Manual de sociologia do crime

July 24, 2017 | Autor: Helena Machado | Categoria: Sociology, Criminology, Criminal Justice, Sociology of Crime and Deviance
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MANUAL DE SOCIOLOGIA DO CRIME Helena Machado 2008 Manuscrito pré-publicação

Versão editada: Machado, Helena (2008) Manual de Sociologia do Crime. Porto: Afrontamento

Índice NOTA INTRODUTÓRIA ............................................................................................. VI I. ORIENTAÇÕES GERAIS DA UNIDADE CURRICULAR E MÉTODOS DE ENSINO TEÓRICO E PRÁTICO ............................................................................................... XI CAPÍTULO 1 - OBJECTIVOS, PROGRAMA, APRENDIZAGEM E AVALIAÇÃO .............. 12 1.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 14 1.2. OBJECTIVOS E ORIENTAÇÃO GERAL ......................................................................... 15 1.3. APRESENTAÇÃO GENÉRICA DO PROGRAMA ............................................................ 18 1.4. ESTRUTURAÇÃO DAS SESSÕES DE TRABALHO ........................................................ 22 1.5. MÉTODOS DE ENSINO TEÓRICO E PRÁTICO .............................................................. 23 1.6. SISTEMA DE AVALIAÇÃO ............................................................................................. 26 1.7. RECOMENDAÇÕES PARA O PLANEAMENTO E ORGANIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM .. ................................................................................................................................... 27 1.8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 28

II.

APRESENTAÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DO PROGRAMA E DOS SEUS CONTEÚDOS 29

CAPÍTULO 2 – O CRIME COMO OBJECTO DA SOCIOLOGIA.................................... 30 2.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 32 2.2. A DEFINIÇÃO SOCIOLÓGICA DE CRIME ..................................................................... 33 2.3. ACTIVIDADE FORMATIVA 1.......................................................................................... 39 2.4. A ESPECIFICIDADE DA ABORDAGEM DA SOCIOLOGIA DO CRIME ........................... 40 2.5. AS INTERROGAÇÕES DA SOCIOLOGIA DO CRIME .................................................... 42 2.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 2.......................................................................................... 45 2.7. SÍNTESE ....................................................................................................................... 46 2.8. TESTE FORMATIVO ...................................................................................................... 46 2.9. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR ............................................................ 47 2.10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ............................................................................. 48

CAPÍTULO 3 – PRINCIPAIS MÉTODOS, TÉCNICAS DE PESQUISA E FONTES DE INFORMAÇÃO NA SOCIOLOGIA DO CRIME ............................................................ 49 3.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 51 3.2. MÉTODOS NA SOCIOLOGIA DO CRIME ...................................................................... 52

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3.3. TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO NA SOCIOLOGIA DO CRIME ...................................... 54 3.3.1. INQUÉRITOS SOCIAIS ..................................................................................... 54 3.3.2. ESTUDOS DE CASO........................................................................................ 56 3.3.3. OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ....................................................................... 57 3.3.4. ESTUDOS DE FOLLOW-UP ............................................................................. 58 3.4. ACTIVIDADE FORMATIVA 3.......................................................................................... 59 3.5. FONTES DE INFORMAÇÃO SOBRE O CRIME .............................................................. 60 3.5.1. ESTATÍSTICAS CRIMINAIS .............................................................................. 60 3.5.2. ESTATÍSTICAS DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO À VÍTIMA (APAV) . ...................................................................................................................... 62 3.5.3. RELATÓRIOS DE SEGURANÇA INTERNA ....................................................... 63 3.5.4. INQUÉRITOS DE VITIMAÇÃO .......................................................................... 64 3.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 4.......................................................................................... 67 3.7. SÍNTESE ....................................................................................................................... 67 3.8. TESTE FORMATIVO ...................................................................................................... 67 3.9. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR ............................................................ 69 3.10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 72

CAPÍTULO 4 – SOCIOGÉNESE DA SOCIOLOGIA DO CRIME..................................... 74 4.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 76 4.2. O PENSAMENTO SOBRE O CRIME NA ANTIGUIDADE................................................. 77 4.3. A VISÃO ESPIRITUAL.................................................................................................... 79 4.4. O RENASCIMENTO ...................................................................................................... 80 4.5. A CRIMINOLOGIA CLÁSSICA ....................................................................................... 81 4.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 5.......................................................................................... 84 4.7. O POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO .............................................................................. 84 4.8. ACTIVIDADE FORMATIVA 6.......................................................................................... 87 4.9. SÍNTESE ....................................................................................................................... 87 4.10. TESTE FORMATIVO ................................................................................................... 88 4.11. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 89 4.12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 90

CAPÍTULO 5 – A ABORDAGEM DO CRIME NOS CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA ........ 91 5.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 93 5.2. INTRODUÇÃO ÀS TEORIAS SOCIOLÓGICAS DO CRIME ............................................ 94 5.3. KARL MARX E A VISÃO DO CRIME NA SOCIEDADE CAPITALISTA .............................. 97 5.4. DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES DA ABORDAGEM MARXISTA.......................... 99 5.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 7........................................................................................ 101

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5.6. O CONCEITO DE ANOMIA E A TESE DA NORMALIDADE E DA FUNCIONALIDADE DO CRIME EM DURKHEIM ................................................................................................ 102 5.7. ACTIVIDADE FORMATIVA 8........................................................................................ 105 5.8. SÍNTESE ..................................................................................................................... 105 5.9. TESTE FORMATIVO .................................................................................................... 105 5.10. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR ........................................................ 106 5.11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 107

CAPÍTULO 6 – TEORIA DA ANOMIA DE MERTON E DA ESTRUTURA DAS OPORTUNIDADES ILEGÍTIMAS DE CLOWARD E OHLIN ......................................... 109 6.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ..................................................... 111 6.2. A TEORIA DA ANOMIA E DAS FORMAS DE ADAPTAÇÃO À SOCIEDADE SEGUNDO ROBERT MERTON ...................................................................................................... 112 6.3. ACTIVIDADE FORMATIVA 9........................................................................................ 117 6.4. AS SUB-CULTURAS DELINQUENTES E A ESTRUTURA DE OPORTUNIDADES ILEGÍTIMAS, SEGUNDO CLOWARD E OHLIN .................................................................... 117 6.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 10...................................................................................... 120 6.6. SÍNTESE ..................................................................................................................... 121 6.7. TESTE FORMATIVO .................................................................................................... 121 6.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 122 6.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 122

CAPÍTULO 7 - A ESCOLHA DE CHICAGO: ESPAÇO URBANO, ECOLOGIA CRIMINAL E DESORGANIZAÇÃO SOCIAL ................................................................................. 124 7.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ..................................................... 126 7.2. CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA DE CHICAGO .. ................................................................................................................................. 127 7.3. A TEORIA DA ECOLOGIA HUMANA ........................................................................... 128 7.4. A TEORIA DAS ZONAS CONCÊNTRICAS ................................................................... 129 7.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 11...................................................................................... 132 7.6. SÍNTESE ..................................................................................................................... 133 7.7. TESTE FORMATIVO .................................................................................................... 133 7.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 134 7.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 134

CAPÍTULO 8 – TEORIAS DA SUBCULTURA DELINQUENTE..................................... 136 8.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ..................................................... 138

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8.2. O CONCEITO DE SUBCULTURA DELINQUENTE ....................................................... 139 8.3. AS DIFERENTES PERSPECTIVAS DA SUBCULTURA DELINQUENTE ......................... 140 8.4. ACTIVIDADE FORMATIVA 12...................................................................................... 143 8.5. SÍNTESE ..................................................................................................................... 144 8.6. TESTE FORMATIVO .................................................................................................... 145 8.7. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 146 8.8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 146

CAPÍTULO 9 – TEORIA DA ROTULAGEM ............................................................... 147 9.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ..................................................... 149 9.2. O DESVIO COMO O RESULTADO DE UMA ACÇÃO COLECTIVA .............................. 150 9.3. ALGUNS AUTORES DA TEORIA DA ROTULAGEM ..................................................... 151 9.4. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DA ROTULAGEM .................................... 153 9.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 13...................................................................................... 156 9.6. SÍNTESE ..................................................................................................................... 156 9.7. TESTE FORMATIVO .................................................................................................... 157 9.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 158 9.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 158

CAPÍTULO 10 – GÉNERO E CRIME ........................................................................ 159 10.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ................................................... 161 10.2. TEMAS E DEBATES DA CRIMINOLOGIA FEMINISTA ............................................... 162 10.3. AS DIFENTES CORRENTES DAS TEORIAS FEMINISTAS DO CRIME ........................ 164 10.4. OS IMPACTOS DO GÉNERO NO CRIME .................................................................. 166 10.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 13 ................................................................................... 168 10.6. SÍNTESE ................................................................................................................... 168 10.7. TESTE FORMATIVO ................................................................................................. 169 10.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR ........................................................ 170 10.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 170

III. – PROBLEMÁTICAS, ORIENTAÇÕES E DEBATES ACTUAIS SOBRE O CRIME ... 172 CAPÍTULO 11 – TENDÊNCIAS DA CRIMINALIDADE, SISTEMA PRISIONAL E POLÍTICAS CRIMINAIS ............................................................................................................ 173 11.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ................................................... 175 11.2. ESTRATÉGIA PEDAGÓGICA NA ABORDAGEM DAS ACTUAIS PROBLEMÁTICAS, ORIENTAÇÕES E DEBATES SOBRE O CRIME ......................................................... 176

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11.3. GUIÃO DE AUTO-APRENDIZAGEM PARA «TENDÊNCIAS DA CRIMINALIDADE» .... 176 11.3.1. NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................................................................... 176 11.3.2. ACTIVIDADE FORMATIVA 14 ...................................................................... 178 11.3.3. LEITURAS E FONTES DE INFORMAÇÃO .................................................... 179 11.4. GUIÃO DE AUTO-APRENDIZAGEM PARA «SISTEMA PRISIONAL» ......................... 181 11.4.1. NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................................................................... 181 11.4.2. ACTIVIDADE FORMATIVA 15 ...................................................................... 184 11.4.3. LEITURAS E FONTES DE INFORMAÇÃO .................................................... 184 11.5. GUIÃO DE AUTO-APRENDIZAGEM PARA «POLÍTICAS CRIMINAIS»....................... 186 11.5.1. NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................................................................... 186 11.5.2. ACTIVIDADE FORMATIVA 16 ...................................................................... 189 11.5.3. LEITURAS E FONTES DE INFORMAÇÃO .................................................... 190 11.6. SÍNTESE ................................................................................................................... 191 11.7. TESTE FORMATIVO ................................................................................................. 191

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 192

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NOTA INTRODUTÓRIA Este livro é um manual de ensino e de aprendizagem na área da Sociologia do Crime, segundo as novas metodologias pedagógicas preconizadas pelo denominado “Processo de Bolonha”. Trata-se de um texto que pode interessar tanto a estudantes, como a docentes do ensino superior, de áreas como a Sociologia, a Criminologia, o Direito, a Antropologia, a Psicologia Social, o Serviço Social, a Reinserção Social e a Animação Sócio-Cultural. Redigido numa linguagem acessível, oferece um instrumento pedagógico de organização de uma unidade curricular em Sociologia do Crime. Propõe e expõe alguns dos principais conteúdos programáticos centrais ligados a esta área do saber, aponta actividades formativas a desenvolver em grupo e na sala de aula, apresenta testes formativos destinados à auto-aprendizagem e auto-avaliação e indica leituras e fontes de informação. A selecção de conteúdos vai de encontro aos principais eixos temáticos, perspectivas teóricas e abordagens metodológicas da Sociologia do Crime, tentando-se alcançar um equilíbrio entre o tratamento geral do crime e a discussão de temas mais específicos da criminalidade. Sempre que possível, apresentam-se casos retirados da realidade portuguesa e recorre-se às experiências e conhecimentos próximos das realidades vividas e conhecidas pelos próprios estudantes, procurando mostrar a relevância da Sociologia do Crime para a sua análise, desconstrução crítica e interpretação. A construção deste texto nasceu num contexto de expressiva mudança do ensino superior em Portugal, conduzido pelo “Processo de Bolonha”. De facto, ao mesmo tempo que ainda se assiste hoje nas Universidades Portuguesas a uma reduzida atenção face às questões especificamente pedagógicas, é agora convocada a necessidade de substituir as anteriores pedagogias “transmissivas”, centradas no saber e autoridade institucionalmente legitimado do docente, que encontrava na sala de aula o cenário adequado à expressão ritualizada da transmissão da informação.

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Novos modelos pedagógicos impõem-se no quadro de uma emergente sociedade do conhecimento, em que a própria informação científica especializada está disponível, para docentes e discentes, na Internet. A função que a Universidade assumiu durante séculos, de repositório privilegiado do conhecimento e de instância por excelência da sua transmissão, vê-se agora confrontada com novos desafios. Estes exigem a substituição do paradigma da transmissão e absorção passiva do conhecimento, por um novo paradigma de aprendizagem, no qual o aluno detém autonomia para construir a sua própria aprendizagem. Parte-se do pressuposto basilar que o saber transmitido na sala de aula não é a fonte única de informação que determina o esforço pedido ao aluno. Neste contexto, o que se exige ao docente é sobretudo a capacidade de poder agir como um guia no processo de aprendizagem, criando situações que valorizem o trabalho autónomo do aluno e que reconheçam a pluralidade das fontes de conhecimento no contexto do actual ambiente tecnológico e social. Nos moldes exigidos pelas reformas conducentes à construção de um espaço europeu de ensino superior, leva-se mais longe o imperativo de adequar os métodos de ensino teórico e prático ao paradigma emergente da aprendizagem guiada mas autónoma por parte do aluno, em que este é um construtor da própria aprendizagem. O manual está estruturado em onze capítulos, que correspondem a distintas unidades de aprendizagem. O primeiro capítulo apresenta uma proposta de programa de uma unidade curricular em Sociologia do Crime, apontando uma planificação das sessões de trabalho e das principais orientações pedagógicas, de ensino, de aprendizagem e de avaliação. O segundo capítulo inaugura a exposição de conteúdos programáticos, incide sobre o problema da definição e construção do crime como objecto da Sociologia e da sua relação com os diferentes modos como este é definido noutras áreas do conhecimento, tais como as ciências jurídicas, as ciências biológicas e as ciências psicológicas e psiquiátricas. Discute-se o que pode ser o contributo específico da Sociologia para a abordagem do crime, começando pela própria definição do conceito, procedendo-se a uma diferenciação entre a vii

definição jurídico-legal de crime e a definição sociológica e salientando-se a complexidade inerente a este passo introdutório ao nível dos estudos sociais do fenómeno criminal. Por fim, formulam-se as principais questões dirigidas à realidade social que a Sociologia do Crime suscita. O terceiro capítulo explana as principais metodologias e técnicas de investigação

social

no

domínio

do

crime,

apontando

as

respectivas

potencialidades e lacunas. Remete-se ainda os leitores para as principais fontes de informação sobre criminalidade, nos planos nacionais e internacionais, sublinhando a necessidade de adoptar uma atitude crítica face às mesmas. O quarto capítulo expõe as principais características do pensamento sobre o crime – a sua natureza e causas – em diferentes períodos históricos. Remete-se ainda para as possíveis implicações político-criminais subjacentes a uma postura de acentuação das responsabilidades da sociedade perante o criminoso, por um lado, contraposta a uma posição de defesa face ao crime, sentido como ameaça, por outro lado. O quinto capítulo enuncia as principais teorias sociológicas do crime que poderão ser abordadas no âmbito de uma unidade curricular de Sociologia do Crime e discute principalmente os contributos dos Clássicos da Sociologia para o estudo do crime, em particular a obra de Karl Marx e Émile Durkheim. Apresentam-se ainda, as principais coordenadas de diferenciação das diversas teorias sociológicas do crime, a saber: (i) a distinção entre teorias etiológicoexplicativas e teorias da reacção social; (ii) a demarcação entre teorias do consenso e do conflito. O sexto capítulo centra-se na teoria da anomia e nas modalidades de adaptação à sociedade, desenvolvidas por Robert Merton. A contradição entre a estrutura cultural e a estrutura social é apresentada como o factor desencadeador de comportamentos desviantes, nomeadamente do crime. Autores como Cloward e Ohlin conferem continuidade a essa perspectiva, apontando os factores que diferenciam a posição dos indivíduos no contexto das subculturas delinquentes, nomeadamente a existência de uma estrutura social de oportunidades ilegítimas, produtora de desigualdades sociais, tal como ocorre na estrutura social legítima.

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O sétimo capítulo expõe-se as principais coordenadas filosóficas, teóricas e metodológicas da abordagem do crime desenvolvida pela Escola de Chicago. Apresenta-se a visão da cidade desenvolvida pelos vários autores e os desenvolvimentos conferidos, em particular, à teoria da ecologia humana e das zonas concêntricas. Referem-se ainda as principais críticas a apontar a esta corrente de pensamento. O oitavo capítulo apresenta algumas perspectivas sobre o conceito de subcultura delinquente, tendo-se procurado definir o conceito, percebendo o seu conteúdo, génese, funções e tipo de relações desenvolvidas com a cultura dominante. O nono capítulo desenvolve a teoria da rotulagem. Apresentam-se os pressupostos gerais da abordagem do desvio, explicitam-se os contributos específicos de alguns teóricos mais representativos desta corrente de pensamento e sintetizaram-se os principais conceitos utilizados pelas teorias interaccionistas do desvio. O décimo capítulo centra-se na abordagem feminista da criminalidade. Aponta-se a necessidade de considerar as relações sociais de género na abordagem da criminalidade e do sistema de justiça criminal. Explicitam-se os contributos específicos para a Sociologia do crime produzidos pelas distintas correntes feministas e apontam-se pistas de análise para a explicação das diferenças entre homens e mulheres nas relações estabelecidas com o crime. Por fim, o décimo primeiro capítulo privilegia a componente de autoaprendizagem dos estudantes, exigindo níveis e competências de autonomia na recolha e organização de informação, com vista à construção do conhecimento sobre as seguintes temáticas: (i) tendências evolutivas da criminalidade, em termos macro e micro; (ii) dimensões de análise privilegiadas nos estudos prisionais; (iii) diversidade de políticas criminais e articulação com os distintos legados científicos das teorias sociológicas do crime. Este manual foi construído tendo em atenção que é imperativo adequar os contextos de aprendizagem ao duplo constrangimento de, por um lado, as actividades de docência se realizarem maioritariamente no espaço da sala de aula e, por outro lado, a necessidade desta ter um perfil motivador que convide os ix

estudantes à procura autónoma de informação complementar para a resolução dos casos práticos apresentados. Não obstante a ênfase colocada para a acção e relação pedagógicas, a exposição que se segue reflecte ainda outras preocupações que passam, nomeadamente, pelo desenvolvimento de um conjunto seleccionado de conteúdos científicos e pela projecção de uma reflexão e incentivo a uma prática situada, da parte de docentes e estudantes, que vá de encontro aos desafios que nos apresentam as sociedades actuais, crescentemente confrontadas com o fenómeno criminal nas suas mais diversas vertentes.

