do início do século XX, durante muito tempo desvalorizado como tema de estudo ou submetido a uma visão homogeneizante, que o qualificava simplesmente como reacionário, racista, positivista, etc. Através de O Brasil na história seria possível discutir alguns dos modos de pensar e escrever a história do Brasil, assim como as relações dessa(s) história(s) com a construção de modelos de identidade sócio-profissional para os historiadores; e nacional, para o Brasil e seus habitantes. As seguintes perguntas se impunham: que lugar Bomfim ocupa no chamado pensamento social brasileiro? Qual seria a função da história para esse autor? E o papel do historiador ? Que aspectos da história do Brasil deveriam merecer destaque? Em torno de que eixos, ou a partir de quais chaves-explicativas o autor construiu sua argumentação sobre o conhecimento e a escrita da história? Essas perguntas ajudaram a formular os dois objetivos desta dissertação: 1o ) analisar o modo como Bomfim e seus textos foram lidos, observando tais leituras como produtoras de memórias e/ou representações sobre o autor e sua obra; 51 2o ) focalizar alguns temas presentes no livro O Brasil na história, buscando compreender sua interpretação sobre a história, a historiografia e os historiadores, a nação e seus habitantes.

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A inspiração inicial para essa reflexão sobre o lugar atribuído a um autor e a sua obra dentro de um conjunto denominado pensamento social brasileiro, veio de Michel Foucault, para quem a “função de autor” corresponderia a uma construção capaz de atribuir um discurso a um determinado indivíduo que, por sua vez, conferiria identidade e autoridade a um determinado texto. A “função de autor” resultaria do tipo de tratamento a que seriam submetidos os textos, das aproximações e dos traços considerados pertinentes, das continuidades admitidas e das exclusões efetuadas. Todas essas operações variariam conforme a época e os tipos de discurso. Assim, a percepção que se tem de como deve ser o autor deste ou daquele tipo de texto (romances, estudos políticos, estudos históricos, estudos científicos, poesia, etc.) mudaria de acordo com o texto e o contexto. Porém, lembro que Foucault deixou de lado a análise histórico-sociológica do autor. Ele se ocupou das relações entre o texto e o autor, acreditando que tais relações bastariam para compreender os usos da “função de autor”, pois este último seria construído a partir das indicações do próprio discurso. Cf. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: _____. O que é um autor? S/l: Vega/Passagens, 2000, 4a. ed., 2000, p.29-87. Tais idéias suscitaram a dúvida a respeito da “função de autor” como podendo ser compreendida unicamente a partir da “ordem do discurso”. Esta pesquisa considera que a existência de um conjunto chamado pensamento social brasileiro, constituído por autores e respectivos livros, serve como indicativa do uso social e não apenas discursivo da “função de autor”. Sendo assim, a análise histórico-sociológica será considerada aqui, pois acredita-se que ela possa ajudar a compreender como o chamado pensamento social brasileiro foi e é construído; que autores e livros são freqüentemente lembrados e esquecidos; que associações ou relações de continuidade e ruptura seriam estabelecidas. Para que esta perspectiva se afirmasse, muito contribuiu a leitura do livro de Regina Abreu, O enigma de Os sertões, onde a autora analisa o modo como um autor e seu livro foram apropriados a partir de demandas sociais, passando a exercer funções específicas dentro de um conjunto – o pensamento social brasileiro – que, embora seja uma abstração discursiva, relaciona-se diretamente às expectativas dos homens em sociedade. Cf. A BREU, Regina. O enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: Rocco / Funarte, 1998. Sobre Foucault, ver também o artigo de RIBEIRO, Gladys Sabina. Menocchio e Rivière: a palavra construída. Resgate: revista de cultura. Campinas, SP: CMU-Unicamp, n.6, 1996, p.87-100.

Para explicitar melhor o primeiro objetivo, cabe esclarecer as noções de leitura, memória e representação. A leitura é aqui compreendida como um processo de interpretação, desenvolvido de acordo com as experiências de vida daquele que interpreta. Esse processo de leitura/interpretação de um texto elabora um novo texto, num movimento contínuo. 52 A memória é vista como sendo construída mediante as expectativas do presente vivido por aquele que lembra. Trata-se de um fenômeno social, que seleciona aspectos a serem lembrados, assim como aspectos a serem esquecidos. 53 Quanto à representação, corresponde ao resultado de um trabalho partilhado de classificação e delimitação do real que organiza a apreensão do mundo social, atribuindo-lhe sentidos. 54 Sobre o segundo objetivo, é preciso dizer que diante de uma variedade de temas relativos à história presentes no livro-objeto da pesquisa – tais como: progresso, tradição, passado, presente, futuro, mudança histórica, decadência, etc. –, a opção foi eleger uma temática geral, capaz de servir como uma espécie de eixo norteador da investigação, permitindo articular diferentes assuntos, categorias, conceitos e noções referentes à maneira de pensar e escrever a história da nação. Assim, o segundo objetivo corresponde ao esforço para compreender o modo como Manoel Bomfim lidou com a busca de objetividade científica diante da exigência de comprometimento int electual existente em sua época, sempre observando as implicações dessa busca e de tal exigência para a historiografia – através da crítica aos historiadores, que o autor desenvolveu – e para a elaboração de suas idéias sobre o Brasil e os brasileiros. Para atingir tais objetivos e desenvolver a investigação, a noção de cultura histórica foi especialmente útil. Essa noção é usada por Jacques Le Goff, que por sua vez, adotou-a de Bernard Guenée (Histoire et culture historique dans l’Ocident medieval, de 1980). De acordo com Le Goff, Guenée define a cultura histórica como sendo “a bagagem profissional do historiador, a sua biblioteca de obras históricas, o público e a audiência dos historiadores”. Le Goff amplia esta concepção ao acrescentar- lhe “a relação que uma sociedade, na sua psicologia coletiva, mantém com o passado”. Ou seja, o autor compreende a cultura histórica como uma espécie de mentalidade coletiva, defendendo que é possível investigar a atitude dominante nas sociedades históricas perante seu passado, através da abordagem dos 52

Minha incursão no mundo da leitura foi orientada pelas reflexões de CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, especialmente a introdução, p.13 a 28 e o capítulo IV, “Textos, impressos, leituras” [1986]; além de A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Unesp, 1998, p.75-113. Também foram inspiradoras as leituras de CERTEAU, Michel de. Ler: uma operação de caça. In: _____. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p.259-273; e CORTINA, Arnaldo. Determinações sobre o processo de leitura. In: _____. O príncipe de Maquiavel e seus leitores. Uma investigação sobre o processo de leitura. São Paulo: Unesp, 2000, p.19-76. 53 Ver POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, (3):3-15, 1989. 54 CHARTIER, A história cultural..., op.cit., p.17.

“sentimentos da opinião pública”. 55 Esta concepção baseia-se na crença de que na mentalidade coletiva o passado se confunde com a história. Através de fontes que sirvam como “testemunhas do gosto de algumas sociedades históricas pelo seu passado” – manuais escolares, literatura, arte, etc. –, ele espera poder abordar o modo como a opinião pública concebe o passado/história. 56 A partir dessas idéias, compreendo a cultura histórica como sendo constituída pelas relações que uma sociedade mantém com seu passado. Relações que incluem práticas diferenciadas de pensar e escrever a história, que orientam e são orientadas por representações sobre o vivido ou sobre a relação entre passado, presente e futuro. Trata-se, portanto, de uma apropriação da noção defendida por Le Goff, que leva em conta alguns aspectos que precisam ser considerados quando se analisa um livro sobre a história e a historiografia escrito no Rio de Janeiro dos anos 20, por um autor como Manoel Bomfim. Em primeiro lugar, trata-se de um momento de demarcação do trabalho historiográfico, quando se assistem esforços para distinguir o trabalho do historiador daquele que era exercido por uma categoria abrangente de intelectuais: os “homens de letras”. Eram bacharéis em direito, médicos, naturalistas, engenheiros e literatos que exerciam as atividades de crítica literária, jornalismo e educação, ocupando-se de modo diferenciado da escrita da história, dos debates políticos e dos temas sociais. De acordo com Angela de Castro Gomes, pelo menos até os anos 30 não se observavam diferenças disciplinares nítidas. Não existiam faculdades dedicadas à formação de profissionais da historiografia. Esta demarcação do campo intelectual somente adquiriu contornos nítidos nos anos 40, quando ocorreu um empenho sistemático de organização da cultura por parte do Estado. 57 Em segundo lugar, Manoel Bomfim não pode ser considerado como um historiador no sentido que, já em sua época, era atribuído a autores como Capistrano de Abreu (1853-1927)58 ou João Ribeiro (1860-1934).59 O primeiro garantia sua identidade como historiador, 60 entre 55

Compreendo a idéia de opinião pública como sendo a visão de senso comum. LE GOFF, Jacques. História. In: História e Memória. Campinas, SP: Unicamp, 1990, p. 47-8. 57 GOMES, op.cit., p.10, 12 e 38. 58 João Capistrano de Abreu nasceu no Ceará. Não tinha diploma de curso superior. Veio para o Rio com vinte e poucos anos e logo arrumou trabalho na Livraria Garnier. Pouco depois, conseguiu uma vaga no Colégio Aquino, como professor de francês e português. Em 1879 começou a trabalhar na imprensa como redator da Gazeta de Notícias. Conseguiu emprego na Biblioteca Nacional e, em 1883 concorreu à cátedra de Corografia e História do Brasil no Imperial Colégio Pedro II, com a tese O descobrimento do Brasil. Lá atuou até 1899. Tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1887. Seu trabalho mais conhecido é Capítulos de história colonial, de 1907. Cf. VAINFAS, Ronaldo. Capistrano de Abreu – Capítulos de história colonial. In: MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, I. São Paulo: Senac, 1999, p.171.189. 59 João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes nasceu em Sergipe. Iniciou o curso de medicina na Bahia, mas logo desistiu. Formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade do Rio de Janeiro, em 1894. Atuou em duas instituições de prestígio na virada do século XIX: o Ginásio Nacional – antigo Imperial Colégio Pedro II – e a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1898, da qual foi o primeiro membro eleito. Escreveu, entre outros textos, livros dirigidos ao público escolar – História Antiga (1892); História do Brasil (1900), História 56

outras coisas, devido a sua experiência no trato com fontes documentais em arquivos – o que era fundamental no momento em que se almejava conferir cientificidade à história. 61 O segundo, através de sua atividade docente e da produção de “reflexões mais filosóficas” (teóricas) sobre a disciplina. 62 No entanto, é possível considerar Bomfim como um “pensador da história”, 63 recuperando seu trabalho de crítico da historiografia. A noção de cultura histórica ajuda a ampliar os horizontes da constituição de uma disciplina (a história) e de seu produto (o discurso histórico), estimulando o levantamento de pistas sobre a produção, a articulação e a circulação de idéias sobre por que, como e por quem a história deveria ser escrita. Sobretudo – e este é o ponto que mais interessa aqui – ela contribui para pensar um conceito mais amplo de historiografia, 64 possível de ser localizado nas primeiras décadas do século XX. Um conceito que considere não apenas os estudos que utilizam objetivamente fontes documentais, no esforço de compreender o passado vivido (refiro- me ao estudo histórico propriamente dito, aquele que se fundamenta nas práticas de uma disciplina ou no exercício de um método), mas também os escritos circunstanciais, freqüentemente empenhados em defender causas políticas e sociais, que apelam à reconstrução da história (e, por conseguinte, a uma leitura da temporalidade) em busca de sua própria legitimação. Deste ponto de vista, podem ser considerados como trabalhos historiográficos: textos de natureza jornalística, memorialística, biográfica, didática, literária, etc. Assim, a historiografia é compreendida aqui em dois sentidos: como uma disciplina em formação – com a qual Manoel Bomfim teria dialogado – e como um campo mais amplo de discussões sobre a história, no qual o mesmo autor se inseriu de diferentes formas: como

Universal (1918) e História da Civilização (1932) – além de atuar como crítico e filólogo. Essas informações foram extraídas da primeira parte de HANSEN, Patrícia Santos. Feições & fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.6-53. 60 De acordo com Francisco Falcon, a identidade do historiador pode ser compreendida a partir de dois sentidos complementares: a identidade como autoconsciência do historiador e a identidade como reconhecimento do trabalho produzido como sendo um estudo histórico. O primeiro sentido implica na intenção de produzir um texto de história e o segundo, que o autor do texto seja reconhecido como um historiador. FALCON, Francisco José Calazans. A identidade do historiador. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC, FGV, 9(17):7-30, 1996. Seria interessante investigar de que modo, nas primeiras décadas do século, foi construída a autoconsciência daqueles que se identificavam como historiadores e, a partir de quais premissas passaram a ser reconhecidos (e rejeitados) os trabalhos ditos de história. Porém, dados os limites desta dissertação, essa investigação foi deixada de lado, sendo consideradas, apenas, as indicações referidas a Capistrano e Ribeiro, como suficientes para diferencia -los em relação a Bomfim. 61 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, n.1, 1988 [1986]. 62 As reflexões de João Ribeiro foram divulgadas através do manual História do Brasil. Curso Superior, publicado pela primeira vez em 1900. Além de analisar o manual, Patrícia Hansen investigou sua apropriação por um público de intelectuais capazes de atribuir a Ribeiro um papel relevante na historiografia brasileira. Ver HANSEN, op.cit. 63 Essa expressão é utilizada no plural por GOMES, op.cit., p.10. 64 O conceito de historiografia utilizado está de acordo com a perspectiva de JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O diálogo convergente: políticos e historiadores no início da república. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p.120.

educador, jornalista, “pensador da história”, etc. Nesta dissertação, apenas uma dessas inserções é investigada: a inserção de Bomfim como um “pensador da história”. Em outras palavras, a noção de cultura histórica contribui para alargar a perspectiva de investigação, sugerindo que há diversos modos de lidar com o passado, sendo a História como disciplina apenas um deles. Além disso, diante de um contexto onde a história ainda não constituía um campo delimitado como uma disciplina acadêmica, aproximando-se mais de uma prática difusa, desempenhada por “homens de letras”, a noção de cultura histórica (ou seria melhor dize r, culturas históricas?) ajuda a compreender os modos compartilhados de se pensar e de se escrever a história. Algo que Carl Schorske definiu como uma teia, cujas linhas verticais permitiriam estabelecer a relação entre textos ou idéias com expressões anteriores no tempo. Enquanto as linhas horizontais possibilitariam avaliar o conteúdo de um dado “objeto intelectual” 65 (no caso, um livro) contrapondo-o a outros objetos que lhe são contemporâneos (outros livros, ou formas de expressão). Além de Le Goff, dois autores contribuíram para a construção deste entendimento da cultura histórica. Um deles é o citado Carl Schorske, que não atribui à história intelectual66 nem uma metodologia particular nem conceitos determinados, limitando-se a indicar aquilo que considera como a dupla dimensão do trabalho do historiador interessado em “objetos intelectuais”, qual seja: “O historiador procura situar e interpretar temporalmente o artefato, num campo onde se cruzam duas linhas. Uma linha é vertical, ou diacrônica, com a qual ele estabelece a relação de um texto ou um sistema de pensamento com expressões anteriores no mesmo ramo de atividade cultural (pintura, política, etc.). A outra é horizontal, ou sincrônica; com ela, o historiador avalia a relação do conteúdo do objeto intelectual com o que vêm surgindo, simultaneamente, em outros ramos ou aspectos de uma cultura. O fio diacrônico é a urdidura, e o sincrônico é a trama do tecido da história cultural. O historiador é o tecelão, mas a qualidade do tecido depende da firmeza e cor dos fios”.67

O outro autor é Roger Chartier, que ajuda a pensar a leitura como um processo de construção de sentido, onde o leitor caminha “entre limitações e liberdades”. Essa visão da leitura e do leitor serve como uma espécie de alerta no trabalho de investigar como Bomfim leu ou interpretou a história. Além disso, ajuda a orientar a análise das leituras sobre esse autor – entre as quais essa dissertação se situa – lembrando sempre que “(...) a obra só adquire 65

SCHORSKE, Carl. Introdução. In: _____. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1988 [1961], p.13-24. 66 Sobre a história intelectual, além do texto citado de SCHORSKE, ver o artigo de SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996 [1988], p.231-269; e, também, CHARTIER, Roger. História intelectual e história das mentalidades: uma dupla reavaliação [1980], in op.cit., p.29-67. 67 Id. ib., p.17.

sentido através da diversidade de interpretações que constroem as suas significações. A do autor é uma entre outras, que não encerra em si a ‘verdade’ suposta como única e permanente da obra”. 68 Chartier considera válida a perspectiva de Schorske em relação à história intelectual (ou cultural). Referindo-se a este último autor, ele observa que sua proposta permite pensar uma produção intelectual na especificidade da história de seu gênero ou de sua disciplina, na sua relação com outras produções culturais que são suas contemporâneas [ou não] e, ao mesmo tempo, nas suas relações com vários referentes situados noutras áreas da totalidade social (sócio-econômica ou política). 69 Em suma, este estudo pode ser apresentado como sendo um exercício para situar um livro sobre o Brasil na história em rela ção à constituição da disciplina com a qual este livro dialogou (a disciplina histórica, vista em formação) e a outros textos sobre a história do Brasil. O Brasil na história é visto na confluência de debates, discussões, questões, problemas etc., que ajudaram a compor a cultura histórica de uma época. Além disso, o exercício procura recuperar parte das representações, até certo ponto contraditórias e ambíguas, por meio das quais um autor expressou suas idéias e assumiu posições intelectuais e políticas, atentando para as formas como ele próprio foi representado. A dissertação está organizada em três capítulos. O primeiro – Leituras e memórias: representações sobre um autor e sua obra – analisa o modo como Manoel Bomfim e seus textos foram lidos por estudiosos de diversas áreas, observando tais leituras como produtoras de memórias e/ou representações sobre o autor e sua obra. São recuperadas algumas das características que lhe foram atribuídas, identificando os lugares aos quais ele foi destinado, no conjunto do chamado pensamento social brasileiro. No segundo capítulo – A história no Brasil e O Brasil na história – a análise se detém sobre o modo como o autor em questão concebia a ciência, sua visão das relações entre indivíduo e sociedade, o lugar que ele atribuía ao método científico e à subjetividade no estudo da história. Foram focalizados, ainda que pontualmente, os seguintes assuntos com os quais Bomfim, provavelmente, teve que lidar: o primado da ciência, particularmente da biologia, o aperfeiçoamento da psicologia (especialmente da psicologia social); e o desenvolvimento das ciências sociais (com destaque para a relação entre sociologia e história), sempre buscando a relação (ou tensão) entre a busca de objetividade científica e a exigência de comprometimento intelectual. A análise de tais assuntos ajuda a compreender as expectativas do autor diante do trabalho do historiador, alvo de sua crítica. 68 69

CHARTIER, ib., p.59. Id. ib., p.63-65.

O terceiro capítulo – Construindo histórias da nação – é uma leitura sobre o modo como a nação foi tratada em O Brasil na história. Foram selecionados alguns assuntos que contribuem para pensar representações sobre o país e seus habitantes no início do século XX. A opção foi destrinchar as idéia de Bomfim sobre tradição, progresso, formação nacional, patriotismo, nacionalismo e caráter nacional, além daquilo que foi considerado por alguns de seus intérpretes como uma de suas características principais: o antilusitanismo. Inicialmente, o foco é direcionado para o período que vai da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, passando pela chamada “geração de 1870” e pelo espaço de tempo que vai da Proclamação da República (1889) até a I Guerra Mundial (19141918), chegando à segunda metade dos anos vinte, quando encontraremos Manoel Bomfim escrevendo seu livro, criticando parte da historiografia que fora escrita até então. Esse recorte temporal, embora longo, é delimitado por referências pontuais, consideradas necessárias para a compreensão do ambiente no qual os objetos desta dissertação – um livro e seu autor – se inserem, permitindo localizar, ainda que minimamente, parte das interpretações sobre o Brasil, com as quais Bomfim provavelmente se deparou. A escolha do IHGB – local onde a história começou a ser organizada como disciplina no Brasil – como um marco para se iniciar um estudo sobre um livro escrito por um “pensador da história” nos anos vinte, deve-se à identificação de uma espécie de diálogo, no livro de Bomfim, com um dos principais historiadores do Instituto no século XIX: Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878).70 Por isso, foi considerado pertinente percorrer o projeto de escrita da história da nação elaborado no IHGB – e por Varnhagen, mais especificamente – naquele momento. Dando seqüência a este movimento, alguns caminhos percorridos pela historiografia brasileira no início do século XX são explorados através de alguns “pensadores da história” e dos historiadores Capistrano de Abreu e João Ribeiro. Todos citados por Bomfim. Desse modo, é possível tecer aproximações e afastamentos entre aqueles que, em sua época, já eram identificados como historiadores e autores como Bomfim.

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Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, nasceu em São Paulo. Engenheiro, militar, dedicou-se à pesquisa histórica. Foi sócio do IHGB e representante do Império no exterior. Da sua obra extensa destacam-se História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal (1854-1857), História das lutas contra os holandeses no Brasil (1871) e História da independência do Brasil (1916). Cf. GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Francisco Adolfo de Varnhagen – História geral do Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, II. São Paulo: Senac, 2001, p.75-96.

CAPÍTULO 1 – Leituras e memórias: representações sobre um autor e sua obra “(...) os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram (...)”.71 “Se, portanto ‘o livro é um efeito (uma construção) do leitor’, deve-se considerar a operação deste último como uma espécie de lectio, produção própria do ‘leitor’. Este não toma nem o lugar do autor nem um lugar de autor. Inventa nos textos outra coisa que não aquilo que era a ‘intenção’ deles. Destaca-os de sua origem (perdida ou acessória). Combina os seus fragmentos e cria algo não sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações”.72

O objetivo deste capítulo é analisar os diferentes modos como Manoel Bomfim (18681932) foi lido, supondo que essas leituras contribuem para a construção de memórias sobre ele, situando-o em relação a outros autores e em relação aquilo que é comumente chamado por pensamento social brasileiro. O livro de Regina Abreu, “O enigma de Os Sertões” (1998), serviu como inspiração. Trata-se de um estudo sobre um dos autores mais consagrados do Brasil – Euclides da Cunha (1866-1909) – e o livro que, ao longo de décadas vem sendo considerado como o “livro número um”, o “grande livro nacional”: Os Sertões (1902). O interesse da autora é refletir sobre a escolha de tal livro como uma espécie de patrimônio simbólico da nação, citado ao longo de quase 100 anos como “obra tipicamente brasileira”. 73 Ao contrário, meu objeto de estudo é um autor esquecido reeditado somente em anos recentes e que, ainda que atualmente seja considerado importante, não está situado ao lado daqueles que constituem o que pode ser visto como uma espécie de panteão74 da intelectualidade brasileira composto pelo citado Euclides e por Gilberto Freyre (1900-1987), Caio Prado Júnior (1907-1990) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).

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CERTEAU, Michel de. Ler: uma operação de caça. In: _____. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994 [1990], p.269-79. 72 Id. ib., p.264-65. 73 ABREU, Regina. O enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: Rocco/Funarte, 1998, p.20. 74 A referência à existência de um panteão da intelectualidade brasileira pode ser apreendida a partir de levantamentos como o proposto pela revista Veja (23/11/1994). Regina Abreu faz referência a uma enquete realizada pela revista, que encomendou a “quinze intelectuais de porte do país” a escolha das “vinte obras mais representativas da cultura brasileira, em todos os setores e em todas as épocas”. A obra campeã foi, justamente, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, seguida por Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre. Ib., p.19. Outras referências ao “pensamento social brasileiro ” podem ser encontradas nos textos de SOUZA, Maria Tereza Sadek de. Análises sobre o pensamento social e político brasileiro. BIB. Rio de Janeiro, 12:7-21, 1982; SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Raízes da imaginação política brasileira. Dados. Rio de Janeiro: IUPERJ, 7:137-161, 1970.

Trata-se de um autor que não foi lembrado através de estratégias de consagração, tais como: a construção de instituições que levam seu nome, a comemoração de seu nascimento e/ou morte, a reedição periódica de seus livros, a promoção de eventos para discutir sua obra, etc. Porém, após investigar as leituras produzidas sobre ele ao longo de um século – buscando indícios de um movimento de recuperação de determinados traços que seriam característicos desse autor – suponho ser possível falar sobre a existência de um contínuo trabalho de reconstrução da memória sobre ele, ainda que esta seja marcada pelo esquecimento. 75 Apesar dessa distância fundamental, Regina Abreu coloca importantes problemas para minha investigação. A suposição que orienta seu trabalho é a de que, independenteme nte da produção editorial e publicitária em torno do livro e de seu autor, sua fabricação enquanto “grande obra” (associada a um “grande autor”) relaciona-se a demandas sociais. Ao ser transformada em monumento, a obra literária extrapola suas características iniciais, passando a desempenhar funções sociais que ultrapassariam o valor puramente literário. 76 Dois movimentos básicos são propostos pela autora: o de reunir os antecedentes do ato criador, ou seja, as condições sociais de existência da obra; e, o de focalizar o ato de produção, seguido da consagração, da difusão e da perpetuação da atualidade da obra. 77 Guardando as proporções de uma pesquisa de mestrado e da intenção de lidar com tais problemas em apenas um capítulo, procurei seguir nesse espaço algumas das idéias de Abreu, buscando compreender o lugar que Manoel Bomfim vem ocupando no chamado pensamento social brasileiro, através de uma investigação sobre as estratégias de leitura sobre ele. Não me deterei sobre a trajetória do autor, embora faça algumas referências a ela, nem sobre as condições de existência e produção de sua obra. Minha proposta é analisar os movimentos de alguns dos seus intérpretes/leitores, considerando que eles contribuíram para a lembrança ou o esquecimento desse autor, realizando um trabalho contínuo de “enquadramento da memória”78 sobre ele e seus livros. Proponho analisar, em primeiro lugar, os trabalhos mais recentes sobre Bomfim, produzidos no âmbito das pós-graduações em História e Sociologia, do eixo Rio/São Paulo. Em seguida, faço recuos no tempo, identificando outros modos de ler esse autor, todos relacionados a conjunturas sócio-políticas, intelectuais e editoriais bastante específicas. O objetivo não é construir uma abordagem linear das leituras sobre Manoel Bomfim, destacando 75

Sobre a construção da memória, ver: POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, 2(3):3-15, 1989; Id. Memória e identidade social. Estudos Históricos, 5(10):200-212, 1992; LOVISOLO, Hugo. A memória e a formação dos homens. Estudos Históricos, 2(3):16-28, 1989; VELHO, Gilberto. Memória, identidade e projeto. Revista TB. Rio de Janeiro, 95:119/126, out./dez., 1988; FRANK, Robert. La mémoire et l’histoire. Les Cahiers de l’IHTP, n.21, nov. 1992, p.65-71. 76 ABREU, op.cit., p.23. 77 Id. ib., p.29. 78 POLLAK, ibidem.

permanências e mudanças nas interpretações sobre ele. Mas, tomando os estudos acadêmicos mais recentes (entre os quais o meu se insere) como uma espécie de fio condutor, procura-se compreender as leituras produzidas em outras épocas, observando não apenas o que permanece e muda, mas como determinados aspectos são recuperados e outros são esquecidos, lembrando que a leitura não se desenvolve numa única direção nem é simplesmente acumulativa. 79 Foram selecionados trinta e um intérpretes/leitores, cujos estudos foram produzidos em diferentes momentos ao longo do século XX. Organizei os textos em fichas contendo, além do nome do intérprete; indicação da área de formação ou atuação; título e data de publicação do estudo; objetivo(s); livro(s) de Bomfim analisado(s); hipótese geral e hipótese sobre o esquecimento do autor (tema recorrente em vários estudos); temáticas destacadas do(s) texto(s) de Bomfim; tipo de referência ao autor (como ele é apresentado e/ou classificado); autores relacionados ou comparados a ele; observações sobre a metodologia de abordagem e o referencial teórico dos intérpretes; menção de outros estudos sobre ele; dados biográficos e bibliográficos recuperados. Em relação à documentação analisada, é importante observar seu caráter diversificado. Há artigos de crítica literária do início do século e de tempos mais recentes (anos 90), produzidos, em sua maioria, por ocasião de lançamentos ou reedições das obras de Bomfim (3); artigos (9) e livros sobre temas específicos que analisam ou apenas mencionam o autor (5); compêndios de história da literatura (2) e de história das idéias (6); verbete de dicionário (1); prefácios (5); dissertações de mestrado (4); uma tese de doutorado (1); e livros que tratam especificamente do autor (5, sendo que um deles resultou da tese de doutorado mencionada). Alguns desses textos foram publicados originalmente em jornais e revistas, ou foram produzidos como trabalho acadêmico e posteriormente transformados em livro. Outros fazem apenas uma rápida menção do autor. Ao desconstruir as leituras sobre Bomfim, procurando mapear as marcas detectadas por seus leitores – aquelas que vem sendo afirmadas e as que não o são – ao longo do tempo, não significa que haja uma independência completa ou uma distância instransponível entre, de um lado, o autor e seus textos e, de outro, a leitura que deles é feita e a memória que sobre ambos é construída. Tais marcas constituem indícios presentes na produção do próprio autor. Indícios que, quando resgatados pelas leituras posteriores passam a constituir o que identifico como memória. Ou seja, não tomo tais marcas como construções imaginárias, aleatórias,

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DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p.199-236.

ficcionais, mas como rastros cuja interpretação conduz, inevitavelmente, à afirmação de determinadas características e ao esquecimento de outras tantas. Por fim, considero necessário, para o objetivo de analisar a memória sobre Manoel Bomfim, tomar as leituras feitas sobre ele em conjunto. Compreendo que somente uma visão de conjunto de tais leituras autoriza a afirmação da exis tência de uma memória ou de memórias em disputa, como espero poder demonstrar no final.

Leituras produzidas nos anos 80 e 90: tese, dissertações e artigos Ao longo dos anos 80 e 90, os estudos sobre Manoel Bomfim foram produzidos, sobretudo, no âmbito das pós-graduações em História (três dissertações de mestrado) e Sociologia (uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado), havendo um trabalho realizado durante um curso de mestrado na área de Literatura. Observemos o estudo de Flora Süssekind e Roberto Ventura, Uma teoria biológica da mais valia?, 80 apresentado durante o curso de mestrado em Literatura Brasileira, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Posteriormente, foi publicado no livro História e Dependência: cultura e sociedade em Manoel Bomfim.81 Trata-se de um texto freqüentemente citado entre os estudiosos de Bomfim, sendo que, alguns, se referem a ele como “o melhor”82 ou “o mais sólido e penetrante”83 estudo sobre esse autor. Seu objetivo é colocar sua obra em discussão, investigando os motivos pelos quais ela se tornou pouco conhecida. A análise resume-se aos livros: A América Latina (1905), O Brasil na América (1929), O Brasil na História (1930) e O Brasil Nação (1931), com destaque para o primeiro livro, de onde os autores extraem os elementos que, segundo eles, caracterizariam o trabalho de Bomfim e ajudariam a compreender as razões de seu esquecimento. Lembro que a análise desenvolvida por Süssekind e Ventura constitui apenas um capítulo do livro, que é composto por uma antologia de textos extraídos dos livros de Bomfim citados acima. Esta seleção está organizada em seis partes, que contribuem para a divulgação das idéias de Bomfim sobre a história e a historiografia, a questão da raça e da miscigenação, o parasitismo, o papel do Estado, a educação, a revolução e a revolução de 1930.

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SÜSSEKIND, Flora e VENTURA, Roberto. Uma teoria biológica da mais valia? (Análise da obra de Manoel Bomfim). Rio de Janeiro: Divisão de Intercâmbio e Produções da Pontifícia Universidade Católica, 1979, mimeo. 81 Id., Uma teoria biológica da mais valia? (Análise da obra de Manoel Bomfim). In: _____. História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Moderna, 1981, p.9-59. 82 IGLÉSIAS, Francisco. Segundo momento: 1838-1931. In: Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p.157. 83 CÂNDIDO, Antônio (n.1918). Radicalismos. Estudos Avançados, 4(8):4-18, jan./abr., 1988. p.10.

O autor é apresentado como um “historiador e ensaísta do início deste século, pouco divulgado na história intelectual brasileira”. Também é visto como um “personagem enigmático”, provocador de querelas com Silvio Romero (1851-1914) e Rui Barbosa (18491923)84 – dois dos mais renomados intelectuais de seu tempo – além de ser identificado por sua recusa a uma possível indicação para a Academia Brasileira de Letras, principal instância de consagração intelectual em sua época. A hipótese – que ajudaria a explicar o esquecimento de Bomfim e, ao mesmo tempo, justificar o interesse recente por ele – é a de que seu texto seria um contradiscurso – “um discurso crítico que se elabora no interior do próprio discurso ideológico dominante, como o seu negativo, a sua ‘contradição’”. As categorias utilizadas pelo autor, extraídas das ciências da natureza e aplicadas à análise do social, não teriam permitido que ele, efetivamente, construísse uma linguagem capaz de romper com a ideologia dominante em sua época, sendo pouco compreendido em seu tempo e ultrapassado posteriormente. 85 As razões do esquecimento são buscadas no próprio texto de Bomfim. Credita-se ao texto a capacidade de delimitar o horizonte de sua própria recepção. Assim, a “ambigüidade do autor” – demonstrada através da oscilação entre a crítica do paradigma racial/biológico dominante e a produção de uma interpretação marcada metaforicamente por tal paradigma (uso da metáfora do “parasitismo social”) – teria propiciado resistência e progressivo recalque de sua obra. Süssekind e Ventura afirmam que,

“A nebulosidade do objeto e da linguagem tornam nebulosa a própria recepção do texto. Sua ruptura torna-se estranheza. A tentativa de definição, ambigüidade. A opacidade que o objeto e a investigação oferecem a Bomfim, transfere-se ao leitor na leitura de seu texto. O que explica a ambígua e indefinida posição que lhe coube na história intelectual brasileira”.86 84

SUSSEKIND e VENTURA, op.cit., p.3. Süssekind e Ventura se referem ao episódio da crítica furiosa de Romero contra Bomfim, por conta do livro deste último, A América Latina (1905). Embora não esteja explícito, em relação à querela de Bomfim com Rui Barbosa – considerado até hoje como um dos mais eruditos pensadores brasileiros –, é provável que estejam se referindo aos comentários do primeiro contra a atuação do segundo na formulação do Código Civil brasileiro. Disse Bomfim: “Por toda parte, a verbiagem, oca, inútil e vã, a retórica, ora técnica, ora pomposa, a erudição míope, o aparato de sabedoria, uma algaravia afetada e ridícula, resumem toda a elaboração intelectual. O verbocinante é o sábio (...) Vem daí essa mania de citação, tão generalizada nas elocubrações dos letrados sul-americanos; quem mais cita mais sabe, um discursador é um homem apto para tudo. Aceitam-se e proclamam-se – os mais altos representantes da ni telectualidade: os retóricos inveterados, cuja palavra abundante e preciosa impõe-se como sinal de gênio, embora não se encontrem nos seus longos discursos e muitos volumes nem uma idéia original, nem uma só observação própria. E disto ninguém se escandaliza; o escândalo viria se houvera originalidade”. BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993 [1905], p.170-1. E ainda ironizou: “no Brasil, um dos homens geniais, jurisconsulto de profissão, é chamado, ‘por ser o mais apto’, a dizer sobre o projeto de Código Civil, e, em toda a obra, o que ele vê é imperfeição de forma, as falhas de sintaxe. Só o desarranjo das palavras o impressiona (...) escreveu 200 páginas in-quarto, para ciscar, uma por uma, todas essas asperezas e malsonâncias, alongando-se sobre todas as sutilezas da gramática: (...) não haja mais çç depois de ss, nem qq depois de gg (...) e o código será uma perfeita maravilha”, ibidem, p.171, nota 36. Aspas do autor. 85 SUSSEKIND e VENTURA, op.cit., p.14-5. 86 Id. ib., p.56.

De acordo com os intérpretes, a característica principal do texto de Bomfim – característica que ajuda a justificar seu esquecimento – é, justamente, essa “ambigüidade”, responsável pela situação intermediária que ele ocuparia: entre uma linguagem científica “velha”, em vias de superação – que prega a homologia entre o biológico e o social – e uma “perspectiva nova”, contrária à utilização de noções da biologia na análise da sociedade; entre o pensamento cientificista marcado pelos determinismos do meio e da raça e sua posterior ruptura, quando o econômico e o cultural passaram a ocupar maior espaço. Apesar disso, Süssekind e Ventura afirmam que Bomfim antecipara, em 1905, as colocações que Gilberto Freyre faria em 1933, 87 sobre o papel das relações produtivas e da cultura na compreensão do social. 88 A associação entre Freyre e Bomfim remete para o modo como ambos lidaram com o tema da miscigenação. Lembro que a noção de plasticidade – presente em Freyre – era utilizada por Bomfim em A América Latina (1905). Ele a relacionava ao “poder de assimilação” dos povos. 89 Além disso, no capítulo “O cruzamento na formação da população brasileira”, do livro O Brasil na América (1929), Bomfim explorou o terreno da miscigenação pelo viés da biologia, mas, também destacou aspectos relativos à cultura, outro tema caro ao autor de Casa Grande & Senzala. 90 Afirmar que Bomfim antecipara Freyre contribui para classificá- lo como um precursor, ainda que ambíguo. Süssekind e Ventura concluem que a utilização de metáforas biológicas não teria conduzido Bomfim ao travamento de sua interpretação sobre a sociedade. Pelo contrário, o uso da metáfora é que lhe teria permitido ultrapassar a perspectiva biologizante, não na linguagem, mas na aplicação de um tipo de análise da sociedade capaz de destravar um quadro teórico marcado pelos determinismos. 91 Destravamento interpretativo preso a uma linguagem ultrapassada, incapaz de romper definitivamente com o paradigma científico dominante, porém, permitindo a Bomfim supor – devido ao uso metafórico do conceito de parasitismo – a reversibilidade do processo parasitário, abrindo espaço para a possibilidade de mudança histórica (a princípio, através da educação, posteriormente, através da revolução). De acordo com Süssekind e Ventura, Bomfim estaria situado “na espreita de um abalo das cadeias que entrelaçam o presente ao passado”. 92

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FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 1999. 35a . edição. Freyre menciona Bomfim algumas vezes. Os livros citados são três: A América Latina (1905), O Brasil na América (1929) e O Brasil na história (1930). 88 SÜSSEKIND e VENTURA, op.cit., p.54. 89 Ver BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993 (1905), p.235. 90 Id. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997 [1929], p.167-206 91 SÜSSEKIND e VENTURA, ib., p.22. 92 Id. ib., p.55.

Outro aspecto da leitura de Süssekind e Ventura sobre Bomfim é o destaque atribuído ao que seria um “método genético de investigação”, baseado na teoria da transmissão hereditária dos caracteres culturais e das qualidades psicológicas. Através desse método, Bomfim, tal como outros autores de seu tempo, teria procurado explicar o presente à luz do passado, driblando o determinismo ao afastar-se do caráter analógico de suas premissas – que tomam o social como reflexo do biológico – e do pessimismo que o acompanha. O método genético serviria para investigar os fatores capazes de interferir diretamente, para o melhor ou para o pior, sobre aquilo que é herdado. Esta suposição de interferências (algumas situadas nas práticas políticas e administrativas, outras, nas práticas de escrever a história) sobre o que era então denominado por “caráter nacional”, teriam permitido ao autor romper com a idéia de que o atraso do país derivaria de características naturais, determinadas pelo meio e pela raça.93 Outro ponto a ser ressaltado, refere-se à associação estabelecida entre as idéias de Manoel Bomfim e as de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). De acordo com Süssekind e Ventura, a metáfora do “parasitismo social” utilizada por Bomfim é aplicada ao estudo das classes sociais e das relações entre nações, a fim de dar conta das situações de dependência, compreendidas em termos de produção e apropriação de valor. Daí a referência à presença de uma “teoria biológica da mais- valia” no pensamento do autor. 94 Essa leitura que associa as idéias de Bomfim às de Marx e Engels, constitui um aspecto importante da memória construída sobre ele, que o relaciona a um pensamento de oposição ou de esquerda. Ainda que o próprio Bomfim faça referências explícitas aos autores alemães, assim como a outros ideólogos do socialismo e do anarquismo, isso não significa que ele compartilhe com tais autores de um mesmo ponto de vista (o que é lembrado por Süssekind e Ventura). Tais referências feitas são indício de apropriações e não de cópia ou transposição fiel das idéias. 95 Porém, quando estas referências são destacadas pelos leitores de Bomfim, sendo continuamente reafirmadas ou relembradas ao longo do tempo, contribuem para o estabelecimento de um lugar para o autor como um pensador de oposição em relação a tudo àquilo que se considera como dominante, seja no âmbito das idéias, da política, da educação, etc. Quando, junto com a referência aos autores e idéias de oposição, o momento em que Bomfim escreve é destacado, como um período em que tais idéias constituem exceção, a leitura dele como um pensador de oposição ganha uma importância ainda maior, 93

Id. ib., p.55. Ver, também, SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas sociais e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 94 SÜSSEKIND e VENTURA, op.cit., p.34. 95 A idéia de apropriação abre espaço para a invenção criadora em meio aos processos de leitura. Concordando com Roger Chartier, o ato de leitura não é anulado pelo próprio texto. A aceitação das mensagens opera-se através de ordenamentos, desvios e reempregos singulares daquilo que se lê. Ver CHARTIER, Roger. Textos, impressos, leituras. In: A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p.136-7. E, também, DA RNTON, op.cit., p.226.

pois o transforma em alguém à frente de seu tempo, inovador, precursor etc. ou um outsider, opositor da ideologia dominante. Um penúltimo aspecto a ser destacado: a nação é apontada por Süssekind e Ventura como categoria central da análise de Bomfim. Mas, como o destaque interpretativo de tal categoria contribui para a construção de uma memória sobre o autor? A princípio seria apenas mais um dado observado e interpretado pelos leitores, como outros tantos que foram deixados fora deste capítulo. Porém, tendo procedido a leitura de outros estudos sobre Bomfim, pude identificar que o tema da nação e do nacionalismo constitui um dado recorrente para se pensar em marcas características do autor em questão freqüentemente lembradas. Esse movimento de cruzar as leituras ajuda a entender a escolha das outras categorias já mencionadas e as que estão por vir. Dito isso, como Bomfim pode ser lembrado a partir da categoria nação, observada na leitura de Süssekind e Ventura? Em primeiro lugar, os intérpretes ressaltam que as análises de Bomfim foram produzidas num contexto marcado pelo nacionalismo. Assim, o interesse em estudar aspectos nacionais não seria característico apenas desse autor, pois faria parte de uma tendência existente na virada do século XIX e acentuada após a I Grande Guerra (1914-1918). No entanto, em Bomfim, tal interesse é destacado não apenas devido ao gr ande espaço atribuído à questão nacional em seus estudos, mas devido à relação singular estabelecida entre a categoria nação e as referências interpretativas extraídas do já citado Karl Marx. 96 Em segundo lugar, as leituras sobre Bomfim foram feitas, sobretudo, com base nessa vertente nacionalista de seu pensamento, de modo a delinear os contornos de um pensador nacionalista. 97 Um último aspecto, que serve como indício para se pensar na construção da memória sobre Bomfim, refere-se à análise de duas categorias presentes em seus textos: a paixão e o interesse. Os leitores observam a associação, feita pelo autor, entre ciência e afeto, com a utilização da paixão como instrumento para explicitar as motivações e os interesses mascarados pelas práticas científicas pretensamente neutras. 98 Uma das marcas de Bomfim (também destacada por outros intérpretes) seria, justamente, a preocupação em denunciar o interesse por trás das práticas científicas e defender a explicitação do mesmo. Esta postura assumidamente parcial diante da ciência de seu tempo, seria uma característica a ser lembrada

96

Id. ib., p.18. Süssekind e Ventura citam, como exemplo, a antologia organizada por Carlos Maul, nos anos 30. Ib., p.50-1. Neste sentido, lembro, também, a leitura de Azevedo Amaral e os prefácios das reedições recentes de seus livros, que atribuem grande destaque ao pensamento nacionalista de Bomfim. Todos esses trabalhos serão analisados mais adiante. 98 Id. ib., p.14-5. 97

desse autor, cuja imagem é mais uma vez confirmada como a de alguém crítico o suficiente para ser tomado como um pensador de oposição. Neste ponto é necessário frisar um aspecto levantado no início deste capítulo. O trabalho de desconstrução das leituras sobre um autor e sua obra – que busca mapear marcas detectadas pelos leitores ao longo do tempo – não supõe que haja uma distância instransponível entre o autor e seus textos e a leitura que deles é feita. Compreende-se que tais marcas ou indícios estão presentes na produção do autor, não constituindo aspectos ficcionais (no sentido de serem falsos) ou aleatórios. Porém, tais indícios, quando resgatados pelas leituras posteriores, conduze m, inevitavelmente, à afirmação de determinadas características e ao esquecimento de outras tantas, constituindo o que pode ser compreendido como a memória construída sobre um autor e sua obra. Voltando ao estudo de Süssekind e Ventura, observo que o destaque dado ao esquecimento do autor (capaz de justificar uma investigação); a sua ambigüidade; à aproximação com as idéias de Marx e Engels; à utilização de um método genético de investigação; e à defesa da explicitação das paixões e dos interesses como pressuposto para a prática científica, contribui para a afirmação de uma determinada memória sobre Manoel Bomfim. Essa memória pode ser caracterizada pela representação de um autor esquecido devido a sua capacidade crítica associada a uma certa ambigüidade – derivada do uso de uma linguagem ultrapassada, marcada pelo biologismo, para expressar uma perspectiva de conhecimento inovadora, porque oposta aos determinismos. Afirma, também, o lugar desse autor entre os pensadores de oposição ao discurso dominante. Resta observar se os mesmos aspectos são destacados por outros leitores de Bomfim. Ivonne Bertonha escreveu a primeira dissertação de mestrado em História sobre o autor em questão, em 1987. Seu objetivo era contextualizá- lo, procurando identificar elementos que pudessem ser considerados relevantes para os estudos historiográficos na atualidade. A intérprete identifica em Bomfim uma “visão histórica naturalista”, caracterizada pela percepção de que existiria uma evolução “natural” das sociedades, orientada pela potencialidade de riqueza, pela contribuição das ciências, pelo “trabalho inteligente”, pelo desenvolvimento cultural e pela educação. O autor compartilharia do idealismo ditado pela burguesia, ao defender que as sociedades americanas egressas da colonização deveriam seguir os moldes clássicos das nações que passaram pelas revoluções burguesas. Porém, ao contrário de seus contemporâneos, cujo ideal burguês de evolução teria sido guiado pelos

determinismos do meio e da raça, Bomfim apresentaria este mesmo ideal ilustrado – que estabelece um caminho único para o progresso – só que orientado por relações históricas. 99 O “manto de silêncio” que cobriu o autor estaria relacionado ao seu posicionamento crítico, que teria gerado “certo incômodo” no meio intelectua l de sua época. Bomfim é incluído entre os precursores de uma interpretação crítica do Brasil. Sua originalidade é destacada, sobretudo, devido a sua “capacidade de desvendar o sentido do pensamento dominante”, no que dizia respeito às explicações para o atraso do país. Sua análise é considerada “sui generis” e “rara” por ser capaz de, no início do século, associar conteúdos históricos à crítica do pensamento conservador, daí a relevância desse “intelectual combativo e polêmico”. 100 Bertonha concorda com Flora Süssekind e Roberto Ventura quando afirma que Bomfim não chega a elaborar um quadro teórico novo, com uma conceituação própria. A inovação do autor estaria em apresentar as contradições da teoria da desigualdade das raças, relacionando-as aos fatos históricos. Também, compreende que ele confere ao conceito de parasitismo um sentido independente do seu conteúdo biológico particular, ampliando-o ao aplicá- lo às relações sociais que se desenvolveram a partir do processo histórico de colonização. Outro ponto destacado como inovador, refere-se à ênfase dada à relação entre as “formas de produção” e os “aspectos científicos e culturais”. 101 Aponta a questão nacional como objeto principal do trabalho de Bomfim. Também observa a preocupação do autor em analisar as contradições sociais, sempre utilizando categorias polares, tais como: parasitas e parasitados, oprimidos e opressores, explorados e exploradores etc. Segundo Bertonha, esta forma de argumentação seria indício da percepção do autor sobre a existência de conflitos de classe, cujos interesses seriam irreconciliáveis. Contudo, afirma que ele não teria percebido as diferenças históricas do processo de implantação da ordem burguesa, desconsiderando a colonização como uma necessidade das relações capitalistas. Ao mesmo tempo, afirma que sua perspectiva histórica o teria ajudado a compreender as diferenças de progresso existentes em sua época. Diferenças analisadas a partir da observação da situação de Portugal na divisão internacional do trabalho e das relações entre metrópole e colônia, com destaque para as relações de produção e a explicação da origem da dependência colonial, a partir da qual o atraso nacional teria sido pensado. 102 Assim como Süssekind e Ventura, Bertonha também identifica pontos de semelhança entre a perspectiva de Bomfim e a de Marx e Engels. Porém, os pontos de semelhança 99

BERTONHA, Ivonne. Manoel Bomfim: um ilustre desconhecido. São Paulo: PUC, dissertação de mestrado em História do Brasil, 1987, p.44-9. 100 Id. ib., p.25-33. 101 Id. ib., p. 40-1, 89 e 112. 102 Id. ib., p. 10, 12, 16, 47-8, 86-7.

destacados referem-se à percepção de que a história, no mundo moderno, ultrapassaria as fronteiras nacionais, ou seja, o autor brasileiro se assemelharia aos pensadores alemães apenas por supor a existência de um caráter universal das relações sociais. 103 A autora procura avaliar o avanço e os limites das idéias de Bomfim, cujas qualidades humanísticas associadas à ilustração burguesa são destacadas. Faz referência à “ambigüidade” do autor, especificamente localizada no raciocínio e em sua postura política em relação ao Estado. Ele não teria conseguido romper totalmente com o Estado que criticava, pois, ao mesmo tempo em que afirmava a incapacidade dos grupos ligados a essa instituição para promover transformações de ruptura com o passado, lhes dirigia propostas de reforma. A retomada de recursos reformistas indicaria uma negação dos conflitos de classe. 104 Bertonha vê a perspectiva de análise crítica da história como um avanço e toma como limitação o caráter reformista e idealista de suas projeções. Este “reformismo” estaria restrito ao campo educacional, mas é considerado pela intérprete como uma proposta “aquém da riqueza da análise histórica”, da qual o autor ter-se-ia utilizado para explicar a origem dos “males” do país. Contudo, esta alternativa “reformista”, comum no início do século, possuiria um sentido bastante prático, expresso através da defesa da instrução pela ciência e da educação popular, dois dos principais componentes do pensamento de Bomfim apontados. 105 Por fim, a autora realiza uma comparação entre Manoel Bomfim e Caio Prado Júnior. Ambos teriam elaborado interpretações a partir da questão nacional. O que, embora seja um tema freqüente entre a intelectualidade brasileira, sobretudo, a partir dos anos 1920, é considerado por Bertonha como indício suficiente para aproximar dois autores distantes no tempo. Os dois também teriam utilizado um mesmo repertório conceitual, cujos exemplos citados são: o dualismo, expresso pela construção de dicotomias do tipo colônia/metrópole, atraso/progresso, etc.; a valorização das raças que compõem a população brasileira; a atenção dada aos processos tecnológicos aplicados à produção; e a defesa de valores morais aplicados à administração pública. 106 Segundo a autora, ambos, além de expressarem idéias nacionalistas, teriam projetado “as mesmas perspectivas em relação à história do Brasil”. Suas análises não apresentariam contradições de fundo, distinguindo-se por nuances exemplificadas pela linguagem (dirigida a públicos distintos), influências e rigor teórico. Conclui que a obra de Prado Júnior propusera

103

Id. ib., p.67. Id. ib., p.98. 105 Id. ib., p.93-5. 106 Id. ib., p.127-8. Embora dispense maiores apresentações, cabe lembrar que Caio Prado Júnior é tido como um dos principais intelectuais brasileiros, sempre citado como exemplo do pensador marxista e de engajamento político. Visando situar sua produção no tempo, eis as datas de publicação de alguns de seus livros: Evolução política do Brasil (1933), Formação do Brasil contemporâneo (1942), História econômica do Brasil (1945), etc. 104

uma interpretação mais elaborada da história, retomando conceitos de Bomfim. A obra desse último, embora “praticamente desconhecida”, teria sobrevivido através da obra de Prado Júnior, autor que, por sua vez, teria influenciado “a grande maioria dos estudos posteriores de História do Brasil”. Assim, “praticamente incógnita, sua obra [de Bomfim] permanece viva, por ter sido a fonte onde beberam posteriormente muitos historiadores”. 107 A atualidade e a singularidade do pensamento de Bomfim são aspectos que podem ser destacados no trabalho de construção da memória sobre ele realizado por Bertonha em dois dos quatro capítulos de sua dissertação. Observo um movimento que procura caracterizar um autor, considerando-o relevante para a atualidade, contribuindo para que ele tenha um lugar entre pares (outros pensadores) num momento situado além do seu próprio tempo. Contudo, ao afirmar que determinados aspectos da obra de Bomfim são atuais – no caso, aspectos relacionados à proposta de uma análise histórica – a intérprete estabelece uma relação entre o autor e o tempo presente, que não explicita o trabalho de associação entre ambos. Ou seja, a atualidade de Bomfim é remetida ao próprio autor. É nele mesmo que se encontram as razões de sua própria atualidade. Compreende-se que esta lhe seja inerente. Ao contrário, pode-se supor que a identificação de um determinado autor ou texto como atuais seja uma cons trução do intérprete. Desta forma, seria o leitor o responsável por estabelecer as relações necessárias para que a atualização possa ser completada, abrindo espaço para que essa atualização possa consolidar-se através de outras leituras (como poderá ser observado em outros estudos). Outro ponto a discutir: Bertonha aponta dois aspectos relativos à análise histórica apresentada por Bomfim. O primeiro refere-se à proposta do autor de recuperar os “fatos já explícitos”, tidos como incômodos aos porta- vozes da historiografia oficial. O segundo diz respeito ao seu “espírito de militância”, empenhado na defesa de que os fatos históricos permaneceriam presentes e atuantes na sociedade, sendo necessário revelar seu verdadeiro sentido. Como foi dito anteriormente, a autora considera a proposta de Bomfim “rara”, não por ser a única, mas por ser suficientemente crítica para se opor ao pensamento conservador dominante. Diz que “o método de Bomfim é atuante, vivo, oposto ao dos historiadores de gabinete”. Esta proposta é interpretada como sendo a expressão da valorização do real (a história) em relação às teorias deterministas, expressão da “ideologia conservadora”. Assim, temos a oposição real (história) versus ideologia (teorias deterministas), identificada no texto de Bomfim, compondo a imagem de um pensador militante.108

107

Id. ib., p.127-8. Devo ressaltar que, entre os intérpretes aqui analisados, a associação de Bomfim a Caio Prado Júnior é feita apenas por Bertonha e, rapidamente mencionada por Ronaldo Conde Aguiar, que ainda será visto. 108 Id. ib., p.8-9.

Ao longo de todo o texto observa-se o esforço no sentido de situar Bomfim em relação a um contexto que pode ser resumido à luta de classes, às relações capitalistas de produção, à militância política e à oposição história versus ideologia, acima citada. A leitura assim construída contribui: 1o ) para a afirmação de uma memória sobre o autor como um pensador militante e de oposição, o que, embora seja construído de modo diferente, se aproxima da interpretação de Flora Süssekind e Roberto Ventura; 2o ) para que as idéias de Bomfim sejam consideradas como ambíguas (no caso da posição do autor em relação ao Estado) ou incompletas (por não darem conta das relações capitalistas de produção e do processo de implantação da ordem burguesa no Brasil), sendo que isso ocorre porque tais idéias não correspondem à perspectiva da intérprete, que é orientada pela busca de compreensão das relações de produção, a partir de um ponto de vista marxista. 109 A alternativa reformista do autor, por exemplo, é considerada “suave”, porque seria incapaz de alterar a sociedade em suas relações de classe. 110 Um último aspecto observado: Bertonha afirma não ser estranho que “num país reconhecido, pela própria intelectualidade, como ‘pobre de idéias’, qualquer questionamento maior, como é o caso de Manoel Bomfim, tenha permanecido isolado e sem repercussão”. 111 Tal afirmativa deixa entrever a perspectiva da autora de que, no Brasil, ou as idéias estão “fora do lugar” – resultando da imitação das idéias estrangeiras – ou inexistem. 112 Resumindo, a memória sobre Bomfim construída pelo estudo de Bertonha é marcada pelos seguintes aspectos: trata-se de um autor singular – cujo discurso crítico (contrário à ideologia dominante em seu tempo) autoriza situá- lo como um pensador de oposição – e ambíguo, no que diz respeito ao posicionamento político – ora adepto de uma ideal burguês ilustrado, defensor de reformas e de uma “visão naturalista da história”, ora capaz de destrinchar os meandros do conservadorismo. De qualquer forma, um pensador com espaço na atualidade, cuja influência, ainda que incógnita, se faz presente na obra de muitos historiadores, sendo possível considerá- lo como um “ilustre” (porque é importante) “desconhecido” (porque foi esquecido). Observemos, agora, a leitura empreendida por José Maria de Oliveira Silva. Trata-se de uma dissertação de mestrado em História, defendida na Universidade de São Paulo, em 1990. O objetivo é explicitar a “ideologia radical” de Manoel Bomfim, observando-a em

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Bertonha apresenta Lukács – Marxismo e teoria da literatura (1968) – como seu referencial teórico. Ib., p.24. BERTONHA, ib., p.116. 111 Id. ib., p.111. 112 Sobre esse assunto, há um debate travado nos anos 70 entre SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. Estudos CEBRAP, n.3, 1976; e FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. As idéias estão no lugar. Cadernos de Debate, n.1, 1976. Ver, também, comentários sobre esse debate em CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil. Topói, n.1 Rio de Janeiro: Sete Letras/UFRJ, set. de 2000. p.123-152. 110

relação ao pensamento conservador dominante em sua época e considerando três aspectos: o educativo, o nacionalista e o progressista. 113 De acordo com Oliveira Silva, Bomfim teria operado um “deslocamento ideológico” capaz de romper com a “visão homogeneizadora dos intelectuais da classe dominante”. Isto teria contribuído para o seu progressivo esquecimento. Ou seja, o radicalismo de Bomfim por ter incomodado os setores dominantes, lançou-o ao ostracismo. Também aponta como obstáculos a sua aceitação, além da “natureza polêmica de sua obra”, a “linguagem radical e apaixonada que transita de um estilo tradicional de análise política enfocando os comportamentos individuais para um estilo onde predominariam aspectos econômicos e sociais”. 114 O radicalismo é, portanto, o primeiro traço de Bomfim destacado pela leitura de Oliveira Silva. O autor também é apresentado como exemplo de uma “ideologia ilustrada”, observada tanto na linguagem quanto nas propostas educacionais e políticas. De acordo com Silva, o uso de categorias polares do tipo: monarquia/república, povo doente/povo saudável, progresso/atraso etc., seria uma marca dessa “ideologia ilustrada”. Outra característica seria uma “interpretação maniqueísta da história nacional”, expressa na visão de que o “povo” é “bom” e os “dirigentes” são “corruptos”. 115 O intérprete procura demarcar aspectos contraditórios do pensamento de Bomfim. Assim, observa que ele teria conciliado elementos de uma visão preconceituosa sobre a “massa popular” – tida como ignorante, embrutecida pela escravidão, sem interesses etc. – com a percepção de que determinados fatores culturais atuariam como obstáculos à constituição do povo como sujeito político. Desta percepção teria nascido sua proposta pedagógica, marcada por uma “ideologia ilustrada”, baseada na crença na capacidade transformadora da educação. Esta atuaria como formadora do “caráter nacional”, “modeladora do povo para o regime democrático” e “homogeneizadora dos ‘interesses nacionais’”. À história caberia formar uma tradição comum, através da glorificação de heróis e da valorização da consciência nacional. Ou seja, o papel da história seria fornecer subsídios para a educação moral e cívica. 116 Oliveira Silva observa “uma certa neutralidade ética e política” na proposta pedagógica de Bomfim, sobretudo no que diz respeito ao papel da ciência na direção do processo produtivo. A defesa de uma ciência engajada na vida substituiria a política como recurso para transformar a sociedade e ultrapassar os obstáculos ao progresso. 117 113

SILVA, José Maria de Oliveira. Da educação à revolução: radicalismo republicano em Manoel Bomfim. São Paulo: USP, dissertação de mestrado em História Social, 1990. p.5 e 12. 114 Id. ib., p.8, 11 e 112. 115 Id. ib., p.54 e 146. 116 Id. ib., p.21-3. 117 Id. ib., p.42 e 111.

A “ideologia ilustrada” de Bomfim teria sido expressa através de sua visão do progresso, orientada pela analogia entre sociedade e organismo biológico. Utilizando-se de uma interpretação biológica da evolução histórica, ele teria comparado a sociedade a um organismo sujeito a determinadas “leis categóricas”, sem estabelecer qualquer distinção entre progresso social e progresso orgânico. A diferença de Bomfim em relação a outros evolucionistas de seu tempo estaria na negação da teoria da desigualdade racial, vista como produto de interesses imperialistas. 118 Contudo, ao observar que o autor defende a idéia de que nenhum país é incapacitado organicamente para atingir o progresso, Oliveira Silva abre espaço para que a analogia entre a sociedade e o organismo biológico – supostamente feita por Bomfim – seja enfraquecida, o que não ocorre. 119 Mais preocupado em localizar as contradições de Bomfim do que as suas próprias, Oliveira Silva segue identificando a ambigüidade da idéia de progresso apresentada em A América Latina. Segundo o intérprete, Bomfim ora idealiza o progresso como proveniente de um saber ilustrado, sendo a razão o único meio para o aperfeiçoamento do indivíduo e da sociedade; ora idealiza o progresso como obra das “massas miseráveis”, sem que, contudo, haja nessa idealização um conteúdo de luta de classes (aspecto que Silva parece considerar fundamental). 120 Mais adiante, ele afirma que (ainda se referindo ao mesmo livro), ao analisar as relações sócio-econômicas no interior do regime colonial, Bomfim teria observado o ângulo do conflito entre classes sociais. 121 O traço marcante da “ideologia radical” de Bomfim – que o teria posto em confronto com a “ideologia dominante” (diga-se conservadora) – seria a crítica da teoria da desigualdade racial. Oliveira Silva resume esta crítica em três pontos: 1) a crítica da teoria das raças inferiores com base na história; 2) o questionamento do pensamento racista com base em outros cientistas, “desconhecidos” dos “antropologistas” nacionais e americanos; 3) a crítica do uso indevido do darwinismo como teoria biológica aplicada à seleção humana. O intérprete observa que foi a partir de tal crítica que Bomfim construiu uma visão otimista da miscigenação, permitindo- lhe pensar que o cruzamento racial seria vantajoso, pois produziria novas qualidades facilitadoras da adaptação e do progresso. 122 Conclui que, como “ideólogo do caráter nacional”, Bomfim teria partilhado da formulação do “mito da democracia racial”, difundido posteriormente por Gilberto Freyre. 123

118

Id. ib., p.81-1 e 93. Id. ib., p.82. Silva se contradiz de modo explícito, quando afirma que Bomfim reprovava as teorias explicativas do atraso com base nas interpretações biológicas. Id. ib., p.136. 120 Id. ib., p.84-5. 121 Id. ib., p.106. 122 Id. ib., p.93-5. 123 Id. ib., p.99-100. 119

Em relação aos aspectos da “ideologia ilustrada” relativos ao nacionalismo, o intérprete caracteriza Bomfim como: “ufanista”, “romântico”, “radical” e “solidário com a população”. Do ponto de vista ideológico, trata-se de um nacionalismo diferente do “tradicionalista, conservador e lusófilo”, porque possui “elementos de radicalismo antilusitano e de tradição romântica”. A tese de Bomfim sobre a relação entre nação e povo teria recuperado não apenas a visão romântica de oposição ao lusitanismo, mas a visão negativa do poder que vinha dos liberais radicais, dos panfletários e dos jacobinos. 124 As características da ideologia nacionalista de Bomfim seriam: a visão negativa do poder, a valorização da mestiçagem, a idéia de “caráter nacional” e a importância conferida aos poetas românticos. Tais características se mesclariam à “consciência da miséria” da população e ao desejo de infiltrar nas consciências das massas o “espírito revolucionário”. Oliveira Silva afirma que o nacionalismo de Bomfim não chegou a romper com os interesses de sua classe, ainda que ele tenha sido radical ao defender a educação popular e atacar o imperialismo e a ordem política conservadora. 125 Ao referir-se à idéia de “caráter nacional”, Oliveira Silva a classifica como conservadora e orientada por premissas extraídas da biologia e dos determinismos racial e climático. Não faz qualquer referência às teorias psicológicas difundidas na virada do século XIX. 126 Afirma que, ao escrever sobre o “caráter nacional”, Bomfim teria participado da elaboração de outros “mitos veiculados pela tradição dominante”. Estes “mitos” são exemplificados por uma relação de autores e assuntos, também identificados nos textos de Bomfim. Assim, de Paulo Prado (1869-1943), ele teria assimilado a exaltação dos bandeirantes; de Henry Koster (1793-1820), a imagem de bondade dos senhores para com os escravos; de Gonçalves Dias (1823-1864), a política de amizade entre índios e colonizadores portugueses; de Jean de Lery (1534-1611), a idéia de tratamento mais humano dado aos índios pelos portugueses; de Frei Vicente do Salvador (c.1527-c.1636), a valorização dos primeiros colonos; de José de Alencar (1829-1877), a visão romântica de que o povo era pacífico. Desse

124

Id. ib., p.135. O movimento jacobino desenvolveu-se em meio ao processo de consolidação da ordem republicana no Brasil. Um grupo diversificado de funcionário públicos, caixeiros, estudantes, desempregados e trabalhadores braçais costumava participar das suas manifestações, freqüentemente em defesa de questões relativas à propriedade e ao mundo do trabalho. Responsabilizava-se os portugueses pelos problemas da cidade e da República, sendo que, entre as reivindicações dos jacobinos estava a ruptura com o passado colonial, marcado pela herança do domínio português, que consolidara uma economia essencialmente agrária. O progresso equivaleria, portanto, ao desenvolvimento da indústria e do comércio nacionais. Sobre o movimento jacobino nos primeiros anos republicanos, ver RIBEIRO, Gladys Sabina. Os anos de 1890. In: _____. “Cabras” e “pésde-chumbo”: os rolos do tempo. O antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1930). Niterói: Dep. de História/UFF, 1987, vol. 1, p. 142-174, dissertação de mestrado; e, também, GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988, p.57-58. 125 Id. ib., p.135-6. 126 Ver, por exemplo, LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. História de uma ideologia. São Paulo: Ática, 1992, especificamente, p.15-36 e p.37-46.

modo, Oliveira Silva identifica, em Bomfim, a “tese da harmonia nacional”, que enfatiza a figura do português miscigenador e idealiza romanticamente o índio. 127 A análise de Bomfim sobre o passado é relacionada a uma concepção historicista, localizada na abordagem das lutas ocorridas no período colonial e regencial e na exaltação de heróis e anti- heróis. Contradizendo o que foi dito sobre o “caráter nacional” e os “mitos veiculados pela tradição dominante”, Oliveira Silva afirma que a análise do passado desenvolvida por Bomfim produz “novas imagens, mitos e heróis”, capazes de criar “uma nova versão sobre a tradição nacional”, ainda que terminem por cristalizar um sentido único para a história. 128 São feitas observações a respeito das diversas formas de interpretação sobre Manoel Bomfim, que o idealizaram como um “intelectual esquecido”; propositor de “idéias avançadas” em relação ao seu próprio tempo; intelectual nacionalista e socialista; precursor de idéias e movimentos. Também são apontados alguns problemas que teriam contribuído para a elaboração de análises pouco críticas ou abrangentes sobre o autor. O primeiro problema seria a parcialidade dos estudos sobre o liberalismo brasileiro, especialmente sobre o liberalismo radical republicano. O segundo seria decorrente da presença do nacionalismo na obra de Bomfim, o que teria favorecido interpretações tanto por parte da esquerda quanto da direita. O terceiro refere-se à ausência de abordagens biográficas, que teriam permitido uma melhor compreensão da trajetória de Bomfim como educador e escritor. 129 Oliveira Silva opõem-se à hipótese de Flora Süssekind e Roberto Ventura, para quem Bomfim teria sido esquecido devido à oscilação entre uma “linguagem velha” e uma “ideologia nova”, não conseguindo fazer-se entender na sua época por causa da ruptura ideológica e, na atualidade, por causa de suas metáforas superadas. Acredita que o autor foi esquecido por ter incomodado os “setores dominantes” com seu radicalismo. 130 Este radicalismo caracterizar-se-ia, sobretudo, pela defesa da união latino-americana, num momento em que se pregava a hegemonia brasileira sobre o continente; pela difusão do ensino popular com apoio do Estado; pela luta contra o conservadorismo político; contra a intelectualidade dominante e contra as teorias racistas européias. Bomfim é classificado como um intelectual dissidente do bloco oligárquico republicano, ligado ao grupo de intelectuais simpatizantes do socialismo e opositores do conservadorismo. Também estaria próximo do pensamento jacobino do início da República. 131 127

SILVA, op.cit., p.137-9. Id. ib., p.141 e 144. 129 Id. ib., p. 5, 6 e 11. 130 Id. ib., p.110-1. 131 Id. ib., p.164-5. A associação de Bomfim aos jacobinos baseia-se no fato de que este autor se empenhou em classificar o português enquanto exemplo de explorador. Contudo, é preciso lembrar que, o movimento jacobino 128

A recuperação do autor por parte da “direita nacionalista” (exemplificada por intelectuais como Álvaro Bomílcar, Azevedo Amaral e Carlos Maul, que serão vistos neste capítulo) é explicada devido à presença, nos textos de Bomfim, de determinadas imagens, mitos e heróis (a visão mítica sobre o bandeirantismo, a expectativa do embranq uecimento da população, a valorização do colonizador português) que teriam permitido a apropriação de suas idéias, ao menos em parte, pelos nacionalistas de direita. Porém, segundo Oliveira Silva, teria prevalecido a dificuldade de apropriação de Bomfim por esta corrente, devido a sua ruptura com a tradição histórica oficial e com o conservadorismo. 132 A memória construída sobre Manoel Bomfim pela leitura de Oliveira Silva é marcada pela imagem de um autor radical que, contudo, não teria conseguido romper definitivamente com os interesses econômicos e políticos de sua classe. Alguém que expressou preconceitos contra o popular (através da idéia de instruir o povo, disciplinando-o para o trabalho no interesse da nação; da consideração de que todo analfabeto é inferior; etc.), embora se mostrasse solidário com ele. Alguém que mesmo atuando no terreno da burguesia – valorizando ideais abstratos como a liberdade, a igualdade, a nação, a pátria – não teria recuado na defesa de projetos políticos via Estado e via revo lução nacionalista popular (nos moldes mexicanos). 133 Surge um autor cuja marca seria a crítica da teoria da desigualdade racial e a defesa do ensino popular, sempre orientado por uma “ideologia ilustrada”, que tenderia a neutralizar conflitos. Maria Tereza Chaves de Mello produziu a terceira dissertação de mestrado sobre Manoel Bomfim. Seu objetivo era desenvolver uma análise hermenêutica, confrontando texto e contexto, buscando “acessar o significado e a intencionalidade” de sua obra de estréia, A América Latina (1905). Também propôs compreender o lugar do autor na “comunidade de interpretação” sobre o “ser nacional”, observada através de textos produzidos no Rio de Janeiro, entre 1889 e 1910. 134 A análise hermenêutica conduziu a intérprete à perspectiva de estar falando pela voz do autor ou “ler, com os seus olhos”. A proposta seria penetrar a obra revelando seu significado essencial ou oculto. Para tanto, Mello adotou como estratégia uma narrativa que aparece “colada no discurso do autor”, buscando surpreender “suas ambigüidades e sua lucidez crítica”. 135

possuía relações com o ideário positivista e com setores militares, ambos vivamente criticados por Bomfim em seus textos. O tema do antilusitanismo em Bomfim será retomado no último capítulo desta dissertação. 132 SILVA, op.cit., p.166. 133 Id. ib., p.167-8. 134 MELLO, Maria Tereza Chaves de. Futuro do passado: uma apologia da América Latina. Rio de Janeiro: PUC, dissertação de mestrado em História, 1997, p.1. 135 Id. ib., p.5.

