Manosolfa das funções harmônicas

July 4, 2017 | Autor: R. Dourado Freire | Categoria: Music Education, Music Theory, Educação Musical, Teoria Musical
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UnB /Departamento de Música Prof. Ricardo Dourado Freire

A manosolfa das funções harmônicas Publicado em Tônica, Revista do Departamento de Música da UnB. 2005.

Prof. Dr. Ricardo Dourado Freire Departamento de Música da UnB [email protected] Sumário: O ensino de música tendo como paradigma principal a percepção musical depara-se em limitações quanto à maneira de avaliar a aprendizagem. O ensino da harmonia muitas vezes é limitado pela falta de recursos pedagógicos na interação entre professor e aluno. O uso de recursos da manosolfa anteriormente utilizados por Curwen, Kodaly, Villa-Lobos e Gordon foram adaptados por Freire à necessidade do ensino de harmonia. O uso destes sinais permite uma comunicação não-verbal imediata que avalia em tempo real como a música está sendo percebida auditivamente. Palavras-chave: educação musical, percepção musical, harmonia, avaliação autêntica, manosolfa.

A aprendizagem das funções harmônicas nas aulas de música apresenta severas limitações referentes a forma de avaliação do conhecimento dos alunos. Na maioria das situações de aprendizagem, o professor consegue apenas aferir se os alunos aprenderam o conteúdo por meio de trabalhos escritos, perguntas verbais, ditados escritos ou provas. No entanto, nenhuma destas técnicas oferece uma avaliação rápida do que foi apresentado, muitas vezes o aluno espera mais de uma semana para receber a avaliação de uma atividade feita em sala. Faz-se necessário que os alunos possam exteriorizar o seu conhecimento por meio de sinais práticos e objetivos, que sejam facilmente reconhecíveis pelo professor e pelos colegas, demonstrando o que foi realmente aprendido em sala. O desenvolvimento de uma técnica pedagógica destinada à Harmonia partiu da necessidade de comunicação mais efetiva entre o professor e alunos em uma aula de Harmonia 2 do curso de música da Universidade de Brasília. Fazia-se necessário o desenvolvimento de habilidades específicas dos alunos em relação ao aprendizado harmônico incluindo: percepção imediata das funções harmônicas em peças eruditas e populares, harmonização imediata de melodias simples, solfejo e harmonização simultâneas a primeira vista, composição e harmonização simultâneas,

e análise de estruturas

musicais a partir do referencial da percepção auditiva. No entanto, a falta de uma ferramenta eficiente na exteriorização dos processos cognitivos de percepção musical limitava a verificação da aprendizagem do conteúdos propostos. O conceito de avaliação autêntica traduzida do original em inglês authentic assessment começou a ser discutido entre professores primários com o movimento conhecido como Whole Language

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(Linguagem Total) iniciado na Nova Zelândia e levado para os EUA no final da década de 1980. Este movimento questionava as abordagens tradicionais do ensino mecânico da leitura e escrita lançando um novo paradigma de como ensinar e avaliar a linguagem. O carro chefe desse novo paradigma é precisamente considerar a autenticidade das experiências pedagógicas, i.e., um ensino que tenha um propósito real que vise uma aprendizagem funcional de acordo com a realidade dos alunos. Alterando os paradigmas do ensino mudaram-se os paradigmas de avaliação da aprendizagem e passou-se a questionar então a validade dos testes padronizados de leitura, adotados na maioria dos estados dos EUA. Desde então foram realizadas várias tentativas de avaliar a aprendizagem autenticamente propondo atividades pedagógicas que sejam significativas aos alunos em um contexto real ou mais próximo da realidade possível. Authentic assessment refers to assessment tasks that resemble reading and writing in the real world and in school. Its aim is to assess many different kinds of literacy abilities in contexts that closely resemble actual situations in which those abilities are used. Performance assessment is a term that is commonly used in place of, or with, authentic assessment. Performance assessment requires students to demonstrate their knowledge, skills, and strategies by creating a response or a product. (VALENCIA, 2001)1