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I. ORIENTAÇÕES GERAIS DA UNIDADE CURRICULAR E MÉTODOS DE ENSINO TEÓRICO E PRÁTICO

CAPÍTULO 1 - OBJECTIVOS, PROGRAMA, APRENDIZAGEM E AVALIAÇÃO

SUMÁRIO 1.1. Resultados esperados de aprendizagem 1.2 Objectivos e orientação geral 1.3. Apresentação genérica do programa 1.4. Estruturação das sessões de trabalho 1.5. Métodos de ensino teórico e prático 1.6. Sistema de avaliação 1.7. Recomendações para o planeamento e organização da aprendizagem 1.8. Referências bibliográficas

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1.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a: ▪ identificar os objectivos gerais da unidade curricular; ▪ reconhecer a importância científica e social do estudo sociológico do crime; ▪ enunciar os principais pontos do programa; ▪ explicitar o método de ensino teórico e prático; ▪ explanar os distintos momentos de avaliação e respectivos requisitos; ▪ reconhecer os diversos procedimentos destinados a melhorar a qualidade da aprendizagem.

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1.2. OBJECTIVOS E ORIENTAÇÃO GERAL A aprendizagem das principais abordagens realizadas ao nível dos estudos sociológicos do crime justifica-se desde logo pela relevância social que ocupa o fenómeno da criminalidade nas sociedades actuais. De facto, a preocupação com a evolução da criminalidade ocupa hoje, no conjunto dos países desenvolvidos, um lugar central nos discursos social, político, mediático e quotidiano. Nas últimas décadas, e na generalidade dos países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, o desmesurado crescimento dos centros urbanos tem-se feito acompanhar de efeitos de exclusão e de marginalização de importantes segmentos da sua população. A cidade aparece, assim, como o espaço para o qual todas as crises, todas as conflitualidades da sociedade parecem convergir, embora não sejam desprezíveis os sinais destas conflitualidades em zonas com características mais rurais e junto de populações mais isoladas. A compreensão do fenómeno criminal exige no entanto, que a sua leitura seja feita no quadro de uma problemática social e política mais vasta do que a da criminalidade, situando-a no campo da análise da insegurança e violência que caracteriza as sociedades actuais, assim como no quadro das políticas públicas de prevenção da criminalidade, que por força das características da governança actual têm sobretudo canalizado esforços para o acréscimo da eficácia da acção policial e outras medidas de carácter repressivo. Com efeito, a questão da insegurança e, em particular, da insegurança urbana - expressão utilizada para designar quer o medo do crime, quer a falta de adesão ao sistema normativo da sociedade, isto é, a manutenção da ordem social - ascendeu à categoria de preocupação nacional em todos os países desenvolvidos. Diversos autores referem mesmo uma obsessão pública com o crime, que se terá iniciado nos anos 80 do século XX e evolui nas décadas seguintes, podendose dizer que neste início do século XXI, temas como o crime, a delinquência juvenil e a justiça criminal se encontram entre as preocupações mais salientes dos cidadãos e governantes (Flanagan e Longmire, 1996), podendo-se mesmo falar de uma visão dramatizada do crime e insegurança, projectada sobretudo pelo poder político, assumindo-se hoje estes temas como importantes questões de preocupação e debate públicos (Machado, 2004). 15

A unidade curricular de Sociologia do Crime almeja dotar os alunos de instrumentos teóricos e metodológicos básicos que lhes permitam uma autonomia crescente no seu processo de aprendizagem e de aplicação prática dos conhecimentos. Esta necessidade é sobretudo premente ao nível da realização do estágio curricular ou seminário de investigação, geralmente realizado no último semestre dos cursos de ensino superior. Destaque-se, deste modo, a vocação específica desta unidade curricular para o processo de formação dos estudantes que desejem realizar estágio curricular ou desenvolver actividade profissional em contextos prisionais, gabinetes de atendimento e apoio a vítimas de crime, tribunais, institutos de reinserção social, instituições policiais, escolas e centros de acolhimento e reinserção social de delinquentes. O programa da unidade curricular de Sociologia do Crime está organizado em três blocos através dos quais se procurará facultar os elementos necessários para um processo de aprendizagem que atinja o objectivo geral de permitir aos estudantes adquirir as noções teóricas e metodológicas básicas necessárias à análise sociológica do crime, como alicerce fundamental ou para a prática de investigação científica nesse domínio, ou para a intervenção social em contexto profissional. Para que seja atingido o objectivo geral, o estudante deverá atingir os seguintes objectivos específicos: ▪ No final do primeiro bloco programático, o aluno está familiarizado com os

conceitos básicos, técnicas de investigação principais e fontes de informação no domínio da Sociologia do Crime, assim como consegue identificar as principais etapas da evolução histórica do pensamento social sobre o crime e a especificidade da Sociologia nesta área do social; ▪ No final do segundo bloco programático, o aluno conhece as principais

correntes teórico-metodológicas da análise sociológica do crime, adquirindo competências de discussão crítica comparativa das diferentes opções teóricas e metodológicas e de compreensão das condições sociais e teóricas que estão na base da emergência das distintas correntes ou escolas de pensamento, podendo perspectivar as respectivas implicações político-criminais;

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▪ No final do terceiro bloco programático, o aluno adquire conhecimento

sobre as problemáticas, orientações e debates actuais no domínio do crime, estando habilitado a desenvolver uma abordagem crítica dos usos sociais e políticos dos discursos e práticas desenvolvidos em torno da criminalidade, insegurança e violência.

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1.3. APRESENTAÇÃO GENÉRICA DO PROGRAMA O programa da unidade curricular de “Sociologia do Crime” está organizado em três blocos programáticos, por sua vez sub-divididos em unidades ou módulos de aprendizagem: (i) o crime como objecto da Sociologia; (ii) teorias sociológicas do crime e (iii) problemáticas, orientações e debates actuais na Sociologia do crime. O primeiro ponto programático incide sobre o problema da definição e construção do crime como objecto da sociologia e da sua relação com os diferentes modos como este é definido noutras áreas do conhecimento, como as ciências jurídicas, as ciências biológicas e as ciências psicológicas; assim como em diferentes contextos e domínios da vida social. Procura-se, nesta parte, explorar e definir o que pode ser o contributo específico da Sociologia para a abordagem do crime, começando pela própria definição do conceito: neste âmbito, procede-se a uma diferenciação entre a definição jurídico-legal de crime e a definição sociológica, salientando-se a complexidade inerente a este passo introdutório ao nível dos estudos sociais do fenómeno criminal. Na prossecução lógica da definição sociológica do conceito de crime, procede-se a uma explicitação das principais metodologias e técnicas de investigação social neste domínio, remetendo-se, de igual modo, para as principais fontes de informação sobre criminalidade, nos planos nacionais e internacionais. Com o intuito de destacar o que pode ser a especificidade da abordagem sociológica do crime, procede-se ainda a uma tipificação de outros modos científicos de análise e estudo do fenómeno criminal, nomeadamente apontando as características das denominadas abordagens biológicas e psicológicas. De seguida e para encerrar o primeiro bloco programático, que tem como objectivo principal proporcionar uma introdução global à abordagem sociológica do crime, procede-se a um esboço histórico de distintas abordagens do fenómeno criminal, desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, Renascimento, Iluminismo e culminando nas amplas repercussões do positivismo do Séc. XIX. Com isto, procura-se traçar um panorama das distintas abordagens do crime e de que modo estas têm variado consoante as épocas históricas e o manancial de conhecimentos teóricos e empíricos disponíveis. 18

O seguinte bloco programático confere amplo desenvolvimento e discussão ao que se optou por denominar como “teorias sociológicas do crime”, expondo as principais coordenadas do tratamento do crime nos clássicos da Sociologia e em abordagens mais recentes. A exposição de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas do fenómeno criminal aqui apresentada, não segue sempre uma sequência cronológica, antes se privilegia o desenvolvimento da argumentação de acordo com as continuidades e descontinuidades dos legados teóricos e dos temas privilegiados pelos distintos autores e escolas de pensamento. O último ponto do programa da unidade curricular de “Sociologia do Crime” debruça-se sobre as problemáticas, orientações e debates actuais no contexto desta área da vida em sociedade. Num primeiro momento, apontam-se as principais tendências evolutivas da criminalidade nos países europeus, mormente em Portugal, apresentando-se ocasionalmente uma perspectiva comparativa com alguns países cujos altos índices de criminalidade necessariamente despertam a atenção dos analistas sociais do crime, nomeadamente os E.U.A. e o Brasil. O aparelho de controlo social é igualmente objecto de análise e problematização, destacando-se a abordagem sociológica do sistema prisional, privilegiando-se a análise de situações empíricas concretas que envolvem relações sociais passíveis não só de estudo científico, mas também de intervenção social. Por fim, expõemse alguns dos rumos actuais das políticas criminais, discutindo-se as distintas abordagens da criminalidade que lhe estão subjacentes e apontando-se os factores que interferem ou condicionam os processos de tomada de decisão no âmbito das políticas públicas nesta área do social. Antes da apresentação e desenvolvimento de cada um dos conteúdos, formulam-se os resultados esperados de aprendizagem em relação a cada um dos pontos do programa. Após a explicitação dos conteúdos de cada unidade de aprendizagem, apresenta-se uma síntese, propõe-se actividades formativas, um teste formativo e indicam-se leituras obrigatórias e leituras e fontes de informação complementares. Apresenta-se a seguir o enunciado dos tópicos do programa da unidade curricular de Sociologia do Crime:

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Programa da Unidade Curricular de Sociologia do Crime 1.O crime como objecto da Sociologia 1.1. A definição sociológica de crime 1.1.1. O problema do objecto de estudo 1.1.2. O conceito jurídico e sociológico de crime 1.1.3. A relação entre crime e desvio 1.2. As bases das explicações científicas do crime 1.2.1. As diferentes ciências criminais: Biologia, Psicologia, Psiquiatria e Sociologia. 1.2.2. A especificidade da abordagem sociológica do crime. 1.3. Métodos e técnicas de investigação em Sociologia do Crime 1.3.1. Métodos quantitativos e qualitativos na Sociologia do Crime 1.3.2. Técnicas de investigação na Sociologia do Crime 1.3.2.1. Inquéritos sociais 1.3.2.2. Estudos de caso 1.3.2.3. Observação participante 1.3.2.4. Estudos de follow-up 1.4. Fontes de informação sobre o crime 1.4.1. Estatísticas criminais 1.4.2. Estatísticas da associação de apoio à vítima (APAV) 1.4.3. Relatórios de segurança interna 1.4.4. Inquéritos de vitimação 2. Teorias sociológicas do crime 2.1. Sociogénese da Sociologia do crime 2.1.1. A antiguidade 2.1.2. A idade média 2.1.3. O renascimento 2.1.4. O Iluminismo 2.1.5. O positivismo criminal 2.2. Os clássicos 2.2.1. A abordagem marxista 2.2.2. O legado de Durkheim 2.3. As teorias funcionalistas 2.3.1. A teoria da anomia 2.3.2. A teoria da estrutura de oportunidades ilegítima 2.4. A Escola de Chicago: 2.4.1. Espaço urbano e criminalidade 2.4.2. A teoria da ecologia humana 2.4.3. A teoria das zonas concêntricas 2.4.4. O controlo social secundário 2.5. Teorias da subcultura delinquente 2.5.1. O conceito de sub-cultura 2.5.2. Subcultura e cultura dominante 20

2.5.3. Grupos de referência e efeitos de status 2.6. Teorias da rotulagem 2.6.1. O desvio como acção colectiva 2.6.2. A acção criminosa e a reacção social 2.6.3. As instâncias de controlo e as audiências 2.6.4. O pluralismo axiológico e o relativismo 3. Temas e debates actuais na sociologia do crime 3.1. Configurações e dinâmicas da criminalidade nas sociedades actuais 3.1.1. O imaginário actual da criminalidade 3.1.2. Incidência de crimes e variações 3.1.3. Abordagens macro e micro 3.2. As abordagens sociológicas do sistema prisional 3.2.1. Os estudos clássicos e contemporâneos 3.2.2. Dimensões de análise do meio prisional 3.2.3. Caracterização do sistema prisional: tendências nacionais e europeias 3.3. Rumos actuais das políticas criminais 3.3.1. As políticas repressivas e preventivas 3.3.2. A descriminalização e neocriminalização 3.3.3. Implicações político-criminais das teorias sociológicas do crime

21

1.4. ESTRUTURAÇÃO DAS SESSÕES DE TRABALHO Existe uma planificação prévia e estruturada das sessões de trabalho de contacto directo entre o docente e os alunos, indicando-se a semana lectiva, sessão, o módulo de aprendizagem e respectivos conteúdos programáticos e actividades formativas. Quadro 1 – Planificação das Sessões de Trabalho Semanas

1.

Sessões

Aula 1

1. 2. 2. 3. 3. 4. 4. 5. 5. 6. 6. 7. 7. 8. 8. 9. 9. 10. 10. 11. 11. 12.

Aula 2 Aula 3 Aula 4 Aula 5 Aula 6 Aula 7 Aula 8 Aula 9 Aula 10 Aula 11 Aula 12 Aula 13 Aula 14 Aula 15 Aula 16 Aula 17 Aula 18 Aula 19 Aula 20 Aula 21 Aula 22

12. 13.

Aula 24

13. 14. 14.

Aula 26 Aula 27 Aula 28

Aula 23

Aula 25

Módulos

--1 1 1 2 2 2 2 3 3 4 4 5 5 6 6 7 7 7 7 8 8 9 9 9 9 9 9

Conteúdos Apresentação. Programa. Bibliografia. Regras de funcionamento e avaliação. A definição sociológica de crime. Actividade formativa 1 As bases das explicações científicas do crime. Actividade formativa 2 Métodos e técnicas de investigação em Sociologia do Crime Actividade formativa 3 Fontes de informação Actividade formativa 4 Sociogénese da Sociologia do crime Actividade formativa 5 e 6 A abordagem marxista Actividade formativa 7 A teoria da anomia de Durkheim Actividade formativa 8 As teorias funcionalistas Actividade formativa 9 e 10 A Escola de Chicago Actividade formativa 11 Teorias da subcultura delinquente Actividade formativa 12 Teorias da rotulagem Actividade formativa 13 Organização e planificação das actividades formativas relativas a problemáticas, orientações e debates actuais sobre o crime Tendências actuais da criminalidade: Actividade formativa 14 A abordagem sociológica do sistema prisional: Actividade formativa15 Rumos actuais das políticas criminais: Actividade formativa 16 Colóquio – Actividade formativa 17 Seminário – Actividade formativa 18

22

1.5. MÉTODOS DE ENSINO TEÓRICO E PRÁTICO Factores

de

natureza

sócio-institucional

influenciaram

as

opções

pedagógico-didácticas da unidade curricular de Sociologia do Crime, a saber: (i) exigências criadas à docência pela emergência da sociedade do conhecimento e disseminação crescente das novas tecnologias de informação e comunicação em diferentes esferas da vida em sociedade; (ii) imperativos de adopção de novas metodologias de ensino e aprendizagem que permitam ultrapassar o tradicional e ainda dominante paradigma da transmissão passiva e absorção do saber, e pôr em prática um paradigma de aprendizagem guiada mas autónoma e activa, que requer um elevado envolvimentos dos estudantes, como sujeitos construtores do próprio processo de aprendizagem; (iii) coexistência de práticas e pedagogias tradicionais, alimentadas por um sistema que (ainda) privilegia ou quase que exclusivamente contabiliza as horas de trabalho por referência às horas de contacto. O método de ensino adoptado resultou da tentativa de equilibrar vários elementos: não só os mencionados constrangimentos sócio-institucionais, a que não são alheias imposições administrativas quanto a regime de aulas e dimensão da equipa docente, como de igual modo a tomada em consideração das aspirações sócio-profissionais e perfis de procura de saberes na população de estudantes do ensino superior. Adoptou-se

sobretudo

a

estratégia

de

combinar

procedimentos

diversificados, ainda que antecipadamente organizados e dados a conhecer aos alunos, no sentido proposto por Madureira Pinto (1997), quando afirma que “São constrangimentos de natureza muito variada e eminentemente mutáveis, que, portanto, desaconselham quaisquer tentativas para encontrar soluções universais ou fórmulas mágicas no plano didáctico.” (Pinto, 1997: 50). Para um período lectivo de catorze semanas decorrem 28 horas de sessões teóricas e 28 horas de sessões teórico-práticas. As aulas teóricas são predominantemente expositivas, de acordo com os conteúdos contemplados no programa da unidade curricular. No entanto, os estudantes são convocados a intervir sempre que julgarem oportuno, sendo 23

disponibilizados os materiais necessários para que essa interpelação seja fundamentada e produtiva para todos os intervenientes e elementos presentes na sala de aula. Antes de cada sessão teórica e semanalmente, o docente disponibiliza um documento que contém os seguintes elementos: enunciação e explicitação sumária dos principais conceitos e problemáticas a abordar na sala de aula, indicação de bibliografia específica e complementar referente a um ponto específico do programa e apresentação da actividade formativa a desenvolver na aula téorico-prática. As sessões teórico-práticas destinam-se à execução de actividades formativas previamente definidas e que se realizam em grupos de três ou quatro alunos. Os grupos reúnem na primeira hora da sessão teórico-prática e o portavoz do grupo apresenta oralmente as conclusões do trabalho na segunda hora, proporcionando-se contextos para debate e troca de ideias relacionadas com a situação concreta proposta para análise. O

tempo

reservado

à

exposição

oral

do

trabalho

de

grupo

é

antecipadamente definido em função do número de grupos e da necessidade de reservar os últimos vinte minutos da sessão teórico-prática para o debate geral. Uma semana após a sessão teórico-prática e apresentação oral do trabalho de grupo, deverá ser entregue à docente o respectivo relatório escrito, que não deverá exceder as cinco páginas dactilografadas a espaço e meio. Resta assinalar que uma das sessões teórico-práticas relativas ao último bloco programático – Temas e debates actuais na sociologia do crime – é sempre reservada à organização de um seminário ou colóquio científico, que conta com a participação de especialistas convidados. No início do ano lectivo, o docente dá a conhecer aos alunos o tema seleccionado e os oradores envolvidos. Os estudantes são incentivados a preparar o debate com antecedência, através da pesquisa de materiais relacionados com a temática que vai ser apresentada nesse encontro científico. A actividade formativa relacionada com este elemento específico da metodologia de ensino consiste no envolvimento e participação activa no debate decorrente do evento científico e produção de um relatório escrito relativo aos assuntos apresentados e problematizados nesse contexto. 24

O objectivo da organização deste tipo de encontros e incorporação dos mesmos na metodologia de ensino em Sociologia do Crime é, por um lado, facultar aos alunos o contacto com a realidade exterior por via dos discursos e práticas de especialistas, e por outro lado, incentivar a responsabilização e envolvimento activo da parte dos estudantes, confrontando-os com as tarefas específicas associadas à organização de eventos científicos e preparação de debates.

