ISSN: 2358-758X | Número 4 | Ano 2017
O objetivo do presente artigo é propor uma reflexão sobre manuais de civilidade e sua circulação no Brasil a partir da minha fonte de pesquisa de mestrado, a coleção Biblioteca do Lar, lançada em 1963. Esses manuais fazem parte do acervo pessoal da minha mãe, já falecida. Na década de 1960 ela foi estudante de uma Escola Normal e, como veremos adiante, esse tipo de manuais de
MANUAIS DE CIVILIDADE E ESCOLA NORMAL: A BIBLIOTECA DO LAR, ENQUANTO MATERIAL DIDÁTICO, ARQUIVO PESSOAL E FONTE HISTÓRICA José Roberto Corrêa Such 1
civilidade estavam presentes na educação feminina como parte do conteúdo ensinado. E ao longo das décadas seguintes, tais manuais permaneceram no acervo de livros da família, resistindo a mudanças de domicílio, a “faxinas” e a outros processos subjetivos que acabam por determinar “o que fica” e o que é “posto fora”. Assim, o objetivo é pensar a trajetória desta fonte desde sua aquisição pelo
RESUMO Manuais de Civilidade circulam no Brasil desde o século XIX, porém na primeira metade do século XX sua difusão aumenta e se ‘democratiza’, principalmente pelo uso de livros desta natureza no processo de educação nas Escolas Normais no Brasil, destinadas para mulheres futuras professoras. O presente artigo tem por objetivo analisar o lugar desses manuais no processo de educação dessas escolas, como eles circulavam e como eles eram utilizados. A seguir proponho uma reflexão sobre uma coleção de manuais específica, a Biblioteca do Lar, publicada na década de 1960 e sua relação com a discussão sobre os Arquivos Pessoais a partir da relação entre esses livros e sua proprietária – minha mãe, ex-aluna de Escola Normal – e a trajetória de quase cinco décadas dessa coleção de livros no acervo familiar, de material didático de uma estudante a fonte de pesquisa acadêmica.
pai de uma estudante de Escola Normal, a permanência no acervo de uma professora e, posteriormente,
dona-de-casa
até
a
transformação desses livros em fonte para uma pesquisa de mestrado. Para tanto, pretendo dialogar com discussões a respeito dos Arquivos Pessoais, bem como tentar situar essa fonte específica em um contexto mais amplo da circulação deste tipo de literatura – os manuais de civilidade – no Brasil, sobretudo entre o público feminino.
Introdução
O objetivo da minha pesquisa de mestrado é o processo de educação da família
1
Mestrando do programa de pós-graduação em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. Email:
[email protected]
burguesa brasileira, à luz da coleção de livros Biblioteca do Lar, conjunto de seis tomos que apresentam, além de receitas culinárias, três 1
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volumes dedicados às “boas maneiras” – tanto
lançado pela Gráfica e Editora “Edigraf” S.A.
em família quanto em sociedade – bem como
de São Paulo. Em nenhum dos volumes há um
orientações
casa,
indicativo preciso sobre a edição ou a data da
constituindo assim uma espécie de manual
publicação, mas tomamos a data de 1963
para uma família “ideal”. Essa referida
como referência a partir de modelos de
coleção foi escrita por Iside M. Bonini e
convites para festas contidos no Tomo I –
lançada pela Editora Edigraf no início dos
Boas Maneiras (Em Família) que usam essa
anos 60, o que pode nos dar uma idéia de um
data como referência. Os três primeiros
“retrato
dita
tomos, escritos por Helena Bueno, são
“tradicional” justamente em um período de
compostos apenas por receitas culinárias. O
grandes transformações econômicas e sociais
foco principal da minha pesquisa são os três
no Brasil, mudanças essas relevantes para a
últimos volumes (que são indicados pela
transformação do conceito de família no
numeração I, II e III, novamente), escritos por
processo histórico brasileiro. Deste modo,
Iside M. Bonini e divididos em: a) Tomo I –
minha proposta é realizar uma discussão pelo
Boas Maneiras (Em Família), b) Tomo II –
viés da perspectiva de gênero, buscando
Boas Maneiras (Em Sociedade) e c) Tomo III
pensar as relações de gênero que se dão entre
– Orientação Indispensável à Família.