Há uma pequena biografia, a partir da qual a autora identifica que Bomfim foi um intelectual prestigiado em seu tempo, além de ter sido lembrado pelos nacionalistas da década de 1940. Mello refere-se à associação do autor tanto à ideologia do Estado Novo quanto a um nacionalismo meramente ufanista. 136 Concordando com outros intérpretes, a autora afirma que o pioneirismo de Bomfim se revelara na crítica do determinismo racial, com a qual ele combateu o pretenso cientificismo da teoria da desigualdade das raças, destacando seu caráter ideológico, sendo que, nas enciclopédias que apresentam um verbete sobre o autor, este fato só teria sido destacado a partir das edições da década de 1980. 137 Contra a teoria da desigualdade das raças ele teria desenvolvido seu “método genético de investigação” – também observado por Süssekind e Ventura 138 – através do qual pôde aplicar o teste histórico capaz de contrapor a inferioridade definitiva das raças à alternativa histórica dos povos. Bomfim teria percebido que sob os fatos narrados pelo historiador haveria uma constância, uma regularidade capaz de explicar o sentido da história. Utilizando um método comparativo, ter- lhe- ia sido possível definir relações suscetíveis de demonstração, por um percurso essencialmente dedutivo. Porém, conforme os pressupostos epistemológicos de sua época, suas idéias não poderiam ter adquirido força explicativa pela via da argumentação histórica; daí a recorrência à biologia. Bomfim teria elaborado uma teoria interpretativa da história nacional – inserida no espaço da América Latina – considerando um único fator como capaz de determinar as demais instâncias da sociedade: o “parasitismo social”. 139 O suporte da argumentação do autor seria a assimilação da sociedade ao organismo biológico – um modelo de compreensão dos fenômenos sociais que era comum em sua época, ainda que já houvesse quem o criticasse. O diálogo com as ciências naturais, sobretudo a biologia, tornara-se um recurso científico fundamental no período, pois a operação com modelos de compreensão mais concretos – baseados na observação e no estabelecimento de homologias, paralelismos e correlações – possibilitava um método comparativo de investigação científica, passível de ser aplicado nos estudos sociais. Segundo Mello, Bomfim não desconhecia as críticas a assimilação da sociedade ao organismo, porém, em A América Latina, essa assimilação equivaleria a uma metáfora, sem a “função lógica de distinguir e classificar” dos conceitos. Tal homologia teria sido utilizada mediante o que a autora identifica por uma “confusa profissão de fé”, qual seja: a de que os 136

Id. ib., p.9-13. Mello cita fontes orais que mencionam a admiração de Gustavo Barroso (1888-1959) por Bomfim. Ver id. ib., nota 17, p.13. 137 MELLO, op.cit., p.82, nota 3. Os intérpretes com os quais Mello concorda são: ORTIZ (1985), SKIDMORE (1974), LEITE (1954) e VENTURA (1990), autores que serão analisados mais adiante. 138 SÜSSEKIND e VENTURA, op.cit., p.55. 139 MELLO, op.cit., p.15-6.

fatos sociais, por serem mais complexos que os organismos biológicos, estariam sujeitos tanto às leis biológicas quanto às leis sociais, peculiares a eles. A escolha do “parasitismo social” como pressuposto teórico de sua análise lhe teria permitido estabelecer relações entre os saberes sociológico e biológico. Aplicado ao estudo da América Latina, o “parasitismo social” atuaria como uma metonímia do modelo colonial ibérico. 140 Uma das características de Bomfim seria a opção pelo cultural contra o determinismo implícito na idéia de organismo. De acordo com Mello, ao recusar a estreita naturalização dos fenômenos sociais, o autor buscava libertar a sociedade dos determinismos, vistos como obstáculos a qualquer perspectiva de progresso da América Latina. Bomfim teria transferido as leis da natureza para o tempo, estabelecendo uma relação entre biologia e história, validada através de seu “método genético de investigação”. O estudo da historiografia lhe teria servido para testar a hipótese da relação entre as leis biológicas e as leis sociais. No dizer de Mello, “à genética e à historiografia instituiu ele a tarefa de desvendar a origem dos males que, no entanto, entende como sociais, privilegiando o nosso autor, por essa via, o cultural sobre o organológico”. 141 Mello afirma que Bomfim partilhava da idéia de “caráter nacional”, compreendendo-a como efeito da hereditariedade social, historicamente formada, transmitida pela educação, pela imitação, pelas qualidades próprias da raça e pela influência do meio. 142 A autora realiza, portanto, uma leitura diferente daquela feita por Oliveira Silva, que classifica a idéia de “caráter nacional” como conservadora e orientada por premissas extraídas apenas da biologia e dos determinismos racial e climático. 143 Outra característica destacada é a paixão que inspirava o autor. Esta característica teria contribuído para validar a perspectiva genética de sua investigação, pois, segundo Mello, “nenhum olhar é mais atento do que o do observador apaixonado”, capaz de, no início do século XX, romper com os limites impostos pelo cientificismo. Além disso, ele apresentara uma “visão sistêmica da história” que, entretanto, acreditava ser conduzida pelo voluntarismo dos seus agentes. Essa, entre outras ambigüidades, teria retirado a força elocutiva de sua obra, ainda que não o tenha impedido de elaborar um discurso crítico, apoiado em uma retórica forte (porque apaixonada). 144 Outro ponto destacado diz respeito às idéias de Bomfim sobre o conservadorismo latino-americano, considerado uma herança da colonização ibérica. Mello diz que, ao utilizar o conceito de conservadorismo, Bomfim produziu “uma interpretação, ao mesmo tempo, 140

Id. ib., p.18 e 21. Id. ib., p.20-1. 142 Id. ib., p.91-3. 143 SILVA, op.cit., p.136. 144 MELLO, op.cit., p.22-3. 141

lúcida, original e pioneira da nossa história”. Ele propusera a construção de uma nova sociedade, “progressista, igualitária e americana”, capaz de romper com o passado monárquico, lusitano e católico através do resgate de uma “tradição nativista republicana”. O autor é situado na vertente radical do republicanismo brasileiro. Apesar disso, Mello observa que não se pode assimilar integralmente seu ideário ao dos jacobinos, uma vez que ele se opunha aos regimes de força e ao militarismo. A intérprete opta por aproximá- lo das propostas políticas que, na Europa, denunciavam o liberalismo como interessado numa liberdade sem igualdade. Ou seja, o coloca “entre os que perfilavam integral e conscientemente, o ideário da democracia social”. 145 De acordo com a autora, Bomfim considerava o conservadorismo como uma política anti-social, uma vez que rejeitava a evolução e pretendia sustentar a sociedade sobre “o egoísmo dos privilégios exclusivistas”, contra a cooperação (solidariedade), propulsora do progresso. O conservadorismo teria sido alçado por Bomfim à categoria de valor heurístico, na definição de um padrão subjacente na trajetória dos Estados Nacionais neo- ibéricos. Contudo, isso não o teria impedido de considerar a existência, no Brasil, de uma tradição americana de disposição para a república e a democracia. 146 Apesar de criticar o internacionalismo marxista por negligenciar a questão nacional, Bomfim ter-se- ia aproximado do ideário de Karl Marx através da compreensão de que, no Brasil, a luta entre nacionais radicais e elementos reacionários equivaleria à luta entre oprimidos e espoliados, contra o explorador dominante. Além disso, observa-se que a perspectiva de democracia social foi associada, pelo autor, à defesa da intervenção estatal, desde que orientada para o bem comum. 147 Mello destaca que Bomfim atribuiu à educação uma “dimensão redentora”, por acreditar na sua capacidade de atuar sobre a vontade dos indivíduos. Informado pela psicologia associacionista, 148 acreditava na possibilidade de uma interferência da educação sobre a mentalidade, observada a partir das derivações sócio-político-econômicas do conservadorismo. Concordando com Antônio Cândido, 149 a interprete identifica em Bomfim uma “consciência amena do atraso”, marcada, justamente, pelo “mito iluminista da redenção

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Id. ib., p.102, 109 e 116. Id. ib., p.110. 147 Id. ib., p.113 e 116-7. 148 A psicologia associacionista caracteriza-se pela afirmação de que o espírito humano se desenvolve a partir de um estado inicial (tábula rasa), unicamente pelo efeito da experiência, que desencadeia um processo de associação de idéias. Sobre esse assunto, ver DORON, Roland & PAROT, Françoise. Dicionário de Pscicologia. São Paulo: Ática, 1998. 149 O texto de Cândido citado por Mello é Literatura e subdesenvolvimento. In: MORENO, C. F. (coord.). América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979. Originalmente publicado na revista Argumento, ano I, n. 1, 01/10/1973. 146

pela educação”. Porém, observa que ele foi capaz de levar esta “consciência amena” ao extremo de suas contradições. 150 O iluminismo de Bomfim teria sido acrescido pelo cientificismo oitocentista e pelo utilitarismo de Stuart Mill (1806-1873),151 o que teria cont ribuído para a suposição de que, embora o homem fosse uma “máquina orgânica” – cujos atos refletiriam os determinismos do meio e da hereditariedade – ele possuiria um espaço de liberdade moral. Desse modo, sobre a natureza atuariam a razão e a sociabilidade, capazes de operar um salto qualitativo do homem da esfera da animalidade. 152 Outro ponto que merece atenção diz respeito à questão da vontade. Lembrando que as teorias científicas de meados do século XIX, ao interpretarem as teses darwinistas sobre a superioridade do mais apto, assimilavam a noção de energia à de superioridade racial, Bomfim defendia que a vontade não poderia ser tomada como um fator natural de superioridade, uma vez que ela não seria uma faculdade primitiva, mas, sim, uma faculdade ativada. Deste modo, o autor transferia o “vigor dos povos” – aquilo que os impulsionava rumo ao progresso e à civilização – da natureza para a cultura. Esta, por sua vez, equivaleria à educação ou ao cultivo da consciência e da vontade. 153 A autora alerta para que esta noção de cultura não seja compreendia como sendo relativista, uma vez que Bomfim teria compreendido que as culturas deveriam homogeneizar-se sob um mesmo valor universal, de acordo com um único projeto universal de civilização. 154 Mello destaca a “singularidade” da obra de Bomfim, considerando sua reflexão sobre o Brasil no quadro da América Latina “pioneira” e “inovadora”. Porém, após contextualizar seu livro, conclui que o quadro traçado pelo autor é “bem mais modesto do que a tela colorida por alguns de seus intérpretes”, uma vez que sua análise estaria relacionada a outras que lhe foram contemporâneas, não sendo de todo original. A autora elogia sua lucidez crítica, em fina sintonia com a conjuntura nacional e internacional de seu tempo. Considera A América

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MELLO, op.cit., p.120-3 e 144. O filósofo e economista inglês John Stuart Mill contribuiu para o desenvolvimento da doutrina utilitarista, segundo a qual o bem supremo residiria naquilo que é útil a uma pessoa (moral do interesse pessoal) ou a um grupo de pessoas (moral do interesse geral ou coletivo). Sobre Mill como representante do pensamento liberal clássico, ver MERQUIOR, José Guilherme. O santo libertário: John Stuart Mill. In: O Liberalismo Antigo e Moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p.95-101; e sobre a contribuição de Mill para a psicológica associacionista, ver pequena menção em PENNA, Antônio Gomes. História das idéias psicológicas. São Paulo: Imago, 1991, p.100. 152 MELLO, ib., p.123. Mello interpreta a definição que Bomfim dá ao conceito de idéia como tendo sido apropriada de Stuart Mill. Id. ib., p.125. Segundo Bomfim, “pensar já é atividade. Pensar é criar, agitar o mundo das imagens, alarga-lo. Levar os homens a ter idéias novas, é faze-los ativos, de uma atividade superior, porque a idéia é o ato pelo qual o espírito, mercê de impressões várias e diferentes, cria uma entidade nova – o elemento mental, que representa uma síntese: a harmonia última que, no seu espírito, se faz com o resíduo de sensações passadas, observações e ensinamentos”. Ver BOMFIM, A América Latina..., op.cit., p.334. 153 MELLO, ib., p.124 e 136. 154 Id. ib., p.144 e 123. 151

Latina (1905) como uma “denúncia” e uma “apologia”, onde seria possível observar um “discurso ambíguo”, marcado pela crítica do próprio arsenal teórico-conceitual utilizado e por “uma narrativa cheia de aproximações e afastamentos”. 155 Da leitura desenvolvida por Mello, é possível apreender os seguintes aspectos, que podem ser tomados como constituintes de uma memória sobre Manoel Bomfim: a) ele teria sido inovador ao elaborar uma teoria interpretativa da história nacional, inserida no espaço da América Latina; b) ao desenvolver um “método genético de investigação”; c) ao propor, para além da simples assimilação da sociedade ao organismo biológico, a valorização do cultural – o que provavelmente contribuiu para que ele rompesse com os determinismos do meio e da raça. Seu pioneirismo estaria relacionado, sobretudo, à crítica das teorias da desigualdade racial, enquanto sua originalidade adviria da análise do conservadorismo latino-americano e da defesa da explicitação das paixões e dos interesses por trás das práticas científicas. Apesar disso, Mello considera que Bomfim desenvolveu uma “consciência amena do atraso” – fruto de uma “ilusão ilustrada” – ao propor a educação como solução para os problemas nacionais. Ao mesmo tempo, ele teria ficado preso a uma linguagem prestes a ser ultrapassada, incapaz de constituir um horizonte teórico novo. A intérprete concorda, portanto, com Flora Süssekind e Roberto Ventura para quem Bomfim estabeleceu condições para o surgimento de um novo horizonte teórico, ma s que, devido à ausência de um sistema conceitual novo, capaz de efetuar a ruptura definitiva com os antigos paradigmas, acabou por se mostrar um “horizonte mudo”. Conclui com uma certa decepção, compreendendo o pensamento de Bomfim como “uma seqüência frustrante de expectativas não realizadas”. 156 Desde o início, a autora declara a intenção de contribuir para um debate sobre a “originalidade” de Bomfim e o lugar de suas idéias entre as “teorias gerais do Brasil”. 157 Ao final, constata ter produzido um relato simpático ao autor, embora atento a suas contradições e ao significado da obra, cuja “atualidade” é destacada, sugerindo sua inserção entre “os clássicos da biblioteca sociológica brasileira”. 158 André Pereira Botelho propôs explorar a ideologia da “educação como redenção nacional”, tema em torno do qual a reflexão, a obra e a atuação político-intelectual de Manoel Bomfim estariam organizadas. Mais especificamente, ele investigou em que medida uma obra

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Id. ib., p.149-50. Id. ib., p.150-1. 157 Id. ib., p.6. 158 Id. ib., p.151. 156

como Através do Brasil (1910)159 teria divulgado a idéia de “ação educativa” de Bomfim e como esta pôde ser construída. 160 Ao contrário dos intérpretes vistos anteriormente, que procuram explicar o esquecimento de Bomfim a partir das características discursivas e analíticas de seus próprios textos, Botelho considera que o ostracismo a que o autor foi relegado está relacionado, de modo geral, à própria dinâmica da vida intelectual no Brasil. Esta seria marcada por um contínuo recomeçar a cada nova geração, implicando o esquecimento da produção anterior. 161 Ao mesmo tempo, lembra que, embora sua obra ensaística tenha permanecido ignorada por décadas, o mesmo não aconteceu com seus trabalhos paradidáticos, reeditados várias vezes. 162 Observa que, o pouco que se escreveu sobre Bomfim desenhou- lhe a “imagem ambígua” de um intelectual que, apesar de ter antecipado a reflexão sobre o Brasil, ocorrida nos anos trinta, teria sido “vítima” de um “injusto esquecimento” – motivo central dos estudos sobre seu pensamento. Por sua vez, o interesse de Botelho é analisar o alegado avanço de sua reflexão em relação ao pensamento dominante em seu tempo, especificamente, no que dizia respeito à negação do paralelismo entre o social e o biológico. Bomfim teria desmistificado as justificativas deterministas raciais para a exclusão política dos grupos sociais dominados, remetendo-as a causas históricas, além de desmascarar o caráter ideológico do racismo em suas relações com o imperialismo europeu. 163 Tendo em mente que a leitura é produção de conhecimento, Botelho defende que, para se compreender uma obra, é importante analisar seus intérpretes anteriores e contemporâneos, localizando-os em seus respectivos tempos/espaços. A partir dessa premissa, busca um critério de ordenação geral da obra de Bomfim que corresponda às formas pelas quais ele selecionou, formulou e desenvolveu aquilo que considerava como seu problema, levando em conta sua biografia. 164 A idéia de “ação educativa” encontra-se dispersa no conjunto de sua obra que, além de ensaios de interpretação histórico-sociológica, inclui manuais de pedagogia e psicologia, monografias de psicologia da educação, livros didáticos e paradidáticos. Ou seja, diferentes modalidades discursivas cujo denominador comum seria a proposição do “caráter redentor” da educação. De acordo com o intérprete, essa ênfase conferida ao “caráter redentor da

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BOMFIM e BILAC. Através do Brasil: prática da língua portuguesa. Organização de Marisa Lajolo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Coleção Retratos do Brasil. 1a . ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1910. 160 BOTELHO, André Pereira. O batismo da instrução: atraso, educação e modernidade em Manoel Bomfim. Campinas: UNICAMP, dissertação de mestrado em Sociologia, 1997. 161 Id. ibid., p.62. O intérprete se apóia nas idéias de SCHWARZ, R. Nacional por subtração. In: Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 162 BOTELHO, ib., p.57-8. 163 Id. ib., p.61-2 e 64-5. 164 Id. ib., p.15.

educação” é que teria permitido a Bomfim afastar-se dos paradigmas deterministas e do modo correspondente de se pensar o país. A idéia de “ação educativa” o teria capacitado para efetuar a passagem de uma explicação biológica para outra, de ordem histórico-cultural, enfatizando a possibilidade de mudança histórica através da educação – cujo pressuposto era, justamente, a idéia de “plasticidade humana” – compreendida como um estímulo à capacidade de adaptação e transformação. 165 Bomfim é considerado um “autor inovador”; alguém que na “contracorrente” soube filtrar o paradigma das ciências naturais, adaptando-o às relações sociais. Sua reflexão é associada a uma “matriz culturalista”, relativamente pioneira em sua época, que se afirmaria somente nos anos trinta, com Gilberto Freyre. 166 A “posição indefinida” que lhe coube na literatura do pensamento social brasileiro estaria, em parte, relacionada aos próprios métodos empregados por seus intérpretes. Estes se concentrariam, principalmente, em seu primeiro livro – A América Latina – perdendo de vista o desdobramento posterior de suas reflexões. 167 Botelho observa que eles expressaram, “não sem alguma frustração” e de modo mais ou menos explícito, a idéia de que Bomfim, ao afirmar a especificidade do social em relação ao biológico e, ao mesmo tempo, utilizar uma linguagem extraída da biologia na análise da sociedade, teria construído um paradoxo. A ênfase que o autor deu à educação também teria levado seus analistas à conclusão de que ele decepciona ao conduzir sua análise pelos parâmetros de uma “ideologia ilustrada”, defensora de reformas, mas incapaz de promover uma transformação estrutural. 168 Botelho procura relativizar a ambigüidade e o espírito reformista de Bomfim, lembrando que a primeira estaria diretamente relacionada às próprias ambigüidades da realidade brasileira de sua época – marcada pela frustração com a República, pela crise da “geração de 1870” e pelo “funcionamento incompleto do padrão burguês no país” – enquanto o segundo encontraria lugar em meio à aspiração de modernização, possuindo significado cultural e político. 169 A análise procura identificar aspectos da defesa da “educação como redenção nacional”, que permitam sua compreensão para além dos limites de um ideal iluminista. Assim, diferentes ângulos da ideologia da “educação como redenção” são destacados, tais como: o papel dessa ideologia na passagem de uma visão pessimista do Brasil (orientada pelos determinismos do meio e da raça) para outra, mais otimista, sobre a

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Id. ib., p. 16 e 74-5. Id. ib., p.69. 167 Id. ib., p.57 e 68. 168 Id. ib., p.68-9. 169 Id. ib., p.42-7. 166

viabilidade do progresso; sua relação com a necessidade de educar a população na cultura técnica, atendendo ao avanço do capitalismo, etc. 170 Portador de um “olhar ilustrado sobre o atraso brasileiro”, Bomfim é situado por Botelho entre os intelectuais da chamada “geração modernista de 1870” (trata-se de um dos quatro intérpretes, ao lado de Lúcia Lippi de Oliveira, Simone Petraglia Kropf e Wilson Martins – que ainda serão vistos aqui – a fazer esta inserção). Esta “geração” elegera a questão educativa como um de seus principais temas, estando menos ligada a uma postura humanista de linhagem ilustrada do que a uma aspiração modernizante e democrática. 171 O intérprete considera a proposta de Bomfim como tendo sido orientada por certo “realismo pragmático”, que procurava atender às necessidades de um regime republicano democrático inserido na ordem capitalista. Além disso, mesmo quando o autor abandonou a perspectiva reformista, ao propor uma revolução popular, não teria aberto mão da idéia de “redenção pela educação”. Daí a possibilidade de interpretar sua proposta educacional como sendo mais ampla do que um ideal ilustrado de reforma, uma vez que ela estaria relacionada à perspectiva de mudança histórica da sociedade. 172 Deste modo, ao invés de constituir um “decepcionante estrangulamento da argumentação”, 173 a proposta de educação como solução para os problemas nacionais tanto refletiria o próprio contexto social vivido pelo autor, quanto expressaria uma formulação intelectual “peculiar” a ele. Segundo Botelho, a defesa da educação teria sido a forma encontrada por Bomfim para afirmar a nação frente às teses deterministas baseadas na existência de uma “hierarquia natural” entre os homens e as nações, e para restabelecer a discussão sobre a cidadania, interrompida e desautorizada pelo debate racial do pós-Abolição (1888). 174 Ao mesmo tempo, Botelho afirma que os ensaios de Bomfim encontrar-se-iam no âmbito do “‘paradigma’ da dependência cultural”, por estarem baseados na crença de que a solução dos problemas nacionais poderia ser buscada no âmbito estritamente nacional. A reformulação do sistema educacional teria sido considerada suficiente para combater a herança ibérica, associada ao atraso do país. Além disso, esta mesma perspectiva não teria permitido a Bo mfim compreender que, “são as sociedades, na verdade, que moldam os seus ideais de educação e cultura, e não ao contrário; e circunscrita à ideologia da educação como

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Id., ib. p. 70 e 47. Id. ib., p. 19 e 40. 172 Id. ib., p.72-3 e 75. 173 CÂNDIDO apud BOTELHO, p.69. 174 BOTELHO, ib., p.69 e 71-2. 171

redenção nacional, sua reflexão permaneceria numa esfera ética de avaliação da formação da sociedade brasileira”. 175 Segundo Botelho, os elementos principais da “ação educativa” presente no livro Através do Brasil seriam: 1) a valorização de uma “sabedoria prática”, baseada na idéia de experiência como conhecimento empírico da realidade; 2) a relação entre ensino e produtividade, ou melhor, a defesa de um sistema educacional voltado para a qualificação técnica dos indivíduos enquanto trabalhadores; 3) a exigência de políticas públicas de educação; 4) o pressuposto da plasticidade humana – aspecto capaz de romper com os determinismos da época; 5) a idéia de que a “ação educativa” atuaria como um instrumento de transformação social, através da intervenção direta dos indivíduos na realidade, e não através do Estado. 176 Seria possível ir mais longe neste trabalho de esmiuçar o estudo de Botelho, ainda que não fosse possível esgotá-lo. Mas, para os objetivos aqui propostos, o que foi apresentado é suficiente para desenhar um quadro representativo de Manoel Bomfim, de onde alguns elementos constitutivos da memória sobre esse autor possam ser extraídos. Antes, contudo, é preciso lembrar que esse desenho é delimitado pelo interesse do intérprete em abordar apenas um dos livros de Bomfim – Através do Brasil – tomando-o como representativo de uma modalidade discursiva específica: a literatura escolar nacional, ainda que realize o cruzamento com outros trabalhos. Além disso, a análise do referido livro praticamente desconsidera a participação de seu co-autor: Olavo Bilac (1865-1918). 177 Dito isso, observemos alguns aspectos da memória sobre Bomfim presentes no estudo de André Botelho. O primeiro refere-se ao ostracismo ao qual ele foi lançado. Embora o esquecimento não seja objeto de análise, trata-se de um ponto lembrado pelo intérprete que, inclusive, o identifica como motivo principal dos estudos sobre o autor. Também reconhece, nos outros estudos, o desenho de uma imagem ambígua do escritor: ao mesmo tempo vítima de um “injusto esquecimento” e frustrante, por ater-se a uma linguagem em vias de superação e por basear-se em pressupostos ilustrados e reformistas. Daí a “posição indefinida” que lhe coube na literatura do pensamento social brasileiro. Ou seja, esta ambigüidade ou indefinição

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Id. ib., p.67 e 75. Id. ib., p.170-4. 177 Olavo Bilac recebeu o título de “príncipe dos poetas brasileiros” (1907), tendo conquistado fama através da publicação de suas crônicas na revista Kosmos. Com a eclosão da I Guerra Mundial, em 1914, Bilac participou, ao lado de Bomfim, da Liga Brasileira Pró-Aliados. Bilac era defensor da educação primária e do serviço militar obrigatório. Preocupado com questões cívicas, tornou-se um importante divulgador de idéias nacionalista, que culminaram com a criação da Liga de Defesa Nacional, em 1916 – ano em que o Brasil declarou guerra contra a Alemanha – e a publicação do livro A defesa nacional, no ano seguinte. Ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.118-121. 176

do lugar de Bomfim estaria relacionada, sobretudo, aos métodos empregados por seus intérpretes, não sendo inerentes ao autor estudado. A perspectiva de que a leitura é produção de conhecimento fez com que Botelho ficasse atento às outras leituras sobre Bomfim, procurando relativizá- las e com elas dialogar, ainda que ele não se preocupe em resumi- las. As referências mais explícitas em seu estudo são os trabalhos de Antônio Cândido 178 e Flora Süssekind e Roberto Ventura. 179 Bomfim surge como um pensador atuante em várias modalidades discursivas, cujo ponto em comum seria a proposta de “educação como redenção”. Considera-o um autor “inovador”, que na “contracorrente” teria conseguido subverter o paradigma das ciências naturais, aplicando-o às relações sociais. Também o associa a uma “matriz culturalista”, que posteriormente teria Gilberto Freyre como seu principal expoente, além de, como já foi dito, inseri- lo entre os intelectuais da chamada “geração modernista de 1870”. Embora se ocupe em relativizar as leituras que apresentam Bomfim como um intelectual incapaz de efetuar uma ruptura efe tiva com o pensamento dominante, o intérprete conclui com o que parece ser uma certa decepção, qual seja: a de que o autor teria permanecido numa “esfera ética de avaliação da sociedade brasileira”, em oposição à esfera política. A proposta de reforma via educação teria conduzido Bomfim a manter-se no âmbito da primeira, supondo que as instituições educacionais seriam capazes de empreender mudanças sociais acima dos conflitos de classe, pois que interessariam a todos os indivíduos. A perspectiva teórica de André Botelho é orientada pela sociologia do conhecimento, segundo Karl Mannheim. 180 Observa-se o esforço de interpretar as idéias de Bomfim como ideologias vinculadas aos interesses de grupos e classes sociais específicas, daí abstraindo “estilos de pensamento” possíveis de serem relacionados a processos culturais mais amplos. A análise do livro de Bomfim caminha na “conjunção de decifração de texto e localização sociológica [do mesmo]”. 181 Num breve retrospecto sobre a história intelectual no Brasil, José Murilo de Carvalho observou que a abordagem via sociologia do conhecimento, embora tenha produzido contribuições inegáveis, possui, freqüentemente, a limitação de deslocar a ênfase do autor para o contexto. Este atuaria como determinante do pensamento. 182 Esta perspectiva é

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Os textos de Antônio Cândido citados por Botelho são: Literatura e subdesenvolvimento. A educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987; Radicalismos, op.cit.; e A Sociologia no Brasil. Enciclopédia Delta-Larousse, v.4. Rio de Janeiro: Delta, s/d. 179 SÜSSEKIND e VENTURA, já citado. 180 O trabalho de Mannheim utilizado por Botelho é Essays on Sociology and Social Psychology (1959). 181 BOTELHO, op.cit., p.17. 182 CARVALHO, op.cit., p.123-127.

assumida por Botelho, para quem “são as sociedades, na verdade, que moldam os seus ideais (...)”. 183 Como o próprio Botelho afirma no início do seu estudo, a “posição indefinida” de Bomfim na literatura do chamado pensamento social brasileiro deve-se, em parte, aos próprios métodos empregados por seus intérpretes. Mas, apesar de relativizar outras leituras sobre o autor, que o tomam por ambíguo, Botelho conclui com uma interpretação semelhante, uma vez que, ao situá-lo em relação ao seu próprio tempo, o vê como um intelectual ora inovador, atuante na “contracorrente”, ora como preso nas teias de sua própria época, marcada pela ambigüidade decorrente do “funcionamento incompleto do padrão burguês no país”. 184 A ambigüidade do contexto serve como parâmetro para a leitura de Bomfim. Daí ser possível explicar o autor como alguém que interpretou a realidade do país, traduzindo interesses particulares (ligados ao seu próprio grupo) como necessidades gerais, num momento de transição da sociedade brasileira de um mundo pré-burguês para um mundo moderno. O trabalho mais recente sobre Manoel Bomfim é o de Ronaldo Conde Aguiar. 185 Trata-se da única tese de doutorado escrita sobre o autor em questão, até o presente momento – considerando apenas o eixo Rio de Janeiro/São Paulo. Recebeu o prêmio de melhor tese de doutorado no I Concurso Brasileiro CNPq-ANPOCS de Obras Científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais, em 1999, sendo publicado no ano seguinte. 186 Na introdução, Ronaldo Aguiar afirma que sua intenção inicial era “investir pesado no estudo dos autores cujas obras (...) formam a base, o corpo e a alma do pensamento social brasileiro”. O intérprete se dá conta da inviabilidade desse projeto, considerando ambiciosa sua proposta de “ler tudo sobre a obra de”. Em seguida, faz uma breve reflexão sobre a construção do campo intelectual no Brasil. Segundo ele, a história do “pensamento social brasileiro” é excludente e tende a perpetuar os mesmos nomes. Omite sistematicamente a importância de alguns autores do passado, através da construção de uma “hierarquia de relevância”, baseada na eleição de autores “ícones” e “obras de marca”. Além disso, os estudos sobre tais “ícones” também serviriam como um meio de garantir renome acadêmico àqueles que se dedicam a estudar tais intelectuais e a definir o quadro hierárquico. 187

183

BOTELHO, op.cit., p.75. Id. ib., p.43. 185 Ronaldo Conde Aguiar é sociólogo. Foi secretário de Ciência e Tecnologia do governo do Distrito Federal e, recentemente, além da biografia sociológica de Bomfim, também publicou a Pequena bibliografia crítica do pensamento social brasileiro (2001). 186 AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Brasília: Dep. de Sociologia/UnB, 1998, tese de doutorado. Publicado com o mesmo título, no Rio de Janeiro, pela Topbooks, em 2000. Todas as referências a este trabalho, salvo informação em contrário, correspondem ao texto da tese. 187 Id. ib., p.13. 184

Resumidamente, o trabalho de Aguiar é – na definição dele mesmo – uma “biografia sociológica”, cujo objetivo é analisar a obra de Bomfim, as circunstâncias em que essa foi produzida e sua trajetória pessoal, além de investigar o lugar que ele veio a ocupar, “como autor e como ator”, na “hierarquia de relevância” do campo intelectual brasileiro. Duas questões o orientam: como Bomfim pode construir reflexões e idéias, que Aguiar considera tão distintas daquelas que eram comuns em seu tempo e em sua classe social de origem e quais as razões do esquecimento do autor. Sendo o estudo mais recente sobre Bomfim e, também, o que propõe ir mais longe na interpretação do mesmo, conjugando a trajetória pessoal à análise de sua obra, optei pelo exercício de compará- lo diretamente às outras interpretações sobre o autor, buscando compreender em que medida Aguiar reafirma as leituras (interpretações) anteriores a sua ou propõe algo diferente. Melhor dizendo, o que este intérprete resgata da biografia e dos textos de e sobre Bomfim e, que imagem ou representação elabora sobre esse autor, consolidando ou enquadrando uma determinada memória sobre ele. Aguiar refere-se a Bomfim como “uma voz que ousava dizer o indizível, um pensador que não temia pensar o impensável, num meio social mais alienado, conservador e inculto que o de hoje”. Acredita que pode demonstrar as qualidades intelectuais do autor “em toda a sua dimensão, não deixando de apontar as suas virtudes e idiossincrasias, suas contradições e inconsistências”. Concorda com as idéias de Flora Süssekind e Roberto Ventura, que situam Bomfim como autor de um contradiscurso: um discurso crítico produzido no interior do discurso ideológico dominante. Essa seria uma das causas do seu esquecimento: a afronta às elites dominantes. Assim, Bomfim teria pronunciado um discurso que “precisava ser silenciado”. 188 Outro aspecto que teria contribuído para seu esquecimento seria a não aceitação, pelo autor, de determinadas regras e comportamentos do campo intelectual de seu tempo, tal como recusar participar da Academia Brasileira de Letras ou evitar polemizar em torno de seus escritos, abrindo espaço para que a opinião negativa de seu principal crítico, Silvio Romero, prevalecesse. Outra contribuição seria o predomínio de uma visão do autor como lusófobo, estimulando o boicote de seus textos pelos jornais cariocas, dominados pelos portugueses. Além disso, seu próprio estilo literário teria dificultado o acesso a sua obra. Sua opinião contrária a uma revolução comunista no Brasil, também pode ter despertado a oposição dos comunistas brasileiros, que o ignoraram. Do mesmo modo, por criticar a Revolução de 1930, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) ter-lhe-ia feito restrições, impedindo a

188

Id. ib., p.8.

reedição de seus livros e a menção de seu nome em jornais e revistas, além de retirá-los das bibliotecas públicas. 189 Por fim, Aguiar conclui que o “atávico hábito brasileiro de repudiar a memória nacional”, também ajudou a lançá- lo ao ostracismo. De acordo com o intérprete, “o Brasil é um país sem memória, com a agravante de que isto é particularmente evidente em relação aos temas populares e a quem, como Bomfim, opôs-se ao discurso dominante”. 190 Pondo de lado a questão do esquecimento, observo que Aguiar situa Bomfim como precursor das idéias de Sérgio Buarque de Holanda sobre a cordialidade do povo brasileiro. Também constrói associações entre o autor e Caio Prado Júnior – porque ambos teriam rompido com os interesses das classes a que pertenciam – e com Rosa Luxemburg (18701919). A referência a esta autora recupera a idéia de que ela teria sido “a figura mais controversa e menos compreendida da e pela esquerda alemã”; alguém que “teve raros momentos de glória e aplauso”. No entender de Aguiar, Bomfim também foi um autor incompreendido, apesar de ter sido “um pioneiro do pensamento social brasileiro em muitos aspectos”. Aguiar chama a atenção para a circunstância de que Bomfim, por ser um autor brasileiro, ou em suas palavras, “um cidadão do mundo periférico”, teve impedida a possibilidade de que “seu gênio ultrapassasse os limites culturais do Rio de Janeiro de então”. 191 Procura situar Bomfim como “o único pensador a criticar de modo sistemático a teoria da desigualdade racial”. Considera como sua grande contribuição a “capacidade de enxergar os interstícios da realidade social”, através de uma análise crítica, de observação e sentimento, coordenados por um tipo de conhecimento sociológico que ainda hoje não estaria inteiramente generalizado. 192 Aguiar parece consolidar uma determinada versão sobre o autor, resgatando aspectos presentes em outras leituras sobre ele e afirmando outros tantos. Tais aspectos seriam: o pioneirismo; a originalidade; a coragem (ao enfrentar os cânones políticos e ideológicos de seu tempo); a capacidade de argumentação; a lucidez; a discrição; a paixão; a coerência; a rebeldia; o humanismo; o reformismo, a perspectiva nacionalista e popular, etc. Mas, para melhor situar o trabalho de Aguiar em relação aos outros, é importante observar não apenas sua análise sobre Bomfim, mas, o tipo de narrativa, o modo de argumentar ou de ordenar sua leitura. Almejando “ser lido pelo maior número de leitores, e 189

Id. ib., p.348-9. Aguiar extrai essa informação de fontes orais. Não leva em conta a reedição de Bomfim no segundo aniversário do Estado Novo nem a opinião favorável de Azevedo Amaral – um dos principais ideólogos do Estado Novo – sobre o autor, que será vista neste capítulo. 190 Id. ib., p.351. 191 Id. ib., p.23 e 27. 192 Id. ib., p.217 e 231.

não só pelos intelectuais e iniciados” – o que contribuiria para o conhecimento do nome de Bomfim por parte de um público mais amplo –, o intérprete fornece pistas sobre o modo como quer que leiam seu estudo. Observa-se a utilização de três tipos de narrativas concomitantes. Além das notas inseridas no pé da página e daquilo que pode ser visto como a narrativa principal, há parágrafos entre chaves ao longo de todo o texto, contendo o que seriam observações pessoais ou associações entre aquilo que é dito no texto principal e outros aspectos que chamam a atenção do Aguiar. No conjunto dá-se a impressão de que a narrativa principal (fora das chaves) representa uma espécie de espaço neutro, onde o autor nada mais faria que narrar. Esse é o espaço do contexto e da biografia, assim como da apresentação das idéias de Bomfim. O espaço entre chaves é aquele que o autor parece utilizar para expressar sua opinião, fazendo colocações que considera necessárias para o entendimento do texto principal. O terceiro tipo de narrativa corresponde aos textos em itálico, utilizados na construção de diálogos entre os personagens analisados. Na ausência de fontes, Aguiar optou por preencher as lacunas da biografia e compor a narrativa de um modo que considera mais atraente: elaborando diálogos a partir de situações fictícias. A maneira como ele constrói a biografia também chama a atenção. A história de Bomfim começa com a “saga” de sua família. A experiência familiar (presente e passada) torna-se um ponto ao qual se pode recorrer em busca de aspectos que ajudem a compreender determinadas posições e escolhas do autor/personagem. Exemplo: a convivência e amizade de infância entre Bomfim e um escravo da fazenda de seus pais, ajudaria a compreender sua postura anti-racista. De acordo com Aguiar a razão básica da biografia é “investigar momentos e reavaliar experiê ncias de vida com o objetivo de explicar o acontecido e o lugar que o biografado – como autor e como ator – ocupou e ocupa, na história”. A biografia deve ser construída visando apontar e explicar situações que justifiquem a obra e a origem das idéias do autor. Aguiar acredita que o exercício biográfico permite “a busca de situações e atitudes que ensejaram este ou aquele destino do biografado”. 193 Desse modo, a trajetória da vida de Bomfim, segundo esse intérprete, obedece a um encadeamento um tanto quanto linear, cuja lógica segue as regras da causa e efeito. Aguiar conclui dizendo que escreveu uma biografia sociológica “sem resvalar para o panegírico e o apologético”. Procurou valorizar em Bomfim, “aquilo que ele, de fato, acrescentou e representou para o pensamento social brasileiro, sem omitir, no entanto, as suas falhas e contradições”. Mas, também diz pretender homenageá- lo,

193

Id. ib., p.15-6.

fazendo com que o autor seja “reconhecido pelo que é verdadeiramente: um dos mais lúcidos pensadores sociais do Brasil”. 194 Lembrando Pierre Bourdieu, “um livro não chega jamais ao leitor sem marcas”.195 Suponho que o mesmo se pode dizer sobre determinados autores, submetidos a leituras que procuram classificá- los, rotulá- los, situá- los em relação a outros autores ou no interior do conjunto que se denomina por pensamento social brasileiro. Considero que a leitura de Ronaldo Conde Aguiar contribuiu exatamente nesse sentido. Ao passar em revista grande parte daquilo que foi escrito de e sobre Bomfim, utilizando – orientado por determinada perspectiva sobre o que deve ser uma biografia 196 – um volume extenso de documentos sobre sua trajetória de vida e, na ausência de tais documentos, elaborando situações e diálogos fictícios a fim de construir a história de Bomfim, o intérprete colaborou para a inserção do nome desse intelectual no conjunto do pensamento social brasileiro, sem, contudo, questionar a própria idéia da existência desse conjunto. Refletindo sobre a memória que foi construída sobre um autor através de seus leitores, pude observar que essa reflexão abre um pequeno espaço para o questionamento do lugar chamado pensamento social, para onde o contínuo trabalho de enquadramento da memória leva autores e obras. Assim, o pensamento social brasileiro pode ser visto como uma construção de memó ria e não como algo naturalmente constituído por intelectuais que representam a genialidade, o supra-sumo da inteligência de um país, os representantes por excelência do mundo pensante. Após percorrer os estudos (quatro dissertações de mestrado, uma tese de doutorado e um trabalho de fim de curso) produzidos ao longo dos anos 80 e 90, no âmbito das pósgraduações, passo, agora, a um outro tipo de texto, produzido e publicado no mesmo período por intelectuais membros da academia ou de instituições de pesquisa, alguns dos quais são referências constantes nos estudos sobre história das idéias no Brasil. Daí a importância de considerá- los neste espaço. Incluo, além de artigos, trechos de livros onde o autor é mencionado.

194

Id. ib., p.11 e 353. BOURDIEU, Pierre. A leitura: uma prática cultural (debate entre Pierre Bourdieu e Roger Chartier). In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p. 248. 196 Alguns textos sobre biografia foram úteis para que a análise da biografia sociológica proposta por Aguiar pudesse ser feita: BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta da Moraes (orgs.). Uso & abuso da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.183-191; LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Ibidem, p.167-82; LE GOFF, Jacques. Como escrever uma biografia histórica hoje?, mimeo, s/tradutor. Tradução de Comment écrire une biographie historique aujourd’hui? Le Débat, n.54, 1989, p.48-53; SCHMIDT, Benito Bisso. O gênero biográfico. In: _____. Uma reflexão sobre o gênero biográfico: a trajetória do militante socialista Antônio Guedes Coutinho na perspectiva de sua vida cotidiana (1868-1945). Porto Alegre: UFRGS/ Dep. de História, dissertação de mestrado, 1996, p.9-53. 195

Artigos, etc. O primeiro a ser analisado é o artigo de Darcy Ribeiro (1922-1997), intitulado Manoel Bomfim, antropólogo,197 publicado na Revista do Brasil, em 1984 e, posteriormente, incluído como prefácio da terceira edição do livro A América Latina (1993). O objetivo de Ribeiro, como o título deixa entrever, é situar Bomfim em relação ao pensamento antropológico brasileiro. O autor lembra que, durante a ditadura militar (anos 60 e 70), as universidades brasileiras contribuíram para o afastamento de intelectuais contestatórios, excluindo da bibliografia os pensadores mais lúcidos e combativos. Ribeiro coloca que entre esses pensadores estaria Manoel Bomfim. 198 Refere-se ao autor como: “um pensador original, o maior que geramos (...) um pensador plenamente maduro em 1905”; “o grande intérprete do processo de formação do povo brasileiro”; “uma fonte doméstica de água pura”. Diz que o livro A América Latina, é “extraordinário”, um “livro sábio e profundo”. Considera Bomfim um intelectual “original” por se opor ao discurso científico oficial. Menciona seu “espírito polêmico”, relacionando-o ao momento em que viveu. Destaca como suas características: a lusofobia, a cordialidade (manifesta quando criticava seus pares); a capacidade de observação; o uso do biologismo aplicado à sociologia; a crença no “caráter nacional” como somatório de características psicológicas hereditárias etc. 199 Situa-o como um intelectual isolado, ao considerar que só ele, no início do século, “teve olhos para ver” a relação entre as teorias deterministas e o imperialismo europeu. Daí pensá- lo como estando à frente de seu tempo. Situa-o como precursor das idéias de Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Arthur Ramos (1903-1949) e Josué de Castro (n.1905). 200 Ribeiro conclui afirmando que Bomfim foi o “fundador da antropologia do Brasil e dos brasileiros” e lembrando que ele teve predecessores, mas não sucessores. 201 O sociólogo e antropólogo Renato Ortiz também escreveu sobre Bomfim no artigo Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias raciais do século XIX (1982), publicado 197

RIBEIRO, Darcy. Manoel Bomfim, antropólogo. Revista do Brasil. Rio de Janeiro: Secretaria de Ciência e Cultura do Município do Rio de Janeiro, ano 1, (2): 48-54, 1984. 198 Id. ib., p.53. 199 Id. ib., p.50-2. 200 Id. ib., p.50 e 52. Lembro que Arthur Ramos foi um importante antropólogo. Formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia (1926) e desenvolveu trabalhos na área de psiquiatria. Fundou a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia. Atuou em universidades norte-americanas (Northwestern e Luisiana), e na Universidade do Brasil. Fez parte de uma vertente de pensadores, relacionada a Gilberto Freyre, que incorporou as culturas africanas de modo positivo, desenvolvendo o elogio da miscigenação. Publicou, entre outros livros: O negro brasileiro (1938). Jusué de Castro, médico, sociólogo e político pernambucano, foi membro do Instituto da Pessoa Humana, ligado a Organização das Nações Unidas. Publicou vários livros sobre a questão da fome no Brasil, entre eles: Alimentação no Brasil (1933) e Geopolítica da fome (1952). Para Darcy Ribeiro, os autores citados teriam se aproximado da visão de Bomfim, mesmo sem tê-lo lido. 201 Id. ib., p.53.

no livro Cultura Brasileira e Identidade Nacional (1985). 202 Lembro que o objetivo aqui não é resumir tal texto, mas extrair dele aspectos que possam ser considerados como parte da memória sobre Manoel Bomfim. Mais especificamente, Ortiz faz referência ao autor, na parte intitulada Uma interpretação dissidente. O objetivo é tecer relações entre a questão racial e a construção da identidade brasileira. As idéias de Bomfim, como crítico das teorias raciais, são destacadas e situadas em relação ao que Ortiz considera como um problema recorrente na história cultural nacional: a absorção de idéias estrangeiras. 203 A primeira característica de Bomfim seria a de ser um intelectual dissidente, por se opor ao pensamento dominante, no que dizia respeito à teoria da desigualdade racial. Isto explicaria, ao menos em parte, seu “insucesso” e “esquecimento”. 204 Ortiz propõe inseri- lo nos marcos do pensamento da virada do século, caracterizado pelo positivismo, pelo evolucionismo e pelo darwinismo social. 205 Porém, o considera sui generis por se contrapor aos determinismos do meio e da raça. Além disso, o relaciona ao positivismo de Durkheim (1858-1917), para quem o biológico seria um modelo de compreensão dos fatos sociais. 206 As principais marcas do seu pensamento seriam: a “visão internacionalista” – sem correspondência com outros autores da época – expressa pela inserção do Brasil no quadro mais amplo da América Latina; a concepção de que as sociedades existem como organismos similares aos biológicos; a idéia de que existem leis orgânicas que determinam a evolução social; a suposição de que a análise da nacionalidade depende do estudo do meio em ação combinada com o tempo; a valorização da miscigenação como possibilidade de renovação e de equilíbrio dos elementos negativos herdados do colonizador; a construção de uma teoria biológico-social, com base nas relações entre colonizador e colonizado (ou parasita e parasitado); a identificação do progresso com o modelo de civilização européia; a crítica do conservadorismo e da falta de espírito de observação. O papel de Bomfim como crítico do imperialismo – com o qual as teorias sobre desigualdade racial estariam relacionadas –

202

ORTIZ, Renato. Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias raciais do século XIX. In : _____. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.13-35. Este artigo foi originalmente publicado nos Cadernos CERU, n.17, em setembro de 1982. 203 Id., Cultura brasileira..., op.cit., 1985, p.14. 204 Id. ib., p. 22. 205 Sobre positivismo, evolucionismo e darwinismo social, além do citado texto de Ortiz, ver SCHWARCZ, op.cit., p.43-66. 206 ORTIZ, op.cit., p.22-3. Ortiz lembra que Bomfim não cita Durkheim em nenhum momento, o que tornaria difícil interpretar seu pensamento como uma possível leitura durkheimiana de Auguste Comte (1798-1857). Ver p. 23, nota 16. Sobre Durkheim, ver RODRIGUES, José Albertino. Introdução. In: Durkheim – Sociologia. RODRIGUES, José Albertino (org.). São Paulo: Ática, 1999, 9a. ed., Coleção Grandes Cientistas Sociais, p.7-38.

também é acentuado por Ortiz, que considera A América Latina (1905) como “um libelo contra a opressão das nações colonizadoras”. 207 Através da leitura realizada por Ortiz, é possível perceber Manoel Bomfim com um lugar garantido entre os construtores da identidade nacional, ainda que ele tenha sido esquecido. Contra as teorias da desigualdade das raças humanas, ele teria construído uma interpretação dissidente e original. Radicalismos 208 é o título de um dos textos sobre Bomfim mais citados entre seus intérpretes. Foi escrito em 1988, por Antônio Cândido, cujo objetivo era mostrar a ocorrência de idéias radicais (opostas ao conservadorismo dominante) no Brasil. 209 A hipótese que orienta seu ensaio é a de que as idéias radicais do país não constituiriam um sistema, podendo ser observadas apenas em autores isolados, “de modo ocasional, passageiro ou permanente”. Ao contrário do que ocorreu em outros países da América Latina, no Brasil não teria se desenvolvido um “corpo próprio de doutrinas radicais politicamente avançadas”. As doutrinas teriam sido geradas no interior da classe média e por setores esclarecidos das classes dominantes, não constituindo um pensamento revolucionário por não se identificarem com os interesses das classes trabalhadoras, segmento social considerado como potencialmente apto à revolução. 210 Sobre Manoel Bomfim, Cândido diz que não possuía uma “personalidade fulgurante nem uma escrita admirável”, o que teria facilitado sua exclusão para o segundo plano. Também teria contribuído o fato de haver sido contestado por Silvio Romero. Mas, após indagar sobre o porquê de seu esquecimento, afirma: “penso que por causa de seu método de analogias biológicas, superadas em seguida por outras correntes da sociologia; e também porque manifestava pontos de vista politicamente incômodos para as ideologias dominantes”. Concorda, portanto, com Flora Süssekind e Roberto Ventura, para quem o esquecimento de Bomfim estaria relacionado tanto à crítica do biologismo aplicado à sociologia – ao mesmo tempo em que utilizava conceitos extraídos das ciências naturais – quanto à oscilação entre uma linguagem apaixonada e a busca de rigor científico. Contudo, apesar de crer que tais razões são válidas para a compreensão do esquecimento do autor, afirma que o motivo principal seria político. 211 Classifica a obra de Bomfim como possuidora de “ambigüidades e contradições” que, além de dificultar o entendimento, não atrairiam o leitor. Seu texto seria “prolixo, 207

ORTIZ, ib., p.23-6. CÂNDIDO, Antônio. Radicalismos, já citado. 209 O intérprete analisa três autores e respectivos livros: O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco (18491910); A América Latina (1905), de Bomfim; e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. 210 CÂNDIDO, ib., p.4. 211 Id. ib., p.10-1. 208

redundante”, abusando de transcrições e generalizações. Porém, embora tais características possam explicar, conclui que não justificam a pouca importância que lhe foi dada. Também considera A América Latina como “um livro dos mais notáveis que o pensamento social produziu no Brasil”. 212 Acha que o autor “não teve a consagração merecida”, mesmo tendo construído um “sólido projeto radical, que não teve eco no tempo, nem depois”. Diz que ele merece ser relido na atualidade, por considerá- lo como um dos “pensadores mais originais e clarividentes que o Brasil teve”. Elege como “maciço central de sua obra” os livros: A América Latina, O Brasil na América, O Brasil na história e O Brasil nação, sendo que “o primeiro é o melhor e o que realmente conta”. Os demais, ele considera “declamatórios, prolixos e cheios de banalidades patrioteiras”, ainda que contenham algumas idéias avançadas, “além da indignação generosa que os anima”. 213 Bomfim seria o exemplo do pensador plenamente radical, além de ser o primeiro a observar a persistência do conservadorismo no Brasil. Sobre esse tema, teria construído análises “fecundas e esclarecedoras”. Seu radicalismo é visto como permanente, sobretudo na análise – “notável” – das relações de produção. Cândido se surpreende com o fato de Bomfim ter chegado a conclusões originais a partir de uma base que considera “insuficiente e restrita”. Destaca a “imaginação histórica e a retidão dos seus pontos de vista” como elementos principais de suas análises. Também afirma que seus pontos de vista distinguem- se da opinião dominante “pelo arrojo e lucidez”. Tais características teriam contribuído para fazer dele um autêntico radical, inclusive por aproximá- lo do socialismo. 214 Antônio Cândido acredita que Bomfim tenha sido o primeiro a desmistificar a Independência do país, assim como, a natureza e o papel das classes dominantes. Também o vê como um dos primeiros a rejeitar a noção de superioridade das raças, atribuindo as diferenças a fatores de ordem social e cultural. Considera que ele demonstrou uma “extraordinária lucidez e uma visão antecipadora”, ao contestar tais teorias. Nenhum outro pensador brasileiro daquela época teria sido “tão lúcido e avançado” diante de temas cruciais como a natureza da sociedade latino-americana e, particularmente, do Brasil. Mas, Cândido se frustra pelo desfecho de tais idéias radicais; exige uma “conclusão mais forte” no lugar do que considera como a “ambigüidade do radicalismo à brasileira”. Afirma que as propostas revolucionárias de Bomfim foram atenuadas em benefício de uma visão ilustrada, de acordo com a qual, a instrução seria remédio suficiente para os males do país. 215 Em suma, Manoel Bomfim, segundo Antônio Cândido, foi um autor “radical, lúcido e precursor”. Um intelectual 212

Id. ib., p.11-2. Id. ib., p.10-1 e 16. 214 Id. ib., p.11-3. 215 Id. ib., p.12 e 16. 213

avançado para sua época que, apesar da prolixidade e da ambigüidade, elaborou interpretações originais sobre o país, ainda que tenha tido seu radicalismo atenuado por idéias reformistas. Antônio Gomes Penna 216 escreveu um artigo sobre a contribuição de quatro educadores para o desenvolvimento da psicologia científica no Rio de Janeiro. Um deles é Manoel Bomfim. 217 Seu objetivo é situá- lo na história da psicologia brasileira. Inicialmente, sua obra é apresentada como estando dividida em três áreas: a história, a pedagogia e a psicologia. Considerando-o um autodidata, destaca o caráter avançado de suas idéias no campo social e político, e identifica “pensamentos em extremo, lúcidos, envolvendo profundas concepções filosóficas e sociais”. Menciona que a bibliografia utilizada por ele é extremamente rica e atualizada para sua época. Além disso, considera bastante significativa sua reflexão sobre o sentido da liberdade e “muito avançada” no domínio da psicologia da cultura, particularmente, quando critica as teorias raciais. Também destaca como tema dominante de sua obra pedagógica, a educação popular. Afirma que as idéias mais significativas de Bomfim podem ser encontradas em seu primeiro livro, A América Latina, sendo que, na área de psicologia da educação, seus textos mais importantes seriam Noções de psicologia (1916) e Pensar e dizer (1923). 218 Trata-se, em suma, de um texto bastante conciso, cuja relevância para a construção da memória sobre Bomfim está no esforço para situá- lo entre os psicólogos-educadores, precursores de uma psicologia cultural no país. A experiência de Bomfim na área da psicologia não é comumente explorada e contribui para ampliar a memória sobre seu espaço de atuação, sendo que, a imagem que fica, é a de um precursor. Além disso, ajuda a concluir que se trata de um intelectual cuja memória pode ser disputada por diversas áreas do conhecimento. Há outras referências a Bomfim, no livro de Roberto Ventura, Estilo Tropical, 219 cujo objetivo é fazer um levantamento das concepções de literatura e sociedade vigentes na “geração de 1870”, investigando a formação de uma crítica e história literárias. Segundo Ventura, a principal marca de Bomfim seria a crítica da teoria da desigualdade racial, sendo 216

Penna (n.1917) é professor emérito de psicologia e filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Fundação Getúlio Vargas. 217 PENNA. Antônio Gomes. Acerca dos psicólogos-educadores na cidade do Rio de Janeiro: Manoel Bomfim, Maurício Campos de Medeiros, Plínio Olinto e Lourenço Filho. Fórum Educacional. Rio de Janeiro: FGV, 13(3):7-34, jun./ago. de 1989. Originalmente publicado em ISOP. Textos do Centro de Pós-Graduação em Psicologia, 4. Rio de Janeiro: FGV, 1986. 218 Id. ib., p.11-14 e 20-1. A referência dos livros de Bomfim é a seguinte: Noções de psicologia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1916; Pensar e dizer: estudo do símbolo no pensamento e na linguagem. Rio de Janeiro: Casa Electros, 1923. 219 VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

que, suas idéias não são consideradas originais. O autor faria parte de um grupo de “intelectuais isolados”, entre os quais estariam Araripe Júnior (1848-1911) e Manuel Querino (1851-1923), ambos críticos das concepções racistas. Além disso, afirma que a reflexão de Tobias Barreto (1839-1889) antecipara, em pelo menos vinte anos, a refutação do evolucionismo spenceriano feita por Bomfim. 220 O autor observa a refutação, operada por Bomfim, da homologia entre a biologia, a zoologia e a sociologia. Embora reconheça que ele concebia a sociedade como um organismo, observa que sua investigação estava mais preocupada em desvendar as leis não biológicas, específicas dos fatos sociais. Analisando o livro A América Latina, o intérprete identifica a abordagem das relações de classe, com base no conceito de parasitismo. Esta noção teria permitido a Bomfim dar conta das relações de produção e apropriação do valor do trabalho, tanto no interior do país quanto entre nações. Também destaca a proposta de uma revolução nacional-popular contra as classes dirigentes, o aparelho estatal e as potências imperialistas.221 Ventura aproxima Bomfim de Marx e Engels, como já havia feito no estudo escrito com Flora Süssekind. 222 Também o compara a Alberto Torres (1865-1917), 223 no que diz respeito à contestação tanto do racismo quanto do liberalismo, contudo, enquanto o primeiro apontara para o socialismo, o segundo teria formulado um projeto autoritário e corporativo, defendendo a centralização política pelo estado. 224 Manoel Bomfim surge em Estilo Tropical como um dos intelectuais que foram alvo da crítica de Silvio Romero. O caso Bomfim ajuda a configurar o contexto de afirmação da crítica literária no início do século XX. Neste sentido, o estudo de Ventura é um dos quatro que se dedicaram a analisar a polê mica construída em torno do livro de estréia de Bomfim (os outros trabalhos são os de Maria Tereza Chaves de Mello e Ronaldo Conde Aguiar, ambos já analisados, e o de José Mendonça de Souza, que será visto mais à frente). Trata-se, portanto, de um texto não dedicado especificamente a Bomfim, mas que contribui para situá- lo no

220

Id. ib., p.62 e 155. Lembro que Tristão de Alencar Araripe Júnior, político e escritor, compunha com Silvio Romero e José Veríssimo, a trinca de críticos literários mais conhecidos do início do século XX. Entre seus textos publicados está a Carta sobre a literatura brasílica (1869). Quanto a Manuel Raimundo Querino, escritor e artista plástico baiano, atuou na campanha abolicionista e assinou o Manifesto Republicano. Fundou a Liga Operária Baiana e publicou A raça africana e os seus costumes (1916), A Bahia de outrora (1922), etc. Dedicouse ao estudo de problemas relativos ao operariado e ao folclore. Tobias Barreto, poeta, jurista e filósofo sergipano, estudou na Escola de Direito do Recife, tendo participado da chamada “geração modernista de 1870”, sobre a qual haverá mais informações ao longo da dissertação. 221 VENTURA, op.cit., p.155 e 157. 222 SÜSSEKIND e VENTURA, já citado. 223 Advogado (Recife, 1886), abolicinista, republicano histórico, Alberto de Seixas Martins Torres foi deputado federal pelo Rio de Janeiro, ministro da Justiça no governo Prudente de Morais (1894-1898) e presidente do Estado do Rio de Janeiro (1898-1900). Escreveu A organização nacional (1914) e O problema nacional brasileiro (1914). Foi referência para diversos pensadores das primeiras décadas do século XX, ainda que seus escritos só tenham alcançado a fama no pós-30. Ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi, op.cit., p.121-125. 224 VENTURA, op.cit., p.158.

mundo intelectual do início do século. Considerando a questão da memória sobre o autor, destaca-se a tentativa de relativizar sua atuação. Esta surge menos original e radical do que em outros estudos, ainda que seja preservado seu lugar como um pensador “isolado” só que, entre outros. Lúcia Lippi de Oliveira faz um movimento semelhante no seu livro A questão nacional na Primeira República. 225 Seu objetivo é compreender como diferentes intelectuais brasileiros se ocuparam do tema da nação e da nacionalidade durante o período de constituição da República, mostrando conexões entre as diferentes propostas de identidade nacional. Bomfim é situado entre os herdeiros da chamada “geração de 1870” e apresentado como membro da boêmia e participante das conferências literárias que então eram realizadas no Instituto Nacional de Música. 226 Orientada pelo estudo de Flora Süssekind e Roberto Ventura, Lúcia Lippi afirma que Bomfim, ao mesmo tempo em que “inaugurou uma nova perspectiva para o saber científico do seu tempo” – perspectiva marcada pela rejeição da equivalência entre a vida orgânica e a vida social – expressou-se através de uma linguagem e de um esquema de análise comprometidos com o biologismo. Apesar disso, a autora destaca: a) a recusa de Bomfim em aceitar a pretensa neutralidade da ciência – que ele considerava cúmplice do liberalismo econômico e do racismo; b) a aceitação da existência de fatores psicológicos hereditários como elementos definidores do “caráter nacional”; c) a defesa da educação como “salvação nacional”. 227 Menciona a crítica de Romero a Bomfim, defendendo que a polêmica que se seguiu ao lançamento de A América Latina teria tido grande importância na explicação do esquecimento a que o autor foi condenado. 228 Assim como o trabalho de Roberto Ventura, o de Lúcia Lippi contribui para situar Bomfim em relação ao contexto da Primeira República. Mais especificamente, ele aparece situado como um intelectual que transitava entre uma visão crítica e uma visão ufanista do país. Este aspecto, ao lado da interpretação de que ele teria sido precursor de uma nova perspectiva científica, pode ser visto como parte da memória construída sobre o autor. Passemos a outro texto. Simone Petraglia Kropf é autora de um artigo intitulado Manoel Bomfim e Euclides da Cunha: vozes dissonantes aos horizontes do progresso,229 cujo

225

OLIVEIRA, Lúcia Lippi, já citado. Id. ib., p.116 e 113. 227 Id. ib., p.116-8. 228 Id. ib., p.118. 229 KROPF, Simone Petraglia. Manoel Bomfim e Euclides da Cunha: vozes dissonantes aos horizontes do progresso. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Oswaldo Cruz, 3(1):8098, mar./jun. de 1996. 226

objetivo é contrapor as idéias de Euclides e Bomfim sobre a sociedade brasileira, no contexto de modernização nacional, na virada do século. Embora concorde com a interpretação de Flora Süssekind e Roberto Ventura 230 – segundo a qual, Bomfim ter-se-ia contraposto ao discurso dominante em sua época, a medida em que revertera o uso de categorias científicas então em voga –, discorda da perspectiva de que a capacidade de ruptura do autor tivesse sido prejudicada pela linguagem metafórica adotada. Lembrando: para Süssekind e Ventura, Bomfim teria permanecido em “solo ambíguo”, por não ter efetuado uma ruptura definitiva com os paradigmas científicos de sua época, devido ao suposto uso de uma linguagem velha, em vias de ser superada, para expressar novas idéias. Embora Kropf admita a presença dessa ambigüidade – que considera como característica dos discursos do início do século – ela seria um ind ício da distância crítica assumida por Bomfim em relação a tais paradigmas e não um sinal de seu comprometimento com eles. A hipótese é que ele teria conseguido marcar uma descontinuidade em relação ao discurso dominante, rompendo ideologicamente com sua lógica e seus princípios fundamentais. 231 Kropf compreende que Bomfim teria assumido “uma posição crítica questionadora”, em relação aos rumos assumidos pelos projetos modernizadores. Diz que ele e Euclides da Cunha representariam “vozes dissonantes aos horizontes do progresso”, não por se oporem a essa perspectiva, mas porque introduziram questões importantes sobre o processo de implementação da modernidade. 232 Situa Bomfim entre os intelectuais da “geração de 1870” (“intelectuais engajados”), destacando sua postura crítica e combativa associada à pregação de reformas. Diz que ele foi “extremamente inovador em sua época”, devido à defesa que fez da explicitação dos interesses científicos, negando a neutralidade da ciência. Também teria inovado ao criticar as elites dirigentes e diagnosticar o parasitismo social e sua lógica conservadora, num momento em que o discurso dominante proclamava o progresso com “euforia otimista”. Por fim, afirma que ele introduzira a possibilidade de uma mudança efetiva no processo histórico através da educação popular, além de ter se afastado das visões pessimistas, guiadas pelo determinismo do meio e da raça. 233 Um último ponto merece ser destacado. Para Kropf, a formação acadêmicoprofissional de Bomfim é relevante para a compreensão de que, a manifestação de suas idéias está relacionada a uma identidade socialmente constituída pela categoria profissional a qual 230

SÜSSEKIND e VENTURA, já citado. KROPF, op.cit., p.96. 232 Id. ib., p.84-5. 233 Id. ib., p.81, 87 e 92-3. 231

ele pertencia. Assim, a intérprete procura situar o autor em relação à medicina da época, ressaltando que os profissionais dessa área, mobilizados pelo discurso e pelas práticas higienistas, pretendiam “assumir a condição de saneadores das condições físicas e morais da população”. 234 O artigo de Kropf contribui para a construção da memória sobre Manoel Bomfim, discutindo e posic ionando-se em relação a outras interpretações sobre o mesmo. Também realiza o trabalho de compará- lo com outro intelectual, seu contemporâneo, ajudando a situálo como um pensador crítico, engajado e inovador; alguém que participa dos debates de seu próprio tempo e que, nesta participação, encontra pares, constituindo diálogos. Além disso, ao referir-se a formação médica de Bomfim, abre uma porta para a inserção deste autor no âmbito da história da medicina no Rio de Janeiro, coadunando-se com a perspectiva da instituição mantenedora da revista onde seu artigo foi publicado: a Fundação Casa de Oswaldo Cruz, importante guardiã da memória sobre o saber médico e as ciências naturais no Brasil. Outro artigo é o de Maria Thétis Nunes, Manoel Bomfim: 1868-1932, cujo objetivo é apresentar o autor, procurando situá-lo em relação às idéias de seu tempo, com destaque para a questão do nacionalismo. Considera que o esquecimento deste intelectual pode estar relacionado ao “estilo um tanto cansativo pela prolixidade de seus escritos” ou ao fato de que suas idéias eram muito avançadas para sua época. Ao mesmo tempo, afirma que “poucas obras foram escritas, no Brasil, que apresentassem tão nítido conhecimento de nossa realidade e um nacionalismo mais acentuado que a sua”. O vê como um intelectual apaixonado pelo país, cujas obras educativas traduziriam idealismo e civismo. 235 Interpreta o biologismo e o antilusitanismo de Bomfim como exagerados. Também diz que, talvez, ele tenha sido o primeiro estudioso brasileiro a distinguir raça e cultura, antes da divulgação, no Brasil, da Antropologia Cultural, a partir dos anos 30. Sua obra seria “admirável”, sobretudo, pela época em que foi escrita. Conclui que suas interpretações o inserem na história das idéias no Brasil como “um dos mais autênticos pioneiros de uma ideologia nacional”. 236 No trabalho de construção ou enquadramento de uma memória sobre Bomfim, o artigo de Thétis Nunes parece exercer um papel específico. Não se ocupa de analisar o texto e seu autor, mas apresentá- los, destacando alguns de seus aspectos e apontando- lhes características. A intérprete optou por fazer muitas e longas citações, deixando aos outros 234

Id. ib., p.85. Sobre higienismo e saber médico na virada do século, ver, por exemplo, SCHWARCZ, op.cit., p.189-238. 235 NUNES, Maria Thétis (n.1923). Manoel Bomfim: 1868-1932. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, 1994, p.558. 236 Id. ib., p.563 e 565-6.

leitores a tarefa de confirmar suas conclusões. Surge a imagem de um ardoroso nacionalista, admirável, apesar da “prolixidade” e dos “exageros”. Um pensador pioneiro, apaixonado pelo Brasil. É preciso destacar que Nunes era, na época em que o artigo foi publicado, presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Sergipe, do qual Manoel Bomfim passou a fazer parte, a partir de 1912, como sócio correspondente. Pode-se interpretar a escolha dessa prefaciadora como o reconhecimento póstumo de um Instituto, que foi uma das instâncias de consagração intelectual e científica mais importantes do início do século. 237 O último texto desta série de publicações é o de Francisco Iglésias (1923-1999), Historiadores do Brasil. 238 Trata-se de um balanço da historiografia brasileira, desde 1500 até os anos de 1930. Ao analisar o período que vai de 1838 a 1931, Iglésias se detém nos historiadores que teriam ido além de Varnhagen – marco entre os historiadores do século XIX – inaugurando novos parâmetros de produção historiográfica no país. Entre esses estaria Manoel Bomfim. Refere-se ao autor como “um pedagogo, em busca de soluções, não o simples erudito empenhado em análise supostamente científica”. Focalizando sua “obra histórica”, 239 Iglésias destaca que Bomfim: “fala demais em organicismo, em fatores biológicos, hereditariedade, degeneração”, mas também denuncia a alienação dos grupos dominantes – produto da incapacidade de observar a realidade e do excesso de cultura livresca. Acusa-o de lusofobia, mas destaca seu anti- racismo, assim como o apreço pelo índio, pelo negro e pelo mestiço, “atitude que o recomenda”. Afirma que ele não teria compreendido o caráter real do imperialismo, pois, embora tivesse percebido o processo de dominação entre nações, desprezara a luta de classes. Apesar de considerá- lo prospectivo ao propor a educação como solução, conclui que a defesa da instrução retirou a força de sua análise, cuja expectativa é considerada otimista. 240 Compara Bomfim a Alberto Torres, com a ressalva de que este último seria autoritário em política, enquanto o primeiro possuiria abertura para o socialismo, incluindo algumas formas radicais. Do ponto de vista historiográfico, considera as análises de Bomfim frágeis, lembrando que ele não era pesquisador de arquivos. O que o torna interessante é a análise –

237

Sobre os institutos históricos na virada do século, ver SCHWARCZ, op.cit., p.99-140. A referência a participação de Bomfim no IHGS é feita por AGUIAR, op.cit., p.185, nota 335. 238 IGLÉSIAS, Francisco. Segundo momento: 1838-1931. In : _____. Historiadores do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG, IPEA, 2000, p.55.179. 239 A “obra histórica” de Bomfim seria compostas pelos livros já citados: A América Latina (1905); O Brasil na América (1929); O Brasil na história (1930); e O Brasil nação (1931). 240 IGLÉSIAS, op.cit., p. 150-1.