25

1.6. SISTEMA DE AVALIAÇÃO A

avaliação

constitui

um

elemento

regulador

do

processo

de

ensino/aprendizagem. No sentido de contemplar o objectivo de integrar metodologias de ensino/aprendizagem de natureza diversa e orientadas para a intervenção activa do aluno, o tipo de avaliação adoptado na unidade curricular de Sociologia do Crime é a avaliação contínua. Os momentos de avaliação são dois: a realização de um teste individual no final do semestre, com uma ponderação de 50%; e a realização das actividades formativas em grupo, com apresentação oral nas aulas teórico-práticas (10%) e produção de relatório (40%) que não deverá ultrapassar a cinco páginas dactilografadas a espaço e meio. Os critérios de avaliação do teste individual serão os seguintes: (i) qualidade da escrita e organização da argumentação (0-3 valores); (iii) capacidade de apreciação e relacionação dos diversos conceitos e elementos solicitados no enunciado das questões (0-7 valores). Os critérios de avaliação dos trabalhos de grupo serão os seguintes: (i) qualidade da apresentação oral das conclusões do grupo (0-2 valores); (ii) clareza e organização do relatório (0-2 valores); (iii) capacidade de apreciação e avaliação das diversas vertentes do tema em causa (0-6 valores). A nota final deste momento de avaliação produz-se pela média aritmética de todos os relatórios das sessões teórico-práticas.

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1.7. RECOMENDAÇÕES PARA O PLANEAMENTO E ORGANIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM O sucesso do processo de aprendizagem depende da adopção de algumas práticas de planeamento e organização de tarefas da parte dos alunos. Recomenda-se a preparação semanal de um calendário de actividades, conjugando as tarefas individuais com as tarefas de grupo. Além das aulas, os alunos deverão contar com tempo necessário à realização das seguintes tarefas:

Tarefas de carácter individual  Na segunda semana de aulas o aluno deverá estar inserido num grupo de trabalho de 3 a 4 alunos;  No início das aulas é facultado um conjunto de bibliografia obrigatória, que o aluno deverá adquirir e organizar o mais cedo possível;  No final de cada unidade de aprendizagem o aluno deve responder aos testes formativos e corrigi-los;  Semanalmente o aluno deverá consultar os documentos fornecidos pelo docente, fazendo-se munir dos elementos necessários para estar habilitado por um lado, a colocar dúvidas e questões relativas à exposição teórica e, por outro lado, a desenvolver adequadamente a actividade formativa proposta em grupo;  O aluno deverá participar assídua e activamente nas reuniões de grupo de trabalho, lembrando-se que o grupo é mais importante que os membros individuais e que todos os elementos são responsabilizados pelos resultados;  O aluno deverá consultar o docente sempre que tenha necessidade de tirar dúvidas, no horário de atendimento.

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Tarefas de grupo  O grupo de trabalho deverá reunir semanalmente para elaborar o relatório escrito da actividade formativa desenvolvida na aula teórico-prática, decidindo com antecedência o local, horário e duração da reunião;  A distribuição dos diferentes papéis dos membros do grupo deverá ser feita de modo rotativo e ser antecipadamente programada para todo o semestre. Há que contar com o papel de porta-voz das conclusões do grupo, a desempenhar oralmente na parte final das aulas teórico-práticas e de relator (elemento do grupo encarregue de redigir por escrito o relatório da actividade formativa e de entregar o trabalho à docente, por email ou em suporte de papel, dentro do prazo estipulado).  O contacto com o docente deve ser regular no sentido do grupo ser informado sobre o andamento da avaliação das actividades formativas; 1.8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Flanagan, Timothy; Longmire, Dennis (1996) (eds.), American view crime and justice: a national public opinion survey, Thousand Oaks, Sage. Machado, Carla (2004), Crime e insegurança. Discursos do medo e imagens do outro, Lisboa, Editorial Notícias. Pinto, José Madureira (1997) Propostas para o ensino das ciências sociais, Porto: Afrontamento.

28

II. APRESENTAÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DO PROGRAMA E DOS SEUS CONTEÚDOS

CAPÍTULO 2 – O CRIME COMO OBJECTO DA SOCIOLOGIA

SUMÁRIO: 2.1. Resultados esperados de aprendizagem 2.2. A definição sociológica de crime 2.3. Actividade formativa 1 2.4. A especificidade da abordagem da Sociologia do Crime 2.5. Actividade formativa 2 2.6. As interrogações da Sociologia do Crime 2.7. Síntese 2.8. Teste formativo 2.9. Leituras e informação complementar 2.10. Referências bibliográficas

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2.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a:  definir o conceito de crime, distinguindo a conceptualização júridico-legal da abordagem sociológica;  entender as diferenças entre os conceitos de crime e de desvio, captando o seu carácter complexo e relativo, do ponto de vista cultural e histórico;  identificar algumas das mais importantes abordagens do crime na óptica da biologia e da psicologia, sendo capaz de caracterizar a especificidade do pensamento sociológico;  expor as principais questões que orientam a investigação e reflexão sobre o crime.

32

2.2. A DEFINIÇÃO SOCIOLÓGICA DE CRIME O problema do objecto de estudo Desde tempos imemoriais que o crime tem sido objecto de reflexão e especulação, embora possamos situar no século XIX o início da abordagem científica do crime. O termo criminologia (entendido como ciência que estuda o crime) terá sido utilizado pela primeira vez pelo antropólogo francês Topinard, em 1879 (Dias e Andrade, 1997:7). Não existe consenso em relação à utilização da designação de Criminologia, de Sociologia do Crime ou ainda de Sociologia Criminal, ao nível da abordagem sociológica do crime: enquanto para alguns autores a Criminologia como ciência que estuda o crime deve convocar saberes provenientes de diversas áreas do conhecimento (Psicologia, Psiquiatria, Biologia e Sociologia); outros autores defendem que a denominação de Criminologia pode servir para referenciar a especialização da Sociologia que se debruça sobre o crime. Parte das reflexões e pesquisas sobre o que podemos designar como comportamentos criminosos, desviantes ou delinquentes, consoantes as perspectivas teóricas, centram-se na explicação das causas do crime, procurando perceber os motivos porque determinados indivíduos parecem mais vulneráveis ou predispostos a cometer delitos do que outros (Ferreira, 2004). Neste âmbito, a questão fundamental para os estudiosos do crime será porque é que as pessoas (ou algumas pessoas) cometem crimes? As respostas a esta questão nuclear têm sido diversas e geralmente pouco consensuais e ainda hoje inconclusivas, variando não só consoante as épocas históricas, mas também de acordo com as perspectivas das diferentes ciências que se têm debruçado sobre o fenómeno criminal, desde a Biologia, ao Direito, à Filosofia, à Ética, à Psicologia, à Antropologia e à Sociologia. Num primeiro momento histórico, a explicação das causas do crime remetia para factores sobrenaturais, ou para supostas características intrínsecas dos indivíduos, que os conduziriam a um estado mais ou menos acentuado de incapacidade de integração na sociedade, predispondo-se para a prática do “mal”. O século XIX assistiu ao nascimento das primeiras abordagens científicas 33

do crime, que passam a preocupar-se em identificar e medir as variáveis que poderão estar na origem do comportamento criminoso e que poderão ser encontradas em causas biológicas, psicológicas e sociais. Contudo, a premência da procura das causas da ocorrência do crime manteve-se praticamente inalterável até aos dias de hoje nas principais correntes criminológicas. Abordagens recentes, nomeadamente provenientes da área da Sociologia, têm vindo a reconfigurar a formulação dessa questão, defendendo que outros prismas de análise do fenómeno criminal são possíveis e mesmo desejáveis e invocando a necessidade de reconfigurar o sentido e as vias da explicação criminológica. Podemos assim confrontar uma criminologia tradicional, que busca as causas do crime e se integra desse modo num paradigma «etiológico-explicativo», com uma criminologia crítica de raiz interaccionista, que combate o alegado determinismo da primeira, centrando-se antes no domínio da «reacção social» ao crime e, deste modo, alarga o elenco de actores sociais envolvidos na construção social do crime, desde o criminoso tout court, aos processos de selecção e de estigmatização dos criminosos desenvolvidos e consolidados pelas instâncias formais e informais de controlo social. Nesta última perspectiva, em vez da questão clássica sobre as causas do crime, outras questões podem ser enunciadas, tais como sobre quais os critérios que ancoram a selecção e a estigmatização de certas pessoas e quais as consequências dessa rotulagem (Dias e Andrade, 1997: 160). Sintetizando, podemos supor que o que distingue no essencial as diferentes perspectivas sociológicas do crime é a formulação da questão de partida dirigida à realidade criminal: a sociedade tem os criminosos que «merece» (criminologia tradicional) ou os criminosos que «quer» (nova criminologia ou criminologia crítica)? Os modos de formulação das interrogações à realidade criminal remetem indubitavelmente para a própria definição do conceito de crime, na medida em que as próprias divergências no conceito de crime reflectem modos diversificados de pensar, teorizar e agir em relação a esta problemática. De facto, a definição do objecto de estudo – neste caso, o crime – resulta do que se quer saber sobre o 34

fenómeno em análise. Neste sentido, o crime constitui um conglomerado histórico de elementos sociológicos, jurídicos, éticos e de senso comum ou estereótipos, embora a definição jurídico-legal, por razões históricas e culturais, tenda a ser a dominante.

O conceito de crime A definição jurídico-legal de crime define-o como todo o comportamento – e só esse – que a lei tipifica como tal. Paul Tappan (1947), eminente criminologista, sociólogo e jurista, levou a cabo uma defesa extremada dessa conceptualização do crime, por considerar que se tratava de um conceito objectivo, preciso e operacional,

defendendo

que



se

deveria

considerar

crime

aqueles

comportamentos que resultassem de condenações judiciais. A operacionalidade do conceito puramente legalista de crime é evidente, tanto mais que as estatísticas criminais oficiais reflectem essa perspectiva. Contudo, aceitar acriticamente a definição jurídico-legal de crime, implicaria em última instância supor que a criminalidade oficial corresponde integralmente à criminalidade efectivamente cometida. Do mesmo modo, aceitar a posição defendida por Tapplan de que o crime corresponde ao que é condenado como tal nas instâncias judiciais significa pressupor, por exemplo, que a aplicação da lei é sempre objectiva e neutra, havendo uma correspondência total e absoluta entre a denominada law in books (legislação) e a law in action (aplicação da lei). Não sendo a definição de crime algo auto-evidente e unitário, torna-se importante perceber a diversidade de elementos que podem estar associados a este conceito, assim como o relativismo cultural e histórico que lhe está subjacente. Pode-se considerar que existem três elementos básicos a considerar na definição de crime: (1) os danos, que remetem para a natureza, dimensão e severidade dos prejuízos e males causados e que tipo de vítimas foram atingidas; (2) o consenso social sobre os impactos criados pela ocorrência do crime; (3) as respostas oficiais, que implicam a existência de legislação criminal que especifica as circunstâncias em que um acto danoso pode ser classificado como crime e quais as sanções a dirigir a quem o cometeu. 35

A definição de crime de Durkheim Émile Durkheim, um dos clássicos da Sociologia que marcou decisivamente os primórdios da análise sociológica do crime, apresenta na obra De la division du travail social (1895), uma definição de crime como sendo “Todo o acto que, num qualquer grau, determina contra o seu autor essa reacção característica a que se chama pena” (Durkheim, 1977: 87). Esta focagem na dimensão da resposta oficial surge articulada com questão do consenso social, na medida em que o autor não só define a pena como sendo uma “reacção passional, de intensidade graduada, que a sociedade exerce por intermédio de um corpo constituído sobre aqueles dos seus membros que violaram certas normas de conduta” (id. ibid.: 116), como acrescenta que “um acto é criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da consciência colectiva” (id. ibid.: 99) pelo que “não se deve dizer que um acto ofende a consciência comum porque é criminoso, mas que é criminoso porque ofende a consciência comum.” (id. ibid.: 100). A definição durkheimiana de crime remete para o comportamento que é definido como tal pela lei e que recebe a respectiva sanção jurídico-penal. Nesta perspectiva, não há crime sem lei, do mesmo modo, que não há lei criminal sem existência de dano ou prejuízo. Em suma, para Durkheim o crime consiste numa transgressão em relação ao que é definido ao nível de estados fortes e definidos da consciência colectiva, suscitando como tal reacções intensas que se projectam pelas sanções previstas no direito criminal. Na perspectiva deste autor, a característica comum aos crimes residiria no facto de constituírem actos universalmente reprovados pelos membros de cada sociedade.

A definição de crime de Sellin Thorsten Sellin, criminologista Americano e especialista em estatísticas criminais, distinguiu-se por pretender libertar o conceito de crime da perspectiva jurídico-legal, advogando a necessidade de uma “definição sociológica” do conceito, na sua obra Culture Conflict and Crime publicada pela primeira vez em 1938. De acordo com o autor, as exigências metodológicas e epistemológicas da criminologia (ciência que tem como objecto de estudo o crime) e a diversidade cultural a que assistimos nas sociedades modernas, remetem para uma 36

perspectiva multicultural do crime, que pode ser definido como sendo a transgressão a dois tipos de normas: as normas de conduta e as categorias universais. As normas de conduta são criadas pela sociedade e podem variar de grupo para grupo social. Já as categorias universais de crime (como por exemplo, o homicídio) assumem um significado similar em diferentes sociedades. Na perspectiva de Sellin, a criminologia deveria ter um objecto de estudo com uma natureza objectiva e universal, valorativamente neutro e que não estivesse sujeito ao relativismo espácio-temporal, de modo a ser possível isolar e classificar as normas de conduta segundo categorias universais. Segundo este autor, as normas jurídico-penais apenas projectam a estrutura normativa dos grupos culturalmente dominantes, reflectindo deste modo os valores e interesses dos grupos sociais que controlam o aparelho legislativo. Isto faz com que possa haver conflitos culturais entre os «fazedores de leis» e as normas de conduta que regulam as vivências e situações sociais específicas dos grupos desfavorecidos, que tendem a aumentar com o processo de modernização da sociedade, na medida em que este potencia a heterogeneidade cultural. Os críticos de Sellin consideram que este falhou o objectivo de apresentar uma definição unívoca de categoria universal de crime e que não elabora propriamente um conceito sociológico de crime, mas apenas contrapõe dois universos normativos: as normas de conduta em gera e as normas jurídico-penais, convertendo as primeiras em objecto de estudo da criminologia.

A relação entre crime e desvio Ainda hoje se assiste a tentativas de definir o crime em termos sociológicos, distinguindo-o da definição jurídico-penal. A generalidade dos autores pretende que o conceito de desvio é mais adequado à abordagem sociológica, embora as definições existentes não sejam coincidentes. Pode-se afirmar que o conceito de desvio assenta em dois pressupostos básicos: (i) engloba comportamentos que violam as expectativas da maioria dos membros da sociedade; (ii) suscita reacções negativas, considerando-se que é um acto que deve estar sujeito a sanções.

37

A abordagem do fenómeno criminal como um desvio implica entrar em ruptura com o conceito jurídico de «crime» e a perspectiva positivista que lhe é inerente, em função da qual se estudava o crime essencialmente ou mesmo exclusivamente pelo criminoso e pela perspectivação das causas que conduziriam à prática do crime. A opção por encarar o crime como um acto desviante remete para um alargamento da focagem de análise que exige estudar as condições sócio-históricas da produção social dos desvios, o funcionamento dos mecanismos informais de regulação social, as interacções entre os desviantes e os aparelhos de controlo social e os impactos da reacção social sobre o sujeito definido como desviante. Para uma clarificação da distinção entre os conceitos de «crime» e de «desvio» parece-nos fundamental reter a seguinte ideia de Herbert Blumer: “é o processo social em grupo que cria e suporta as normas e não as normas que criam e suportam a vida em grupo” (Blumer, 1969: 19). Ou seja, uma abordagem sociológica do crime deve ultrapassar a visão estritamente jurídica, devendo ser abordada como uma construção social que nunca deixará de estar associada à lei e ao controlo social formal e informal. Temos assim que o conceito de desvio se aplica às condutas que transgridem as normas de uma dada sociedade, remetendo por isso a análise para as operações de classificação e definição social, que variam em termos espácio-temporais. Subjacente ao conceito de desvio, encontramos o conceito de controlo social, que envolve mecanismos de socialização e internalização de normas e valores, mas também de aplicação de sanções a quem transgride as regras. Se nem todo o desvio é crime e nem todo o crime representa desvio, a conceptualização sociológica do crime como desvio apresenta a vantagem de se demarcar de uma visão puramente legalística da problemática criminal. De facto, a perspectivação do crime como desvio exige a compreensão das estruturas sociais mais amplas em que este se insere. Implica, de igual modo, encarar o crime como sendo simultaneamente um problema social enquanto constituindo um desvio às expectativas socialmente criadas, que provoca reacções negativas;

38

e um problema sociológico por implicar um estudo científico das relações sociais envolvidas. 2.3. ACTIVIDADE FORMATIVA 1 “Nem todo o desvio é crime, nem todo o crime implica desvio” Considerem esta ideia e desenvolvam a seguinte actividade em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. Listem exemplos de a) comportamentos que são desviantes, mas não constituem crimes; b) comportamentos que em períodos históricos passados foram considerados desviantes, mas que não o são actualmente; c) comportamentos criminosos que, em determinados contextos, podem não ser considerados negativos ou “merecedores” de punição. 2. Listem três comportamentos que consideram “crimes graves” e três comportamentos que avaliam como “crimes pouco graves”. Fundamentem a vossa escolha.