gerais
ideal”
de
à
dona
uma
de
família
os membros de uma família – pai, mãe e
O Tomo
I, Boas Maneiras em
filhos –, o que se esperava de cada um desses
Sociedade, apresenta orientações para a
sujeitos, seus limites, as relações entre todos
família em sua relação com o público: a
nesta configuração de “família nuclear” e suas
cortesia, as apresentações, o cumprimento, “a
ações tanto no público quanto no privado; e
arte de conversar e ouvir”, as atitudes em
também pensar a relação desses manuais de
situações diversas (em filas, na rua, no
civilidade com a história da leitura, pois,
elevador,
como nos lembra Roger Chartier (1999), o ato
comportamento na Igreja, as orientações para
da leitura nunca é um processo passivo, mas
a prática da beneficência, as visitas e “a arte
sim de apropriação, invenção e produção de
de receber”, modelos de convites, disposição
significados, de modo que a recepção do
da mesa para cada tipo de ocasião e evento, o
discurso desses livros pelo sujeito que os lê
hábito de fumar, orientações a respeito de
nunca é determinada por autores e editores,
presentes, gorjetas, correspondências, conduta
sendo o ato de leitura também um processo de
em viagens, etc.
criação de novos sentidos pelo leitor. A
coleção
Biblioteca
do
no
comércio,
etc.),
o
No Tomo II, Boas Maneiras em Lar
Sociedade são presentes orientações a respeito
compreende um conjunto de seis livros,
da casa (decoração, administração, arrumação 2
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– o sistema taylorista), beleza e regime (para as mulheres) e as noções de boas maneiras, que versam sobre cada integrante da família, dão orientações sobre como educar os filhos, que esportes são indicados para a prática (esportes geralmente associados à elite, como o hipismo), educação higiênica, estética e religiosa, senso de economia no lar e o trato
Estar no mundo, habitar a urbis implica uma comunhão com os outros, o que chamamos civilizar-se em sociedade, ou seja, direcionar o comportamento a uma normatização das atitudes no intuito de moldar posturas, desde a primeira hora do dia até o momento de recolher-se para o descanso. São estes os dispositivos centrais divulgados nos manuais de civilidade – compêndios utilizados com fins à propagação das regras de conduta percebidas como fundamentais para possibilitar a conformação das normas construtoras de sensibilidades na sociedade moderna que se edificava e consolidava a partir dos finais do século XVIII2
com criados e empregados. Também possui orientações
para
a
organização
de
acontecimentos e festas na família, tais como sacramentos, aniversários, bodas e festas religiosas, cerimônias de “ano-bom” e até boas maneiras “na hora do sofrimento” (doenças, morte, orientações em relação ao serviço de funeral e sepultamento, inclusive uma descrição do tempo de luto de acordo com a proximidade de parentesco com a pessoa falecida). E no tomo III – Orientação Indispensável à Família, há orientações sobre economia
doméstica,
maternidade,
puericultura, socorros médicos de urgência e do “Regime dos Astronautas (Adaptado à alimentação
dos
brasileiros)”,
que
compreende uma série de orientações da época para a educação alimentar visando controlar o excesso de peso.
No Brasil, esses manuais começaram a circular no final do século XIX, no momento em que as cidades brasileiras começam a crescer, com a mudança da elite agrária para o espaço urbano e uma nova burguesia que começava a crescer no país. O mais antigo manual civilidade a circular no Brasil é o “Código do Bom Tom”, escrito por J.J. Roquette em 1845,
que em 1900 já se
encontrava em sua sexta edição. Entre as décadas de 1920 e 1960, manuais de civilidade passaram a compor o material didático usado em aulas de Civilidade (ministradas sob vários nomes, tais como ‘Trabalhos
Manuais,
‘Boas
Maneiras’,
Conhecimentos Gerais’, etc) como parte do currículo
oficial
para
a
formação
de
professoras nas Escolas Normais do país, especialmente nos estados da região Sul3. Essa escolarização de manuais de
1. Manuais de Civilidade e as Escolas Normais
civilidade nas primeiras décadas do século XX nos permite pensar o que uma sociedade considerava que deveria ser transmitido por
Sobre os manuais de civilidade, afirma Cunha (2007)
2 3
CUNHA, CECCHIN, 2007, p.2 CUNHA, 2006
3
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instituições de educação no período. Muito
civilidade
além apenas de ensinar etiqueta e boas
‘democratização’ das mesmas, como parte de
maneiras, o uso desses manuais buscava
uma necessidade de ampliar a propagação
preparar professoras para a vida em sociedade
dessas
e a formação de alunos “patriotas e
conformação
perfeitamente afinados ao modelo católico4”,
pretendia se estabelecer, o que foi facilitada
normalizando
pelo gradativo aumento da alfabetização no
comportamentos
visando
práticas de sociabilidade que regulariam uma pessoa “bem educada”. Se na primeira metade do século XX no Brasil havia uma intensa preocupação
com
modernização configuração
e
os
processos
urbanização
sócio-política,
é
em
de sua
pertinente
pensarmos nessas leituras como uma forma de conformação e internalização de regras pautadas pelos preceitos de polidez, elegância e cortesia no âmbito de sociabilidades aburguesadas, bem como na associação entre as idéias de “urbanidade” e de “civilizado”. Pois, se inicialmente esses “textos formadores” de bons cidadãos visavam o alcance das classes mais altas em que esses livros circulavam, justamente com a intenção dessas regras de boas maneiras servirem como mecanismos de distinção social através do refinamento de seus modos e maneiras em relação às demais classes sociais, nesse período os discursos contidos em livros desta natureza buscaram se dirigir a todas as classes, adaptando
seus
postulados
às
diversas
condições que possuía a maior parte da sociedade
brasileira.