“quase sempre original” – que fez do material publicado. Considera sua visão sobre a trajetória do país como vanguardista. 241 Observa um agudo senso crítico no autor, que defende a necessidade de repensar a história do Brasil, considerada conservadora. Questiona se Bomfim não terá sido o criador da expressão “história oficial” e conclui que ele “dá contribuição apreciável, pela leitura do processo convencional e dos autores, mas não pesquisa”. Considera suas interpretações discutíveis e lembra a importância de um brasileiro escrever sobre a América Latina no início do século, o que atesta seu “pioneirismo”. Outros aspectos destacados referem-se ao brasileirismo e à crença no “caráter nacional” (hoje condenada como “história psicologizante”). 242 Iglésias considera curioso o fato desse autor – “tão instigante e provocativo” – ter ficado em segundo plano. Sobre seus livros, diz que tiveram edições precárias e, se repercutiram quando publicados, não obtiveram eco devido. Avaliando o silêncio sobre esse intelectual “singular”, defende que ele foi esquecido devido a “preconceitos conservadores”, dos quais escapou por possuir “superioridade intelectual digna de reverência”. Conclui classificando Bomfim mais como um pensador social que historiador, sobretudo, por não ter sido um pesquisador. Elogia seu instrumental teórico, que lhe teria permitido analisar melhor o processo histórico, ainda que suas interpretações tivessem muitas lacunas. Conjugando “sentido crítico, sensibilidade e intuição”, ele conseguiu um lugar na historiografia do país. 243 Quando se pensa na memória construída sobre um autor, é preciso considerar o lugar que lhe foi atribuído entre outros pensadores e o tipo de relações traçadas a partir de seus textos. O trabalho de Iglésias dá um passo significativo no sentido de atribuir um lugar a Bomfim no âmbito da história da historiografia no Brasil, ainda que conclua que ele não era um historiador. Além disso, o intérprete o classifica como um autor singular, dotado de senso crítico, com perspectiva vanguardista, ajudando a consolidar as interpretações sobre Bomfim que compartilham tais classificações.

Prefácios Algumas leituras sobre Bomfim foram produzidas ao longo dos anos 90, por ocasião do relançamento de três de seus livros. Por constituírem um volume muito pequeno de prefácios, optei por apresentá- los para, em seguida, fazer uma análise do conjunto. Assim,

241

Id. ib., p.151-2. Id. ib., p.152-5. 243 Id. ib., p.150 e 158. 242

foram selecionados os seguintes leitores: Franklin de Oliveira, Maria Thétis Nunes, Wilson Martins e Ronaldo Conde Aguiar. Franklin de Oliveira 244 escreveu o prefácio da terceira edição de A América Latina, em 1993. O título do texto é Manoel Bomfim: o nascimento de uma nação.245 O intérprete parte da hipótese de que os historiadores brasileiros, servindo-se de óticas fornecidas por outros países, produziram interpretações sobre o Brasil marcadas pela “desfiguração total do país e do povo”. 246 Procura situar Bomfim como um autor combativo, cujo esquecimento teria sido impingido pelos “garçons do poder”. Afirma que ele praticava o que hoje se denomina “história combatente”, por ter se posicionado contra as teorias racistas e apontado o que seriam “vícios” da formação nacional. Refere-se a ele como “um autêntico reformador social”; um intelectual que “soube ver muito além de sua época”; mais que um renovador, “um autêntico revolucionário”; “um forjador de novas verdades sociais e humanas, de um humanismo incessantemente refeito”. Conclui ressaltando que seu livro deve ser “lido e relido constantemente”. 247 Maria Thétis Nunes escreveu o prefácio da segunda edição de O Brasil na América, lançada em 1997 – Manoel Bomfim: pioneiro de uma ideologia nacional. Repete alguns argumentos do artigo publicado anteriormente, quando tenta explicar o esquecimento de Bomfim devido ao avanço de suas idéias, que teriam incomodado as elites dirigentes, sendo, por isso, legadas ao ostracismo. Situa sua obra como das mais lúcidas na compreensão da realidade nacional, além de destacar o nacionalismo como principal traço do autor – “um dos mais autênticos pioneiros da ideologia nacional” – e lembrar que sua atuação educacional foi importante. 248 Wilson Martins 249 publicou dois textos por ocasião do relançamento dos livros de Bomfim. Em 1993, produziu O Brasil na América, 250 sobre o livro A América Latina e, em

244

Franklin de Oliveira (n.1916) escreveu Que é a revolução brasileira? (1963), Euclides: a espada e a letra (s/d), etc. 245 OLIVEIRA, Franklin de. Manoel Bomfim: o nascimento de uma nação. In: BOMFIM, Manoel. A América Latina, op.cit., 1993, p.21-28. 246 Id. ib., p.21 247 Id. ib., p.26-8. 248 NUNES, Maria Thétis. Manoel Bomfim: pioneiro de uma ideologia nacional. In : BOMFIM, Manoel. O Brasil na América, op.cit., p.13-4 e 25. 249 Lembro que Wilson Martins (n. 1936) é crítico literário, tendo se dedicado ao estudo da história das idéias no Brasil. Seu trabalho mais conhecido é a História da inteligência no Brasil, em sete volumes, reeditado várias vezes. Foi professor na Universidade do Paraná, tendo obtido o grau de doutor na França, com a tese Les théories critiques dans l’histoire de la litterature (1952). Escreveu Introdução à democracia brasileira (1951), Imagens da França: livros, homens, coisas (1952), A crítica literária no Brasil (1952), Um Brasil diferente (1955), etc. 250 MARTINS, Wilson. O Brasil na América. In : Pontos de vista: crítica literária, n.7. São Paulo: T. A. Queiroz, 1991.

1996, escreveu o prefácio da segunda edição de O Brasil nação. O título desse último texto é Profeta da quinta revolução.251 Em O Brasil na América, Martins alerta para o risco de se tentar ler Bomfim como um autor isolado. Depois, afirma que ele escreveu A América Latina “em Paris e de Paris”, ou seja, num determinado contexto e a partir de uma perspectiva européia. Além disso, procura situar o livro entre os estudos brasileiros surgidos em decorrência do quarto centenário de descobrimento do Brasil. Observa que a reedição desse livro é apresentada em termos de polêmica, contrapondo-se Bomfim aos pensadores “racistas”, seus contemporâneos, entre os quais Euclides da Cunha, Silvio Romero e Nina Rodrigues (1862-1906). 252 O principal ponto a ser destacado desse texto é a tentativa de apontar um aspecto tendencioso na reedição de A América Latina. Este aspecto seria a “falsificação” do pensamento de seu autor, no que diz respeito à assimilação do Brasil à América Latina e, ainda, em relação a sua posição frente à homologia entre o biológico e o social e, diante do racismo. Lembra que, no livro em questão, ao invés de associar o Brasil à América Latina, Bomfim teria proposto a demarcação de nossa especificidade, defendendo a tese de que a América Latina não existia, sendo apenas um conceito. Sobre a homologia entre organismo biológico e sociedade, afirma que o autor acompanhava a ciência da época, que propunha tal associação. E quanto ao racismo, considera o termo mal aplicado. Para Martins, a palavra racial não tinha, até a primeira década do século XX, a conotação que viria a adquirir posteriormente. As hipóteses dos cientistas seriam raciais, mas, não, racistas; diferença que foi perdida pelos intérpretes posteriores do período. Conclui dizendo que A América Latina não deve ser lido como representativo do pensamento final de Bomfim e reafirmando que não se trata de um pensamento isolado do ambiente histórico em que foi produzido. 253 O prefácio que escreveu para O Brasil nação procura situar Bomfim como “preconizador da Revolução brasileira”, destinada a “coroar o triunfo nacionalista do Brasil”. 254 Ao mesmo tempo, Martins critica a filosofia da história do autor, segundo a qual, “os ‘antescedentes históricos’ teriam condicionado para sempre nossa vida pública”. Afirma que “seu silogismo era algo simplista” – quando não “arbitrariamente polêmico”, “tendencioso” e “contraditório” – na observação da permanência de determinadas características da vida política brasileira. Intelectual panfletário, teria ficado preso num

251

Id., Profeta da quinta revolução. In: BOMFIM, Manoel. O Brasil nação, op.cit., p.13-21. Id., Pontos de vista, op.cit., p.243-4. 253 Id. ib., p.244-45. 254 Id. Profeta da Quinta Revolução, in op.cit., p.16-7. 252

impasse: o de que a “idade de ouro” do país estaria, simultaneamente, num passado perdido e num futuro inatingível. 255 Além do prefácio de Martins para O Brasil nação, há um segundo prefácio escrito por Ronaldo Conde Aguiar para o mesmo livro, que o intérprete considera como uma espécie de súmula do pensamento de Bomfim acerca da história e da política brasileiras; uma “obra madura”, onde o autor teria substituído o que Aguiar denomina “viés ilustrado” por uma visão mais concreta e objetiva da realidade. Afirma que o livro foi bem recebido na época em que foi publicado pela primeira vez, em 1931, o que compreende como demonstração do enorme prestígio de Bomfim. 256 Aguiar procura situar o livro em relação à “obra histórica” de Bomfim. Assim, faz um pequeno resumo de A América Latina, O Brasil na América e O Brasil na história, em relação aos quais, O Brasil nação poderá ser mais bem compreendido como “obra máxima”, síntese do pensamento do autor. Refere-se a este último como “um homem reflexivo, embora fosse também um homem extremamente apaixonado”. Destaca que ele dizia o que pensava, “com a paixão própria dos autores não coniventes e irredentistas”. Também aponta como marcas da obra de Bomfim: o “ceticismo” e a “amargura” (ingredientes que o intérprete considera necessários a todas as obras que proponham soluções sérias para o país); a elaboração de um contradiscurso; o desmascaramento do racismo científico; a perspectiva nacionalista e popular; a defesa da democracia; e a discussão do tema da identidade nacional. Conclui afirmando a atualidade do texto de O Brasil nação, o que serviria para confirmar que “a triste sina do Brasil e do seu povo é lidar permanentemente como os mesmos e irresolvidos problemas da sua formação histórica”. 257 Com exceção de Wilson Martins, todos os outros prefaciadores de Bomfim citados procuram apresentá- lo destacando suas características e elogiando, principalmente, sua autenticidade e combatividade. Quando o criticam, o fazem, sobretudo, em relação a sua retórica ou àquilo que identificam como sendo o “viés ilustrado” de suas idéias. Martins procura situá- lo de modo um pouco mais crítico, levantando suspeitas sobre o modo como a sua reedição vem sendo apresentada, ainda que também o situe como um “preconizador”, um “profeta da quinta revolução”, conferindo- lhe uma posição singular e pioneira. Os textos de Nunes, Martins, Oliveira e Aguiar não constituem os únicos prefácios de livros de Manoel Bomfim. Outros autores, como Azevedo Amaral e Carlos Maul, nos anos 30, também produziram esse tipo de texto e serão focalizados ainda neste capítulo. Lembro, 255

Id. ib., p.18-21. AGUIAR, Ronaldo Conde. Um livro admirável. In: BOMFIM, Manoel. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.22 e 30. 257 Id. ib., p.22, 25-6, 28 e 31. 256

também, que o artigo de Darcy Ribeiro (já analisado), publicado na Revista do Brasil, em 1984, foi incluído como prefácio da terceira edição de A América Latina, em 1993. Voltando à questão da memória sobre Bomfim, os prefácios parecem exercer um papel fundamental no trabalho de enquadramento dessa memória, qual seja: apresentar o trabalho do autor e situá- lo como alguém que deve ou merece ser lido. Tais textos são parte integrante dos livros que anunciam e fornecem pistas sobre quem ou o que se irá ler, às vezes, indicando como deve ser lido. De acordo com Jean Marie Goulemot, ler faz emergir a “biblioteca vivida”, ou seja, trás à tona a memória de leituras anteriores e de dados culturais. Neste sentido, não existiria uma compreensão autônoma do que é dado a ler, mas a articulação em torno de uma “biblioteca do texto lido”. 258 Tendo isso em mente, ao refletir sobre o lugar do prefácio na construção da memória sobre Bomfim, é possível pensá- lo como uma espécie de memória imediata – porque acompanha o livro – oferecida pelo prefaciador. O leitor do livro poderá recorrer ao prefácio em busca de uma chave para a leitura. Ali, ele encontrará indicações que, durante o trabalho de ler, poderá recordar, confirmando ou negando a perspectiva do prefaciador. Em suma, o prefácio cria uma certa expectativa sobre o livro e seu autor. Expectativa que poderá ser confirmada ou não. Diferente dos outros textos produzidos sobre Bomfim – os estudos acadêmicos, as resenhas de livros publicadas em jornais e os artigos especializados – os prefácios, por estarem atrelados aos textos sobre os quais falam, possuem a condição de atravessar o tempo. É assim que podemos ler hoje, no início do século XXI, o prefácio escrito nos anos 30 do século passado, recuperando outros modos de ler, outros contextos informando a leitura. Tendo percorrido as leituras mais recentes sobre Bomfim, produzidas ao longo das décadas de 80 e 90, assim como os prefácios das edições mais recentes de seus livros, escritos nos anos 90, proponho viajar para um período mais distante, o início do século XX, buscando as primeiras leituras sobre o autor. Dois intérpretes/leitores serão analisados com mais vagar: Silvio Romero e José Veríssimo, por serem considerados os principais críticos literários do período em questão. Também foram incluídas algumas referências às leituras realizadas por Mendonça Curvello e Monteiro Lobato.

258

GOULEMOT, Jean Marie. Da leitura como produção de sentidos. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 113 e 115.

Leituras produzidas por contemporâneos de Bomfim Após o lançamento de seu primeiro livro, em 1905, Bomfim recebeu críticas de Silvio Romero, publicadas em vinte e cinco capítulos na revista literária Os Annaes.259 Posteriormente, tais críticas foram reunidas no livro A América Latina; análise do livro de igual título do Dr. Manoel Bomfim (1906).260 Parte dessa crítica também circulou através do livro Provocações e debates (1910). 261 Silvio Romero (1851-1914) era bacharel em Direito pela Escola do Recife. Fez parte da chamada “geração modernista de 1870”, que defendeu bandeiras de modernização social e política. No final do século XIX começou a atuar na Corte como crítico literário, tornando-se conhecido por sua capacidade agressiva de suscitar polêmicas e controvérsias. Escritor passional, cultivou inúmeras inimizades e rixas que se tornaram célebres. De acordo com Roberto Ventura, as polêmicas criadas por Romero veiculavam opiniões e julgamentos desenvolvidos em seus textos críticos. Também serviam para trazer o debate literário para o plano da discussão entre personalidades, o que seria um traço característico da intelectualidade brasileira de fins do século XIX, preocupada em enfatizar retoricamente sua individualidade e originalidade. Além disso, tais polêmicas eram estabelecidas muito mais por motivos pessoais ou disputas pelo poder intelectual do que devido a diferenças teóricas ou ideológicas. 262 Na crítica de Romero ao livro de Bomfim, observam-se tais características. Tanto o livro quanto a pessoa de seu autor foram atacados. O intérprete refere-se ao livro como “um acervo de erros, sofismas e contradições palmares”. Ressalta que “só a geral ignorância do mundo legente no Brasil pode explicar a atenção despertada por um livro tão mal feito, tão falso, tão cheio dos mais grosseiros erros”.

263

Ocupa-se em repassar todos os capítulos do trabalho de Bomfim, apontando-lhe os erros. Diz que sua base científica é falsa, assim como seus pressupostos históricos, etnográficos e econômicos. Acusa o autor de repetir “blasfêmias e despautérios indignos dum homem de cultura, por pequena que seja”. 264

259

ROM ERO, Silvio. Uma suposta teoria nova da história latino-americana. Os Annaes, ano II, nos .54-79, 1905/1906. 260 Id., A América Latina, já citado. 261 Id., A propósito de América Latina (ao Diretor da Revista Os Annaes, 1906). In: Provocações e debates (contribuições para o estudo do Brasil social. Porto: Chardron, 1910. 262 VENTURA, op.cit., p.72, 77-8 e 146. 263 ROMERO, A América Latina, op.cit., p.11 e 92. 264 Id. ib., p.12 e 67-8.

Chama a atenção a critica que faz a Bomfim por não seguir a “severa trilha da ciência”. 265 Seguidor da Escola das Ciências Sociais de Frédéric Le Play (1806-1882),266 Romero preparava, no momento em que A América Latina foi lançado, um estudo intitulado O Brasil social. 267 De acordo com alguns intérpretes, Bomfim o teria antecipado, abordando temas semelhantes, 268 o que teria provocado sua ira. De qualquer forma, a crítica de Romero seguiu no mesmo tom, quando publicada em 1910, em outro livro: Provocações e debates, de 1910, onde aconselha Bomfim dizendo: “larga essa história de letras, Manoel; toma meu conselho: não tens embocadura pra isso. Larga, larga e vá por aí a receitar drogas e purgantes. Mesmo nisso não farás boa figura, porque és pouco inteligente (...)”. 269 José Murilo de Carvalho chama a atenção para os indícios de uma cultura marcada pela retórica nos escritos do século XIX. Observa que, na retórica clássica, ao contrário da argumentação racional (ou lógica), cujo objetivo seria apenas convencer, a moral do orador tinha o mesmo peso de seus argumentos. Assim, o trabalho de desqualificar um opositor exigia o ataque a sua qualificação moral. 270 A leitura empreendida por Romero – marcada pelas práticas da crítica e das polêmicas literárias – contém tais indícios. Do tipo de leitura feita por Romero, emerge um Manoel Bomfim desacreditado, um “preasinho literário”, um escritor que tem “vivido a dizer tolices, erros e disparates”. 271 Tal crítica fará parte da memória sobre Bomfim como exemplo da leitura equivocada, apaixonada ou invejosa, ajudando outros intérpretes a compor um retrato do autor criticado como injustiçado e incompreendido em seu próprio tempo. Outro tipo de leitura foi feita por José Veríssimo (1857-1916), um dos principais interlocutores de Romero. De acordo com Roberto Ventura, Veríssimo representaria uma espécie de ruptura com o modelo de crítica literária feito até então. Ele teria procurado separar as paixões presentes na crítica naturalista ao adotar métodos estéticos, afastando-se do tom 265

Id. ib., p.12. Pierre Guilhaume Frédéric Le Play, engenheiro e economista francês, desenvolveu métodos de estudo sociológico identificados como Escola de Ciencia Social ou Escola de Le Play. Foi o fundador da Société d’Économie Sociale, dedicada ao estudo monográfico de organizações familiares, com base em estatísticas orçamentárias e em certo determinismo geográfico. Os trabalhos da Société eram divulgados através do periódico La Reforme Sociale, criado em 1881 e que, após a morte de Le Play, passou a se chamar La Science Sociale Suivant la Méthode de Le Play (1886). Silvio Romero foi um destacado divulgador das idéias de Le Play, para quem a família – considerada como a célula básica de toda sociedade – era uma peça importante para o controle social. Ver, por exemplo, ROMERO, Silvio. Os métodos e processo da Escola de Le Play. In : _____. História da Literatura Brasileira, tomo I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943 (1888), p.177-253, 3a. edição. Sobre Le Play, ver VARGAS, Eduardo Viana. Antes Tarde do que nunca. Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p.53-56 e p.99-102. 267 Publicado com o título de O Brasil social. Vistas sintéticas obtidas pelos processos de Le Play. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1907. 268 Ver, por exemplo, MELLO, op.cit., p.8; e MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, vol 5 (1897-1914). São Paulo: T.A. Queiroz, 1996. p.297. 269 ROMERO, Provocações de debates, op.cit., p.224 e 234. 270 CARVALHO, op.cit., p.135. 271 ROMERO, op.cit., p.224. 266

contestatório que caracterizava a “geração de 1870”. Em suma, este crítico questionava a eficácia da polêmica. 272 Veríssimo começa sua crítica afirmando que a “mácula principal” do livro de Bomfim seria a “informação falha e incompleta”. Acusa-o de incoerência – quanto às opiniões e aos conceitos – e defeitos de composição. Apesar disso, reconhece seus méritos. Diz serem louváveis as aspirações de interpretar o Brasil em relação à América Latina. Refere-se a Bomfim como um “espírito culto, uma inteligência iluminada”. Conclui dizendo que seu livro, apesar dos defeitos, “não é nem banal, nem medíocre e revela no seu autor nobilíssimo gosto e aptidão não vulgar para estudos sérios e trabalhos de fôlego”. Seu grande mérito seria, justamente, provocar discussão. 273 Essa polêmica criada sobre o livro de Bomfim será retomada, sobretudo, pelas interpretações mais recentes, produzidas nas pós-graduações. Retomada que contribui, como foi dito, para situar o autor em seu próprio tempo – entre seus pares intelectuais – como alguém polêmico e incompreendido. Outras leituras sobre Bomfim merecem destaque, ainda que, sejam rápidas menções ao seu nome. 274 Uma delas foi feita por Mendonça Curvello, 275 num texto intitulado O movimento socialista no Brasil. 276 O objetivo do autor era fazer um balanço sobre as diversas formas de divulgação das “modernas doutrinas sociais no Brasil”. Bomfim é incluído entre os “plantadores” ou divulgadores do socialismo no Brasil, ao lado de Evaristo de Moraes (1871-1939), Fábio Luz (1864-1938), etc. 277

Esta simples

menção pode adquirir um significado maior quando relacionada a outras interpretações que situam Bomfim como um dos precursores do socialismo no Brasil e, conseqüentemente, como um pensador de esquerda ou de oposição. 272

VENTURA, op.cit., p.116-7. VERÍSSIMO, José. Livros e autores de 1903 a 1905. In : Estudos de literatura brasileira, 6a. série. Belo Horizonte, MG: Itatiaia; São Paulo: USP, 1977. Originalmente publicado em 1905. p. 126-7. 274 As idéias de Bomfim foram recuperadas pela corrente nacionalista de Álvaro Bomílcar (c.1878), nos anos 20. Este escritor explicaria que a pouca importância dada a Bomfim deveu-se a suas idéias contrárias aos portugueses, que controlavam a imprensa da época, impedindo sua divulgação. Deveria ser incluída nesta parte, a leitura sobre Bomfim feita por Bomílcar, em A política no Brasil ou o nacionalismo radical, publicado em 1920. Infelizmente, esse livro não estava disponível nas principais bibliotecas cariocas (Biblioteca Nacional, IHGB, Fundação Getúlio Vargas e Fundação Casa de Rui Barbosa). Bomílcar foi representante de uma importante corrente nacionalista dos anos 10 e 20, tendo sido um dos pioneiros na valorização da mestiçagem. Ele referiu -se a Bomfim como um dos autores que deveriam ser lidos para se compreender o país. Ver Lúcia Lippi de Oliveira, op.cit., p.138. 275 Não foram localizadas informações sobre Mendonça Curvello, nas obras de referência utilizadas. 276 CURVELLO, Mendonça. O movimento socialista no Brasil. Almanaque Brasileiro Garnier. Rio de Janeiro: Garnier, ano III, 1905. p.272-77. 277 Lembrando: Evaristo de Moraes foi um dos mais importantes advogados de seu tempo. Dedicou-se à causa operária e publicou, entre outros livros: Da monarquia à República, A campanha abolicionista, Apontamentos de direito operário, A escravidão africana no Brasil, etc. Fábio Lopes dos Santos Luz, médico (Bahia, 1883) e escritor baiano, dedicou-se à psicologia. Além de estudos científicos, publicou ensaios literários, entre os quais O ideólogo (1905). 273

Outra leitura foi feita por Monteiro Lobato (1882-1948), através de uma carta a Godofredo Rangel (1884-1951), datada de 1908. 278 Fala do estilo de Manoel Bomfim que, ao lado de outros escritores “nortistas” – Silvio Romero e Rodolfo Teófilo (1853-1932) – possuiria uma escrita cuja forma foi associada por Lobato a uma “estrada de rodagem sem pavimentação, toda cheia de buracos e pedras”. Para o intérprete, “o mal português mata a maior idéia, e a boa forma até duma imbecilidade faz jóia”. 279 A interpretação de Lobato é marcada pela crítica ao estilo de escrita difícil, tortuoso e ambíguo de Manoel Bomfim. O que importa destacar, considerando uma memória sobre esse autor, é que, a leitura que sobre ele é feita também se orienta por critérios estético- literários que, por sua vez, correspondem a demandas sócio-culturais sobre o que e como se deve escrever. Após percorrer algumas das primeiras leituras sobre Bomfim, observemos como o autor foi lido após sua morte, nos anos 30 e 40.

Leituras produzidas nos anos 30 e 40 Chegamos aos anos 30, quando Bomfim será retomado por intelectuais ligados ao Estado Novo (1937-1945). Em meados da década, Carlos Maul (1889-1973) 280 organizou uma antologia de textos de Bomfim extraídos de sua trilogia: O Brasil na América (1929), O Brasil na história (1930) e O Brasil nação (1931). O livro é chamado de O Brasil, tendo sido publicado em 1935 e reeditado em 1940. 281 Maul escreveu uma nota explicativa como introdução do livro e é este texto que será tomado aqui como uma das leituras sobre Bomfim feitas no período. Nela o organizador procurou justificar a opção por sintetizar a trilogia, selecionando determinados trechos que considerou mais significativos do pensamento do autor. Afirma que o livro reúne “o fundamental da trilogia”, destacando como aspectos marcantes de Bomfim: a revisão da história do Brasil; a percepção das vantagens do cruzamento racial; as idéias sobre a organização da sociedade e a expansão econômica, desde a colônia até os anos 30. Também 278

LOBATO, Monteiro. Carta a Godofredo Rangel, 01/11/1908. In: A barca de Gleyre. Quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. São Paulo: Brasiliense, 1a. série, tomo 1, vol.11, 1948. p.223. Godofredo Rangel estudou Direito (São Paulo) e atuou como juiz e professor, em Minas Gerais. Autor de contos e romances, era amigo pessoal de Lobato. 279 Id. ib., p.223. 280 Carlos Maul colaborou com os seguintes jornais e revistas: Imprensa, A Notícia, O País, O Imparcial, Gazeta de Notícias, Tribuna, Correio da Manhã, Ilustração Brasileira e O Malho. Costumava escrever sobre política internacional. Foi deputado estadual pelo Rio de Janeiro, em 1929. Escreveu História da Independência (1920), A marquesa de Santos (1938), O exército e a nacionalidade (1950), etc. 281 BOMFIM, Manoel. O Brasil. Com uma nota explicativa de Carlos Maul. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. 349p. (Biblioteca Pedagógica Brasileira, vol. XLVII). 2a. ed., 1940.

menciona as interpretações sobre “o Brasil de amanhã”, comparando-as com as reformas sociais que se operavam naquele momento pelo Estado Novo. Observa-se que os trechos da trilogia selecionados referem-se à relação entre portugueses, índios e negros na colônia; invasões estrangeiras no mesmo período; críticas à deturpação da história pela historiografia; textos sobre o nacionalismo, a tradição antiportuguesa e a tradição republicana; políticas do Império; revoltas no período regencial e processo de Independência; a Guerra do Paraguai; a abolição; a propaganda republicana; a relação entre república e revolução, o militarismo na República; o conservadorismo brasileiro, a questão racial e a imigração. Foram omitidos temas referentes à revolução de 1930, à miséria da população e ao materialismo, todos presentes nos livros de Bomfim. Maul refere-se a Bomfim como “mestre”, cuja obra seria “profundamente brasileira”, servindo de base para a compreensão da formação da nacionalidade. Afirma que não se trata de uma obra para ser lida e compreendida facilmente por qualquer leitor, mas apenas por “aqueles que se habituaram à pesquisa e à especulação dos fenômenos humanos”. Outra leitura dessa época foi feita por Azevedo Amaral (1883-1950). 282 Em 1934, no livro O Brasil na crise atual, ele menciona Bomfim ao analisar a história da colonização brasileira. Refere-se a sua obra como “valiosa” por fornecer documentação sobre o processo de “recalcamento da brasilidade”, ocorrido durante o período colonial. Menciona dois livros: O Brasil na América (1929) e O Brasil na história (1930), destacando a abordagem do problema da mestiçagem e chamando a atenção para a teoria desenvolvida por Bomfim de que o Brasil fora criado mediante a expansão e defesa contra inimigos externos. Esse movimento de luta é que teria moldado a “personalidade nacional”. 283 Em 1938, Amaral promoveu a segunda edição de A América Latina (1905), 284 dizendo que não pretendia, exatamente, escrever um prefácio. Na verdade, havia preferido fazer uma homenagem a Manoel Bomfim, cuja atuação considerava insuficientemente avaliada. Apresentou o livro como “destinado a tornar-se um clássico na nossa biblioteca sociológica” e o incluiu entre aqueles que são escritos sob a pressão de determinadas circunstâncias, que obrigam a expandir o trabalho até convertê- lo em grande obra literária, “um estudo tão objetivo e tão claro da realidade histórica e atual do nosso continente”. Também destacou o

282

Trata-se de Antônio José Azevedo Amaral médico, educador e jornalista. Foi correspondente dos jornais Correio da Manhã, A Notícia, Gazeta de Notícias e do Jornal do Commercio em Londres. Escreveu Ensaios brasileiros (1930), Estado autoritário e realidade nacional (1938), Getúlio Vargas estadista (1941), etc. Foi um dos principais ideólogos do Estado Novo. Ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Autoridade e política: o pensamento de Azevedo Amaral. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi, VELLOSO, Mônica Pimenta e GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p.48-70. 283 AMARAL, Azevedo. O Brasil na crise atual. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1934. Série Brasiliana, 31. p.175. 284 Essa segunda edição de A América Latina foi publicada pela editora A Noite.

“espírito de brasilidade” do autor, um “inolvidável pioneiro dos estudos sociológicos entre nós”. Indicou sua tradução para outras línguas, por considerá- lo importante para a divulgação da cultura brasileira, assim como o recomendou para um “público inteligente e culto, aos que entre nós sabem ler livros desse calibre”. 285 Referiu-se a Bomfim como um “grande brasileiro”, apesar de divergir de algumas de suas idéias. Classificou-o como “um dos primeiros que contribuíram eficazmente para despertar na consciência brasileira a ânsia de encontrar a própria realidade”. Desta forma, Bomfim é situado como “um dos mais esclarecidos precursores do movimento de realismo político”; um autor capaz de romper com a visão ufanista do país que marcara o início do século XX. Apesar desta opinião favorável, considerou alguns conceitos aplicados na interpretação da colonização do Brasil como “severos” e “injustos”. 286 Concluiu dizendo que, as transformações políticas, sociais e econômicas ocorridas no Brasil daquele momento só foram possíveis graças a uma preparação cultural, capaz de imprimir diretrizes novas ao pensamento das elites dirigentes. Bomfim teria contribuído para essa preparação. Considerava o momento histórico – marcado pelo primeiro aniversário do Estado Novo – propício para focalizar seu nome e sua obra. Para Azevedo Amaral, a reedição desta última seria a expressão do reconhecimento nacional a “um dos mais esclarecidos precursores do movimento de realismo político, que nos integrou afinal no curso normal da nossa evolução histórica”. 287 Outro leitor de Bomfim foi Almáquio Diniz (1880-1937) 288 que, em 1934, publicou um livro intitulado Preparação socialista do Brasil. 289 No capítulo A revolução social no Brasil, há uma segunda parte denominada Definidores. É aí que encontramos Manoel Bomfim. O objetivo de Diniz era apresentar, através do encadeamento de autores e idéias, as etapas da preparação socialista do Brasil. O intérprete argumenta que haveria um tipo de seqüência de idéias, com origem em Manoel Querino e Manoel Bomfim, passando por Euclides da Cunha, Fausto Cardoso (1864-1906) e Graça Aranha (1868-1931), 290 285

AMARAL apud BOMFIM, A América Latina, op.cit., 1993, p.29-31. Id. ib., p.31-2. 287 Id. ib., p.32. Apesar das opiniões favoráveis de Azevedo Amaral para com a obra de Manoel Bomfim, Ronaldo Conde Aguiar menciona que entre as instruções do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) – órgão criado em 1939, responsável pela censura e pela divulgação do ideário estado novista – estava a de não se reeditar os livros de Bomfim. Os jornais e revistas também teriam recebido a recomendação de evitar a citação de seu nome ou a referência a seus livros, os quais teriam sido retirados das bibliotecas públicas. Essa informação foi dada a Aguiar por Luiz Paulino Bomfim, neto de Manoel. Ver AGUIAR, op.cit., p.350. 288 Almáquio Diniz Gonçalves nasceu na Bahia. Estudou Direito na Faculdade do Recife (1899) e atuou como professor e jornalista. 289 DINIZ, Almáquio. Preparação socialista do Brasil. Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1934. 290 Fausto de Aguiar Cardoso, advogado, político e escritor sergipano. Estudou Direito na Escola do Recife. Escreveu Taxionomia social (1898), onde defendia uma concepção da história como repetição sumária da 286

contribuindo como preparadoras para a compreensão de um quarto Estado, revolucionário em relação ao Estado político existente. Refere-se a Bomfim como “defensor da solução comunista”; como “primeiro verbo da campanha nacional da boa distribuição da terra”; “prosélito da reforma igualitária”. Porém, ao mesmo tempo em que destaca sua lucidez, afirma que ele não teria enxergado corretamente o verdadeiro proletário brasileiro ou que talvez tenha compreendido mal as tendências socialistas que se anunciavam. 291 Ainda nos anos 30, Nélson Werneck Sodré (1911-1999) 292 publicou pela primeira vez sua História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos.293 Nessa primeira edição, as referências a Bo mfim são menores do que nas edições seguintes. De qualquer forma, fica registrado que se trata de uma leitura produzida durante os anos 30. Foi o primeiro livro a publicar referências biográficas sobre o autor em questão. O objetivo de Sodré era identificar os fundamentos da produção literária brasileira, ultrapassando as análises que se restringiam a enumerar as escolas ou as tendências de pensamento. Refere-se à obra de Bomfim como “unilateral e falha em alguns pontos”, porém, a considera digna de apreço por reconstruir o desenvolvimento do país. Sodré também publicou, em 1945, o livro intitulado O que se deve ler para conhecer o Brasil. 294 Fora convidado pelos editores para elaborar o que consideravam como “um roteiro para desvendar o nosso país”. De acordo com os editores, o livro – “escrito com concisão e honestidade” – foi feito com o intuito de “orientar e disciplinar” os leitores interessados em conhecer o Brasil. Bomfim é citado duas vezes: a primeira, como uma das fontes secundárias para o estudo das Minas Gerais, dos emboabas e da Inconfidência; a segunda como uma das fontes principais para o estudo do período que vai da Independência à Maioridade de Pedro II. Diz Sodré que o livro O Brasil na História (1930) possui “defeitos insanáveis”, oriundos da paixão do autor, de seus “pontos de vista irredutíveis” e de seus “ângulos indeformáveis”. Porém, destaca que ali estão expressos aspectos que outros não teriam visto.

história orgânica. Também é o autor de Concepção monística do universo (1894). José Pereira da Graça Aranha nasceu no Maranhão. Foi diplomata, romancista, crítico literário e ensaísta. Estudou Direito no Recife. Colaborou com a Revista Brasileira. Autor de Canaã (Londres , 1902; Brasil, 1903). 291 DINIZ, op.cit., p.205. 292 Lembrando: Nélson Werneck Sodré, militar de carreira, dedicou-se a escrever sobre história, tendo sido, provavelmente, um dos autores brasileiros mais publicados e reeditados. Além da História da literatura brasileira (1938) que, em 1976, estava na sua 6a edição, e de O que se deve ler para conhecer o Brasil (1945; 6a ed., 1988), também escreveu: Orientações do pensamento brasileiro (1942); Introdução à revolução brasileira (1958; 4a ed., 1978); A Ideologia do colonialismo (1961); Formação histórica do Brasil (1962); As razões da independência (1965; 3a ed., 1978); Síntese da história da cultura brasileira (1970; 9a ed., 1981), etc., etc. 293 SODRÉ, Nélson Werneck. História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos. Rio de Janeiro: [Civilização Brasileira], 1938. 294 Id., O que se deve ler para conhecer o Brasil. Rio de Janeiro: Cia. Editora Leitura, 1945.

Afirma que só a injustiça ou uma paixão inversa a do autor deixaria de lhe reconhecer a lucidez. 295 Observa-se no período em questão dois movimentos distintos no sentido de enquadrar a memória sobre Bomfim: o primeiro procura situá- lo como um autor importante para o Estado Novo, em cujo primeiro aniversário ele é reeditado; o segundo busca relacioná- lo ao pensamento socialista brasileiro, situando-o como um dos definidores, responsáveis pela preparação para um quarto Estado nacional, em vias de surgir.

Leituras produzidas nos anos 50 e 60 Nos anos 50, Nélson Werneck Sodré – agora membro do Instituto Superior de Estudos Brasileiro (ISEB) 296 – reeditou a História da literatura brasileira, ampliando as referências a Bomfim. 297 Destaca como marcas do autor: a crítica a Varnhagen, a lusofobia, o indianismo e o nacionalismo. Aponta “paixões, desvios e deficiências” em seus textos. Ao mesmo tempo, observa a preocupação de Bomfim em analisar o passado do país à luz de novos instrumentos, entre os quais o marxismo. Apesar de considerar sua obra contraditória, observa que há muitos pontos positivos e informações valiosas para o conhecimento da história que não deveriam ser esquecidos. Em 1954, foi publicado o Diário Secreto, de Humberto de Campos (1886-1934), 298 contendo o relato de um encontro com Bomfim, em 1928. Este último é apresentado como um intelectual possuidor de idéias “especiais e apaixonadas” sobre a formação étnica e política do Brasil. A lusofobia e a apologia do índio são apontadas como duas de suas características principais. Concluiu situando-o como “amigo e discípulo” de Capistrano de Abreu. Interessado nas relações pessoais de Bomfim com os intelectuais de seu tempo, lhe fez muitas perguntas sobre esse assunto. Assim, há referência à participação de Bomfim na boêmia, as suas idas ao Café Java e ao Café Londres, às relações com Olavo Bilac e outros contemporâneos. 299 295

Id. ib., p.120. Sobre o ISEB, ver ORTIZ, Renato. Alienação e cultura: o ISEB, in op.cit., p.45-67; e OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A redescoberta do Brasil nos anos 1950: entre o projeto político e o rigor acadêmico. In: MADEIRA, Angélica e VELOSO, Mariza (orgs.). Descobertas do Brasil. Brasília: UnB, 2000, p.139-161. 297 SODRÉ, História da literatura ..., op.cit., Rio de Janeiro: [Civilização Brasileira], 1964. Foi localizada esta quarta edição, de 1964. Se as edições anteriores foram publicadas entre 1938 – data da primeira – e 1964, é possível supor que alguma delas tenha sido publicada nos anos 40 e 50. 298 Humberto de Campos, escritor maranhense, membro da Academia Brasileira de Letras (1919), escreveu Poeira (1911), Vale de Josafat (1918), Memórias (1932) etc. 299 CAMPOS, Humberto. Diário secreto. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1954, 2 vols. p.100-115 (vol.1) e p.268 (vol.2). 296

Ainda em 1954, foi publicado o livro de Dante Moreira Leite (1927-1976), O caráter nacional brasileiro. 300 Interessa, aqui, o capítulo intitulado Prenúncios de libertação, cuja primeira parte se chama Manoel Bomfim: ensaios da afirmação das classes desprotegidas. O objetivo de Moreira Leite era analisar a ideologia do “caráter nacional brasileiro”, determinando quais elementos compuseram suas raízes e contribuíram para as ciências sociais e comportamentais do Brasil. Esta ideologia, por sua capacidade integradora, teria atuado como uma forma de mascaramento das relações de dominação no país. Foi o primeiro, dos intérpretes analisados, a referir-se a Bomfim como um “pensador esquecido”. Apontou como razão fundamental para esse esquecimento o fato do autor estar à frente de seu próprio tempo, apresentando uma perspectiva para a qual seus contemporâneos ainda não estariam preparados. Destacou os seguintes aspectos como característicos de seu pensamento: o nacionalismo; as aproximações com o socialismo; a crítica das teorias da desigualdade racial; o antilusitanismo; o uso do conceito de parasitismo social; a análise do conservadorismo; a idéia de transmissão hereditária dos traços psicológicos de um povo (“caráter nacional”). Referiu-se a Bomfim como um “espírito apaixonado”, parcial e incapaz de posicionar-se com uma perspectiva histórica para julgar o passado. Considerou-o sentimental, pouco objetivo e contraditório, apesar de alguma lucidez. Em Contribuição à história das idéias no Brasil, 301 de 1956, João Cruz Costa cita Bomfim em dois capítulos. No primeiro – Um bando de idéias novas – apenas destaca-o como crítico do positivismo. No segundo – As idéias no século XX – o situa entre outros autores que considera como representantes de um movimento de interesse pelo Brasil no início do século XX: Paulo Prado, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral, Vicente Licínio Cardoso (1889-1931) e Ronald de Carvalho (1893-1935). 302 Apresenta Bomfim como um médico que se dedicou ao ensino, além de publicar livros importantes sobre a história do Brasil, particularmente, sobre a história da pedagogia. Conclui afirmando que os livros de Bomfim tinham como leimotiv a questão da degeneração do Brasil devido à colonização portuguesa. Quatro anos depois, em 1960, Antônio Cândido publicou um verbete para a Enciclopédia Delta Larousse, resumindo a história da sociologia no Brasil. Esta história

300

LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1992. 5a. edição. 1a. ed. de 1954. 301 COSTA, João Cruz (n.1904). Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967 (1956), 2a . edição. 302 Vicente Licínio Cardoso, jornalista, filósofo e arquiteto. Estudou na Escola Politécnica, do Rio, onde também foi professor. Autor de Pensamentos brasileiros (1924), Vultos e idéias (1924), Figuras e conceitos (1924), Afirmações e comentários (1925). Organizou o livro À margem da história da República (1924), que reuniu importantes intelectuais de sua época. Ronald de Carvalho foi jornalista, poeta, crítico literário, ensaísta e diplomata. Participou da Semana de 22.

estaria dividida em dois períodos: o primeiro iria de 1880 a 1930, representando uma fase de não especialização; o segundo, de 1930 a 1940, seria uma fase intermediária. A consolidação da disciplina, através do ensino universitário, somente ocorreria após a década de 40. 303 A primeira fase é caracterizada por Cândido como tendo sido marcada por interpretações globais da sociedade e pela vinculação entre mentalidade literária e pesquisa social. Bomfim é aí situado como um autor menos importante quando comparado a Alberto Torres e Oliveira Vianna (1883-1951). 304 Contudo, afirma que ele inaugurou o “sentimento de solidariedade continental nos estudos sociais”, por analisar a situação do Brasil em relação à América Latina. Considera-o contraditório por criticar o uso da homologia entre o organismo biológico e a sociedade e, ao mesmo tempo, utilizar analogias organicistas. Afirma ser ingênua a valorização que ele fez da contribuição racial e cultural do índio, apesar de considerar “muito compreensiva” sua análise do fenômeno da mestiçagem. 305 Em 1965, Vamireh Chacon publicou sua História das idéias socialistas no Brasil.306 No capítulo em que Bomfim é citado – A encruzilhada do nacionalismo – o objetivo do intérprete é analisar o pensamento nacionalista brasileiro, focalizando suas relações com as idéias socialistas. Chacon acusa o “filisteísmo reacionário e seu irmão, o filisteísmo pseudorevolucionário” como responsáveis pelo esquecimento de Bomfim, cujas idéias teriam sido consideradas perigosas para “os bem-pensantes”, sendo, por isso, silenciadas. Ressalta a lucidez do autor, que “não era homem de meias palavras”, tendo ido além da interpretação econômica e da “bela metáfora”. Afirma que seu pensamento o conduziu ao marxismo, ainda que não tenha aderido às militâncias partidárias. Lembra-o como “um dos primeiros pensadores modernos a saudar o Comunismo ameríndio”. Apesar de observar contradições, refere-se a Bomfim como autor de grandes sínteses e divulgador de uma “mensagem de fé e esperança” no país; um intelectual “dolorosamente apaixonado pelo Brasil”. 307 No mesmo ano, temos o livro de Wilson Martins, História da inteligência brasileira. Seu objetivo, como o título deixa entrever, é apresentar um panorama da história das idéias e 303

CÂNDIDO, Antônio. A sociologia no Brasil. In: Enciclopédia Delta Larousse, tomo V. Rio de Janeiro: Ed. Delta, [1960]. p.2216-2232. 304 Lembro que o lugar que Torres e Vianna ocupam no pensamento social brasileiro é entre os principais pensadores autoritários. Sobre Torres, ver OLIVEIRA, op.cit., p.121-125. Sobre Vianna, ver GOMES, Angela de Castro. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 4, 1998, p.507-11; e ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. Oliveira Vianna – Instituições políticas brasileiras. In : MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil: um banquete nos trópicos. São Paulo: Senac, 1999, vol. 1, p. 293-313. 305 Id. ib., p.2220. 306 CHACON, Vamireh (n.1934). A encruzilhada do nacionalismo. In: _____. História das idéias socialistas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s/d, 1a. ed. 1965, p.351-381. 307 Id. ib., p.356-362.

da intelectualidade brasileira desde a colônia até à atualidade. Bomfim aparece no capítulo A literatura brasileira; o Modernismo, como um autor dotado de “coragem” e “independência de espírito”, por posicionar-se contra as teorias racistas e escrever em defesa do mestiço, em 1905 – momento do auge das teorias da desigualdade racial e das teses sobre a degeneração provocada pelo cruzamento. 308 Vê Bomfim como “um discípulo, senão de Silvio Romero, pelo menos da Escola do Recife”, mesmo lembrando a crítica feroz que este último fez ao autor de A América Latina. Martins considera a reação “intempestiva e violenta” de Romero contra Bomfim como sendo devida a alguma animosidade pessoal desconhecida. 309 Diz que o autor sergipano “tomou a metáfora a sério e transformou-a em pressuposto de investigação”, quando resolveu aplicar a noção de parasitismo social, colhida das ciências naturais, ao estudo dos organismos sociais e políticos. Discorda de suas idéias sobre o conservadorismo latino-americano, por considerá- lo universal. Também critica o que chama de “ciência de segunda mão” do autor, que teria feito citações eruditas, nem sempre de modo pertinente e objetivo. 310 Em 1966, começa a circular o livro de Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira. 311 Bomfim é citado em dois capítulos. No primeiro – O Realismo: a consciência histórica e crítica – aparece relacionado aos “pré- modernistas”. A hipótese é que estes representariam um conjunto surgido a partir da crise do liberalismo e, apesar das diferenças e das contradições que os caracterizariam, teriam contribuído para a construção de uma sociologia do povo brasileiro. 312 No outro capítulo – Pré-modernismo e Modernismo: o pensamento social – Bomfim é destacado como um “pré- modernista” cuja produção seria marcada pelos programas de organização sócio-política. Seu nacionalismo é relacionado ao “verdeamarelismo” do grupo Anta, ao Integralismo e ao Estado Novo. 313 Destaca, também, sua independência frente aos 308

MARTINS, op.cit., 1996, p.276. 1a. ed. de 1965. Id. ib., p.297. 310 Id. ib., p. 273-4 e 276. 311 BOSI, Alfredo (n.1936). História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, [1976]. 1a. ed. de 1966. 312 Id. ib., p.351 e 273. A noção de pré-modernismo é criticada pelos estudos mais recentes. Ela implica na aceitação de um “referencial externo” (ou teleológico) porque baseia-se na avaliação de um período como sendo “pré”, considerando-se que, aquilo que veio depois é que seria completo. Assim, a história da literatura ajudou a difundir a visão de que, somente a partir dos anos 20 – mais especificamente, após 1922 (marco do movimento modernista paulista) – seria possível localizar um modernismo pleno de sentido. Toda a produção anterior foi considerada, durante muito tempo, como um tipo de esboço do que viria a se desenvolver nos anos 20, particularmente, em São Paulo. Sobre esse assunto, ver VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.31-34; e GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio... Modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p.11-2. 313 A fim de tornar mais claras as associações feitas por Alfredo Bosi entre Bomfim e os nacionalismos dos anos 20 e 30, considero ser importante lembrar que o termo “verdeamarelismo” serve para designar um tipo de nacionalismo surgido nos anos 20, a partir da criação do Grupo Verde-Amarelo, cuja proposta era marcadamente ufanista. Entre seus líderes estavam Cassiano Ricardo (1895-1974) e Plínio Salgado (1895-1975). Em 1929, o 309

preconceitos neocolonialistas (relacionados ao uso das teorias da desigualdade racial). Conclui – informado pela leitura de Dante Moreira Leite (1954) – defendendo a lucidez e a modernidade de Bomfim em relação aos analistas de sua época. 314 Tendo percorrido, ainda que rapidamente, as leituras produzidas sobre Bomfim durante as décadas de 1950 e 1960, observa-se a existência de um contínuo processo de perpetuação do nome do autor, ainda que este seja mencionado em poucas palavras. Aos poucos, durante décadas, seu nome e, conseqüentemente, sua memória, vai sendo enquadrada e reenquadrada, dependendo do intérprete e da conjuntura. Reafirmam-se determinadas características, omitem-se outras. Associam- no a este ou aquele autor, conforme o quadro a seguir:

Intérprete/ Leitor

Nélson Werneck Sodré (anos 50)

Humberto Dante João Cruz Antônio de Campos Moreira Costa Cândido (1954) Leite (1956) (1960) (1954)

Varnhagen Olavo Bilac Capistrano de Abreu Autores Rodolfo relacionados Garcia 315 ou comparados a

Alberto Torres

Vicente Licínio Cardoso Ronald de Carvalho Paulo

Alberto Torres Oliveira Vianna

Vamireh Chacon (1965)

João Francisco Lisboa316 Oliveira Lima 317

Wilson Martins (1965)

Rocha Pombo

Alfredo Bosi (1966)

João Ribeiro

Justiniano Euclides de Melo e da Silva320 Cunha

José Honório Silvio Rodrigues 318 Romero

Alberto Torres

grupo passou a se chamar Anta, adotando uma linha política que pregava a adesão ao integralismo. Este, por sua vez, pode ser definido como uma doutrina nacionalista – de inspiração católica e fascista – constituída em defesa da tomada de consciência do valor espiritual da nação. Este valor seria pautado nos princípios sintetizados pelo lema: “Deus, Pátria e Família”. Do ponto de vista das relações entre sociedade e Estado, o Integralismo negava a representação política individual dos cidadãos. Seu grande divulgador foi Plínio Salgado, através da Ação Integralista Brasileira (AIB), criada em 1932. Ver FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: USP / Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1995, p.353-356. 314 BOSI, op.cit., p.351-2. 315 Rodolfo Augusto Garcia (1873-1950) nasceu no Rio Grande do Norte. Advogado (Recife), jornalista e professor. Foi diretor do Museu Histórico Nacional (1930) e da Biblioteca Nacional (1932). Membro do IHGB e da ABL. Publicou: Ensaio bibliográfico sobre Francisco Adolfo de Varnhagen, Dicionário de brasileirismos, Os judeus na história do Brasil, etc. 316 João Francisco Lisboa (1812-1863) nasceu no Maranhão. Atuou como jornalista, advogado e político. Foi incumbido pelo governo imperial de ir a Portugal coligir documentos relativos à história do Brasil. Membro do IHGB, publicou o Jornal de Tímon (1952-1954), uma série de folhetos onde se manifestava contra o método de catequese e civilização de índios bravos, proposto por Varnhagen em sua História Geral do Brasil (1854-57). 317 Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) pernambucano educado em Lisboa, formou-se em Letras. Atuou como diplomata e jornalista. Membro do Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernamb uco e da Academia Brasileira de Letras. Autor de: D. João VI no Brasil (1908), Formação histórica da nacionalidade brasileira (1911), etc. Sobre Oliveira Lima, ver NEVES, Guilherme Pereira das. Oliveira Lima – D. João VI no Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil, 2: um banquete nos trópicos. São Paulo: Senac, 2001, p.143-166. 318 José Honório Rodrigues (1913-1987), entre outras coisas foi diretor do Arquivo Nacional (1958-1964), além de ter-se dedicado ao magistério e à pesquisa histórica. Iglésias divide sua produção em cinco grupos: a) teoria, metodologia e historiografia; b) história temática; c) ensaios históricos; d) obras de referência; e) edições de textos. Alguns de seus muitos títulos são: Teoria da história do Brasil (1949); História e historiadores do Brasil (1965); História da história do Brasil (1979), etc., etc. Ver IGLÉSIAS, op.cit., p.217-22.

Bomfim

Prado Oliveira Vianna

Nélson Werneck Sodré

Azevedo Amaral

João Costa

Oliveira Vianna

Cruz

Unamuno319

Tais associações servem para agrupar pensadores em torno de linhas temáticas ou interesses comuns, não implicando que sejam todos semelhantes. Na maioria dos casos, os intérpretes se ocupam em fazer distinções. Mas. ainda que suas idéias se aproximem, em termos de conteúdo e interpretação, o registro dessa aproximação (ou do afastamento) parece significativo para se pensar o trabalho de enquadramento da memória sobre o autor. Desses agrupamentos ou relações surge um Bomfim participante da história intelectual brasileira, cujas idéias são consideradas, às vezes, como estando à frente das de outros intelectuais, não sendo compreendidas ou, como estando em oposição, sendo por isso combatidas. José Murilo de Carvalho, em recente retrospecto sobre a história intelectual no Brasil, observa que o tipo de abordagem apresentado por tais estudos aproximava-se da prática filosófica de expor o pensamento de cada escritor isoladamente. Os intérpretes com alguma preocupação histórica (como parece ser o caso da maioria dos citados acima) faziam algum tipo de esforço para situar os pensadores em seus respectivos contextos. Os exemplos desse tipo de trabalho seriam, justamente, as várias histórias do pensamento político, jurídico, filosófico, sociológico, etc. 321 José Murilo lembra que alguns desses estudos iam além, procurando agrupar os pensadores em famílias intelectuais ou correntes de pensamento, quase sempre definidas de acordo com categorias como o liberalismo, o positivismo e o socialismo. Assim, surgiram as histórias do pensamento positivista, socialista, etc. Outra característica de tais trabalhos seria a ausência de qualquer tipo de reflexão metodológica sobre aquilo que se fazia, daí não haver referência a qualquer discussão sobre autoria, recepção, texto, linguagem e escrita. 322 Na leitura expressa através de grandes sínteses da história das idéias ou da literatura – produção que caracteriza o período dos anos 50 e 60 – Bomfim é apenas um entre outros figurantes, que ajudam a compor o quadro um tanto quanto genealógico da intelectualidade 319

Miguel de Unamuno (1864-1937), educador, poeta, filólogo, novelista, dramaturgo, filósofo e político espanhol. Docente na Universidade de Salamanca, Espanha, onde também foi diretor de Instrução Pública. 320 Justiniano de Melo e Silva (n.1853) nasceu em Sergipe. Atuou como lente de Pedagogia da Escola Normal e, também, como professor de história universal. Foi deputado provincial e jornalista. 321 CARVALHO, op.cit., p.123. 322 Id. ib., p.123-4. Carvalho lembra que todos os estudos em questão – sobre história das idéias ou intelectuais – foram feitos após a publicação do livro de Arthur Lovejoy, The Great Chain of Being, em 1936, mesmo ano em que apareceu o Journal of The History of Ideas, inaugurando discussões teórico-metodológicas sobre o assunto, o que serve para justificar a crítica que faz aos trabalhos produzidos no Brasil, entre os anos 40 e 60.

brasileira. Fica difícil saber se as referências ao autor são poucas porque ele é considerado pouco importante, se o método de apresentar tais histórias é que não permite aproximações microscópicas de todos os autores tratados, ou ambas as coisas.

Leituras produzidas nos anos 70 Chegamos aos anos 70. Antônio Cândido dá continuidade a sua leitura sobre Bomfim, ao referir-se a ele no artigo Literatura e sudesenvolvimento, de 1973.323 Seu objetivo é fazer um panorama da literatura brasileira, observando as diversas abordagens da questão do “atraso nacional”. Procura explicar o esquecimento de Bomfim, considerando que ele talvez tenha ocorrido devido ao “radicalismo incômodo de suas idéias” ou ao uso de analogias biológicas superadas. Situa o autor como um dos intelectuais que refletiu sobre a questão do “atraso” nacional, explicando-o como derivado do prolongamento do estatuto colonial, expresso através da persistência conservadora das oligarquias e do imperialismo estrangeiro. Considera-o injustamente esquecido, porém, também classifica suas propostas de ruptura com o “atraso” como decepcionantes, por defenderem a “instrução como panacéia”. Conclui Antônio Cândido, que as idéias de Bomfim eram o exemplo de uma “ilusão ilustrada”, característica de uma “fase de consciência esperançosa do atraso”. 324 Em 1974, foi publicado o livro Preto no Branco, do brasilianista Thomas Skidmore. Seu objetivo era analisar as obras produzidas por uma elite intelectual brasileira, entre 1870 e 1930, focalizando a questão racial. Refere-se a Bomfim como um autor “incômodo”, por estar “à frente de seu tempo” ao se opor às doutrinas raciais. Também menciona que sua influência se ampliou após 1910, sem explicar porquê. Situa-o entre “uns poucos espíritos isolados (...) suficientemente avançados e ind ependentes para rejeitar todo esse quadro de determinismo como meio de explicar a condição do Brasil”. Considera-o como um “dissidente”, cuja maior contribuição teria sido fazer frente ao racismo, assumindo uma posição nacionalista e antiimperialista. 325 Em 1978, Djacir Menezes (1907-1996) – membro do IHGB – publicou uma resenha crítica sobre o livro de Skidmore, onde também fez menções a Manoel Bomfim. 326 Uma parte dessa resenha foi republicada no ano seguinte com o título Razões para reeditar Manoel 323

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e subdesenvolvimento. Argumento, ano 1, (1): 7-24, out./1973. Id. ib., p.13. 325 SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 1a. ed. 1974, p.130-136. 326 MENEZES, Djacir. Teses brasilianistas e antíteses brasileiras. Revista de Ciência Política, 2. Rio de Janeiro: FGV, 21(2):12-21, abr./jun., 1978. 324

Bomfim,327 texto escolhido para ser analisado aqui. Neste texto, Menezes afirma que o esquecimento a que Bomfim foi relegado tem relação com as críticas que ele fazia aos defensores da Casa de Bragança que, em réplica, “empenhou-se em demonstrar- lhe os erros e as iniqüidades”. 328 Refere-se a Bomfim destacando sua “honesta e máscula parcialidade”, sua ética e sua “vibração patriótica”. Observando que sua obra histórica – marcada por um pensamento heterodoxo em relação ao que chama de “história apologética da casa de Bragança” – merece estudo e meditação, defende sua reedição, sobretudo, devido à mencionada parcialidade. Esta característica é destacada pelo intérprete como um mérito, uma qualidade ética relacionada à capacidade do autor de assumir posições. 329 Há, também, um livro publicado em 1976, Sílvio Romero: o crítico e o polemista, de João Mendonça de Souza. O que mais chama a atenção neste livro é a tentativa de tornar presente o modelo de crítica literária desenvolvido por Romero. No capítulo A América Latina de Manoel Bomfim e a de Sílvio Romero, Souza restringe-se a repassar os pontos da crítica, confirmando a opinião de Romero sobre o livro de Bomfim e posicionando-se a favor do primeiro. Além disso, observa-se que grande parte do capítulo é composta por citações da crítica ao livro de Bomfim, feita em 1905/1906. 330 Afirma, tal qual Romero, que Bomfim renegou nossas tradições, cometendo “excessivos lapsos interpretativos”. Diz que: “a obra bomfiniana se estimula de conceitos quase sempre formais e idealistas que se repetem sem profundeza da proporcionalidade e definição do real valor. É estudo feito de influência fugaz (...)”. Destaca “o afinamento, a sensibilidade, a sutileza, a capacidade de emoção e de gosto, em suma, de Silvio”, 331 cumprindo o papel de perpetuar o nome deste crítico, através de uma espécie de hagiografia do escritor. O que, por outro lado, significa

perpetuar o lugar dado a alguns de seus

opositores, qual seja: o do merecido ostracismo ao qual Romero os condenava (nem sempre com sucesso, diga-se de passagem). A relevância desse texto para um estudo sobre o processo de enquadramento da memória sobre Bomfim parece estar na tentativa de reviver um tipo de crítica proposto setenta ou oitenta anos antes. Ao repassar, praticamente, ponto por ponto, a crítica de Romero a Bomfim, coloca em circulação um tipo de leitura feita em outro momento histórico, sob 327

Id. Razões para reeditar Manoel Bomfim. Revista de Ciência Política, 4. Rio de Janeiro: FGV, 22(4)143-144, out./dez., 1979. 328 Id. ib., p.143. 329 Id. ib., p.143. 330 SOUZA, João Mendonça de. A América Latina de Manoel Bomfim e a de Sílvio Romero. In : Sílvio Romero: o crítico e o polemista. Rio de Janeiro: EMEBE, 1976. p.77-123. João Mendonça de Souza é membro da Academia Amazonense de Letras e do IHG do Amazonas. 331 Id. ib., p.78-80 e 119.

outras circunstâncias e limites, acreditando que ela tenha permanecido incólume, podendo ser compartilhada pelos leitores de hoje. Movendo a atenção para outro texto, lembro que Vamireh Chacon fez uma pequena menção a Bomfim no seu livro História das idéias sociológicas no Brasil, de 1977. Mais especificamente, no capítulo intitulado Diversificação de influências, onde apenas o situa como autor de uma “história social”, “vizinha da Sociologia e da Antropologia”, além de destacar sua paixão, surpreendendo-se com tal característica num cientista criador do primeiro laboratório de psicologia experimental do Brasil e discípulo de Charles Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e Gustav Fechner (1801-1887).332 Conclui ao afirmar, criticando, que o livro O Brasil nação (1931) “é um dionisíaco protesto contra as oligarquias sem contestá- las em nada exato ou concreto”. 333 Em 1979, finalmente, surge o primeiro livro especificamente escrito sobre o autor em questão: Manoel Bomfim, um ensaísta esquecido, de Aloísio Alves Filho. 334 Seu objetivo é revelar parte da “herança intelectual” que considera esquecida: aquela que coloca o povo e não a elite como centro da reflexão. 335 Parte dessa “herança” seria a obra de Manoel Bomfim, cuja postura teórico- ideológica é confrontada pelo intérprete com as idéias presentes nos primeiros estudos sociológicos no Brasil. Para explicar a “cortina de silêncio” em torno da obra de Bomfim, Alves Filho propõe verificar alguns dos critérios que, segundo ele, têm orientado a reflexão sobre as idéias no Brasil. Seriam eles: o critério de imaginar que as idéias independem do contexto, podendo estar à frente de seu próprio tempo; o critério de situar como mais significativos os autores que confirmem as idéias dominantes; a distinção dicotômica entre autores “centralizadores” versus “descentralizadores”, impedindo a percepção das particularidades de cada um; a aceitação de que determinadas idéias são impostas pelo contexto, impedindo a compreensão dos autores que se oponham a tais idéias (daí a “omissão dos incômodos”) e justificando a

332

Lembrando: Charles Sanders Peirce foi um importante filósofo norte-americano, precursor da teoria moderna das comunicações, tendo desenvolvido estudos sobre semiótica. Seu livro Como tornar nossas idéias claras (1878) é considerado um marco do pragmatismo. William James, psicólogo e filósofo norte-americano, também contribuiu para o desenvolvimento da doutrina pragmática. Mais especificamente, desenvolveu a doutrina da consciência como processo contínuo (“corrente de consciência”) e a teoria da emoção (teoria James-Lange). Defendeu idéias anti-deterministas, além de pregar o empirismo radical, posto em prática através de experimentações. Seus principais livros são: The principles of psychology (1890); Pragmatism (1907), A pluralistic universe (1909) e The meaning of thuth (1909). Gustav Fechner, filósofo e naturalista alemão, atuou na universidade de Leipzig. Foi um dos pioneiros da psicofísica e da psicologia estética, que contribuíram para o desenvolvimento da chamada psicologia científica. 333 CHACON, Vamireh. História das idéias sociológicas no Brasil. São Paulo: USP / Grijalbo, 1977, p.94. 334 ALVES FILHO, Aloísio. Manoel Bomfim: um ensaísta esquecido. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979. Aloísio Alves Filho é cientista social e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 335 Id. ib., p.8.

postura de nomes consagrados; a seleção de determinados autores que não questiona os próprios critérios (o porquê da seleção). 336 De acordo com o intérprete, as razões do esquecimento de Bomfim são duas: 1) sua divergência em relação ao pensamento dominante em sua época e 2) os critérios de estudo do “pensamento social” no Brasil, que teriam impedido o resgate de autores como ele. Refere-se a Bomfim como um “ensaísta esquecido (...) cujos trabalhos não foram republicados nem alvo de comentários”. Afirma que diversas hipóteses divulgadas por nomes consagrados eram, na verdade, de Bomfim. Destaca como suas características: o uso de uma “tosca metáfora organicista”, a mordacidade e a ironia, além do engajamento político. Considera a proposta de “educação como solução” para os problemas sociais à primeira vista ingênua, mas, no fundo “radicalmente original e lógica”. Conclui dizendo que ele não era uma exceção, pois fazia parte de algo maior, “um discurso que procuram silenciar”. 337 No início do livro, Alves Filho observa que a história das idéias no Brasil costuma reafirmar continuamente as contribuições dos mesmos intelectua is, destacando quatro pioneiros dos estudos sociológicos: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Vianna. Com o objetivo de preservar e divulgar as idéias de tais pensadores, foram criadas instituições culturais e, oferecidas recompensas aos estudiosos dedicados a examinar a contribuição dos pioneiros eleitos. Alves Filho propõe historicizar Bomfim, utilizando a tática de “deixá- lo falar” através de seus próprios textos. Acredita que assim procedendo permitirá aos outros leitores avaliar melhor suas idéias e refletir sobre o que o intérprete denomina por “incongruências” do seu esquecimento. Concordando com a afirmativa de que existe uma herança intelectual que atravessa gerações, mas lembrando que esta herança é parcial, por esconder parte do “tesouro”, o autor quer resgatar aquilo que teria sido escondido, alargando o rol do pensamento social brasileiro. Embora a questão do esquecimento de Bomfim venha sendo mencionada desde os anos 50, no texto de Alves Filho ela parece adquirir uma outra dimensão. Não se trata, apenas, de fazer referência ao esquecimento e tentar compreender suas razões, mas de resgatar o autor para incluí-lo num conjunto maior de autores que constituiriam a nossa herança. Até então, vimos que esse resgate era feito de outro modo: Bomfim era apenas um entre outros coadjuvantes da história intelectual do país. Fazia parte de um grupo isolado de intelectuais (mas, ainda assim, um grupo) ora classificado como pós-“geração de 1870”, ora como “prémodernistas”. Para alguns, intelectuais típicos de um momento de transição. Para outros, 336 337

Id. ib., p.58-63. Id. ib., p.9, 32, 53-4, 64.

Bomfim era mesmo um intelectual à frente de seu tempo, sem pares na sua época ou posteriormente. Com Alves Filho parece se consolidar a idéia de que Bomfim representa, realmente, um intelectual de oposição ao pensamento político dominante, mas não apenas de seu próprio tempo, pois, na medida em que esse autor é tido como representativo de parte da herança intelectual do país, ele adquire uma relevância capaz de ultrapassar fronteiras temporais. Torna-se importante lembrá- lo em fins dos anos 70 e, hoje, em fins do século XX, como se viu no estudo mais recente sobre ele, elaborado por Conde Aguiar (1998). Primeiro trabalho escrito especificamente sobre Bomfim, trás no título uma marca, qual seja: a de um autor esquecido. A esta marca está atrelada uma outra: a de que ele precisa ser lembrado. Isto se torna, daí pra diante, referência em alguns dos estudos sobre o autor, às vezes enfatizada, quando aparece nos títulos (Manoel Bomfim: um ilustre desconhecido, 1987, de Ivonne Bertonha; Manoel Bomfim: um rebelde esquecido, 1997, de Ronaldo Conde Aguiar). Resgatar para incluir é parte do trabalho incessante de enquadramento da memória que, no caso de Bomfim, teve continuidade quando, em 1981, Flora Süssekind e Roberto Ventura publicaram o livro analisado no início do capítulo, iniciando o debate acadêmico sobre o autor. Lembrando: o que se pretendeu aqui ao analisar as leituras sobre Manoel Bomfim produzidas ao longo do século XX, foi identificar que características desse autor foram destacadas e que tipos de críticas lhe foram feitas. Em outras palavras, tratou-se de mapear referências e categorias que organizaram a percepção sobre esse autor e sua obra. Reafirmando o que foi dito na introdução do capítulo, minha reflexão sobre o caso Manoel Bomfim foi acompanhada por questionamentos presentes na investigação de Regina Abreu sobre Euclides da Cunha. Contudo, a intenção não era, como ficou claro, comparar dois intelectuais contemporâneos – que lidaram com questões semelhantes de maneiras diferentes – nem pretender o mesmo tipo de investigação sobre objetos distintos. O estudo de Regina Abreu forneceu uma espécie de referência de controle, a partir da qual eu pude observar relações entre as leituras – compreendidas aqui como um trabalho de “enquadramento de memória” – que atuaram sobre ambos, perpetuando seus nomes, ainda que de modos diferenciados. No caso de Euclides, Regina Abreu localizou vários tipos de estratégias de consagração: desde a organização de um Museu Euclides da Cunha, passando pelo recolhimento de relíquias, até a organização de palestras sobre o autor, a reedição de seus livros, etc. No caso de Bomfim, tais estratégias foram, a meu ver, diferentes, por estarem localizadas, fundamentalmente, na s leituras sobre o autor.

Três aspectos foram freqüentemente destacados por essas leituras: em primeiro lugar, o ostracismo ao qual Bomfim foi lançado; em segundo, a surpresa diante de suas idéias singulares, freqüentemente consideradas como estando à frente de seu tempo; em terceiro, a decepção diante da constatação de que, embora inovador, ele não teria constituído um discurso efetivamente transgressor, capaz de marcar o cenário intelectual de seu tempo e de épocas posteriores a ele, tendo sido, por isso, ultrapassado. A explicação sobre o esquecimento ao qual Bomfim foi relegado orienta-se, em algumas leituras, por um certo tipo de afirmativa: o radicalismo das suas idéias teria inviabilizado a aceitação das mesmas. Às vezes, tais idéias são destacadas como estando à frente de seu tempo, constituindo um verdadeiro chavão ao qual é possível recorrer diante da falta de outra explicação. Autor esquecido, desconhecido, silenciado, alguém de quem não se fala. Tais constatações acompanham o nome de Manoel Bomfim, visto como um autor marginal, uma espécie de outsider, o que embora possa corresponder à própria trajetória intelectual desse autor, também ajuda a corroborar a idéia de alguém à frente de seu próprio tempo. A surpresa diante de Bomfim também costuma estar relacionada à percepção do radicalismo das idéias. Radicalismo capaz de diferenciá- lo de outros intelectuais, seus contemporâneos, sobretudo no que se refere às críticas sobre a teoria da desigualdade das raças, ponto lembrado com freqüência. Às vezes apontado como pioneiro, precursor, às vezes classificado como um pré-pensador: alguém que apresentava, em embrião, idéias que seriam desenvolvidas de modo mais completo posteriormente. Cabe destacar que uns poucos estudos ocuparam-se em afirmar a surpresa diante do estudo de tal autor, por considerá- lo indigno de atenção, como é possível conferir tanto em algumas leituras quanto no relativo silêncio que pesa sobre seu nome. A decepção que acompanha algumas leituras sobre Bomfim aparece relacionada à constatação de que, embora radicais e inovadoras, as idéias desse autor teriam sido conduzidas pela defesa de uma “ideologia ilustrada” (pautada na idéia de “educação como redenção nacional”), considerada avessa às mudanças efetivamente revolucionárias. Também parece decepcionar quando não consegue, de acordo com alguns leitores, elaborar um discurso completo capaz de demarcar um horizonte científico diferente daquele apresentado por seus contemporâneos. Mesmo lido como um contradiscurso, seu texto foi várias vezes interpretado como algo incompleto, ambíguo ou contraditório. Terá sido através dos modos de ler, selecionando determinadas características e omitindo outras; tecendo relações entre a história passada do autor e de sua obra, projetando para ambos (autor e obra) perspectivas no presente ou para o futuro é que se construiu a memória sobre Manoel Bomfim.