39

2.4. A ESPECIFICIDADE DA ABORDAGEM DA SOCIOLOGIA DO CRIME As diferentes ciências criminais São diversas as ciências que se têm debruçado sobre o fenómeno criminal, pretendendo-se neste âmbito, sintetizar os principais traços de cada uma das perspectivas dominantes, com o objectivo último de apontar a especificidade da abordagem sociológica. O século XIX assistiu ao nascimento do denominado positivismo criminológico, que ao postular a neutralidade axiológica e a separação entre a ciência e a moral, advoga que os comportamentos criminosos podem ser explicados por factores biológicos, psicológicos e sociais específicos, susceptíveis de observação e medição. No campo da Biologia, até sensivelmente meados do séc. XX, com base em estudos genéticos e evolutivos, foi dominante a perspectiva de que o comportamento criminoso resultava de atavismos físicos e intelectuais de tipo hereditário, reminiscente de estágios mais primitivos da evolução humana. Já no âmbito da Psicologia e Psiquiatria a abordagem do crime remeteu para traços da personalidade individual, o que sustentou estudos e programas de tratamento e de adaptação mais ou menos forçada da personalidade do criminoso às exigências da vida em sociedade. Por fim, a Sociologia do séc. XIX, nomeadamente por via dos trabalhos de Émile Durkheim (1895, 1897) e Gabriel Tarde (1886, 1890), advoga que as causas da ocorrência do crime se encontram na própria sociedade, nomeadamente em resultado de pressões e tensões sociais que acompanham a evolução das sociedades. Ainda hoje persistem diferenças entre as perspectivas teóricas e metodológicas associadas a cada área científica, pese ainda que dentro do mesmo

campo

disciplinar

podemos

igualmente

encontrar

distintos

posicionamentos. Podemos sintetizar os principais pressupostos de cada uma das abordagens científico-explicativas do crime, distinguindo entre: (i) teorias bioantropológicas; (ii) teorias psicodinâmicas e psico-sociológicas ; (iii) teorias sociológicas.

40

A perspectiva da Biologia As teorias bioantropológicas do crime centram-se em factores de cariz individual que se considera pertencerem ou serem características do organismo. Procura-se atingir a compreensão das determinantes biológicas do crime, nomeadamente o papel da genética. Mas enquanto as teorias clássicas afirmavam a exclusividade e definitividade das características físicas, as versões mais recentes sustentam que os factores bioantropológicos interagem continuamente com variáveis de índole sociológica e ambiental.

A perspectiva da Psicologia e Psiquiatria No campo das teorias psicodinâmicas dá-se continuidade ao estudos das variáveis individuais que explicam a prática do crime, mas em vez de focarem a constituição biológica, centram-se nos percursos biográficos dos indivíduos, que remetem para processos dinâmicos de formação da personalidade, procurando identificar os níveis de sucesso e insucesso na sua formação, aprendizagem e socialização. Estes estudos partem de um postulado básico da existência de impulsos naturais, que podem entrar em conflito com as resistências criadas pelo processo

de

socialização

e

decorrentes

mecanismos

de

indução

de

comportamentos normais (a sociedade repressiva e punitiva). As teorias psicodinâmicas englobam uma vasta diversidade de perspectivas, sendo que as teorias psicanalíticas do crime e as teorias do condicionamento são das mais conhecidas e aplicadas ao nível das práticas de tratamento e reabilitação de delinquentes. As teorias psico-sociológicas centram-se sobretudo no comportamento considerado normal e que surge conforme as prescrições previstas na lei e nas normas de conduta da sociedade. Só após o estudo da «conformidade», isto é, da indagação da natureza e força dos vínculos que unem o indivíduo à sociedade, e que o conduzem a superar os impulsos naturais e obedecer às regras, é que se procede ao estudo do comportamento desviante e delinquente.

41

A perspectiva da Sociologia Não obstante a heterogeneidade e diversidade apresentada pelas teorias sociológicas do crime, importa apontar e compreender a especificidade desta área do saber. A abordagem sociológica do crime tende a ser globalizante, preocupando-se não só em explicar porque se cometem crimes, mas também em problematizar a própria ordem social, compreender as implicações políticocriminais e delinear moldes, conteúdos e alcances de práticas de associação entre a teoria e a prática, nomeadamente, ao nível da reinserção social e prevenção da delinquência. Aceitando criminologista

a e

proposta sociólogo

apresentada integrado

na

por

Edwin

corrente

Sutherland de

(1939),

pensamento

do

interaccionismo simbólico, considerado por muitos o pai fundador da Criminologia Americana, a abordagem sociológica do crime pode ser realizada em três dimensões de análise: (i) pelo estudo da produção e feitura de leis, mormente ao nível do que se tem vindo a designar como “Sociologia do Direito”; (ii) pelo estudo da violação das leis e das suas causas, sendo esta uma área que tem convocado o interesse de diversos saberes e especializações, provenientes não só do campo da Sociologia, como também da Antropologia, Psicologia, Psiquiatria, Economia e Ciência Política; (iii) pelo estudo da reacção social ao crime, sendo esta uma dimensão de análise marcadamente sociológica, e que pode englobar diferentes aspectos da realidade social, desde a observação das consequências e fontes de legitimidade das reacções ao crime, à pesquisa dos determinantes sociais da criação das normas de conduta ou perspectivação da opinião pública relativamente a determinados actos criminosos. 2.5. AS INTERROGAÇÕES DA SOCIOLOGIA DO CRIME Principais questões de partida Todos os paradigmas teóricos têm em comum algumas questões de partida (interrogações dirigidas à realidade empírica, que servirão de fio condutor ao processo de pesquisa) dirigidas ao fenómeno criminal, e que podem ser formuladas do seguinte modo: 42

 Que visão da natureza humana suscita o fenómeno do crime?  De que modo o crime representa um desafio ou uma transgressão à ordem social?  O crime é um fenómeno natural, social ou legal?  Qual a extensão e distribuição social do crime? Trata-se de um fenómeno geral e normal em qualquer sociedade ou de uma actividade marginal e excepcional? Toda a gente comete crimes ou os crimes são praticados por grupos ou indivíduos específicos?  Quais são as causas do crime?  Quais as implicações político-criminais das diferentes visões do crime? As respostas a estas questões de partida direccionadas para o fenómeno do crime têm implícitas determinadas dicotomias, que aliás têm estado presente em todo o pensamento sociológico e teorização do social, desde a modernidade.

As dicotomias das teorias do social Podemos sintetizar as principais dicotomias que têm trespassado as diversas teorias do social, aplicando-as à temática do crime, do seguinte modo:  Natureza humana: voluntarismo versus determinismo O envolvimento na prática do crime resulta de um acto de livre vontade (voluntarismo) ou é primordialmente condicionado/guiado por forças que escapam ao controlo do criminoso/a ou de que ele/ela não têm consciência (determinismo)?  Ordem social: consenso versus conflito Todas as teorias sociológicas do crime remetem para o conceito «contrário» de ordem social. Esta tanto pode ser encarada como estando baseada no consenso da maioria da sociedade (embora uma minoria possa ser coagida), ou com base no conflito – latente ou manifesto – pelo qual uma minoria privilegiada impõe pela coerção os seus interesses e valores.  Definição do crime: legal versus social O crime tanto pode ser encarado como a transgressão à lei (definição legal), como a transgressão aos códigos normativos de uma determinada sociedade 43

(definição social). Estas definições tanto podem ser complementares e mesmo coincidentes, como descoincidentes: por exemplo, a fuga aos impostos pode ser crime do ponto de vista legal, mas pode ser um acto que não sofre reprovação da parte da maioria da população.  Extensão e distribuição do crime: limitada versus extensiva Um dos problemas fulcrais da Sociologia do Crime reside na dificuldade em usar e interpretar as estatísticas oficiais da criminalidade. Estas reportam que apenas um grupo restrito de grupos ou indivíduos cometem crimes. Mas será que nos transmitem a realidade? A actividade criminal estará limitada a um grupo restrito ou, pelo contrário, envolverá uma extensa parte da população?  Causas do crime: individuais versus sociais As causas do crime podem ser procuradas no indivíduo (personalidade, características biológicas, biografia) ou na sociedade e meio social envolvente. Por exemplo, a prática de violação pode ser percepcionada como um comportamento que resulta de uma desordem biopsíquica ou mesmo genética, enquanto que um sociólogo afecto às correntes feministas do crime explicará a ocorrência como resultado da sociedade patriarcal que incentiva ou desculpabiliza a violência sexual exercida sobre a mulher.  Implicações político-criminais: punição versus tratamento ou reinserção A perspectivação teórico-metodológica do crime e do criminoso acarreta implicações de ordem político-criminal. Por exemplo, se o crime é encarado como resultado de um acto voluntário, a tónica será direccionada para o castigo/punição. Se pelo contrário, se entender que o acto criminoso resulta essencialmente da força das estruturas sociais, a orientação político-criminal guiar-se-á pelos princípios do tratamento (campo da psicologia e psiquiatria) ou da reinserção social (sociologia e serviço social).

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2.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 2 Desenvolvam a seguinte actividade em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4:

Após terem visionado o filme “Laranja mecânica” do realizador Stanley Kubrick (1971), baseado na obra homónima de Anthony Burgess (1962), apontem as principais representações veiculadas da “personalidade criminal”. De que modo a tipificação de criminoso exposta no crime se afasta dos princípios subjacentes a uma abordagem sociológica do crime? Que perspectivas de política criminal subjazem à história relatada?

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2.7. SÍNTESE O primeiro ponto programático incide sobre o problema da definição e construção do crime como objecto da Sociologia e da sua relação com os diferentes modos como este é definido noutras áreas do conhecimento, tais como as ciências jurídicas, as ciências biológicas e as ciências psicológicas e psiquiátricas. Discute-se o que pode ser o contributo específico da Sociologia para a abordagem do crime, começando pela própria definição do conceito, procedendo-se a uma diferenciação entre a definição jurídico-legal de crime e a definição sociológica e salientando-se a complexidade inerente a este passo introdutório ao nível dos estudos sociais do fenómeno criminal. Por fim, formulamse as principais questões dirigidas à realidade social que a Sociologia do Crime suscita. 2.8. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem. 1. Que significa afirmar que o crime constitui um conglomerado histórico de elementos sociológicos, jurídicos, éticos e de senso comum ou estereótipos? 2. Em que consiste a definição jurídico-legal de crime? 3. Quais os três elementos básicos a considerar na definição de crime? 4. Qual a importância do consenso social na definição de crime que Durkheim apresenta? 5. O que distingue o conceito de desvio do conceito de crime? 6. Aponte as principais características da abordagem sociológica do crime, distinguindo-a dos princípios orientadores da abordagem do fenómeno criminal apresentada respectivamente, pela Biologia, pela Psicologia e pela Psiquiatria. 7.

Enuncie e explicite as principais dicotomias que estão presentes nas

teorias do social, aplicando-as à temática do crime. Apresente exemplos empíricos. 46

2.9. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR Leituras básicas recomendadas: Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora: 310; 159-241. Durkheim, Émile (1970) [1895], A divisão do trabalho social (1.º vol.), Lisboa, Presença: 67-116. Ferreira, Eduardo Viegas (2004), “Factores de resistência a opções delinquentes – um estudo exploratório”, comunicação apresentada no V Congresso Português de Sociologia - Atelier Direito, Crimes e Dependências, 12 a 15 de Maio, Braga, Universidade do Minho. Little, Craig (1989), Deviance and control – theory, research and social policy, Nova Iorque, Peacock Publishers: 1-23. Tappan, Paul (1947), “Who is criminal?”, American Sociological Review 12,1: 96102. Young, Jack (2003), Thinking seriously about crime: some models of criminology, www.malcolmread.co.uk/JockYoung/tsac_v_2003.pdfLeituras de aprofundamento: Gottfredson, M., Hirshi, T. (1990), A general theory of crime, Stanford, Stanford University Press. Karstedt, Susanne; Bussman, Kai (2000) (ed.), Social dynamics of crime and control : new theories for a world in transition, Oxford, Hart. Moyer, Imogene L., (2001), Criminological Theories: Traditional and Nontraditional Voices and Themes, Sage Publications: Thousand Oaks, California. Sellin, Thorsten (1938), Culture Conflict and Crime, Nova Iorque, Social Science Research Council. Sutherland, Edwin (1939) Principles of criminology, Philadelphia, J. B. Lippincott Company.

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2.10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Blumer, Herbert (1969), Symbolic interaccionism. Perspective and method, Englewood Cliffs, Prentice Hall. Burgess, Anthony (2004), A laranja mecânica, Aleph, Brasil. Tarde, Gabriel (1886), La criminalité comparée, Paris, Félix Alcan. Tarde, Gabriel (1890) Les lois de l' imitation. Etude sociologique, Paris, Félix Alcan.

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CAPÍTULO 3 – PRINCIPAIS MÉTODOS, TÉCNICAS DE PESQUISA E FONTES DE INFORMAÇÃO NA SOCIOLOGIA DO CRIME

SUMÁRIO: 3.1. Resultados de aprendizagem 3.2. Métodos na Sociologia do Crime 3.3. Técnicas de investigação na Sociologia do Crime 3.3.1. Inquéritos sociais 3.3.2. Estudos de caso 3.3.3. Observação participante 3.3.4. Estudos de follow-up 3.4. Actividade formativa 3 3.5. Fontes de informação sobre o crime 3.5.1. Estatísticas criminais 3.5.2. Estatísticas da associação de apoio à vítima (APAV) 3.5.3. Relatórios de segurança interna 3.5.4. Inquéritos de vitimação 3.6. Actividade formativa 4 3.7. Síntese 3.8. Teste formativo 3.9. Leituras e informação complementar 3.10. Referências bibliográficas

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3.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM  compreender as bases científicas dos estudos sociológicos do crime;  identificar e caracterizar as principais técnicas de investigação usadas na Sociologia do Crime;  captar as principais potencialidades e limitações de cada técnica de investigação;  aferir a técnica de investigação adequada aos objectivos de pesquisa;  localizar e identificar as principais fontes de informação sobre o crime, no plano nacional e internacional;  avaliar as principais limitações das fontes nacionais e internacionais existentes.

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3.2. MÉTODOS NA SOCIOLOGIA DO CRIME A triangulação metodológica O estudo científico do crime exige uma perspectiva interdisciplinar e de integração metodológica (Dias e Andrade, 1997: 114), que convoque e reúna diferentes saberes e métodos diversificados num objectivo comum. O mesmo será dizer que, idealmente, a investigação sobre o crime deverá socorrer-se do que Plattan (1990) designa como triangulação, para se referir à combinação de métodos ou de dados, que implique a consulta de uma variedade de fontes num mesmo estudo, o uso de vários investigadores provenientes de áreas diversas, o cruzamento de diferentes perspectivas teóricas e de diferentes metodologias e técnicas de pesquisa. No entanto, a prática tem revelado que é difícil concretizar esse

princípio,

não

se

tendo

ainda

sedimentado

uma

tradição

de

interdisciplinaridade e de integração no plano empírico, ao nível das abordagens do fenómeno criminal. Actualmente, a definição de fronteiras entre as diversas ciências que estudam o crime torna-se mais ténue e indefinida, pelo que o crime é cada vez mais perspectivado como sendo um fenómeno social total (Mauss, 2001) que invoca factores biológicos, psicológicos, culturais, económicos e sociais, exigindo a análise da vertente individual mas também a compreensão das estruturas sociais mais amplas em que se insere. Assim sendo, mesmo as ciências que mais cedo se implantaram no campo criminológico – como a biologia, a psicologia e a psiquiatria – não podem operar sem atender ao peso decisivo dos factores sociais e culturais estudados pela Sociologia. Métodos qualitativos e quantitativos Tradicionalmente, os métodos de natureza qualitativa e quantitativa estão associados a distintos paradigmas teóricos. Em termos muito simplistas e generalistas, poder-se-á afirmar que enquanto as correntes interaccionistas têm privilegiado as técnicas de pesquisa que permitem o acesso e compreensão dos universos simbólicos dos actores sociais e das suas práticas quotidianas (metodologias qualitativas); as correntes funcionalistas tendem a utilizar técnicas 52

de recolha de informação em grande escala, que permitam conclusões extensíveis à análise ampla e extensiva das estruturas sociais (metodologias quantitativas). Enquanto que os objectivos da investigação quantitativa consistem essencialmente em encontrar relações entre variáveis, testar teorias e fazer descrições recorrendo ao tratamento estatístico dos dados recolhidos; a investigação de índole qualitativa chega à compreensão dos fenómenos de forma indutiva, procurando compreender os sujeitos a partir dos seus quadros de referência. Não se pode falar de métodos e de técnicas de investigação que sejam específicos da abordagem sociológica do crime, tanto mais que se trata de uma problemática que tem suscitado uma considerável diversidade de correntes teóricas, cada uma privilegiando processos específicos de procura, recolha e interpretação de dados. Considerar-se-ão, resumidamente, as técnicas de investigação sociológica mais usadas ao nível dos estudos sobre o crime.

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3.3. TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO NA SOCIOLOGIA DO CRIME 3.3.1.

INQUÉRITOS SOCIAIS

Definição de inquérito social Os inquéritos sociais consistem em técnicas de investigação que procedem a uma recolha sistematizada, no terreno, de dados susceptíveis de poder ser comparados. Geralmente são inquéritos aplicados directamente a uma amostra estatisticamente representativa e de modo a permitir uma posterior análise quantitativa da informação apurada. Seja sob a forma de entrevista (situação em que o investigador está presente) ou de questionário (situação em que o investigador está ausente), os inquéritos sociais tendem a apresentar perguntas fechadas, de duração tendencialmente curta, que se caracteriza por um número de perguntas em regra elevado, com uma ordenação muito rigorosa, focadas dominantemente nos conhecimentos e opiniões do entrevistado. A utilização desta técnica de investigação visa sobretudo revelar e medir as atitudes colectivas dos cidadãos face ao crime e à justiça criminal. Pode também ser aplicada a outros objectos de estudo, nomeadamente, com o intuito de apurar a situação económica, familiar e habitacional de criminosos e delinquentes, assim como medir a propensão para o crime com base em factores como a classe social, a escolaridade, o estatuto sócio-profissional, a idade, o género e a situação profissional.