Portanto,
pode-se
considerar essa escolarização das leituras de Idem, p. 351
regras
um
que da
processo
contribuiriam
organização
de
para
social
a que
Brasil e pela possibilidade de se comprar livros, com o barateamento de suas edições. A Escola Normal tinha como finalidade formar professores para lecionar no ensino primário.
Na
época,
o
magistério
era
considerado uma função própria para mulheres, de modo que podemos considerar que, apesar da criação da Escola Normal ter sido originalmente destinada para homens, ela acabou se tornando um espaço de grande importância para a formação educacional e de profissionalização para as jovens mulheres, pois poderia significar uma oportunidade de ascensão do ambiente doméstico para a independência econômica e social5. Assim, considerando que a Escola Normal no século XX era um espaço feminino de educação, podemos traçar um paralelo com o fato da figura da mãe ser o principal alvo das instruções
dirigidas
pelos
autores
desses
manuais de civilidade, conforme afirma Cunha. Afinal, era à mulher delegado o papel da educação das crianças em seus primeiros anos, considerada pelos autores destes manuais como a mais importante na tarefa da “modelagem” dos comportamentos6. 5
4
como
6
VALENÇA, 2002 CUNHA, 2007
4
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Nessa perspectiva, as prescrições desses
graduação abandonou o ramo industrial e
manuais envolvem sempre a preocupação de
seguiu carreira como advogado, passando a
evitar nas crianças comportamentos abusivos, e
trabalhar para uma das indústrias madeireiras
também com freqüência fazem referência e dão
da região. Em 1969, a empresa para qual ele
conselhos sobre os cuidados necessários a
trabalhava abriu uma representação na cidade
serem tomados em relação à saúde e a higiene
de Curitiba/PR e a família mudou-se para
nas mesmas. Além disso, Manuais de Civilidade
aquela cidade. Minha mãe, então com 15
e Etiqueta propõe auxílio na construção familiar e
conformação
do
caráter
infantil
para
estabilizar sua atuação no corpo social enquanto adulto; colaborando assim para a criação de novos
hábitos
e
costumes,
embora
seja
necessário ressaltar que a leitura desses manuais é sempre transversalizada pelas práticas que possibilitam sua recepção, e não se pode assim julgá-los apreendidos em sua totalidade.7
anos, foi matriculada na Escola Normal Colegial de Educação Familiar daquela cidade. Esse
estabelecimento
de
ensino
católico funcionou na cidade de Curitiba na segunda metade do século XX (1953-1986) e se tornou referência na cidade como centro de formação feminina. Começando como um “curso de preparação para o casamento”
2. A Biblioteca do Lar: de material didático
(destinado para moças de elite, era um ponto de referência e de encontro para o público
a arquivo pessoal
masculino na cidade, conhecido como “caçamencionado,
marido”), a instituição marcou época na
minha fonte de pesquisa é uma coleção de
sociedade curitibana. Essa escola possuía uma
livros em cuja composição há manuais de
proposta
civilidade, fonte essa pertencente a minha
Normais daquela cidade, vinculada aos
falecida mãe, Regina Célia, que foi estudante
objetivos
de uma Escola Normal no fim da década de
mantenedora da instituição, que era a
1960 e início da década de 1970.