CAPÍTULO 2 – A história no Brasil e O Brasil na história “A importância prática da história está, sobretudo, em multiplicar as forças dos que sabem utilizar as experiências do passado”.338

Para além das particularidades que distinguiam os paradigmas científicos difundidos entre os intelectuais brasileiros da virada do século XIX, observa-se a convergência de perspectivas no sentido de consagrar a ciência enq uanto o melhor meio para compreender e solucionar os problemas sociais. A ciência era tida como “uma espécie de sacerdócio”. Aqueles que a ela se dedicavam – envolvidos ou não com uma produção científica efetiva – valorizavam-na como o caminho ideal para reduzir os fenômenos sociais a leis e informações objetivas, capazes de fomentar o desenvolvimento de instrumentos adequados a intervenções reformadoras na sociedade. 339 Nas palavras de Nicolau Sevcenko: “uma ciência sobre o Brasil seria a única maneira de ga rantir uma gestão lúcida e eficiente de seu destino. Desacreditadas as elites tradicionais, apenas a ciência – e seus Prometeus portadores – poderia dar legitimidade ao poder”. 340 Assim como grande parte dos intelectuais do início do século XX, Manoel Bomfim também valorizava o saber científico, considerando-o como um pressuposto legítimo e necessário para a apreensão da realidade. O papel da ciência seria explicar a origem dos males sociais e, ao mesmo tempo, propor soluções, sendo que, “A ciência alegada pelos filósofos do massacre é a ciência adaptada à exploração; a verdadeira, a pura, nos mostra a espécie humana progredindo sempre, em todas as suas variedades – com alternativas, sim, devidas à degeneração de grupos e parcialidades, que abandonaram o esforço e a vida. Ela nos ensina o caminho do progresso, e nos garante o êxito”.341

338

KAUTSKY apud BOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930, p.37, nota 1. O livro de Kautsky citado é Terrorismo y Comunismo (1919). Karl Kautsky (1854-1938), pensador socialista alemão, foi um dos principais teóricos da II Internacional (1889-1914). Fundou a revista O Tempo Novo, órgão oficial do Partido Socialista Alemão e criou o Partido Social-Democrata Independente (1917). Escreveu Revolução social (1903), O caminho do poder (1907), etc. 339 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.28. 340 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989 [1983], p.85. 341 BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.329. O livro – escrito entre 1893 e 1903 – foi publicado pela primeira vez em 1905, pela editora Garnier. A segunda edição é de 1938, editora A Noite.

Ele acreditava que o conhecimento científico seria o ideal para curar os males sociais e avançar rumo ao progresso, pois, “a primeira condição para conquistar a civilização é conhecê- la”. Da ciência derivaria o progresso, tanto material quanto intelectual. 342 Em A América Latina (1905), o autor apresentou a sociologia como uma ciência dedicada ao estudo de um conjunto de fatos interdependentes, sujeitos a leis semelhantes às da astronomia e da química. Tais fatos estariam associados às partes de um organismo maior, cada uma das quais sendo portadora de uma função específica. Assim como nos organismos biológicos, na sociedade “o todo participa das qualidades das partes, e delas depende”. 343 Sua perspectiva teórico-científica pode ser resumida por dois pontos principais. Em primeiro lugar, “as sociedades existem como verdadeiros organismos, sujeitos como os outros a leis categóricas”. 344 Mas, isto não significa que o autor se limitasse a considerar as sociedades como organismos similares aos biológicos. Durante século XIX, a homologia entre sociedade e organismo estabelecia um modelo de compreensão dos fenômenos sociais, uma vez que – como ensinava a biologia e a química – só o que é vivo poderia evoluir. Essa naturalização do homem garantiu à biologia – que disputava a solução do enigma da origem da humanidade com a teologia e a filosofia – um lugar destacado entre os saberes. O diálogo com a biologia tornou-se o recurso científico fundamental de todo o pensamento social do período, principalmente devido ao fato desta ciência possibilitar o uso de um método comparativo, baseado em homologias e paralelismos, que passaram a ser considerados como instrumentos poderosos de investigação cie ntífica, num momento em que os campos de cada ciência ainda não estavam suficientemente delimitados. 345 Indo além, Bomfim dizia que em sua época se tinha abusado da associação entre sociedades (“grupos sociais”) e “simples organismos biológicos”, afirmando que:

“Não é o conceito [de organismos biológicos] que é condenável, e sim a estreiteza de vistas com que o aplicam à crítica dos fatos sociais, mais complexos, sem dúvida, que os fatos biológicos, pois dependem das leis biológicas, e ainda das leis sociais, peculiares a eles”.346

A sociologia poderia ser considerada uma ciência justamente por ser:

342

Id. ib., p.333. Id. ib., p.58. 344 Id. ib., p.51. 345 Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. Futuro do passado: uma apologia da América Latina. Rio de Janeiro: PUC/Departamento de História, dissertação de mestrado, 1997, p.17, nota 27 e p.19-21. 346 BOMFIM, op.cit., p.51. 343

“O estudo de um conjunto de fatos dependentes de leis fatais, tão fatais como as da astronomia ou da química, fatos estreitamente dependentes e relacionados, e pelos quais nos é dado perceber a sociedade como uma realidade à parte, cujas ações, órgãos e elementos são perfeitamente acessíveis ao nosso exame”.347

Para Manoel Bomfim, a noção elementar em ciência social seria a de que as sociedades obedecem a leis biológicas que, em essência, são idênticas àquelas que afetam os indivíduos. Desse modo, ele compartilhava da perspectiva de que seria possível uma teoria biológico-social com base no paralelismo entre o progresso orgânico e o progresso da sociedade. 348 Porém – e este pode ser considerado o segundo ponto – assim como os organismos vivos, as sociedades não dependeriam apenas do meio (condições do lugar), mas também do tempo (condições do momento). 349 Ultrapassando a aplicação das leis da biologia aos fatos sociais, o que o autor parecia propor era associar tais leis as leis sociais, e não simplesmente transpor as primeiras para o campo das segundas. A apreensão das leis sociais poderia ser feita através de procedimentos comuns entre os biólogos, tais como: a) analisar o objeto em relação a seu meio e em relação às condições e formas anteriores (condições conservadas por herança); b) observar o processo de adaptação do objeto às novas condições (adaptação que é mais completa quanto menor for o peso daquilo que ele he rda do passado). Daí o segundo ponto: a análise das sociedades deveria considerar a ação do meio (espaço) combinada a ação do tempo. Sua proposta supunha que, “Para estudar convenientemente um grupo social – uma nacionalidade no seu estado atual, e compreender os motivos pelos quais ela se apresenta nestas ou naquelas condições, temos de analisar não só o meio em que ela se acha, como os seus antecedentes. Uma nacionalidade é o produto de uma evolução; o seu estado presente é forçosamente a resultante da ação do seu passado, combinada à ação do meio. É mister estudá-la ‘no tempo e no espaço’”.350

Como observou Maria Tereza Chaves de Mello, ao recusar a irrestrita naturalização dos fenômenos sociais, Bomfim procurava libertar a sociedade do determinismo estreito – obstáculo a qualquer perspectiva otimista em relação ao futuro da América Latina. Transferindo da natureza para o tempo as leis da sociedade, 351 ele teria validado seu “método

347

Id. ib., p.51-2. De acordo com Michael Löwy, essa perspectiva, que identifica as leis sociais às leis da natureza orienta-se por uma concepção positivista de ciência, que procura dissolver “as ciências sociais e naturais no meio homogêneo de um só e único modelo de objetividade”. Ver LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987, p.193. 349 BOMFIM, op.cit., p.52. 350 Id. ib., p.52. 351 Bomfim referiu-se a sociedade como “um organismo em evolução, um corpo em movimento”. Id. ib., p.163. 348

genético” de investigação com base na biologia e na história. 352 Ambas teriam sido associadas pelo autor a fim de dar conta do estudo das sociedades. Estas, embora semelhantes aos organismos biológicos, seriam regidas por leis específicas (“peculiares”) que poderiam ser apreendidas mediante o uso de procedimentos de investigação similares aos da biologia. Da mesma forma, a associação entre sociologia (estudo das sociedades) e biologia (estudo do orgânico) se aprofundaria mediante a consideração de que as leis que regiam os organismos biológicos “não podem estar em oposição com as que regem a vida dos elementos sociais em particular”. Ou seja, assim como nos organismos biológicos, na sociedade “o todo participa das qualidades das partes, e delas depende”. 353 Contudo, na Europa do final do século XIX, impôs-se o questionamento do método biológico aplicado ao estudo das sociedades, dadas as diferenças entre os fenômenos naturais e sociais e a crescente delimitação e institucionalização das disciplinas científicas. Nesta época, a análise das relações entre indivíduo e sociedade – com ênfase no estudo sobre os modos de integração social (solidariedade, consciência coletiva, imitação, etc.) – adquiriu grande importância. Também houve um crescente estímulo aos estudos sobre fenômenos psíquicos. Eram realizados de modo disperso sendo, aos poucos, sistematizados, contribuindo para a formação do que veio a ser a psicanálise e para o desenvolvimento da psicologia social. 354 Em A América Latina, Bomfim lamentava a inexistência de uma “psicologia etnográfica” aplicada ao estudo das condutas humanas, em busca de aspectos que seriam hereditários e, outros, que seriam adquiridos. Sua inspiração era Théodule Ribot (18391916),355 para quem “o caráter nacional é a expressão última da hereditariedade social”; daí a proposta do autor francês de um estudo sobre o papel da hereditariedade na história, em busca de leis fisiológicas e psicológicas capazes de explicar a formação do caráter nacional. 356 Bomfim considerava a existência da hereditariedade psíquica responsável pelas tendências e aptidões de um indivíduo ou de um grupo. No entanto, acreditava que os indivíduos se desenvolviam, adaptando-se, a partir das impressões que o ambiente externo lhes suscitava, ou seja, reagindo às “condições ambientais”, que se manifestavam por meio de estímulos físicos e morais coercitivos. Essa reação se daria através da educação e da imitação.

352

MELLO, op.cit., p.20. BOMFIM, op.cit., p.58. 354 CORBIN, Alain. Bastidores. In: ARIÈS, Philippe & DUBY, George (orgs.). História da Vida Privada, 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.601. 355 O francês Théodule Ribot foi filósofo e psicólogo experimental, criador da Revue Philosophique (1876). Bomfim cita o livro Hérédité psychologique. BOMFIM, op.cit., p. 155-7, 260-2 e 304-5. 356 Id. ibid., p.156. Sobre a idéia de caráter nacional, ver LEITE, Dante Moreira. Sistematização do conceito de caráter nacional e sua crítica. In : _____. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Ática, 1992 [1954], p.37-46. 353

A primeira era compreendida de modo amplo, correspondendo à ação educativa da vida em sociedade. Ela seria responsável pela formação do caráter (individual e coletivo), no sentido da conscientização da tradição herdada e da adaptação social. 357 Quanto à imitação, era compreendida de acordo com as idéias de Gabriel Tarde (1843-1904). 358 Bomfim aplicou a categoria imitação em seu estudo sobre o conservadorismo latinoamericano. 359 Sem pretender uma análise do pensamento do autor francês, interessa apenas ressaltar algumas de suas idéias e Luiz Costa Lima pode servir de guia. Em seu livro Terra ignota, ele observa o sentido atribuído à categoria imitação por Euclides da Cunha (18661909), em Os Sertões (1902), procurando distingui- lo das idéias de Gabriel Tarde. 360 Para este último, a categoria imitação361 corresponderia a um fenômeno social caracterizado pelo processo de busca do estabelecimento de semelhanças através de repetições, havendo, no entanto, espaço para invenções criativas. Tal fenômeno seria motivado por desejos e crenças e não possuiria uma ordem mecânica ou retilínea e, sim, uma ordem fluida, irregular e não totalmente previsível. Ao invés de perceber o emotivo (onde operariam as crenças) como desordem – o que se tornara freqüente em sua época –, ele o via como integrante do tecido social, sem pretender separá- lo da racionalidade (onde operaria a lógica). Como observa Costa Lima, “sua inclusão da crença e do desejo no campo da ‘lógica social’ contrapunha-se nada menos que à tradição nascida com o Iluminismo”, qual seja, a de opor razão e emoção. 362

357

BOMFIM, op.cit., p.157. Jean Gabriel Tarde, magistrado e professor, considerado como um dos quatro principais sociólogos franceses do século XIX, ao lado de Auguste Comte (1798-1857), Frédéric Le Play (1806-1882) e Émile Durkheim (18581917). Os principais trabalhos de Tarde publicados na França foram: Les lois de l’imitation (1890); La logique sociale (1895); L’opinion et la foule (1898); Le public et la foule (1898). Em A América Latina, Bomfim apenas menciona o nome do autor, além de fazer citações, sem fazer referência ao livro utilizado. Id. ibid., p.161, 172 e 309. Sobre Gabriel Tarde, ver LIMA, Luiz Costa. Imitação e contágio (Cap. 3). In : _____. Terra ignota: a construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p.13-35; e VARGAS, Eduardo Viana. Antes Tarde do que nunca. Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. 359 BOMFIM, op.cit., p.159-185 e 187-203. 360 Costa Lima considera Tarde como um dos precursores da sociologia contemporânea, devido a sua proposição de que as ciências sociais deveriam buscar mecanismos apropriados a seu objeto específico (a “coisa social”), não se contentando com as operações fornecidas por outras ciências. Tal perspectiva, contudo, não teria sido suficiente para aproximá -lo de Durkheim, seu principal opositor, uma vez que ambos desenvolveram orientações distintas, no que diz respeito ao papel dos indivíduos na sociedade e à relação entre sujeito e objeto. Sobretudo, Tarde teria privilegiado conteúdos psicológicos em detrimento dos sociológicos. LIMA, op.cit, p.13-35 e 75. 361 Segundo Costa Lima , o estudo das coletividades no século XIX orientava-se pelos seguintes instrumentos analíticos: a imitação, o contágio e a sugestão. Id. ib., p.74. 362 Id. ib., p.75-85. Essa perspectiva conduziu Gabriel Tarde a privilegiar a análise dos “fluxos imitativos de crenças e desejos”. Segundo Bruno Karsenti, “trata-se de uma teoria da invenção e não do inventor”, o que teria permitido a Tarde criticar a teoria das causas individuais na história – que considerava como sendo a base de uma historiografia preocupada com os grandes homens – em defesa de uma história mais preocupada com as “pequenas idéias” e “inovações infinitesimais” com que cada homem contribui. KARSENTI apud COSTA LIMA, id., p.81. Disse Tarde: “É preciso conceder aos adversários da teoria das causas individuais na história que se lhe falseou, ao se falar de grandes homens quando era preciso falar de grandes idéias, que, muitas vezes, 358

Ao contrário de Manoel Bomfim, Tarde optara por captar os fatos humanos a partir de seu lado sociológico e psíquico, separando-os radicalmente do bio lógico. Contudo, a associação dos dois autores parece pertinente, não apenas porque ambos aplicaram a categoria imitação, mas também, devido à importância que eles atribuíram aos aspectos psicológicos (que se refletiriam tanto nas idéias quanto nas atitudes humanas) e aos sentimentos, na análise do social. Embora tais reflexões tenham sido desenvolvidas no contexto de fins do século XIX e início do XX, acredito que seja útil tê- las em mente ao empreender a leitura dos textos posteriores de Bomfim, uma vez que ele próprio indicou que seus estudos sobre o Brasil – retomados somente nos anos 20 – orientaram-se, em termos gerais, pela análise e pelos conceitos contidos em seu primeiro livro, de 1905. 363 Contudo, algumas diferenças significativas podem ser notadas. Observa-se, por exemplo, que a marca do biologismo era muito forte em A América Latina. Como foi dito, o estudo sociológico proposto pelo autor orientava-se, sobretudo, por parâmetros ditados pelas ciências naturais, destacando-se a preocupação com leis e a utilização de metáforas inspiradas pela biologia, ainda que aspectos psicológicos não fossem esquecidos. Nos anos 20, o psicologismo parece ter se tornado mais forte, disputando espaço com a homologia entre o biológico e o social ainda utilizada. Foi então que, supostamente, sua reflexão sobre a história adquiriu uma dimensão mais relevante e a preocupação com a relação objetividade/subjetividade ganhou contornos mais definidos. Vejamos a importância que ele atribuiu à subjetividade e aos sentimentos, sem abrir mão da razão. Em O Brasil na História (1930), o homem é apresentado como um ser moral, cuja subjetividade lhe permitiria escapar das influências externas (do meio) e internas (da hereditariedade psíquica e/ou biológica), subordinando-as aos seus interesses. Existiriam interesses gerais da espécie humana – “moral, justiça, humanidade...” – em oposição a interesses particulares (egoístas, individualistas). Os primeiros teriam sido multiplicados através das relações sociais que, ao favorecerem sentimentos socializadores, contribuíram para o predomínio de necessidades coletivas. Assim teria sido assegurado o progresso humano: “pelo apuro e reforço constante dos sentimentos socializadores”. 364

aparecem em homens muito pequenos, e mesmo falar de pequenas idéias, de inovações infinitesimais com que cada um de nós contribui para a obra comum”. TARDE apud LIMA, id., p.81 363 A esse respeito, ver o prefácio de O Brasil na América, escrito em 1925 e publicado em 1929. Também chamo a atenção para o fato de que, a retomada dos estudos sobre o Brasil por Bomfim nos anos 20, refere-se exclusivamente aos livros publicados sobre o assunto, a partir dessa década, deixando de fora seus artigos e outros livros, sobre temas variados, produzidos e divulgados durante as três primeiras décadas do século XX. BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997 [1929]. 364 BOMFIM, O Brasil na História..., op.cit., p.10-1.

A noção de solidariedade pode ajudar a entender melhor sua idéia de integração social.

365

Trata-se de um termo que reflete uma preocupação muito em voga na Europa, desde

meados do século XIX, qual seja: compreender o fenômeno das massas ou da formação das coletividades sociais não estratificadas. Essa preocupação inseria-se em um contexto de rápidas transformações sócio-econômicas e políticas, relativas à Revolução Industrial, à consolidação dos Estados nacionais e a formação de novos impérios coloniais. Mais especificamente, associava-se à construção do campo científico onde o estabelecimento das disciplinas exigia a delimitação de objetos e métodos pertinentes a cada saber. O interesse aqui é manter tal contexto como um horizonte capaz de ajudar a situar os estudos sobre as coletividades, lembrando que eles se desenvo lveram em conexão com as reflexões sobre a formação nacional. Observo que a noção de solidariedade remete a uma ligação entre indivíduos interdependentes. As divergências entre os pensadores que utilizam tal noção parecem ocorrer à medida que se tenta definir como e por que tal ligação ocorre. Bomfim referiu-se à existência de “sentimentos socializadores” e de uma “solidariedade de interesses” entre os indivíduos. Os interesses gerais da espécie humana estariam em oposição aos interesses individuais. O predomínio dos primeiros sobre os segundos dependeria da contínua renovação (“apuração”) de sentimentos socializadores, que favoreceriam a existência da solidariedade, transformando-a em uma espécie de necessidade coletiva. 366 Portanto, é nos sentimentos que ele vai buscar o como e o porquê da ligação entre os indivíduos. Essa valorização das emoções pode ser ilustrada pela importância que ele conferia à paixão. Em A América Latina, mesmo comprometido com a exposição de uma teoria nos moldes colocados pela ciência, o autor declarou que:

“(...) certos comentários, parecerão descabidos ou impróprios a uma demonstração que assim se fundamente (...) Seria preciso, acreditam certos críticos, uma forma impassível, fria e impessoal; para tais gentes, todo argumento perde o caráter científico sem esse verniz de impassibilidade; em compensação bastaria afetar [a] imparcialidade, para ter direito a ser proclamado – rigorosamente científico. Pobres almas!... Como seria fácil impingir teorias e conclusões sociológicas, destemperando a linguagem e moldando a forma à hipócrita imparcialidade, exigida pelos críticos de curta vista!... Não; prefiro dizer o que penso, com a paixão que o assunto me inspira; paixão nem sempre é cegueira, nem impede o rigor da lógica”.367

365

Um dos usos do conceito de solidariedade foi proposto por Émile Durkheim, que desenvolveu reflexões sobre a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. Ver DURKHEIM, Émile. Solidariedade mecânica. In: RODRIGUES, José Albertino (org.). Durkheim. São Paulo: Ática, 1999, p.73-79; e Solidariedade orgânica, id. ib., p.80-84. 366 BOMFIM, op.cit., p.10 e 36. 367 Id., A América Latina..., op.cit., p.35-6.

A paixão parecia ser tida como uma espécie de força propulsora da vontade, capaz de controlar ou guiar os interesses, sendo que, neste caso, paixões e interesses estariam relacionados com o campo das práticas científicas e políticas das quais o autor participava. 368 Para ele, os interesses estariam referidos à comunhão de tradições – científicas e políticas (e, mais especificamente, nacionais) –, o que se opunha a uma prática científica neutra, uma vez que tais interesses continham, em si mesmos, as razões de uma parcialidade. O autor identificava dois modos de lidar com essa parcialidade: negando-a ou explicitando-a, sendo que ele defendia esta última opção. Lembrando: em sua época, a legitimidade da produção científica dependia da afirmação e do reconhecimento de um saber neutro, imparcial porque baseado em métodos racionais e critérios controláveis. Ao mesmo tempo, supunha-se haver uma homologia entre os diversos níveis da realidade (o social, o biológico, o político, o econômico etc.), o que permitia transpor categorias e afirmações de uma esfera de conhecimento a outra. Bastava afirmar que se uma produção científica era neutra (e neutra porque era científica), não haveria espaço para metáforas e analogias, mas apenas para relações homológicas e objetivas. 369 Diferentemente de outros intelectuais de seu tempo, 370 Bomfim não afirmava que a objetividade de suas formulações fosse decorrente de uma posição de imparcialidade diante dos fatos sociais, tomada como condição indispensável para uma abordagem que se pretendesse científica. De acordo com Flora Süssekind e Roberto Ventura, ele rompera com a exigência de neutralidade dominante no discurso cientificista de fins do século XIX e início do século XX, ao assumir sua vontade e interesses pessoais como sendo o próprio motor da análise a ser desenvolvida. 371 368

No livro As paixões e os interesses, Albert Hirschmann reconstitui o processo pelo qual, entre os séculos XVII e XVIII, a noção de interesse, que remetia a significações das mais variadas, foi reduzida apenas ao significado de vantagem material e econômica. O autor analisa o deslocamento semântico que teria permitido ao dinheiro adquirir uma legitimidade nova, através da valorização da atividade lucrativa, que a princípio era tida como negativa. Hirschmann observa o entusiasmo suscitado pela noção de interesse enquanto instrumento de interpretação das ações humanas, capaz de fornecer uma justificativa realista para uma ordem social considerada inevitável, não mais apoiada em valores transcendentais. Essa ordem estaria baseada em duas premissas: a crença na constância e a perspectiva de previsibilidade dos comportamentos humanos. Contra a desordem das paixões, que torna os indivíduos ingovernáveis, a idéia de que eram os interesses que dirigiam as ações obteve sucesso. HIRSCHMANN, Albert. As paixões e os interesses: argumentos políticos a favor do capitalismo antes do seu triunfo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 369 SÜSSEKIND, Flora e VENTURA, Roberto. História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Moderna, 1981, p.14-5. 370 O médico Nina Rodrigues (1862-1906), por exemplo, dizia que “a ciência (...) não conhece estes sentimentos [as simpatias e os ódios]”; além disso, considerava que a ciência “está no seu pleno direito exercendo livremente a crítica e a estendendo com a mesma imparcialidade a todos os elementos étnicos de um povo”. RODRIGUES apud SÜSSEKIND e VENTURA, 1981, p.13. O trecho foi extraído de Os africanos no Brasil (1933). 371 SUSSEKIND, Flora & VENTURA, Roberto, op.cit., p.12. A crença na possibilidade de existência de uma ciência neutra foi relativizada por Karl Marx (1818-1883), citado por Bomfim em O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, 1a. ed. 1931, p.416 e 577. De acordo com Michael Löwy, para Marx, o desenvolvimento da ciência estaria relacionado à situação histórica do cientista, possuidor de interesses e pertencente a uma determinada classe social, que imporia limites à cientificidade. Por tanto, a

A objetividade da ciência estaria, pois, na localização dos interesses do cientista. Era a partir da identificação de tais interesses que se tornaria possível, em primeiro lugar, situar o cientista em relação a seu objeto; e, em segundo, identificar as verdades ditas ou omitidas. Mas, e no caso da história? Como Manoel Bomfim procurou solucionar o conflito produzido pela exigência de neutralidade e objetividade científica diante do reconhecimento da subjetividade, dos interesses e das paixões? Quais seriam as implicações dessas exigências e interesses para a escrita da história? Antes de tudo, é preciso lembrar que ao longo do século XIX, na Europa, assistiu-se ao processo de organização e institucionalização das disciplinas, inicialmente de acordo com os parâmetros de cientificidade ditados pelas ciências naturais. Diante da expectativa de profissionalização do trabalho do historiador, afirmou-se uma concepção moderna de história. De acordo com Hannah Arendt, um moderno conceito de história surgiu entre os séculos XVI e XVII, marcado pelo diálogo com as ciências naturais, mas, sobretudo, com a ciência aristotélica medieval que estava sendo suplantada, e cujo padrão científico consistia, principalmente, na observação e catalogação dos fatos observados. A elaboração desse conceito moderno implicava na recusa da compreensão da história como um fenômeno cíclico, guiado pela providência divina e passível de ser apreendido como um todo, através da contemplação e, por conseguinte, no desenvolvimento de uma nova percepção do tempo (não mais cíclico, mas linear e processual) e de uma atitude subjetiva e pragmática, que supunha ser o homem capaz de conhecer, senão a verdade física feita por Deus (a natureza), ao menos a verdade sobre aquilo que os próprios homens fizeram (a história). Segundo Arendt, o impacto dessa mudança começou a ser sentido somente em fins do século XVIII, sendo aperfeiçoado e vulgarizado durante o século XIX. 372 De acordo com François Furet, de meados do século XVII até fins do século XVIII e início do XIX, o conhecimento histórico era explorado por duas atividades intelectuais: a erudição e a filosofia. A primeira era desenvolvida pelos antiquários: especialistas em Antiguidade, que se empenhavam na descrição de fontes literárias, na exumação de monumentos e vestígios materiais do passado, na análise cronológica dos acontecimentos políticos. A segunda ocupava-se, não da restituição das fontes literárias, mas da sua discussão, preocupando-se com a integração dos diferentes tipos de fontes na busca de algo que pudesse ser tido como verdadeiro. Segundo Furet, essas atividades tradicionais contribuíram para reformular o modo de trabalhar com os resquícios do passado, alimentando tanto a construção

neutralidade da ciência seria sempre relativa, pois estaria submetida aos interesses de classe. Ver LÖWY, op.cit., p.96-110 e 189-195. 372 ARENDT, Hannah. O conceito de história – antigo e moderno. In: _____. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000 [1954], p.80-1, 88 e 101.

da idéia de fato histórico como material constitutivo da história, quanto o surgimento de uma crítica externa e interna do documento. 373 Como observa Ricardo Benzaquen de Araújo, a concepção clássica da história seria marcada por formulações pedagógicas e éticas, que podem ser resumidas pela expressão “história mestra da vida”. 374 Essa concepção supunha uma crença na unidade essencial do gênero humano e tomava a história como um “espaço de experiências”375 acumuladas, capazes de favorecer o aperfeiçoamento, sobretudo político e moral, dos homens. Aproximando a história da tradição, essa concepção clássica não se definia como argumento de especialistas, constituindo um discurso disponível a qualquer intelectual e aplicável aos mais diversos conteúdos. Tratava-se de uma concepção que orientava e era orientada por argumentos de ordem moral e política, onde se buscava a afirmação de verdades plausíveis, verossímeis, de acordo com os valores experimentados no presente. No entanto, essa historiografia que valorizava as raízes da cultura e da sociedade, não impediu o esforço para distanciar o presente do passado, num movimento que seria necessário para a avaliação adequada das possibilidades do futuro. Observou-se, então, a preocupação de garantir uma relativa crítica das narrativas tradicionais, a fim de diminuir os riscos de mistificação e inverossimilhança. 376 Um dos aspectos relacionados à afirmação de uma concepção moderna de história refere-se ao surgimento do ideal de uma verdade exata, rigorosa, não mais relativa aos valores éticos de uma época, mas à crença de que a verdade se confunde com o fato, estimulando a preocupação em verificar se, quando e onde ele efetivamente aconteceu. Para alcançar a meta da verdade absoluta, o historiador moderno deveria, em primeiro lugar, abandonar a pretensão de atribuir um significado ético e pedagógico à escrita da história, passando a buscar um ponto eqüidistante dos diversos princípios, valores e padrões em conflito; renunciando a adotar qualquer um deles em troca da obtenção de um acesso mais objetivo e imparcial à realidade. Essa exigência de imparcialidade e objetividade contribuiu para a busca – a partir 373

Ver FURET, François. O nascimento da história. In: _____. A oficina da história. Lisboa: Gradiva, s/d, p.109-135. Ainda sobre os antiquários, ver também ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. História e Narrativa. In: MATTOS, Ilmar Rohloff de (org.). Ler e escrever para contar: documentação, historiografia e formação do historiador. Rio de Janeiro: Access, 1998 [1992], p.221-258. 374 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, n.1, 1988 [1986], p.29. A expressão é de Cícero (106 – 43 a.C.), orador, pensador político e escritor romano. 375 KOSELLECK apud ARAÚJO, Ronda noturna, op.cit., p.29. 376 ARAÚJO, ib., p.29-31. Ricardo Benzaquen lembra que Paul Veyne denominou este filtro crítico das narrativas tradicionais por “doutrina das coisas atuais”. Esta seria orientada pela crença na existência de um núcleo autêntico nas tradições, imutável ao longo do tempo e que poderia ser separado de todas as mistificações através da comparação dos relatos contidos na tradição com as convenções do presente, assimilando-se tudo aquilo que era verdadeiro com estas convenções e descartando o resto como produto da imaginação. Ver, também, WHITE, Hayden. O irracional e o problema do conhecimento histórico no Iluminismo. In : _____. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994 [1978], p.159.

do final do século XVIII – de procedimentos capazes de determinar a “verdade dos fatos” com alguma precisão. Esse esforço exigiu tanta minúcia e erudição que, em longo prazo, acabou por contribuir para a conversão do historiador em um especialista, em alguém cujo trabalho se caracterizaria pela prática de um certo método de investigação do passado. 377 Método e narrativa passaram a ser articulados, contribuindo para a construção de uma identidade moderna e científica para o historiador e para a escrita da história. 378 Possuindo o prestígio tradicional das disciplinas clássicas e legitimada enquanto ciência, a história ganhou espaço preponderante nas universidades, passando a deter inúmeras cátedras e estimulando a produção de histórias gerais, onde se destacava o interesse pela política e a valorização de nomes e datas. 379 Esse modelo historiográfico – que, embora preponderante, não era o único 380 – e as concepções de história a ele relacionadas, foi confrontado, em fins do século XIX, pelas indagações propostas pelo marxismo 381 e pelas ciências sociais em ascensão, particularmente pela sociologia. 382 Manoel Bomfim esteve na França entre 1902 e 1903383 – período em que, inspirado pela leitura de Walter Bagehot (1826-1877), 384 escrevera A América Latina. Vigorava, então,

377

Ricardo Benzaquen de Araújo aponta a Revolução Francesa como um marco para a afirmação de uma concepção moderna de história. De acordo com o autor, diante da intensidade dos acontecimentos, e das possíveis versões produzidas pelas várias facções envolvidas, tentou-se alcançar – particularmente, na Alemanha e na Inglaterra – um novo critério de verdade, capaz de superar as posições partidárias e situar-se acima dos conflitos. Id. ib., p.30-1. 378 Id., História e narrativa, op.cit., p.242. 379 Sobre a história factual (histoire événementielle), marcada pelo interesse na política, nos grandes nomes (“história vista de cima”) e datas, ver BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: _____ (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p.7-37. 380 Peter Burke chama a atenção para as vozes discordantes na produção historiográfica do século XIX, onde há exemplos significativos de história econômica e de história sócio-cultural. Ver BURKE, O antigo regime na historiografia e seus críticos. In: _____. A escola dos Annales: a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: UNESP, 1989, p.17-22. 381 De acordo com Virgínia Fontes, o marxismo inaugurou um tipo de apreensão do social radicalmente diferente da existente naquele momento: não compartilhava da concepção de progresso como identificado à sociedade capitalista; introduziu a preocupação com as descontinuidades na história, até então percebida como sendo linear; considerava possível o conhecimento da sociedade a partir de características internas, processuais e relacionais, e não por meio de aspectos externos, metafísicos ou dependentes da subjetividade de cada conhecedor. Ver FONTES, Virgínia. Os Annales – uma apresentação. Niterói: UFF, mimeo, s/d, p.12. 382 Jacques Revel lembra a polêmica que opunha sociólogos e historiadores através das proposições do economista e sociólogo François Simiand (1873-1935), expressas no texto Méthode historique et science sociale (1903), escrito contra as proposições do historiador Seignobos e seu Méthode historique appliqué aux sciences sociales (1901). Ver REVEL, Jacques. História e Ciências Sociais: os paradigmas dos Annales [1978]. In: _____. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1989, p.18; e também BURKE, op.cit. Deixo registrado que Bomfim faz referência a Seignobos ao criticar suas interpretações sobre o Brasil, por considerá-las equivocadas. Ver BOMFIM, A América Latina..., op.cit., p.43, nota 3. 383 Bomfim estudara em Paris com Alfred Binet (1857-1911), um especialista no estudo do fetichismo e no desenvolvimento de pesquisas visando à mensuração da inteligência humana. De volta ao Brasil, ele fundou o que pode ter sido o primeiro laboratório experimental voltado para questões de ensino e aprendizagem do país, no Rio de Janeiro, em 1906. Ver PENNA, Antônio Gomes. Acerca dos psicólogos-educadores na cidade do Rio de Janeiro: Manoel Bomfim, Maurício Campos de Medeiros, Plínio Olinto e Lourenço Filho. Fórum Educacional. Rio de Janeiro: FGV, 13(3):7-34, jun./ago., 1989. Sobre Binet, ver CORBIN, op.cit., p.607; e, também, BOTELHO, André Pereira. O batismo da instrução: atraso, educação e modernidade em Manoel Bomfim. Campinas, SP: Departamento de Sociologia/UNICAMP, dissertação de mestrado, 1997, p.55, nota 111.

um amplo debate sobre o papel da ciência na universidade e na sociedade. Não interessa aqui resgatar os desdobramentos desse debate. O importante é registrar que alguns dos seus aspectos poderão ser úteis para a compreensão do modo como o autor objeto desta dissertação pensava a história. Considero, sobretudo, a dimensão mais ampla das discussões que estavam ocorrendo naquele momento: aquelas que se referem, justamente, ao papel das ciências sociais na sociedade – particularmente, o papel da história – e aquela que dizia respeito ao conflito produzido pela busca de imparcialidade e a constante exigência de posicionamento intelectual. Mas, enquanto na França observava-se o esforço pelo desenvolvimento das ciências no âmbito universitário através de disciplinas especializadas, no Brasil, os lugares da produção científica eram os institutos históricos e geográficos, os museus etnográficos e as faculdades de direito e medicina, onde a ciência, com suas diferentes teorias, interpretações e experimentos, dava lugar à discussão e divulgação de uma ética ou atitude científica possível de ser experimentada de modo genérico. Desse modo, a “Sciencia” era tida como um princípio que se estendia aos mais diversos ramos do conhecimento, orientando tanto a produção de estudos sobre a sociedade brasileira, quanto à literatura, as idéias políticas, a poesia, as artes etc. 385 Portanto, no Brasil, a reflexão sobre o conhecimento do social e o papel da história na sociedade não ocorreu em função do estabelecimento de disciplinas universitárias como no caso europeu. Contudo, tanto aqui como na Europa, tal reflexão acompanhou o processo de construção do Estado, o que, provavelmente, contribuiu para uma permanente tensão entre a existente busca de imparcialidade – relacionada à difusão de ideais científicos – e a exigência de posicionamento dos intelectuais – relativa às discussões sobre a chamada questão nacional. 386 Como observou Manoel Luiz Salgado Guimarães, foi em meio ao processo de consolidação do Estado Imperial que se tornou viável o projeto de pensar a história brasileira de forma sistematizada. A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, em 1838, foi representativa desse empreendimento, uma vez que, implantado o Estado Imperial, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a nação 384

No texto de introdução ao livro A América Latina, escrito em 1903, Bomfim faz referência a leitura (feita cerca de dez anos antes) do livro de Walter Bagehot, Physics and Politics, publicado em Londres, em 1887. BOMFIM, A América Latina..., op.cit., p.34. Bagehot, editor do jornal inglês The Economist, foi um importante teórico da nação do século XIX. Há referências a este autor em HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 385 SCHWARCZ, op.cit., p.150-3. 386 Ver GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, n.1, 1988, p.5-27; e OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990. Principalmente o capítulo “A construção da história da nação”, p.127-143.

brasileira, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das nações. O modelo historiográfico implementado no IHGB apresentava um duplo objetivo: identificar as origens do Brasil, de modo a contribuir para a delimitação de uma identidade nacional homogênea; e inserir o país na perspectiva de uma tradição de progresso – herdada da Ilustração – viabilizando a demarcação de suas diferenças em relação a outros países. 387 De acordo com Guimarães, a concepção de história desenvolvida nos primeiros anos do IHGB era marcada por duas visões: uma antiga e outra moderna. A visão antiga – herança iluminista – caracterizava-se pelo sentido teleológico atribuído à história. Esta era percebida enquanto marcha linear e progressiva capaz de articular passado, presente e futuro. A história, “mestra da vida”, possuía uma função pragmática ou instrumental, qual seja: fornecer exemplos e modelos para o presente e o futuro. Ao mesmo, tempo, o Instituto compartilhava de uma preocupação moderna presente na historiografia européia: a elaboração de métodos úteis para a busca da gênese da nação. 388 Para enfrentar essa preocupação, o IHGB estabeleceu, inicialmente, duas diretrizes: a coleta e a publicação de documentos considerados relevantes para a história do Brasil e o incentivo aos estudos históricos. Posteriormente, mediante a consolidação e profissionalização do Instituto, tornou-se necessário englobar outros tipos de estudos, supondo que eles poderiam contribuir para a realização da tarefa proposta. 389 Segundo Manoel Guimarães, “Presos ainda à concepção herdada do iluminismo, de tratar a história enquanto um processo linear e marcado pela noção de progresso, nossos historiadores do IHGB empenhavam-se na tarefa de explicitar para o caso brasileiro essa linha evolutiva (...)”.390

Esse trabalho de escrever a história deveria buscar “aprender de forma a não se comprometer a marcha do progresso social”. 391 Tratava-se, como foi dito, de uma concepção pragmática 392 da história, a qual era atribuído um sentido teleológico. Deste modo, a história 387

GUIMARÃES, op.cit., p.6 e 8. Id. ib, p.5 e 15. 389 Estes incentivos ocorriam através da organização de concursos de monografias, das trocas com instituições congêneres (nacionais e internacionais), do apoio na criação de institutos históricos nas províncias etc. Guimarães lembra que os estatutos promulgados em 1851 propuseram englobar na instituição estudos etnográficos, arqueológicos e lingüísticos. Id. ib., p.8 e 11. 390 Id. ib., p.11. 391 Guimarães faz essa afirmação após observar a semelhança de princípios (relativos tanto ao trabalho historiográfico quanto à visão de história) entre o IHGB e o Institut Historique de Paris (fundado em 1834) – guardadas as especificidades de cada um no que dizia respeito à discussão da “questão nacional” – que mantiveram intenso contato em seus primeiros anos. Id. ib., p.12. 392 As características principais de um modelo pragmático são o conhecimento prévio de dados e o preenchimento de expectativas já fixadas. Aplicado na escrita da história e na literatura, esse modelo teria conduzido à elaboração de interpretações onde se observaria uma espécie de circularidade entre o discurso e as 388

adquiriu – com o apoio de uma elite letrada – o papel de legitimadora das decisões de natureza política. 393 Arno Wehling também destaca a conjunção entre uma formação iluminista dos membros do IHGB – da qual teriam herdado uma visão clássica da história – e uma visão historiográfica moderna. A primeira seria exemplificada pela perspectiva de uma história filosófica atenta tanto à crítica quanto à interpretação, considerando que esta última deveria permitir a aplicação dos conhecimentos adquiridos às questões públicas e sociais, o que correspondia à visão pragmática da história como “mestra da vida”. A segunda seria exemplificada pela busca de rigor metodológico. 394 Este – inspirado pelas ciências naturais – seria caracterizado pela identificação de regularidades e leis aplicáveis ao desenvolvimento histórico. Resumidamente, nas primeiras décadas do século XIX, tanto na Europa quanto no Brasil, a história era entendida a partir do binômio filosofia e pragmatismo. Nos primeiros textos do IHGB esta visão da história aparecia como “a forma científica e politicamente correta de orientar os estudos históricos”. 395 Membro do IHGB, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878)396 – exemplo máximo da historiografia que Manoel Bomfim iria criticar – teria adotado uma perspectiva práticas sociais. Assim, as expectativas prévias conduziriam a um reforço sistemático da auto-representação do social como espaço de conciliação e integração. Ver ROCHA, João Cezar de Castro. As circunstâncias das palavras. In: _____. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, 1998, p.76. 393 Para Guimarães, esse papel da história como legitimadora das decisões políticas era visível, principalmente, no que dizia respeito às questões de limites e fronteiras, ou seja, questões relacionadas à construção de uma identidade física para o país. GUIMARÃES, op.cit., p.15. 394 Id. ib., p.126-7. 395 Wehling associa esse rigor metodológico ao historicismo filosófico francês, do século XVIII, que supunha a existência de leis naturais, além da possibilidade de previsão histórica. Esta perspectiva estaria presente em Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778) e Condorcet (1743-1794), como uma “versão protonaturalista” do historicismo romântico-erudito, desenvolvido na Alemanha, com o nome de historismo. Sobre esse último, ver DUMOULIN, Olivier. Historicismo. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p.387-388. WEHLING, Arno. Estado, História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.44. 396 Seguindo o estudo de Arno Wehling, é possível supor que o historiador Varnhagen foi interpretado de diferentes formas, de modo a consolidar determinadas representações capazes de garantir-lhe o lugar que veio a ocupar na história da historiografia brasileira. Inegavelmente, já era reconhecido como historiador importante por seus contemporâneos – como João Francisco Lisboa (1812-1863) e Gonçalves de Magalhães (1811-1882), quando não devido a suas interpretações, por causa da metodologia de trabalho. Contudo, eram freqüentes as críticas, sobretudo a partir de 1870, quando o cientificismo produziu a demanda por outro tipo de interpretação da história. Wheling acompanha as críticas a Varnhagen feitas por Capistrano de Abreu (1853-1927), João Ribeiro (1860-1934), Silvio Romero (1851-1914) e José Veríssimo (1857-1916), considerando-os incapazes de romper definitivamente com seu modelo historiográfico. Até que, ao longo dos anos 1920 e 30, ocorreu uma releitura de sua obra, sendo possível identificar duas vertentes interpretativas: uma revisionista e outra, tradicional. A primeira promoveu críticas radicais, entre as quais, a de Manoel Bomfim e, nos anos 1930, a de Gilberto Freire (1900-1987), Caio Prado Jr. (1907-1990), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Roberto Simonsen (1889-1948). Esses últimos reconheceram a importância de sua contribuição documental, mas criticaram seu interesse por aspectos político-administrativos em detrimento das questões sociais. Quanto a vertente tradicional, não propôs rejeitar o paradigma de Varnhagen, apenas aperfeiçoá-lo. Este teria sido o caso de Oliveira Vianna (1883-1951) e dos historiadores preocupados com a questão política e, particularmente, com o estudo do Estado – Rodolfo Garcia (1873-1949), Max Fleiuss (1868-1943), Afonso Taunay (1876-1958) e Hélio Vianna (1908-1972). Varnhagen também foi lido por José Honório Rodrigues (1913-1987) e Nilo Odália

um tanto quanto diferente ao utilizar novas técnicas de investigação empírica e de análise documental, além de propor explicações pela via da hermenêutica, ao invés da busca de leis naturais. 397 A fim de localizar pistas para a compreensão da questão que norteia este estudo – a questão da objetividade diante da exigência de comprometimento intelectual – observemos como Varnhagen teria procurado romper com as conclusões da história filosófica do século XVIII, realizando procedimentos rigorosos para a reconstituição do passado, visto a partir de fatos considerados singulares ou irrepetíveis. Pode-se supor que ele era um historiador que fundamentava sua objetividade no rigor metodológico da análise documental, sendo que, diante da demanda pela escrita da história nacional, defendeu um compromisso com a realidade dos fatos. O método ajudaria a sustentar tal compromisso, reservando um espaço para a objetividade na narrativa – que deveria ser capaz de recuperar o sentido que os agentes históricos atribuíam a suas ações – e para a subjetividade, que o autor considerava possível de ser desvendada através da análise psicológica e hermenêutica. 398 Em poucas palavras, Varnhagen era adepto de uma história filosófica, baseada em um método científico que lhe teria permitido assumir um compromisso com a realidade fática. Aproximava-se de uma concepção moderna da história, a medida em que defendia o uso de um método crítico e reivindicava a objetividade e a imparcialidade. Porém, ao construir uma história onde se observava a valorização da colonização portuguesa e cuja interpretação baseava-se em valores éticos, aproximava-se da concepção clássica. 399 Como observou José Carlos Reis, a moderna crítica documental de Varnhagen não se opunha à tradição. Pelo contrário, recuperava-a, “livrando-a da mentira e da crise, restaurando-a em seu vigor”. 400 Desse ponto de vista, a narrativa deixava de ser mera crônica dos acontecimentos, para assumir um novo status cognitivo: o de meio de reconstituição de fatos. 401 Essa busca de um “passado como ele realmente aconteceu” – com base na fidelidade às fontes documentais – teria fornecido a Varnhagen, ao mesmo tempo, argumentos para escapar da acusação de

(n.1929), nos anos 1960, que contribuíram para situá-lo como um autor conservador. Wehling também observa a presença da matriz de Varnhagen no ensino e na pesquisa histórica no Brasil até os anos 1960. Cf. WEHLING, op.cit., p.195-219. 397 De acordo com Wehling, Varnhagen estaria próximo do historicismo romântico-erudito, desenvolvido na Alemanha. Id. ibid., p.45. Sobre a proximidade e as diferenças entre Varnhagen e o IHGB ver, também, REIS, José Carlos. Anos 1850: Varnhagen – O elogio da colonização portuguesa. In: _____. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p.23-50. 398 Id. ib., p.127-128. 399 Id. ib., p. 127-128. 400 Id. ib., p.49. 401 WEHLING, op.cit., p.129.

parcialidade e para comprometer-se com a construção da história nacional. 402 Contudo, em busca da imparcialidade, ele teria desenvolvido um verdadeiro “processo judicial” de análise da história, apoiado por provas documentais e testemunhais, transformando o estudo do passado em uma narrativa reconstituidora do fato e sua interpretação em sentenças emitidas à luz de determinados valores, princípios e critérios. 403 Entre essas determinações, prevalecia a visão de que o fato histórico seria um produto, não exclusivo, mas preponderantemente estatal. Lembro que Varnhagen escreveu sua história do Brasil no momento de consolidação do Estado Nacional (1840-1850), quando o grande problema enfrentado era o da transformação da ex-colônia em uma nação. 404 Para Wehling, a obra de Varnhagen tornou-se um paradigma não apenas da historiografia, mas da cultura brasileira, devido a três aspectos: “seu valor científico intrínseco; seu papel na construção de um determinado tipo de memória nacional; e sua força na elaboração de uma matriz explicativa da história brasileira”. 405 A crítica ao modelo historiográfico proposto por Varnhagen multiplicou-se no Brasil a partir dos anos 70 do século XIX, 406 momento em que cresceu a demanda por estudos sobre a realidade nacional, tanto em função da divulgação de teorias cientificistas em voga na Europa, 407 quanto em relação às transformações sociais decorrentes do fim da escravidão e dos sistemas econômico e político a ela relacionados. Exatidão e precisão, derivados da 402

De acordo com Wehling, o esforço de reconstituir integralmente o passado – guiando-se pela fidelidade ao acontecido – filiava-se, epistemologicamente, a uma tradição crítica que vinha do Renascimento propondo o fim dos argumentos de autoridade em matéria de filosofia e ciência. O conhecimento “verdadeiro” e objetivo da realidade somente seria possível com base na recuperação (através das fontes documentais) das intenções dos homens e tendências de uma dada época. Id. ib., p.133. 403 Wehling procura diferenciar a posição historista de Varnhagen, de acordo com a perspectiva alemã, do Positivismo, associado ao historicismo francês. Este último concebia a realidade social como uma extensão da natureza e, como ela, era submetida a leis mecânicas, determinantes dos fenômenos e das ações. A posição historista concebia a realidade como sintonizada com a cultura, cujo conhecimento “verdadeiro” e objetivo se daria pela via da hermenêutica e não do determinismo. Id. ib., p.133. 404 Id. ib.; e REIS, op.cit. 405 Arno Wehling observa aproximações e distanciamentos entre Varnhagen e o IHGB, sobretudo no que dizia respeito à concepção de história. Cf. WEHLING, op.cit., p.44-5 e 195. José Carlos Reis também fez a mesma constatação, destacando que o Visconde de Porto Seguro era visto com reservas pelo Instituto, ainda que já fosse considerado como um expoente da historiografia em sua época. Cf. REIS, op.cit., p.29. Através de um levantamento de assuntos da Revista do IHGB, é possível entrever um crescente interesse por Varnhagen a partir dos anos 1940 – como indicam os títulos: Formação de Varnhagen (1945); Vida e obra de Varnhagen (1954 e 1955) – mas, sobretudo, dos anos 1960: Singularidade de um historiador (1964); Sesquicentenário de Varnhagen (1967); Varnhagen: mestre da história geral do Brasil (1967), entre outros. 406 Patrícia Santos Hansen menciona a crítica proferida por Tristão de Alencar Alencar Araripe (1821-1908), História pátria – Como cumpre escrevê-la (1876), sobre a obra de Varnhagen, a quem considerava como um “investigador de fontes históricas”, que não se destacava como “historiador”. HANSEN, Patricia Santos. Feições e fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.43. 407 A Escola de Direito do Recife (inaugurada em 1854) teve um papel importante na divulgação das teorias científicas européias no Brasil. Destaca-se, particularmente, a chamada “geração de 1870” como difusora do ideário evolucionista e determinista, utilizado no combate a uma série de instituições, entre as quais a teoria do direito natural (que compreende a ordem natural como algo imutável) e o pensamento religioso. A proposta vanguardista dessa geração consistia, basicamente, na aplicação das teorias científicas européias à realidade brasileira. Ver SCHWARCZ, op.cit., p.143-159; VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

aplicação do método crítico, apesar de serem aspectos cruciais do processo de escrita da história, não eram mais suficientes. Reivindicava-se uma historiografia que levasse em conta outros recursos explicativos e narrativos, que permitissem a superação da mera exposição cronológica dos fatos. Esses recursos seriam fornecidos por um “bando de idéias novas”. 408 Assim, as perspectivas historiográficas vigentes na primeira metade do século XIX – a dos primeiros membros do IHGB e a de Varnhagen – foram postas, no final do século, diante do realismo e do cientificismo, que abrangia diversas tendências científicas e filosóficas orientadas pelas ciências naturais (entre as quais o positivismo e o evolucionismo). Não se tratava mais de consolidar o Estado Nacional. Em fins do século XIX, diante da abolição da escravidão, da incorporação do ex-escravo na sociedade e da entrada maciça de imigrantes, as preocupações voltavam-se para a definição do povo brasileiro. 409 No âmbito da historiografia observa-se, neste momento, a preocupação em ir um pouco além da objetividade metodológica. O trabalho dos historiadores – ou daqueles que então se dedicavam a pensar e escrever a história – deveria estar comprometido com uma pedagogia diferente daquela que havia sido aplicada na formação das elites imperiais. 410 Roberto Ventura observa que tanto a crítica literária, quanto à historiografia produzida no Brasil, a partir de 1870, teria sido marcada por modelos etnológicos e naturalistas e pela busca de unidade do saber – o que implicava na rejeição da especialização científica ou disciplinar. Valorizava-se o ensaio literário e histórico – onde se destacava a presença das noções de raça e natureza – capaz de permitir a associação eclética de teorias e conhecimentos dos mais variados. 411 Contudo, apesar da crítica cientificista, a obra de Varnhagen continuou, de modo geral, a orientar os estudos históricos produzidos no país, até que, a partir da década de 1920, tornou-se mais nítido o questionamento do cie ntificismo que marcara a Belle Époque brasileira. Foi então que, segundo Arno Wehling, outras correntes de pensamento social e científico puderam contribuir para a afirmação de duas vertentes de reflexão sobre a historiografia: uma vertente revisionista e outra, tradicionalista. Para os revisionistas, a escrita

408

ROMERO apud SCHWARCZ, op.cit., p.27. Ver, por exemplo, ORTIZ, Renato. Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias raciais do século XIX [1982]. In: _____. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994; LEITE, op.cit., p.179-267; VENTURA, op.cit., p.16-68. 410 Patrícia Santos Hansen observa, ao analisar o livro de João Ribeiro, que o momento em que este o escreve foi marcado pela urgência de uma escrita da história um pouco acima do comprometimento com a precisão metodológica e mais comprometida com a pedagogia, não tanto das elites, mas dos futuros cidadãos. HANSEN, op.cit., p.49. 411 VENTURA, op.cit., p.41. 409

da história – orientada pelo paradigma de Varnhagen – que valorizava o político e o administrativo – não cumpria as novas exigências para a compreensão do social. 412 De acordo com Tânia Regina de Luca, a história brasileira apresentava-se “sem cor ou brilho, circunstância que causava uma sensação de profundo desconforto”, uma vez que a essa disciplina atribuía-se a “nobre função de ensinar aos cidadãos a cartilha do patriotismo”. Analisando a Revista do Brasil, no período de 1916 a 1925, a autora observa a expectativa de que a história deveria fornecer um conjunto coerente de tradições a serem partilhadas e, ao mesmo tempo, promover a ruptura com a tradição colonial que, a partir daquele momento, passaria a ser considerada como sinônimo de atraso. Conduzidos pela “mão firme da metodologia científica”, os historiadores deveriam debruçar-se sobre o passado, privilegiando certos indivíduos e episódios, num trabalho de consagração [e de exclusão] que correspondia à necessidade de definir a nacionalidade. 413 Nos anos 20, a obra de Varnhagen foi retomada e submetida a leituras das mais diversas, entre as quais, a de Manoel Bomfim, que, segundo Arno Wehling, foi seu crítico mais radical. 414 Mas, antes de analisar essa crítica, é preciso retomar alguns pontos e explorar outros mais. Como já foi dito, um dos pressupostos centrais da concepção moderna de história seria a busca da imparcialidade. No caso do historiador, essa imparcialidade exigiria a localização de um ponto eqüidistante dos diversos princípios, valores e padrões existentes. Vigorava a crença de que, renunciando a adotar qualquer um deles, o historiador obteria um acesso mais objetivo à realidade. 415 Ricardo Benzaquen sugere que, ao lado da busca de objetividade e da exigência de imparcialidade, seria possível observar, ao longo do século XIX, a constante exigência de posicionamento intelectual, o que teria contribuído para um permanente estado de tensão na historiografia. 416 O autor contribui para a discussão sobre a questão da imparcialidade versus posicionamento no caso brasileiro, analisando aquele que é comumente considerando como o mais importante representante de uma história moderna no país: Capistrano de Abreu (18531927).417 412

WEHLING, op.cit., p.199. DE LUCA, Tânia Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: UNESP, 1999, p.86-7; ver, também, OLIVEIRA, op.cit., p.127-143. 414 WEHLING, op.cit., p.205. 415 ARAÚJO, Ronda noturna, op.cit., p.31-2. 416 Id. ib., p.32. 417 Capistrano de Abreu escreveu O descobrimento do Brasil (tese de concurso para o Colégio Pedro II), publicado pela primeira vez em 1883; Caminhos antigos e povoamento do Brasil, publicado em 1930; Capítulos de história colonial, de 1907, reeditado seis vezes entre 1927 e 1976; Ensaios e estudos: critica e história, publicação em três séries, iniciada em 1922; entre outros textos, muitos dos quais foram publicados em jornais e, posteriormente, transformados em livros. 413

Intérpretes de Capistrano o situam como um dos iniciadores da corrente de pensamento histórico brasileiro interessada em “redescobrir o Brasil”, através do estudo de suas particularidades, representadas, principalmente, pelos costumes e pela natureza do país. O leram como um historiador pioneiro na busca das identidades do povo brasileiro. 418 Esse historiador teria tentado solucionar a questão da imparcialidade versus posicionamento de dois modos diferentes. Num primeiro momento, a imparcialidade do historiador – que era um dos pressupostos da concepção moderna de história – estaria articulada ao desvendamento de uma verdade empírica, autorizada pela aplicação de um método crítico na análise de fontes primárias. Num segundo momento, diante das exigências de posicionamento, ele teria procurado solucioná- la através do que Benzaquen identifica como sendo uma “síntese explicativa, sociologicamente orientada, que, obviamente, se manifesta por intermédio do modelo narrativo”. 419 De acordo com o autor, o ideal de absoluta objetividade e distanciamento que a concepção moderna de história, em geral, e Capistrano, em particular, defendiam, mesmo quando circunscrito ao método em sua fase de crítica e classificação de documentos, dificilmente poderia ser sustentado. O único modo de apoiar o ideal de uma disciplina absolutamente realista e imparcial seria através de recursos narrativos. Ou seja, a solução para o impasse seria dada pela narrativa através da ocultação do narrador. Esta ocultação, contudo, trouxe algumas conseqüências significativas para se pensar a questão imparcialidade versus comprometimento, no que diz respeito à produção historiográfica. Para Araújo, a primeira 418

O lugar que Capistrano veio a ocupar na história da historiografia brasileira é o de um historiador inovador, que inaugura uma outra maneira de pensar a história do país, diferente daquela que vigorava até então. Visto como desbravador de documentos e propositor de uma nova interpretação sobre o Brasil e seus habitantes é considerado por Reis como o “Heródoto do povo brasileiro” (enquanto Varnhagen seria o “Heródoto do Brasil”). Também foi visto como um elo entre a geração do século XIX – representada pelo IHGB – e a geração do século XX – representada pelas universidades, como aparece em A. P. Canabrava. Ver REIS, op.cit.; a referência a Canabrava foi extraída do mesmo livro, p. 113, sendo que o texto utilizado por REIS é um artigo – Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano – publicado na Revista de História. São Paulo: USP, 18(88), out./dez., 1971. Mas, a leitura que parece ter contribuído com mais força na construção da memória sobre Capistrano – e da historiografia brasileira como um todo – foi a de José Honório Rodrigues, durante muito tempo isolado como pesquisador da pouco explorada história da escrita da história no Brasil. Segundo Rodrigues, Capistrano teria sido “a mais lúcida consciência da história do Brasil”. Ver RODRIGUES, José Honório, op.cit., p.53. Recentemente, a historiadora Laura de Mello e Souza propôs repensar o lugar de Capistrano na historiografia, considerando que ele não teria sido tão renovador quanto afirma a crítica historiográfica mais conservadora (representada por Rodrigues). De acordo com Mello e Souza, a obra de Capis trano – particularmente os Capítulos de História Colonial – seria “uma promessa não cumprida”. Ver SOUZA, Laura de Mello e. A força do detalhe, mimeo, s/d. Posteriormente publicado como Prefácio a Vida e morte do bandeirante. In: SANTIAGO, Silviano (org.). Intérpretes do Brasil, vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p.1191-1203. A dissertação de mestrado de Maria Luiza Gaffrée Ribeiro trás alguns apontamentos importantes para se pensar a memória construída sobre Capistrano. A autora recupera os estudos sobre esse historiador, dividindo-os em dois conjuntos: os estudos biográficos e os estudos críticos. Desses estudos emergem representações de Capistrano como: “príncipe dos historiadores” (Alba Canizares, 1931); “gênio solitário” (Pedro Gomes de Matos, s/d); “indiferente aos brilhos aparentes (...) desprendido de ambições materiais” (Virgílio Corrêa Filho, s/d) etc.; leituras que procuram, freqüentemente, associar a personalidade irreverente do autor à dimensão inovadora de sua obra. Ver RIBEIRO, Maria Luiza, op.cit., p.10-44. 419 ARAÚJO, Ronda noturna, op.cit., p.35.

conseqüência é a transformação do relato histórico em espetáculo, onde as pessoas falam por si mesmas, onde os próprios personagens parecem atuar como protagonistas, exibindo-se sem a interferência de qualquer vontade ou subjetividade externa. Portanto, a ocultação do narrador seria capaz de criar a objetividade (ou a impressão de imparcialidade) que o método crítico moderno pretendia alcançar. 420 Lembro que, diante de uma moderna concepção da história e almejando consolidar uma disciplina universitária, os historiadores europeus – particularmente os alemães – do século XIX consolidaram um método crítico de trabalho capaz de garantir à história um status científico. Entre as características desse método, destacava-se a preocupação com a autenticidade, a integridade e a correção dos documentos, ou seja: com a afirmação de que o documento é efetivamente contemporâneo ao fato que descreve; com a garantia de que ele teria sido preservado de acréscimos posteriores a sua produção – algo que poderia adulterá- lo, tornando-o menos confiável; e mediante a comparação do documento com outras fontes, a fim de confirmar as informações obtidas como sendo verdadeiras. Procedendo a esse método de crítica, o documento poderia ser observado como representativo de um acontecimento “tal como realmente sucedeu”. 421 Ricardo Benzaquen de Araújo destaca dois pressupostos que teriam ajudado a sustentar essa historiografia científica: o desprestígio das idéias de tradição e de memória – particularmente, relativas ao testemunho oral, sujeito a dúvidas e erros –, em favor do testemunho escrito; e a ênfase na compreensão objetiva e imparcial. 422 Trata-se, então, de um modo particular de entender a história como ciência. Ao contrário das ciências exatas (a física e a matemática) – dedicadas ao estudo das regularidades e à produção de leis –, a história seria um tipo de conhecimento do particular, daquilo que não se repete, não estando sujeita a 420

Id. ib., p.42. Esta frase é do historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886), considerado como um dos que mais contribuíram para o aperfeiçoamento do método histórico-crítico, assim como os franceses Gabriel Monod (1844-1912) e Charles Seignobos (1854-1942). Sobre a historiografia metódica, ver HOLANDA, Sérgio Buarque de. O atual e o inatual em Leopold von Ranke (Introdução) [1974]. In : RANKE, Leopold von. Ranke. São Paulo: Ática, 1985, p.7-62; TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru, SP: EDUSC, 2000; BURGUIÈRE, André. Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993. Lembro que o empenho em consolidar tal método sistematizava os esforços que já vinham sendo feitos, no século anterior. De acordo com Hayden White, uma abordagem crítica do registro histórico fornecido pela tradição era condição prévia do programa dos iluministas. Contudo, a vontade de estabelecer a verdade através da crítica era um princípio metodológico insuficiente para a criação de uma historiografia distinta daquela que era praticada pelos antiquários, uma vez que essa crítica não se pautava na percepção do conhecimento histórico como um problema. Ou seja, bastava o conhecimento por si só. Apesar disso, uma das questões levantadas durante o Iluminismo foi a questão de saber de que forma o conhecimento histórico seria possível. WHITE, op.cit., p.1589 e 163-4. Ernst Cassirer também analisa a relação do Iluminismo com a história, destacando o surgimento de uma “historiografia filosófica” que, preocupada em extrair da história “novas tarefas e novos problemas filosóficos”, contribuiu para o aperfeiçoamento do conhecimento histórico. CASSIRER, Ernst. A conquista do mundo histórico. In : _____. A filosofia do Iluminismo. Campinas, SP: UNICAMP, 1994 [1932], p.267-313. 422 Araújo ressalta que esses dois pressupostos estão presentes na historiografia do século XIX, ainda que não tenham sido discutidos de modo explícito. Para esse autor, Ranke teria se ocupado muito mais em aplicar tal método do que em sistematizá-lo. ARAÚJO, História e Narrativa..., op.cit., p.229. 421

leis gerais. No dizer de Araújo, “uma ciência quase da fragmentação”, que recupera, através de documentos, dados que já se considerava como lacunares, articulando-os em totalidades significativas. 423 Contudo, a construção dessa história científica não estaria relacionada apenas à adoção de um método crítico. 424 Como já foi dito, a preocupação com a articulação dos fatos localizados através do trabalho com a documentação, também teria contribuído para tal construção, sendo que essa articulação teria sido possível por meio da narrativa. 425 Esta teria desempenhado um papel fundamental – e não apenas ornamental – que era o de produzir uma totalidade coerente, capaz apresentar algo que possa ser entendido como história. Ou seja, tratava-se de encontrar um modo de articular diferentes informações, preservando a singularidade dos vários fatos encontrados na documentação. 426 A preocupação com essa dimensão literária do trabalho da historiografia não deve levar à suposição de que a especificidade do trabalho do historiador possa ser diluída, transformada em apenas uma entre outras narrativas ficcionais. 427 O interesse aqui é, justamente, localizar essa especificidade, investigando o modo como um autor propôs que a 423

Id. ib., p.232-4. Ricardo Benzaquen observa que o método crítico – ainda que não sistematizado – já era empregado muito antes de se pensar na história como uma disciplina científica. O autor vai buscar um exemplo de uso do método crítico anterior ao século XIX, na atividade dos “antiquários”, existente desde o século XV. Como já foi observado ao longo do texto, os “antiquários” eram estudiosos amadores da Antiguidade, reconhecidos pela erudição, que se empenhavam na busca de vestígios materiais do passado, com o objetivo não de produzir uma escrita da história, mas de elaborar catálogos, mapas, dicionários, etc. Eles distinguiam-se de outros investigadores do passado no que dizia respeito ao modo de conceber a história. Enquanto para alguns vigorava a concepção clássica da história como um “campo de experiências” que, pedagogicamente, poderia fornecer exemplos e modelos para o presente, os “antiquários” costumavam optar por privilegiar detalhes do passado, ainda que esses fossem insignificantes para o presente. Então, a questão principal para eles não teria sido buscar sabedoria no passado, mas buscar o passado por ele mesmo, importando apenas a sua autenticidade. Id. ib., p.236-7. 425 Ricardo Benzaquen propõe que a narrativa seja compreendida como um contraponto necessário ao método crítico da história. Ambos – narrativa e método – teriam contribuído para a afirmação da moderna concepção de história. Id. ib., p.242s. 426 Id. ib., p.241. Sandra Jatahy Pesavento chama a atenção para o seguinte aspecto: a construção da identidade brasileira não exigia apenas a articulação espaço/tempo – aquela que resgataria as dimensões da natureza/meio e da história – mas, também, a possibilidade de compatibilização da diversidade na unidade. Ou seja, “a identidade brasileira seria dada pela integração do múltiplo, pela capacidade ou não de absorção dos elementos dispares e aparentemente caóticos numa nova totalidade de referência”. Este trabalho de integração teria sido, em parte, realizado pela historiografia e pela literatura. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Contribuição da história e da literatura para a construção do cidadão: a abordagem da identidade nacional. In: _____ e LEENHARDT, Jacques (orgs.). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: UNICAMP, 1998, p.23 e 29. Ver, também, GUIMARÃES, op.cit., p.16-17. 427 Essa discussão sobre a especificidade da narrativa histórica pode ser encontrada nos seguintes text os: STONE, Lawrence. O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma nova velha história. RH – Revista de História. Campinas, SP: UNICAMP, n.2/3, p.13-37; HOBSBAWM, Eric. A volta da narrativa. In: _____. Sobre História. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 [1980], p.201-206; BURKE, Peter. A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: _____ (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p.327-348; CHARTIER, Roger. Da narrativa ou as armadilhas do relato (Cap. 2/ 5a. parte), in op.cit., p.80-84; VEYNE, Paul. Nada mais que uma narrativa verídica. In: _____. Como se escreve a história. Lisboa: Ed. 70, 1971, p.13-24; HARTOG, François. A arte da narrativa histórica. In: BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique (orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, p.191202; BENATTI, op.cit.. 424

história fosse escrita. Também é preciso lembrar que a reflexão crítica sobre a cientificidade da história e a especificidade de sua escrita não é um fenômeno atual. Ele pode ser localizado mesmo entre historiadores do século XIX. 428 Mas, é preciso considerar certos aspectos, quando se analisa um texto sobre a história produzido no Rio de Janeiro da década de 1920, por um escritor como Manoel Bomfim. Em primeiro lugar, trata-se de um momento de demarcação do trabalho historiográfico, onde se assiste o esforço em distinguir o trabalho do historiador daquele que era praticado por uma diversidade de estudiosos. Lembro que até os anos 30 não existiam faculdades dedicadas à formação de especialistas da historiografia. De acordo com Angela de Castro Gomes, o ofício do historiador era exercido pelos “homens de letras”, uma categoria bastante heterogênea, que incluía bacharéis em direito, médicos, engenheiros e literatos que exerciam as atividades de magistério, jornalismo e crítica literária, se ocupando de modo diferenciado da escrita da história, dos debates políticos e dos temas sociais. 429 Esses “homens de letras” disputavam espaço com aqueles que já se propunham a constituir um tipo de saber histórico mais especializado, através da pesquisa documental, sendo que esses “pensadores da história” lidavam com um leque de assuntos bastante amplo. Falavam de biologia, etnologia, folclore, lingüística e geografia, além de história, obviamente. Filósofos e literatos, eles escreviam sobre a história da geografia, sobre fauna e flora, estudavam línguas indígenas e interessavam-se por etnografar festas religiosas e populares. Alguns costumavam ocupar cargos políticos e diplomáticos. Esses mesmos estudiosos – com sua bagagem intelectual diversificada – deram os primeiros passos no sentido da divisão e da especialização dos campos de conhecimento. 430 Contudo, considera-se que é muito difícil classificar o que constituiria a produção historiográfica desenvolvida nas três primeiras décadas do século XX, sendo possível supor que não houvesse um único modelo de contribuição a ser valorizado como estudo histórico. De acordo com Gomes, eram classificados como trabalho de historiador: “Tanto a narrativa que resulta da pesquisa documental, quanto o trabalho de tradução e prefaciamento de livros estrangeiros, de localização e edição de documentos e ensaios