Tipos de inquéritos sociais Existem dois tipos essenciais de inquéritos sociais: os inquéritos de autodenúncia (self-reported studies) e os inquéritos à vitimação (victimization surveys), que têm como objectivo geral estudar o volume e a estrutura da criminalidade oculta (aquela que não é registada nas estatísticas oficiais), bem como as suas relações com a criminalidade oficial. Nos inquéritos sociais de auto-denúncia pergunta-se às pessoas que crimes terão cometido num determinado período de tempo. O trabalho pioneiro de A.

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Porterfield, em 1946 (cit. Dias e Andrade, 1997: 137) que incidiu sobre a delinquência de jovens estudantes universitários, oriundos de camadas sociais privilegiadas, revelou as virtualidades de aplicação desta técnica, ao comprovar que, ao contrário do que parecem revelar as estatísticas oficiais de criminalidade, não há diferenças significativas entre as práticas de delinquências de jovens das classes sociais favorecidas e aqueles que pertencem a grupos sociais desfavorecidos. A única diferença é que os jovens das classes sociais mais elevadas «escapam» aos registos oficiais da criminalidade. Como referem Dias e Andrade, a “homogeneidade tendencial no que toca à criminalidade real corresponde a um peso diferencial nas estatísticas oficiais em função da raça e do estatuto económico-social” (Dias e Andrade, 1997: 137). Nos inquéritos à vitimação colocam-se questões sobre as experiências como vítimas de crimes: pergunta-se se durante um determinado período de tempo, as pessoas foram vítimas de crimes, quantos e de que tipo e quais os motivos que conduziram as vítimas a renunciar à sua participação às instâncias formais.

Potencialidades e limitações As limitações mais óbvias da aplicação dos inquéritos de auto-denúncia são as resistências em admitir a prática de crime, assim como as próprias falhas de memória. No entanto, a aplicação desta técnica generalizou-se nos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Países Nórdicos. Os inquéritos de vitimação permitem salientar o papel criminológico da vítima, nomeadamente o seu papel de selecção, na medida em que a maioria da criminalidade oficial é criada pela própria vítima, que a relata às instâncias formais de controlo. De uma forma mais específica, consegue-se analisar a extensão e profundidade do conhecimento dos entrevistados sobre as vítimas de crime (experiências pessoais ou de conhecidos), identificar sentimentos característicos das vítimas de crime e analisar sentimentos de segurança e insegurança. Outras das vantagens da utilização deste tipo de inquéritos é que permitem aferir modelos de intervenção, ao nível da prevenção local, nacional e regional da criminalidade. Nos inquéritos à vitimação as principais limitações consistem na opacidade revelada em relação a determinados crimes: não só os casos dos homicídios, mas 55

também os denominados crimes sem vítima, de que são exemplo os crimes em que está em causa o interesse público e os designados crimes de colarinho branco. Além disso, outros factores comprometem a aproximação à criminalidade real com base nos inquéritos de vitimação, designadamente os processos de auto-selecção da informação da parte das próprias vítimas por medo de represálias ou por solidariedade com o autor do crime (usual nos crimes sexuais e de violência doméstica) e da não avaliação como crime de determinadas actividades, como por exemplo, os crimes informáticos (Gomes, 2001: 67). Geralmente, estes estudos têm interesse e são utilizados por organizações e estruturas que lidam directamente com a prevenção do crime (autoridades municipais e policiais); serviços de apoio à vítima e outras entidades que lidam directamente com vítimas de crime (serviços assistência social, estabelecimentos de ensino e de saúde), estruturas decisórias ao nível da política criminal (Ministério da Justiça e Administração Interna) e institutos de investigação na área da criminalidade. 3.3.2.

ESTUDOS DE CASO

No âmbito da Sociologia do Crime têm assumido particular importância os estudos de caso, nomeadamente de carácter biográfico e centrados na análise de carreiras delinquentes, de um ou vários casos individuais. Já nos anos trinta do século XX, esta técnica ganhou importância na Sociologia, sobretudo com a obra pioneira do sociólogo Clifford Shaw do Institute for Juvenile Research, ligado à tradição teórica e empírica da Escola de Chicago, que preocupado em estudar as causas da delinquência juvenil em meio urbano, desenvolveu a análise de percursos individuais em carreiras delinquentes, expressas nomeadamente nas histórias que encontramos em The Jack-Roller: A Delinquent’s Boy own Story (1930) e The Natural History of a Delinquent Career (1931). A informação relativa aos estudos de caso é feita pelo recurso a várias técnicas, sobretudo a entrevista em profundidade, a observação participante e a análise documental, orientada

para

uma

perspectiva

fenomenológica e

compreensiva, interessada em compreender a conduta humana a partir dos 56

próprios pontos de vista do sujeito ou grupos estudados (Carmo e Ferreira, 1997: 177). A aplicação da entrevista ao nível dos estudos de caso significa que há uma interacção directa entre entrevistador e entrevistado e, geralmente, as perguntas são abertas, focadas essencialmente nas vivências pessoais do entrevistado e havendo um grande grau de liberdade no diálogo e profundidade na forma da abordagem temática, por parte do entrevistado. A maior vantagem da aplicação desta técnica é a obtenção de dados aprofundados e próximos da realidade estudada, traduzidos em relatos muitas vezes densamente emocionais. A sua limitação mais óbvia é o facto dos dados apurados de não serem generalizáveis e da fiabilidade da informação depender muito do próprio investigador – da sua sensibilidade, conhecimento, experiência e orientações teóricas – na medida em que este se torna o próprio instrumento de recolha empírica. 3.3.3.

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE

A observação participante caracteriza-se pelo facto do investigador participar activamente na vida do grupo que é objecto de investigação. Há muito utilizada em estudos sobre pequenas comunidades, pelos antropólogos, esta técnica de investigação tem vindo a ser cada vez mais usada pela Sociologia do Crime, quer como ferramenta exploratória, quer como técnica principal de recolha de dados. Uma questão que tem particular relevo ao nível da observação participante diz respeito ao papel social que o investigador se propõe desempenhar junto da população observada. Este problema assume particular relevância ao nível dos estudos sociológicos do crime, na medida em que os contactos com grupos envolvidos em actividades ilícitas pode colocar problemas deontológicos decorrentes de eventuais conflitos de interesse entre o investigador e a população que é alvo de estudo. A escolha do papel a assumir pelo investigador e o processo de gestão da informação apurada agudiza-se em estudos realizados junto de pessoas que cometem crimes, gerando situações de «ambivalência sociológica», que como referem Carmo e Ferreira confronta o pesquisador com “o dilema da dupla 57

fidelidade, à comunidade académica que lhe pede resultados cientificamente interessantes e à população-alvo que em si confiou um património de informações e acesso reservado” (Carmo e Ferreira, 1997: 114). Contudo, a observação participante dirigida a grupos que cometem actividades ilícitas e socialmente recriminadas é possível com sucesso, como é atestado por estudos clássicos como o realizado por Saul Alinsky, criminologista da Escola de Chicago e discípulo de Clifford Shaw, que em 1938 realizou um estudo das actividades do bando de Al Capone (Horwitt, 1992), ou por William Foote Whyte, que em finais dos anos 30 foi viver para um bairro habitado por imigrantes italianos, a maioria dos quais envolvidos em actividades de crime organizado, tendo lá vivido três anos e meio (Whyte, 1943). Após estes estudos pioneiros, a observação participante ganhou grande tradição ao nível dos estudos sociológicos do crime, sobretudo no quadro das abordagens interaccionistas e no âmbito de estudos do meio prisional e bairros sociais. 3.3.4.

ESTUDOS DE FOLLOW-UP

A origem dos estudos de follow-up fica a dever-se grandemente aos estudos sobre a reincidência, pelo que um dos campos privilegiados da sua aplicação seja o acompanhamento das carreiras delinquentes, sobretudo após o termo de um determinado tratamento institucional. Este tipo de técnica de pesquisa tem maior tradição na Psicologia e Psiquiatria, por se centrarem principalmente no tratamento da delinquência e correspondente monitorização do paciente. No entanto, noutros países, como o Canadá, o Reino Unido e os Estados Unidos, os sociólogos desenvolvem este tipo de pesquisa, acompanhando as trajectórias de indivíduos ou de grupos sociais ao longo de um determinado período de tempo.

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3.4. ACTIVIDADE FORMATIVA 3 Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. Têm que fazer uma investigação acerca das representações sobre as autoridades policiais, da parte de um grupo de delinquentes juvenis. Interroguem-se sobre o tipo de técnica de pesquisa que lhes parece mais adequado e apontem eventuais dificuldades que podem encontrar. 2. Têm que fazer uma investigação das práticas de criminalidade da parte dirigida a uma amostra representativa da população portuguesa, com base em processos de auto-denúncia. Planeiem o processo de pesquisa, considerando os seguintes factores: a) Tipo de inquérito a aplicar (entrevista ou questionário) enunciando as respectivas vantagens e desvantagens; b) Que perguntas formular; c) Prevenção de possíveis obstáculos à recolha de informação.

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3.5. FONTES DE INFORMAÇÃO SOBRE O CRIME 3.5.1.

ESTATÍSTICAS CRIMINAIS

Tipo de informação As estatísticas criminais em Portugal são produzidas pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça e incluem diverso tipo de informação oficial que se divide genericamente do seguinte modo: (i) crimes chegados ao conhecimento das autoridades policiais; (ii) movimentos de processos de inquérito, de instrução e na fase de julgamento; (iii) caracterização dos processos crime na fase de julgamento findos; (iv) recursos em processos crime e transgressão; (v) execução das penas e medidas e intervenção social. Nos crimes chegados ao conhecimento das autoridades policiais inclui-se a informação estatística sobre registados pela Polícia Judiciária, pela Polícia de Segurança Pública, pela Guarda Nacional Republicana, pela Brigada Fiscal da Guarda Nacional Republicana, pela Inspecção-Geral das Actividades Económicas, pela Inspecção-Geral de Jogos, pelas Alfândegas e pelas Direcções Distritais de Finanças. No que respeita aos movimentos de processos de inquérito, de instrução e na fase de julgamento apresenta-se informação sobre o número de processos pendentes, entrados e findos em tribunais de 1.ª instância, por categorias de infracções. A caracterização dos processos crime na fase de julgamento findos inclui informação sobre os processos e circunstâncias dos mesmos, os arguidos, os condenados, as vítimas e tribunais. A parte relativa a recursos em processos crime e transgressão refere-se ao movimento dos processos em tribunais da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, bem como a caracterização dos mesmos. Por fim, na secção de execução das penas e medidas e intervenção social apresenta informação relativa aos processos de tribunais de execução de penas, aos serviços prisionais e ao Instituto de Reinserção Social.

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Potencialidades e limitações As estatísticas criminais não reflectem a verdadeira dimensão do crime pelo facto de incidirem sobre os crimes denunciados às autoridades policiais. São assim uma fonte pouco fidedigna relativamente a certo tipo de crimes, como os crimes sexuais, económico-financeiros e de corrupção (Carvalho, 2006). Mas as estatísticas criminais não deixam de ser um importante instrumento de trabalho para o sociólogo, desde que os seus dados não sejam lidos acriticamente. Em Portugal estas fontes estatísticas de informação ainda estão pouco trabalhadas, atendendo ao reduzido número de estudos publicados nesta matéria, embora sejam de destacar os trabalhos levados a cabo por Ferreira (1998), Lourenço e Lisboa (1998), Santos et al. (1996) e pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (Gomes et al., 2002, 2003). As estatísticas criminais facultam dados sobre os crimes denunciados às autoridades policiais e o movimento e caracterização dos processos crime. Assim, o sociólogo terá, por um lado, informação sobre a criminalidade registada, e por outro lado, dados sobre o funcionamento da justiça penal. No que diz respeito às queixas apresentadas às autoridades policiais, ficamos sem saber a criminalidade que fica ocultada do registo oficial, por vários motivos: a retracção da vítima em crimes susceptíveis de criar estigma social (por exemplo, crimes sexuais), quando a vítima entende que o conhecimento público do crime é mais gravoso do que a eventual punição do agressor (por exemplo, grandes empresas que sofrem ataques de piratas informáticos e que receiam que o conhecimento público desta situação venha denegrir a imagem da instituição em virtude da fragilidade do sistema informático), ou ainda os casos de pequenos crimes patrimoniais, em que as vítimas acham que não vale a pena participá-los, por ser reduzido o prejuízo material ou por não acreditarem na eficácia da actuação das autoridades policiais (Carvalho, 2006: 3). Relativamente ao número e caracterização de processos crime entrados em tribunal, o sociólogo terá ao seu dispor informação relativa ao funcionamento da justiça penal, nomeadamente a eficiência do sistema judicial (i.e. número de prescrições, duração média do processo, etc.) e a eficácia da acusação (a obtenção de condenações pedidas pelo Ministério Público) e o tipo de 61

criminalidade prevalecente. No entanto, obviamente que estes dados apenas apresentam os conflitos que chegaram à barra dos tribunais, ficando de fora as situações que o Ministério Público decidiu arquivar ou que a vítima optou por não levar o caso à justiça, por exemplo, por achar que seria muito dispendioso e moroso. Em suma, as estatísticas criminais reflectem mais adequadamente os crimes “de rua” do que os crimes escondidos do olhar público, como é o caso dos crimes sexuais e de muitos crimes de corrupção, financeiros e informáticos. 3.5.2.

ESTATÍSTICAS DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO À VÍTIMA

(APAV)

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que recebe queixas e denúncias de pessoas que foram vítimas de violência ou crimes e presta-lhes apoio psicológico, jurídico, económico ou social. Ao contrário do que acontece com as Estatísticas Criminais, estes registos discriminam as vítimas de violência doméstica, permitindo uma maior aproximação à dimensão real deste fenómeno. No entanto, é de salientar que os dados oficiais dos crimes de violência doméstica e crimes de natureza sexual não são inteiramente fiáveis, pois supõem-se que um número elevado de ocorrências fique por denunciar, devido a constrangimentos de ordem pessoal (a vítima acha inadequado relatar a ocorrência do crime, encara a situação como algo de foro privado, acha que não é um «verdadeiro» crime, receia represálias) e jurídica (descrê as autoridades policiais e os tribunais, não tem provas do sucedido, não sabe como apresentar queixa, receia não ser credível) (Lievore, 2002). No âmbito dos estudos da criminalidade realizados em Portugal, é de destacar um relatório publicado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) em 2003, intitulado Estudos sobre Prevenção do Crime e Vitimação Urbana (Antunes et al., 2003) e desenvolvido no âmbito do projecto CIBELE, cofinanciado pela Comissão Europeia no âmbito do Programa HIPOCRATES Incentivo de intercâmbio, formação e cooperação na área da prevenção de crime, que decorreu entre 2001 e 2002, sendo parceiros nacionais a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), o Instituto Superior de Polícia Judiciária e 62

Ciências Criminais (ISPJCC) que surge na publicação ainda com a anterior designação – INPCC, a Área Metropolitana de Lisboa (AML), o Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça (GEP-MJ) e a Câmara Municipal de Lisboa. O referido relatório é baseado em dois estudos: o primeiro identifica e analisa as representações da comunidade urbana sobre a vitimação, percepção de crime e sentimento de segurança e insegurança na área metropolitana de Lisboa, com base em dois inquéritos de vitimação feitos a dois grupos de amostra desta população – residentes e comerciantes. Estes dois inquéritos de vitimação tiveram um alcance reduzido, por se circunscreverem à área metropolitana de Lisboa, tendo sido um deles aplicado a uma amostra constituída por 1190 unidades de alojamento familiar e o segundo inquérito foi realizado junto de uma amostra constituída por 209 unidades comerciais. O segundo estudo inserido no relatório Estudos sobre Prevenção do Crime e Vitimação Urbana debruça-se sobre os modelos europeus de intervenção para a prevenção de crime e apoio à vítima e incidiu sobre a prevenção da vitimação pelas instituições da comunidade, em especial no que se refere à estruturação de fóruns de prevenção de crime e de serviços de apoio à vítima, as estratégias por eles utilizados e resultados obtidos. 3.5.3.

RELATÓRIOS DE SEGURANÇA INTERNA

Nos termos da Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, com a alteração constante da Lei n.º 8/91 de 1 de Abril, cabe ao Governo português, no âmbito do Ministério da Administração Interna, elaborar um relatório anual sobre a situação do país em matéria de segurança interna e apresentá-lo até 31 de Março, para apreciação por parte da Assembleia da República. Estes relatórios podem constituir um instrumento de trabalho precioso para o sociólogo interessado na temática do crime, por reunirem informação oficial de carácter muito diversificado: estatísticas criminais em Portugal e na Europa, mapas distritais de criminalidade, referências a legislação e programas específicos em matéria de prevenção da criminalidade, análise específica e detalhada sobre delinquência juvenil e referência a inquéritos internacionais, que permitam uma 63

perspectiva comparativa da criminalidade em diferentes países europeus. Em relação a este último tópico refira-se, a título de exemplo, o facto do relatório de segurança interna de 2002 contemplar uma referência pormenorizada e comparativa ao estudo intitulado “Public safety, exposure to drug related problems and crime”, realizado pela European Opinion Research Group (EORG) para a Comissão Europeia, com base numa sondagem à opinião pública sobre sentimentos de segurança e insegurança dos cidadãos. 3.5.4.

INQUÉRITOS DE VITIMAÇÃO

Tipo de informação Os inquéritos à vitimação permitem uma aproximação à criminalidade real, que não é possível atingir pelas estatísticas criminais, que contabilizam apenas os crimes que são participados às autoridades policiais e os crimes que chegam a julgamento. Refira-se, a título de exemplo, que um dos inquéritos de vitimação realizados em Portugal, em 1994, provou que pouco mais de 28% do total de crimes que foram identificados como tendo ocorrido nesse ano foram participados a uma autoridade policial (Ferreira, 1998: 5).