Lev Vigotsky coloca a importância do uso de sinais como forma de mediação da aprendizagem e o uso de ferramentas para ampliar a percepção dos objetos de conhecimento. Para tanto Vigotsky desenvolveu o conceito de “zona de desenvolvimento próximo” (zone of proximal development) no qual o conhecimento é assimilado por meio de sinais construídos culturalmente a partir de significados relevantes para o grupo que os usa. The notion of tool mediation, or cultural mediation, is embedded in the notion of semiotics. For instance, the use of same tool in different settings, or communities, may imply on different social relationship. This is because tools have different meanings according to the different conditions in which they were created and used. The meanings, the codes/values that surround specific tool change from community to community. Which leads us to define semiotics as related to the use of signs by a specific community. As any human symbolic operation, the notion of semiotics is based on sign systems in relationship with the different level of abstractions, which imply on diverse degrees of mental activity at the same time that regulates human behavior. (FREIRE, 2000, pag. 46)2

O estabelecimento de um novo paradigma de educação musical baseado no conceito de avaliação autêntica vinculado à teoria de Vigotsky apresenta novos desafios para um professor de música. Primeiro usar a avaliação como ferramenta pedagógica que permita dirigir o conhecimento do 1

Avaliação autêntica se refere aos tipos de atividades de avaliação que se assemelham às atividades de escrita e leitura no mundo real e na escola. O seu objetivo é avaliar as diferentes formas de habilidades de alfabetização em contextos que estão diretamente associados às atividades nas quais estas habilidades serão usadas. Avaliação de desempenho (performance) é um termo que é comumente usado no lugar ou em conjunto com avaliação autêntica. Avaliação do desempenho requer que o estudante demonstre o seu conhecimento, habilidades e estratégias ao criar respostas práticas ou um produto específico. 2

A noção de ferramentas de mediação, ou mediação cultural, está inserida na noção de semiótica. Por exemplo, o usa o de uma mesma ferramenta em diferentes situações, ou comunidades, pode implicar em diferentes formas de relações sociais. Isto acontece porque as ferramentas possuem diferentes significados de acordo com as condições nas quais estes foram

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aluno para o que ele necessita aprender oferecendo feedback rápido e reforçando o que o aluno já sabe. Segundo, partir da prática de habilidades musicais para desenvolver o conhecimento do conteúdo desejado e usar o conhecimento como forma de aperfeiçoamento musical constante. A manosolfa tem sido tradicionalmente usada em várias metodologias de educação musical, principalmente no trabalho com corais infantis ou corais amadores. O sistema de manosolfa foi inicialmente usado na Inglaterra por John Spencer Curwen (1816-1880), por volta de 1860, que implementou o sistema de solfejo relativo auxiliado por sinais, designados em português como manosolfa. O sistema de ensino de Curwen foi posteriormente adotado e adaptado por Zóltan Kodály (188?- 196?) e hoje está fortemente associado à metodologia Kodály que adotou tanto sistema de solfejo relativo quanto o uso da manosolfa de Curwen. (Pollys, Carder, 1995) No Brasil, o precursor do uso de sinais com a intenção de auxiliar na aprendizagem musical foi o paraibano Gazzi de Sá que criou gestos para indicar figuras rítmicas no final da década de 1920. Mas a pessoa que popularizou o uso da manosolfa foi Heitor Villa-Lobos a partir de 1932. VillaLobos foi convidado, em 1931, a atuar como orientador de Música e Canto Orfeônico no então Distrito Federal (PAZ, 2000, 13). Durante este período, Villa-Lobos organizou grandes corais de até 40 mil pessoas e utilizava uma técnica própria de manosolfa para auxiliar na regência. A técnica da manosolfa apresenta várias vantagens no aprendizado do solfejo em grupo, principalmente uma comunicação não-verbal efetiva entre regente e grupo. Os sinais mostram quais as notas que devem ser cantadas oferecendo um subsídio visual comum para todos os participantes. O uso da manosolfa é bastante comum em países da Europa, Ásia e nos EUA. No Brasil, o uso da manosolfa foi duramente criticado por educadores musicais que ofereceram uma oposição intransigente às idéias de Villa-Lobos, criando um ambiente hostil ao uso da manosolfa. (PAZ, 2000) O uso de manosolfa de graus harmônicos têm sido usada por vários educadores, principalmente o estadunidense Edwin Gordon, que enfatiza a audiação3 dos graus harmônicos no acompanhamento de canções simples. Gordon usa sempre o número dos graus para demonstrar que função deve ser cantada. Por exemplo, o número 1 representa a função tônica, 5 a função de dominante, 4 a subdominante, 2 a supertônica. Este uso é muito eficaz na aprendizagem das funções tonais e no acompanhamento de melodias simples. No entanto, em um contexto na qual a Harmonia é mais elaborada com a apresentação de acordes de sétima, acordes alterados e acordes de empréstimo modal faz-se necessário um repertório de sinais que apresente uma melhor definição de cada função tonal. criados e usados. Os significados, os códigos/valores que acompanham uma ferramenta específica mudam de comunidade para comunidade.