428

Diz Antonio Paulo Benatti: “a crítica à cientificidade da história não é um fenômeno pós-moderno, um ‘irracionalismo redivivo’ como gostam de frisar os defensores do racionalismo ligado à tradição iluminista. Poderíamos rastrear exemplos dessa crítica entre os literatos e mesmo entre os historiadores desde o século XIX. Esses exemplos, contudo, seriam minoritários e marginais”. O autor cita o exemplo de Anatole France (18441924), autor mencionado por Bomfim, em A América Latina, p.351, em uma rápida reflexão sobre a utopia. Ver BENATTI, op.cit., p.88. François Anatole Thibaut, poeta e romancista francês, escreveu: O crime de Silvestre Bonnard (1881), História contemporânea (1897-1901), etc. Prêmio Nobel de Literatura em 1922. 429 Ver GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.38. 430 Id. ib., p.12 e 75-6.

históricos, de redação de compêndios voltados para o público escolar, e até mesmo a elaboração de romances históricos”.431

Não se observavam distinções hierárquicas entre a pesquisa, o ensino e a divulgação mais ampla. Em decorrência disso, o perfil do historiador era muito diferenciado em termos de contribuições. Contudo, por mais difícil que fosse, a identificação do historiador poderia ser feita através da localização de tradições historiográficas que, segundo a autora, eram representadas por “temas, procedimentos, referências organizacionais e simbólicas e suas figuras-chave”, 432 tais como as que se observavam no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 433 No entanto – e este é o segundo ponto que considero importante – além de procurar indícios do empenho em delimitar o trabalho do historiador, é preciso considerar que, em virtude das discussões sobre a inserção do Brasil na modernidade, 434 e de todo o trabalho de pensar a nação e localizar suas particularidades, existia a demanda por um esforço interpretativo da história do país. 435 Tratava-se, então, de reconstruir a história nacional num momento em que a escrita da história não era trabalho específico de historiadores de ofício. À história – mas não apenas aos historiadores – caberia responder por nossas origens e desenvolvimento. Para Astor Antônio Diehl, fazer a história no Brasil do início do século XX – ou seja, após a Proclamação da República (1889) – envolvia a ampla tarefa de “criar a nação, republicanizar e abrasileirar a República e construir uma consciência nacional”. 436 Tarefa

431

Id. ib., p.38. Id. ib., p.38. 433 Patrícia Santos Hansen identifica a falência do IHGB como instituição capaz de manter-se, após a década de 1870, como única instância legítima da produção historiográfica. A autora chama a atenção para a importância que os jornais adquiriram, a partir de então, como locais de produção historiográfica. HANSEN, op.cit., p.43; Wehling também chama a atenção para o fato de que o IHGB, após 1868, não mais polarizava a produção historiográfica, que se encontrava bastante dispersa, nem sempre em consonância com o momento cientificista. WEHLING, Arno. As conjunturas de 1838/1854 e 1868/1883 e o papel da memória e da história (Cap. 3). In: _____. De Varnhagen a Capistrano: historismo e cientificismo na construção do conhecimento histórico. Rio de Janeiro: dep. de História/UFRJ, tese para professor titular, 1992, p.127-8. 434 SEVCENKO, op.cit.; SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo das Letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: FGV, 1992. 435 Nas primeiras décadas do século XX, parte do esforço para lidar com a história do país foi empreendido pelos autores de literatura escolar (manuais didáticos e para-didáticos), importante tanto em termos educacionais quanto econômicos. O editor Garnier queixou-se de João Ribeiro, quando este lhe entregou os originais de Fabordão, após ter entregue seu manual História do Brasil, ao editor Francisco Alves: “O livro didático, a carne, é para o Alves; o osso, a literatura, é para mim”. Sobre esse assunto, ver BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, 2a. ed., p.148; e MACHADO NETO, A. L. Estrutura social da República das Letras: sociologia da vida intelectual brasileira. São Paulo: EDUSP, 1973, p.82-3. Analisando o livro Através do Brasil (1910), de Manoel Bomfim e Olavo Bilac, André Pereira Botelho observa a constituição da “literatura escolar nacional”, que em muito se aproximava dos “romances de formação” alemães. Ver BOTELHO, op.cit.. 436 DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo, SC: EDIUPF, 1998, p.152. 432

vista como imperativa diante de um quadro que, para alguns era caracterizado pela falta de patriotismo e, por outros, pela inexistência ou inviabilidade da própria nação. 437 Lúcia Lippi de Oliveira ana lisou essa demanda pela escrita da história nacional. Empenhados em determinar “desde quando somos uma nação”, os intelectuais das primeiras décadas do século XX buscaram formular respostas, empreendendo um esforço no sentido de explorar o passado, explicar o presente e elaborar projetos para o futuro. A identidade do Brasil estaria, pois, vinculada à (re)construção de suas experiências no tempo, ou seja, à história. 438 Em terceiro lugar, Manoel Bomfim não pode ser considerado como um historiador, no sentido que, já em sua época, era atribuído a autores como Capistrano de Abreu ou João Ribeiro (1860-1934). O primeiro garantia sua identidade como historiador através de sua experiência no trato com fontes documentais em arquivos – o que era fundamental num momento em que se almejava conferir cientificidade à história. O segundo, através de sua atividade docente e, como observou Patrícia Santos Hansen, através da produção de “reflexões mais filosóficas” sobre a disciplina. 439 No entanto, é possível situá- lo como um “pensador da história”, recuperando seu trabalho como crítico da historiografia, num momento em que os historiadores podiam ser identificados não por formação ou titulação, mas devido a um conjunto de práticas autodidatas e tradições intelectuais. Luiz Costa Lima analisou o papel da crítica literária na cultura brasileira do século XIX,

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dimensão que me parece relevante para se pensar a historiografia e sua pretensão

teórico- metodológica como disciplina científica fundada na objetividade de um método e na imparcialidade de uma escrita, na medida em que seja possível rastrear a atividade de crítica historiográfica (o que está presente em Manoel Bomfim). Não interessa aqui discutir os pressupostos que orientam a interpretação de Costa Lima, 441 mas apenas recuperar alguns aspectos referentes à crítica literária que poderão ser úteis para se pensar a crítica historiográfica. Assim, ele aponta as seguintes características, 437

Ver SEVCENKO, op.cit.; e ORTIZ, op.cit., p.13-35. Sobre história e nacionalismos, ver OLIVEIRA, op.cit.; DE LUCA, op.cit., p.85-130; PESAVENTO, op.cit., p.17-38; SMITH, Anthony D. O nacionalismo e os historiadores. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p.185-208. 439 As reflexões de João Ribeiro fora m divulgadas através do manual História do Brasil. Curso superior, publicado pela primeira vez em 1900. Além de analisar o manual, Patrícia Santos Hansen investiga sua apropriação por um público de intelectuais capazes de atribuir a Ribeiro um papel relevante na historiografia brasileira. HANSEN, já citado. 440 LIMA, Luiz Costa. A crítica literária na cultura brasileira no século XIX. In: _____. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p.30-55. 441 Costa Lima defende que a crítica literária brasileira foi marcada, em seus primórdios, pela ausência de um ambiente intelectual propício e também de um público leitor necessário ao seu desenvolvimento, nos moldes da moderna crítica européia; e pela incapacidade para a teorização, decorrente da existência entre nós de uma “cultura auditiva” (herança do bacharelismo), mais preocupada em opor demonstrações, legitimando-as pela argumentação retórica. Id. ib., p.32, 36, 40 e 54. 438

presentes (em maior ou menor grau) nos três principais críticos da virada do século – Silvio Romero (1851-1914), José Veríssimo (1857-1916) e Araripe Júnior (1848-1911): rigidez ética – expressa através da defesa de valores com base em critérios sociológicos e/ou retóricos; o pragmatismo; a ausência de teorização; a indefinição de conceitos. Sobre esse quadro comum, os três autores citados desenvolveram estratégias críticas diferentes, atuando em meio à demanda – por parte de seus pares intelectuais e da elite político-econômica de sua época – de explicações sobre as particularidades do Brasil e a especificidade de ser brasileiro. 442 Supondo que a produção historiográfica estivesse submetida às mesmas exigências, 443 é preciso considerar o lugar da crítica em geral – e do crítico Manoel Bomfim, em particular – ao refletir sobre a questão da objetividade e do comprometimento e suas implicações para a escrita da história no país. Considero que essa dimensão crítica contribui para que esse autor seja considerado relevante para um estudo sobre a história da historiografia no Brasil. Da mesma forma, pode-se supor que tenha sido essa mesma dimensão crítica a responsável, em parte, pela posição que Bomfim ocupou entre seus contemporâneos, assim como, pelo lugar que lhe foi reservado por seus intérpretes posteriores. Enfocando essa atividade crítica da historiografia – expressa, principalmente, nos textos que analiso neste capítulo – acredito ser possível recuperar sua reflexão sobre a história, onde estão presentes observações sobre como a história deveria ser escrita, que não se referem unicamente à narrativa historiográfica, mas que também tocam em questões metodológicas referentes à relação entre objetividade e subjetividade, no trabalho do historiador. É possível supor que esta atuação de Bomfim como crítico estivesse, ao menos parcialmente, relacionada a sua atuação no âmbito educacional. Esta suposição deriva da identificação em seu texto de elementos que permitem considerar sua crítica como um tanto quanto pedagógica, doutrinária ou educativa; uma crítica que se dedicava a apontar erros na escrita da história e a propor soluções. Pode-se destacar alguns aspectos relativos a esta

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Silvio Romero – procurando romper com a tradição retórica – optara por associar a literatura não as belas letras, mas a “letra social”. Essa ênfase nos critérios sociológicos (especialmente o nacionalismo) era orientada por determinismos (principalmente o racial). Considerada como uma ciência lógica, a crítica teria como função inserir o escritor no “desenvolvimento geral das idéias”, sendo que, ao invés de corrigir, o crítico deveria julgar, seguindo seus critérios pessoais. José Veríssimo defendia que a crítica deveria estar empenhada no esforço de construção nacional. Contudo criticou o uso do “critério nacionalístico” de Romero, entendendo que o estilo e a gramática também eram importantes. Distinguiu a literatura da ciência (campo do saber e da verdade), tratando-a como terreno da arte e da emo ção. Araripe Júnior também se opunha à idéia da crítica literária como ciência. Propôs apreender o perfil psicológico do escritor, tomando o estilo como um indício da “alma do criador”. Contra teorizações rígidas, procurou análises flexíveis, baseadas na empatia e elegeu o gosto como critério principal da crítica. Para Costa Lima, tais divergências de estratégias compartilhavam de um quadro comum, marcado, sobretudo pelo uso de códigos moralizantes e pelo pragmatismo: a crítica literária deveria contribuir para pensar a especificidade do Brasil e do brasileiro. Id. ib., p.41-3, 47. 443 Patrícia Santos Hansen demonstra que João Ribeiro deixava claro a função pedagógica que a história deveria cumprir, a qual estava articulada à necessidade de desvendamento da es pecificidade nacional. HANSEN, op.cit., p.49.

atuação como crítico e como educador – ainda que esta última atuação não seja um problema privilegiado nesta dissertação – que deixem entrever problemas historiográficos e algumas de suas idéias sobre o ensino da história. Como foi dito na introdução desta dissertação, entre 1898 e 1902, Bomfim atuou no magistério ensinando Moral e Cívica na Escola Normal, onde também foi professor de Pedagogia e Português. Nesta mesma escola, ele dirigiu o Pedagogium, uma instituição destinada a ser o “centro propulsor das reformas e melhoramentos de que carecesse a educação nacional”. 444 Também era membro do Conselho Superior de Instrução Pública do Distrito Federal, sendo que, em 1899, assumiu a Diretoria da Instrução Pública, cargo que deixou em 1907. Neste mesmo ano, atuou como deputado federal, particularmente interessado em questões relativas à educação. O cargo na Diretoria de Instrução Pública parece ter sido de suma importância, uma vez que cabia a esta instituição a definição dos conteúdos das disciplinas escolares, através da indicação dos livros didáticos a serem adotados em todas as escolas públicas; a fiscalização da atuação dos professores e a distribuição de recursos financeiros, etc. 445 Ainda em 1899, Bomfim escrevera um parecer favorável sobre o Compêndio de História da América, de Rocha Pombo (1857-1933),446 que disputava, num concurso, a chance de ser adotado nos cursos de História da América da Escola Normal. Interessado no tema tratado, ele procurou justificar sua iniciativa em emitir tal parecer, mesmo em se tratando de um tema que admitia estar fora de sua alçada. 447 Após essa fase de atuação na Instrução Pública e na política, o autor passou a se dedicar à produção de livros didáticos e para-didáticos, além de continuar a publicar na imprensa carioca. Esta trajetória, que vai da ocupação de cargos públicos ao trabalho de escrever livros educativos, pode ser vista como estando de acordo com a perspectiva de uma missão a ser cumprida pelos intelectuais em sua época, qual seja: a de lutar pelo projeto da “educação como redenção nacional”, supondo que sua implementação seria capaz de garantir 444

As informações sobre a atuação de Bomfim na Escola Normal (criada em 1880) e no Pedagogium (criado em 1880 e efetivamente extinto em 1919) foram extraídas de PENNA, op.cit. 445 A compreensão da importância do Conselho de Instrução Pública foi viabilizada através da leitura do estudo de Alessandra Frota Martinez, sobre a educação no Império e das informações fornecidas por Moacyr Primitivo, para o período inicial da República. Ver MARTINEZ, Alessandra Frota. Escola primária para o povo: a instrução pública na Corte e a formação do Estado Imperial. In: _____. Educar e instruir: a instrução popular na Corte Imperial – 1870-1889. Niterói: UFF/Departamento de História (dissertação de mestrado), 1997, p.8-28; e MOACYR, Primitivo. A instrução e a República, 1o . vol. – Reformas Benjamin Constant (1890-1892). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941, p.57-59. 446 Francisco José da Rocha Pombo (1857-1933) nasceu em Morretes, Paraná. Escreveu, entre outras coisas, A religião do belo (1882), A supremacia do ideal (1889), História do Brasil (1905), Dicionário de Sinônimos (1914), além do citado Compêndio de História da América, publicado em 1900. 447 Disse Bomfim: “tal era o interesse que esse assunto apresentava para mim; e só assim se explica essa pretensão de tratar de matéria fora da minha especialidade, e a qual não podia apresentar nenhum título de competência oficial”. BOMFIM, A América Latina..., op.cit., p.35.

uma progressiva transformação da sociedade brasileira, contribuindo para a definição de algumas pré-condições indispensáveis para se pensar o Brasil como nação. 448 A instrução popular foi um assunto intensamente discutido a partir de 1870 e durante as primeiras décadas da República. Dizia respeito às transformações sócio-políticas e econômicas do período, momento em que a educação passava a ser compreendida como um “problema social”, devendo ser compatível com a inserção de homens livres (ex-escravos e imigrantes) num mercado de trabalho em expansão. Manoel Bomfim defendia a instrução popular como pré-condição para o progresso humano que, por sua vez, conduziria ao progresso da sociedade. 449 Esse papel progressista atribuído ao ensino lhe teria permitido afirmar a viabilidade do Brasil diante das teses deterministas que naturalizavam o atraso e o progresso das nações, orientando-se pelas noções de meio e raça. 450 Mas, antes de tentar compreender o modo como esse autor concebia o ensino da história – ponto mais interessante para este estudo – é preciso lembrar que, no Brasil, a história foi introduzida no currículo escolar na primeira metade do século XIX – ou seja, no momento de afirmação do Estado Nacional. A história como disciplina escolar foi estabelecida com a criação do Colégio Pedro II, em 1837, e era guiada pelos parâmetros do ensino francês. Este determinava que a história da civilização fosse norteada pela história da Europa Ocidental. A história do Brasil como disciplina distinta da história universal só surgiu em 1895. Era caracterizada pela cronologia política e pelo estudo da biografia de brasileiros ilustres, além de acontecimentos considerados relevantes para a afirmação da nacionalidade. Cabia à história como disciplina escolar: construir a memória da nação como uma unidade indivisível e fornecer os marcos de referência para se pensar o passado, o presente e o futuro do país. 451

448

BOTELHO, op.cit.,; e SILVA, José Maria de Oliveira. Da educação à revolução: radicalismo republicano em Manoel Bomfim. São Paulo: USP/Departamento de História, 1990 (dissertação de mestrado). 449 Precisei recorrer à bibliografia secundária a fim de localizar algumas idéias de Bomfim sobre educação. Além dos textos de Maria Tereza Chaves de Mello, José Maria de Oliveira Silva e André Pereira Botelho, já citados, também foi muito útil para iniciar a exploração do terreno o livro de AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. As idéias de Bomfim sobre o progresso serão exploradas no segundo capítulo desta dissertação. Por enquanto, para uma introdução à noção de progresso, fica a referência do texto de LE GOFF, Jacques. Progresso/Reação. In: _____. História e Memória. Campinas, SP: UNICAMP, 1990, p.233-275. 450 Segundo André Pereira Botelho, a idéia de uma reforma social como resultado da ação educativa permitiu a Bomfim ultrapassar uma explicação biológica da sociedade e construir outra, de ordem histórico-cultural, através da qual o autor pôde enfatizar a possibilidade de mudança histórica. BOTELHO, op.cit., p.71 e 74-5. 451 Ver, por exemplo, NADAI, Elza. O ensino de história no Brasil: trajetória e perspectiva. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.13, n.25/26, set.1992/ago. 1993, p.193-162; ver, também, MATTOS, Selma Rinaldi de. Ordenar, civilizar e instruir. In: _____. O Brasil em lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.33-57.

A experiência de Bomfim como defensor da educação popular (seja como professor, jornalista, político ou escritor de livros didáticos) provavelmente contribuiu para que ele pudesse estabelecer relações entre o ensino da história e a instrução cívica. O autor compreendia a educação como uma tarefa “urgentíssima para a República e para a Pátria”, sendo que o professor deveria utilizar elementos da vida nacional em todas as disciplinas. Segundo ele: “Todos os exemplos de composição e redação, todos os problemas de matemática; todos os exemplos de moral, de política, e de sociologia, podem ser referidos à vida nacional e são elementos de que pode se servir o professor inteligente e apto para dar à sua escola um caráter nacional”.452

Para Bomfim, a história a ser ensinada baseava-se em antagonismos: o elemento nacional opunha-se ao estrangeiro (lusitano); o povo se opunha às classes dirigentes. A história deveria ser útil no sentido de formar tradições comuns, glorificando heróis e valorizando a consciência nacional. A tarefa específica do professor seria capacitar os alunos para julgar os fatos e os personagens, identificar causas e efeitos e incutir- lhe sentimentos de “admiração, entusiasmo... ou compaixão, repulsa, reprovação”. 453 Contudo, para além dessa visão da história – bastante informada por uma concepção clássica – como submetida ao julgamento dos homens, Manoel Bomfim propunha que: “O estudo da história não se poderia limitar a simples enunciados dos fatos, que ficariam, deste modo, sem valor. No entanto, é esse o caráter que lhe dão em muitos casos; e, com isto, se torna o ensino inteiramente árido, estéril, difícil e inútil. É nessas condições que vemos reduzir-se a instrução histórica à crônica exclusivamente política, ou militar – recitação de nomes de príncipes, listas de datas, indicação de casas reinantes... (citadas sem discernimento, e onde se amontoam personagens banais, não permitindo ao aluno o lobrigar uma seqüência racional de efeitos, nem descobrir a linha geral do desenvolvimento necessário ao grupo social, ou a evolução das respectivas instituições). Os personagens se tornam, então, inteiramente ilógicos; surgem como deuses, ou se movem como títeres, porque – ou não se destacam, quase dos acontecimentos, ou são apresentados como a causa definitiva deles... Ora, uma das utilidades da história é mostrar-nos em que medida os indivíduos influem, realmente, sobre a marcha dos acontecimentos, e de que forma se refletem sobre a alma dos heróis as necessidades e as aspirações gerais. Do estudo da história, deve o aluno trazer esta noção: de que um homem não cria uma época, mas pode concentrá-la, sendo o realizador de uma aspiração”.454

452

BOMFIM apud SILVA, op.cit., p.23. A citação foi extraída do artigo Nacionalização da escola. Educação e Ensino. Revista Pedagógica Mensal da Instrução Pública Municipal do Distrito Federal, julho de 1897, ano I, n.1, p.23. 453 SILVA, ib., p.23. 454 BOMFIM apud ALVES FILHO, Aluízio. Pensamento político no Brasil – Manoel Bomfim: um ensaísta esquecido. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979, p.42. A citação foi extraída de BOMFIM, Lições de pedagogia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915. É interessante notar que este livro, dividido em vinte e quatro capítulos, deixa claro a distinção metodológica entre o ensino da história, da matemática, das ciências físicas e naturais, da

Esta longa citação fornece algumas pistas importantes para compreender o modo como Bomfim pensava a história, assim como permite identificar aspectos que o autor provavelmente valorizava na historiografia, base para a formulação de suas críticas sobre o assunto. Logo de início, o texto indica sua rejeição da história factual, baseada em no mes e datas e na crônica política e militar. Nas entrelinhas, está a crítica da narrativa que não é capaz, no seu entender, de estabelecer uma seqüência coerente de acontecimentos, uma linha geral de evolução, que permita acessar causas e efeitos. Do que se conclui que o autor valorizava a didática de uma história teleológica. Mas, o ponto central dessa passagem parece ser a referência ao papel dos indivíduos na história. Estes embora não criassem uma época, concentrariam elementos que ajudariam compreendê- la. Dessa rápida apresentação da atuação de Bomfim como educador, passemos aquela que motiva este trabalho: a atuação como “pensador da história”, destacando que ambas não se encontram deslocadas uma da outra. Em O Brasil na História, 455 Bomfim analisou a questão da objetividade versus subjetividade, em relação ao trabalho do historiador. Ele propôs avaliar as implicações para a escrita da história da dupla exigência de neutralidade científica e comprometimento intelectual, através de uma reflexão sobre o lugar dos interesses e das paixões. A história do Brasil teria sido deturpada à negação dos interesses por parte dos historiadores em busca da imparcialidade. No segundo capítulo – Deturpações e Insuficiências da História do Brasil – ele se ocupou do que considerava como sendo as razões da deturpação da história do Brasil: a influência da sociologia francesa (com destaque para o positivismo) e a ação de historiadores considerados antinacionalistas. A história do Brasil teria sido “deturpada” devido a uma causa externa e a uma série de causas internas. A primeira possuiria o efeito negativo de diminuir os valores nacionais, assim como restringir o critério dos historiadores oficiais. Quanto às causas internas, teriam pervertido a opinião pública corrente, negando o valor “dos que fizeram o Brasil”, 456 ou seja, daqueles que teriam sido os verdadeiros responsáveis pela afirmação da tradição. Como causa externa da deturpação, ele aponta a “deficiência de critério histórico” para registrar as tradições brasileiras, o que teria ocorrido devido à influência francesa. Considera que, por causa da facilidade da língua e da relativa proximidade de tradições, essa influência ter-se-ia feito presente na historiografia. Esta, assim orientada, acabou sendo induzida a erros

geografia, da educação moral, da educação física e higiênica, da instrução sobre a vida afetiva e a constituição do caráter, além de conter uma dissertação sobre o problema da felicidade. 455 BOMFIM, O Brasil na História..., op.cit. 456 Id., ib., p.71.

de julgamento sobre a história do Brasil, pois que “o francês é um critério sempre falho no julgar os outros povos, sobretudo no mundo moderno”. 457 Dois aspectos dessa influência negativa são destacados e atacados. O primeiro aspecto é a pouca “plasticidade” do francês. De acordo com o autor, pouco plásticos – qualidade “que permite a cada povo, sem sair de sua tradição, fecundá- la no contato com outros povos” – os franceses teriam perdido a visão das distâncias em relação aos outros (os estranhos), não tendo sido capazes de reconhecer a realidade, desde que essa não dissesse respeito a suas “coisas próprias”. Diante do exótico, acusa-os de terem perdido toda a lógica em busca de efeitos pitorescos ou de estranheza, o que os teria tornado capazes das mais “ventrudas inverosimilhanças”. 458 Bomfim considerava os estudos franceses como caracterizados pela ausência de rigor científico, uma vez que tais estudos apresentavam, segundo ele, um reduzido critério de observação e, conseqüentemente, uma pouca noção da realidade. 459 Critérios de observação seriam, portanto, necessários para um estudo rigorosamente científico. Critérios que poderiam ser buscados nos métodos da biologia – como foi destacado no início deste capítulo – mas que também deveriam ser informados pelo conhecimento psicológico, que o autor considerava capaz de orientar, de modo objetivo, o estudo das subjetividades. O segundo aspecto atacado é o positivismo da escola sociológica francesa. Para Bomfim, “apesar do nome, nada menos positivo do que essa construção”, que faz da ordem a condição essencial da evolução. O autor critica a rigidez da obra de Comte (1798-1857), que considera incompatível com a “maleabilidade da vida”. Tal rigidez seria expressa através de generalizações preconcebidas, que conduziriam a uma fórmula evolutiva: a lei dos três estados. 460 O Positivismo seria, então, “A doutrina mais antipática e mais avessa à verdadeira humanização da espécie; doutrina sem ductibilidade para corresponder aos imprevistos e novos aspectos da evolução social, doutrina onde as qualidades gerais de uma mentalidade média dominaram o gênio do indivíduo, pervertendo-o, esterilizando-o no abuso das generalizações a outrance, e no exagero das fórmulas, tão nítidas quanto vazias. Essas qualidades formam uma ambiência, ou gênio coletivo a que se subordina toda atividade”.461

Crítico das generalizações, não conseguia evitá- las quando, por exemplo, empregava aspectos localizados em alguns estudos para caracterizar o francês e seu olhar sobre a

457

Id. ib., p.56. Id. ib., p.56. 459 Id. ib., p.63-68. 460 Id. ib., p.64. 461 Id. ib., 64-5. 458

realidade. Mas ele criticava, principalmente, as generalizações que teriam contribuído para “erguer construções, para o total da humanidade, com induções havidas somente da história francesa”, o que corresponderia a “minguar o Homem, para metê- lo num bolso de calça”. 462 O autor via como contribuição positiva dos franceses a luta pelas liberdades políticas; a herança intelectual dos enciclopedistas e das reivindicações revolucionárias. No entanto, observava que tais influências sobre “um país desamparado mentalmente, na degradação bragantina que o guiava” produzira, sobretudo, maus resultados: distorções dos julgamentos sobre a própria tradição brasileira, sem critérios de observação próprios. Devido à influência de tal fator externo, uma história deturpada teria sido produzida, orientada a partir de um “critério de empréstimo”, “insuficiente” e incompatível com uma tradição genuinamente brasileira. Uma história consagradora de grandes personagens assim teria sido feita, desprezando aqueles que, segundo o autor, verdadeiramente teriam constituído a “gente do Brasil”, e que seriam os legítimos responsáveis pelas tradições. 463 Quanto às causas internas da “deturpação” da história, é possível sintetizá- las em três procedimentos: 1) a negação ou camuflagem de interesses; 2) a “perversão” das fontes; 3) a redução da história à enunciação de fatos e à listagem de nomes. Para Manoel Bomfim, a história teria sido deturpada, inicialmente, através da negação dos interesses nada neutros do historiador. A depuração dos fatos, em busca da suposta verdade, equivaleria a percorrer a escrita da história sobre o referido fato identificando, antes de tudo, os interesses daqueles que a escreviam. Seria a partir da identificação de tais interesses que se tornaria possível, em primeiro lugar, situar o historiador em relação aos fatos; e, em segundo, identificar as verdades ditas ou omitidas. O bom historiador seria aquele capaz de valorizar a tradição brasileira (sendo brasileiro ou não), enaltecendo-a de acordo com certo rigor investigativo. Também seria aquele capaz de reconhecer que a escrita da história era movida por interesses e paixões dos quais não era possível escapar, não valendo a pena tentar. Ou seja, o autor considerava a dificuldade, senão a impossibilidade de obter que os historiadores apreciassem e avaliassem as situações históricas de acordo com um critério absolutamente objetivo. Este somente poderia ser dado mediante a adoção de pontos de vista universais, representados pela idéia de humanidade, de progresso e de justiça, e não pela perspectiva nacional. Em A América Latina – ele defendeu a idéia de que a tradição seria um aspecto subjetivo do desenvolvimento social, pois que estaria sujeito aos valores humanos predominantes num determinado momento. Daí que, “os superiores do momento” 462 463

Id. ib., p.66. Id. ib., p.69-70.

procurassem fazer valer seus valores tradicionais, recorrendo algumas vezes a motivos aparentemente científicos, tais como, por exemplo, as explicações climáticas, ou uma “sociologia para brancos” baseada nos conceitos de arianismo e dolicocefalia – “pulhices que se desmentem na própria história”. 464 Como foi visto antes, Bomfim utilizou a noção de interesse como perspectiva de análise social. Procurou mostrar como a pretensão à neutralidade e objetividade da ciência era negada pelo emprego não explícito de analogias e metáfo ras. Ou seja, criticava os procedimentos discursivos da ciência, observando que eles não eram assumidos como tal, sendo camuflados, naturalizados e legitimados como conclusões derivadas da observação e comprovação experimental. Contrariando a postura de ocultamento das práticas discursivas, dizia que “toda doutrina que se apóia sobre a observação, e se acorda com as leis gerais do universo, deve ser tida como verdadeira até prova do contrário”. 465 Tal prova não se daria somente através da experiência e da observação, mas também, da explicitação – através dos procedimentos discursivos – do interesse por trás da prática científica. A segunda causa da “deturpação” da história dizia respeito à “perversão” das fontes em que ela estaria baseada, sendo necessário que elas fossem reexaminadas. Contudo, sua história do Brasil fundamentava-se, não na descoberta de filões documentais, mas na revisão historiográfica. Trata-se, portanto, de um autor que embora estivesse preocupado com o uso das fontes, não se dedicava à pesquisa arquivística e pouco utilizava documentação primária. Já foi observado que, no início do século, a utilização de fontes primárias constituía um pressuposto importante para o trabalho do historiador, visto que prevalecia a história metódica, orientada pela crítica documental. Vigorava o “preconceito do inédito”, que supunha a utilização de fontes arquivísticas, compreendidas como indícios seguros para uma informação correta e, conseqüentemente, para o estabelecimento da verdade histórica. Por trás desse preconceito haveria a suposição idealista de uma realidade preexistente imutável, à espera da correta identificação pelo investigador. 466 A afirmação da história enquanto ciência, num momento em que as fronteiras disciplinares eram pouco definidas, passava, portanto, pelo estabelecimento de um corpus documental a partir do qual seria possível construir o conhecimento histórico, definir o fazer historiográfico e conseqüentemente, a identidade do historiador, como um tipo de especialista. Sendo assim, compreende-se – em parte – a não inclusão de Manoel Bomfim entre aqueles que, naquele momento, se moviam no sentido de definir o campo historiográfico. Porém, é possível argumentar que a não inclusão desse autor entre os 464

Id. ib., p.52-3. Id. ib., p.36. 466 WEHLING, Estado, história, memória..., op.cit., p.153. 465

historiadores, mais que indicar um tipo de falta no trabalho produzido por ele (falta que o excluía), indicaria a existência de diferentes discursos sobre o conhecimento e a prática historiográfica. Discursos que nem sempre estariam de acordo com aquele que lentamente se oficializava. Ao propor uma revisão crítica da historiografia, Bomfim esquivou-se da pesquisa documental (arquivística). Apesar disso, é possível afirmar que esse autor não deixou de produzir um discurso crítico sobre a história e sua escrita. Este discurso, contudo, não foi suficiente para incluí- lo entre aqueles que criticava – os “historiógrafos oficiais”. O que em parte – e apenas em parte – pode ser atribuído ao fato de que esse discurso possuía, como eixo norteador, a afirmação do interesse nada neutro por trás da prática de escrever a história. Ao optar pela crítica historiográfica, ao invés do trabalho com fontes primárias, o autor procurou contrapor, de um lado, uma escrita da história considerada oficial; e de outro, as fontes em que essa se baseava. O objetivo era claro: desconstruir o discurso historiográfico minando- lhe as bases. Mostrar que a “deturpação” da história ocorria através do estudo que “pervertia” as fontes, porque – supunha o autor – não era capaz de “depurar” (filtrar) a tradição que tais fontes expressava m. Quanto a terceira e última causa da “deturpação” da história – a redução da história à enunciação de fatos e à listagem de nomes – referia-se à influência positivista associada à opção de escrever uma história “vista de cima”. Manoel Bomfim se posiciono u contra uma historiografia “oficializada”, que se limitava a enunciar fatos, reduzindo a história à crônica política ou militar, expressa através da recitação de nomes e datas. Repetindo, tal escrita da história valorizava personagens que, “inteiramente ilógicos; surgem como deuses, ou se movem como títeres, porque – ou não se destacam, quase dos acontecimentos, ou são apresentados como a causa definitiva deles...”. Pelo contrário o estudo da história deveria desenvolver a noção de que “um homem não cria uma época, mas pode concentrá- la, sendo o realizador de uma aspiração”. 467 Ele sugeriu acreditar que uma das utilidades da história seria mostrar em que medida os indivíduos poderiam influir sobre a “marcha dos acontecimentos” e de que forma esses indivíduos seriam capazes de articular necessidades e aspirações gerais. A crítica à oposição entre indivíduo e sociedade está presente. O autor os observa como aspectos complementares dizendo que: “Indivíduo e sociedade, egoísmo e simpatia, organização e revolução..., combinam-se na realização da vida social, como em cada personalidade se combinam – hábito e

467

BOMFIM apud ALVES FILHO, op.cit., p.42.

iniciativa, conservação e reforma, consciente e inconsciente, aspiração de repouso e horror à monotonia, disciplina e exigência de liberdade...”.468

Considerando a crítica que fez aos historiadores do Brasil e acreditando que ela possa fornecer pistas para a compreensão do modo como ele pensou a história, proponho observar como estão representadas em seu texto as imagens do que identifico como sendo o bom e o mau historiador, vinculando-as às características de suas obras. Tal construção implicava em ressaltar certos aspectos do historiador-alvo, omitindo outros tantos, de modo a elaborar uma imagem suficientemente ilustrativa, ou exemplar, para sua argumentação. Ele criticou, entre outros com menos destaque, o trabalho de Gilbert Chinard – apresentado como mestre de conferências da Brown University, autor de L’Exotisme Americain (s/d) – passando rapidamente pela obra de dois professores de universidades belgas, de tendências francesas – C. de Lannoy e H. Van-der Linder (Histoire de l’Expansion Coloniale des Peuples Europeans, 1907). E, finalmente, abordando A Terra e a Evolução Humana (1922), de Lucien Febvre (1878-1956), apresentado como professor da Universidade de Strasburgo. 469 Observemos mais de perto suas críticas a esses autores, tendo em mente elas podem contribuir para a compreensão de sua própria escrita, demarcando-a, ainda que por oposição. Gilbert Chinard – “uma bela inteligência francesa, dilatada por uma segura cultura norte-americana” – foi criticado porque, segundo Bomfim, além de dedicar páginas e páginas aos sucessos dos franceses no Brasil, incorrera em diversos erros: localizar o forte de Villegagnon ora na beira de um rio, ora no Maranhão; identificar Caramuru como “um Rei com os seus súditos”; confundir a Flórida com o Brasil. Em suma, a crítica de Bomfim a Chinard resume-se na identificação de erros que são considerados como indícios de pouco critério científico e pouca noção da realidade, ou melhor, pouco rigor com as informações. 470 Quanto a Lannoy e Van-der Linder – “uma literatura rigorosamente objetiva, científica” –, o autor considerou-os alheios à história da colônia devido à afirmação de que “a colonização portuguesa [foi] antes de tudo costeira”. E mais não disse, passando a uma obra que interpretou como sendo “mais ostensivamente científica”: A Terra e a Evolução Humana, de Lucien Febvre, que “transuda ciência positiva”. 471

468

BOMFIM, op.cit., p.172. Não foram encontradas referências a Gilbert Chinard, Charles de Lannoy e H. Va n der Linder. Quanto a Lucien Febvre, que dispensa grandes apresentações, cabe lembrar que se trata do conhecido historiador que, junto com Marc Bloch (1886-1944), fundou a revista Annales d’Histoire Économique et Sociale (1929), marco da historiografia francesa contemporânea. É autor de Philippe II et la Franche-Comté (1911), Le Rhin (1935), Le probléme de l’incroyance au XVI siècle: la religion de Rabelais (1942) etc. 470 BOMFIM, op.cit., p.60-1. 471 Id. ib., p.61-2. 469

O único ponto de discordância em relação a Febvre diz respeito ao uso do meio ambiente como chave-explicativa do social. No livro analisado, o historiador francês defendia a idéia de que o meio tropical seria um obstáculo definitivo à exploração humana, estando o Brasil condenado por “uma natureza vegetal sem sorrisos para o homem”. Febvre serviu como exemplo da inexatidão dos franceses que, “Contam e julgam por preconceitos literatizados, a que subordinam a própria fantasia (...) Fechados em casa, os Franceses como que perderam a capacidade de estender os olhos por outros horizontes, e são inacessíveis as outras realidades. Possuídos da manière, eles são inverossímeis, quando não puramente convencionais”.472

Como foi dito anteriormente, a crítica aos estudos franceses sobre o Brasil pode ser resumida em três pontos interligados: um reduzido critério de observação, que resulta na pouca noção de realidade, indicativa da ausência de rigor científico. A exigência de rigor científico – relacionada ao ideal de objetividade e distanciamento que a concepção moderna de história exigia – fazia parte, portanto, das preocupações de Manoel Bomfim. Contudo, sua crítica foi pontual, não se estendendo de modo analítico sobre a história escrita por outros autores, mas, sim, sobre pontos considerados vagos ou errôneos. Pontos que servem para ilustrar sua própria argumentação, muito mais do que para consolidar um contra-discurso crítico. Apesar disso, ele se empenhou em criticar os historiadores do país (brasileiros e estrangeiros) e, mais especificamente, se opôs a um modelo historiográfico vigente durante o século XIX, cujo maior exemplo terá sido Varnhagen. Mas, além da preocupação com o rigor científico, o trabalho de articulação das informações através da narrativa parece-me importante para pensar o caso de Manoel Bomfim. No terceiro capítulo de O Brasil na história – intitulado Os que fizeram a História do Brasil –, o autor identifica parte da produção historiográfica brasileira que considerava ilegítima, através de uma crítica aos historiadores que responsabiliza pela deturpação da história do país. Também apresenta, de modo sucinto, aqueles que considerava como os verdadeiros historiadores nacionais: Frei Vicente do Salvador, Robert Southey, Capistrano de Abreu e João Ribeiro. O principal alvo do seu ataque foi a história portuguesa do Brasil escrita por historiadores que ele considerava como ilegítimos representantes da nação brasileira porque seriam legítimos representantes da Coroa Portuguesa. Foi por isso que incidiu ferozmente

472

Id. ib., p.62-3.

sobre Rocha Pitta (1660-1738), 473 o “digno súdito do trono bragantino”; Alves Nogueira (m.1913), 474 o “pró-holandês”; e, sobretudo, Varnhagen, para quem reservou uma série de adjetivos injuriosos: “historiador mercenário”; o “menos humano dos homens”; “brasileiro de encomenda”; “sem bondade”; “patriotismo de convenção”; “deturpador da história do Brasil”. “Historiadores por encomenda, opacos refratores, sem outro maior valor que o da distorção”, 475 teriam produzido, segundo ele, uma história sem grande preocupação com a crítica e a doutrina nacionalista. Teriam optado por valorizar a erudição escrevendo vastas histórias, desenvolvidas em pormenores que revelaram tão somente as “futilidades desencabidas, inertes, indigestas, próprias somente, para abafar, do passado, o que tenha valor (...) Tentam, com esse esforço erudito, encher o vazio de pensamento e a nulidade de lógica”. 476 Bomfim identificou a construção de um “ortodoxismo histórico” em correspondência com a política imperial. Ortodoxismo que consistia em “dar corpo a tudo que pudesse valer como prestígio para os que exploravam esta pátria, contrariando mesmo, explicitamente, a expressão dos seus legítimos sentimentos, velando as verdadeiras glórias da sua história”. 477 Para ele, Varnhagen teria sido, senão o primeiro, pelo menos o principal historiador a dar o Brasil à Casa portuguesa reinante. Teria valido como “escarafunchador de arquivos”, mas esse mesmo valor, ele o teria perdido, ao apossar-se da história de frei Vicente do Salvador “para torná- la coisa sua, e fazê- la nos interesses da sua ambição”. 478 Neste ponto, acusa-o de haver se apropriado da obra do frei sem citá- lo. Varnhagen aparece como exemplo máximo do mau historiador: “Historiador – grande historiador, não tinha, nem a capacidade reconstrutora de Mommsem, nem o poder evocador de Thie rry, ou a ciência estilizada de Taine, ou o tom humano de Michelet e Gibson (sic). Hirto, nos desvãos em que se meteu, sem pensamento para suster um passado, foi um panorama de cemitérios: fez obra de secador absorvente, e ressequiu os assuntos, ao mesmo tempo em que velava os documentos. Quando chega o momento de dar de si mesmo, quando não podia ser, apenas, inerte e opaco, encontramo-lo – o menos humano dos homens, brasileiro de encomenda, sem bondade, num patriotismo de convenção”.479

473

Sebastião da Rocha Pitta nasceu na Bahia e estudou em Coimbra. Membro da Academia Real de História Portuguesa e da Academia Brasílica dos Esquecidos. Autor da História da América Portuguesa , de 1730, reeditado em 1878 (Bahia) e 1880 (Lisboa). 474 Manoel Tomaz Alves Nogueira, doutor em Filosofia (Alemanha), foi professor de alemão e grego. Escreveu Compêndio de história moderna (1868), Conspiração do Tiradentes: episódio da moderna história brasileira (1867), O Príncipe de Nassau (1900), etc. 475 BOMFIM, op.cit., p.111. 476 Id. ib., p.120. 477 Id. ib., p.110. 478 Id. Ib., p.122. 479 Id. ib., p.122.

A comparação de Varnhagen com Mommsen (1817-1903), 480 Thierry (1795-1856),481 Taine (1828-1893), 482 Michelet (1798-1874)483 e Gibbon (1737-1794) 484 abre espaço para comentários sobre algumas das fontes onde Bomfim, provavelmente, encontrava inspiração para suas representações sobre a escrita da história e os historiadores. Tais fontes eram, sobretudo – como o trecho citado demonstra – historiadores do início do século XIX.

480

Theodor Mommsen, especialista em direito e história romana, é considerado como um dos mais preeminentes historiadores alemães dedicados à história Antiga, no século XIX. Seu trabalho mais conhecido é a Histoire romaine, publicado entre 1854 e 1885. De acordo com Etienne François, Mommsen seguia a linha denominada “realismo crítico”, tendo sido conhecido por seu esforço em criar uma “história total”, recorrendo a várias disciplinas (jurisprudência, filologia, história literária, arqueologia, etc.). Além disso, sua forma de expressão – aspecto que parece ser valorizado por Bomfim, quando este lembra sua “capacidade reconstrutora” – também chamava a atenção: o autor recebeu o Nobel de Literatura em 1902. Cf. FRANÇOIS, Etienne. Mommsen. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p.561. 481 Augustin Thierry (1795-1856) publicou, entre 1817 a 1820, uma série de artigos sobre a história inglesa e francesa que, mais tarde, foram reunidos nos volumes Lettres sur l’histoire de France (1827) e Dix ans d’études historiques (1834). Seu livro mais conhecido foi Histoire de la conquête d’Anglaterre par les Normands (1825). Segundo Pierre Rosanvallon, Thierry considerava o tema da conquista como o fato fundamental da história moderna, sendo que seu maior objetivo parece ter sido “ajudar a burguesia francesa a melhor tomar consciência de si mesma”. Rosanvallon também observa que sua escrita era marcada por “vastos afrescos pitorescos e coloridos”. Cf. ROSANVALLON, Pierre. Thierry. In : BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p.744-5. 482 Hypolite Taine (1828-1893) – que Bomfim valorizava por sua “ciência estilizada” – desenvolveu estudos sobre estética, filosofia e política. Seu livro Les origines de la France contemporaine (1876-1899), em 11 volumes, é considerado um marco da história política de fins do século XIX. De acordo com Blandine BarretKriegel, Taine caracterizava-se por seu determinismo cientificista, dirigido pela idéia de que “todos os sentimentos, todas as idéias... têm suas causas e suas leis: a assimilação das pesquisas históricas e psicológicas às pesquisas fisiológicas e químicas, eis o meu objeto e minha idéia principal” (TAINE apud BARRET -KRIEGEL, p.727). Além disso, considerava que a produção literária e artística possuía três fatores determinantes: a raça (as disposições hereditárias), o meio (o clima e a organização social) e o momento (os acontecimentos históricos). Caberia ao historiador dominar essas três influências. Cf. BARRET -KRIEGEL, Blandine. Taine. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p.727-28. Segundo Philippe Tétart, Taine concebia a história como uma “ciência experimental”, tendo sido influenciado tanto pela filosofia, quanto pela biologia, zoologia e química. Cf. TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru, SP: Edusc, 2000, p.93-4. 483 Jules Michelet, historiador francês, doutor em letras, professor na Escola Preparatória (Escola Normal Superior) e no Collège de France, chefe da seção histórica dos Arquivos Nacionais, etc. Autor da Histoire de France (1833-1869), entre muitos outros livros. De acordo com Guy Bourdé e Hervé Martin, Michelet destacava-se por sua tentativa de realizar uma “ressurreição integral do passado”. Para tanto, teria defendido a necessidade de ampliar o campo da história – que, em sua época privilegiava o mundo da política, além de comumente isolar os objetos de estudo – através da investigação dos costumes e dos acontecimentos marcantes na vida dos povos. Utilizando a metáfora do organismo para compreender o social, Michelet acreditava que a vida implicava na solidariedade dos órgãos (relação todo/partes). Além disso, para que a “ressurreição da vida integral” fosse possível, a paixão do historiador (expressa pela vontade de abraçar a “matéria viva da história”) seria imprescindível. Paixão que ajudaria a tornar possível uma percepção do passado enquanto vida em movimento. Acreditava, também, que o historiador, por estar extremamente imbricado com o trabalho que realiza, não poderia apagar-se. Pelo contrário, deveria estar presente com todas as suas paixões e emoções. Cf. BOURDÉ, Guy e MARTIN, Hervé. Michelet e a apreensão “total” do passado. In: _____. As escolas históricas. S.l.: Publicações Europa-América, s.d. (1983), p. 82-96. Philippe Tétart observa que Michelet também pode ser lembrado por seu esforço em apresentar a história como “um instrumento de leitura da providência nacional”. Além disso, suas considerações sobre a educação como meio através do qual o homem poderia tomar seu destino nas mãos, indicam suas preocupações pedagógicas. Cf. TÉTART, op.cit., p.89-91. 484 Presume-se que Bomfim, ao mencionar “Gibson”, esteja se referindo, na verdade, a Edward Gibbon, autor de The history of decline and fall of the Roman Empire (1776-1788). Segundo Aline Rousselle, o trabalho de Gibbon teria sido marcado pela análise conjunta da história religiosa e da história profana. A autora também destaca como características: o “estilo notável e tradicional” e a “ironia das observações pessoais”. Cf. ROUSSELLE, Aline. Gibbon. In : BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p.354-55.

Thierry, Michelet e Taine fizeram parte da geração de historiadores franceses que viveram um período marcado por paixões literárias e políticas. Como observa Charles-Olivier Carbonell, durante a primeira metade do século XIX, a Europa experimentou uma historiografia bastante marcada pelo que o autor chama de “uma paixão pelo passado”, que pode ser demonstrada através do sucesso dos romances e dramas históricos, assim como das narrativas de contos e lendas. 485 Esta “paixão pelo passado” estaria, ao menos em parte, relacionada ao movimento romântico, surgido na Alemanha no final do século XVIII. Espalhou-se pela Europa ao longo das primeiras décadas do oitocentos, tendo chegado ao Brasil por intermédio da França, algum tempo após a vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. 486 Como observa Karin Volobeuf, ainda que, de modo geral, o romantismo pudesse ser caracterizado como um movimento guiado pela defesa da individualidade e da inspiração, assim como pelo apreço pela natureza e pelas peculiaridades especificamente nacionais, seu desenvolvimento esteve intimamente ligado ao contexto que o acolhia. 487 Segundo Lilia Schwarcz, no Brasil, de meados do século XIX, “O romantismo aparecia como o caminho favorável à expressão própria da nação recém-fundada, pois fornecia concepções que permitiam afirmar a universalidade, mas também o particularismo e, portanto, a identidade, em contraste com a metrópole, mais associada nesse contexto à tradição clássica. O gênero vinha de encontro, dessa maneira, do desejo de manifestar na literatura uma especificidade do jovem país, em oposição aos cânones legados pela mãe pátria , sem deixar de lado a feição oficial e palaciana do movimento”.488

Uma visão romântica do passado foi desenvolvida, sendo que, no caso europeu, Carbonell identifica como características dessa visão: o interesse pela Idade Média, a valorização do exótico, o emprego de um método de reconstrução do passado mais poético que erudito, marcado pela intuição, imaginação etc.; além disso, a utilização de metáforas

485

CARBONELL, Charles-Olivier. O século da história. In : _____. Historiografia. Lisboa: Teorema, s/d (1981), p.92-30. 486 Lembrando que, precedendo o movimento romântico em fins do século XVIII, desenvolvera-se na Alemanha uma corrente literária denominada Sturm und Drang (1767-1785), marcada pelo protesto de jovens intelectuais contra a arbitrariedade do poder absolutista e contra os imperativos da Razão iluminista, optando por cultivar as emoções e os sentimentos. Nutriam desconfiança em relação à possibilidade de realização dos ideais de liberdade e autodeterminação do indivíduo através da educação, preferindo a emancipação do indivíduo por meio do irracionalismo e do sentimento religioso. Entre os principais expoentes do Sturm und Drang estavam Goethe (1749-1832), Schiller (1759-1805) e Herder (1744-1803). Ver VOLOUBEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Unesp, 2000, p.26-7. 487 Id. ib., p.29. 488 SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Um monarca nos trópicos”: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Imperial de Belas-Artes e o Colégio Pedro II (Cap. 7). In: _____. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.128.

também era muito comum. 489 Quanto ao caso brasileiro, destacava-se o interesse pelo indígena e pela natureza tropical. 490 Ao recuperar em plena década de 1920, os nomes de historiadores da primeira metade do século XIX – momento marcado pela difusão de uma espécie de sensibilidade romântica – Manoel Bomfim apresentou alguns parâmetros para o trabalho a que se propunha ao escrever sua trilogia sobre o Brasil: “depurar” a história nacional, livrando-a do que considerava como entraves ou obstáculos ao pleno desenvolvimento da nacionalidade. Parte desse esforço de “depuração” pode ser percebido em O Brasil na história, mais especificamente, no capítulo intitulado O patriotismo brasileiro, quando o autor destaca a importância dos escritores e poetas românticos: Castro Alves (1847-1871), Álvares de Azevedo (1831-1852), Fagundes Varella (1841-1875), José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864), tidos como os melhores representantes do país nas letras. 491 Cabe ressaltar que não se pretende aqui classificar Manoel Bomfim como um autor romântico. Ao invés disso, o que se procura é tentar compreendê-lo como um pensador dotado do que pode ser identificado como uma sensibilidade romântica, sendo que esta teria sido informada por suas leituras dos historiadores europeus e escritores brasileiros do início do século XIX. Voltando à crítica de Bomfim ao Visconde de Porto Seguro, considera-se que ela possa servir como uma espécie de chave para a compreensão de O Brasil na história, uma vez que grande parte deste livro dedica-se a atacar a perspectiva historiográfica de Varnhagen, através da utilização de argumentos extraídos do romantismo e do cientificismo, como foi demonstrado no início deste capítulo. Bomfim escolheu a História da Independência (1916) como livro exemplar de Varnhagen. Observou que o fato de se tratar de um período curto, com fatos precisos, ter- lheia permitido documentá- lo relativamente bem. Porém, destacou a obra do Visconde – que considerava um “reacionário bragantista” – como deturpadora da história do Brasil, expressa num estilo “pesadão, deselegante, sem arte”. 492 489

CARBONELL, op.cit., p.92-5. Para além dessa perspectiva romântica, havia na Europa outras práticas de escrever a história, relacionadas a gêneros e públicos diversos. De acordo com Carbonell, na primeira metade do século XIX coexistiam, na França, as historiografias dos institutos e academias; a historiografia das “sociedades instruídas”, que oscilavam entre a monografia e o discurso; as historiografias universitárias; a historiografia dos “homens de letras”; a historiografia didática e a “vulgarização histórica”. Arno Wehling, por sua vez, identifica quatro opções historiográficas no período em questão: 1) a história ficção, que viria a constituir o chamado romance histórico; 2) a crônica histórica, subjetiva e impressionista; 3) “a retórica histórica, ou uso retórico da história, com escasso ou nenhum compromisso com as evidências documentais”; 4) a filosofia da história, que se propunha a encontrar nos social, as regularidades e leis das ciências naturais. WEHLING, As conjunturas..., op.cit.p.89-135. 490 VOLOBUEF, op.cit., p.203; SCHWARCZ, op.cit., p.132-144. 491 BOMFIM, O Brasil na história..., op.cit., p. 170-209. 492 Id. ib., p.123-4.

Uma das temáticas favoritas de Bomfim parece ter sido, justamente, a história da Independência, 493 configurada como uma simples transmissão de domínio “do rei ao imperador”. Para ele, "adotamos o Estado português-bragantino, trazido com os fujões de 1808, e que, pulando sobre 1831-32, veio a ser a miserável e feia tradição política em que ainda vivemos". 494 A perspectiva é de continuidade, restando ao historiador resgatar o legítimo movimento de independência ocorrido desde os primeiros tempos da colônia e que teria sido promovido por colonos, "portugueses de nascimento", mas "brasileiros em tudo mais". Outro historiador alvo da crítica foi Pereira da Silva (1817-1897), 495 no seu livro História da Fundação do Império Brasileiro (1864/1868). Para Bomfim, esse historiador teria seguido a trilha de Varnhagen, ao escrever uma história cheia de “malevolências” sobre a Revolução Pernambucana de 1817. Além disso, não teria tido nenhum respeito pela verdade ao se dizer imparcial, construindo a versão de uma Revolução Pernambucana sem raízes, como resultado do imprevisto – o que, segundo Bomfim, contribuíra para a construção de uma história antibrasileira. 496 A importância de criticar Pereira da Silva, um historiador que ele próprio considerava menor, se deve ao fato de que seus muitos e espessos volumes teriam atingido um amplo público, para o qual não haveria outras obras que servissem como medida comparativa. Daí a necessidade de criticá-lo. No seu dizer, Varnhagen e Pereira da Silva fizeram escola, onde se destacariam Fernandes Pinheiro (1825-1876), Mecedo (sic) e Moreira de Azevedo (1832-1903), 497 pobres de espírito, “legítimos continuadores desse historiar”, que não possuiriam critérios históricos, substituindo-os por epítetos. E assim tais historiadores teriam construído uma narrativa pontuada por termos que desqualificariam personagens históricos, denegrindo-os sem explicação. 498 493

Id. ib., p.I-XXXII. Id. ib., p.524. 495 João Manuel Pereira da Silva, jornalista e político nascido no Rio de Janeiro. Autor de História da Fundação do Império Brasileiro (1808-1925), em 7 volumes, publicados entre 1864 e 1868; História do Brasil, de 1831 a 1810. Governos regenciais durante a minoridade (1878), etc. 496 BOMFIM, op.cit., p.126-7. 497 Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, sacerdote e literato. Doutor em Teologia. Foi vice-reitor do Instituto de Meninos Cegos e catedrático de retórica e política no Colégio Pedro II. Pioneiro no estudo comparativo dos escritores brasileiros e das escolas literárias. Autor de Curso elementar de literatura nacional, Visão de Cabral ou Descobrimento do Brasil, etc. O nome Mecedo (sic), sugere que Bomfim esteja se referindo a Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), médico, escritor e político nascido em Itaboraí, Rio. Membro do Partido Liberal, deputado geral, também foi professor do Colégio Pedro II. Autor de A moreninha (1844), Mulheres de mantilha (1870), etc., além de numerosos livros didáticos, tais como: Noções de Corografia do Brasil (1873), Efeméride histórica do Brasil (1877) e Lições de História do Brasil (1861), durante muito tempo adotado no Pedro II. Moreira de Azevedo, autor de Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades, etc. 498 BOMFIM, op.cit., p.130-2. 494

Para Manoel Bomfim, “Foi nos esconderijos de tais histórias que desapareceram os grandes mártires e verdadeiros precursores da independência do Brasil, aqueles cuja existência , mesmo com a derrota em que se lhes tirou a vida, tornou impossível a submissão, ou ainda, a simples união do Brasil a Portugal (...)”.499

O autor alegou que através da pena desses historiadores a história nacional fora escrita e deturpada, difamando os heroísmos genuinamente nacionais e consagrando aquilo a que esses se opunham: a política imperial. O “coro dos historiadores bragantinos” teria se ocupado em falsificar a história do Brasil, relegando ao segundo plano os acontecimentos que para ele possuíam significado relevante no rol das tradições nacionais. Deste modo, a Insurreição Pernambucana teria sido esquecida; a unidade nacional, confirmada como resultado da independência promovida pela monarquia bragantina; e os bandeirantes paulistas, difamados. Bomfim acreditava que, “contra a natureza, contra o espírito americano, contra a própria história” – portanto, contra as tradições nacionais – fora construída uma história do Brasil com o intuito de demonstrar que a nação deveria pertencer à dinastia que fizera a Independência. “Empreiteiros dessa história”, os historiadores teriam deturpado ou esquecido qualidades essenciais do caráter brasileiro, “inventando vícios e crimes por conta da nação”. No seu dizer, uma “história triste” assim foi feita, merecendo “exclamações de protestos, repugnâncias, cólera, motejo, repulsa...”, contudo, o intuito da crítica era destacar na historiografia (ou, nas “historiagens”) os “hiatos, acasos, erudições chulas e elogios parvos” que constituíram efeitos antinacionais. 500 Segundo o autor, os primeiros e legítimos historiadores do Brasil teriam sido dois: frei Vicente do Salvador e Robert Southey. Frei Vicente (c.1567-c.1636) escrevera a História da América Portuguesa (1627)501 considerada a “primeira e genuína história do Brasil", onde se encontraria “um testemunho de fé, em depoimento pitoresco e expressivo, insubstituível quanto ao que foi diretamente conhecido pelo autor", constituindo “a aurora da mentalidade brasileira e da história nacional...”. 502 Mas, o primeiro crime da historiografia fôra deixar desconhecida para o público nacional a obra que considerava como a primeira apresentação do Brasil ao mundo: a História do Brasil, do historiador inglês Robert Southey (17741843),503 publicada entre 1810 e 1822 na Inglaterra, com o título de The history of Brazil. Foi

499

Id. ib., p.132. Id. ib., p.111 e 121-22 501 O livro de Frei Vicente do Salvador – jesuíta e escritor nascido na Bahia – era inédito até 1889. 502 BOMFIM, op.cit., p.117. 503 Robert Southey, poeta e historiador inglês. Autor de Jean of Arc (1896), The fall of Robespierre (1894), etc. 500

traduzida para o português e publicada em seis volumes, em 1862, ou seja, após a publicação da História Geral do Brasil, de Varnhagen, lançada entre 1854 e 1857. Southey – “nosso amigo”, “historiador poeta”, “grande coração” – era o exemplo máximo do bom historiador que, segundo Bomfim, o Brasil ainda não produzira. Considerava-o assim porque acreditava que, ao valorizar a história brasileira que “em nenhuma outra de Portugal é inferior”, o inglês havia se orientado por um “critério de verdade”. 504 Ele identificou no historiador inglês a valorização da nação brasileira, aspecto que considera raro na historiografia que criticava e caro na historiografia que propunha. Valorizar a nação era, por si só, suficiente como um indício de verdade histórica. A depuração dos fatos, em busca da suposta verdade, equivaleria a percorrer a escrita da história sobre o referido fato identificando, antes de tudo, os interesses daqueles que a escreviam. Seria a partir da identificação de tais interesses que se tornaria possível, em primeiro lugar, situar o historiador em relação aos fatos; e, em segundo, identificar verdades ditas ou omitidas. O bom historiador seria aquele que valorizasse a tradição brasileira (sendo brasileiro ou não), enaltecendo-a de acordo com certo rigor investigativo. Também seria aquele que fosse capaz de reconhecer que a escrita da história era movida por interesses e paixões dos quais não era possível escapar. Outro tipo de historiador que mereceu sua crítica foi aquele que mesmo sem a pretensão da imparcialidade (impossível, segundo Bomfim), apoiava-se em alegadas competências e no peso de uma multiplicada produção para defender determinadas opiniões. Assim ele criticou Oliveira Lima (1867-1928) 505 – autor de D. João VI (1909) e a História do reconhecimento do Império (1901). Considerou-o um bom exemplo dos “historificantes contemporâneos”, que a título de objetivismo se sentiriam desobrigados da tarefa de alcançar a verdade histórica, desobrigados de assumir os interesses por trás da prática historiográfica. Outro que não lhe escapou foi Euclides da Cunha. Mesmo reconhecendo o desenvolvido prestígio intelectual em torno de seu nome e predispondo-se a considerar seus conceitos com atenção, afirmou que ele abusara do seu “enorme e justo prestígio literário” para, a pretexto de resumir os antecedentes da República, recapitular a história bragantina até o ponto de relacioná- la com a unidade nacional brasileira. 506 Capistrano de Abreu e João Ribeiro representariam exceções dignas de destaque, pois “não se confundem na mentalidade dos clássicos deturpadores”. O primeiro foi considerado por Bomfim como “um grande pensamento votado à história do Brasil, superior a doutrinas e a consagrações” que “timbra em ser apenas, um lúcido e incansável pesquisador, a organizar 504

BOMFIM, op.cit., p.85. Sobre Oliveira Lima, ver p.76, nota 247. 506 BOMFIM, op.cit., p.135. 505

bom material para a verdadeira história do Brasil”. 507 Porém, Capistrano não foi poupado da observação de que, embora pudesse ter aceito ser o autor da “verdadeira história nacional”, a “modéstia e um rigoroso objetivismo o tem afastado de tal tarefa”. Disse a seu respeito: “Não que lhe falte horizonte de idéias, nem capacidade de generalização e segurança de conceitos, ou senso crítico, para estender o pensamento por toda a realidade do Brasil (...) No entanto, quem tenha tratado com esse puro espécime de homem de ciência – a sua ciência, guarda a convicção de que ele jamais se atirará a uma obra de conjunto, que tanta vez exige – afirmar por simples dedução, ou compor em imaginação, a projetar conceitos sem outro sustentáculo além da pura lógica. Pesquisador intransigente prendeu-se ao regime mental do rigoroso objetivismo. Eis a significação da sua obra”.508

Quanto a João Ribeiro (1860-1934) – “historiador por direito de magistério, historiador por direito, principalmente, de muito saber, na lucidez de um descortino seguro” – Bomfim destacou que preferiu limitar-se ao didaticismo escrevendo uma série de manuais. Apesar disso, “sua obra tem sido de boa orientação, lineada com coragem e precisão”. 509 Considerava-o como uma “inteligência ávida, perenemente incorporada à atividade do pensamento moderno” que, “Sob a máscara de displicência ou de impassibilidade, tem como característica mental o gosto pelas generalizações e o pendor pelas doutrinas. Dest’arte, rara será a conjuntura histórica em que ele não engaste uma teoria, muitas vezes original, ou, pelo menos, um julgamento pessoal, penetrante, apesar de quanta convencionice possa haver em contrário”.510

Contudo, Ribeiro também não escapou de ser criticado. Apesar de ter seu valor reconhecido, foi acusado de “na rapidez de páginas exíguas, as generalizações e as doutrinas lhe dão um caráter esquemático, que, algumas vezes, aproveita a preconceitos em que se amparam os que deturpam a história nacional”. Bomfim criticou suas afirmações de que “mesmo hoje, se não fora a monarquia, a Independência seria um problema insolúvel” e que “sem os exaltados, é impossível fazer revoluções, e, com eles, é impossível governar”, 511 retrucando com os exemplos da Inglaterra, em 1645, da França em 1789 e da Rússia de 1917. Escrevendo sobre a história em momentos distintos, no contexto de 1903-1905 e no de 1925-1931, o autor discordava das explicações vigentes sobre o atraso do país. Nos dois períodos, tais explicações relacionavam como razões do atraso: a fatalidade do passado colonial e os determinismos naturais – traduzidos pelo meio (não tão ressaltado no segundo 507

Id. ib., p.137. Id. ib., p.137, nota 1. 509 Id. ib., p.137. 510 Id. ib., p.137. 511 RIBEIRO apud BOMFIM, ib., p.137-8. 508

momento) e pela raça. Bomfim, no entanto, seguiu outro caminho ao privilegiar os conteúdos históricos. Na concepção deste “pensador da história”, os problemas sociais, os “males” da nação brasileira originaram-se das relações históricas que aqui se desenvolveram e cuja compreensão só poderia ser alcançada pelo conhecimento da história. Tal conhecimento teria adquirido, em seu pensamento, os contornos e conteúdos de uma consciência histórica – à medida que à historiografia caberia registrar e consolidar aspectos do passado capazes de construir um sentido para o futuro. O autor escreveu O Brasil na História num momento em que havia a percepção de que a história estaria por ser feita. 512 Essa perspectiva ajuda a entender sua crítica a Capistrano de Abreu e a João Ribeiro – tidos por ele como dois dos mais aptos historiadores de sua época – mas que ainda não teriam realizado a “verdadeira história do Brasil”. O primeiro devido a um “rigoroso objetivismo”, que o teria impedido de fazer uma “obra de conjunto”. E o segundo, devido às generalizações e as doutrinas, que o teriam conduzido a uma interpretação esquemática, pouco atenta às especificidades locais. 513 Pode-se concluir, então, que o bom historiador também estaria por ser feito, e para tanto seria preciso critério histórico orientado pela objetividade e pelo “rigor investigativo” na busca da verdade. Além disso, precisaria desenvolver a capacidade de assumir posicionamentos claros em relação ao fazer historiográfico, ou seja, a capacidade de explicitar interesses e paixões, além de ampliar o horizonte de idéias. A bondade e a humanidade seriam favoráveis, assim como a erudição, desde que posta a serviço da valorização da história brasileira. A erudição pela erudição não lhe interessava, pois escrever a história teria um único sentido: resgatar as tradições e enaltecer os valores nacionais de modo a situar o Brasil, com suas particularidades, no âmbito de uma história geral. Dizia Bomfim que para nada serviria uma escrita que só provocasse "indigestão de erudição para mostrar: como arrotavam os Etruscos, e a que horas se benzia Camarão...". 514 A lógica, a capacidade de escarafunchar arquivos e organizar material (fontes) para a escrita da história também seriam bem-vindas, assim como a “capacidade reconstrutora”, que em termos de narrativa, exigiria o que o autor denominava por “poder evocador”. Este último estaria relacionado ao estilo, caracterizado pela arte, elegância e leveza da narrativa, que também deveria possuir um “tom humano”. A segurança de conceitos é valorizada como importante, assim como o senso crítico. A superioridade em relação a doutrinas e consagrações poderia ser um valoroso atributo, da mesma forma que a ausência de 512

Dizia Lima Barreto, em 1922, que “a história econômica e social da Bruzundanga [Brasil] ainda está por fazer”. Trecho de Os Bruzundangas (1922) citado no livro de SEVCENKO, op.cit., p. 110, nota 27. 513 BOMFIM, O Brasil na história..., op.cit., p.137-8, nota 1. 514 Id. ib., p.53.

preconceitos. Por fim, a confiança no próprio mérito e na importância da tarefa a cumprir – sinais de consciência das tradições – complementariam aquilo que foi identificado aqui como o historiador ideal, segundo Manoel Bomfim. Esta espécie de receita para o bom historiador não se encontra sintetizada desta forma em seus textos. Trata-se de uma formulação interpretativa baseada na identificação dos pressupostos para a boa historiografia, recolhidos nos três primeiros capítulos de O Brasil na História. Considera-se que a história tenha sido pensada por Bomfim de modo a avaliar o fazer dos historiadores a partir de seu produto: o texto histórico. Mais do que qualquer instituição concreta, a história seria a depositária dos “desejos” e das “realizações”, através dos tempos e das classes sociais. Tais “desejos” e “realizações” representariam, para o autor, um estímulo à consciência – considerada fundamental para a afirmação do passado e implementação do futuro. O papel da história seria construir a consciência da nação sobre si mesma, a partir dos fatos coligidos e interpretados. Por isso ela deveria ser: “sincera, purificada, vivaz, exata... capaz de orientar, estimular e defender o desenvolvimento nacional de que participamos, e que se torna cada vez mais consciente nas aspirações comuns”. 515 Diante desse papel atribuído à história, Bomfim refletiu sobre as possibilidades de uma história universal, considerando que bastaria justapor as histórias nacionais para se obter a total historificação dos povos. Tal procedimento somatório produziria o que o autor considerava como uma "verdadeira monstruosidade, visto que as histórias parciais não se completam, nem coincidem – nos limites de umas com as outras". 516 Este uso da história teria permitido que alguns povos – considerados de grande prestígio intelectual e político e para afirmação desse mesmo prestígio – elaborassem uma história universal como complemento da nacional, organizando-a de modo a constituir um fundo onde se destacaria a história das nações mais poderosas. Resultaria, finalmente, na existência de várias histórias universais, conforme a predominância de grandes tradições nacionais, que assim apareceriam como centros de gravitação das outras tradições. 517 O autor compreende que uma “história geral da humanidade” deveria ser uma "obra de socialização humana, preparadora da inteira solidariedade da espécie: a conquista completa do planeta, e a aproximação da humanidade, mediante o relacionamento das suas diferentes partes". 518 Ele diferia, portanto, da perspectiva das histórias universais européias, por considerá- las como estando submetidas aos interesses de cada nacionalidade. 515

Id. ib., p.37-8. Id. ib., p.39. 517 Id. ib., 39. 518 Id. ib., p.43. 516

Pode-se afirmar que Bomfim deslocou o eixo de abordagem do ponto de vista da história nacional, inserida e determinante da história universal, para uma compreensão de tais histórias nacionais em suas particularidades. Tais histórias constituiriam uma história geral não submetida aos desígnios nacionais, mas capaz de incluí- los e relacioná- los, a partir de valores que seriam – ou deveriam ser, segundo ele – comuns à humanidade. Para o autor, as histórias universais constituiriam um "alegado de fatos banais" sendo necessário tornar evidente a deturpação constante da história – "ora podada, ora exagerada, segundo convém às tradições dominantes" – com o objetivo de valorizar sucessos exclusivos de determinadas nações, sem maior preocupação com a evolução geral da humanidade. 519 Ele identificou como "egocêntrica" a história escrita "no critério de quem a faz", correspondendo ao que cada grupo via e compreendia de si para si, deturpando aspectos da sua própria tradição, contribuindo para a degeneração do próprio grupo nacional. Na escrita dessa história "egocêntrica" a escolha seria tudo. Daí a importância de investigar as circunstâncias em que se fazia – fazer que deturpava ou enaltecia – a história nacional, a fim de inseri- la na “história geral da humanidade”. Bomfim acreditava que o valor geral da história seria deturpado na medida do valor que cada historiador atribuísse ao seu povo em relação a uma "escala da civilização". Deste modo, a história ficaria a serviço das civilizações que, num determinado momento, apresentassem um maior "valor ativo de contribuições" na escala da evolução humana; valor que nada mais seria que uma diferença de poder. Ou seja, as histórias construídas sob medida para determinadas nações fundamentar-se-iam no ponto de vista exclusivo dessas mesmas nações. "Mentira verificada, mas, consentida, e aplicada no valor de exatidão" – assim o autor considerava as histórias construídas sob o "julgamento francês"520 ou a "presunção germânica", em detrimento daquelas que seriam escritas por outros povos. 521 Nada mais difícil, segundo ele, do que achar o limite justo entre “povos grandes” e “pequenos”, “fortes e fracos”. Contudo,

519

Id. ib., p.49-50. Um exemplo do “julgamento francês” sobre o Brasil pode ser expresso pela referência a Seignobos – “figura proeminente no ensino superior de Paris, professor entre os professores, consultor universal sobre história contemporânea e civilizações modernas, distribuindo diariamente lições e julgamentos à direita e à esquerda” – para quem, na História da Civilização, trinta e poucas linhas bastam para dizer tudo o quanto julgou necessário sobre o Brasil, inclusive que “...os paulistas formavam, no século XVIII, um povo independente... O Brasil tornou-se um Estado independente sem perturbações. O regente, irmão do rei de Portugal, tomou o título de imperador do Brasil em 1826...”. Diante disso, Bomfim indaga, “é completo, não é ?!...”. Ver BOMFIM, A América Latina..., op.cit., nota 3, p.43. 521 BOMFIM, O Brasil na história..., op.cit., p.39 e 51. 520

“Os mais poderosos abusando da superioridade relativa, desnaturam a situação, atribuem a si mesmos toda a força, e dividem as nações em – grandes e pequenas. No domínio da história, elas ainda procedem mais desafrontadamente, que não há meio de pedir contas do abuso de prestígio. Nem, mesmo, devemos estranhar que seja assim”.522

Ao mesmo tempo, Bomfim ressaltava a importância da subjetividade do historiador, que imbuído de valores advindos da tradição que o inspirava, deveria ser capaz de apreciar e registrar os valores morais e mentais de um povo, utilizando como medida sua própria consciência e tradição. Para ele, "pretender, no caso, o efetivo objetivismo, é pretender que o indivíduo saia de si mesmo, que se dispense todo um critério de julgamento, como o de visar fora de qualquer horizonte". 523 Em suas palavras, “A história nos responde (...) no critério de quem a faz, pois que, de fato, cada grupo vê e compreende a civilização de si para si, e deturpa os apreços gerais, como nas consciências se deturpa a noção de próprio valor pessoal (...) E aí está – a escolha, que é tudo. Verificadas as condições em que se faz a história para o uso universal, cabe a cada povo defender a própria história, num esforço que deve ser proporcional ao valor aparente das histórias deturpadoras”.524

Seria verificando as falsidades e distorções históricas que seria possível adquirir a "liberdade de espírito" necessária "para elevar o julgamento por sobre preconceitos, e estimar, das histórias contadas, o que merece estima e apreço". Tal programa se imporia como condição essencial para os povos/nações "humildes", ou seja, aqueles cujas tradições se encontrassem extremamente deturpadas (caso do Brasil). Somente assim tais povos/nações "poderão verificar conscientemente o valor da sua tradição nacional, proclamá- la desassombradamente, e tirar dessa mesma tradição indicações e estímulos, para a sua plena expansão". 525 Bomfim argumentou sobre os usos e funções da história, não apenas apontando sua importância enquanto registro das tradições que configuram o caráter nacional, mas criticando a história universalizante, além de chamar a atenção para a existência de interesses individuais (subjetivos) e políticos no fazer historiográfico. Tendo em mente a relação entre ciência e história, lembro que, se era da primeira que derivaria o progresso, seria nas páginas da segunda, quando se registrasse “sinceramente a verdade”, que se encontraria os “motivos de confiança coletiva” capazes de fundamentar o desenvolvimento social. Herdeiro de uma tradição iluminista, Bomfim concebia a história

522

Id. ib., p.39-40. Id. ib., p.40-1. 524 Id. ib., p.41-2. 525 Id. ib., p.49-50. 523

como orientadora, capaz de valer como “demonstração de mérito e capacidade de realização”, que ele considerava como fundamentais para o progresso nacional. Também defendia a existência de uma humanidade universal, assim como, de valores e objetivos considerados válidos para todos: a liberdade e a felicidade, por exemplo. 526 Ao produzir sua crítica historiográfica, em plenos anos vinte do século passado, o autor apresentou um ponto de vista que correspondia a uma concepção clássica da história, em vias de ser ultrapassada. Sua preocupação em destacar os interesses e paixões por trás das práticas historiográficas ia de encontro à perspectiva de que a imparcialidade do historiador – pressuposto da moderna concepção de história – estaria articulada ao desvendamento de uma verdade empírica, através da aplicação de um método crítico na análise de fontes primárias. Como observa Angela de Castro Gomes, a moderna concepção de história buscava um critério de verdade afastado de pressupostos éticos e políticos, de modo a permitir a associação entre historiadores – compreendidos como “produtores de bens culturais” – sem a exigência de engajamento. 527 Contudo, entre os elementos valorizados por Bomfim como importantes para a boa escrita da história, encontra-se a objetividade e o “rigor investigativo” na busca da verdade; a imaginação e a segurança de conceitos; a erudição e a lógica; o senso crítico e o afastamento de preconceitos, além da arte, elegância e leveza da narrativa. Trata-se, portanto, de aspectos comuns à moderna concepção da história. Pode-se concluir que, a aplicação de ambas as concepções – a clássica e a moderna – precisa ser vista em relação à complexidade dos fenômenos experimentados durante as primeiras décadas do século XX, quando a busca de objetividade por parte de intelectuais e cientistas convivia com a demanda por uma atuação social e política engajada. Para compreender as representações de Bomfim sobre a história, torna-se necessário demarcar o quanto às chamadas concepções clássica e moderna da história são construídas historicamente, a partir das experiências vividas e das demandas sociais, não podendo ser compreendidas como modos de pensar a história absolutamente estanques e impossíveis de serem associados. O caso de Manoel Bomfim, um autor que não fazia parte do “pequeno mundo dos historiadores” – demarcado por atividades docentes, exercício do jornalismo e, sobretudo, pesquisas em arquivos – ajuda a pensar sobre a circulação de idéias sobre como, porque e por quem a história deveria ser escrita. Ajuda a pensar sobre a existência, em um mesmo período,

526 527

Id. ib., p.36-7. GOMES, História e historiadores, op.cit., p.49.

de diferentes percepções do trabalho historiográfico e, conseqüentemente, diferentes usos da história. Das representações do autor sobre a história e sua escrita, conclui- se que não podem ser separadas de suas representações sobre o fazer político. Esta associação é que permite situar sua crítica aos historiadores do Brasil, assim como, possibilita compreender o modo como ele atrib uía uma função à escrita da história. Para esse autor, escrever a história era uma tarefa patriótica, sendo que, o compromisso com a verdade histórica identificava-se com o compromisso com a nação.

