Manoel de Barros: As bençãos

June 19, 2017 | Autor: Roberto Medina | Categoria: Contemporary Poetry
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Roberto Medina – escritor, crítico literário e professor de graduação e pós-graduação.
Manoel de Barros: As bênçãos
Um homem das letras, como Manoel de Barros, quando falece, valida o adágio árabe: "incendeia-se uma biblioteca". Nesse aspecto, podemos festejar não a perda, mas o ganho que as letras brasileiras tiveram durante a existência do poeta mato-grossense, pois o encontramos na tessitura de seus poemas, de sua arquitetônica poética e de sua cosmovisão. Mais do que nunca, resta-nos o convite para buscar a voz manoelina nos entremeios das linhas de seus versos, para, então, comungar com a poesia que subverte, que alça voos fora da asa da imaginação. Oxalá, compreendamos que: "Poeta / é uma pessoa / que reverdece nele mesmo."
Reverdecer: termo profundo para quem escreve e se inscreve. Tornar-se verde novamente. A verdura ou verdescência está no centro da poética de Manoel de Barros. Ele pôs-se a serviço do imaginário dos andarilhos, dos loucos, das aves, das plantas e das crianças. Colheu do chão as coisas "desinúteis" e as elevou ao panteão de Poesia. Como bom poeta (fazedor), dominou a língua e a linguagem para "transver" o mundo. É a miudeza que sobeja de humanidade naquilo que aprendeu, sobretudo, com Camões, Padre Vieira, Guimarães Rosa, Rimbaud, por exemplo. O poeta da cidadezinha de Corumbá foi colher olhos de ver em outras terras, em outras artes: cinema, música, escultura e pintura. Essas fontes, em sua poesia, desaguam nos seus inúmeros livros que causam enchentes nas almas dos leitores brasileiros e estrangeiros.
Basta sentirmos a poesia de Manoel de Barros. Isso mesmo, sentir com o "desregramento de todos os sentidos". Intelectualizar cansa a existência. Sigamos os conselhos do poeta, tentemos ser árvore. Essa visada é fundamental para a cosmovisão do fazer poético manoelino, pois há uma força a reintegrar o homem à natureza, dissipando-se, assim, a aspereza entre o sujeito e o objeto. Um poema, um final de tarde, um sapo, um mentecapto, um mineral ou um sorriso infantil talvez digam mais sobre o ser humano do que uma biblioteca inteira que seja lida, mas não introspectada. Sinal disso encontra-se nesta súmula vital: "Quando eu crescer eu vou ficar criança."
Para tatear a poética manoelina, é de bom tom considerar o alerta proferido por Octavio Paz: "Há muito poema sem poesia". A estatura literária do poeta mato-grossense justifica-se como portentosa, uma vez que foi construída desde 1937 e seguiu até os dias atuais. Nascido em 1916, teve 77 dos anos voltados para a escritura de poesia principalmente. A poesia manoelina chega, a partir da década de 80, ao público brasileiro em maior escala, rompendo os muros das universidades. É uma poesia que carrega o universo do pantanal mato-grossense (sem a bandeira de regionalismos), usa a linguagem contra e a favor de si mesma, trata do cosmo do ínfimo e das coisas e pessoas descartáveis para a sociedade de consumo – esses "trastes" e lixo servem para a poesia. Essa poesia que soa, muitas vezes, surrealista e que radicaliza o uso da metáfora.
Sobre o fazer poético de Manoel de Barros, experienciamos um escritor de poesia comprometido com o criar e o deformar realidades, buscando a linguagem "adâmica", "edênica" e "inaugural". O poeta nomeia seres, a partir do dialeto-rã, sendo uma ignorância útil para renovar a linguagem, tal como praticam o povo, a criança, os bêbados, os psicóticos e os primitivos. O conceito de poesia para Manoel de Barros legitima absolutamente o título de O Livro das Ignorãças (1993) que considera um "jogo à brinca. Penso que a fonte da poesia está no indescoberto. E que chegar-se no indescoberto é condão da ignorãça. Sei que as crianças, os tontos e os poetas têm esse condão de explicar o desconhecido pelo ainda mais desconhecido (ignotum per ignotus). E sei que o prêmio da irresponsabilidade e das jubilações, quem nos dá é a ignorância."