Âmbito de aplicação O recurso sistemático aos inquéritos de vitimação iniciou-se na década de sessenta do século XX, nos Estados Unidos, por via da Administração Johnson, que pretendia obter um quadro aproximado da criminalidade real, o que obrigava a procurar instrumentos alternativos de recolha de informação, que colmatassem as lacunas das estatísticas oficiais. Neste país, o primeiro inquérito à vitimação realizou-se em 1966, pelo National Opinion Research Center, tendo incidido sobre 10.000 agregados familiares. É sobretudo de destacar, em termos de resultados apurados, que a vitimização relatada do crime de violação excedia em quatro vezes as estatísticas oficiais. Em 1974, fez-se o primeiro inquérito nacional neste país, recaindo a recolha de informação sobre 120.000 pessoas (Dias e Andrade, 1997: 140). No Reino Unido, o trabalho pioneiro ao nível dos inquéritos de vitimação ocorreu

em

1982,

aplicado

pelo

British 64

Crime

Survey,

realizando-se

periodicamente com o intuito de perceber a dimensão real da criminalidade, adequar os efectivos policiais às necessidade e lançar projectos de elevação dos níveis de sentimentos de segurança da parte dos cidadãos. A título de exemplo, refira-se que em resultado destes inquéritos foram tomadas medidas de ordem prática nas cidades inglesas, tais como investimento em melhor iluminação, colocação de câmaras de observação dos espaços públicos, transportes reservados a mulheres e revitalização económica das áreas centrais (Antunes et al., 2003) Em Portugal, o primeiro inquérito à vitimação foi realizado em 1989, desenvolvido e coordenado por uma equipa do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça, que abrangeu dezasseis concelhos da área metropolitana de Lisboa. O objectivo da investigação era compreender as diferenças entre a imagem da criminalidade revelada pelos inquiridos e a informação contida nas estatísticas oficiais de criminalidade. Este primeiro inquérito continha questões de caracterização da vitimação individual e familiar, sobre o processo de decisão quanto à denúncia, opiniões sobre o desempenho da polícia e percepções sobre a evolução da criminalidade (GEPMJ, 1991). Em 1992, este estudo voltou a ser empreendido pelo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça (Almeida, 1993), desta vez cobrindo o território do Continente Português e incluindo uma nova bateria de questões, nomeadamente relacionadas com a avaliação da gravidade de alguns problemas sociais, sentimentos de segurança dirigidos à área de residência, tipo de punição considerado mais adequado para um determinado delito e especificação do tipo de ajuda recebido após a vitimação. Esta última dimensão de análise destinava-se à avaliação da necessidade de estabelecer organismos especificamente orientados para o apoio às vítimas, não só no aconselhamento jurídico, mas igualmente na prestação de apoio psicológico, económico e social. Como o objectivo destes estudos é permitir um acompanhamento da evolução da vitimação e da percepção da criminalidade, em 1994 o inquérito foi novamente aplicado, com ligeiras alterações, e desta vez cobrindo todo o país (Continente e Regiões Autónomas) (Almeida e Alão, 1995).

65

Infelizmente, no nosso país os inquéritos de vitimação de aplicação de âmbito nacional não têm tido continuidade. No entanto, os processos de vitimação, sentimentos de insegurança e percepções da criminalidade ao nível tanto da população residente no concelho de Lisboa como a área metropolitana de Lisboa têm continuado a ser objecto de estudo, com resultados publicados, respectivamente, em 1998 (Almeida, 1998) e 2003 (Antunes et al., 2003). Comparação internacional por inquéritos de vitimação O desenvolvimento da aplicação dos inquéritos de vitimação revelou-se extremamente frutífero e a importância destes estudos é reconhecida pelo poder central e também por instâncias internacionais. A nível internacional, é de destacar o International Crime Victim Survey (ICVS), pela primeira vez aplicado em 1989 a dezasseis países (treze dos quais europeus), financiado e apoiado pelo Centro de Documentação e Investigação do Ministério da Justiça Holandês. Este trabalho avaliou a frequência da vitimação em onze tipos de delitos, o processo de denúncia às autoridades, as razões para a frequente ausência de denúncia, o tipo de punição considerado mais adequado para os infractores e a adopção de atitudes de prevenção da vitimação e tem tido continuidade ao longo do tempo, com a aplicação de inquéritos em 1992 (dezanove países) e 1996/97 (quarenta e quatro países). Infelizmente, Portugal nunca foi país participante no âmbito destes estudos.

66

3.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 4 “Uma estatística vale aquilo que vale a burocracia que a produz” Maurice Cusson Após uma análise das estatísticas oficiais de crimes registados pela Polícia Judiciária, Polícia de Segurança Pública e Guarda Nacional Republicana (anexo III), realizem as seguintes actividades: 1. Refiram possíveis causas para: a) o reduzido número de crimes de aborto, de burla informática e de crimes contra a família; b) inexistência do crime de tráfico de influências; c) elevado número de furtos e roubos. 2. Apontem o tipo de indivíduos/grupos sociais que considera que possam ter cometido esses crimes, com base na ponderação dos recursos necessários para a prática dos mesmos; 3. Enunciem as lacunas de informação presentes nas estatísticas oficiais da criminalidade e as dificuldades em aceder à criminalidade «real»; 4. Face aos resultados obtidos, desenvolvam a questão da extensão e da distribuição social da actividade criminosa.

3.7. SÍNTESE Nesta unidade de aprendizagem explanam-se principais metodologias e técnicas de investigação social no domínio do crime, apontando as principais potencialidades e lacunas. Remete-se ainda os alunos para as principais fontes de informação

sobre

criminalidade,

nos

planos

nacionais

e

internacionais,

sublinhando a necessidade de adoptar uma atitude crítica face às mesmas. 3.8. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem.

67

1. Explique

a

necessidade

de

uma

«triangulação»

metodológica

na

investigação sobre o crime e enuncie as dificuldades inerentes a essa prática. 2. De que modo as metodologias qualitativas e quantitativas têm estado associadas a distintos paradigmas teóricos sobre o crime? 3. Que tipo de inquéritos sociais são habitualmente usados na investigação sobre o crime? 4. Que tipo de informação nos dão as estatísticas criminais e quais as suas principais limitações? 5. Que tipo de crimes as estatísticas criminais ocultam ou tornam invisíveis? E que tipo de crimes mais evidenciam? Porquê? 6. De que modo os inquéritos à vitimação e os inquéritos de auto-denúncia ajudam a colmatar a realidade da criminalidade projectada pelas estatísticas criminais? 7. Quais os principais objectivos da aplicação dos inquéritos de vitimação? 8. Quais as principais fontes sobre os crimes de violência doméstica? 9. Que motivos podem conduzir as vítimas de crime a não denunciar essa ocorrência às autoridades policiais? 10. Que tipo de informação nos pode transmitir os relatórios anuais de segurança interna?

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3.9. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR Leituras básicas recomendadas: Barra da Costa, José (1997), “A segurança dos discursos sobre insegurança”, O Perito-Tecnologias de Polícia, ano III, n.º 1: 3-14. Barra da Costa, José (2002), “Segurança, sociedade e sistema”, Pela Lei e pela Grei, Revista da Guarda Nacional republicana, ano XIV, n.º2: 4-5. Carmo, Hermano; Ferreira, Manuel (1998), Metodologia da investigação – guia para a auto-aprendizagem, Lisboa, Universidade Aberta: 173-183. Carvalho, Nuno (2006), “As estatísticas criminais e os crimes invisíveis”, http://www.psicologia.com.pt/artigos/textos/A0272.pdf Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora: 113-150. Ferreira, Eduardo Viegas (1998), Crime e insegurança em Portugal. Padrões e tendências, 1985-1996, Lisboa, Celta: 1-7. Maguire, Mike (2002), “Crime statistics: the data ‘explosion’ and its implications” in Maguire et al. (eds) The Oxford handbook of criminology, Oxford University Press: 322-375. http://www.oup.com/uk/orc/bin/0199249377/ Leituras de aprofundamento: Antunes, Manuel et al. (2003), Estudos sobre prevenção do crime e vitimação urbana, Lisboa, APAV. http://www.apav.pt/pdf/cibele_portugues.pdf Esteves, Alina (1998), A criminalidade na cidade de Lisboa – uma geografia da insegurança, Lisboa, Colibri. Lemaitre, A. (1989), “Recherches sur l’insécurité urbaine et sa prévention », Revue Internationale de criminologie et de police téchnique, vol. XLII, n.º 2, Paris. Lisboa, Manuel et al. (2003), O Contexto Social da Violência Contra as Mulheres Detectada

nos

Institutos

de

Medicina

http://socinova.fcsh.unl.pt/genero_pub.htm

69

Legal,

Lisboa,

CIDM,

Lisboa, Manuel et al. (2003), Os Custos Sociais e Económicos da Violência Contra as Mulheres, Lisboa, CIDM, http://socinova.fcsh.unl.pt/genero_pub.htm~ MacNamara, Donal; Karmen, Andrew (1983), Deviants, victims or victimizers, Londres, Sage. Maguire, Michael (1995) (ed.), Interpreting crime statistics, Oxford, Oxford University Press. Walker, N. D. (1971), Crimes, courts and figures: an introduction to criminal statistics, Harmondsworth, Penguin.

70

Informação relevante disponível na Internet : Informação estatística: Estatísticas policiais e de apoio à investigação (Ministério da Justiça) http://www.gplp.mj.pt/estjustica/CD2002/Anuário%20Estatístico%20da%20Justiç a%20CDROM/Dados%20Estatísticos/epolícias.htm Estatísticas

da

Associação

Portuguesa

de

Fórum

for

Apoio

à

Vítima

http://www.apav.pt/home.html Estatísticas

do

European

Victim

Services

http://www.euvictimservices.org/ Comparações Internacionais de Inquéritos à Vitimização http://ruljis.leidenuniv.nl/group/jfcr/www/icvs/ Relatórios de Segurança Interna http://www.mai.gov.pt/data/006/index.php?x=rasi http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Governos/Governos_Constitucionais/GC15/ Ministerios/MAI/Comunicacao/Publicacoes/20030102_MAI_Doc_Rel_Seguranc a_Interna.htm Informação sobre estudos e investigação sobre o crime em Portugal Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais http://www.ispjcc.pt/estudos.htm Observatório Permanente da Justiça Portuguesa http://opj.ces.uc.pt/

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3.10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Almeida, Maria (1993), Inquérito à vitimação, 1992, Lisboa, Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. Almeida, Maria (1998), Vitimação e insegurança no concelho de Lisboa, Lisboa, Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. Almeida, Maria; Alão, Paula (1995), Inquérito à vitimação, 1994, Lisboa, Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. Antunes, Manuel e tal. (2003), Estudos sobre prevenção do crime e vitimação urbana, Lisboa, APAV. http://www.apav.pt/pdf/cibele_portugues.pdf Carmo, Hermano; Ferreira, Manuel (1998), Metodologia da investigação – guia para a auto-aprendizagem, Lisboa, Universidade Aberta. Carvalho, Nuno (2006), “As estatísticas criminais e os crimes invisíveis”, http://www.psicologia.com.pt/artigos/textos/A0272.pdf Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora. Ferreira, Eduardo Viegas (1998), Crime e insegurança em Portugal. Padrões e tendências, 1985-1996, Oeiras, Celta. Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça (1991), Inquérito de vitimação, Lisboa, GEPMJ. Gomes, Conceição (2001), “A evolução da criminalidade e as reformas processuais nas últimas décadas: alguns contributos”, Revista crítica de ciências sociais, n.º 60: 61-86. Gomes, Conceição et al. (2002), As tendências da criminalidade e das sanções penais na década de 90 – problemas e bloqueios na execução de penas de prisão e da prestação de trabalho a favor da comunidade, Coimbra, CES, OPJP. Gomes, Conceição et al. (2003), A reinserção social dos reclusos: contributos para o debate sobre a reforma do sistema prisional, Coimbra, CES, OPJP. Horwitt, Sanford (1989), Let them call me rebel: Saul Alinsky, his life and legacy, Nova Iorque, A. Knoff.

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Lievore, Denise (2002), “Non-reporting and hidden reportings of sexual assault in Austrália”, comunicação apresentada na Third Australasian Women and Policing Conference: Women and Policing Globally, Canberra, Austrália. Lourenço, Nelson; Lisboa, Manuel (1998), Dez anos de crime em Portugal: análise longitudinal da criminalidade participada às polícias (1984-93), Lisboa, CEJ. Mauss, Marcel (2001), Ensaio sobre a dádiva, Lisboa, edições 70. Patton, Michael (1990), Qualitative evaluation and research methods, Newbury Park, Sage. Santos, Boaventura et al. (1996), Os tribunais nas sociedades contemporâneas. O caso português, Porto, Afrontamento. Shaw, Clifford (1930), The Jack Roller: a delinquent boy’s own story, Chicago, University of Chicago Press, 1930. Shaw, Clifford (1931), The natural history of a delinquency career, Chicago: University of Chicago Press. Whyte, William Foote (1943), Street corner society, Chicago, Chicago University Press.

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CAPÍTULO 4 – SOCIOGÉNESE DA SOCIOLOGIA DO CRIME

SUMÁRIO: 4.1. Resultados esperados de aprendizagem 4.2. O pensamento sobre o crime na Antiguidade 4.3. A visão espiritual 4.4. O Renascimento 4.5. A criminologia clássica 4.6. Actividade formativa 5 4.7. O positivismo criminal 4.8. Actividade formativa 6 4.9. Síntese 4.10. Teste formativo 4.11. Leituras e informação complementar 4.12. Referências bibliográficas

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4.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a:  delinear um sucinto esboço histórico do pensamento social sobre o crime, apontando as principais hipóteses explicativas para as causas deste fenómeno;  identificar os condicionalismos sociais, filosóficos, históricos e empíricos subjacentes às diferentes interpretações e análises dos fenómenos criminais;  Contrapor a visão optimista do Iluminismo com o pessimismo determinista do positivismo criminológico;  problematizar o positivismo criminológico, apontando as respectivas políticas criminais subjacentes;  apontar os elementos precursores da abordagem científica do crime.

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4.2. O PENSAMENTO SOBRE O CRIME NA ANTIGUIDADE Durante muito tempo acreditou-se que a ocorrência do crime se devia a factores externos aos indivíduos, nomeadamente de origem sobrenatural e divina e por isso, em larga medida inexplicáveis. Mas desde cedo existiu a preocupação de indagar se não existiriam factores intrínsecos ao ser humano, que explicassem a propensão para a violação das regras da sociedade. Se alguns autores se cingiram à busca de explicação para o comportamento criminal em traços de carácter dos indivíduos (maldade, imoralidade, egoísmo, irracionalidade), outros houve que se debruçaram sobre causas internas de carácter biológico. Teríamos que esperar pelo séc. XIX para se iniciar a abordagem propriamente científica do comportamento criminoso ou delinquente, variando as perspectivas consoante os investigadores alicerçavam a sua análise nas características biológicas, psicológicas e sociais para explicar a ocorrência do fenómeno criminal. Mas já na Antiguidade encontramos vestígios da reflexão em torno do crime e da busca de fundamentação empírica de um pressuposto que tem acompanhado os estudos do crime e do criminoso até hoje – o de que o criminoso é necessariamente diferente e que essa diferença poderá explicar o motivo pelo qual determinados indivíduos cometem crimes e outros não. Almeceon de Cretona, filósofo e médico grego do séc. VI a.c., contemporâneo de Hipócrates e considerado por muitos o pai fundador da patologia fisiológica, considerava que o homem tinha tanto de divino como de animal, pelo que o delinquente (assim como o doente) representava um desequilíbrio que potenciava a faceta animalesca. Consta que Almeceon foi o primeiro a dissecar animais, com o objectivo de estudar as correlações entre as condutas e as características biológicas do cérebro, interessando-se em particular pela busca das diferenças que se suponha existirem nos cérebros dos delinquentes. Enquanto Sócrates (469-399 a.C.) defendeu que a instrução e a formação de carácter possibilitaria reabilitar os criminosos, prevenindo a reincidência, o seu discípulo Platão (428-347 a.C.) debruçou-se sobre os factores políticos, económicos e sociais que poderiam potenciar a criminalidade, elegendo na obra A República que compôs provavelmente entre 380 a 370 a.C. (Platão, 2005) a 77

ignorância, a miséria e a cobiça como as causas determinante da ocorrência do crime. Nesse diálogo em que Platão elege como personagem principal Sócrates, que surge ocupado em debater os conceitos de justiça e injustiça, é exposta a sua concepção de sociedade perfeita. Esta obra apresenta as matrizes principais de vários movimentos de reforma social surgidos na modernidade e as principais interrogações que podemos encontrar são as seguintes: O que é um homem bom e como ele chega a ser o que é? O que é um Estado bom e por que é bom? Que conhecimento o homem deve ter para ser bom? O que o Estado deve fazer para levar os homens à aquisição desse conhecimento, que é condição da virtude? As interrogações formuladas por Platão em A República são retomadas na sua obra final As Leis (Platão, 1999), que apresenta o crime como resultado de uma doença de causa que poderia ser tríplice: fruto de «paixões» (inveja, cobiça e cólera), da ignorância e da busca desenfreada do prazer. Nesse contexto, a pena deverá surgir não como castigo, mas como remédio para a doença, ou seja, como forma de libertar o delinquente do mal que o assolou. Assim, se a concepção platónica de Estado se funda na ideia de que este deve proporcionar ao homem as melhores condições para desenvolver as suas virtudes e eliminar os seus males, as penas assumirão uma vertente pedagógica, um papel educativo, destinado a conduzir o homem para o Bem (ideia suprema). Nunca, na perspectiva de Platão, o cumprimento das leis de uma sociedade deve ser feito por temor à punição, mas sim por vontade de manter a coesão social. A reflexão sobre o crime, as suas causas e acções para a sua prevenção ou eliminação é retomada por Aristóteles (384-322 a.C.), nos Escritos morais e políticos, principalmente em Ética a Nicómano (1950) e em Política (1991). A análise que o filósofo grego faz do crime é em larga medida contraditória: se em Ética a Nicómano adopta uma visão repressiva do crime, considerando o criminoso um inimigo da sociedade, que deve ser castigado pela força; em Política considera a miséria a principal causa do crime e da revolta e os delitos mais graves seriam os cometidos para consumir o supérfluo. Temos assim que em Ética a Nicómano, obra que apresenta os fundamentos da moral aristotélica e a doutrina metafísica fundamental, o filósofo entende que todo o ser tende necessariamente para a realização da sua natureza e nisto está o 78