sensibilização e a “conscientização” das
Como
anteriormente
Nascida em 1954, ela era a terceira
mulheres
diferente da
das
demais
congregação
privilegiadas
Escolas religiosa
economicamente
filha de um pequeno industrial do ramo
através do contato com a realidade social das
alimentício da cidade de Porto União-SC. Na
camadas marginalizadas8 Minha mãe cursou nessa escola entre
década de 1960 seu pai começou a cursar da
os anos de 1969 e 1971. Analisando a sua
Universidade do Paraná, e após a sua
documentação (boletim, histórico escolar e
direito
7
na
CUNHA, 2007
faculdade
de
direito
8
FUCKNER, 2000
5
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trabalho de conclusão de curso) podemos
trabalho com mães carentes como uma
traçar
permitem
tentativa de levar a essas pessoas uma idéia
relacionar a coleção de livros Biblioteca do
do que era considerado como “civilizado” por
Lar com o conteúdo do curso. No conteúdo
uma camada burguesa do período.
alguns
paralelos
que
dos segundo e terceiro anos do curso haviam dois
grupos
intitulados
minha mãe retornou para a cidade de Porto
“Educação para o Lar” (que compreendia
União. No ano seguinte, minha mãe começou
Administração do Lar, Relações Sociais,
a cursar faculdade de Pedagogia na Faculdade
Puericultura e Educação Familiar) e “Artes
Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de
Femininas” (que compreendia Molde
União
Costura,
de
disciplinas
Ao final do ano de 1971, a família de
Nutrição,
Culinária,
e
Trabalhos
da
Vitória/PR,
cidade
vizinha,
concluindo sua graduação no ano de 1975.
Manuais, Decoração de Ambientes e Música).
Mas
Nestes grupos de disciplinas é possível
professora por pouco tempo. Casou-se em
relacionar
manuais
1978, passou alguns anos residindo em outro
anteriormente citados: questões como etiqueta
município apenas como dona de casa, voltou
e boas maneiras em sociedade com as
para a cidade natal e para o mercado de
relações sociais, e as boas maneiras em
trabalho durante a segunda metade da década
família dentro da educação familiar. Como
de 1980 ocupando posições administrativas
anteriormente discutido, no contexto histórico
até o início da década de 1990, quando
da época marcado pela urbanização, havia nos
decidiu deixar o mercado de trabalho e tornar-
discursos desses manuais uma necessidade de
se dona de casa até o ano de seu falecimento
‘democratizar’ essas noções de ‘civilidade’; o
em 2010. E esses manuais foram mantidos
trabalho de conclusão de curso realizado pela
entre seus objetos pessoais, mudaram de
minha mãe foi um projeto de “higiene
domicílio, de cidade e permaneceram até hoje.
alimentar” aplicado no Posto de Puericultura
Ela nunca falou sobre esses manuais em
Plínio de Mattos Pessoa, em um bairro
específico, e pouco falava sobre sua formação
carente da cidade de Curitiba. No conteúdo do
na Escola Normal e sua breve carreira como
projeto, além de noções de higiene, nutrição e
professora. Como esses livros resistiram ao
culinária e puericultura, há tópicos de
tempo? Por que foram guardados? Diante da
“administração do lar” e “relações sociais”.
impossibilidade de perguntar diretamente para
Como
a
o
conteúdo
anteriormente
dos
mencionado,
se
o
acabou
sua
exercendo
proprietária,
me
a
carreira
resta
de
enquanto
objetivo desta Escola Normal era relacionar
pesquisador que os utiliza como fonte refletir
moças
a partir das discussões sobre os arquivos
privilegiadas
marginalizadas,
podemos
com
camadas
associar
esse
pessoais. 6
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prática é determinada pelas diferentes 3. A Biblioteca do Lar: de arquivo pessoal a
funções pessoais desempenhadas por um
fonte de pesquisa.
indivíduo (esposa, amante, irmão, pai, profissão, escola, universidade, etc), que
A morte, o corpo posto no esquife, o enterro e, depois, na casa do defunto, uma descoberta: uma mala conservada sob o leito do morto. Seu outro corpo. No cofre, um conjunto de papeis pessoais, coleção de lembranças de episódios de vida: segredos, um “jardim secreto”; aqui, um engajamento político, ali, uma paixão amorosa ou uma doença inconfessável. A abertura da mala e a leitura dos arquivos de uma vida; desvelamento do que foi subtraído para ser conservado; pequeno monumento erigido a si mesmo; recortes de jornal, cartas, mas também, para o herói das brigadas internacionais um saquinho de terra da Espanha, ou, para a mulher do fazendeiro, uma série de caderninhos íntimos9
geram
no
indivíduo
posturas,
comportamentos e responsabilidades que se estendem aos “comportamentos de registro”. Isso determina se tais registros serão guardados de forma permanente ou descartados. Os motivos podem ser legais (como
documentos)
ou
por
uma
necessidade fundamental de identidade pessoal subjetiva (por exemplo, cartas de
Assim Philippe Artières classifica a prática
do
a
um documento perde sua funcionalidade
constituição de um “segundo corpo”,
(o prazo de certos documentos que
composto
pessoais,
prescreve em cinco anos ou o fim de um
lembranças de episódios de vida. É sobre
relacionamento que leva cartas ao lixo ou
todo
ao fogo).