CAPÍTULO 3 – Construindo histórias da nação “(...) somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula, retida na sua evolução de humanidade, desvalorizada como realização de progresso, enleiada em convencionalismos serôdios e estéreis”.528 “(...) somos uma grande pátria, com gentes conscientes de ser uma pátria, feita numa tradição desinteressada e cordial. Afirmamos a nossa existência, num povo bondoso, maleável, acessível a todo progresso, essencialmente tranqüilo, ordeiro, e que, bem coeso na sua nacionalidade, não é, contudo, nenhuma ameaça à paz do mundo. Temos, pois, o direito de confiar, aspirando outros destinos, apesar da herança má que pesa sobre os mesmos destinos. Mas faz-se preciso discernir o caminho das nossas aspirações... Será relativamente fácil”.529

No Brasil, a emergência de uma reflexão sobre a nação, como algo distinto da nação portuguesa, relacionou-se, num primeiro momento, ao contexto de construção do Estado Imperial, no decorrer do processo de emancipação política do país, após 1822, que encontrou somente no II Reinado (1831-1889), seu momento de consolidação. 530 Desde então, a preocupação em definir a identidade do Brasil, a partir da localização de suas particularidades e da indagação sobre o momento histórico em que a população brasileira teria adquirido contornos de uma nacionalidade tem estado presente em diferentes âmbitos de conhecimento e de atuação política e social. A montagem de uma rede de instituições de saber, composta por institutos históricos e geográficos,

museus

etnográficos,

faculdades

de

direito

e

medicina,

marcou

o

empreendimento de pensar o país, pondo em prática a tarefa de delinear um perfil para a nação capaz de lhe garantir uma identidade própria, ao mesmo tempo em que contribuiu para o desenvolvimento de uma metodologia especializada na investigação do passado. 531

528

BOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930, p.522. 529 Id. ib., p.525-26. 530 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. A formação do estado Imperial. São Paulo: HUCITEC, 1990; RIBEIRO, Gladys Sabina. “Ser português” ou “ser brasileiro”? (Cap. 2). In: _____. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Campinas, SP: Dep. de História, UNICAMP, 1997, p.62-194. 531 O Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano foi fundado em 1862; o Instituto Histórico e Geographico de São Paulo, é de 1894. O Museu Real ou Nacional foi fundado em 1808 e o Museu Paraense Emilio Goeldi, em 1866. O Museu Paulista ou Museu do Ypiranga é de 1894. A Faculdade de Direito do Olinda foi inaugurada em 1828 e transferida para Recife em 1854. A Academia de Direito de São Paulo foi inaugurada em 1828. Em 1829 foi criada a Sociedade de Medicina, marco no processo de consolidação da medicina enquanto prática distinta daquela que era praticada até então por barbeiros, sangradores e práticos. Em 1832 foi aprovada a lei que transformava as academias médico-cirúrgicas existentes desde 1808 na Bahia e no Rio, em escolas ou faculdades de medicina. Ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Em 1838 foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, cujo projeto historiográfico incluía a proposta de identificar as origens da nação brasileira, de modo a contribuir para a consolidação de uma identidade nacional homogênea, além de possibilitar a inserção do país na perspectiva de uma tradição européia de progresso e civilização. Para atingir tais objetivos, o Instituto promovia a coleta e publicação de documentos considerados relevantes para a história do Brasil, incentivando estudos sobre a “história-pátria”. 532 Outro movimento importante para a afirmação de uma escrita da história sobre o Brasil foi a inserção do ensino da história no currículo escolar na primeira metade do século XIX. Mais especificamente, teve início com a criação do Colégio Pedro II, em 1837. Predominavam então os estudos literários, orientados por uma perspectiva clássica e humanística. Membros do IHGB lecionavam no Colégio Pedro II, sendo responsáveis pela formulação dos programas, pela elaboração de manuais e orientação do conteúdo a ser ensinado nas escolas. 533 Inicialmente, a História do Brasil foi incluída no currículo escolar dividindo espaço com a chamada História Sagrada e com a História Universal ou Civil, ambas voltadas para a formação moral do aluno e portadoras de um mesmo estatuto de historicidade. A História Sagrada concebia os acontecimentos como resultado da Providência Divina e fornecia as bases para uma formação cristã. A este programa foi acrescentada a História do Brasil, empenhada em divulgar as ações realizadas por heróis, considerados construtores da nação, especialmente governantes e clérigos. Os acontecimentos históricos ensinados iniciavam com a história portuguesa e, seqüencialmente, introduziam a história brasileira, começando pelas capitanias hereditárias, os governos gerais, as invasões estrangeiras ameaçando a integridade nacional. O conteúdo culminava com os eventos da Independência (obra dos regentes portugueses no Brasil) e da constituição do Estado Imperial, ambos responsáveis pela consolidação da nação brasileira. 534 532

GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, n.1, 1988. Também é interessante ler os estatutos do IHGB, onde está escrito que: “O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tem por fim coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a história e geografia do Império do Brasil; e assim também promover os conhecimentos destes dois ramos filológicos por meio do ensino público logo que o cofre proporcionar esta despesa”. Ver extrato do estatuto em BARBOSA, Januário da Cunha. Discurso no ato de estatuir-se o IHGB. RIHGB. Rio de Janeiro: IHGB, 1:9-18, 1839; e PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. O Instituto Histórico é o representante das idéias de Ilustração: que em diferentes épocas se manifestaram em nosso continente. RIHGB. Rio de Janeiro: IHGB, 1(2):65-85, 1839. É importante lembrar que a perspectiva desse Instituto Histórico e Geográfico que se autodenomina “brasileiro” não era a única, ainda que ele inspirasse a organização de institutos regionais. O quadro institucional do período – mesmo considerando apenas os institutos históricos – era bastante heterogêneo e procurava atender aos interesses locais. Cf. SCHWARCZ, op.cit., p.67-140. 533 MATTOS, Selma Rinaldi de. O Brasil em lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manoel de Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.42-44. 534 NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: trajetória e perspectivas. Revista Brasileira de História – Memória História e Historiografia. Dossiê Ensino de História. São Paulo: vol. 13, n.25/26, set. 1992/ ago. 1993;

Como observou Manoel Luis Salgado Guimarães, no caso brasileiro, a construção da idéia de nação não se assentava na oposição em relação à antiga metrópole portuguesa. Ao contrário, o Brasil era reconhecido como continuador de uma certa missão civilizadora iniciada pela colonização. 535 A primeira proposta sobre como a história do Brasil deveria ser escrita foi apresentada pelo naturalista bávaro Karl Friedrich Phillip von Martius (1794-1868), 536 vencedor de um concurso sobre o tema promovido pelo IHGB, em 1840. A dissertação intitulava-se Como se deve escrever a história do Brasil e foi publicada na Revista do Instituto em 1844. Martius apresentou aquilo que considerava como tarefa fundamental do historiador: mostrar, através de uma escrita da história imparcial, “como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições para o aperfeiçoamento de três raças humanas”. 537 Considerando a mescla das raças como uma obra da Providência Divina, Martius valorizava a miscigenação que deveria ser capaz de contribuir para a construção de uma história do Brasil como um todo orgânico e indivisível. Contudo, apesar de favorecer a idéia de mistura racial, o autor defendia a hierarquização resultante da perspectiva de superioridade da raça branca no desempenho de um papel civilizador. 538 Outro aspecto importante para a construção da história nacional seria o desenvolvimento de estudos regionais, capazes de integrar as partes ao todo, seguindo a

IGLÉSIAS, Francisco. A história no Brasil. In: FERRI, Mário Guimarães e MOTOYAMA, Shozo (orgs.). História das Ciências no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1979, p.265-301; BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história profana. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, vol.13, n. 25/26, set./1992/ ago. 1993, p.193-221. 535 GUIMARÃES, op.cit., p.6. 536 Martius visitou o Brasil entre os anos de 1817 e 1820 como botânico de uma expedição, juntamente com o zoólogo Johan Baptist von Spix (1781-1826). Ambos escreveram o livro Viagem pelo Brasil, em três volumes, respectivamente publicados na Alemanha em 1823, 1828 e 1831 e, no Brasil, somente em 1938. 537 MARTIUS, Karl Friedrich Phillip von. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, 6:381-403, 1844. Manoel Bomfim cita Martius em O Brasil na América (1929), destacando suas observações sobre o início da colonização do Brasil, o “espírito empreendedor dos bandeirantes” e a capacidade de defesa contra invasores dos primeiros colonizadores. Também chama a atenção para o “critério de verdadeira ciência” do naturalista alemão, empregado na análise do valor das raças formadoras do Brasil. Ver BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 2a . ed., p.88 e 199. 538 Sobre a visão do indígena como portador de brasilidade, desenvolvida no IHGB, ver GUIMARÃES, op.cit., p.11-12 e 20-21. Outro texto interessante para pensar sobre o lugar atribuído aos indígenas na construção do Brasil é o de John Manuel Monteiro. Este autor afirma que um dos principais desafios da construção de uma história nacional era localizar e divulgar os relatos referentes a aspectos históricos e etnográficos das sociedades indígenas. Tal tarefa teria sido enfrentada não apenas pelo IHGB, mas, também, por numerosas revistas literárias e políticas. O autor lembra, inclusive, que a produção de um saber etnográfico caminhava lado a lado com a emergente literatura nacional, através da qual poetas e romancistas divulgavam estudos indianistas. MONTEIRO, John Manuel. As “raças” indígenas no pensamento brasileiro. In: MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, p.15-22.

“forma que deve ter uma história do Brasil”, qual seja, evitando o conflito entre o particular e o geral, ao valorizar as particularidades de cada região e relacioná- las à situação do país. 539 De acordo com Guimarães, o texto premiado de Martius era representativo da idéia de uma história nacional capaz:

“De unir, de transmitir um conjunto único e articulado de interpretações do passado, como possibilidade de atuar sobre o presente e o futuro. A Nação como unidade homogênea e como resultado de uma interpretação orgânica entre as diversas províncias, este o quadro a ser desenhado pelo historiador”.540

O modelo historiográfico implementado pelo IHGB produziu uma visão do Brasil dirigida prioritariamente às elites, com a intenção de criar uma identidade capaz de operar tanto externa quanto internamente. Procurando definir o Brasil, definiram também o outro em relação ao qual a nação brasileira se afirmaria. Internamente, o outro seria representado por aqueles que não se adequavam ao ideal de civilização almejado para a nação, no caso, os índios e negros. 541 Externamente, o outro seria identificado nas repúblicas latino-americanas, vistas como símbolo da barbárie e da desordem. 542 A realização do programa historiográfico do IHGB contou com a ajuda de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), Visconde de Porto Seguro, cujo trabalho consolidou uma espécie de paradigma da escrita da história no Brasil. Não interessa aqui retomar a concepção de história que orientava esse autor, apenas apresentar algumas de suas temáticas mais freqüentes, o que poderá ser útil para esboçar um horizonte sobre os modos como a história da nação brasileira foi construída, num movimento do qual Manoel Bomfim também viria a participar posteriormente.

539

KODAMA, Kaori. Uma missão para letrados e naturalistas: “Como se deve escrever a história do Brasil?”. In: MATTOS, Ilmar Rohloff de. Histórias do ensino da história no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998, p.9-30 p.15-16. 540 Id. ib., p.17. Segundo Guimarães, o conteúdo da Revista publicada pelo Instituto revela a incidência de três temas fundamentais – que por vezes se entrecruzavam – que ocupavam cerca de 73% das publicações (incluindo fontes e artigos): a problemática indígena, as viagens e explorações científicas e o debate sobre a história regional. Cf. GUIMARÃES, op.cit., p.20. 541 Analisando o texto de Martius, Kaori Kodama procura demonstrar a afinidade entre as proposições do naturalista alemão e as do Instituto, sobretudo no que dizia respeito à proposta de inclusão, através da etnografia, das populações “índia e etiópica” (principalmente da primeira) no âmbito da civilização. No dizer de Kodama, “a investigação etnográfica assim tornava-se parte do projeto de ampliação do círculo civilizatório que faria recuar a barbárie”. Esta operação civilizadora estaria relacionada à preocupação com a construção de um espaço físico integrado para a nação. De acordo com a autora, a etnografia proposta por Martius apresentava-se como um tipo de investigação capaz de dar conta da inserção na escrita daquilo que era considerado como parte do território e, portanto, da natureza, e não da história. Assim, a atividade etnográfica, longe de estar relacionada à perspectiva antropológica atual, mantinha uma relação muito próxima com a história natural. Esta perspectiva etnográfica, além de pragmática, também era orientada pelo ideal da filantropia. Assim, acreditava-se que a investigação sobre o indígena contribuiria para sua salvação. KODAMA, op.cit., p.19-20. 542 GUIMARÃES, op.cit., p.7.

Como observou Arno Wehling, as interpretações de Varnhagen eram baseadas, quase sempre, na descoberta de filões documentais ignorados ou esquecidos por seus predecessores. A interpretação da história do Brasil desenvolvida pelo Visconde foi marcada, em parte, pela localização de marcos, datas e informações capazes de retificar afirmações anteriores e orientar as futuras escritas da história. 543 Varnhagen elegeu alguns atores como elementos principais da dinâmica social. Wehling agrupa tais atores em cinco grandes setores: os agentes mesológicos; as etnias e sua miscigenação; as instituições sociais e políticas; os grandes personagens e o reino português. A mobilidade desses atores sociais estaria de acordo com uma dinâmica cujos pontos significativos também são identificados por Wehling: as classes e a organização social, a atividade econômica (particularmente, a política econômica estatal), as questões relativas ao poder central e local e os conflitos decorrentes da colonização envolvendo indígenas, estrangeiros, quilombos etc. 544 Varnhagen pode ser visto como “historiador do Tempo Saquarema”545 que, assim como parte da historiografia contemporânea e posterior a ele, teria assumido uma espécie de compromisso com aquele tempo – compreendido como época da formação do Estado Imperial – ao qualificar negativamente, ao esquecer ou estigmatizar numerosos eventos, considerados como anormais ou atípicos, caracterizadores de uma crise ou desordem. Acontecimentos que teriam contrariado um curso entendido como natural (da barbárie à civilização). 546 Nas últimas décadas do século XIX, começaram a surgir críticas a alguns aspectos do modelo historiográfico (e do projeto de nação a ele relacionado) implementado no IHGB, sendo que, dentro do próprio Instituto havia oposição a Varnhagen, como demonstrou o discurso de Tristão de Alencar Araripe (1821-1908), História Pátria – Como cumpre escrevê543

Esta busca do “inédito”, que caracterizou a historiografia brasileira do século XIX e início do século XX, relacionava-se à afirmação da cientificidade da história naquele momento. Almejando um lugar entre as ciências, a história deveria estabelecer um corpus documental próprio, a partir do qual seria construído um tipo de conhecimento específico, baseado em informações tidas como corretas e indícios considerados seguros. Por trás dessa busca do documento escrito – que forneceria a prova para afirmações verdadeiras – vigorava a suposição idealista de que existiria uma realidade imutável, passível de ser correta e totalmente identificada pelo investigador. Cf. WEHLING, Arno. Estado, História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.153. 544 Wehling alerta que essa dinâmica não se encontra claramente descrita nos textos de Varnhagen. Ela é identificada através dos desdobramentos do plano da obra, da organização documental, do material selecionado e dos juízos emitidos pelo autor estudado. Id. ib., p.158. 545 Esta classificação foi dada por Ilmar Rohloff de Mattos. O termo saquarema refere-se a “um conjunto que engloba tanto a alta burocracia imperial – senadores, magistrados, ministros e conselheiros de Estado, bispos, entre outros – quanto os proprietários rurais localizados nas mais diversas regiões e nos mais distantes pontos do Império, mas que orientam suas ações pelos parâmetros fixados pelos dirigentes imperiais, além dos professores, médicos, jornalistas, literatos e demais agentes ‘não públicos’ – um conjunto unificado tanto pela adesão aos princípios de Ordem e Civilização quanto pela ação visando sua difusão”. O termo adquiriu diferentes significados a partir de meados do século XIX, carregando, inicialmente, um sentido depreciativo quando utilizado como sinônimo de “protegido” ou “favorecido” e, posteriormente, passou a servir para denominar os políticos conservadores fluminenses. MATTOS, Ilmar Rohloff, O tempo saquarema..., op.cit., p.3-4 e p.100-102. 546 Id. ib., p.272.

la, de 1876. 547 Fora do IHGB, Capistrano de Abreu, também buscava outros caminhos historiográficos, como ficou demonstrado nos artigos: Uma grande idéia, de 1880; e Programa de História do Brasil, de 1884. 548 Sobretudo a partir da década de 1870, era possível observar uma crescente preocupação com a ausência de contato com a realidade do país, o que provocou o aumento da demanda por estudos em diversas áreas, visando um conhecimento científico da realidade nacional. Em meio à crença difundida de que por meio da ciência seria possível elaborar medidas adequadas para a solução dos problemas brasileiros, começou a vigorar a perspectiva de que os intelectuais e cientistas seriam os legítimos responsáveis pelas reformas sociais. 549 Como observou Nicolau Sevcenko, os intelectuais da chamada “geração modernista de 1870” 550 desenvolveram um olhar profundamente crítico do Brasil de sua época. A palavra de ordem era condenar a sociedade “fossilizada” do Império e pregar as grandes reformas consideradas capazes de salvar o país: a abolição, a república e a democracia. 551 No dizer do autor:

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Segundo Araripe, Varnhagen havia escrito “sem crítica e sem estímulo”, ainda que tivesse prestado “grandes serviços de investigação (...) em bem da história nacional”. Araripe procurou situar Varnhagen como um importante “investigador de fontes históricas”, mas não como um historiador. ARARIPE apud HANSEN, Patrícia Santos. Feições & Fisionomia. A História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.44. O texto de Araripe pode ser encontrado na Revista do IHGB, 57(90):259-290, 1894, com o título de Indicações sobre a história nacional. Foi escrito como discurso e proferido durante as Conferências Populares da Glória, promovidas pela Associação Promotora da Instrução, como informou Hansen, p.44, nota 73. 548 No texto de 1880, Capistrano de Abreu – que ainda não era membro do IHGB, o que só viria a acontecer em 1887 – discutia como a história do Brasil deveria ser escrita, de acordo com o plano esboçado no Estudo acerca da organização da História Física e Política do Brasil (1877), de Henrique Beaurepaire-Rohan (1812-1894), publicado em 1877. O artigo de Capistrano é mencionado, sem maiores referências, por RODRIGUES , José Honório. Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira (1953). In: _____. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, 1965, p.35. O texto de 1884 foi publicado no Rio de Janeiro, pela Gazeta Literária, ano II, novembro, p.337-380. É incluído na lista de publicações de Capistrano elaborada por Maria Luiza Gaffrée Ribeiro. Ver RIBEIRO, Maria Luiza G. Uma ruptura na historiografia brasileira: a formação intelectual de João Capistrano de Abreu (1853-1927). Rio de Janeiro: UFRJ/Dep. de História, dissertação de mestrado, 1990, p.235-236. Além desses textos, é importante lembrar a reforma educacional de 1899 como um marco na prescrição de como a história do Brasil deveria ser tratada e ensinada. O Decreto 3.251 de 8 de abril, por exemplo, determinava a necessidade de “instituir-se a história verdadeiramente educativa e vivificadora do sentimento nacional”. Citado por HANSEN, op.cit., p.78. 549 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989, 3a . ed. (1983), p.110. 550 Sobre a “geração modernista de 1870”, ver SEVCENKO, ib., p.78-118; VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991; SCHWARCZ, op.cit., p.143-168. Devo ressaltar que, embora a “geração de 1870” seja aqui tomada como um parâmetro para a compreensão da cultura histórica de fins do século XIX, é preciso estar atento à existência de outras propostas científicas no Brasil daquele momento, que por vezes se opunham ao cientificismo da Escola do Recife, berço da referida “geração”. José Carlos Reis chama a atenção para as “divisões” no “pensamento brasileiro” do período, exemplificado através de diferentes locais de produção científica: a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a Escola de Minas de Ouro Preto, o Colégio Pedro II, a Escola Normal (onde Bomfim atuara), o Colégio e a Escola dos Militares, a Escola Naval, as Faculdades de Medicina e Direito. Ver REIS, José Carlos. Anos 1900: Capistrano de Abreu. O surgimento de um povo novo: o brasileiro. In : _____. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p.90. Além dos locais citados por Reis, havia também o IHGB, além dos jornais e revistas, cuja produção pode ser considerada como representativa de diferentes grupos intelectuais e científicos. 551 SEVCENKO, op.cit., p.78.

“Arrojados num processo de transformação social de grandes proporções, do qual eles próprios eram fruto na maior parte das vezes, os intelectuais brasileiros voltaram-se para o fluxo cultural europeu como a verdadeira, única e definitiva tábua de salvação, capaz de selar de uma vez a sorte de um passado obscuro e vazio de possibilidades, e de abrir um mundo novo, liberal, democrático, progressista, abundante de perspectivas ilimitadas, como ele se prometia”.552

De acordo com Sevcenko, o engajamento passou a ser considerado como “condição ética do homem de letras”, sendo que os principais tópicos trabalhados por esses intelectuais diziam respeito ao projeto geral de atualização da sociedade brasileira com o modo de vida europeu, a modernização das estruturas da nação e a elevação do nível cultural e material da população. 553 Com a entrada em cena das então modernas teorias científicas européias, em fins do século XIX, os pensadores do Brasil puderam dispor de novos instrumentos adequáveis à explicação geral das diferenças de comportamento e da ação humana (o darwinismo social); ao empreendimento de ordenar e sanear o espaço urbano (teorias higienistas); ao desenvolvimento de uma concepção moderna de história – capaz de romper com o pensamento religioso, a favor de uma visão laica do mundo, etc. Armados com esse arsenal cientificista, empreenderam leituras sobre o país e seus habitantes, procurando dar conta das transformações sociais, econômicas e políticas que então se processavam. O que estava em jogo não era apenas a construção de um novo regime político. Outras questões emergiam, contribuindo para que aquele momento fosse visto e experimentado como uma “época de convulsões”. A desmontagem do sistema escravocrata tornava-se inevitável e o problema da mão-de-obra alcançava o centro dos debates. 554 Lilia Moritz Schwarcz demonstra o quanto à década de 1870 era tida como um momento de inovação, por seus contemporâneos. A autora cita Silvio Romero, para quem: “(...) na política é um mundo inteiro que vacila. Nas regiões do pensamento teórico o travamento da peleja foi ainda mais formidável, porque o atraso era horroroso. Um bando de idéias novas esvoaçava sobre nós de todos os pontos do horizonte...”.555

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Id. ib., p.78. Para Sevcenko, um dos aspectos mais marcantes da “geração de 1870” teria sido a defesa de um “ilimitado utilitarismo intelectual”, que só atribuía validade às formas de criação e reprodução cultural que pudessem contribuir como fatores de mudança social. O autor identifica essa característica como sendo constante em “sociedades arcaicas”, caracterizadas por elevadas taxas de analfabetismo e que experimentam um processo de transformações estruturais radicais. Id. ib., p.78-9. 554 Id. ib., p.81; e também, SCHWARCZ, op.cit., p.64-5; e VENTURA, op.cit., p.12. 555 ROMERO apud SCHWARCZ, ib., p.27. 553

A adoção do discurso cientificista, em maior ou menor grau, relacionava-se tanto à busca de possibilidades interpretativas e de soluções para os problemas sociais que se apresentavam, quanto à emergência do que Schwarcz denominou por “nova elite profissional”, ansiosa por desempenhar seu papel como reformadora da nação. A autora alerta para a necessidade de se procurar compreender, não apenas a penetração de um conjunto de idéias científicas no Brasil de fins do século XIX – idéias representadas pelo “cinematógrapho em ismos”, do qual nos falou Silvio Romero, em 1911 556 – mas, também, a “lógica peculiar” das apropriações desse ideário, ou seja, as leituras próprias ou convenientes naquele contexto. 557 Lúcia Lippi de Oliveira também se refere a essas apropriações de idéias científicas dizendo que, “A elite intelectual brasileira aceitou aquelas idéias que permitiam pensar a integração do Brasil na cultura ocidental. O positivismo, o darwinismo, o spencerismo e o materialismo preencheram o mesmo papel; essas correntes veicularam uma filosofia da história que possibilitava esta integração ao moderno; ao científico, ou ao Estado positivo”.558

Mas, eis que difundidas as idéias científicas, elaboradas interpretações e apresentados projetos de organização social dos mais diversos, parecia vigorar uma visão pessimista acerca do presente e do futuro do país. 559 Porém, essa visão não era a única, 560 ainda que ela tenha se

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Romero referia-se às correntes científicas em voga em sua época: o evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social-darwinismo. SCHWARCZ, ib., p.28. 557 Id. ib., p.28 e 34. 558 OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.81. 559 De acordo com Lilia Schwarcz, essa vertente pessimista de interpretação do Brasil é bastante antiga entre nós. A autora lembra Antonil (1649-1716), para quem a colônia era o “inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso das mulatas” (1711). SCHWARCZ, op.cit., p. 36 e 253, nota 19. É bom lembrar que o desenvolvimento de uma sensibilidade romântica – na Europa, a partir do final do século XVIII, e no Brasil, com contornos mais nítidos durante o século XIX – favoreceu representações do Brasil, senão de todo otimistas, ao menos capazes de valoriza-lo em alguns aspectos. Esse romantismo guiou o interesse pelas coisas especificamente brasileiras, representadas, principalmente, pelas belezas naturais (incluindo-se, entre elas, o índio). Ao longo de todo o século XIX – pelo menos até a entrada em cena das teorias científicas européias, a partir da década de 1870 – prevaleceram visões românticas do Brasil, que podem ser localizadas, inclusive, entre membros do IHGB. Ver, por exemplo, sobre o romantismo no Brasil, VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do Romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: UNESP, 1999, especificamente, p. 200-253. 560 Sem pretender me aventurar numa interpretação dos textos sobre o Brasil produzidos por viajantes estrangeiros durante o século XIX, compreendo – a partir dos autores que têm me ajudado a construir uma interpretação sobre os modos de pensar a nação neste período – que as visões que podem ser consideradas mais otimistas fundamentavam-se, ao menos em parte, na percepção da natureza, ainda que esta pudesse ser marcada por elementos alegóricos e/ou oriundos de regiões européias. O mesmo elemento que suscitava medo em alguns, em outros poderia provocar admiração, como parece ter sido o caso dos viajantes Spix e Martius, para quem “a rica natureza tropical se vai tornando para ele [o europeu recém-chegado] uma segunda pátria”. SPIX e MARTIUS apud VENTURA, op.cit., p.31. Mas, além da visão apresentada pelos viajantes estrangeiros do século XIX, entre os próprios intelectuais brasileiros do início do século XX era possível localizar interpretações otimistas sobre o Brasil. Sobretudo entre aqueles que, posteriormente, ficaram conhecidos como ufanistas, como, por exemplo, Afonso Celso, em Por que me ufano do meu país, de 1900, que teve outras três edições nos oito anos que se seguiram. Ver OLIVEIRA, op.cit., p.95-109.

radicalizado a partir de meados do século XIX, quando começaram a ser divulgadas representações produzidas por viajantes e estudiosos estrangeiros, que freqüentemente observaram o Brasil como “exemplo de nação degenerada de raças mistas”561 e os brasileiros como “uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia” ou, simplesmente, como uma “multidão de macacos”. 562 Essa visão pessimista acompanhava um processo de naturalização das representações sobre o homem e a sociedade, propiciado pelo paradigma das ciências naturais, então vigente. 563 A ciência contribuía para a naturalização das diferenças sócio-culturais, na medida em que estabelecia correlações rígidas entre as leis da natureza – formuladas com base na biologia – e a sociedade. Características físicas eram associadas a atributos morais e serviam como justificativa para o atraso social de parte considerável da população e, para a afirmação da impossibilidade de progresso de determinadas nações. O pressuposto da neutralidade científica, compartilhado por muitos intelectuais e/ou cientistas, conferia às conclusões sobre os indivíduos e sociedades o selo da legitimidade, tornando verdadeiras, porque científicas as afirmações sobre a naturalidade a-histórica das diferenças observadas. Contribuía para esta naturalização das diferenças a noção de que existiam espécies humanas ontologicamente diversas, não havendo uma única linha de desenvolvimento rumo à civilização. 564 As diferenças entre os homens não eram transitórias, pois que a humanidade não constituía uma unidade indivisível, marcada por variantes ocasionais. As diferenças eram naturais porque era

561

BUCKLE (1821) apud SCHWARCZ, op.cit., p.36. Respectivamente GOBINEAU (1854) apud SCHWARCZ, ib., p.13; e GOBINEAU (1854) apud VENTURA, op.cit., p.31. Outras imagens nada otimistas divulgadas sobre o país, foram produzidas por Louis Agassiz que afirmou: “(...) qualquer um que duvide dos males da mistura de raças (...) venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental”. AGASSIZ (1868) apud SCHWARCZ, op.cit., p.13. 563 Lembro que um dos autores mais lidos na segunda metade do século XIX era Thomas Buckle (1821-1862), para quem o homem brasileiro estaria condenado à decadência devido ao poder da natureza tropical. De acordo com Lilia Schwarcz, Buckle compreendia que a natureza no Brasil, “deixava pouco espaço ao homem e suas obras”. Id. ib., p.36. Esta visão pessimista era contrabalançada pela interpretação do naturalista Alexander von Humboldt (1769-1859) que, entusiasmado com a natureza tropical, dizia, referindo-se à América do Sul: “em nenhum outro lugar, a natureza nos impressiona mais profundamente com sua sensação de grandeza; em nenhum outro lugar nos fala tão poderosamente como no mundo tropical”. HUMBOLDT apud ABREU, Regina. O enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: Funarte/Rocco, 1998, p.139. Roberto Ventura menciona que, na esteira de Humboldt, diversas obras foram escritas por americanos e europeus residentes na América, contestando as idéias sobre a degeneração e fraqueza do homem americano diante da natureza. VENTURA, op.cit., p.33. 564 Lilia Schwarcz lembra o debate sobre a origem do homem, que opunha monogenistas e poligenistas. A visão monogenista, dominante até meados do século XIX, era compartilhada pelos pensadores que acreditavam que a humanidade era una, ou seja, que os homens teriam se originado de uma fonte comum, sendo que os diferentes tipos humanos derivariam da maior ou menor proximidade do Éden. A partir de meados do século XIX, a hipótese poligenista começou a ganhar força pois, informada pelas ciências biológicas, defendia a tese da existência de vários centros de criação, que corresponderiam às diferenças raciais observadas. Ver SCHWARCZ, op.cit., p.48. 562

a natureza – na forma dos determinismos geográfico (o meio) e biológico (a raça) 565 – quem impunha limites e propensões aos indivíduos e às sociedades. 566 Os discursos fatalistas ou pessimistas surgiram em meio ao que foi interpretado por diversos autores como: medo da natureza tropical, vista pelos deterministas como um obstáculo ao progresso e à civilização; medo da invasão estrangeira, estimulado pela expansão imperialista européia, que poderia implicar na perda de autonomia ou de parte do território; medo de revoltas suscitadas por aquilo que era tido, por alguns, como verdadeiros “quistos de imigrantes” inassimiláveis pelo nacional; medo das chamadas “classes perigosas”, compostas pela grande massa pobre de homens livres, imigrantes e ex-escravos que migravam pelo país e/ou habitavam os centros urbanos. 567 Em fins do século XIX e início do século XX, os estudos sobre o Brasil cruzavam-se com as indagações sobre as possibilidades de progresso do país e os meios de viabilizá- lo. Como observou John Manuel Monteiro: “O que estava em jogo, evidentemente, era a caracterização do Brasil enquanto país civilizado ou, pelo menos, como um país capaz de superar o atraso e as contradições para alcançar um lugar ao lado das luminosas civilizações do hemisfério norte”.568

No caso de uma nação caracterizada como mestiça – o que para alguns era sinônimo de degeneração – era preciso refletir sobre o papel que haveria de ser atribuído a cada elemento da mistura. Postulava-se freqüentemente – sobretudo entre a intelectualidade cientificista – a desigualdade das raças, o mal da miscigenação e a superioridade do homem branco. 569

565

VENTURA, op.cit., p.61-2. É importante lembrar que o conteúdo atribuído à palavra raça era muito impreciso no Brasil do século XIX. Por vezes, o termo raça confundia-se com o conceito de nação. Ver MONTEIRO, op.cit., p.16. 566 Diante dessa perspectiva determinista da virada do século, médicos e higienistas construíram visões do Brasil contrapondo-se, por um lado, aos discursos fatalistas, inspirados nas teses de inferioridade racial e de impossibilidades climáticas para a civilização nos trópicos. Por outro, também se opunham aos discursos mais otimistas, que exaltavam as particularidades (sobretudo psicológicas e naturais) do país e de seus habitantes (discursos que, posteriormente, ficaram conhecidos como ufanistas). Assim foram produzidas teses sobre um país doente, afirmando que se tratava do conhecimento do “Brasil real”, produzido através de viagens ou expedições científicas. LIMA, Nísia Trindade e HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO e SANTOS (orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1996, p.23-40. 567 Para tentar entender, minimamente, todos esses medos, procurei os seguintes autores, todos já citados: SCHWARCZ, VENTURA, SEVCENKO e CHALHOUB, Sidney. Cortiços. In: Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p.15-59. 568 MONTEIRO, op.cit, p.18. 569 Paralelamente aos debates sobre a “questão racial” – que ganharam fôlego em fins do século XIX – o Brasil assistia à difusão de um saber médico sobre o país, orientado pela representação da sociedade como “um corpo doente” e atribuindo ao médico a responsabilidade de cura-lo. Tais médicos disputavam espaço com aqueles que até então assumiam a responsabilidade de guiar o país rumo à civilização: os bacharéis em Direito. Ambos utilizavam teorias evolucionistas e procuravam discutir sobre especificidades e competências profissionais, por vezes desconfiando das teorias deterministas, que não concebiam um futuro promissor para o país. No caso dos

Como observou Lilia Schwarcz, as teorias raciais se apresentava m como um modelo teórico viável diante da necessidade de solucionar o complicado jogo de interesses que estava sendo montado e que exigia, além da solução para os problemas relativos à substituição da mão-de-obra, novos critérios para a diferenciação da cidadania. 570 Além disso, tais teorias tiveram que dialogar com os discursos que apresentavam a história do Brasil como originada a partir de três raças e que interpretavam o futuro da civilização brasileira como relacionado à miscigenação. Esta se tornara um assunto importante nas discussões sobre a nação, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX, quando passara a ser vista como um mecanismo de formação do Brasil desde os tempos coloniais, constituindo a base para uma futura “raça sociológica”571 brasileira, resultante de um processo seletivo, preferencialmente direcionado para o branqueamento da população. Foi então que começou a ser formulado aquilo que posteriormente ficou conhecido como “mito do embranquecimento racial”, que consistia na crença num embranquecimento progressivo da população brasileira, desde que estimulada a mistura com populações brancas européias. 572

médicos, prevalecia a defesa da higiene como forma de atuar na coletividade e atacar os problemas sociais, freqüentemente associados à pobreza, ao meio e à raça. Conectada à noção de higiene, estava a idéia de saneamento, orientando a implementação de grandes planos de atuação nos espaços públicos e privados da nação. A representação do Brasil como “um grande hospital” e da doença como um elemento distintivo da condição de ser brasileiro, guiou um movimento pelo saneamento do país, a partir das primeiras décadas do século XX. No caso dos bacharéis – imersos no contexto cientificista do fim do século XIX – persistia a visão de que a legislação penal deveria se conformar ao estado do povo ao qual fosse destinada. Entre outras visões, havia aquela que acreditava que “uma nação mestiça é uma nação invadida por criminosos”. Ver SCHWARCZ, op.cit., p.141-188 e p.189-238. É importante lembrar que o discurso produzido sobre a higiene ultrapassava os campos da medicina e do direito, sendo apropriado pelas mais diversas perspectivas de progresso. A preocupação com a beleza e a limpeza relacionava-se diretamente à implantação de uma ordem moderna, distinta daquela implementada pela sociedade escravista, que entrara em convulsão a partir de meados do século XIX. De acordo com Berenice Cavalcante “a preocupação em ‘limp ar e embelezar’ a sociedade emprestava novos conteúdos aos valores que esta sociedade deveria preservar e reproduzir – condição de sua própria reprodução. Construindo polaridades do tipo saúde/doença, beleza/feiúra, limpo/sujo, virtude/ócio, o discurso sobre a higiene redefiniu aqueles que teriam ou não lugar no ‘cortiço’ [referência ao livro de Aloísio de Azevedo (1857-1913), que Cavalcante observa como um microcosmo da sociedade carioca] remodelado”. Ver CAVALCANTE, Berenice. Beleza e limpeza, ordem e progresso: a questão da higiene na cidade do Rio de Janeiro, final do século XIX. Revista Rio de Janeiro, n.1, dez. 1985, p.95-103. 570 SCHWARCZ, op.cit., p.18. 571 A noção de “raça sociológica” refere-se a possibilidade de existência de um tipo nacional, detentor de feições características e originais, produto específico da miscigenação realizada ao longo da história do país e passível de ser identificado. Ver, por exemplo, ROMERO, Silvio. A nação brasileira como grupo etnográfico e produto histórico. In: _____. História da Literatura Brasileira (1888). Rio de Janeiro: José Olympio, tomo I, cap. V, 1943. 3a. ed., p.83-103. 572 Giralda Seyferth chamou a atenção para o uso ambíguo das teorias raciais no Brasil, entre o final do Império e a I Guerra Mundial. Ao mesmo tempo em que se concebia a mestiçagem como um mal a ser evitado, ela era apontada como solução para a “questão racial brasileira”, desde que fosse possível supor um provável branquemento da população em decorrência da mistura. A autora analisa a tese de João Batista de Lacerda – diretor do Museu Nacional – intitulada Os mestiços do Brasil, que foi apresentada no I Congresso Universal de Raças, em Londres, 1911. De acordo com Seyferth, a tese de Lacerda, de que a miscigenação, após algumas gerações, tenderia a embranquecer a população brasileira, já era de domínio popular, quando o referido autor lhe atribuiu um estatuto científico. Ver SEYFERTH, Giralda. A Antropologia e a teoria do branqueamento da raça no Brasil: a tese de João Batista de Lacerda. Revista do Museu Paulista, vol. XXX, 1985, p.81-98. Ver, também, SKIDMORE, Thomas. Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989 (1974), p.81-86.

No auge desse suposto pessimismo, Manoel Bomfim escreveu seu A América Latina (1905), onde ele apresentou sua recusa da irrestrita na turalização dos fenômenos sociais, procurando libertar-se do determinismo mais estreito, principal obstáculo a qualquer expectativa otimista em relação ao futuro do Brasil e também da América Latina. O caminho privilegiado pelo autor para escapar desse determinismo foi o desenvolvimento de uma espécie de “método genético”573 de investigação, a partir do estudo da biologia e da história. Em A América Latina, Bomfim lançou as bases de sua interpretação sobre a história do Brasil, procurando verificar o que havia de comum entre os “neo-ibéricos”. O autor começou analisando aquilo que identificava como sendo a opinião corrente na Europa sobre a América Latina para, em seguida, apresentar a homologia entre organismos biológicos e sociais

(freqüente,

mas

também

criticada

naquela

época),

da

qual

derivou

o

conceito/metáfora574 de “parasitismo social”. 575 O objetivo central do livro era apresentar as nações colonizadoras da América do Sul, destacando aspectos relativos ao caráter de seus respectivos povos, construído a partir da educação guerreira, vista com duas faces: a do heroísmo e a da depredação. Bomfim também analisou o processo de colonização (“sedentarização”) do homem ibérico na América, a partir do qual teria sido iniciado um movimento de “decadência degenerativa”, fruto do parasitismo. Este consistiria no trabalho de dominação e exploração da colônia, por parte dos colonizadores, com a conseqüente transposição dos vícios

573

Cf. MELLO, Maria Tereza Chaves de. Futuro do passado: uma apologia da América Latina. Rio de Janeiro: PUC/Departamento de História, dissertação de mestrado, 1997, p.20; e SÜSSEKIND, Flora e VENTURA, Roberto. Uma teoria biológica da mais valia ? In: História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Moderna, 1981, p.9-59. 574 Parece contraditória a idéia de conceito/metáfora, sobretudo no momento em que eram buscadas explicações científicas para os fenômenos sociais, exigindo-se a conceituação, mas rejeitando-se a metáfora. O conceito deveria realizar a “função lógica de distinguir e classificar”, enquanto a metáfora era vista como uma espécie de recurso indeterminado demais para ser científico. Ver ROMERO, Silvio. A América Latina; análise do livro de igual título do Dr. Manoel Bomfim. Porto: Chardron, 1906, p.47; e, também, SUSSEKIND, Flora e VENTURA, Roberto. História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Moderna, 1981, p.21. Na virada do século começaram os questionamentos acerca da associação entre sociedade e organismo, o que não era ignorado por Bomfim, como foi visto no capítulo anterior. Contudo, pode-se supor que o autor tenha optado por recorrer aos métodos da biologia para estudar a sociedade devido à conjugação de, pelo menos, dois fatores: sua formação médica e a incipiente circulação de um instrumental teórico-metodológico especificamente aplicado ao social. A dificuldade de circulação pode ser exemplificada pelo caso de Durkheim (1858-1917) e Weber (1864-1920): contemporâneos, publicaram seus principais escritos em épocas próximas (o livro As regras do método sociológico, de Durkheim, é de 1895; A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Weber, é de 1903), mas, pelo que consta, não se conheciam. Ver RODRIGUES, José Albertino. A sociologia de Durkheim. In: _____ (org.). Durkheim. São Paulo: Ática, 1999, 9a. ed., p.13, nota 5. 575 A utilização do parasitismo como metáfora era comum na virada do século XIX-XX, o que tem relação com a difusão dos paradigmas das ciências naturais, particularmente, da biologia. Está presente, por exemplo, no texto citado por Bomfim: Parasitisme biologique et parasitisme social, de E. Vandervelde e J. Massart [s/d]; assim como em A guerra civil na França, de Marx (1870), quando ele se refere à exploração do capital sobre o trabalho como um “parasita que se nutre da substância da sociedade e paralisa o seu livre movimento”. Ver SUSSEKIND e VENTURA, op.cit., p.46; e MELLO, op.cit., p.16, nota 25. O livro de Massart e Vandervelde é citado por Bomfim em A América Latina (1905). É interessante observar que Emílio Vandervelde foi militante do movimento socialista, tendo participado da II Internacional (1889-1914), em Bruxelas.

parasitários para a própria sociedade colonial (o principal resultado desse vício, no caso brasileiro, seria o desenvolvimento do conservadorismo, que será apresentado mais adiante). Identificando tanto a sociedade parasita quanto à sociedade parasitada como doentes, o autor observou os efeitos gerais e os especiais dessa doença. Foi nesses efeitos do parasitismo que ele localizou os “males de origem” da “civilização latino-americana”. 576 Assim, pode-se resumir que Manoel Bomfim construiu uma teoria interpretativa da história nacional inserindo-a no espaço ampliado da América Latina e adotando um modelo analítico fundado em um único fator, que considerava determinante para a compreensão da sociedade: o fator “parasitismo”, uma espécie de metáfora biológica das relações de exploração. 577 Mas, situar o Brasil em relação à América Latina parece ter sido um problema no início do século XX. Como foi visto, o projeto de nação implementado pelo IHGB, durante o Império, divulgara a idéia de oposição entre a nação brasileira e as repúblicas latinoamericanas, símbolos da barbárie e da desordem, o que contribuíra para afastar perspectivas de associação, ainda que a origem ibérica comum pudesse ser reconhecida. A isto se acrescentava um projeto universalista, que procurava situar o Brasil no âmbito de uma história universal da civilização ocidental e, não, partic ularizar o país, situando-o como parte de um conjunto de nações colonizadas. Apesar de vigorar, as visões negativas sobre a América Latina encontraram oposição. Maria Tereza Chaves de Mello analisa essa variação dos sentimentos em relação às repúblicas latino-americanas. A autora observa que, durante o Império, havia quem defendesse o panamericanismo em meio à opinião corrente de que as repúblicas latino-americanas eram exemplos de desmembramento territorial e político, de anarquia e tirania –caso de Joaquim Nabuco (1849-1910). Contrariamente, no contexto de afirmação do regime republicano no Brasil, 578 alguns intelectuais, como Eduardo Prado (1860-1901), autor de A ilusão americana

576

Bomfim utiliza essa expressão destacando a necessidade de superar o “esboço de civilização latinoamericana” existente em sua época (esboço desenhado tanto por brasileiros quanto por europeus). No momento em que se iniciavam as ofensivas imperialistas norte-americanas no continente (lembro que era a época do “Big Stick” implementado por Theodore Roosevelt, presidente dos EUA de 1901 a 1909) e em que o olhar sobre as repúblicas latino-americanas – e sobre a república brasileira em particular – assumia diferentes focos, Bomfim defendia a existência de uma “civilização latino-americana” e se contrapunha à visão de que as sociedades americanas egressas da colonização ibérica estariam condenadas à desagregação ou a uma posição secundária e servil diante da Europa e dos Estados Unidos. Ver BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993 (1905), p.37 e p.345. 577 Ver os textos já citados de SUSSEKIND e VENTURA e, também, MELLO. 578 Lembro que o Manifesto Republicano, publicado no jornal A República, em 1870 afirmava que: “Somos da América e queremos ser americanos. A forma de governo (a monarquia) é, na sua essência e na sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses dos Estados americanos. A permanência dessa forma tem de ser forçosamente, além de origem de opressão no interior, a fonte perpétua de hostilidade e de guerras com os povos que nos rodeiam”. Citado por RIBEIRO JUNIOR, José. O Brasil monárquico em face das repúblicas americanas. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. São Paulo: Difel, 1978. 10a. ed., p.160.

(1893), teriam procurado valorizar a ação integradora do Império, condenando a República por sua instabilidade e desordem, vistas na América Latina, e pela freqüente tentativa de aproximação com os Estados Unidos, cujas tradições eram reconhecidas como muito diferentes das brasileiras. 579 Outros, como Monteiro Mansó, autor de O perigo alemão (1905) e Armando Burlamaqui (1873-1927), autor de Nova política internacional brasileira (1906), defendiam a aproximação com os EUA, como meio de garantir a defesa dos interesses da América Latina – tida como um continente constituído por um “povo inferior” – frente à cobiça externa. E ainda, os que, como José Veríssimo (1857-1916), autor de A educação nacional (1890) rejeitavam os planos norte-americanos de hegemonia sobre o continente, reconhecendo a necessidade de se preservar a autonomia das repúblicas latino-americanas. Havia também, aqueles que viam com pessimismo a política imperialista norte-americana, não vendo possibilidade de oposição por parte de “países fracos, ou das raças incompetentes”, como seria o caso de Euclides da Cunha (1866-1909), em Contrastes e confrontos, de 1907. Mas, como a história do Brasil estava sendo pensada no início do século XX, ou seja, após a Proclamação da República e a Abolição da escravidão? Que representações do Brasil nação e dos brasileiros estavam sendo produzidas por historiadores e “pensadores da história”? Para arriscar uma resposta para esta questão, proponho trabalhar com a idéia de que existiam várias vozes interessadas em discutir a história do Brasil, propondo chaves de leitura e escrita da mesma. Por vezes parece ser possível ouvir diálogos e disputas entre elas e recuperá- las deverá ajudar a compreender alguns dos diversos modos de pensar a história e os projetos de nação com os quais Manoel Bomfim provavelmente se deparou. Lúcia Lippi de Oliveira identifica alguns momentos significativos da luta pela construção de uma história da nação, nas primeiras décadas do século XX. Um deles corresponderia ao início do período republicano, quando a autora observa duas grandes interpretações sobre o Brasil – ou seja, dois modelos de identidade nacional. O primeiro seria marcado por uma visão positiva do passado colonial e imperial, defensora do valor das tradições herdadas da colonização portuguesa e da ação da Igreja Católica, sempre procurando afirmar o nacional a partir de sua singularidade e recusando-se a assumir modelos estrangeiros. O segundo caracterizar-se- ia pela visão de que a República (regime freqüentemente associado à modernidade) representava uma ruptura necessária com o passado

579

Ver MELLO, op.cit., p.25-78.

colonial – simbolizado pelo regime monárquico português – em defesa de uma maior integração do Brasil com o mundo americano. 580 Nos primeiros anos do século XX, outra vertente de interpretação sobre o Brasil é observada: a ufanista, que pensava a nacionalidade não como resultado dos regimes políticos, mas como “fruto das condições naturais da terra”. Segundo Lúcia Lippi, esta vertente considerava que: “A natureza prodigiosa e abençoada garantiria um futuro promissor para além e independente dos regimes políticos e das querelas partidárias. O ufanismo – juntando às qualidades da terra os valores das três raças originárias – operava assim a paz dos espíritos prometendo dias melhores no futuro, já que a natureza dava fundamento a tais esperanças”.581

A autora propõe compreender como diferentes intelectuais brasileiros se ocuparam do tema da nação e da nacionalidade nas primeiras décadas do século XX. Mais especificamente, ela tem por objetivo mostrar as conexões entre as várias propostas de identidade nacional, apontando a lógica que organizava as representações sobre o Brasil, capazes de integrar perspectivas e interesses dos mais diversos. 582 Assim, o texto de Rodrigo Otávio (1866-1944), 583 Festas nacionais,584 de 1893, apresenta, segundo Lippi de Oliveira, uma história do Brasil onde a República aparece como 580

Lúcia Lippi de Oliveira cita como representante da primeira vertente, que considera conservadora, o trabalho de Eduardo Prado e, como representante da segunda, tida como mais progressista, Raul Pompéia (1863-1895). Posteriormente, já no século XX, o trabalho de Álvaro Bomílcar teria contribuído para a simbiose entre essas duas correntes, consolidando o que a autora identifica como uma “vertente republicanista”. OLIVEIRA, op.cit., p.23-24. 581 Como representantes da “vertente ufanista” – que considera como aquela que teve maior constância e penetração no pensamento social brasileiro da Primeira República – Lippi de Oliveira cita Afonso Celso e Olavo Bilac, entre outros. Id. ib., p.24. 582 Lúcia Lippi analisa a nação e o nacionalismo adotando a perspectiva de um estudo das doutrinas. Esta abordagem privilegia a investigação das idéias e daqueles que as geram, sobretudo intelectuais. Também favorece a classificação do nacionalismo em diferentes tipos, de acordo com as várias espécies de doutrina. A autora analisa as doutrinas sobre a constituição da nação considerando dois enfoques principais: aqueles que privilegiam a cultura como fator primordial na construção da nação e, aqueles que priorizam o fator político. Oliveira orienta-se pelas idéias de Hans Kohn, que compreende o nacionalismo como uma “idéia-força” capaz de impulsionar a organização de um povo, ao colocar a nação como o valor mais alto na escala de símbolos político-culturais. Um símbolo capaz de integrar diferentes tradições, religiões, etnias e classes. A nação constituiria a entidade máxima à qual seus habitantes deveriam lealdade, sendo originada pelo desenvolvimento de um tipo específico de solidariedade, apta a prevalecer sobre outras formas de consciência de pertencimento. Id. ib., p.29-30. John Breuilly visualiza três áreas de interesse diferentes presentes nos estudos sobre a nação e os nacionalismos: a doutrina, a política e os sentimentos. Este autor coloca que: “ver a política nacionalista como obra de intelectuais, ou ver os sentimentos nacionais como uma conquista de movimentos políticos que servem a doutrinas nacionalistas (...) tem pouco valor. Muitas vezes, a política nacionalista é dominada por outros grupos; o surgimento de sentimentos nacionais tem que ser relacionado com mudanças muito mais complexas do que a difusão de uma doutrina, partindo de seus criadores intelectuais para populações mais amplas”. Cf. BREUILLY, John. Abordagens do nacionalismo. In: BALAKRISHNAN, Gopal. Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p.155-6. 583 Rodrigo Otávio, advogado e jurista, foi membro da Academia Brasileira de Letras. 584 O título se refere às “datas nacionais”, “dias que a República manda guardar”. Manoel Bomfim faz referência a este livro em O Brasil na História..., op.cit., p.197.

aspiração existente desde os tempos coloniais. A Independência de 1822 surge como um momento de reafirmação da dominação portuguesa sobre o Brasil, quando foram reprimidos os antigos ideais republicanos. Ao invés da afirmação de uma seqüência de vitórias, a história do Brasil (diga-se, da República) proposta por Otávio continha a exposição de uma série de derrotas, construindo a imagem de uma “pátria vencida”. 585 Outro texto onde Lippi de Oliveira observa um igual teor é o de Gonza ga Duque (1863-1911),586 Revoluções Brasileiras, 587 de 1897, onde foram destacados fatos considerados relevantes para a causa republicana: o Quilombo dos Palmares, a Guerra dos Mascates, a Cabanada, a Sabinada, a Balaiada, chegando à própria Proclamação, em 1889. Gonzaga Duque criticava a história do Brasil ensinada até então por basear-se nos “cânones da monarquia” e omitir as lutas – “sucessivas e sangrentas” – que teriam, verdadeiramente, construído a nação. 588 Outra versão de história brasileira teria sido apresentada por Afonso Celso (1860589

1938),

no livro Por que me ufano do meu país (1900), que Lúcia Lippi considera como uma

“versão quase caricatural do que se chamou mais tarde de ‘ufanismo’”. 590 Escrito para comemorar o IV Centenário do Descobrimento 591 e para ensinar o patriotismo aos filhos do autor, este livro enumera onze motivos de superioridade do Brasil,

585

As idéias de Rodrigo Otávio teriam encontrado apoio em Raul Pompéia – outro autor analisado por Lippi de Oliveira – através da carta/prefácio que este último escrevera para seu livro. De acordo com Lúcia Lippi, neste prefácio, Pompéia relê a história do Brasil segundo a luta política pela República. OLIVEIRA, op.cit., p.127-8. 586 Luiz Gonzaga Duque Estrada, escritor, jornalista e crítico de arte ligado à roda boêmia de Coelho Neto (18641934). Autor do livro Mocidade morta (1899), que tem como tema a boêmia do Rio no final do século XIX, com destaque para o meio artístico. 587 Este livro também é citado por Bomfim em O Brasil na História..., op.cit., p.259. 588 No dizer de Gonzaga Duque: “o conhecimento histórico das origens republicanas é um dever de educação de um povo livre”. DUQUE apud OLIVEIRA, op.cit., p.129. 589 O Conde Afonso Celso – filho do Visconde de Ouro Preto, último presidente do Conselho de Ministros do Império – foi conde papal e diretor do IHGB, que publicou uma série de artigos sobre ele por ocasião de seu centenário de nascimento, em 1960. Segundo Lúcia Lippi, ele fazia parte de um grupo de intelectuais que, no início da República, pretendeu reabilitar o passado nacional, defendendo a excelência da “raça portuguesa” e do catolicismo da colonização brasileira. Ver OLIVEIRA, op.cit., p.131. Posteriormente, Afonso Celso veio a presidir a Ação Social Nacionalista (anos 20), de política marcadamente antilusitana. Ver RIBEIRO, Gladys Sabina. Os anos da década de 1920. In : _____. “Cabras” e “pé-de-chumbo”: os rolos do tempo, o antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1930). Niterói: Dep. de História/UFF, 1987, vol.II, p.254. 590 OLIVEIRA, op.cit., p.126. A autora cita o livro Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bomfim como exemplo da permanência do ufanismo nas primeiras décadas do século XX. De acordo com Lippi de Oliveira, este livro apresenta sob forma ficcional os mesmos temas presentes em Por que me ufano do meu país. Id. ib, p.132. Através do Brasil teve sessenta e quatro edições até 1962, tendo sido premiado pela Academia Brasileira de Letras, em 1933. Ver a dissertação de mestrado de BOTELHO, André Pereira. O batismo da instrução: atraso, educação e modernidade em Manoel Bomfim. Campinas: Dep. de Sociologia/UNICAMP, dissertação de mestrado, 1997. 591 Sobre o IV Centenário do descobrimento do Brasil, ver o artigo de OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. Imaginário histórico e poder cultural: as comemorações do descobrimento. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, 14(26):183-202, 2000.

entre os quais: a grandeza territorial, a beleza, a riqueza, o clima, a ausência de calamidades, o cruzamento de raças (índios, negros e brancos) e seu produto, o mestiço, a história, etc. 592 Esta última seria um motivo para a superioridade do Brasil por ser considerada representativa de algo que era visto por Afonso Celso como uma particularidade do país: a suavidade do regime colonial brasileiro, quando comparado ao de quase todos os outros povos americanos. A escravidão teria sido mais branda, sendo que a emancipação ocorrera de forma progressiva e, após a Abolição, “incorporaram-se os ex-escravos à população, em perfeito pé de igualdade”. 593 Os acontecimentos da vida nacional destacados são: o trabalho de catequese desenvolvido pelos jesuítas; a epopéia dos bandeirantes, a expulsão dos holandeses, a Guerra dos Palmares e a Retirada da Laguna. 594 Afonso Celso também identificou predicados do caráter nacional brasileiro: sentimento de independência, hospitalidade, afeição à ordem e paz, paciência e resignação, doçura, desinteresse, escrúpulo no cumprimento das obrigações, caridade, acessibilidade, tolerância (ausência de preconceitos) e honradez (pública e particular). Listou, também, características negativas: a falta de iniciativa, de decisão e de firmeza (as três corrigíveis por educação) e a pouca diligência, aliada ao pouco esforço (ambos corrigíveis por meio de novas condições). 595 Seguindo a interpretação de Lippi de Oliveira, os livros de Rodrigo Otávio e Afonso Celso apresentam traços marcantes do que a autora identifica como duas vertentes de nacionalismo existentes no início do século, ambas expressas através da reescrita da história. Do primeiro autor apreende-se que o Brasil deve ser pensado a partir vida política, da qual

592

Id., A questão nacional..., op.cit., p.129. CELSO apud OLIVEIRA, id., p.130. Esta visão da escravidão como algo brando, suave aparece, também em Manoel Bomfim, quando, por exemplo, ele diz que: “se é possível apontar algumas relativas cruezas nos quadrados de senzalas dependentes dos cafezais, pelo resto do Brasil era uma inocente escravidão rural ou doméstica. Inocente porque, dadas as condições de cultura dos escravos, as formas de vida tinham piores efeitos para os próprios senhores, do que para aqueles humanamente tratados. Uma coisa é o efeito de massas de cativos, quase isolados, jungidos ao trabalho da mina, ou nos ergástulos dos latifúndios, outra é a ação de escravos misturados ao viver da família: dezenas de negros e mulatos, no recesso das cozinhas, no segredo das alcovas”; ou, ainda, “nesse cativeiro, a alma do negro não se sentia intransigentemente amesquinhada; havia a relativa expansão, uma qual liberdade, e sombras de felicidade. E porque assim se fez o cativeiro dos pretos, nunca houve, aqui, daquelas sangrentas reações de escravos, como se encontram na história de outras partes da América (...) o próprio desenvolvimento dos Palmares e outros grandes quilombos, mostra que os pretos escravos tinham, no Brasil, possibilidades que não existiam noutras colônias. Palmares foi uma organização política, e não um reduto de ódios”. Ver BOMFIM, O Brasil na América..., op.cit., p.204. Grifo do autor. Outros exemplos da visão de Bomfim sobre a escravidão são as seguintes interpretações, dispersas em seus livros sobre o Brasil: “branda”, “funesta” (devido à demora em ter fim), “menos dolorosa do que em outras colônias”, “contribuiu para a degradação moral do senhor”, “perturbação da evolução normal do trabalho”, “abjeção moral”, “perversidade”, “desumanidade”, “degradação do trabalho”, “embrutecimento”, “aniquilamento do trabalhador”, etc. A visão ambígua do autor sobre a escravidão chama a atenção, uma vez que ela é percebida como algo, ao mesmo tempo, brando e desumano. 594 OLIVEIRA, op.cit., p.130. 595 Id. ib., p.130, nota 1. 593

derivariam todos os outros aspectos sociais. Do segundo, que o Brasil deveria ser pensado a partir da ordem territorial e cultural, assim como, da psicologia coletiva do brasileiro. De modo geral, pode-se dizer que os nacionalismos da virada do século orientavam-se pela pauta de discussões sobre a república, tecendo relações entre esta e a nação. Estava em jogo a construção de um regime de poder diferente daquele existente no império – comprometido com uma elite dirigente herdeira da colonização portuguesa – em meio às transformações sociais e econômicas decorrentes do fim da escravidão. Neste jogo, vários projetos divergiam quanto ao entendimento de como deveria ser a república e, conseqüentemente, a nova nação republicana. A primeira década após a Proclamação da República, em 1889, pode ser compreendida como caracterizada pela instabilidade política, decorrente da proliferação de propostas das mais diversas, capazes de gerar grande incerteza e confusão. Renato Lessa denominou este período de “anos entrópicos”, devido à ausência de mecanismos institucionais capazes de estabelecer uma rotina de ação política, o que teria favorecido não a ausência de sentido, mas a superposição de inúmeros sentidos, projetos e versões a respeito do que se passava, sem que houvesse um mecanismo de ordenação. Segundo o autor, “os anos entrópicos apresentam a seus protagonistas uma dilatada quantidade de desafios, impedindo a qualquer dos atores a posse de um mapa cognitivo capaz de erradicar a ignorância sobre o que se passava”. 596 Os textos mencionados de Rodrigo Otávio, Gonzaga Duque e Afonso Celso foram produzidos, justamente, durante os “anos entrópicos” e servem como exemplos do esforço de construção de uma história da nação brasileira nos moldes republicanos, entendendo que tais moldes eram muitos e complexos. Contudo, esse esforço teria sido comprometido pelo grande número de escritores que, ao longo desse mesmo período, abandonou uma posição de engajamento direto na vida social e política, por adotar uma posição de ceticismo e

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LESSA, Renato. A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988, p.15. Entre 1892 (ou seja, após a Constituinte de 1891) e 1904, os conflitos envolvendo diferentes projetos políticos republicanos podem ser vistos, de modo geral, como estando relacionados a uma disputa entre duas forças que, cada vez mais, tendem à polarização: de um lado, aqueles que defendiam um governo republicano forte, centralizador, intervencionista, militarista; de outro, aqueles que propunham uma república liberal e civil. O principal defensor da primeira proposta era o chamado movimento jacobino do Rio de Janeiro, enquanto o segundo era liderado pelo grupo conhecido como dos republicanos históricos paulistas. Resumidamente, a pauta de reivindicações dos jacobinos incluía o entendimento do progresso da nação como sendo a reversão do passado colonial, marcado pela herança do domínio português, que consolidara uma economia essencialmente agrária. O progresso exigiria, portanto, o desenvolvimento da indústria e do comércio nacionais. Quanto aos republicanos históricos paulistas, propunham construir uma república excludente, federalista e predominantemente agrária. Ver GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988, p.57-58; e OLIVEIRA, op.cit., p.92.

distanciamento diante da experiência republicana que, paulatinamente, os afastava das funções públicas e, ao mesmo tempo, não favorecia a criação de outros espaços de atuação. 597 A construção de uma nação republicana, no final do século XIX, guiava-se pelo olhar sobre o passado, de modo a poder demarcar um espaço simbólico capaz de garantir a legitimidade do novo regime. Como observou Marly Silva da Motta: “Era preciso deixar cla ro que a República não fora obra do acaso ou do capricho dos militares, mas sim fruto de memoráveis acontecimentos passados. O ideal republicano teria sido uma presença constante ao longo da história brasileira, começando pelo Quilombo dos Palmares e pela Guerra dos Mascates, passando pela Inconfidência Mineira, a revolução Pernambucana, Farrapos e Balaiada, para finalmente concretizarse em 1889, como a culminância de uma longa luta”.598

Esse trabalho de criar uma nação republicana pautava-se na reconstrução da história do Brasil, num momento em que escrever a história era tarefa empreendida por intelectuais com diferentes tipos de formação e atuação social e política, muitos dos quais eram autodidatas, guiados por tradições intelectuais distintas e inseridos em grupos de interesse dos mais diversos. Ultrapassando esses primeiros anos republicanos, vejamos como dois intelectuais considerados como marcos da afirmação de uma concepção moderna de história no Brasil: Capistrano de Abreu (1853-1927) e João Ribeiro (1860-1934), participaram desse trabalho, lembrando que o campo da história estava, na Primeira República, ganhando autonomia e delimitação – o que implicava na definição da história como prática disciplinar, e no conseqüente surgimento do historiador como um tipo específico de especialista que a domina. Inicialmente, é preciso lembrar que, com a Proclamação da República (1889), difundiu-se a perspectiva de que a escola e o ensino deveriam denunciar os atrasos impostos pela monarquia e assumir o papel de regenerar os indivíduos e a própria nação, colocando o país na rota do progresso e da civilização. A preocupação pragmática era buscar um estudo e um ensino da história capazes de contribuir para a efetivação de uma “pedagogia do cidadão” adequada à nova conjuntura. Um dos problemas mais prementes era a criação de novos valores e medidas capazes de fundamentar uma espécie de “culto ao trabalho”. O Estado afastou-se da Igreja, permanecendo como o principal agente histórico, capaz de assumir o papel de condutor do processo civilizador. A história do Brasil ou história-pátria