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O objetivo desta pesquisa foi a criação de um repertório de gestos que permitisse a representação semiótica das funções tonais por meio da manosolfa. Os gestos devem ser simples e claros, usando apenas as duas mãos, para que qualquer aluno possa associar o que ele está ouvindo ao gesto apresentado. Os gestos devem indicar: 1) Os graus que devem ser cantados por meio de números (1,2,3,4,5,6,7) 2) As qualidades dos acordes cantados (Maior, menor, Diminuto, Aumentado), 3) As possíveis alterações cromáticas dos graus (bemol, sustenido, bequadro), 4) distinção entre acorde no estado fundamental e suas inversões; e 5) distinção entre acordes perfeitos e acordes de sétima. A manosolfa representa um meio de comunicação gestual entre professor e aluno. O professor poderá colocar um CD para os alunos ouvirem e apresentar, ao mesmo tempo, a progressão harmônica da peça apresentada. Desta maneira, o professor poderá reforçar visualmente a aprendizagem do aluno por meio de constante feedback do que ele está percebendo auditivamente. O uso da manosolfa pode ser um meio de visualização do conhecimento do aluno. Desta maneira o professor poderá cantar uma melodia e pedir que um determinado aluno apresente a harmonização desta melodia. A apresentação desta melodia será avaliada em tempo real, permitindo uma melhor avaliação do que foi efetivamente assimilado pelo aluno. As correções e sugestões do professor podem ser apresentadas imediatamente ao aluno, reforçando positivamente os acertos e indicando rapidamente soluções para as dúvidas dos alunos. O objetivo final será que os alunos possam desenvolver a capacidade de harmonizar melodias imediatamente e, ao mesmo tempo, demonstrar sua harmonização para os colegas e para o professor. O uso de números ao invés dos nomes de notas deve-se à estrutura do ensino da harmonia que já usa números para indicar as funções harmônicas. Alguns teóricos utilizam apenas numerais maiúsculos enquanto outros usam maiúsculos e minúsculos para indicar respectivamente os graus maiores e menores. Aqui deparei-me com a questão de como escolher um sistema de notação que proporcionasse a maior grau de generalização e coerência entre escrita e sinal. A escolha final foi o sistema de cifragem que usa apenas numerais com letras maiúsculas para indicar os graus da escala diatônica, nesta situação uma mão mostra o grau e a outra mão mostra a qualidade do acorde e suas possíveis alterações. Na mão direita os números indicam os graus diatônicos de uma determinada escala maior. No caso de uma escala menor será considerada a forma natural como referencial básico. 3

Audiação é definida como a capacidade de ouvir e compreender música mentalmente, mesmo que o som não esteja fisicamente presente. A audiação está relacionada ao som da mesma maneira que o pensamento está relacionado à linguagem verbal. (GORDON, 2000, 16)

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Graus diatônicos:

IV

I

V

VI

VII

As Inversões são indicadas pelo ângulo do sinal: a posição vertical indica o estado fundamental, ângulo de 45° indica a primeira-inversão, ângulo de 90° indica a segunda-inversão e o ângulo de 180° indica a 3a inversão.

Estado Fundamental 1a Inversão

2a Inversão

3a Inversão

A mão esquerda indica a qualidade dos acordes e as possíveis alterações dos graus diatônicos.

Bemol

Sustenido

Bequadro

Maior

Menor

Diminuto

Aumentado

Dominante

A mão direita também pode indicar acordes de sétima quando as costas da mão estiverem voltadas para o público.