um
autoarquivamento:
amor). E o descarte pode ocorrer quando
por conjunto
papéis de
gestos,
que
transformam simples práticas comuns em
Em um texto anterior11, Philippe
‘pequenos altares singulares’ que o autor
Artières
reflete, práticas específicas de um outro
relacionadas ao ato de “arquivar a própria
tipo de fabricação de arquivos, diferente
vida”. Segundo o autor, são poucos os
daquela dos arquivistas profissionais que
acontecimentos em nossas vidas que não
trabalham com arquivos institucionais.
deixam
propõe
vestígios
algumas
escritos,
reflexões
porém
só
Os arquivos pessoais possuem uma
conservamos uma pequena parte dos
grande importância para os indivíduos.
mesmos. Isso porque muitos registros se
Como
a
perdem
por
funcionalidade de um arquivo pessoal
retemos
apenas
para descrever a vida de uma pessoa
constantemente realizamos triagens em
depende de como essa pessoa guardou e
nossos
descartou seus documentos pessoais. Essa
jogamos
nos
mostra
McKemmish10,
certas
papeis: fora
práticas,
alguns
elementos
guardamos outras,
porque e
alguns,
mudamos
de
domicílio, realizamos “faxinas”. E quando 9
ARTIÈRES, 2014, p.45. MCKEMMISH, 1996
10
11
ARTIÉRES, 1998
7
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nós mesmos não o fazemos, outras
prontidão
pessoas se encarregam de limpar as
apresentar seu inventário: nosso arquivo
gavetas por nós. Também realizamos
pessoal é nosso curriculim vitae. Assim, o
nossas próprias triagens e classificações,
arquivamento de si é uma maneira do
porém estas não duram: todos nós
indivíduo ver sua identidade reconhecida. E é
arquivamos
vidas,
uma forma de controlar nossas vidas:
desarrumamos,
‘devemos manter arquivos para recordar e
classificamos, construindo assim uma
tirar lições do passado, para preparar o
imagem para nós mesmos e para os
futuro, mas sobretudo para existir no
outros.
cotidiano.13. Mal nascemos, somos postos por
nossas
arrumamos,
próprias
para
a
qualquer
momento
escrito. Da certidão de nascimento à certidão Mas não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens.12
de óbito, os documentos nos garantem nossa identidade. Na ocasião da morte de um familiar, recebemos como lembrança seus papeis. Prometemos não jogar fora, guardálos, e os esquecemos; somente na hora de uma
Artières aponta três aspectos do ‘arquivo do eu’: eles possuem uma injunção
mudança ou outra ocasião, redescobrimos esses documentos.
social, práticas de arquivamento e uma intenção autobiográfica. Assim, o caráter normativo, o processo de objetivação e sujeição dão lugar a um movimento de subjetivação. O ‘arquivamento do eu’, assim como uma autobiografia, é uma prática que pode ser considerava uma ‘preocupação com
O dever de arquivar nossas vidas é onipresente em nossa sociedade. Seja na esfera pública ou na esfera familiar. Mas na prática, como procedemos para organizar nossas vidas? Como nos entendemos com as nossas existências? Como fazemos para arquivar as nossas vidas?