597

São inúmeras as expressões de decepção em relação ao novo regime político. Euclides da Cunha (1866-1909), por exemplo, desabafava: “A ver navios! Nem outra coisa faço nesta adorável República loureira de espírito curto que me deixa sistematicamente de lado...”. CUNHA apud SEVCENKO, op.cit., p.92. Ver, também, OLIVEIRA, op.cit., p. 86-7. 598 MOTTA, Marly Silva da. A nação faz cem anos. A questão nacional no centenário da independência. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1992, p.13.

continuava com a missão de integrar o povo brasileiro à moderna civilização ocidental. À história caberia fundamentar a nova nacionalidade projetada pela República e modelar um novo tipo de trabalhador: o cidadão patriótico. O conteúdo do ensino deveria consolidar uma interpretação do passado como algo homogêneo, valorizando a tradição de lutas pela defesa do território e pela unidade nacional, além dos feitos heróicos identificados com os ideais republicanos. Nesse trabalho de construção de uma nação republicana, tornou-se necessário identificar no passado elementos que contribuíssem para legitimá- la. Heróis, símbolos, hinos e celebrações foram articulados nos primeiros anos da República, constituindo um espaço simbólico nacional- republicano. 599 Era preciso afirmar que o novo regime político não era obra do acaso, mas resultado de um longo processo, cuja memória precisava ser resguardada. Assim, o ideal republicano deveria passar a ser reconhecido como uma presença constante na história brasileira. 600 No entanto, lembro que em 1899 a cátedra de História do Brasil foi extinta e incluída como parte da História Universal. Esta ainda era muito marcada por uma concepção clássica, que se ocupava da divulgação de exemplos daqueles que eram considerados como grandes homens, assim como, da consolidação de uma memória sobre determinados acontecimentos e períodos. A idéia era dimensionar a nação brasileira no mundo ocidental cristão, adotando um ponto de vista eurocêntrico. Logo a História Universal foi substituída pela História da Civilização, desvencilhando-se da perspectiva universalista, determinada pela presença da Igreja Católica no ensino, ainda que mantivesse a perspectiva européia. 601 No início do século XX, encontramos Capistrano de Abreu – professor de corografia e de história do Brasil do Colégio Pedro II de 1883 a 1889 – experimentando uma fase científica muito marcada pelo pensamento alemão, sobretudo, pelas idéias de Leopold von Ranke (1795-1886). Relacionado a isso, estaria o empenho do autor na pesquisa documental e

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O calendário cívico do regime republicano fora instituído em 1890, evocando fatos ligados à fraternidade universal e à comunhão nacional. Ligadas à fraternidade universal estariam as seguintes datas: 1o de Janeiro (fraternidade universal), 14 de Julho (tomada da bastilha), 12 de Outubro (dia das crianças) e 2 de Novembro (finados). Quanto à comunhão nacional, comemorava-se o 21 de Abril (Tiradentes), o 3 de Maio (descoberta do Brasil), o 13 de Maio (“fraternidade dos brasileiros”, expressa através da Lei Áurea), o 7 de Setembro (Independência do Brasil) e o 15 de Novembro (Proclamação da República). Segundo Marly Silva da Motta, o ponto central da comemoração do Centenário era a definição do significado político do grito do Ipiranga e o papel de diversos personagens históricos no processo de independência. Diz a autora que: “avaliando a herança dos três séculos de colonização portuguesa no Brasil, discutindo o sentido do grito do Ipiranga, elegendo Bonifácio como o grande ‘patriarca da independência’, os pensadores do centenário construíram uma ‘história’ (na verdade, uma memória), que firmou uma longa tradição na transmissão do conhecimento histórico”. Id. ib., p.14 e 20. 600 José Murilo de Carvalho mostra os embates sobre e a construção da República no Brasil, através de uma verdadeira “batalha de símbolos e alegorias”. Ver CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 601 Sobre esse assunto, encontrei algumas referências em REIS, op.cit., p.87.

no emprego de um método crítico. De acordo com seus intérpretes, a influência alemã teria conduzido Capistrano a se afastar do positivismo e a aproximar-se da hermenêutica. 602 Apaixonado por arquivos e pela busca de documentos, Capistrano procurou escapar do determinismo dos esquemas analíticos e das leis, privilegiando a compreensão propiciada por uma interpretação crítica de casos específicos. Ele desenvolveu estudos sobre festejos, família, indígenas, as bandeiras, as minas, etc., sempre evitando generalizações. É importante lembrar que este historiador foi interpretado como tendo sido um dos iniciadores da corrente de pensamento histórico brasileiro interessada em “redescobrir o Brasil”, através do estudo de suas particularidades, representadas, principalmente, pelos costumes e pela natureza do país. Como foi dito no capítulo anterior, o leram como um historiador pioneiro na busca da identidade do povo brasileiro. Assim, o trabalho de Capistrano tornou-se um ponto de referência no desenvolvimento de uma concepção moderna de história, divulgando um ideal de verdade objetiva, apoiado em documentos inéditos e testemunhas oculares, assim como na perspectiva das ciências sociais e na preocupação com a narrativa. Ao contrário de Varnhagen, ele propunha uma crítica da memória e da tradição, considerando que a verdade não seria simplesmente o que o passado ensinava. 603 As opções teórico- metodológicas de Capistrano o orientaram na direção de estudos monográficos, onde se destacariam os interesses pela geografia, pela etnografia e por um tipo de história econômica e social que, de modo geral, conferia importância à vida e aos habitantes anônimos do interior do país. 604 Mas, esta preocupação com o relato da ocupação do interior, visto em oposição à conquista do litoral, não marcou apenas a produção desse historiador. Regina Abreu lembra que, em fins do século XIX era reconhecida a existência de uma tradição de “escritores sertanejos”. 605 Essa “aluvião sertaneja”606 constituía, na virada do

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José Carlos Reis refere-se a duas fases de Capistrano: a primeira – ocorrida em fins do século XIX – teria sido marcada pela influência cientificista (sobretudo, do positivismo e do evolucionismo), exemplificada pela crença na unidade do real e pela busca de leis deterministas; pela preocupação com a objetividade do conhecimento e a unidade epistemológica das ciências sociais; a segunda fase teria sido marcada pelo realismo histórico rankeano. Ver REIS, op.cit., p.92. 603 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, n.1, 1988 [1986]. 604 Lembro que até o início do século XX, os estudos historiográficos aproximavam-se da perspectiva de Varnhagen, com amplo uso de documentos oficiais (correspondência administrativa, legislação etc.), valorizando-se histórias de grandes personagens da política e da diplomacia. Arno Wehling menciona que esta perspectiva permaneceu como modelo dominante para a maioria dos trabalhos publicados pelo IHGB em sua revista, assim como nos trabalhos apresentados em Congressos, como o I Congresso de História Nacional, de 1914, e o Congresso de História da América, de 1922. WEHLING, op.cit., p.203. 605 Entre os “escritores sertanejos” citados por Regina Abreu estão: Silvio Romero, Araripe Júnior, José Veríssimo e Euclides da Cunha. A autora destaca que, até meados do século XIX, podia -se observar duas grandes tradições de relatos sobre os sertões: uma ligada à literatura de ficção e, outra, ligada às expedições de cunho científico. Da primeira teriam participado os autores de novelas, contos, romances e peças de teatro; da segunda, os viajantes estrangeiros, os militares e os funcionários do governo. Ver ABREU, op.cit., p.176 e 169.

século, uma corrente literária consolidada, onde era possível observar a recorrência da oposição entre “roça” e “cidade grande”, favorecendo a emergência de tipos como o “sertanejo” (e suas variantes: o “caipira”, o “tabaréu”, o “jagunço”) em oposição aos tipos urbanos: o “malandro”, o “burguês”, o “espertalhão”, o “capitalista”. 607 De acordo com Regina Abreu, “A literatura oscilava entre enaltecer a ‘cidade grande’, em especial a capital federal como locus da civ ilização e do progresso, e, pelo contrário, atribuir à cidade a fonte do mal, da corrupção e do perigo para desprotegidos e puros sertanejos que nela chegavam”.608

Ao interior era atribuída a característica da “pureza”, da fonte de “autenticidade” e “honestidade”; um espaço que podia representar uma maior proximidade entre o homem e a natureza tropical. Enquanto o litoral passara a representar a proximidade do homem com o exterior – o além- mar (a Europa) – o que, por vezes, podia ser associado tanto à idéia de contaminação e de inautenticidade (o exterior era visto como espaço do domínio estrangeiro); quanto à idéia de progresso e civilização. 609 Esse olhar sobre o interior – compreendido como um território oposto ao litoral610 – remete ao contexto de formação das nações modernas européias, em fins do século XVIII e início do século XIX, momento em que os intelectuais tomavam para si a tarefa de revelar (ou inventar) os aspectos mais autênticos e singulares de cada formação nacional. 611 Já vimos que, no caso brasileiro, o grande problema era saber sobre as possibilidades de construção de uma civilização nos trópicos e, mais especificamente, uma nação mestiça,

Lembro que o próprio Manoel Bomfim participara de uma dessas expedições de cunho científico – em 1891 – em busca de remanescentes dos índios botocudos. Cf. AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Brasília: UnB, tese de doutorado em Sociologia, 1998, p.101. 606 A expressão é de Antônio Cândido, citado por Abreu. De acordo com a autora, Cândido interpretou essa “aluvião sertaneja” como “uma das principais vias de autodefinição da consciência local” que, contudo, teria explorado o gênero de modo “articificial e pretencioso, criando um sentimento subalterno e de fácil condescedência em relação ao próprio país, a pretexto de amor à terra”. Teria sido “um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas”. CÂNDIDO apud ABREU, op.cit., p.171-2. Cabe observar que, para além de uma simples transposição de olhar, é preciso refletir sobre a “lógica peculiar” de apropriação de um ideário estrangeiro, como observou Lilia Schwarcz, ao referir-se à leitura das teorias raciais européias no Brasil. SCHWARCZ, op.cit., p.34. Além disso, no caso da construção dessa “literatura sertaneja” seria preciso considerar, entre outras coisas, a disputa por espaço por parte de intelectuais com pouco capital social ou literário que, através da adoção dos “temas sertanejos”, teriam conseguido conquistar algum reconhecimento através da diferenciação, num mundo literário dominado pela temática da vida urbana. Cf. ABREU, ib., p.169-202. 607 Id. ib., p.171-2. 608 Id. ib., p.172. 609 Id. ib., 215. 610 Regina Abreu analisa os significados da palavra “sertão” no final do século XIX, afirmando que, na linguagem corrente, ela equivalia ao interior, “um imenso território pouco explorado situado costa adentro”. ABREU, ib., p.165. 611 Regina Abreu lembra que, na Alemanha, por exemplo, esses aspectos autênticos e singulares estariam supostamente localizados na poesia e no folclore das antigas tradições populares. Id. ib., p.142.

onde os supostos valores originais de pureza e autenticidade estariam, acreditava-se, corrompidos pela miscigenação e permanente interferência do estrangeiro. De acordo com Regina Abreu, “num país com muitas misturas, influências e instabilidades, apenas o meio físico havia restado como fator original e estável”. 612 Pode-se dizer, então, que o problema tinha vá rias dimensões: ultrapassar a visão de um Brasil degenerado, sem desconsiderar o descompasso do país em relação às nações consideradas civilizadas e, ao mesmo tempo, identificar (ou construir) as particularidades da identidade nacional brasileira. A representação de um Brasil retrógrado – ou seja, atrasado, mas não degenerado – poderia ajudar. Assim, o interior, a princípio tido como símbolo do atraso – em oposição ao litoral, símbolo do progresso – poderia adquirir o status de símbolo da brasilidade. 613 Para isso também contribuía a percepção do litoral como marcado pela colonização portuguesa, um passado que, a partir de então, poderia ser visto como algo a ser ultrapassado, abrindo espaço para a construção de uma história do Brasil não mais continuadora da história de Portugal. A oposição litoral versus interior era comumente relacionada ao modelo de colonização implantado no país, sendo que, até pelo menos meados do século XIX, o litoral era a principal referência para a literatura. 614 Em fins do século XIX, essa oposição – analisada pouco depois por Capistrano – surgiu não apenas como um tipo de literatura especializada – oposta à literatura sobre temas urbanos – mas também como item de um plano de escrita da história do país, capaz de recuperar ou inventar peculiaridades geográficas, humanas e culturais, permitindo a criação de uma consciência nacional a partir de uma definição do Brasil e dos brasileiros. Um item que possibilitava ultrapassar o parâmetro ditado pelo passado colonial, que deixara marcas profundas no litoral, e, ao mesmo tempo, fundamentar a construção de um novo espaço – o sertão – e de um novo tipo: o homem do interior, autenticamente brasileiro.

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Id. ib., p.215. Já vimos que esta visão do meio físico como espaço da estabilidade e da originalidade não era a única. Havia aqueles que viam a natureza tropical como um obstáculo à civilização (Buckle), assim como aqueles que a valorizavam como elemento diferenciador, símbolo de grandiosidade (Humboldt). Karin Volobuef, por exemplo, identifica diferenças entre os romantismos alemão e brasileiro – do século XIX – no que dizia respeito à relação homem/natureza. No romantismo alemão – guardadas suas variações – a natureza aparecia como algo indefinido, misterioso, que mais sugeria do que retratava. O romantismo brasileiro, ao contrário, visava a apresentação de uma natureza completa, íntegra, que não insinuava, mas expunha. Para Volobuef, a natureza do romântico alemão é um reflexo do indivíduo; a do brasileiro, um retrato das grandezas do país. VOLOBUEF, op.cit., p.229. 613 Para que o sertão como símbolo de brasilidade fosse aceito, muito contribuiu a escrita e aceitação do livro Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, considerado até recentemente como “livro número um do Brasil”, como o “grande livro nacional”. Sobre a recepção desse livro ver ABREU, op.cit.; sobre a noção de brasilidade, ver o citado livro Por que me ufano do meu país (1900), do Conde Afonso Celso, que parece ter sido o criador do termo, segundo RIBEIRO, Gladys Sabina, op.cit., p. 255. 614 ABREU, op.cit., p.166.

De acordo com Maria Luiza Gaffrée Ribeiro, o plano de escrita da história de Capistrano estaria organizado em três partes principais: o descobrimento do Brasil (considerando as pretensões francesas, espanholas e portuguesas); a formação do organismo brasileiro (exploração e ocupação do litoral e do sertão, iniciados nos séculos XVI e XVII); e a evolução (transformação ocorrida entre os séculos XVII e XIX). 615 Através desse plano ele teria rompido com o elogio da colonização portuguesa, valorizando a conquista e formação do Brasil por um “brasileiro mestiço” (principalmente de índios e brancos). O Brasil nação que surge em seus estudos não é mais o do Estado Imperial, mas o do povo brasileiro, visto em sua unidade e diversidade. 616 Contemporâneo de Capistrano, João Ribeiro foi o autor de História do Brasil. Curso Superior, 617 publicado em 1900, ano de comemoração do IV Centenário do Descobrimento do Brasil. Um livro que, de acordo com o estudo de Patrícia Santos Hansen, ajuda a pensar nos rumos que a pesquisa e o ensino da história do Brasil estavam tomando nos anos iniciais do século XX. 618 Observemos alguns aspectos do livro de João Ribeiro – apontados e analisados por Hansen – que dizem respeito aos problemas tratados no decorrer deste capítulo. Aspectos que deverão contribuir para a compreensão dos diálogos sobre a escrita da história – e os projetos de nação a ela relacionados – na Primeira República. Em primeiro lugar, lembro a afirmação de Hansen, para quem o principal traço comum entre João Ribeiro e outros autores de sua época seria “o ‘nacionalismo’ como motivação, não implicando, na transformação da história em instrumento de exaltação nacional, mas em veículo de conhecimento da sua particularidade ou essência”. A autora localiza entre os intelectuais do período analisado, a opinião de que ainda não existia uma nação brasileira, além de identificar “um sentimento generalizado de insegurança”, devido ao reconhecimento da “fraqueza nacional”. Ao mesmo tempo, Hansen considera que, “para boa parte dos intelectuais do período, a história era valorizada pela função pedagógica que tinha a cumprir naquele momento de crise, a qual era atribuída à fragilidade nacional perante graves ameaças externas e internas”. 619 A história da formação do Brasil aparece no livro de Ribeiro como sendo a história do “Brasil interno”. Assim, a partir do destaque atribuído pelo historiador à ocupação territorial

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RIBEIRO, Maria Luiza Gaffrée, op. cit., p.50. REIS, op.cit., p.114. 617 Este livro de João Ribeiro teve dezesseis edições até 1957. 618 Patrícia Santos Hansen analisa tanto o projeto historiográfico e pedagógico presente no livro de João Ribeiro, quanto o trabalho de apropriação de ambos – do livro e do autor – por parte de um público capaz de atribuir-lhes, um papel relevante na construção do conhecimento histórico no e sobre o Brasil. Cf. HANSEN, já citado. 619 Id. ib., p.77-8 e 129. 616

do país, 620 Hansen identifica uma ampliação do conceito de nação para receber a contribuição de agentes até então excluídos da história, e que seriam responsáveis por atribuir ao Brasil suas “feições e fisionomia própria”. 621 De acordo com Hansen, no livro de João Ribeiro podem ser identificados como elementos dessa formação nacional, iniciada no fim do século XVI: a mistura das três raças (brancos, índios e negros), a atuação de um elemento moral (representado pelos jesuítas), os processos de defesa do território e de um comércio livre de monopólios. Tais elementos constituiriam as “origens” (ou “causas gerais”) de uma cultura que ganharia uma “fisionomia” mais definida nos séculos seguintes. Além disso, a autora observa que a recorrência aos temas freqüentes da historiografia do Império – Descobrimento, Capitanias Hereditárias, Governos Gerais etc. – não aparece mais como imposta pela necessidade de se legitimar o Estado Imperial, mas como aspectos necessários para o reconhecimento da realidade de uma nação, cuja história teria sido construída a partir da portuguesa, mas que seria distinta dela. 622 Do movimento historiográfico do século XIX – que aqui foi resgatado através das referências ao IHGB, Martius e Varnhagen – é possível visualizar um aspecto significativo no trabalho de construção da história da nação, que também aparece na historiografia do início do século XX: o interesse pela formação brasileira. Berthold Zilly 623 e Patrícia Santos Hansen624 chamaram a atenção para esse aspecto. Ambos observaram o quanto é notável (e persistente) na historiografia brasileira, o uso da noção de formação, principalmente a partir do final do século XIX e início do século XX, quando ambos constataram que a idéia começa a aparecer com certa freqüência nos estudos sobre o Brasil. Interesse presente tanto em Martius quanto em Varnhagen, tanto em Capistrano quanto em João Ribeiro, essa busca do conhecimento da formação também apareceu – em momentos distintos e a partir de perspectivas teórico- metodoló gicas das mais diversas – nos livros de Oliveira Lima (1867-1887),

Manoel

Bomfim,

Pandiá

Calógeras

(1870-1934)

e,

posteriormente, Caio Prado Júnior (1907-1990), Celso Furtado, Raymundo Faoro, Roland Corbisier, Antônio Cândido e Darcy Ribeiro (1922-1997), só para citar exemplos facilmente identificáveis pelo título de suas obras, respectivamente: Formação histórica da

620

Eric Hobsbawm chamou a atenção para a o vínculo entre nação e território, no contexto de estruturação e definição dos Estados modernos. HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 621 HANSEN, op.cit., p.85-6. 622 Id. ib., p. 85-94. 623 ZILLY, Berthold. Minha formação (1898), de Joaquim Nabuco – a estilização do brasileiro ideal. In: DECCA, Edgar Salvadori de & LEMARIE, Ria (orgs.). Pelas margens: outros caminhos da história e da literatura. Campinas, SP: Unicamp, 2000, p.253-264. 624 HANSEN, op.cit., p.84.

nacionalidade brasileira (1911); O Brasil na América: caracterização da formação brasileira (1929); Formação histórica do Brasil (1930); Formação do Brasil contemporâneo (1942); Formação econômica do Brasil (1959); Os donos do poder. Formação do patronato brasileiro (1958); Formação e problema da cultura brasileira (1958); Formação da literatura brasileira (1959); e O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil (1995). A idéia de formação coloca em evidência uma noção de temporalidade como processo. Contudo, por vezes, a preocupação com a formação pode conduzir a uma compreensão um tanto quanto teleológica da história, quando remete a algo que, ao final (após o processo), adquire (ou deverá adquirir) determinada forma. Neste caso, buscar-se- ia, a partir de uma visão do resultado final – ou de uma perspectiva sobre como esse resultado poderá ser no futuro – as causas que lhe deram ou darão origem. Causas que, encadeadas, permitem confirmar a visão prévia do resultado final. 625 De acordo com Berthold Zilly, tal idéia pode sugerir que, “O Brasil como um todo, assim como nos seus diversos segmentos e áreas, ainda não alcançou a sua maturidade, a sua plenitude, que o País está-se processando, desenvolvendo-se rumo a uma forma essencial, visando um telos, uma realidade completa e superior. O Brasil precisaria tornar-se mais idêntico a si mesmo”.626

Ou seja, pensar em termos de formação exige que se considere um processo e seu fim, uma dinâmica e seu resultado, sendo que, por vezes, a primeira idéia parece ser mais enfatizada. Ao mesmo tempo, como observou Zilly, em alguns casos, a narrativa da formação costuma ordenar fases e fatores de modo a construir um quadro quase estático, definido, resultante do processo formativo. 627 Se aquilo que se formou (ou está em vias de) é um indivíduo, ele poderá ser representado, por exemplo, através de uma imagem estática, que transmite a idéia de um estado de completude ou incompletude ou, de alguém que poderá ou não alcançar tal status, dependendo do modo como os fatores da formação são avaliados. Se aquilo que se formou é uma sociedade ou algum aspecto ou setor da mesma, a imagem produzida pode sugerir, repito, em alguns casos, a mesma imagem estática (a de um gigante

625

Lúcia Lippi de Oliveira também ajuda a analisar a idéia de formação, quando, no capítulo intitulado Desde quando somos uma nação?, ela explora a preocupação de intelectuais de diversas áreas do conhecimento em investigar o período histórico em que a população brasileira teria adquirido os contornos de uma nacionalidade. É assim que a autora localiza em Afonso Arinos de Melo Franco (n.1905) a visão de que a nação brasileira teria surgido no terceiro século de colonização; e, em Antônio Cândido, para quem um “espírito nacional” – expresso através da literatura – teria surgido durante o século XVIII; ou, ainda, Afrânio Coutinho (), que fez recuar o marco do surgimento de uma expressão literária nacional aos primórdios da ocupação portuguesa. Ver OLIVEIRA, op.cit., p.77-78. 626 ZILLY, op.cit., p.254. 627 Id. ib., p.254.

“deitado eternamente em berço esplêndido”, por exemplo) de alguma coisa completa ou ainda não totalmente formada. A idéia de formação está presente no primeiro livro de Manoel Bomfim – A América Latina (1905) – assim como em sua trilogia sobre o país: O Brasil na América (1929), O Brasil na história (1930) e O Brasil Nação (1931). O modo como o autor organizou seus livros permite supor que, para se pensar o Brasil enquanto nação (tema do último livro da trilogia, O Brasil nação), seria preciso recuperar alguns aspectos de sua origem ibérica (preocupação dos livros A América Latina e O Brasil na América); identificar as características de sua formação – que dizem respeito, sobretudo ao cruzamento dos povos formadores e ao processo de lutas contra os estrangeiros (O Brasil na América); e, repensar o lugar que coube ao Brasil na “história geral da civilização” (tema do livro analisado nesta dissertação). Mais especificamente, em A América Latina, 628 a idéia de formação pode ser apreendida a partir da busca da origem dos males dos países latino-americanos. O conceito de parasitismo – empregado por Bomfim para representar o processo de exploração das metrópoles sobre as colônias – ajuda a compreender o processo de degeneração em meio ao qual teriam sido formadas as nações independentes da América colonizada por Portugal e pela Espanha. Em O Brasil na América, o autor propõe caracterizar a formação do Brasil através do estudo de suas origens ibéricas e das lutas em defesa do que ele chama de “primeiro Brasil”. Diz Bomfim que: “Para que um povo realize de fato uma nação ou sociedade política, em tipo formal de civilização, ele há de ser uma legítima combinação humana, verdadeira síntese de qualidades psíquicas, não diversas dos elementos formadores, mas distinta e caracterizada, como síntese ou unidade nova e complexa. Aplicando essa necessidade ao nosso caso, como um povo provindo de tão extensos e repetidos cruzamentos, vemos formular-se uma nova necessidade: a de agir explicitamente, insistentemente, sobre os espíritos, a fim de obter a necessária assimilação de gentes, com a conveniente harmonia de consciências, para a explícita unificação do tipo social”.629

Aspectos do caráter heróico dos portugueses – tais como a tenacidade, assim como o pendor para o comércio e a política – ao serem associados, por meio da miscigenação, às

628

Lembro que este livro, lançado em 1905, foi reeditado pela primeira vez em 1938, por empenho de Azevedo Amaral, um dos ideólogos do Estado Novo. 629 BOMFIM, O Brasil na América..., op.cit.. Grifo do autor.

características dos gentios, 630 teriam contribuído para formar esse “primeiro Brasil”. Os indígenas ocupariam um lugar de destaque nesta formação, ao contrário dos negros. O autor reconhece “três verdades” sobre o cruzamento entre brancos e negros no Brasil: 1) “como efeitos biológicos, o cruzamento com os negros é análogo ao do índio”; 2) o caso do Brasil é único na América, no que diz respeito ao influxo do negro; 3) “o negro teve muito menor influência na formação primeira do Brasil do que se admite geralmente”. 631 Esta afirmação, de que “a influência dos negros sobre a essência da alma brasileira, foi menos pronunciada do que parece”, se deve a interpretação do autor de que o Brasil já estava definido em meados do século XVII, quando ele identifica o número de escravos africanos como sendo relativamente pequeno. 632 Em O Brasil na História, a formação do Brasil é observada a partir da análise da escrita da história do país. Bomfim apresenta sua versão sobre como a nação brasileira teria sido forjada (falseada) pela historiografia. No mesmo livro o autor percorre o processo de formação da nação através de uma análise dos acontecimentos políticos, passando pelas lutas contra o estrangeiro na colônia, até as lutas contra a dominação portuguesa, no Império. A localização de “interesses em luta” serve como guia na interpretação da história brasileira, sendo que o processo de formação da nação é apresentado através de referências à “deturpação” produzida pela historiografia e ao “trauma e infecção”, decorrentes da “degradação” política e social de Portugal transposta para o Brasil. A história do Brasil de Manoel Bomfim tem início na época da colônia, quando teria sido iniciado um esforço para congregar o país e dissociá- lo de Portugal. Propondo investigar “as origens e os motivos da unidade política no Brasil”, ele identificou a solidariedade, como sendo o principal elemento de congregação. 633 Ela estaria presente nas lutas em defesa do 630

Entre as características do gentio, presentes nos textos de Bomfim, destaco: a “natureza quase virgem”; a de possuir “almas rudimentares”; a “inconsistência de caráter”; a “leviandade”; a “imprevidência”; a “indiferença ao passado”; a “grande adaptibilidade”; o “amor violento à liberdade”; a “coragem física”; a “instabilidade intelectual”; a “instabilidade de espírito”; a aptidão para o progresso; a obstinação; a “indolência”; a hospitalidade, a ingenuidade; a fraternidade; a “jovialidade”, etc. Ver, por exemplo, BOMFIM, O Brasil na América..., op.cit., p.107-165. 631 Id. ib., p.200. Algumas das características do mestiço brasileiro apontadas por Bomfim são: a “superioridade artística”; a “hombridade estúpida, brutal, mas cavalheiresca”; a despreocupação; a solidariedade (“comunismo espontâneo”); a “tendência à sociabilidade”; a força; o altruísmo; a “tristeza morna”; a alegria; a afeição pela terra; etc. Id. ib., p.167-200. Chamo a atenção para o fato de que Bomfim, embora fosse crítico das teorias que pregavam a desigualdade entre as raças – isso no momento em que tais teorias estavam no auge – não abandonou o uso da categoria raça, nem o esforço de faze r uma tipologia das raças, com base em aspectos psicológicos e biológicos, ainda que procurasse não situá-las em uma escala evolutiva. 632 De acordo com Bomfim, alguns aspectos da influência dos negros sobre o brasileiro seriam: a indolência; a indisciplina; a imprevidência; a preguiça (todos considerados como defeitos de educação e não de raça), etc. Id. ib., p.200-206. 633 Essa perspectiva, que identifica a solidariedade como fator de união nacional, em prol do bem comum é oposta aquela que pode ser encontrada no pensamento de Oliveira Vianna, que Bomfim identifica como sendo o formulador de um julgamento oficial sobre o Brasil e os brasileiros. Resumidamente, Vianna – no livro Populações meridionais do Brasil (1918) – defendia que a sociedade brasileira era, historicamente, insolidária.

território contra invasões estrangeiras, constituindo um sentimento de unidade. Além disso, supôs a existência de uma “oposição de motivos” ou de “interesses em luta”, capazes de opor portugueses e brasileiros, já no século XVI. Uma verdadeira “tradição antiportuguesa” foi delineada pelo autor a partir deste marco, como pode ser visto na citação a seguir:

“Viemos de Portugal, vazados numa abundante infusão de outros sangues, temperados de outras tradições, que, por simples, não eram menos vivazes; viemos dali, mas formamos nova tradição, distinta, diversa, cada vez mais diversa (...) Independentemente dos motivos políticos: tiranizados, espoliados, diminuídos pela metrópole apodrecida, os Brasileiros tinham que acentuar e caracterizar o seu nacionalismo em oposição com Portugal, porque esta é a lei das diferenciações históricas: no mesmo surto em que uma nação afirma a sua existência, apodera-se das suas qualidades características, isto é, as que já lhe são próprias; cultiva-as atentamente, dando a essa cultura o vigor de uma luta de tendências, relativamente aqueles, justamente, que lhe são mais próximos, e com quem poderia haver confusão”.634

Para configurar um quadro de “tradição antiportuguesa”, o autor refere-se a “lei das diferenciações históricas”, que seria derivada, justamente, dos embates e conflitos pela afirmação de tradições em meio a um trabalho de diferenciação em relação, sobretudo, às tradições mais próximas. No caso do Brasil, uma tradição brasileira somente poderia se afirmar em oposição à tradição portuguesa, da qual teria herdado diversos elementos, entre os quais o pendor para a política e para o comércio. O Brasil seria antes de tudo, “uma idéia sentida”. Idéia nascida com a sociedade que aqui teria se formado, desenvolvido e fortalecido, tomando a feição de uma nacionalidade. O “gênio político” que inspirara os criadores do “império ultramarino” teria prevalecido no Brasil, a partir do momento em que, na sociedade aqui formada – por meio da “mistura de gentes e de raças” – passara a vigorar uma “unidade de sentimento”. Em busca das supostas manifestações locais dessa “unidade de sentimento e de aspiração nacional”, Bomfim desenvolveu sua argumentação sobre um Brasil nascido em meio às lutas em defesa do território e pela expansão para o interior – “onde se forma o verdadeiro e exclusivo Brasil”. 635

Este insolidarismo seria resultante do tipo de relações sociais que o autor considerava possível no grande domínio rural, situado num território vasto, que favorecia o isolamento e não a integração. Sobre esta perspectiva de Vianna, ver GOMES, Angela de Castro. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 4, 1998, p.507-11. Oliveira Vianna é citado em O Brasil na América, op.cit., p.193-4 e 198-9, no capítulo em que Bomfim analisa o papel do cruzamento na formação da população brasileira. O autor se contrapõe a Vianna, que considera como um dos responsáveis pela inferiorização do Brasil, por utilizar argumentos contra a mestiçagem. Não localizei um diálogo direto entre Bomfim e Vianna a respeito da questão da solidariedade, embora este seja um tema caro a Bomfim em todos os livros da trilogia e também em A América Latina (1905). 634 BOMFIM, O Brasil na história..., op.cit., p.179. 635 Id. ib., p.140 e 145-7.

O autor dialoga diretamente com Euclides da Cunha, para quem existiriam profundas mudanças étnicas favorecendo a separação e não a união nacional. De acordo com Bomfim, Euclides acreditava que o Brasil estaria fadado a decompor-se em “repúblicas turbulentas, sem a afinidade fortalecedora de uma tradição secular profunda”. Tradição que Bomfim acredita encontrar através de um estudo da “realidade da nossa história”. 636 Seguindo as pistas de Euclides e também as de Capistrano, 637 João Ribeiro638 e Alcântara Machado (1875-1941) 639 (todos citados), Bomfim dizia que: “(...) na trilha dos rebanhos se desbravaram os sertões, lineando-se comunicações definitivas, humanizando-se as remotas e vastíssimas extensões com esse nomadismo de pastoreio, em que as gentes se aproximaram até identificarem-se num tipo inconfundível [o vaqueiro]”.640

Foi a partir das idéias de circulação e comunicação – de costumes, interesses e sentimentos – que o autor consolidou sua interpretação sobre a formação do Brasil. Esta teria ocorrido a partir da aproximação “em alma”, tanto quanto pela identificação de origens comuns, da língua, da religião e do sangue. Bomfim refere-se às “vigorosas correntes em que se fez essa circulação de gentes”. A primeira dessas circulações teria sido iniciada com a expansão de Pernambuco rumo ao norte do país. A circulação se ampliaria seguindo os rebanhos de gado vaccum pelos chapadões e caatingas, sendo que a conquista definitiva da civilização teria sido garantida pelo sedentarismo agrícola. 641 Quando começou a ser definida uma política própria para a colônia – representada pelo Governo Geral – tratar-se-ia de um movimento unificador, favorecido por uma já existente “solidariedade de sentimentos”, que o autor considerava como a “base primeira de 636

Id. ib., p.143. O livro de Euclides citado por Bomfim é Os Sertões, de 1902, além do artigo Da Independência à República, publicado na Revista do IHGB, 69(114):5-71, 1906. 637 O livro de Capistrano citado é Capítulos de história colonial, publicado no Rio de Janeiro em 1907. Parte deste livro fora publicada na revista Kosmos, do Rio de Janeiro, a partir de 1905, com o título de “História Pátria”. Neste mesmo ano, Capistrano publicara em O Brasil o texto “Noções de história do Brasil até 1800”, base dos Capítulos, que seria publicado em separata dois anos depois. A segunda edição foi publicada em 1927, pela editora da Gazeta de Notícias e, desde então, teve, pelo menos, sete reedições. 638 O livro de João Ribeiro utilizado por Bomfim é História do Brasil – Curso Superior, cuja primeira edição é de 1900. 639 O livro de José de Alcântara Machado de Oliveira citado por Bomfim é Vida e morte do bandeirante, de 1929. Segundo Laura de Mello e Souza, os assuntos centrais do livro são: “os sentimentos, as crenças, o dia-adia de homens rústicos, apreendidos no seu aspecto coletivo e nunca exaltados como indivíduos”. A autora destaca o caráter inovador do livro, que teria realizado um “salto analítico notável com relação às interpretações anteriores”. Situa-o como um precursor – ao lado de Capistrano de Abreu – do trabalho de deslocar o eixo interpretativo da história do Brasil do litoral para o interior. Destaca como pontos de impacto: “a modernidade da escolha do objeto e das fontes, a dissolução dos personagens no destino comum (...) a valorização de temas até então desconsiderados, uma sensibilidade histórica que, apesar de certos preconceitos, é nossa contemporânea, e que vasculha o nexo das estruturas por detrás de fenômenos aparentemente insignificantes”. Ver SOUZA, Laura de Mello. A força do detalhe. Prefácio à Vida e morte do bandeirante, mimeo, s/d. Posteriormente publicado em SANTIAGO, Silviano (org.). Intérpretes do Brasil, vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p.1191-1203. 640 BOMFIM, op.cit., p.145-6. 641 Id. ib., p.147- 48 e 170.

um Estado nacional”. Ele afirmou que o “influxo de união nacional” fora herdado dos portugueses, sendo que, as condições especiais do Brasil – a miscigenação de raças e costumes – é que teriam dado um novo impulso a essa herança/tradição, resultando que, dessa combinação de fatores herdados e originais, surgira uma “sociedade política” nova. 642 Ao lado da defesa do território contra invasões estrangeiras, os fatores circulação, comunicação e sedentarismo agrícola, teriam atuado como estímulo à “solidariedade nacional”, impondo a “necessidade patriótica” de defender algo que já seria sentido como uma nação. Contudo, Portugal, “que legara à colônia a boa tendência de unificação”, diante da possibilidade de perdê- la, acabaria se tornado, segundo Bomfim, o maior opositor à constituição da nacionalidade brasileira. 643 O sentido da história brasileira é buscado na “idade de ouro”, marcada pelas lutas em defesa do território contra invasões estrangeiras, passando pelas lutas nativistas, durante o Império, onde estaria representado o ideal republicano. Bem antes da Independência de 1822, o autor identificou atividades políticas essencialmente separatistas e republicanas. Todo o esforço de Manoel Bomfim parece ter sido no sentido de romper com a historiografia que atribuíra aos portugueses – particularmente, aos Braganças – a unidade nacional. Daí a necessidade de revisar a história da Independência do Brasil – tema caro para Varnhagen – e recuar no tempo, até o período colonial, que considerava como tendo sido a “idade de ouro” da formação do Brasil, passando pelos chamados movimentos nativistas ocorridos durante o Império. 644 É interessante lembrar que esta revisão da história da Independência do Brasil foi realizada na segunda metade dos anos vinte, pouco tempo depois da comemoração do Centenário da Independência, em 1922. De acordo com Marly Silva da Motta, havia, então, uma grande dificuldade para justificar o Sete de Setembro como data republicana e nacional. Discutia-se sobre qual seria a data fundadora da nacionalidade brasileira: o Sete de Setembro de 1822, tido como marco da ruptura com Portugal, mas de continuidade com a Monarquia; ou o Sete de Abril de 1831, considerado como marco da primeira experiência republicana no país. 645 Ambos os marcos – 1822 ou 1831 – inseriam-se na perspectiva de que o Brasil era um país jovem. Tânia Regina de Luca, em seu estudo sobre a Revista do Brasil, no período de 1916 a 1925, observa a afirmação da idéia de Brasil como um país novo, em construção. De acordo com a autora “a crença na imaturidade dava margem a um julgamento condescendente 642

Id. ib., p. 148-50. Id. ib., p.152-55. 644 Sobre a questão da Independência, Bomfim cita, além de Varnhagen, John Armitage (1807-1856), Mello Moraes (1816-1882), Assis Cintra (n.1894), Carlos Maul (1889-1973), Pereira da Silva (1817-1997), entre outros. 645 MOTTA, op.cit., p.14. 643

do presente e postergava, com tranqüila confiança, a solução de todos os males para um futuro, naturalmente não datado”. Diante desta perspectiva, que defendia o esquecimento do passado, a favor das tarefas impostas pelo futuro, alguns sugeriam que 1500 fosse esquecido e que a Independência fosse tomada como marco inaugural da história do Brasil. 646 Os preparativos para a comemoração do Centenário da Independência ocorreram num momento de crise e crítica, suscitado pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando o modelo europeu de civilização passou a ser questionado. A questão nacional estava na ordem do dia, transformando o significado anterior do nacionalismo. Essa questão estaria relacionada à busca de esclarecimento sobre como um aglomerado de indivíduos se transforma em uma coletividade. Na Primeira República, essa busca implicava no questionamento da viabilidade do país através da discussão sobre o papel das elites na administração pública e na implementação de reformas sociais; da possibilidade de modernização (tida por alguns como garantidora do progresso e da civilização) e, também, da capacidade de melhoramento da população, 647 tida como base para a constituição da nacionalidade. No Brasil, vigoravam as críticas às elites políticas e intelectuais, freqüentemente identificadas pela ausência de consciência nacional ou pelo artificialismo expresso através de idéias e fórmulas políticas importadas. Um exemplo da crítica aos intelectuais é o texto Política e Letras, de Tristão de Athayde (n.1893), 648 que propõe denunciar a postura intelectual daqueles que, segundo ele, 646

DE LUCA, Tânia Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: UNESP, 1999, p.90. 647 No limiar dos 20, começaram a circular, no Brasil, projetos de política eugênica. O termo eugenia (do grego eu: boa; genus: geração) serviu para denominar um movimento científico – iniciado na Europa, do século XIX – que propunha a implementação de políticas sociais de intervenção sobre a reprodução humana, supondo a existência de raças puras e impuras. Segundo Lilia Schwarcz, os primeiros artigos de apoio a projetos eugênicos no Brasil procuraram mobilizar as atenções em torno da possibilidade de “apuro” ou “regeneração” das “raças” nacionais. Em 1929, realizou-se o I Congresso Brasileiro de Eugenia, onde o então presidente da Academia Brasileira de Medicina, Miguel Couto, defendeu a tese de que a mistura racial levaria à degeneração nacional. O presidente do Congresso, Edgar Roquette-Pinto, diretor do Museu Nacional, contrapôs-se a essa tese médica, defendendo que o problema da eugenia no Brasil não seria uma questão “de raça e sim de higiene”. Ver SCHWARCZ, O espetáculo das raças..., op.cit., p.60-1, 215-6, 234-5 e 268, notas 28-9. Uma questão bastante discutida em fins do século XIX e ao longo das primeiras décadas do século XX, que tem relação com os debates sobre melhoramento da população ou da mão-de-obra é a da imigração. Sobre esse assunto, ver RIBEIRO, Gladys Sabina. “...Jamais pôde existir comércio de brandura e bem-querença entre conquistador e conquistado”: a recriação do preconceito racial e nacional na República Velha e A problemática antilusitana no limiar dos anos 20. In : _____. “Cabras” e “Pés-de-Chumbo: os rolos do tempo, o antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1930). Niterói: ICHF/Dep. de História/UFF, dissertação de mestrado, 1987, respectivamente, vol. 1, p.3571 e vol. 2, p.175-193; e SEYFERTH, Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO e SANTOS (orgs.), op.cit., p.41-58; e, ainda, DIEGUES, Georges. L’identité nationale em question: l’ideologie nationaliste et l’immigration portugaise dans le Brésil des années 20. Niterói: UFF; Paris, France: Université Paris VII – Denis Diderot, trabalho de final de curso (mestrado), 2000. 648 Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, bacharel em letras pelo Colégio Pedro II (Ginásio Nacional), formou-se pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, do Rio (1913). Fez parte do Conselho Nacional de Educação e da Sociedade Felipe d’Oliveira. Foi professor e crítico literário.

haviam se afastado da ação política e social. Criticava, sobretudo, a boêmia literária do pós1889 e o artificialismo que o autor considerava imperante no mundo das letras. 649 Na primeira parte do texto, o autor divide a história brasileira em três períodos: o Colonial, o Imperial e o Republicano. As “raízes da nacionalidade brasileira” estariam localizadas no período colonial. Contudo, este teria sido um “o período luso por excelência de nossa história, em que nossa formação tudo deve, por assim dizer, ao que nos vinha de alémmar”. O período Imperial, iniciado em 1808, teria sido marcado pelo “espírito de continuidade” advindo da presença da Coroa portuguesa no Brasil. No dizer do autor, naquele momento: “os grandes atos e os grandes fatos do período descem ao país, não sobem do país”. Quanto ao período republicano, nascido em 1870, seria caracterizado pelo “artificialismo” resultante de uma história ditada por um “oficialismo prolongado”. 650 Para Athayde, a solução para o “artificialismo” não estaria nem no recurso às “escolas alienígenas”, nem na valorização de temas e idéias indígenas. Ela estaria na “assimilação recíproca”, a partir da qual seria possível “criar uma nacionalidade e não submeter-se a ela”. 651 Também seria representativo o livro A política no Brasil ou o nacionalismo radical, de Álvaro Bomílcar (n.1878), 652 de 1920, prefaciado por Afonso Celso e composto por artigos escritos a partir de 1917. Para Bomílcar: “O Brasil tem uma história honrada, mas pouco interessante; não pela carência de fatos dignos de menção ou de sistematizadores eminentíssimos, mas por falta de um Michelet, capaz de consubstanciá -los numa obra virtual e volitiva, de acordo com os interesses nacionais”.653

De acordo com Lúcia Lippi de Oliveira, Bomílcar defendia que a história do Brasil tivera início quando começara a existir uma solidariedade entre os habitantes capaz de produzir uma “consciência de unidade moral”, algo que a unidade política não fora capaz de realizar. O patriotismo era considerado um “sentimento natural”, fundamentado pelas “tradições”, pela “capacidade da raça” e pela “consciência da própria força”. Contudo, o autor teria afirmado que o Brasil havia perdido essa “consciência nacional” e que,

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ATHAYDE, Tristão de. Política e Letras. In: CARDOSO, Vicente Licínio (org.). À margem da história da república. São Paulo: Ed. Nacional, 1979 (1924), p.47-79. 650 Id. ib., p.48. 651 Id. ib., p.79. 652 Sobre Álvaro Bomílcar, ver p. 66, nota 204. 653 BOMILCAR apud OLIVEIRA, op.cit., p.133. Sobre a referência a Michelet (1798-1874), Lúcia Lippi observa que este historiador francês se atribuía a obrigação de prestar um serviço à pátria, além de destacar que o povo era o maior agente do passado de seu país. Resumidamente, Michelet expressava, segundo a autora, “a crença nas virtudes do povo francês, no valor do Exército e no compromisso com o nacionalismo”. OLIVEIRA, ib., p.133.

conseqüentemente, o desejo de adquirir uma individualidade própria havia se extinguido. As razões desta suposta perda da “consciência nacional” são buscadas na história da colonização portuguesa e no cosmopolitismo. 654 Bomílcar criticava a importação de idéias estrangeiras, principalmente o positivismo, por considerar que este, ao se basear em fórmulas gerais, impossibilitava a observação das condições peculiares a cada sociedade. De modo muito próximo a Bomfim, o autor também se empenhava na crítica daqueles que, segundo ele, resistiam à construção da nacionalidade: os políticos e intelectuais. 655 Lippi de Oliveira afirma que, em Álvaro Bomílcar, o povo é associado ao mestiço, tido como espoliado; ao proletariado de cor, ao pequeno agricultor ou trabalhador rural – mísero e abandonado – representado pela figura do sertanejo. A solução para os problemas brasileiros estaria na transformação e modernização do mundo rural, “cerne da nacionalidade”. 656 A autora observa semelhanças entre o pensamento de Álvaro Bomilcar, Manoel Bomfim e Alberto Torres 657 – autor de O problema nacional brasileiro (1914) e A organização nacional (1914) – sobretudo no que dizia respeito à recusa dos três em considerar a mestiçagem como um problema para a nação. 658 Contudo, Bomfim ter-se-ia distanciado de Bomílcar, por este valorizar o papel da Igreja e das forças armadas na construção da nação; e de Torres, que defendia a idéia de que o progresso do Brasil estaria relacionado ao desenvolvimento da agricultura, propiciado pela modernização do mundo rural. 659 Em suma, novos modelos de identidade nacional foram formulados no Brasil, após a Primeira Guerra. Tais modelos eram expressos por meio da militância de diferentes grupos com propostas nacionalistas. 660 Em torno da comemoração do Centenário, a origem dos

654

Id. ib., p.133-4. Id. ib., p.136. 656 Id. ib., p.138. 657 Alberto Torres (1865-1917) foi Presidente do Estado do Rio de Janeiro, participou da campanha abolicionista e do movimento republicano. De acordo com Dante Moreira Leite, seus escritos não tiveram grande repercussão na época em que foram lançados, sendo retomados somente nos anos trinta. Leite via aproximações entre Torres e Bomfim, sobretudo no que dizia respeito à crítica das teorias racistas. Ver LEITE, Dante Moreira. Prenúncios de libertação. In: _____. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1992. 5a. edição. 1a. ed. de 1954, p.255-258. 658 Lembro que a “Propaganda Nativista”, iniciada em 1919 incluía em seu programa a adoção do princípio de igualdade das raças. Ver ORTIZ, op.cit., p.35 e 37. Ao mesmo tempo, em plenos anos vinte, Oliveira Vianna desenvolvia um pensamento fundamentado nas teorias racistas da virada do século (Populações meridionais do Brasil, 1918; Raça e assimilação, 1922; Evolução do povo brasileiro , 1923). Manoel Bomfim criticou Vianna, o “sociólogo oficial”, devido a essas idéias racistas. Ver BOMFIM, O Brasil na América..., op.cit., p. 193-4 e 1989. 659 OLIVEIRA, op.cit., p.145-158. 660 A militância nacionalista dos anos vinte teve como exemplos a Liga de Defesa Nacional, fundada em 1916; a Liga Nacionalista de São Paulo, de 1917; e a Ação Social Nacionalista (1920). A primeira atuava em prol do 655

problemas nacionais foi buscada nas raízes culturais, destacando-se o elemento português como sinônimo de atrasado, de retrógrado. O tom dominante foi o da crítica à época colonial, o que favorecia discursos antilusitanos, no momento em que o abrasileiramento da República e da história da nação tornava-se um problema central. 661 Neste contexto ocorreu uma releitura da obra de Varnha gen, caracterizada por duas vertentes interpretativas: uma tradicional e, outra, revisionista. De acordo com Arno Wehling, a primeira não propôs rejeitar o paradigma do Visconde de Porto Seguro, apenas aperfeiçoálo. Este teria sido o caso de Oliveira Vianna (1883-1951) 662 – que, mesmo não mencionando Varnhagen, teria seguido algumas de suas idéias – e dos historiadores interessados em analisar o Estado – Rodolfo Garcia (1873-1949), 663 Max Fleiuss (1868-1943), 664 Afonso Taunay (1878-1958) 665 e Hélio Vianna (1908-1972). 666 A segunda vertente promoveu críticas radicais, entre as quais, a de Manoel Bomfim. 667 No apêndice História da Independência, Bomfim interpretou os acontecimentos de 1822 como um “motivo de divisão da Nação Brasileira”. Um evento que teria suplantado serviço militar obrigatório e da construção de uma consciência cívico-patriótica. A segunda era mais preocupada com questões políticas, sobretudo relativas ao processo de votação. A terceira se expressava através da Propaganda Nativista e das revistas Brazílea (1917) e Gil Blás (1919), cuja tônica era a luta contra os portugueses. Cf. OLIVEIRA, op.cit., p.148-158; e RIBEIRO, Gladys Sabina, op.cit., p.249-272. 661 Sobre o antilusitanismo nos anos vinte, ver RIBEIRO, Gladys Sabina, op.cit., p.175-193; e DIEGUES, já citado. 662 Lembro que Francisco José de Oliveira Vianna nasceu em Saquarema, Rio de Janeiro. Formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais (1905) pela Faculdade de Direito do Rio onde, posteriormente, atuou como professor (1916). Foi colaborador assíduo de diversos jornais e revistas (Diário Fluminense, A Imprensa, O Paiz, Revista do Brasil, etc.), além de consultor jurídico do Ministério do Trabalho, tendo contribuído para a elaboração da legislação trabalhista brasileira. Também atuou no Tribunal de Contas da União. Es creveu: Populações meridionais do Brasil (1918), Raça e assimilação (1921), Evolução do povo brasileiro (1923), Instituições políticas brasileiras (1949), etc. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e do IHGB (1924). Sobre o autor, ver ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. Oliveira Vianna – Instituições políticas brasileiras. In: MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil. Um banquete nos trópicos. São Paulo: SENAC, 1999, p.293-313. 2a. ed.; BRANDÃO, Gildo Marçal. Oliveira Vianna – Populações meridionais do Brasil. In : MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil 2. Um banquete nos trópicos. São Paulo: SENAC, 2000, p.299-325; e GOMES, op.cit., p.507-511. 663 Rodolfo Augusto de Amorim Garcia, advogado (Recife), jornalista e professor. Foi diretor do Museu Histórico Nacional (1930) e da Biblioteca Nacional (1932). Fez parte da Academia Brasieira de Letras e do IHGB. Escreveu Ensaio sobre a história política e administrativa do Brasil, 1500-1810 (1956), Ensaio bibliográfico sobre Francisco Adolfo de Varnhagen, Os judeus na história do Brasil, Dicionário de Brasileirismos, etc. 664 Max Fleiuss foi oficial da Diretoria dos Correios (SP) e redator do jornal Província de São Paulo. Colaborou com o Correio Paulistano e dirigiu a revista A Semana. Também foi presidente perpétuo do IHGB. Autor de História administrativa do Brasil (2a. ed. de 1925), O Instituto Histórico através de sua Revista (1938), Elementos de história contemporânea, História da América Latina. 665 Afonso d’Escragnolle Taunay, membro do IHGB, é apontado como tendo sido “o mais prolífico historiador brasileiro”, devido ao caráter exaustivo de algumas de suas obras. Escreveu História geral das bandeiras (19241950), em onze volumes. Antes disso já havia publicado 24 títulos sobre história do Brasil, além de 23 títulos sobre a história de São Paulo. Ao longo de trinta anos publicou artigos no Jornal do Commercio (cerca de sessenta volumes). Sobre esse autor, ver o artigo de COSTA, Wilma Peres. Afonso d’Escragnolle Taunay – História geral das bandeiras paulistas. In: MOTA, (org.). Introdução ao Brasil 2, op.cit, p.97-121. 666 Hélio Vianna escreveu D. Pedro I e D. Pedro II – acréscimos as suas biografias (1966) e de História das fronteiras do Brasil [1948], Contribuição à história da imprensa brasileira, 1812-1869 (1945), História do Brasil (s/d), entre outros. 667 WEHLING, op.cit., p.195-219.

aqueles que seriam os “verdadeiros apóstolos da emancipação do país”: os revolucionários de 1817 (Pernambuco) e de 1824 (Confederação do Equador). A Independência de 1822 teria sido uma “revolução separatista” que manteve no poder a “mesma gente”, dando continuidade a um governo que apenas mudara de dístico, uma “simples substituição de placa”. 668 Devo observar que os acontecimentos não constituem o objeto principal de O Brasil na história. Como diz o autor, não se trata de uma “sistematização histórica” dos fatos. Estes são utilizados como “documentação, explicação, comentário”. Assim, um mesmo acontecimento, uma mesma conjuntura pode ser utilizada várias vezes, como exemplo do ponto que o autor se propõe a discutir. Os acontecimentos e personagens são utilizados, sobretudo, no esforço de fornecer exemplos de solidariedade nacional e do tipo de interpretação que foi produzido sobre tais acontecimentos pela historiografia. 669 Ao referir-se aos acontecimentos relativos a Independência de 1822 – classificados como “tortuosos” –, o autor chama a atenção para determinados aspectos do jogo político: os “segredos”, as “tramas”, as “conjuras”, os “sigilos”, a “conspiração” etc., construindo uma visão da emancipação como tendo sido guiada por interesses escusos e privados, destituídos de valor nacional, articulados nos bastidores do poder, e escondidos do povo brasileiro. É no âmbito da “casa”, dos “salões”, dos “aposentos”, nas “casernas”, no “guarda-roupa” – todos esses espaço vistos como extensões dos gabinetes oficiais – que se tramara a emancipação. Portanto, a análise de Manoel Bomfim, que compreende a Independência como uma trama urdida nos bastidores, elege como principais atores do processo aqueles que participaram diretamente dessa trama, freqüentando tais bastidores: os políticos, com destaque para o Conde dos Arcos, D. Pedro, Gonçalves Ledo, José Clemente e José Bonifácio, sendo que, a Independência teria sido, sobretudo, obra deste último. Para configurar a existência de um “tom pessoal de política”, o autor refere-se a tais atores políticos como “criaturas a confundir o Estado com os seus interesses pessoais, desamparadas de idéias, alheias de princípios”. 670 O movimento de Independência é dividido em três fases: a que se fecha com o “despejo” de D. João VI; a que vai até o Fico; e a que se estende até Sete de Setembro. Em todas essas fases são destacados “conflitos de interesses” entre os grupos que disputam o poder e entre tais grupos – que, repito, não representariam interesses públicos, mas privados –

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BOMFIM, Manuel. História da Independência. In: _____. O Brasil na história..., op.cit., p.I. Sobre o uso dos acontecimentos que Bomfim propõe, ver orientações explícitas na p.265 de O Brasil na história. 670 Id. ib., p. XVI. Em A América Latina, Bomfim apresenta um quadro dos diversos grupos que participaram do processo de emancipação. O autor chama a atenção pela nuança das classificações que utiliza, permitindo identificar os radicais, os adiantados, os liberais, os moderados, os conservadores, os reacionários dissimulados, os reacionários francos e os irredutíveis. Ver BOMFIM, A América Latina..., op.cit., p.221. 669

e aqueles que seriam os legítimos brasileiros: defensores da liberdade, da democracia e da república. Analisando esses “conflitos de interesse”, o autor chama a atenção para a existência de tradições nacionais, cuja evolução rumo à república teria sido interrompida pela monarquia. Existiria uma “tradição de independência” no Brasil, marcada por ideais republicanos, liberais e nacionalistas. Apesar disso, os eventos analisados são vistos como parte de um “movimento revolucionário” – que não pode ser resumido a uma determinada data – ainda que não tenha passado de “uma transmissão de domínio”, pois que “a política do momento era absolutamente destituída de valor nacional”. No final das contas, o Sete de Setembro teria tido um significado realmente separatista, representando uma “efetiva ruptura do cordão umbilical”, sendo a “conseqüência natural, inevitável” da patente realidade de um “Estado Brasileiro”, independentemente ou apesar da predominância de interesses políticos antinacionais. 671 Este Estado Brasileiro independente de qualquer Estado-Metrópole existiria desde 1808. Contudo, o autor se esforça por estabelecer uma distinção entre: “Independência do Brasil em face da antiga metrópole, que apenas lhe ficara unida; separação de dois Estados portugueses ainda unidos; e soberania da nova nacionalidade”. 672 É preciso, então, tentar destrinchar os significados atribuídos à independência, separação e soberania, assim como ao termo revolução, que é utilizado de, pelo menos, duas formas distintas em O Brasil na história. Comecemos por este último termo. Manoel Bomfim apresentara, ao longo do livro, um outro conceito de revolução, distinto daquele que utilizou no apêndice História da Independência, onde figura a idéia de um “movimento revolucionário”673 que parece equivaler à noção de um processo marcado por mudanças de ordem política, mas que não escapam da ordem geral, monárquica, ou seja, um processo que supõe mudanças, porém, sem alteração radical. No entanto, no capítulo Transmissão de domínio, o autor realizara uma interpretação sobre o movimento de Independência, afirmando claramente que este não teria correspondido a uma revolução, uma vez que, “não pode haver realidade revolucionária sem a substituição da classe dirigente, sem a inteligência de um programa a defini- la, e o valor de uma vontade a conduzi- la”. 674 O termo independência, por sua vez, remete a idéia de autonomia (frente á Metrópole portuguesa), mas não parece se opor, necessariamente, a idéia de união. Trata-se, portanto, de uma autonomia enquanto algo distinto, mas que não representaria a perda total de vínculos. 671

Id. ib., p.X e XVI-XIX. Id., O Brasil na história..., op.cit., p.477-78. 673 Id., História da Independência, in op.cit., p.XIX. 674 Id., O Brasil na história..., op.cit., p.510. 672

Ela teria sido possível a partir da transferência da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808, acontecimento que, segundo Bomfim, marcara o fim do período colonial. 675 A idéia de separação aparece associada à percepção de Estados desvinculados (o português e o brasileiro). Teria sido possível somente a partir de 1822. Quanto à soberania,676 tratar-se-ia de um “objeto de longa e penosa reivindicação”, contrariado pela “nominal independência” de Sete de Setembro. 677 Assim, o movimento de emancipação a partir de 1822 é compreendido, fundamentalmente, como uma ruptura no longo processo de luta e reivindicação de soberania nacional. Ainda que continuação (da dominação portuguesa) ele pode ser considerado revolucionário, somente neste sentido: como um inevitável “golpe de súbita e imprevista desgraça”, que manteve no poder os mesmos personagens, invertendo o curso evolutivo rumo à república. Uma revolução compreendida no sentido de contraevolução capaz de inverter o que o autor considerava como sentido natural, mas que não equivalia a uma revolução nos termos de uma substituição radical das classes dirigentes. Segundo Bomfim, o Brasil antecedera as repúblicas latino-americanas em movimentos de independência, além de sempre aspirar a um “governo republicano-democrático”. Este teria sido o “sentido natural de evolução da nação”, até que uma revolução (ou contraevolução) obstruísse seu desenvolvimento. 678 Ao analisar a historiografia sobre a Independência, Gladys Sabina Ribeiro observa que a perspectiva da evolução está presente nos estudos de John Armitage, Francisco Adolfo de Varnhagen, Manuel de Oliveira Lima e Tobias do Rego Monteiro (1866-1952). Compreendendo a história como um processo linear rumo ao progresso e à civilização, a Independência foi interpretada, não como revolução ou ruptura, mas como continuação da “tarefa civilizadora iniciada pela metrópole”. José Bonifácio, José Clemente Pereira, Gonçalves Ledo e D. Pedro foram considerados, por esta historiografia, como sendo predestinados a conduzirem o Brasil à separação, orientada pela necessidade de preservação da Monarquia, símbolo de unidade e de centralização. 679 Outro aspecto que chama a atenção da autora é a pouca ou nenhuma importância atribuída a participação popular no episódio de independência. O povo aparece freqüentemente como “platéia”. Às vezes “bárbaro”, “indolente” ou “apático”, como em John

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Id. ib., p.477. A teoria da soberania afirma a existência de um poder situado acima de outros poderes, e que é capaz de coordenar e unificar interesses diversos, constituindo a comunidade política. Ver OLIVEIRA, op.cit., p.88. 677 BOMFIM, op.cit., p.478. 678 Id. ib., p. 245. 679 RIBEIRO, Gladys Sabina. Os portugueses na formação da nação brasileira – o debate historiográfico desde 1836. Ler História. Lisboa: Associação de Actividades Científicas, n. 38, 2000, p.111-161; e GUIMARÃES, já citado. 676

Armitage; “boquiaberto”, para Tobias Monteiro; “bestificado” e “manipulado”, como para Oliveira Lima. Povo era sinônimo de “ralé ignorante”, “sem cultura”, “sem consciência”. 680 Ao analisar o caso de Varnhagen – que mais diretamente interessa a este estudo – Ribeiro destaca, além da ausência do povo, a ausência de conflitos entre Colônia e Metrópole ou, entre portugueses e brasileiros. A identidade nacional aparece como herança da colonização portuguesa, sendo a emancipação fruto da discordância em relação às medidas recolonizadoras das Cortes portuguesas. A identidade do Brasil teria sido construída em oposição às repúblicas latino-americanas, sendo que o português não é apresentado como o outro em relação ao qual a nacionalidade seria definida. Esta última aparece formada desde sempre, não havendo dilemas relativos a “ser brasileiro” ou “ser português”, a não ser quando restrito a determinados personagens que, de acordo com a conjuntura política, podiam ser considerados “maus brasileiros”. Em suma, valorizando as instituições portuguesas, o Visconde de Porto Seguro buscou reconstituir um passado onde não figuravam antagonismos entre Colônia e Metrópole. 681 De modo semelhante, Manoel Bomfim também procurou configurar a emergência de uma identidade nacional no contexto colonial. Porém, essa identidade foi pensada como fruto de conflitos de interesses, a princípio entre colo nizadores e invasores estrangeiros e, em seguida, entre brasileiros e portugueses. Uma tradição nacional distinta da tradição portuguesa, ainda que herdeira dela, é delineada pelo autor ao longo de seus livros sobre o Brasil. No caso específico de O Brasil na história, o conflito brasileiros versus portugueses é visto a partir do prisma da historiografia – que por vezes teria encoberto tal conflito – e por meio de uma versão da história do país que procura destacar aspectos considerados significativos da degeneração ou degradação de Portugal enquanto governante do Brasil. Essa degeneração ou degradação teria sido iniciada através da prática comercial. Do “mercantilismo heróico” ao parasitismo – indício de total dependência em relação à Colônia – Portugal teria transposto vícios ao Brasil. O português, associado às atividades políticas e comerciais, é visto como um “mercador”, um “mascate” atrelado à lógica da corrupção, do roubo, da injustiça, da extorsão, da exploração e da opressão. Mas, Bomfim lembra que, “para degenerar é preciso ter sido um grande valor social e humano”. Não associa a idéia de degeneração ao pressuposto de que existiriam raças degradadas ou povos degenerados. Observa que “vida rudimentar” não pode ser confundida com “inferiorização degenerativa”. A primeira corresponderia, simplesmente, a uma etapa da evolução rumo ao progresso. Progresso que, no entanto, não serve, necessariamente, como 680 681

Id., ib., p.115-118. Id. ib., p.123-127.

indicativo de ganhos em termos morais. 682 Quanto à “inferiorização degenerativa”, remete a algum tipo de perda. Observemos com mais vagar as noções de deturpação, degradação e degeneração, freqüentemente utilizadas pelo autor. São palavras cujo significado se aproxima, contribuindo para a constituição de um quadro interpretativo onde está explícito que o objeto a ser observado – no caso, o Brasil – teria sofrido algum tipo de mutação negativa. De acordo com o Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa,683 o termo deturpação indica um “ato ou efeito de deturpar; desfiguração”. O termo foi aplicado por Bomfim ao referir-se à historiografia brasileira, que ele considerou como responsável pela apresentação da nação perante seus habitantes e diante do estrangeiro. Contudo, segundo o autor, essa historiografia não teria primado pelo patriotismo. Este equivaleria a um “egoísmo socializante”, um sentimento capaz de articular “motivos egoístas” a interesses sociais. Um sentimento que eliminaria o que não pudesse englobar, mas que, ao mesmo tempo, favoreceria forçosamente a unificação. Segundo Bomfim, o patriotismo “funde disparates” e “aproxima longínquos”, desde que as repetidas necessidades tenham produzido interesses comuns. 684 Quanto ao nacionalismo, equivaleria a uma “profissão de fé”, nutrida pelo que o autor chama de “sensibilidade de orgulho”. O nacionalismo seria – ou deveria ser – capaz de alimentar a consciência de um povo a respeito de suas tradições, estimulando a solidariedade e a defesa de interesses gerais. 685 O nacionalismo aparece como necessário para a afirmação de uma tradição, capaz de lhe garantir um lugar entre outras tradições. Como exemplos de pensadores que deveriam ser inspiradores para os historiadores brasileiros, o autor cita, entre outros: Blasco Ibañez (1867-1927); o “teorista do comunismo”, Charles Rappoport e o líder soviético Lenin (1870-1924). São apresentados como “revolucionários generosos” que seriam representativos, cada qual, de uma tradição e de uma nacionalidade. São exemplos de que “todo verdadeiro apóstolo social fala com a voz de uma pátria, e é um nacionalista”. 686

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De acordo com Bomfim, a vida moral quase nada ganhou com o progresso do Ocidente. O autor se refere à perda da generosidade entre os grupos e entre os indivíduos. Menciona a infelicidade do homem contemporâneo, lembrando que “os grupos mais civilizados do mundo, empregaram todos os seus esforços em destruírem-se, numa cultura intensiva da guerra!...”. BOMFIM, op.cit., p.282. 683 FREIRE, Laudelino. Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954 [1925]. 684 BOMFIM, O Brasil na história..., op.cit., p.170. 685 Id. ib., p.172-73. 686 Id. ib., p.174-75. Blasco Ibáñez, romancista, jornalista, editor e político republicano espanhol. Autor de Los cuatro jinetes del apocalipsis e La Catedral, livro que é citado por Bomfim. Charles Rappoport, escritor socialista francês, autor de La question sociale et la morale (1894), La philosophie de la histoire comme science de l’evolution (1903), Jean Jaurès: l’homme, le peuseur, le socialista (1913) e La doctrine et l’histoire (1927), que é citado por Bomfim. O livro de Lenin citado é O caminho da revolução (1924).

A referência a pensadores socialistas indica o ecletismo de Manoel Bomfim que, no entanto, não pode ser tomado como algo absolutamente excepcional. Analisando a difusão das idéias marxistas entre os socialistas brasileiros do início do século XX, Cláudio Batalha observou que elas eram construídas em meio a uma espécie de “ideologia socialista eclética”, que permitia articular o pensamento de Marx a pensadores dos mais diversos. 687 A opção aqui é considerar a existência de uma articulação eclética de idéias, relacionada ao que Lilia Schwarcz identificou como a “lógica peculiar” das leituras convenientes em um dado contexto. 688 Ao referir-se a pensadores ligados a diferentes correntes, Manoel Bomfim – como outros intelectuais de seu tempo – construiu interpretações que permitiam pensar o Brasil de modo integrado ao que era entendido como civilização ocidental. Assim, a associação entre darwinismo social, positivismo, spencerismo, materialismo dialético, etc., relacionava-se à busca de integração ao mundo moderno. 689 Contraditoriamente, o autor acreditava que, a história do Brasil havia sido deturpada devido à falta de patriotismo dos historiadores brasileiros, agravada pela utilização de idéias importadas. Essa interpretação de Bomfim sobre a historiografia produzida até então foi analisada no capítulo anterior. Interessa, agora, analisar o significado do uso dos termos degeneração e degradação. Sobre este último termo, diz o mesmo Dicionário, que corresponde ao “ato ou efeito de degradar; destituição infamante de um grau, de uma dignidade, de um cargo, etc.; aviltamento, baixeza; depravação, corrupção gradual; deterioração”. Indica, portanto, algum tipo de desgaste ou estrago, que implica num rebaixamento ou perda de posição. Semelhante é o termo degeneração, que indica um “ato ou efeito de degenerar; passagem de uma forma natural de estrutura orgânica a outra inferior; volta a um estado inferior ou mais simples de organização na evolução dum grupo de animais ou plantas; evolução regressiva”. A aplicação dos termos degeneração e degradação está relacionada a um sistema de referência da biologia. Em O Brasil na história, eles aparecem freqüentemente ligados a palavras como infecção ou contaminação, muito comuns naquela área. Especificando ainda mais, enquanto a idéia de deturpação é utilizada pelo autor na análise da escrita da história, as idéias de degeneração e degradação são aplicadas na interpretação do mundo das atividades políticas (compreendidas como atividades de administração dos negócios públicos) e econômicas.

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BATALHA, Cláudio M. A difusão do marxismo e os socialistas brasileiros na virada do século XIX. In: ANDREUCCI, F. et alii (orgs.). História do marxismo. O marxismo no tempo de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, vol. II, p.14. 688 SCHWARCZ, op.cit., p.28 e 34. 689 OLIVEIRA, op.cit., p.81.