seu fim, o seu bem, a sua felicidade. Visto ser a razão a essência característica do homem, este realiza a sua natureza vivendo racionalmente e consegue a felicidade mediante a virtude, que equivale ao racionalismo. Neste sentido, de acordo com a moral aristotélica, o criminoso é um ser irracional, que se afasta da virtude. Já na obra Política, na qual se debruça sobre as formas de troca e a passagem da economia natural para a economia monetária, aponta o factor económico como estando na base do desvio à virtude, chamando a atenção para a responsabilidade do Estado na tarefa de educação e formação do homem e de assegurar as necessidades básicas dos cidadãos. Aqui, o criminoso assume o papel de vítima de uma sociedade economicista e de um Estado preocupado sobretudo com a guerra e a conquista. 4.3. A VISÃO ESPIRITUAL Na Idade Medieval o crime é considerado um pecado e susceptível de punições cruéis e tortura para obter a confissão do acto. As causas do crime são procuradas em factores sobrenaturais e divinos (Vold et al., 2002: 2-4) e a chamada “explicação espiritual” para a ocorrência do crime fundamentou a justiça criminal na Europa, durante séculos (Vold et al., 2002: 14). A identificação do crime com o pecado atribuía à Igreja e aos poder político a autoridade moral necessária para, em nome de Deus, infligirem penas e torturas consideradas bárbaras aos olhos da civilização ocidental dos dias de hoje. O próprio simbolismo religioso presente em muitos dos castigos atribuídos aos criminosos atesta esta visão do crime como pecado. As explicações de origem sobrenatural para a ocorrência do crime traduzem uma concepção do mundo e da sociedade que, em parte, vai ser refutada por S. Tomás de Aquino (1226-1274),

monge dominicano, filósofo e teólogo italiano,

que procura conciliar a filosofia aristotélica com o cristianismo e apresenta os primeiros fundamentos da justiça distributiva (defesa da ideia de dar a cada um o que é seu, segundo uma lógica de relativa igualdade). Em parte, o pensamento de S. Tomás de Aquino dá continuidade à explicação espiritual da ocorrência do crime: parte do conceito de “Lei natural divina”, que entende ser acessível ao entendimento humano pela conjugação da 79

observação com a fé. Acredita que a natureza humana apresenta na sua essência a busca permanente do bem. De acordo com este entendimento, o crime tanto prejudica a vítima como o criminoso, na medida em que o acto criminal se desvia da lei divina e da propensão natural do homem para o bem. A grande inovação deste pensador foi defender que a pobreza é incentivadora do roubo – o crime mais vulgar na sociedade do seu tempo – chegando ao ponto de na obra Summa Theologica defender o chamado furto famélico. Defendia que a pena devia ser uma medida de defesa social e contribuir para a regeneração do culpado, além de implicitamente conter uma ameaça e um exemplo. 4.4. O RENASCIMENTO Ao longo dos séculos XV e XVI a concepção sobrenatural e divina do crime vai coexistindo com o avanço lento de uma abordagem de outro tipo de causas explicativas para a ocorrência do crime. Destacam-se autores como More, que desenvolve uma reflexão sobre as causas sociais e económicas do crime e Della Porta, que lança alguns fundamentos do estudo dos factores biológicos. Thomas More (1478- 1535), filósofo político e chanceler de Inglaterra, admirador de Platão e autor da obra Utopia (1516), na qual concebe a arquitectura da sociedade ideal, apresenta-se como um pensador humanista e optimista e como tal considera o crime um reflexo da sociedade, apontando como causa dominante a opulência dos ricos, que atrai os pobres para a cobiça e roubo. Na cidade imaginária que idealizou, não existe crime e apenas há um mínimo de leis, por dois motivos: porque existe a comunhão de bens e instituiu-se a abolição da propriedade privada. Nesta sociedade, as pessoas viveriam sem luxos, trabalhando apenas o necessário para sobreviver, pelo que não haveria distinção entre ricos e pobres – fundamento da maioria dos actos criminosos. Há ainda que atender à obra produzida pelo matemático italiano renascentista, Giovan Battista Della Porta (1535-1615), lança os fundamentos da frenologia (estudo da estrutura do crâneo) e da fisiognomia - suposta ciência que pretende «adivinhar» o comportamento com base em características faciais, que teve amplas repercussões na Europa nos séculos XVIII e XIX. Os impactos desta 80

abordagem foram consideráveis nos primórdios da análise biológica dos criminosos, no século XIX, em particular nos trabalhos desenvolvidos por Lombroso, fundador da criminologia científica. 4.5. A CRIMINOLOGIA CLÁSSICA O período Iluminista foi pródigo em reflexões sobre as articulações entre o criminoso, a sociedade e as leis, criando-se as bases da denominada «criminologia clássica», que vai refutar a argumentação anterior das causas naturais ou divinas da ocorrência do crime. A característica fundamental da criminologia clássica é basear-se no pressuposto de que o crime resulta de um acto individual de livre vontade, de carácter racional e calculista, que se guia pelo princípio da obtenção máxima do prazer, procurando evitar o sofrimento. Assim, o criminoso realiza sempre o acto racional e livre de ponderar as vantagens e desvantagens de praticar o delito. Um dos autores mais representativos da criminologia clássica é Beccaria (1738-1794), mas as origens históricas desta corrente de pensamento pode ser encontrada nos pensadores do “contrato social”, como Hobbes (1588-1678), Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778) e Rousseau (1712-1778). O filósofo e teórico inglês, Thomas Hobbes, autor de obras fundamentais como Leviatã (1651) e Do Cidadão (1651), assume como tema fulcral da sua reflexão a ordem social e procura debater as dificuldades de estabelecer uma sociedade justa e pacífica, a partir de indivíduos egoístas, individualistas e dispostos a produzir o dano no seu semelhante. A natureza egoísta dos homens conduzem-nos à guerra, mas para evitar a auto-destruição surge a necessidade de uma sociedade organizada, a um contrato social, pelo qual é estabelecido um pacto entre todos, que obriga a que cada indivíduo prescinda de parte dos seus direitos em prol do bem comum. Uma vez constituída a sociedade e assegurada a ordem social, cada indivíduo espera protecção da parte do soberano (Leviatã) e cria-se a expectativa que todos cumpram a sua parte do acordo, acarretando com os custos e as vantagens de uma acção colectiva. Neste contexto, o criminoso é entendido como alguém que não cumpre o contrato social, sendo legítima a acção

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pela força, da parte do Estado, para assegurar a manutenção da ordem social e punir a acção perturbadora da paz social. Montesquieu, escritor e filósofo francês, considerado por alguns o fundador da Sociologia do Direito e o “primeiro a fazer obra sociológica” (Mendras, 1974: 9). Autor da obra L´esprit des lois (1748), verdadeira crítica à sociedade francesa do seu tempo, procura compreender as regras que a sociedade impõe e como estas se relacionam com a condutas dos homens e a estrutura geral do meio social, acreditando que a diversidade e a relatividade das sociedades e culturas humanas resulta dos impactos diferenciados que o clima, a educação, a cultura e as condições de vida criam nas relações sociais. Neste âmbito, proclamava que o bom legislador empenha-se na prevenção de delito, e não se contenta, simplesmente, em castigar. Pode-se afirmar que o autor inaugura o sentido reeducador da pena e preocupa-se em classificar os crimes consoante o bem jurídico atingido. O filósofo Jean Jacques Rousseau (1712-1778) apresenta uma concepção do crime que vai de encontro aos grandes temas desenvolvidos pela sua reflexão central: a origem natural das sociedades e o contrato social. Ao falar de um estado natural, procura legitimar e fundamentar os direitos à liberdade e à igualdade, inalienáveis do indivíduo. Mas em o Contrato Social (1762) discorre sobre a ordem social, pelo qual o indivíduo é chamado a ceder uma parte dos seus direitos a uma vontade colectiva e soberana. Esta vontade geral, se estiver bem organizada pelo Estado, verá reduzido o crime. Na obra Le Citoyen: ou discours sur l'economie politique (1755) Rousseau afirma que “a miséria é a mãe dos grandes delitos”. Estes pressupostos vão de encontro a uma concepção da criminalidade que é retomada por Voltaire (1694-1778), poeta, filósofo e ensaísta francês, que via na pobreza a causa dos roubos e furtos e condena a aplicação da pena de morte, os martírios, suplícios ou torturas aplicadas contra o delinquente, ao mesmo tempo que empreende a luta pela reforma das prisões e a defesa dos direitos dos reclusos. No conjunto dos teóricos do contrato social, destaca-se César Bonesana, o Marquês de Beccaria (1738-1794), jurista e pensador italiano, por apresentar um conjunto de propostas de reforma do sistema de justiça criminal, de forma a torná82

lo mais racional, mas também de modo a evitar a excessiva crueldade das punições infligidas aos criminosos. Em 1764, publica o livro Dos Delitos e das Penas, que consolida a ideia da separação entre a justiça divina e humana. Esta obra apoia-se na ideia de Rousseau manifestada em o Contrato Social, para fundamentar a ideia da legitimidade de punir e da utilidade das penas, entendendo que cada homem tem de prescindir de uma parcela da sua liberdade, para preservação da segurança e tranquilidade públicas; mas a pena a atribuir devia ser proporcional à liberdade «cedida». Crítico do sistema penal vigente, entende que devem ser prevenidos todos os abusos das autoridades, defendendo alguns princípios como os seguintes: os juízes não devem interpretar as leis penais; as acusações não devem ser secretas; as penas devem ser proporcionais aos delitos; não se pode admitir a tortura do acusado; o objectivo da pena não é castigar, mais sim impedir a reincidência e servir de exemplo; a pena deve ser pública, pronta e necessária; o réu jamais poderá ser considerado culpado antes da sentença condenatória. Tal como outros autores, entende que o roubo é ocasionado geralmente pela miséria e pelo desespero, motivo pelo qual as penas devem ser moderadas, considerando ainda que a sociedade não tem o direito de aplicar a pena de morte. Não obstante as diferentes perspectivas aqui apresentadas do crime e do criminoso, os teóricos do contrato social têm em comum o pressuposto de que o indivíduo está dotado de livro vontade, guiando-se pela razão e interesses pessoais. Podem ser controlados pelo medo ao castigo: se o sofrimento suscitado pela pena for superior ao prazer ou vantagens retiradas da prática do crime, será de esperar que as pessoas escolham não cometer o crime. De acordo com Vold et al. (2002), a visão clássica da criminologia continua ainda hoje, sem grandes alterações, a corresponder “às concepções da natureza humana apresentadas pelas instâncias de controlo social em todas as sociedades industriais desenvolvidas” (Vold et al., 2002: 20).

83

4.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 5 Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. Listem razões que justifiquem que a sociedade restrinja o poder sancionatório, em nome da expansão dos direitos dos criminosos e reclusos. 2. Listem razões que justifiquem que a sociedade crie mecanismos de defesa perante a ameaça da criminalidade. 3. Debatam as diferentes posições, apontando a opinião prevalecente no grupo.

4.7. O POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO O início da publicação de estatísticas criminais anuais, em França, em 1827 (Vold e tal., 2002) veio revelar alguns factos sobre o fenómeno criminal que fragilizaram a tese da criminologia clássica, de que o acto criminal resulta de um acto de livro vontade: por um lado, as estatísticas evidenciaram a regularidade do crime e não a sua variação; por outro lado, constatou-se de que ao contrário das previsões optimistas dos teóricos do contrato social, o crime não estava a ser controlado socialmente, mas antes se assistia a um aumento da criminalidade. No século XIX, vários condicionamentos sociais e históricos vão proporcionar o nascimento do denominado «positivismo criminológico», cujos postulados principais são os seguintes: negação do livre-arbítrio e crença no determinismo e previsibilidade dos fenómenos humanos, recondutíveis a «leis»; crença na neutralidade axiológica e separação entre a ciência e a moral; recurso privilegiado aos métodos experimentais e ao empiricismo. Neste período de acelerada urbanização, expansão demográfica e industrialização, o clima social, político e intelectual do estudo do crime alterou-se radicalmente, assistindo-se a uma falência das expectativas optimistas criadas pelas reformas penais avançadas pelo Iluminismo, em parte porque o visível aumento da criminalidade leva ao questionamento mais intenso sobre a natureza e causas do crime. 84

Não será demais dizer que foi sobretudo Cesare Lombroso (1835-1909), quem mais impulsionou os estudos da criminalidade no século XIX, com repercussões que se disseminaram ao longo do século XX e que, nos dias de hoje, continuam ainda a marcar as abordagens biopsíquicas da criminalidade mais ortodoxas e radicais. De facto, os trabalhos deste professor universitário, médico psiquiatra e criminologista influenciado pela frenologia e fundador da denominada antropologia criminal, viria a marcar decisivamente as décadas posteriores de investigação sobre as causas do crime. A influência de Darwin (The origin of species, 1859 e Descent of man, 1871) é visível na abordagem que Lombroso faz do crime e do criminosos. São de destacar as obras de Lombroso intituladas O Homem Criminoso (1876) O Crime, Suas Causas e Soluções (1899) por lançarem os fundamentos da sua proposta de «criminologia científica», pela qual as causas do crime são procuradas pela observação empírica de traços físicos de criminosos, acreditando-se poder alcançar a determinação de leis que permitissem prever a ocorrência da criminalidade,

segundo

uma

lógica

pré-definida

e

determinada

pelas

características inatas dos indivíduos. Com base em estudos genéticos e evolutivos influenciados pelo darwinismo, Lombroso defende que certos criminosos têm traços de «atavismo» físico e psíquico (reaparição de características que foram apresentadas somente em ascendentes distantes) de tipo hereditário, reminiscente de estágios mais primitivos da evolução humana e que se traduz em formas e dimensões anormais do crânio e da mandíbula e assimetrias da face. Com base no pressuposto da existência de atavismo no criminoso, criou um tipo-ideal de criminoso nato (indivíduo geneticamente predisposto para a prática do crime), que revelaria uma ou várias das seguintes características físicas: forma ou dimensão «anormal» da calota craniana e da face; fartas sobrancelhas; molares proeminentes; orelhas grandes e deformadas; dissimetria corporal; grande envergadura de braços, mãos e pés. Estas assumpções cristalizaram-se na ideia de que o criminoso formaria um tipo antropológico unitário, cujas características físicas seriam acompanhadas de determinados comportamentos e traços de personalidade, tais como sensibilidade 85

diminuta à dor, crueldade, leviandade, aversão ao trabalho, instabilidade, vaidade, tendências a superstições e precocidade sexual. O positivismo criminológico conheceu amplas repercussões, traduzidas nomeadamente nos discípulos de Lombroso mais reconhecidos, como Enrico Ferri e Rafael Garófalo, embora o primeiro tenha chamado a atenção para a importância dos elementos sociológicos na ocorrência do crime, e o segundo tenha apontado o peso dos factores psicológicos. Mas em ambos encontrámos o núcleo fundamental do positivismo: o postulado determinista e a rejeição do livre arbítrio e decorrentes pressupostos metafísicos, partindo de uma clara e decisiva influência da teoria da selecção natural com base nos parâmetros do evolucionismo darwinista. Assim, se Lombroso trabalhou o conceito de «atavismo», Garófalo dissertou sobre a «lei da adaptação» (Garófalo, 1908). O positivismo no estudo do crime é levado a uma forma extremada, como fica patente nas seguintes palavras de Ferri: “Para nós é o método experimental que constitui a chave de todo o conhecimento” (Mannheim, 1984: 295). Neste conjunto de autores, assistimos a uma concepção de política criminal, assente na ideologia do tratamento do criminosos, e à ampliação das exigências e direitos da sociedade sobre o criminoso, reforçando-se assim o primado da defesa da sociedade perante a “ameaça” da criminalidade, que levaria Garófalo a considerar desejável a eliminação do criminoso se este denotasse incapacidades psíquicas para a vida social (Dias e Andrade, 1997: 19). A criminologia clássica e o positivismo criminológico adoptam assumpções distintas sobre o crime e o criminoso, que servem de base a diferentes políticas criminais. Se o indivíduo possui livre vontade e guia a acção pela razão e pelo cálculo, adoptando uma postura hedonista, pela qual procura maximizar o prazer e evitar a dor e sofrimento, então o sistema de justiça criminal deverá punir o criminoso, procurando desse modo evitar ou diminuir a prática do crime. Se o comportamento criminosos resulta de factores biológicos e ou psicológicos, então a opção será a sociedade eliminar o criminoso ou então tratá-lo. No debate actual em torno das políticas criminais, o confronto entre estas duas tendências é ainda evidente (Walklate, 2003: 19).

86

4.8. ACTIVIDADE FORMATIVA 6 Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4 : 1. Apontem as implicações político-criminais da assumpção de que o criminoso é nato (Lombroso). 2. Indiquem em que medida as bases de dados genéticos para investigação criminal poderão conduzir a um lombrosianismo do século XXI.

4.9. SÍNTESE Nesta unidade de aprendizagem expõem-se as principais características do pensamento sobre o crime – sua natureza e causas – em diferentes períodos históricos. Remete-se ainda os alunos para as possíveis implicações políticocriminais subjacentes a uma postura de acentuação das responsabilidades da sociedade perante o criminoso, por um lado, contraposta a uma posição de defesa face ao crime, sentido como ameaça.

87

4.10. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem.

1. Explique como é que os pensadores da Antiguidade procuravam a fundamentação empírica da ideia de que o criminoso tem características diferentes dos outros indivíduos. 2. Em que medida Platão e Aristóteles apresentam uma concepção pedagógica da pena? 3. Explique os princípios biologizantes da ocorrência do crime que se pode encontrar em Giovan Battista Della Porta. 4. Aponte os autores precursores da abordagem sociológica do crime que consideram que a pobreza e as desigualdades sociais potenciam a ocorrência do crime. 5. Sintetize os princípios humanistas do Iluminismo na abordagem do fenómeno criminal e do criminoso. 6. Exponha os pressupostos que conduzem o positivismo criminológico a focalizar as causas do crime. 7. Explique a concepção determinista do comportamento criminal exposta por Lombroso. 8. Sintetize as principais implicações político-criminais do positivismo criminológico.

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4.11.

LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR

Leituras básicas recomendadas: Barra da Costa, José (2000), “Coordenadas históricas, formas e problemas actuais da criminologia”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 10, n.º1, Coimbra, Coimbra Editora: 111-142. Carvalho Ferreira, J. M. et al. (1995), Sociologia, Lisboa, McGrawhill: 3-67. Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora: 319. Manheim, Hermann (1984), Criminologia comparada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. Pina, Luiz (1940), “A antropologia criminal em Portugal: síntese histórica”, Actas do Congresso do Mundo Português, vol. XII, Lisboa: 679-708. Vold, George (2002), Theoretical criminology, Oxford, Oxford University Press. Walklate, Sandra (2003), Understanding criminality, Cardiff, Open University Press. Leituras de aprofundamento: Barnes, Harry E.; Becker, Howard (1945), Historia del Pensamiento Social, 2 vols. México, Fondo de Cultura Económica. Barra da Costa, José (1999), Práticas delinquentes (de uma criminologia do anormal a uma antropologia da marginalidade), Lisboa, Colibri. Beccaria, Cesare (1998 [1766]), Dos delitos e das penas, Lisboa, Ed. Calouste Gulbenkian. Correia, Eduardo (1958), Criminologia, Faculdade de Directo da Universidade de Coimbra. Correia, António (1914), Os criminosos portugueses. Estudo de antropologia criminal, Coimbra, E. França Amado. Costa, José Martins (1999), Práticas delinquentes: de uma criminologia do anormal a uma antropologia da marginalidade, Lisboa, Colibri. Cuin, Charles Henry et al. (1995), História da Sociologia, Lisboa, D. Quixote.