O "indescoberto" traduz-se enquanto caçada ininterrupta pela palavra inaugural, por aquilo que Manoel de Barros afirma ser o "criançamento das palavras", extrapola-se o movimento subjetivo, respondendo-se a todo aviltamento e rotulação do mundo, e pensamento coetâneo. O poeta escapa do que é contumaz e busca alcançar uma condição primitiva das palavras e, assim, consegue fraudar o imediatismo, a leitura facilitada, a banalização e a massificação cultural tão presentes hodiernamente.
Cito especialmente a obra O Livro das Ignorãças, pois nele encontramos – em grau mil – a poética do autor, sua cozinha literária. Manoel de Barros quando se posiciona acerca de seu labor, ele ressalva que "Inspiração eu só conheço de nome. O que eu tenho é excitação pela palavra. Se uma palavra me excita eu busco nos dicionários a existência ancestral dela. Nessa busca descubro motivos para o poema." Ele ainda declara que "O tema do poeta é sempre ele mesmo. Ele é um narcisista: expõe o mundo através dele mesmo. [...] O tema da minha poesia sou eu mesmo e eu sou pantaneiro. Então, não é que eu descreva o Pantanal, não sou disso, nem de narrar nada. Mas nasci aqui, fiquei até os oito anos e depois fui estudar. Tenho um lastro da infância, tudo o que a gente é mais tarde vem da infância."
Para entendermos um pouco mais da escritura do poeta (importante saber que ela não se acaba no gesto escritural, pois continua no leitor e em diferentes épocas), aceitemos, portanto, de certa forma, o desafio lançado por Jorge Luis Borges em "Pierre Ménard, Autor Del Quixote" (1939), para que nos empenhemos na aventura de autoria, de apropriação e de interpretação. Estando na encruzilhada da escritura, da leitura e da interpretação, resta-nos restituir o sentido do texto. Pomos, então, em movimento a máquina textual preguiçosa. Mas o sujeito escrevente (a pessoa biográfica, "de carne e osso") fica num segundo plano. Observemos que o escritor antes era tido como ser inspirado pelas musas, por Deus, pelo próprio gênio, pelo inconsciente. Neste momento, vamos resgatá-lo na linguagem (valem-nos os escritos – os livros – de Manoel de Barros). Seu "corpus" ainda pulsa artisticamente no corpo do texto, da língua e da linguagem. Podemos segui-lo na poesia pelos rastros impressos na escrita. Ainda afirma Manoel de Barros que o poeta é como a lesma: escreve com o corpo.
O próprio poeta Manoel de Barros vem ao nosso socorro, "falando" poeticamente que "No descomeço era o verbo./ Só depois é que veio o delírio do verbo./ O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: /Eu escuto a cor dos passarinhos.". É possível inferir no "descomeço" um "verbo" que se faz palavra delirante e que é proferida pelo autor/"criança". O ato de dizer, de enunciar é posicionar-se autoralmente, para, assim, assegurar o sinestésico da cor da natureza, dos pássaros, da vida que brota pelo sentido projetado e capaz de se harmonizar no ser leitor. Passamos a notar sinceridade na afirmativa do crítico Terry Eagleton: "Ler versos (...) é quase um trabalho físico, no momento em que o olho se esforça para desvendar a sintaxe complexa e para negociar um caminho através do matagal eriçado de nomes (...)".
Para o ato de leitura dos poemas de Manoel de Barros, podemos ter em mente o que Jorge Luis Borges, em Esse ofício do verso, afirmou sobre o universo dos objetos físicos, ou seja, do livro, no instante em que esclarece que [o livro] "É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras – ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos – saltam para a vida e temos uma ressurreição da palavra." Se a palavra ressuscita, deixemos o próprio poeta justificaar a existência como benção ou bênçãos. Na verdade, somos nós leitores e colegas de ofício escritural de Manoel de Barros, o "Neco" para os íntimos, que agradecemos:
As bênçãos
Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.

(Barros, Manoel de. Poesia completa/Manoel de Barros - São Paulo: Leya, 2013. p. 465).





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