Analisar o modo como Bomfim lidava com a noção de progresso 690 pode ajudar a compreender melhor o uso dos termos degradação, deturpação e degeneração, visto que, seguindo os argumentos do autor, somente aquilo que progride pode degenerar. Ricardo Benzaquen de Araújo observou a existência de uma estreita conexão entre o predomínio de uma noção iluminista de tempo linear, progressivo e a desvalorização da memória, da tradição e da concepção clássica de história. 691 Mas, em Manoel Bomfim, progresso e tradição 692 aparecem conciliados. A associação entre tradição e progresso encontra-se esboçada – não sem oposição – ao longo do período que vai da década de 1870, até a terceira década do século XX, quando circularam inúmeras idéias sobre o moderno e a modernidade no Brasil. A década de vinte do século passado – período em que Manoel Bomfim escreveu O Brasil na história – tem sido considerada como uma época privilegiada para a observação de tais idéias, ainda que haja um crescente interesse em investigar perspectivas anteriores, assim como em problematizar o uso de categorias como “pré” modernismo. 693 A opção deste estudo é considerar que os anos vinte constituem um momento do processo mais amplo instaurado pela dinâmica social nas últimas décadas do século XIX, em meio ao qual é possível identificar concordâncias e divergências quanto ao que possa ser moderno, assim como ao que possa significar progresso e tradição.694 Quanto ao tema que interessa mais diretamente a esta investigação – a associação entre tradição e progresso por Manoel Bomfim, no âmbito das discussões sobre nacionalismo e modernidade durante os anos vinte – importa destacar que, não se trata de uma incongruência, uma vez que tal associação depende, obviamente, do significado atribuído a cada um dos termos. Foi visto antes que Bomfim opunha interesses gerais da espécie humana aos interesses particulares ou individuais. Os primeiros poderiam ser multiplicados através das relações 690

Sobre a noção de progresso, ver LE GOFF, Jacques. Progresso/Reação. In: História e Memória. Campinas, SP: Unicamp, 1990, p.233-281. 691 ARAÚJO, já citado. 692 O conceito de tradição, como observou Angela de Castro Gomes, serve como alavanca para a organização e a criação no campo intelectual. Existiria “uma relação necessária entre trabalho intelectual e tradição, sendo que ela se reforçaria justamente ao modificar-se através do tempo; a o ampliar a linhagem dos que dela se alimentam por adesão ou por rejeição”. O aspecto importante a ser considerado é que as tradições possuem, além de uma dimensão simbólica, uma dimensão organizacional, uma vez que as tradições se “institucionalizam” em uma variedade de lugares. Ver GOMES, Essa gente do Rio..., op.cit., p.26. 693 Ver, GOMES, ib., p.12 e VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.31. 694 Jacques Le Goff observa que os termos antigo e moderno – assim como os conceitos a eles correspondentes – nem sempre se opuseram um ao outro. Assim, antigo pode ser substituído por “tradicional” e moderno por “recente” ou “novo”, sendo que cada um pode ser acompanhado de conotações laudatórias, pejorativas ou neutras. Ver LE GOFF, Antigo/Moderno, in op.cit., p.167-199. Outro artigo, o de Eduardo Jardim de Moraes, ajuda a pensar possibilidades de associação entre idéias de modernidade e tradição. O autor analisa o modernismo paulista, identificando em seu projeto modernista o compromisso com a tradição, valorizada enquanto algo que deve ser nacional e popular. Ver MORAES, Eduardo Jardim de. Modernismo revisitado. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, 1(2):220-238, 1988.

sociais que, ao favorecerem sentimentos socializadores, contribuiriam para o predomínio de necessidades coletivas. Assim teria sido assegurado o progresso humano: “pelo apuro e reforço constante dos sentimentos socializadores”. 695 No entanto, a existência de tais interesses gerais – assim como dos “sentimentos socializadores” capazes de garantir o progresso – dependia de um fator essencial: as “energias” características do agrupamento humano. Tais energias corresponderiam às tradições que, embora fossem vistas como “dons naturais” hereditários, podiam e precisavam ser continuamente apuradas. Essas energias/tradições seriam, em parte, responsáveis por aquilo que o agrupamento teria de particular, assim como, por suas condições de progresso. Este último dependeria, portanto, da consciência da particularidade, ou seja, daquilo que distinguiria um grupo de outros. Daí ser imprescindível, para o autor, a consciência das tradições. De acordo com Bomfim, “os homens progridem do instinto à consciência”, o que significa que, progredimos na medida em que nos tornamos conscientes de nós mesmos. Essa consciênc ia seria desenvolvida através da educação e da busca constante de todos os fenômenos através dos quais a tradição se manifestasse, sendo mobilizada a partir das necessidades coletivas, particulares a cada grupo. O papel da consciência seria, pois, o de integrar os indivíduos socialmente, permitindo- lhes afirmar traços em comum (as tradições) como fundamento da particularidade do grupo ao qual pertencem. Observo que o autor apresenta a sociedade humana como um todo composto por sociedades parciais: as nações. Estas, por sua vez, englobariam agrupamentos menores, ou “de valor mais restrito”. A humanidade estaria reduzida ao desenvolvimento desses agrupamentos, onde se observaria a existência da tradição. Esta se desenvolveria, podendo tanto se apurar quanto degenerar até desaparecer, o que, segundo ele, nada mais representaria que a sua suplantação, fusão, eliminação por outras – nacionais, políticas, religiosas. 696 Considerando que as tradições existiam concretamente na história nacional e deviam ser reconhecidas e defendidas como sendo um patrimônio coletivo, o autor afirmava que a história seria o campo onde se travariam os embates pela tradição entre povos, instituições, classes e doutrinas. Tais embates constituiriam a “substância da história”, podendo ser lentos ou súbitos, até que prevalecesse a tradição que representasse um maior progresso ou, pelo menos, uma maior virtualidade de progresso. 697 A história “seria um luxo perdido, inútil dispêndio de inteligência” se não houvesse a tradição – capaz de estimular e orientar a nação. À história caberia, então, registrar e depurar a 695

BOMFIM, op.cit., p.10-1. Id. ib., p.19. 697 Id. ib., p.19-20. 696

tradição. Registro que deveria contribuir para que esta se tornasse consciente, possibilitando a compreensão do presente e a confiança no futuro, com o discernimento da possibilidade de progresso. 698 A função da história seria, portanto, dupla: 1) registrar e sistematizar as tradições enquanto um processo dinâmico; 2) orientar o progresso social – à medida que resgata ou registra as tradições – demonstrando o mérito e a capacidade de realização da nação. Observo uma “concepção cinemática da tradição”, compreendida enquanto uma “marcha orientada” da nação. Através da tradição as possibilidades de harmonia entre indivíduo e sociedade poderiam ser definidas, garantindo a continuidade do grupo social. A significação geral da tradição seria, pois, a de uma “trama viva onde se tecem as consciências, para todos os efeitos de realização humana – moral, política, religião, arte, produção econômica...”. 699 Todo progresso mental tinha de fazer-se como aperfeiçoamento dos valores definidos pela tradição. O futuro do passado dependia da busca de todos os fatos em que ela se tornasse visível. Na visão de Bomfim, o passado poderia e deveria ser revivido no seu significado, com o objetivo de superar os problemas sociais do presente e almejar um futuro condizente com um passado que fosse considerado digno de valor. 700 Em A América Latina, há mais algumas pistas para pensar a noção de progresso. Observo que esta é afirmada com base em dois pressupostos contraditórios, mas complementares: 1. o de que existem diferenças entre graus de desenvolvimento ou evolução (desigualdades sociais ou de aptidão); 2. o de que os homens são essencialmente iguais. O primeiro pressuposto conduz a um distanciamento entre os homens e as nações; o segundo, a uma aproximação. 701 Para Bomfim, a importância desta noção parece ser a de que ela induz à aceitação das diferenças ao mesmo tempo em que estimula a busca da igualdade. A meta do progresso deveria ser, justamente, consolidar a igualdade de direitos entre os homens e nações. Em O Brasil na História, chama atenção a aproximação das idéias de Bomfim com as de Condorcet (1743-1794). 702 Em citação rápida, ele menciona a hierarquização da humanidade elaborada pelo pensador francês, destacando que esta se apoiava na percepção de que o progresso representaria a “conquista da igualdade entre os homens [e da] justiça entre os povos”. 703

698

Id. ib., p.14-5 e 25. Id. ib., p.18-9. 700 Id. ib., p.25-6. 701 Id., A América Latina..., op.cit., p.23. 702 Marie Jean Nicolas de Caritat, Marquês de Condorcet, filósofo, matemático e enciclopedista, autor de Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano, escrito em 1793 e publicado em 1795. 703 BOMFIM, O Brasil na História..., op.cit., p.23. 699

Segundo John Bury, Condorcet tomava o progresso do saber como chave para o progresso da humanidade. O progresso intelectual era associado à liberdade, à virtude e ao respeito dos direitos naturais, destacando o papel da ciência para a solução dos problemas sociais. Embora estas idéias fossem comuns ao pensamento ilustrado do século XVIII, Bury destaca em Condorcet um pequeno ponto que o distinguiria de outros pensadores de seu tempo: ele não compartilhava da idéia de que a história seria um “compendio inútil de locura y crimen que convenia oscurecer u olvidar”. Pelo contrário, defendia que a chave para o desenvolvimento humano seria, justamente, a compreensão da história. 704 Em suma, duas vertentes parecem se impor no pensamento de Manoel Bomfim: em primeiro lugar, todo progresso social e político se faria no influxo de uma tradição, na definição daquilo que a constituía; em segundo, no momento atual da civilização, o influxo da tradição deveria ser nítido e intensamente consciente. Portanto, o progresso de uma nação só poderia ser possível mediante a expansão e apuro da tradição, sendo que, a história poderia ser traduzid a pela consciência (individual, coletiva, nacional) das tradições. 705 Contudo, o autor acreditava que, na realidade objetiva, não havia progresso ou atraso, pois que não havia melhor ou pior. O que havia era evoluções (adaptações), que a partir de um esforço (um trabalho) de consciência, poderiam ser consideradas como um progresso ou como um atraso. Portanto, a consciência é que seria responsável pela orientação da ação do indivíduo ou do grupo social na direção daquilo que fosse considerado como melhor. 706 É interessante observar que a idéia de evolução, em Manoel Bomfim, parece ser orientada não pela idéia de ordem, mas de desordem. De acordo com o autor, existiriam dois tipos de desordens: a “desordem” propriamente dita (equivalente à desordem de transformação) e a “desordem de conservação”. A primeira equivaleria a um tipo de ordem não estática, adaptável às necessidades de transformação social, ou seja, um tipo de ordem capaz de suportar a desordem que conduzirá à outra ordem, sucessiva e dinâmica. A desordem a temer e a evitar, por ser contrária ao progresso, seria a “desordem de conservação”. Dizia Bomfim que,

704

BURY, John. La Idea del progreso. Madrid: Alianza Editorial, 1971 [1920], p.193. O progresso é observado por Bomfim em correspondência com o desenvolvimento sucessivo de cinco estágios da consciência humana. São eles: 1) a simples representação ou notação de impressões (quando a consciência ainda não é capaz de reconhecer-se a si mesma); 2) a reflexão dispersa sobre as atividades humanas (momento em que o homem examina seus conhecimentos e discute suas próprias decisões); 3) a observação da atividade psíquica do outro, para cotejo do que o indivíduo conhece sobre si mesmo; 4) a apreciação de si mesmo de modo coerente (surgimento da noção do próprio Eu como unidade formal); 5) a consciência intensa, capaz de se auto-analisar como continuidade, ao mesmo tempo em que é capaz de reconhecer as mutações possíveis através dessa mesma continuidade. BOMFIM, Manoel. O Brasil na História..., op.cit., p.24. 706 Id. ib., p.24. 705

“Em cada grupo social, a marcha de evolução é também uma corrente, cujo pendor se faz pela diferença entre o que existe e as aspirações dos que sabem imaginar e podem conceber novas formas de harmonia humana. Quaisquer que sejam as vagas da queda, tudo será ordem de evolução, enquanto não pretenderem suster a mesma corrente. Então, no bojo das águas represas, haverá o surdo minar, que finalmente rebentará. Enquanto presas, alagadas, mortas, as águas servem, apenas, ao fermentar da podridão: na sociedade, é a estagnação em que se diluem esperanças, morrem entusiasmos...”.707

A sociedade progrediria em diferenciações (“desordens”) constantes, sendo que, cada diferenciação pressuporia uma crise: um momento de desordem ou mesmo de revolução. Uma das características dessa “desordem de transformação” seria a substituição de classes. 708 A idéia de ordem, portanto, não está ausente. Porém ela é compreendida como algo que deve ser transitório, rumo a uma “conquista indefinida”, sendo que “as novas formas, como as novas verdades, vêm logicamente do que existe”: a tradição. Repetindo: longe de remeter a algo estático, que se transmite de geração em geração, a tradição é vista como algo em permanente estado de transformação. No dizer de Bomfim, trata-se de uma “identidade em função de desenvolvimento”. Algo que se conserva quanto mais se apura e transforma. 709 É possível identificar, em O Brasil na história, duas idéias sobre a ordem: uma concepção de ordem ideal, que a vincula à idéia de liberdade e, outra, que associa a ordem à estagnação. De modo geral, a ordem é vista como uma “condição externa” necessária à construção da sociedade. A liberdade consistiria em uma “condição interna”, determinante das decisões que concretizam a atuação dos indivíduos em cada conjuntura. Para o autor, “ordem, estabilidade, segurança, unidade, direitos e deveres são, apenas, os meios de, pela liberdade, alcançar a justiça. E como são meios, têm que ser contrariados e afastados, quanto for indispensável para o fim a que se aplicam”. 710 A ordem ideal seria, portanto, aquela que tem a liberdade como condição. Liberdade compreendida como “direito essencial da natureza humana” e não como um bem, passível de ser medido como propriedade. O que Bomfim parece combater é, portanto, a ordem como estagnação, como conservação. É nítida a crítica ao conservadorismo, desde seu primeiro livro, A América Latina. No início do século XX, ele afirmava que, das qualidades transmitidas às sociedades latino-americanas por seus colonizadores, a mais interessante – “por ser a mais funesta” – seria o “conservantismo”. Um “conservantismo essencial, mais afetivo que intelectual”, presente, sobretudo, nas classes dirigentes. Em tese, tais classes aceitariam idéias gerais de

707

Id. ib., p.239. Id. ib., p.241-42. 709 Id. ib., p.242. 710 Id. ib., p.243-44. 708

progresso, porém, seriam incapazes de relacionar tais idéias às necessidades próprias de cada época e às circunstâncias específicas de cada país. 711 Inspirado pelas idéias de Gabriel Tarde (1843-1904) – para quem “só o costume é conservador; a vontade é inovadora”712 – Bomfim apresentou seus argumentos contra o conservadorismo, em defesa das transformações, cujo motor poderia ser encontrado no exercício da vontade. Esta não seria uma faculdade primitiva, uma vez que ela se desenvolveria ao ser exercitada e se fortaleceria pela educação. O próprio exercício da liberdade passaria pela expressão e realização da vontade, cujos pressupostos seriam – além da liberdade de querer – a existência de alternativas para escolher e o conhecimento para julgar e deliberar. O autor caracteriza a situação de dominação/exploração (exemplificada pela escravidão e pela opressão das “classes inferiores”) pela ausência da dupla liberdade/vontade. Ainda que o escravo/oprimido apresentasse vontades, lhe faltariam os meios para realizá- las. Meios dependentes, sobretudo, da educação. 713 Em O Brasil na história, Gabriel Tarde é novamente citado, afirmando-se que “se chegássemos à harmonia definitiva, com perfeito equilíbrio, isto seria a morte...”. Contudo, tal opinião não deve levar a crer que Bomfim promovia a subversão, mas que julgava necessário explicitar “os perigos a evitar, numa política sábia e eficaz”. 714 A estabilidade é tida, portanto, como sinônimo de decadência. 715 Desta percepção, pode-se apreender que a mudança histórica, contínua e inevitável, seria propiciada pela perda

711

Id., A América Latina..., op.cit., p.159-168. TARDE apud BOMFIM, ib., p.309. 713 BOMFIM, ib., p.309-10. 714 O autor também cita o historiador alemão Theodor Mommsen (1817-1903), para quem “a estabilidade é sinal, não de prosperidade, mas de começo de moléstia, percussora de revolução...”. Bomfim recorre, algumas vezes, ao longo de seus livros, a exemplos da história antiga. Em O Brasil na história, tais exemplos são extraídos do livro de Momms en (História Romana, 1854-56), de A. Jardé (La formation du peuple grec, s/d), A. Merlin (L’aventin dans l’antiguedé, s/d), etc. O autor compara os casos romano e grego, que, segundo ele, eram freqüentemente vistos como exemplos de ordem e desordem, respectivamente, de onde se concluía que os gregos não haviam tido maior valor político, enquanto os romanos teriam construído um grande império. O autor discorda desta interpretação, alegando que foi, justamente, a desordem política que permitiu ao pensamento grego diferenciar-se de outros povos que lhe eram contemporâneos. Roma também não seria um exemplo de ordem política. A decadência de ambas as civilizações seria decorrente da estabilização. Ver BOMFIM, O Brasil na história..., op.cit., p.237-41. 715 A idéia de decadência é analisada por Jacques Le Goff, para quem este é “um dos conceitos mais confusos aplicados ao domínio da história”. Trata-se de um conceito que, segundo ele, “nem sempre ocupa o mesmo lugar, nem tem o mesmo significado no interior de um sistema e nem sempre se opõe às mesmas palavras (e idéias correspondentes)”. Por exemplo, na Antiguidade, Le Goff observa uma idéia difusa de degenerescência do mundo, que se exprime em três direções principais. A primeira direção refere -se à deterioração da condição humana, capaz de alimentar um “mito da Idade de Ouro”, a partir da qual, supõe-se um declínio ou envelhecimento da humanidade. A segunda passa pela tendência de privilegiar o passado em detrimento do presente, e os antigos em oposição aos modernos. A idéia aparece ligada à evolução dos costumes e implica na deterioração mais ou menos constante dos períodos históricos. A terceira direção é a da filosofia política, que procura aplicar a idéia de decadência na interpretação da sucessão dos regimes políticos. Na Idade Média, resumidamente, o tema da decadência – essencialmente religioso – teria servido para esclarecer o conceito de “marcha da civilização”, contribuindo numa reflexão sobre o envelhecimento do mundo e alimentado idéias de renovação. No Renascimento o conceito ter-se-ia banalizado, perdendo o significado próprio e passando a ser 712

do equilíbrio, equivalente a uma crise, que poderia ser benéfica ou maléfica. 716 Diante disso, Bomfim parece querer equilibrar a balança com a representação de um povo tranqüilo e ordeiro. O autor refere-se à índole pacífica, tranqüila e generosa do povo. Com exceção das “carnificinas covardes” promovidas pela Casa dos Braganças, a história política do Brasil não teria conhecido violências. Ou quase. Dois episódios são lembrados: a guerra do Paraguai e o massacre de Canudos. Ambos tidos como exemplos da crueldade das classes dirigentes. Quanto ao povo, é representado como aquele que: “Apesar de valente, prefere suportar péssimos governantes, a fazer a guerra civil; o Brasileiro é uma alma de bondade, mas o Brasil é um dos países onde menos se respeita a vida humana (...) apesar de tudo isto, em calma de espírito, o povo brasileiro é sempre – cordialidade, compaixão, generosidade sentida e singela”.717

Entre as características que o autor pretende acentuar referentes à nação brasileira, ao lado do conservadorismo dos dirigentes, a tranqüilidade e a bondade do povo são destacadas. Para apoiar sua argumentação, o autor recorre a várias opiniões, entre elas, a de Henry Koster (1793-1890),718 que menciona “...a tranqüilidade e a bondade natural dos povos do Brasil”. Também cita John Armitage (1806-1856),719 para quem “...em geral são os brasileiros gentis, hospitaleiros, bondosos...”. 720 A categoria povo aparece indiferenc iada de brasileiro – ou seja, corresponde a uma nacionalidade – enquanto elite (diga-se, elite política) aparece relacionada a português ou a pró-Portugal, o que equivale a interesses externos ao Brasil. Para Bomfim, não pode haver identificado apenas através do conteúdo que lhe fosse atribuído. Por vezes, era utilizado como instrumento de polêmica dos antigos contra os modernos. Por fim, Le Go ff analisa as ideologias modernas de decadência. Observa, em primeiro lugar, que, no século XVIII, alguns autores recusavam a identificação das formações históricas com organismos vivos, que nascem, crescem e morrem. O termo decadência caiu em descrédito, ainda que passasse a ocupar um lugar no vocabulário corrente, não se opondo, a princípio, à idéia de progresso. A partir dos séculos XIX e XX, passou a figurar na tentativa de apreender o movimento da história de um ponto de vista evolucionista. Ver LE GOFF, Jacques. Decadência. In: op.cit., p.375-422. Angela de Castro Gomes observa que, após a I Guerra Mundial, palavras como decadência e atraso passaram a circular no vocabulário político internacional de forma intensa. O momento era de crise e suscitava reflexões sobre os rumos da sociedade norteada pelo modelo de civilização européia. Ver GOMES, A política brasileira ..., op.cit., p.491. 716 É interessante observar que, quando, nos anos 1930, Carlos Maul organizou o livro O Brasil (1935) – apresentando-o como “um trabalho minucioso de revisão da nossa história” – contendo extratos da trilogia escrita por Manoel Bomfim, vemos que o capítulo de O Brasil na história onde aparecem explícitas suas idéias sobre ordem e desordem, conservadorismo e liberdade (capítulo VI – O caráter brasileiro) está entre aqueles que foram totalmente suprimidos. Ver BOMFIM, Manoel. O Brasil. Com uma nota explicativa de Carlos Maul (org.). São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1935. 2a. ed. 1940. 717 BOMFIM, O Brasil na história..., op.cit., p.217-18. 718 Henry Koster, viajante inglês, chegou ao Brasil em 1809. Autor de Travels in Brazil, de 1816, livro dedicado a Robert Southey. Foi traduzido por Luís da Câmara Cascudo e publicado em 1942 com o título de Viagens ao nordeste do Brasil. 719 John Armitage, historiador inglês, viveu no Rio de Janeiro entre 1828 e 1835, onde se estabeleceu como comerciante. Foi testemunha de alguns dos acontecimentos sobre os quais escreveu em História do Brasil da chegada da família de Bragança em 1808 até a Abdicação de D. Pedro I em 1831, publicado em português em 1831. 720 BOMFIM, op.cit., p.220.

realização social sem o agrupamento nacional, sendo o nacionalismo uma condição natural e necessária para a realização da sociedade humana. Desta forma, a categoria povo só pode ser compreendida enquanto equivalente a uma nacionalidade. É desta nacionalidade que se retira os elementos capazes de distinguir um povo de outro. 721 A busca das peculiaridades características ou essenciais de um povo, capazes de distingui- lo de outros povos foi associada à idéia de existência de um caráter nacional, noção desenvolvida pelos pensadores românticos, em fins do século XVIII. De acordo com Dante Moreira Leite, essa noção surgiu em meio às críticas contra o princípio iluminista, segundo o qual a razão seria comum a todos os homens e, em decorrência disso, todos os povos e nações seriam iguais ou caminhariam para a igualdade. No movimento de crítica ao racionalismo iluminista e à idéia de igualdade, os pensadores românticos teriam fracionado a unidade fundamental da humanidade que, a partir de então, passara a ser vista não apenas na seqüência histórica – o que já era considerado pelos iluministas – mas a partir das peculiaridades regionais e nacionais. A noção ganhou novos contornos na segunda metade do século XIX, quando o cientificismo, em suas variadas acepções, fundamentou afirmações positivas e negativas sobre as características dos povos, considerando-os a partir de aspectos sociais, psicológicos e raciais. 722 No Brasil, em fins do século XIX, três autores se destacaram entre aqueles que abordaram o tema do caráter nacional: Silvio Romero, Euclides da Cunha e Capistrano de Abreu. Para este último, o caráter nacional brasileiro, ou seja, o conjunto de características que definiriam os traços fundamentais do povo brasileiro, estaria enraizado no passado colonial. Ao longo de quatro séculos de história foi sendo forjado um tipo brasileiro distinto de outros tipos nacionais e daqueles que lhe deram origem. O caráter nacional havia sido construído pela ação da natureza e da raça. Tal afirmação emergira no contexto de uma polêmica com Silvio Romero, para quem as características negativas do caráter nacional brasileiro e as razões do atraso do país deveriam ser buscadas, justamente, na natureza e na raça, particularmente devido ao estágio primitivo da população negra. Capistrano, ao 721

Id. ib., p.172-73. Sobre a noção de caráter nacional, ver LEITE, op.cit., p.15-36 e 37-46. Além do interesse em explorar o caráter nacional como forma de articular traços fundamentais de um povo, é preciso lembrar que, em fins do século XIX e início do século XX, teve início o movimento de constituição do social como objeto de saber sistematizado e especializado. A premissa cientificista que orientava a moderna concepção de história era a de que a interação do meio com o homem produzia a sociedade, de acordo com graus diferentes de determinismo. Disso decorreu que o objeto da história (como o da sociologia) não poderia mais ser o Estado – tema privilegiado pelo historicismo erudito e romântico. Agora era a sociedade e o povo (então compreendido como massa) que deveriam ser postos sob o foco da investigação histórica. Sobre a emergência de saberes sobre o social em fins do século XIX, ver VARGAS, Eduardo Viana. A produção de saberes relativos ao “social”. In: _____. Antes Tarde do que nunca. Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p.95110. Sobre o crescente interesse historiográfico por temas relativos à sociedade e ao povo, ver WEHLING, op.cit., p.429. 722

contrário, entendia que a sociedade colonial tornara-se “atrofiada”, incapaz de ação social vigorosa, devido a uma combinação de fatores naturais e sociais, sendo a raça um fenômeno secundário a ser considerado. Contudo, para este historiador, o caráter nacional brasileiro deixava a desejar pela “indolência” e pela impotente ação social da população, apesar de ser possível apontar alguns exemplos da capacidade de reação da sociedade sobre o meio e contra as condições sociais hostis: a atuação dos jesuítas na colônia; a criação de gado e de ofícios pelos paulistas – pressionados pelo isolamento – e pelos pernambucanos – desafiados por invasores. 723 Durante os anos vinte, foram numerosas as especulações sobre o caráter nacional ou sobre a índole do povo, sendo longa a tradição de análises que vinculam os destinos da nação a aspectos raciais e psicológicos de seus habitantes. Na Revista do Brasil, por exemplo, apareciam freqüentemente descrições do povo brasileiro como podendo ser representado por “um indivíduo desprovido de orientação, firmeza, continuidade e perseverança, que se satisfazia em tomar nobres resoluções e arquitetar belos planos não cuidando, porém, de tirálos do papel”. Essa deficiência era vista como natural, estando relacionada à raça e à mestiçagem, cuja característica seria a incapacidade de realizações práticas, fruto da dispersão. De acordo com Tânia Regina de Luca, os articulistas da revista supunham que “a tendência dispersiva da índole nacional impediria o brasileiro de encetar os esforços requeridos pela observação detida ou pelo uso prolongado do raciocínio (...)”. 724 Não era raro que o esforço de caracterização do brasileiro acabasse por elaborar representações caricaturais, como a de Renato de Almeida, citado por de Luca: “Nós brasileiros somos um povo triste (...) Já têm os psicólogos procurando, e não sem razão, explicar o fenômeno pelo sangue das três raças que corre em nossas veias: o português, o índio e o negro, gente pouco alegre e muito melancólica (...) Por isso somos tímidos, preferimos imaginar a agir, sonhar a realizar”.725

Desta visão pessimista a respeito do povo, nutria-se a visão do país como:

723

WEHLING, Arno. Capistrano de Abreu: a interpretação da história do Brasil (Cap. X). In: _____. De Varnhagen a Capistrano. Historicismo e cientificismo na construção do conhecimento histórico. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, tese para professor titular, 1992, vol. 2, p.411-13. 724 DE LUCA, op.cit., p.187. 725 ALMEIDA apud DE LUCA, ib., p.189. O texto de Renato de Almeida intitula-se Afrânio Peixoto romancista. Foi publicado na Revista do Brasil, v.16, n.62, fev. de 1921. É interessante observar que a representação do brasileiro como um “povo triste” persiste, pelo menos, até o final da década de vinte, como pode ser conferido no livro de Paulo Prado, Retrato do Brasil, publicado em 1928, que inicia com a seguinte frase: “Numa terra radiosa vive um povo triste”. Ver PRADO, Paulo: Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, 8a. ed., p.53.

“Uma dessas obras feita às pressas, errada desde os alicerces até a última descrição interna; em corrigindo aqui, em retocando além, terminamos por nos convencer de que o remédio decisivo estaria na sua destruição total, para a recomeçar, cuidadosa e pacientemente, sob outras bases (...)”.726

Os exemplos de representação pessimista do Brasil e dos brasileiros são numerosos, ainda nos anos vinte. Ao mesmo tempo, havia movimentos de busca e valorização das especificidades brasileiras. 727 Manoel Bomfim parece ter participado desse movimento de duas formas: a) através da crítica historiográfica, que opera como uma espécie de depuração das interpretações/representações construídas sobre o Brasil e os brasileiros; b) através da revisão da própria história, desenvolvida ao logo da trilogia. Se o primeiro livro – O Brasil na América (1929) – se ocupa da formação do Brasil, procurando situá- lo no contexto americano, o segundo livro – O Brasil na história (1930), que aqui está sendo focalizado com mais atenção – analisa o processo de emancipação política, enquanto o terceiro – O Brasil nação (1931) – coloca a história do tempo presente (os anos vinte) sob a mira. É interessante observar que Bomfim se opõem radicalmente às opiniões que consideram o povo brasileiro como avesso ao progresso. Dizia ele que, “Por toda à parte, lamenta-se – que as camadas populares sejam as mais resistentes ao progresso, e mais infensas às iniciativas de melhoramentos e aos novos processos de vida. Será uma calúnia... Aqui, ninguém pensaria, sequer, em atribuir ao elemento popular qualquer oposição, ou simples indisposição, com referência ao que se lhe apresenta como adiantamento e novidade. Dificilmente se encontrará povo mais plástico e adaptável. Isto lhe vem, certamente, dos cruzamentos extensos em que ele foi formado. É ordeiro sim, fácil de harmonizar e de conduzir; mas tudo isto resulta de qualidades do coração, sem qualquer manifesta tendência à imobilidade”.728

É bastante nítida a afirmação do autor de que haveria uma unidade essencial da nação, fundada na solidariedade surgida em decorrência das lutas de defesa do território contra estrangeiros e contra a usurpação da Metrópole sobre a Colônia. Solidariedade surgida a partir da circulação, da comunicação e da sedentarização, compreendidas como fatores fundamentais da expansão colonizadora, capazes de integrar as populações num vasto território. A representação do povo como “ordeiro” e “pacífico” equilibra-se com a compreensão das “queixas”, “revoltas”, “protestos”, “reações”, “resistências”, “levantes”, “sublevações”, “revoluções” como elementos constitutivos de uma nacionalidade fundada pela luta entre 726

BELLO apud DE LUCA, op.cit., p.190. O texto de J. M. Bello intitula -se O Sertão e pode ser encontrado da Revista do Brasil, vol.9, n.33, set. de 1918. 727 Um desses movimentos pode ser identificado, por exemplo, entre os modernistas paulistas, para quem a modernidade só seria possível caso fosse baseada nas tradições nacionais, entendidas como manifestações populares. Ver MORAES, op.cit., p.221. 728 BOMFIM, op.cit., p.244-45.

interesses e tradições divergentes. Tais fenômenos, que salpicam por todo o livro, são vistos como tendo sido conduzidos por interesses nacionalistas, ainda que os motivos iniciais tenham sido econômicos ou políticos. Envolvidas por esses motivos iniciais estariam as “classes em luta” que, no entanto, seriam suplantadas por interesses mais amplos (patrióticos). Compreendo que o entendimento da história como sendo guiada pela “lei das transformações históricas” permitiu ao autor articular idéia de caráter ordeiro e pacífico com a possível e necessária desordem de transformação, que norteou sua interpretação sobre as crises suscitadas pelos fenômenos acima mencionados (“queixas”, “protestos”, “levantes”, etc.). A “miséria da política”729 no Brasil seria decorrente da incapacidade dos dirigentes acompanhar a mudança histórica, optando pelo “conservantismo” e desprezando as manifestações populares (dos verdadeiros brasileiros), entendendo-as como desordens, turbações, num sentido absolutamente negativo. Daí ser possível compreender a idéia de um “Estado pervertido”, apresentada na epígrafe que abre este capítulo. Estado que se colocaria como um obstáculo às transformações históricas, ao compartilhar de uma visão desfavorável sobre a Nação, como aquelas que a consideravam como inviável, devido ao meio, a raça ou à herança da colonização. Observo, por exemplo, a aversão de Bomfim às interpretações que consagravam o caudilhismo730 ou o militarismo como característica brasileira ou mesmo, latino-americana. Em diálogo direto com Garcia Calderón [1834-1905], 731 para quem existiria no Brasil um “militarismo latente”, Bomfim afirma, em primeiro lugar, que dissídios armados não podem ser relacionados exclusivamente ao caudilhismo. Cita a Colômbia como exemplo de país onde haveria lutas armadas, mas não caudilhos. Isso segundo o próprio Calderón. No Brasil, chama a atenção para casos em que as tentativas de guerra civil haviam fracassado devido à ausência desse “militarismo latente”. Ao mesmo tempo, a ação dos militares não teria repercussão entre a população, que condenaria tacitamente a violência. Segundo Bomfim:

729

Id., O Brasil na história..., op.cit., p.230. O termo caudilho identifica, de modo pejorativo, um chefe militar que seria característico das repúblicas latino-americanas. 731 Francisco García Calderón, político e escritor peruano, autor de Latin América. Its rise and progress (Londres e New York, 1913) e La creación de un continente (Paris, 1913), que tratam de pan-americanismo, iberismo e sociedade hispânica na América. Calderón presidiu provisoriamente o Peru, por ocasião da guerra entre Chile, Peru e Bolívia. O livro citado em O Brasil na história (1930) é Les democraties latines de l’Amerique (s/d), escrito para a Biblioteca de Filosofia Científica francesa, com prefácio de Raymond Poincaré (1860-1934), presidente da França no período de 1913-1920. 730

“O Brasil é um dos raros países, no mundo, onde as transformações essenciais, sociais ou políticas, fazem-se pela mudança do sentimento íntimo da população, que, finalmente, impõe aos governantes o mesmo sentimento. Foi assim na colônia; tem sido assim na nação soberana. A começar pela Independência, que só se fez – por que o povo, muito explicitamente, não admitia mais a volta ao seio de Portugal. Foi assim na crise de 1831, foi assim para a Abolição, como foi para a instituição da República: chegou um momento em que, todos os sentiram – era impossível manter a escravidão e conservar o trono. Quanto aos levantes militares, esses foram trazidos para o Brasil com as tropas constitucionais das Cortes (...) A nação brasileira, porém, não se deixou contaminar”.732

Otimista em relação ao povo e pessimista em relação aos dirigentes, Bomfim não pode ser confundido com um ufanista, pois ele criticava o “elogio de um Brasil abstrato”, baseado na simples descrição dos fatos e daquilo que é pitoresco. O ufanismo é visto pelo autor como: “Laboriosas tolices, que fatigam e atordoam pelo vazio dos conceitos, e finalmente entediam quando não repugnam. Não são mentiras, nem verdades, porque nada são. No contar, é a mesma ufania nula, com o afan de elogiar, seja a quem for, sem nenhum cuidado de justificação”.733

Sua perspectiva é mais pragmática, pois defende reformas que, contudo, não visam, diretamente, a administração pública ou a organização do Estado, mas a transformação das idéias, do modo de ver e representar o país e seus habitantes. O papel que ele atribuiu às idéias na história pode ser apreendido, em primeiro lugar, através da perspectiva de que o pensamento equivale à ação. Nas palavras do autor: “Pensar já é atividade. Pensar é criar, agitar o mundo das imagens, alargá-lo. Levar os homens a ter idéias novas, é fazê-los ativos, de uma atividade superior, porque a idéia é o ato pelo qual o espírito, mercê de impressões várias e diferentes, cria uma entidade nova – o elemento mental, que representa uma síntese: a harmonia última que, no seu espírito, se faz com o resíduo de sensações passadas, observações e ensinamentos”.734

732

Ver BOMFIM, op.cit., p.231-32. Vale a pena recuperar alguns trechos de seu livro A América Latina, para melhor configurar a interpretação do autor sobre as populações brasileira e latino-americana. Em 1905, Bomfim dizia que: “a opinião pública européia sabe que existe a América Latina... e sabe mais: que é um pedaço de continente muito extenso, povoado por gentes espanholas, continente riquíssimo, e cujas populações revoltam-se freqüentemente. Essas coisas, porém, já lhe aparecem num vago mal limitado; riquezas, terras vastas, revoluções e povos, tudo se confunde para formar um mundo lendário, de lendas sem grande encanto porque lhes falta o prestígio da ancianidade. Onde estão essas riquezas, o que valem; como se fazem as revoluções, quem as faz, onde as fazem: são questões que se não definem, sequer, no obscuro longínquo desta visão única – a América do Sul... É dela que se fala. Mesmo quando venham nomes particularizados – Peru, Venezuela, Uruguai...: não importa: o que está ali, a imagem que se tem na mente é a América do Sul (...) como de costume, sempre que se trata das repúblicas latino-americanas, os doutores e publicistas da política mundial se limitam a lavrar sentenças – invariáveis e condenatórias. A ouvi-los, não há salvação possível para tais nacionalidades”. Ver Id., A América Latina..., op.cit., p.37-38. 733 Id., O Brasil na história..., op.cit., p.365. 734 Id., A América Latina…, op.cit., p.334.

Em segundo lugar, a partir da noção de que “o homem, na ação humana, é um valor de consciência”. 735 O progresso, a mudança histórica só seria possível por meio da consciência (das tradições, da própria história), sendo que, esta seria estimulada – ou não – a partir das condições exteriores da existência individual, do ambiente social no qual o indivíduo estivesse inserido. É da relação complementar entre indivíduo e sociedade 736 que emerge a pressão das necessidades que, por sua vez, servem de estímulo para a consciência que compelirá o indivíduo à ação e a transformação, estimulando critérios para a escolha do melhor caminho para se chegar a uma sociedade mais justa e igualitária, compreendendo que “a nação só prevalece e ascende no valor humano dos que a compõem...”. 737

735

Id., O Brasil na história..., op.cit., p.9. Id. ib., p.172. 737 Id. ib., p.527. 736

Conclusão e apontamentos para uma outra história “A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a bela imagem de Michel de Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras alheias. Apreendido pela leitura, o texto não tem de modo algum – ou ao menos totalmente – o sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comentadores. Toda história da leitura supõe, em seu princípio, esta liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro pretende lhe impor. Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler”.738

Minha primeira leitura de O Brasil na história (1930) foi acompanhada por algumas informações: tratava-se de um livro esquecido, de um autor pouco lembrado, recuperado na última década do século XX através da reedição de três de seus livros – A América Latina (1993), O Brasil nação (1996) e O Brasil na América (1997) – e de alguns estudos desenvolvidos no âmbito universitário. Intrigavam- me as referências a Manoel Bomfim como um “ensaísta esquecido”, um intelectual “outsider”, um “rebelde”, um “radical” rejeitado por seus contemporâneos, e também posteriormente. Um autor que, às vésperas do século XXI, deveria ser resgatado do ostracismo devido a sua originalidade, quando comparado a autores considerados clássicos do chamado pensamento social brasileiro, tais como: Euclides da Cunha, Silvio Romero, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda. Foi em meio a essas informações que li O Brasil na história (1930), procurando espaço para dizer alguma coisa sobre esse livro e seu autor, que pudesse contribuir tanto para situá- lo em relação a outros autores quanto para acessar aquilo que identifiquei como sendo a cultura histórica de seu tempo. O livro em questão fornecia elementos para que esse empreendimento pudesse ser levado a cabo. Seus três primeiros capítulos revelaram-se uma fonte preciosa sobre alguns dos caminhos possíveis do conhecimento histórico no Brasil da Primeira República. Como a história deveria ser escrita, porque e por quem são algumas das questões presentes naquelas páginas iniciais. Indo além delas, descobri um livro repleto de referências a outros livros e autores, num esforço de síntese dos problemas que Bomfim considerou mais urgentes. Urgência intelectual – de opção teórica e científica – e de

738

CHARTIER, Roger. O leitor: entre limitações e liberdades. In: _____. A aventura do livro : do leitor ao navegador; conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Unesp, 1998 [1997], p.77. Ver, também, CERTEAU, Michel de. Ler uma operação de caça. In: _____. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994 [1990], p.269-79.

posicionamento político. Urgência de vida diante da ameaça de morte com a qual o autor conviveu durante a escrita de sua trilogia sobre o Brasil. 739 Paralelamente à leitura dos livros de Bomfim, fui me aproximando dos textos sobre ele e deparei- me com um conjunto pequeno, mas significativo, de escritos que contribuíram de diferentes formas para a construção de memórias sobre o autor, classificando-o e a seus textos; situando-o em relação a outros pensadores de seu tempo e de outros tempos. Daí surgiu o primeiro capítulo Leituras e memórias: representações sobre um autor e sua obra, onde mapeei um terreno bastante fértil, que continuamente alimenta o trabalho de consagração ou de esquecimento de autores e livros. Um terreno do qual esta dissertação também faz parte. Compreendendo a leitura como um processo de interpretação que ao final elabora um novo texto, optei por lidar com algumas das leituras sobre Bomfim produzidas ao longo de um período bastante longo (quase um século). Leituras a partir das quais foi possível compor memórias que consolidaram representações sobre o autor e seus livros como personagens da história da inteligência brasileira. No caso, tratava-se de um personagem obscurecido, mas ainda assim personagem, cuja marca de ser um “rebelde esquecido” parece dominar. Diferentes interpretações sobre Manoel Bomfim e suas obras foram construídas. Algumas serviram para alimentar a perspectiva da existência de um pensamento de esquerda ou de oposição nas primeiras décadas do século XX, época vista, durante muito tempo, como sendo povoada por racistas, reacionários e positivistas. Outras contribuíram para situar o autor em meio ao conjunto de pensadores nacionalistas, herdeiros do ideal ilustrado da “educação como redenção nacional” ou, ainda, como exemplo do intelectual de um “período de transição” (“pré- moderno”, pré-acadêmico, pseudocientífico), que teria produzido interpretações que só posteriormente seriam plenamente desenvolvidas. De variados modos, tais leituras inseriram o nome de Manoel Bomfim no conjunto chamado pensamento político-social brasileiro. 740 Mas, concordando com Jean-François Sirinelli, para quem o historiador dedicado ao estudo de intelectuais não pode ser nem complacente nem membro de qualquer “pelotão de fuzilamento”, por não ter como tarefa

739

Manoel Bomfim esteve doente durante toda a segunda metade dos anos vinte. Entre 1928 e 1932, submeteuse a 14 operações e teve que ditar todo o seu último livro Cultura e educação do povo brasileiro, lançado em 1932, ano de sua morte. 740 Segundo Angela Gomes, a expressão pensamento político-social brasileiro serve para recobrir “um espaço amplo e diversificado que une a história política à história intelectual (das idéias, ideologias, mentalidades)”. GOMES, Angela de Castro. Política: história, ciência, cultura etc. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, 9(17):59-84, 1996, p.67.

“nem construir um Panteão, nem cavar uma fossa comum”, 741 procurei observar o autor em questão sem esquecer que o trabalho de ler serve tanto para estabelecer diálogos com pensadores de outros tempos – situando-os, mas também os subvertendo e deslocando-os – quanto para dizer alguma coisa sobre o leitor e seu próprio tempo. Esse exercício em busca da memória construída sobre um autor e sua obra permitiu constatar que a história das idéias ou intelectual não é constituída por um corpus homogêneo de autores e obras que atravessa o tempo incólume, constituindo algo como o pensamento social brasileiro. Ela é feita de exclusões e consagrações, o que implica em estratégias de escolha. Assim, a importância conferida a um determinado autor e/ou livro pode ser questionada considerando-se não apenas os aspectos intrínsecos ao próprio autor ou a sua obra, mas, sobretudo, os métodos e os interesses de seus intérpretes, levando em conta o contexto em que tais interpretações são laboradas. Essa conclusão abre espaço para pensar sobre o modo como a história intelectual brasileira foi, durante muito tempo, organizada. Angela de Castro Gomes, por exemplo, observou que desde os anos 50:

“Era muito grande o desamor pelos debates teóricos sobre a construção do conhecimento histórico, assim como sobre qual era a nossa tradição de autores/obras neste terreno. Ou seja, qual era a jurisprudência a ser consultada como ponto de partida para reelaborações e discussões renovadoras”. 742 A autora também lembra que, durante décadas pairou a dúvida a respeito da “real” existência de um pensamento social e político brasileiro. Postulava-se que,

“(...) as ‘idéias políticas’ no Brasil eram ‘importadas’ do exterior, razão pela qual ou elas estavam ‘fora do lugar’, não sendo operativas e produzindo equívocos; ou elas estavam ‘no lugar’, construindo uma justificativa um tanto quanto maquiavélica de estratégias de dominação/opressão política (de classe, do Estado etc.).”743

741

SIRINELLI, Jean-François . Os intelectuais. In : RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996 [1988], p.261. 742 GOMES, op.cit., p.62. 743 Id. ib., p.77. Sobre este assunto, o debate travado entre Roberto Schwarz e Maria Sylvia de Carvalho Franco é exemplar. Ver SCHWARZ , Roberto. As idéias fora do lugar. In: _____. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000, p.9-31, 5a. ed.; originalmente publicado em Estudos Cebrap, n.3, 1976; e FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As idéias estão no lugar. Cadernos de Debate, n.1, 1976, p.61-64. Ver, também, CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topói. Rio de Janeiro: Sete Letras/UFRJ, 2000, n.1, p.123-152. Lembro que o debate sobre a importação de idéias é recorrente, pois ele veio à tona em diferentes momentos e por diversos motivos, como, por exemplo, na virada do século XIX e durante os anos de 1920.

Diante deste quadro de desinteresse, a pesquisa sobre a história intelectual não se desenvolveu no sentido de investigar obras e respectivos contextos de produção; trajetórias de autores e instituições (escolas, revistas, academias, etc.), além das tradições de pensamento. 744 Além disso, até pelo menos os anos 70, a produção intelectual anterior à criação das escolas de Ciências Sociais, nos anos 30 – constituída basicamente por ensaios –, era classificada como “pré-científica”. De acordo com Wanderley Guilherme dos Santos: “Toda a produção anterior a esta data [os anos 30] constitui-se de ensaios mais ou menos irrelevantes; portanto, é desnecessário, senão inútil, descobrir, organizar e discutir qualquer predecessor eventual dos tempos modernos (...) Este preconceito impediu que a história intelectual brasileira fosse, em primeiro lugar, satisfatoriamente conhecida e, em segundo, analisada em si mesma, independente dos acasos institucionais”.745

Após selecionar 12 estudos sobre história intelectual no Brasil, o autor observa que esta estaria resumida à obra de cem pessoas, reduzidas a 45 se excluídos os autores que começaram a produzir na década de 40, assim como alguns ensaístas e literatos eventualmente relacionados. Além disso, apenas 21 desses 45 autores estariam citados em mais de um dos 12 estudos. 746 Mas, com a revitalização dos estudos sobre política – sobretudo no âmbito da Ciência Política, já no final dos anos 60 – e sobre história intelectual, principalmente a partir do final dos anos 70, novas possibilidades de pesquisa se abriram. Além disso, durante os anos 90, ao lado de novos estudos, foram reeditados alguns autores do início do século. 747 Um dos modos recentes de investigação da história intelectual, que tem como objeto a construção do pensamento social brasileiro, é aquele desenvolvido pela antropóloga Regina Abreu, em O enigma de Os Sertões (1998). Através de um estudo sobre as estratégias de 744

GOMES, op.cit., p.78. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Raízes da imaginação política brasileira. Dados. Rio de Janeiro: Iuperj, 7:137-161, 1970, p.147. Este artigo é uma releitura do texto “A imaginação político-social brasileira”, publicado na mesma revista Dados, n.2/3, 1967. 746 O objetivo de Guilherme dos Santos é traçar as origens históricas da “imaginação política brasileira”. O autor parte da hipótese de que existe um estilo comum de percepção da política no país, qual seja: a tendência para representar a vida social como a luta contínua entre dois agrupamentos de fenômenos, sempre conflitantes (percepção dicotômica da realidade). Após uma pesquisa feita em 45 volumes bibliográficos e 23 coleções de periódicos e boletins, O autor identifica cerca de 3000 livros, artigos e panfletos escritos por brasileiros no período de 1870 a 1965, todos tratando de aspectos sociais e/ou políticos brasileiros. A partir desse corpus documental, ele seleciona alguns autores que considera significativos para a investigação das origens de um pensamento dicotômico sobre política e sociedade. Destaca temas abordados por tais pensadores, aponta algumas características dos debates por eles travados, fazendo indicações sobre os tipos de abordagem. Nesse movimento, Santos encontra Manoel Bomfim, um “curioso pensador”, cujas análises oscilariam entre considerações sócioeconômicas e críticas ao português, destacando-se uma mistura de estilos tradicional e moderno em seus textos. Em suma, a leitura desenvolvida por Santos, se não contribui muito para a construção de uma memória sobre Bomfim, abre um espaço para o questionamento das práticas de estudo sobre a história intelectual e para a reflexão sobre o modo como o chamado pensamento social brasileiro é constituído. Id. ib., p.144 e 146 e 147, nota 16. 747 GOMES, op.cit., p.78. 745

consagração de um autor e seu livro, a autora recupera os motivos que fizeram de Euclides da Cunha e de Os sertões (1902) dois monumentos ou símbolos nacionais. 748 O primeiro capítulo desta dissertação foi inspirado pela pesquisa de Abreu que, guardadas as significativas diferenças, suscitou dúvidas sobre como um autor e sua obra podem ser lembrados ou esquecidos, o que alimenta um dos possíveis desdobramentos desta pesquisa. Esta seria guiada pela investigação das memórias ou das biografias daqueles que seriam os representantes dos estudos históricos no Brasil. Os discursos de posse e de saudação dos novos sócios publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro podem ser uma fonte importante, assim como a rubrica intitulada: Biografias dos brasileiros distintos por armas, letras, virtudes etc., que, de acordo com Armelle Anders, contribui na tarefa de zelar pelo recenseamento dos “grandes homens” – espécie de monumentos nacionais. Além dessa rubrica, a autora lembra a existência de “esboços biográficos” ou “elogios” pronunciados por ocasião da morte de algum membro do Instituto. Também é possível localizar necrológicos publicados na imprensa ou artigos biográficos. Em muitos desses textos, o papel do historiador é lembrado. 749 Mas, além de ana lisar os modos como Bomfim e seus livros foram lidos, este trabalho dedicou-se a reconstituir sua interpretação sobre a história, a historiografia e os historiadores, o Brasil e os brasileiros. Observando as relações entre história e nação, historiografia e nacionalismos, fui compondo o segundo e o terceiro capítulos. O segundo focalizou aspectos relativos à história enquanto conhecimento científico, cercando a noção de ciência que informava Bomfim, seu entendimento sobre a relação entre indivíduo e sociedade, o lugar que ele atribuía ao método científico e à subjetividade e sua visão do trabalho do historiador. Norteando esse capítulo, havia aquilo que foi identificado como um problema mais amplo que parecia provocar o autor e que servia como eixo da investigação: o problema gerado pela busca de objetividade científica diante da exigência de comprometimento com os problemas de seu tempo. Seguindo a leitura do livro, do âmbito da história enquanto conhecimento científico passei ao tratamento da história enqua nto uma espécie de instrumento político. No terceiro capítulo, foram recuperadas algumas das falas sobre a nação brasileira e seus habitantes que,

748

Além do trabalho de Regina Abreu, lembro um número recente da revista Estudos Históricos sobre heróis nacionais, onde há artigos que abordam a construção de memórias sobre “grandes vultos nacionais”; “homenssímbolo” da nação, etc. Ver ANDERS, Armelle. “O Plutarco Brasileiro”: a produção dos vultos nacionais no Segundo Reinado. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 14(25):41-62, 2000; MOURA, Cristina Patriota de. Herança e metamorfose: a construção social de dois Rio Branco. Ibidem, p.81-102; EL FAR, Alessandra. “A presença dos ausentes”: a tarefa de criar e perpetuar vultos literários. Ibidem, p.119-134; GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República. Ibidem, p.135-161. 749 ANDERS, op.cit., p.41-62.

de maneiras diferentes, mas também semelhantes, contribuíram para a construção da história do Brasil na Primeira República. Entre essas vozes, situei Bomfim, relacionando sua visão da história a seu entendimento da “questão nacional”. Empreendi a análise do modo como ele construiu suas interpretações sobre o Brasil e os brasileiros, que acontecimentos destacou, que personagens foram focalizados e que aspectos foram considerados relevantes. Mais do que tentar situa- lo entre “pensadores de história” – com toda a heterogeneidade que esta expressão contém – ou entre aqueles que poderiam em sua época ser chamados de historiadores, fui descobrindo ao longo do trabalho que o mais interessante era buscar relações entre tais ambos (“pensadores da história” e historiadores), de modo a compreender a circulação e apropriação de idéias sobre a história, a complementaridade e as divergências quanto às representações sobre o passado. Manoel Bomfim permitia entrever tais relações, pois ainda que ele fosse mais associado ao primeiro amplo e heterogêneo conjunto – o dos “pensadores da história” – ao desenvolver sua crítica sobre a escrita da história, referiuse a determinados estudiosos, conceitos e concepções pertinentes ao domínio daqueles que almejavam distinguir-se dos “homens de letras” no trato do passado. Para rastrear tais relações a estratégia foi explorar o livro em busca de referências a outros autores e livros, de modo a reconstituir, ou ao menos indicar, a pluralidade de textos que ajuda a compor a leitura de um único texto (O Brasil na história). Ao mesmo tempo, a pesquisa foi construindo o retrato de um autor em diálogo com seu próprio tempo, interessado nas questões nacionais (particularmente, na educação pública e na escrita da história-pátria) e empenhado em solucionar a tensão entre a busca de neutralidade, como pressuposto para a objetividade científica, e a exigênc ia de comprometimento político e intelectual. Diante da perspectiva apresentada nos dois últimos capítulos, outro possível desdobramento da investigação refere-se à questão da cultura histórica e historiográfica no Brasil. Lembro que o objetivo geral deste trabalho era localizar alguns aspectos da cultura histórica experimentada por Bomfim e seus contemporâneos. Cultura que se traduzia no interesse pelo passado; nas formas de lidar com a temporalidade; nos projetos historiográficos existentes em seu tempo; nas assertivas sobre como, por que e por quem a história deveria ser escrita; nos usos da história postos em prática por diferentes atores sociais. Para além da investigação das idéias de um único autor, um dos caminhos apontados no início do trabalho, mas não percorrido, é aquele que se dedica a localizar “redes de sociabilidade”, através das quais talvez seja possível observar como a cultura histórica se desenvolve em determinados locais, ou através de determinadas relações intra e entre grupos de intelectuais. Cultura histórica que pode ser vislumbrada nos institutos históricos, assim

como nos jornais e revistas – como a Revista Brasileira e a Kosmos750 – onde historiadores e “pensadores da história” apresentavam seus estudos. Também pode ser localizada através da literatura, onde acontecimentos históricos eram interpretados751 e dos estudos sociais e políticos, onde o passado precisava ser revisto em prol do presente e do futuro. Há, também, as cartas escritas por aqueles que se dedicavam à história, como, por exemplo, Capistrano de Abreu, onde é possível encontrar indicações sobre leituras e expectativas sobre a escrita da história, tais como:

“Tenho presente a primeira vez em que veio a idéia de escrever a história do Brasil. Estava no Ceará, na freguesia de Maranguape, com poucos livros, arredado de todo comércio intelectual. Acabava de ler Buckle no original, relia mais uma vez Taine, tinha acabado a viagem de Agassiz (...) Aqui no Rio só fiz duas aquisições: saber do alemão o bastante para lê- lo na rede, sem estar me levantando a todo instante para recorrer ao dicionário; e através de Wappeaux, Peschel e Ratzel, compreender que a Geografia é tão bela ciência como difícil.”752

Aproveitando as palavras de Capistrano, pode-se dizer que a história também “é tão bela ciência quanto difícil”, em parte por ser “uma ciência quase da fragmentação”, capaz de articular dados lacunares em totalidades significativas. 753 Deste esforço para interpretar um autor e seu livro, resultou a compreensão de que quando se percorre “terras alheias”,

750

Angela de Castro Gomes menciona que a Revista Brasileira e a revista Kosmos serviam como referência para os historiadores, por publicar “estudos históricos”, além de críticas sobre tais estudos. Ver GOMES , Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: FGC, 1996, p.52. 751 Lembro que o interesse em aproximar os campos literário e histórico tem estado muito em voga ultimamente, sendo muito variadas as leituras sobre essa aproximação. Destaco a perspectiva que procura pensar a produção literária como fonte de história e não apenas como fonte para a história. Ver, por exemplo: FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Letras insulares: leituras e formas da história no modernismo brasileiro (Cap. 11). In: CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (orgs.). A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.301-331. A proposta de Aldrin Figueiredo é compreender “como os homens de letras elaboraram um discurso próprio acerca dos acontecimentos históricos de seu tempo e, desse modo, expressavam suas leituras da história a partir de formas literárias”. Id. ib., p.301-2. 752 ABREU apud RIBEIRO, Maria Tereza Gaffrée. Uma ruptura na historiografia brasileira : formação intelectual de João Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/Dep. de História, dissertação de mestrado, 1990, vol. I, p.122. O trecho foi extraído da Carta a João Lúcio de Azevedo, janeiro de 1917, publicada em RODRIGUES , Correspondência..., op.cit., vol. II, p.51. Conforme o levantamento realizado por Ribeiro, as cartas de Capistrano estão publicadas em: RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954-1956, 3 vols. Há, também, organizado pelo mesmo autor, Cartas de Capistrano ao Padre Teschauer. In: _____. Novas cartas de Capistrano de Abreu. Separata da Revista de História. São Paulo, 31:79-91, 1957; e, ainda, SILVEIRA, Luís . Cartas de Capistrano a Lino de Assunção. Lisboa: Of. Gráfica, 1946. 753 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. História e narrativa. In: MATTOS, Ilmar Rohloff de. Ler & escrever para contar. Documentação, historiografia e formação do historiador. Rio de Janeiro: Access, 1998, p.233.

experimenta-se certas liberdades interpretativas, norteadas por convenções e limites relativos ao lugar de onde se fala. 754

754

Ver CERTEAU, op.cit.; e, do mesmo autor, A operação historiográfica. In : A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p.65-119.

BIBLIOGRAFIA

I - FONTES PRIMÁRIAS

a) OBRAS DE MANOEL BOMFIM UTILIZADAS BOMFIM, Manoel. A América Lata: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, 3a edição [1905]. _____. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, 2a. edição [1929]. _____. O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930. b) OUTRAS FONTES CITADAS

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ANEXOS

BIBLIOGRAFIA DE MANOEL BOMFIM

a) LIVROS DIDÁTICOS E PARADIDÁTICOS

BOMFIM, Manoel e BILAC, Olavo. Livro de composição para o curso complementar das escolas primárias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1899. BOMFIM, Manoel. Zoologia Geral. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1902. _____. O fato psíquico. Rio de Janeiro: Tipografia Espíndola, 1904. _____. Clínica psychiatrica. Das alucinações auditivas dos “perseguidos”. Monografia contendo algumas observações da sua clínica psychiatrica. São Paulo: Typ. Espindola, 1904. _____. Elementos de Zoologia e Botânica Gerais; adaptação das obras de anatomia e psicologias animais e psicologias vegetais de Lamounette. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1905. _____ e BILAC, Olavo. Através do Brasil: prática da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1910. 64a. ed. em 1962. Publicado em São Paulo, pela Companhia das Letras, 2000. Coleção Retratos do Brasil. _____. e BILAC, Olavo. Livro de leitura para o curso complementar das escolas primárias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1910. 9a.ed. BOMFIM, Manoel. Noções de psicologia. Rio de Janeiro: [Francisco Alves] / Sociedade de Publicações de Livros Escolares, 1916. _____. Lições de Pedagogia: teoria e prática da educação. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1916. _____. Primeiras saudades; leitura para o 1o . anno do curso médio das escolas primárias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1920. 220p. _____. A Cartilha. Rio de Janeiro: Casa Electros, 1922. _____. Lições e leituras para o 1o . ano. Rio de Janeiro: Casa Electros, 1922. _____. Crianças e homens. Rio de Janeiro: Casa Electros, 1922. _____. Lições e leituras – livro do mestre. Rio de Janeiro: Casa Electros, 1922. _____, FONTES, Ofélia e FONTES, Narbal. O método dos testes. Com aplicações à linguagem no ensino primário. Rio de Janeiro: Francisco Alves, [1926].

b) ENSAIOS E ESTUDOS

BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. O parasitismo social e evolução. Rio de Janeiro: Garnier, 1905. 2a. ed., Rio de Janeiro: Ed. Noite, 1938; 3a. ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. _____. Pensar e dizer: estudo do símbolo no pensamento e na linguagem. Rio de Janeiro: Casa Electros, 1923. _____. A plástica da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Casa Electros, no prelo em 1923.

_____. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929. 2a. 1997. _____. O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930. _____. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1931. Vols. I e II. 2a. ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1 vol., 1996. _____. Cultura e Educação do Povo Brasileiro: pela difusão da instrução primária. Rio de Janeiro: Pongetti, 1932. _____. O Brasil; com uma nota explicativa de Carlos Maul. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. 349p. (Biblioteca Pedagógica Brasileira, vol. XLVII). 2a. ed., 1940. _____. A moral de Darwin (obra inacabada).

c) OPÚSCULOS, ARTIGOS E DISCURSOS

BOMFIM, Manoel. Das nephrites. Tese apresentada à faculdade de medicina do Rio de Janeiro para obter o grau de doutor. Rio de Janeiro: Typ. da Gazeta de Notícias, 1890. _____. Parecer sobre Compêndio de História da América, de Rocha Pombo. Publicado como Prefácio. Rio de Janeiro: Laemmert, 1900. 1a. ed. _____ e MARQUES, Narciso. Parecer sobre as águas do rio Poxim. O Republicano. Rio de Janeiro, 11/04/1890. BOMFIM, Manoel. Dos sistemas de ensino. A República. Rio de Janeiro, 07/01/1897. Reproduzido em Cultura e educação do povo brasileiro, 1932. _____. Instrução popular. A República. Rio de Janeiro, 02/09/1897. _____. Nacio nalização da escola. Educação e ensino. Rio de Janeiro: Instrução Municipal do Distrito Federal, 1897, ano I, n.1, p.23. _____. Olavo Bilac: estudo sobre a vida intelectual desse poeta. Kosmos, abril, 1904. _____. O progresso pela instrução, discurso proferido na solenidade da entrega de diplomas as normalistas que terminaram o seu curso no anno escolar de 1903 [por Medeiros e Albuquerque, d. América Xavier, Dr. Manoel Bonfim, Dr. Servulo Lima]. Discurso. Rio de Janeiro: Typ do Instituto Profissional, 1904. _____. O ciúme. Revista dos Annaes. Rio de Janeiro: n.49, p.586-90; n.50, p.598-600, 1905. Conferência realizada no Instituto de Música. _____. História das terras brasileiras. Os Annaes. Ano II, n.31, 1905, p.292-5. _____. Uma carta. Os Annaes. Ano III, n.74, 1906. p.169-170. _____. Discurso (27/09/1906). Jornal do Commercio, 30/09/1906. _____. O respeito à criança. Discurso pronunciado na solenidade de entrega de diplomas às normalistas de 1905. Rio de Janeiro: Typ. do Instituto Profissional, 1906. _____. A obra do germanismo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 17/08/1914. Publicado no Rio de Janeiro, pela Typ.Besnard Frères, em 1915, junto com outro artigo. _____. A crise ?...Jornal do Commercio, 27/06/1915. _____. Cemitério para cães. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 17/08/1914. _____. Darwin e os conquistadores. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 13/11/1914. Publicado no Rio de Janeiro, pela Typ.Besnard Frères, em 1915, junto com outro artigo. _____. Pobre instrução pública. Jornal não identificado, 1915 (citado por Ronaldo Conde Aguiar, 1998). _____. O Pedagogium. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10/02/1919.

_____. Cultura progressiva da ignorância... Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28/06/1919. _____. Valor positivo da educação. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 04/07/1919. _____. O dever de educar. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 27/09/1921. _____. The Brazilian. Brazilian Business. Rio de Janeiro, junho de 1922. _____. Os Brasis. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 29/04/1928. _____. Crítica da escola ativa. A Academia, Rio de Janeiro, ano 4, n. 6, 1929.

MANOEL BOMFIM

O BRASIL NA HISTÓRIA Deturpação das tradições Degradação política

Livraria Francisco Alves 1930

*

ÍNDICE

Pág.

Prefácio.......................................................................................................................

7

Orientação...................................................................................................................

9

Parte 1 – DETURPAÇÃO DAS TRADIÇÕES

Capítulo I – A História pelos Grandes Povos 1o Função da história e da tradição.............................................................................

36

2o Como e porque se deturpa a história......................................................................

38

3o Egocentrismo da história........................................................................................

40

4o Efeitos gerais da deturpação da história.................................................................

43

5o Valores esquecidos para serem sonegados.............................................................

46

6o O subjetivismo das tradições: os grandes povos....................................................

49

Capítulo II – Deturpações e insuficiências da história do Brasil 7o O critério francês....................................................................................................

55

8o Carapetões e deslates..............................................................................................

60

9o A sociologia francesa.............................................................................................

64

10o Causas de deturpação da história do Brasil.........................................................

68

11o O fatal influxo do bragantismo............................................................................ o

71

12 O Brasil modelou a América................................................................................

73

13o O indefectível defensor do continente..................................................................

77

14o ... omisssões, calúnias, elogios..., sempre deturpação..........................................

85

15o Difamação dos paulistas.......................................................................................

93

16o Onde estão os nefários.........................................................................................

99

Capítulo III – Os que fizeram a história do Brasil 17o História para o trono.............................................................................................

109

18o Some-se a história de Frei Vicente.......................................................................

111

19o Coriáceos, nulos, opacos e indigestos..................................................................

119

20o O da História Geral do Brasil...............................................................................

122

o

21 Os sub-Varnhagen................................................................................................

126

22o História da República...........................................................................................

132

Capítulo IV – Atentados contra a tradição brasileira 23o A Unidade atribuída ao Bragança........................................................................ o

139

24 Como se congregou o Brasil................................................................................

147

25o A solidariedade pela defesa..................................................................................

152

26o O esforço para dissociar o Brasil.........................................................................

155

27o Os verdadeiros embaraços à unidade do Brasil....................................................

157

28o A centralização asfixiante....................................................................................

162

29o A unidade era união patriótica.............................................................................

168

Capítulo V – O patriotismo brasileiro 30o O Patriotismo – egoísmo socializante..................................................................

170

31o Nacionalismo – necessidade para o patriotismo..................................................

172

o

32 A tradição anti-portuguesa...................................................................................

179

33o Oposição de motivos – interesses em luta............................................................

181

34o Ódio por ódio.......................................................................................................

184

35o Despeito de interesses ameaçados........................................................................

190

36o O necessário antagonismo....................................................................................

193

37o Nacionalismo nas letras........................................................................................ o

195

38 Uma voz de rancor... hereditário..........................................................................

198

39o O achincalhe dos nossos grandes líricos..............................................................

203

Capítulo VI – O caráter brasileiro 40o Pacífico e dúctil....................................................................................................

210

41o A tranqüila bondade.............................................................................................

214

o

42 Ordeiro. As revoltas da colônia............................................................................

221

43o Nem caudilhos, nem pronunciamentos................................................................

227

44o Ordem... estabilidade, estagnação........................................................................

231

45o As desordens de conservação...............................................................................

239

46o Liberdade, mutações, progresso...........................................................................

241

o

47 A tradição republicana.........................................................................................

245

48o Por que a monarquia.............................................................................................

253

49o O presente do inglês.............................................................................................

259

Parte 2 – TRAUMA E INFECÇÃO

Capítulo VII – A degeneração da atividade portuguesa 50o O Brasil de 1650...................................................................................................

265

51o O processo de degeneração..................................................................................

271

52o A higiene do imperialismo inglês........................................................................

273

53o O mercantilismo heróico......................................................................................

277

54o Do heroísmo ao comércio del Rei........................................................................

280

55o O destino do ricaço...............................................................................................

285

Capítulo VIII – Degradação da atividade portuguesa 56o A alma de mercador, apenas mercador e cur to mercador....................................

291

57o Pobre Portugal......................................................................................................

295

58o Os resíduos...........................................................................................................

302

59o A degeneração do trono.......................................................................................

304

60o A degradação dos Braganças...............................................................................

307

61o Coração de degenerados....................................................................................... o

315

62 Decadência de pensamento..................................................................................

378

63o O caráter... degradação até a covardia..................................................................

324

Capítulo IX – Sob a metrópole degradada 64o Os veios da degeneração......................................................................................

332

65o Os Castro de Moraes............................................................................................

335

o

66 Os tentáculos urticantes........................................................................................

337

67o Contato e domínio de mascates............................................................................

340

68o Corrupção, injustiça, roubo, estiolamento............................................................

343

69o Além de extorsão e opressão, estupidez e ignorância..........................................

353

70o ... John Bull... …………………………………………………………………

356

71o Pombal e as Companhias de Comércio...............................................................

358

72o ... até nas letras... .................................................................................................

364

73o No sul... ...............................................................................................................

367

74o O desastre da colônia...........................................................................................

370

75o São Pedro do Rio Grande.....................................................................................

375

Capítulo X – Abatido e dominado 76o Triunfo sem vitória...............................................................................................

383

77o Nas mãos de mascates..........................................................................................

386

78o Felices, gamas, bacalhaus....................................................................................

391

79o Façanhas de Emboabas........................................................................................

395

80o Do mato da traição ao ouro de Vianna.................................................................

400

81o O estupor do choque.............................................................................................

405

82o 6 de Março de 1817..............................................................................................

409

83o Um cotejo de heróis.............................................................................................

415

84o Sobre sangue generoso, lama bragantina.............................................................

424

o

85 Para Amaro Coutinho, Bernardo Teixeira...........................................................

429

Capítulo XI – A definitiva contaminação 86o Reações dissolventes e desorganizadoras............................................................

434

87o Finanças de degradados e economias de parasitas............................................... o

438

88 Os centros de mercancias e de governanças........................................................

447

89o Os juízes se vendem; as autoridades prevaricam.................................................

449

90o A purulência.........................................................................................................

452

91o Um consenso unânime.........................................................................................

459

92o O Brasil soberano – sob o trono fugido...............................................................

463

93o Um povo de bravos, para um go verno de infames...............................................

466

94o E foi isto o que veio fundar o estado Brasileiro...................................................

470

Capítulo XII – Transmissão de domínio 95o A montueira permanece.......................................................................................

477

96o Para colher a inevitável dependência...................................................................

482

o

97 O Império luso-brasileiro.....................................................................................

485

98o Da masorca chartista ao açougue dos Braganças.................................................

490

99o O melhor do loco-tenente e a sua ficada..............................................................

497

100o Quem fica é Portugal..........................................................................................

501

101o O primeiro governo brasileiro............................................................................

507

102o Os beneficiários da Independência.....................................................................

514

Apêndice – A História da Independência

1-32

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FICHA UTILIZADA NA ANÁLISE DOS TEXTOS SOBRE MANOEL BOMFIM

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Título do texto e data de publicação Área de atuação, nível e instituição Objetivo Livros de Bomfim analisados Hipótese geral Hipótese sobre o esquecimento do autor Temas destacados em Bomfim Referências a Bomfim (como o autor é apresentado) Autores relacionados / comparados a Bomfim Observações extras Metodologia Referências teóricas Analisa os estudos sobre Bomfim? Quais são citados? Apresenta dados biográficos? Quais os aspectos são destacados na biografia? Apresenta bibliografia de Bomfim?

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