II 7m (em tonalidade maior)

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O uso de uma ferramenta pedagógica permitiu enfatizar o processo de aprendizagem nas competências musicais e não somente nos conteúdos trabalhados além de desenvolver um vocabulário gestual voltado para a linguagem musical. Após dois anos de uso da manosolfa foi possível identificar alguns aspectos positivos no uso de sinais como ferramentas pedagógicas no ensino da harmonia. 1. Comunicação visual efetiva entre professor e aluno ou entre alunos valorizando a linguagem musical e os aspectos musicais acima dos aspectos teóricos. 2. Visualização por parte do professor e dos colegas do domínio do conteúdo musical pelos alunos. 3. Referencial visual para a audição interna (audiação) das funções harmônicas. 4. Desenvolver a capacidade de harmonizar sem o instrumento harmônico (piano ou violão), tendo um grupo vocal de alunos como fonte de produção sonora. 5. Avaliar a capacidade de análise dos alunos a partir da performance usando a manosolfa na apresentação de peças musicais. 6. Diálogos por sinais, usando a manosolfa. Alunos e professores podem mostrar uns aos outros o que estão ouvindo em que parte da música e discutirem soluções musicais para a harmonização. 7. Avaliação em tempo real da percepção dos alunos demonstrada pela manosolfa 8. Correção em tempo real dos exercícios de harmonização dos alunos, o professor pode ver e imediatamente mostrar a correção 9. Criar uma visualização para análise harmônica de peças musicais, incentivando a interação musical com a partitura de estudo. A predominância de um modelo de aprendizagem no qual o ouvir precede a escrita musical necessita de novas técnicas de avaliação. A ênfase no processo de aprendizagem baseado em competências e habilidades exige que novos procedimentos didáticos sejam criados para promover a eficiência da comunicação entre professor e aluno. A pesquisa sobre a manosolfa das funções tonais permite que professores e alunos aperfeiçoem uma comunicação que reflita o que eles estão ouvindo em tempo real permitindo que aprendizado da harmonia seja uma atividade eminentemente prática. A manosolfa das funções harmônicas aperfeiçoa um conceito de aprendizagem baseado na interação entre som e gesto, usado com muita propriedade por Curwen, Kodaly, Gordon, Gazzi de Sá e Villa-Lobos. A adaptação de uma técnica pedagógica para as necessidades brasileiras no séc. XXI, permite que alunos e professores discutam o conteúdo musical durante as aulas privilegiando a experiência e os conhecimentos oriundos desta experiência como base para a aprendizagem musical.

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Referências Bibliográficas LANDIS, Beth and Polly Carder. The Kodály Approach. IN: CARDER, P. (Ed.) The Eclectic Curriculum in American Music Education. Reston-VA, MENC, pp. 57-74, 1990. FREIRE, Sandra. Dialogue in the Classroom: The Intersection Between Paulo Freire And Lev S. Vygtosky. Tese de Mestrado. East-Lansing, Michigan State University, 2000. GORDON, Edwin. Teoria de Aprendizagem Musical. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. PAZ, Ermelinda. Pedagogia Musical Brasileira no Século XX. Brasília, Editora Musimed, 2000. VALENCIA, Sheila. What is Authentic Assessment. http://www.eduplace.com/rdg/res/litass/auth.html. 2001.

Ricardo Dourado Freire- Clarinetista e Educador Musical, professor do Departamento de Música da Universidade de Brasília. Formado pela Universidade de Brasília (1991) na classe do professor Luiz Gonzaga Carneiro, realizou Mestrado (1994) e Doutorado (2000) na Michigan State University, sendo orientado pela profa. Elsa LudewigVerdehr. Fundador e primeiro presidente da Associação Brasileira de Clarinetistas, têm trabalhado continuamente pela divulgação da clarineta e pela integração dos clarinetistas brasileiros. Coordena o programa “Música para Crianças” da Universidade de Brasília, interagindo com crianças de 0 a 5 anos e suas famílias a partir de uma abordagem cognitivista da aprendizagem musical. Suas publicações abrangem as áreas de Performance, Educação Musical e Teoria Musical.

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