o eu’. Arquivar No nosso cotidiano sempre somos solicitados a apresentar arquivos: contas de luz, de telefone, comprovantes de residência. Sem esses documentos, somos de certa forma
a
própria
vida
não
é
privilégio de homens ilustres. Todos nós, em algum momento de nossas existências, por alguma
razão,
nos
entregamos
a
esse
exercício:
excluídos. Assim, o indivíduo bem ajustado deve classificar os seus papéis; deve estar de 12
ARTIÈRES, 1998, p.10
13
Idem, p. 14
8
ISSN: 2358-758X | Número 4 | Ano 2017 O arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele desejaria ser visto. Arquivar a própria vida é simbolicamente preparar o próprio processo: reunir as peças necessárias para a própria defesa, organiza-Ias para refutar a representação que os outros têm de nós. Arquivar a própria vida é desafiar a ordem das coisas: a justiça dos homens assim como o trabalho do tempo14
alta que cursou um ensino superior, ou apenas pelo conteúdo das receitas culinárias para uso no cotidiano? Apenas algumas hipóteses. O que posso afirmar é que o arquivo pessoal da minha própria mãe sobreviveu à sua morte. Seu marido e seus três filhos
O autoarquivamento é uma prática
mantiveram a posse desses livros, e ele
plural e incessante. Nunca arquivamos nossas
continuou no acervo familiar alguns anos
vidas de uma vez por todas. Até o último
após sua morte, e muitas reorganizações e
momento de nossas vidas, nossos arquivos
‘faxinas’ foram feitas. Eu, o terceiro filho,
estão sendo refeitos. Os motivos para isso
historiador, procurei manter tais livros pelo
podem ser em função de fatores pessoais, mas
aspecto curioso, até que um dia, cinco anos
também externos. Sempre arquivamos nossas
após seu falecimento, passei a olhar para eles
vidas em função de um futuro leitor, seja ele
como uma possível fonte de pesquisa. Michel
autorizado ou não. De prática íntima a função
de Certeau afirma que uma das características
pública,
é
da História enquanto prática é a articulação
definitivamente uma maneira de publicar a
natureza-cultura, onde ele “trabalha sobre um
própria vida, é escrever o livro da própria
material para transformá-lo em história”16.
vida que sobreviverá ao tempo e à morte15.
Um material didático que se tornou arquivo
arquivar
a
própria
vida
pessoal agora ganha um novo sentido: o de Prática
notável
fonte para a pesquisa histórica. E o arquivo
subjetivação. Em relação aos papéis de minha
pessoal de uma mãe, que resiste ao seu
falecida mãe, agora só posso pensar em
falecimento, passa pelas mãos de um filho
possibilidades,
conclusão.
historiador por uma ressignificação, sujeita a
Como esses manuais resistiram à mudanças
outra séries de subjetividades, agora parte do
de
oficio do historiador.
domicílio,
produtiva,
sem de
e
de
nenhuma cidade,
a
inúmeras
reorganizações realizadas? Uma “prova de mim” em relação ao passado dela enquanto estudante na capital do Estado, uma dona de casa que guardava esses livros juntamente com
seus
papéis
como
forma
a
dar
legitimidade como mulher de classe media 14 15
ARTIÈRES, 1998, p.31 Idem.
Referências Bibliográficas ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos. Centro de pesquisa e documentação de história contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: 1998. 16
CERTEAU, 1982, p.79
9
ISSN: 2358-758X | Número 4 | Ano 2017 ARTIÈRES, Philippe. ‘Arquivar-se: a propósito de certas práticas de autoarquivamento”. In: TRAVANCAS, Isabel; ROUCHOU, Joelle e HEYMANN, Luciana. Arquivos Pessoais: reflexões disciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: FAPERJ /Ed. FGV, 2014, pp. 45-54 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador; conversações com Jean Lebrun. São Paulo : UNESP/IMESP, 1999. CUNHA, Maria Teresa Santos. Tenha Modos! Manuais de Civilidade e Etiqueta na Escola Normal (Anos 19201960). In: Anais do VI Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação: Percursos e Desafios da Pesquisa e do Ensino de História da Educação. COLUBHE06. Uberlândia/MG: UFU, 2006, p. 350-361 CECCHIN, C.; CUNHA, M. T. S. . Tenha Modos! Educação e Sociabilidades em Manuais de Civilidade e Etiqueta (1900-1960). In: X Simposio Internacional Processo Civilizador, 2007, Florianopolis - SC. Anais do Simposio - CD ROM. Guairacá - SP: Francier Marcondes, 2007. FUCKNER, Cleusa Maria. Magistério e Casamento: memória e formação no Colégio de Educação Familiar do Paraná (1953-1986). Curitiba, 2000. 152f. Dissertação (Mestre em Educação) – Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. MCKEMMISH, Sue. Evidence of me... Archives and Manuscripts, Camberra, v. 24, n.1, p.28-45. 1996. VALENÇA, C. A. Educação feminina na escola normal: entre normas e práticas – Aracaju, 1900-1932. In: Anais do II Congresso Brasileiro de História da Educação: História e memória da educação brasileira. Natal, 0306 de novembro de 2002. p. 01
10