89

Garófalo, Rafael (1908), Criminologia, Lisboa, Clássica Editora. Lombroso, Césare (1901), L'anthropologie criminelle et ses récents progrès, Paris, Félix Alcan. Oliveira, L. C. (1953), Introdução à criminologia : factor biológico da criminalidade, factor social da criminalidade, Coimbra, Coimbra Editora. 4.12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aristóteles (1950), Éthique de Nicomaque, Paris, Librairie Garnier, Ed. L. Voilquin. Aristóteles (1991), A Política, São Paulo, Martins Fontes, Ed. R. L. Ferreira. Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora. Manheim, Hermann (1984), Criminologia comparada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. Mendras, H. (1975), Élements de Sociologie, Paris, Armand Colin. Platão (1999), Las leyes, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Platão (2005), A República: politeia, Lisboa, Guimarães Editores.

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CAPÍTULO 5 – A ABORDAGEM DO CRIME NOS CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA

SUMÁRIO: 5.1. Resultados esperados de aprendizagem 5.2. Introdução às teorias sociológicas do crime 5.3. Karl Marx e a visão do crime na sociedade capitalista 5.4. Desenvolvimentos posteriores da abordagem marxista 5.5. Actividade formativa 7 5.6. O conceito de anomia e a tese da normalidade e da funcionalidade do crime em Durkheim 5.7. Actividade formativa 8 5.8. Síntese 5.9. Teste formativo 5.10. Leituras e informação complementar 5.11. Referências bibliográficas

92

5.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a:  identificar as continuidades e descontinuidades teóricas, temáticas e metodológicas presentes nas diferentes teorias sociológicas do crime, distinguindo entre teorias etiológico-explicativas e teorias interaccionistas e as teorias do consenso e do conflito;  reconhecer as relações entre o crime, relações de poder e controlo e desigualdades sociais na perspectiva marxista;  identificar as articulações entre o crime e o sistema económico;  apontar as relações entre a propriedade privada e a ocorrência de crimes económicos e contra o património;  reconhecer as relações entre o poder, a produção das leis e a sua aplicação;  desenvolver as articulações entre o crime e a ordem social que o integra, apresentando e contrapondo as visões marxistas e de Durkheim;  explicar a tese da normalidade e da funcionalidade do crime em Durkheim;  contrapor o modelo médico do estudo e interpretação da criminalidade à abordagem sociológica expressa por Marx e Durkheim.

93

5.2. INTRODUÇÃO ÀS TEORIAS SOCIOLÓGICAS DO CRIME A

interpretação

sociológica

do

crime

tende

a

apresentar

uma

intencionalidade crítica da ordem social, mais ou menos explicitada consoante a escola de pensamento em causa. Teríamos que esperar pelo séc. XIX para assistirmos à institucionalização da Sociologia como disciplina científica e desde os seus primórdios o crime foi considerado um objecto de estudo privilegiado, por ser percepcionado como uma das ameaças mais prementes ao que se considera ser o normal e esperado funcionamento da sociedade. Os primeiros sociólogos, vulgarmente conhecidos como os clássicos da Sociologia – nomeadamente Marx, Durkheim e Weber – apresentaram e desenvolveram os principais fundamentos das teorias sociológicas do crime e da justiça. Se os dois primeiros autores referidos se debruçaram sobre o fenómeno criminal propriamente dito, Max Weber focou a sua atenção na moderna burocracia das sociedades industriais, lançando as bases da actual Sociologia do Direito e da Administração da Justiça. Começaremos por contrapor as abordagens do fenómeno criminal apresentadas

respectivamente

por

Karl

Marx

e

Émile

Durkheim,

por

corresponderem à conhecida antinomia consenso-conflito, que na história do pensamento sociológico pode revestir-se de outras denominações, consoante as diferentes perspectivas: por exemplo, Chambliss e Mankoff (1976) tanto contrapõem teorias funcionalistas a teorias do conflito, como falam do «valueconsensus model» por oposição a um «ruling-class model». Por sua vez, Dahrendorf (1974) propõe a contraposição entre a teoria da integração e a teoria da dominação. A aplicação do modelo do conflito à análise do crime significa que este será perspectivado em termos das relações de poder que lhe estão subjacentes e que opõem classes sociais que ocupam posições económicas e ideológicas diferenciadas. Esta análise privilegia a relação entre os modelos institucionais (em particular o sistema económico) e a distribuição diferencial da criminalidade. Além disso problematiza os próprios processos de criação da lei e os modos da sua aplicação, que crê serem diferenciais consoante a posição de poder ocupada pelos destinatários da regulação legal. 94

O modelo do consenso irá perspectivar o crime como um comportamento que suscita de um modo generalizado uma reacção colectiva negativa, mais ou menos explicitada, sendo a ocorrência do crime um dos contextos privilegiados para o reforço da coesão social, na medida em que a reacção social que desperta, fortemente emotiva, poderá reforçar os laços sociais. O que sobretudo a caracteriza é o pressuposto de que as normas jurídico-criminais tutelam os valores essenciais e comuns a todos os membros da colectividade e que o crime resulta da recusa ou não interiorização daqueles valores e do universo cultural que os sustenta. De seguida iremos expor os ulteriores desenvolvimentos das teorias funcionalistas do crime, referindo autores como Merton, Cloward e Ohlin e apresentando uma reflexão em torno dos principais significados político-criminais destas abordagens do fenómeno criminal. Outras abordagens sociológicas do crime serão explicitadas, nomeadamente as teorias da ecologia criminal e desorganização social, as teorias da subcultura delinquente e as teorias interaccionistas. Sublinhe-se que esta exposição e desenvolvimento das principais orientações teóricas da abordagem sociológica do crime não segue sempre uma sequência cronológica, mas sim uma argumentação que privilegia a focagem nas continuidades e descontinuidades dos temas e abordagens desenvolvidos pelos diferentes autores. Refira-se a este propósito, que uma das divisões que implicitamente

surge

na

referência

e

aprofundamento

das

distintas

conceptualizações teóricas e metodológicas do pensamento sociológico sobre o crime radica sobretudo na diferenciação entre teorias etiológico-explicativas e teorias interaccionistas. Note-se, ainda, que as diferentes formulações teóricas serão apresentadas sob a forma de tipo-ideal, ou seja, seleccionaram-se determinadas elementos essenciais e mais representativos de cada teoria, sem haver uma preocupação em enfatizar a diversidade e diferenciação interna presente nas diversas escolas de pensamento sobre o crime. Aceitando a proposta de divisão teórica apresentada por Dias e Andrade (1997), pode-se afirmar que a sociologia do crime apresenta duas principais 95

vertentes, que iremos desenvolver pormenorizadamente ao longo da explanação dos principais conteúdos programáticos da disciplina de Sociologia do Crime: a vertente etiológico-explicativa e a vertente interaccionista. No conjunto das teorias etiológicas incluem-se as teorias funcionalistas, ecológicas e da subcultura e, em parte, as teorias de origem marxista. Não obstante

estas

teorias

apresentarem

diferenças

e

mesmo

divergências

consideráveis, têm em comum o facto de focarem a sua atenção única e exclusivamente no criminoso, procurando uma explicação para a questão fundamental: «porque é que determinados indivíduos cometem crimes e outros não?». Esta questão crucial corresponde, grosso modo, à principal interrogação que encontrámos nas teorias do crime de nível individual, oriundas da Psicologia e Biologia. Só que enquanto a Psicologia e a Biologia procuram explicações para a ocorrência do crime em factores como a personalidade e biografia dos indivíduos ou em factores biopsíquicos, as teorias sociológicas etiológicas centram-se na análise de factores oriundos das estruturas sociais. Deste modo, a explicação para a ocorrência do crime pode ser encontrada em elementos como condições ambientais, físicas e habitacionais, pertença a uma determinada classe social, filiação étnica ou inserção numa determinada subcultura. Por sua vez, as teorias interaccionistas preocupam-se sobretudo com a ordem social, pela qual os objectos, as pessoas e os eventos são identificados, arrumados e interpretados de forma a receberem um significado e um sentido (Berger e Luckmann, 1999; Scott, 1972). A questão fundamental dos interaccionistas será: “porque é que determinados indivíduos são classificados como criminosos e outros não?”. Perante este posicionamento interrogativo, o fenómeno criminal é perspectivado como o resultado de uma acção colectiva e interactiva, na qual intervêm de igual modo, criminosos e não criminosos, num contexto de pluralização cultural e moral, sujeita a constantes definições alternativas da realidade, de que os comportamentos desviantes são expressão.

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5.3. KARL MARX E A VISÃO DO CRIME NA SOCIEDADE CAPITALISTA O legado de Karl Marx (1818-1883) representa um dos eixos teóricos fundamentais da abordagem sociológica do crime. O autor centra a explicação da ocorrência do crime na natureza da sociedade capitalista, acreditando na redução sistemática do crime ou no seu desaparecimento depois de instaurado o socialismo e subsequente redução ou eliminação da desigualdade na distribuição da riqueza e consolidação da estabilidade económica. A perspectiva marxista do crime caracteriza-se por privilegiar o papel do sistema económico tanto no plano da distribuição diferencial da criminalidade, como na génese e especificidade da produção das leis criminais, decorrente da evolução histórica das estruturas económicas e dos conflitos sociais. A ancoragem no sistema económico revelada pela teoria marxista do crime, conduz a acentuar o carácter classista tanto da produção de leis como da sua aplicação. Nesta perspectiva, o direito é um instrumento dos grupos detentores de poder e serve para sancionar e criminalizar as condutas dos grupos destituídos de propriedade, em particular aquelas condutas susceptíveis de pôr em causa os interesses dos grupos sociais dominantes. Do mesmo modo, o aparelho judiciário resiste à criminalização das condutas dos poderosos. Não obstante a importância da visão do crime apresentada por Marx, ao longo da sua vasta obra, a temática do fenómeno criminal não assume particular relevância. Assim, apenas destacamos os trabalhos do autor nos quais o crime é explicitamente referido e que são os seguintes:  Em A Ideologia Alemã (1845-46) Marx critica os dogmas do consenso da ideologia burguesa, incorporada nas instâncias de controlo social;  No artigo “O ‘Estado-Modelo’ da Bélgica”, publicado na revista Nova Gazeta Renana (1848) Marx e Engels estabelecem os princípios do determinismo economicista na abordagem do crime;  No artigo “Pena de morte”, publicado no jornal New York Daily Telegraph (1853), Marx nega a legitimidade da pena de morte como instrumento de prevenção geral, defendendo o direito do criminoso ao cumprimento de uma pena;

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 No artigo “População, crime e pobreza”, publicado no New York Daily Telegraph (1858) Marx baseia-se na análise das estatísticas oficiais do crime para defender o carácter selectivo das instâncias de controlo social. Em suma, na perspectiva marxista, o crime é um fenómeno social normal na sociedade capitalista, por advir da exploração do homem e das consequências daí decorrentes: miséria, desmoralização, isolamento, individualismo e guerras constantes em busca do lucro. Deste pressuposto básico advém a crença de que numa sociedade socialista, sem classes, o crime desaparecerá.

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5.4. DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES DA ABORDAGEM MARXISTA O modelo teórico desenvolvido por Karl Marx reflecte a chamada abordagem de conflito do crime, embora o denominado modelo de conflito represente uma ampla diversidade de matrizes teóricas, sustentadas tanto por autores marxistas, como por não marxistas, nomeadamente por Ralf Dahrendorf (1974). Diferenças substanciais separam o modelo de conflito desenvolvido respectivamente, por Marx e Dahrendorf: por um lado, enquanto que o primeiro autor situa a ocorrência do conflito na oposição entre duas classes diferentemente situadas em relação à propriedade dos meios de produção; Dahrendorf fala de uma desigual distribuição de autoridade, que considera ser inerente à própria natureza da vida social. Por outro lado, se Marx acredita que o conflito poderá ser progressivamente eliminado no quadro de uma sociedade socialista, por desaparecer a principal fonte de conflito – a desigualdade na distribuição dos meios de produção e da riqueza; Dahrendorf entende que o conflito é inerente às próprias relações sociais, motivo pelo qual qualquer agrupamento humano imperativamente ordenado provoca a resistência à autoridade. Seria já em finais dos anos cinquenta que se assistiria à primeira tentativa de sistematização da aplicação do modelo do conflito à análise específica do crime, com George Vold, na obra Theoretical Criminology (1958). Esta abordagem seria posteriormente desenvolvida em finais dos anos sessenta, com o trabalho de Austin Turk, intitulado Criminality and Legal Order (1969) e pela denominada corrente da Criminologia Radical, já na década de setenta. Esta última corrente de pensamento assume-se expressamente como uma criminologia marxista, encabeçada por autores como Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young (Taylor et al. 1973), F. Pearce (1977), William Chambliss (1999) e William Chambliss e Robert Seidman (1971), Richard Quinney (2001, 1977) e Michel Foucault (1997). Em Portugal, a criminologia marxista conheceu expressão desde a década de setenta, nomeadamente por Sousa Santos (1977). A criminologia marxista radical apresenta-se como teoria crítica da ordem jurídico-penal opressiva do capitalismo, conferindo ampla importância à reflexão sobre a definição do objecto e do papel do investigador no âmbito da abordagem do crime e dos aparelhos de controlo social. Em vez da definição jurídico-legal de 99

crime, os autores marxistas ambicionam descortinar os pressupostos de reprodução de poder e de privilégio das classes dominantes que o Direito e o sistema penal espelham. Do mesmo modo, defende-se o distanciamento do investigador em relação ao Estado e aos aparelhos de controlo social, preconizando que as instituições devam ser escrutinadas pelos cientistas sociais, em vez de serem instâncias empregadoras ou financiadora dos estudos do crime. São elucidativas desta perspectiva as seguintes palavras do criminologista marxista Tony Platt: “Precisamos de uma definição de crime que espelhe a realidade dum sistema legal que assenta no poder e no privilégio. Aceitar a definição legal é aceitar a ficção da neutralidade do direito (…) O Estado e o aparelho jurídico, em vez de dirigirem a nossa investigação devem, pelo contrário, converter-se em tópicos centrais de investigação, como instituições criminógenas, implicadas em corrupção, fraude, genocídio.” (Platt in Taylor et al., 1973: 103) A sociologia crítica procura rebater o mito da sociologia como ciência axiologicamente neutra e deste modo se explica a ampla discussão conferida ao estatuto profissional do sociólogo, mormente o seu posicionamento face às esferas do poder. Outras das preocupações dos teóricos marxistas do crime é analisar as articulações entre os desígnios de protecção da propriedade desenvolvidos pela sociedade capitalista e a ocorrência do crime. Assim, a desigual distribuição da riqueza potencia as acções de tentativa de acumulação da capital do modo mais célere possível: de modo legal ou ilegal, como será o caso dos criminosos. Tudo isto num contexto em que o enquadramento legal, na perspectiva deste grupo de autores, projecta uma excessiva protecção da propriedade, que deste modo vai de encontro aos interesses das classes dominantes (proprietárias). Por fim, é de salientar os contornos assumidos pela Sociologia do Crime nos países socialistas: em particular na União Soviética, esta área de investigação assumiu particular relevo, principalmente a partir da década de sessenta do século XX, altura em que se dá a sua “elevação à categoria de instância fundamental na decisão dos novos rumos da política criminal soviética.” (Dias e Andrade, 1997: 39). Verifica-se, assim, que nos países socialistas a Sociologia do 100

Crime, ou mais propriamente, a criminologia socialista, desenvolve-se sob a égide do poder oficial, sendo chamada a provar a sua utilidade, nomeadamente a explicar as razões pelas quais o crime subsiste numa sociedade socialista, que se supõe realizar a plena harmonia entre o homem e a sociedade. Como será fácil supor, a resposta da criminologia socialista será a de que o crime ocorre em virtude da existência de resquícios da sociedade capitalista na consciência dos cidadãos e da persistência da propaganda imperialista. A criminologia marxista tradicional tende a encarar a lei e o sistema de justiça criminal como instrumentos ao serviço do Estado, para servir os interesses imediatos dos capitalistas. Esta visão algo simplista foi dando lugar, segundo Vold et al. (2002), a uma visão mais estruturalista, que considera que a lei e a justiça destinam-se principalmente a consolidar as relações sociais que permitem a manutenção a longo prazo do sistema capitalista (Vold et al., 2002: 255). Significa isto assegurar principalmente, embora não exclusivamente, os interesses dos grupos sociais que detém a propriedade dos meios de produção, o que explica nomeadamente, a incapacidade e insucesso das políticas criminais no combate aos crimes económicos e à corrupção perpetradas pelos ricos. É ilustrativo desta posição o trabalho de Reiman, a vitimização pública (em termos de mortes, danos ou roubo de propriedade e danos físicos) causada pelos poderosos é superior à vitimização provocada pela pequena criminalidade (Reiman, 1998). 5.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 7 Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. Comentem o pressuposto marxista de que a lei não é neutra, mas sim um instrumento de poder da classe dominante que favorece os mais ricos. Apresentem exemplos retirados da realidade portuguesa. 2. Apontem as fragilidades da abordagem marxista, relativamente aos seguintes tópicos: a) o desaparecimento do crime pressupõe a eliminação da sociedade capitalista; b) os indivíduos cometem crimes em função da posição que ocupam no sistema económico, sem se tomar em consideração a dimensão do livre-arbítrio.

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5.6. O CONCEITO DE ANOMIA E A TESE DA NORMALIDADE E DA FUNCIONALIDADE DO CRIME EM DURKHEIM Émile Durkheim (1859-1917) abordou de modo sistemático a problemática do crime, começando por afirmar que o crime é normal em qualquer sociedade, afirmando que “não há fenómeno que apresente de maneira mais irrefutável todos os sintomas da normalidade, dado que aparece como estreitamente ligado às condições de qualquer vida colectiva” (Durkheim [1895] 1970: 86). A influência deste autor foi marcante tanto na Sociologia, como na Criminologia. A abordagem que apresenta do impacto das forças sociais na conduta humana, nomeadamente na ocorrência do crime, foi bastante radical para a época. A abordagem durkheimiana do crime ancora-se no conceito de anomia – por via etimológica significa a ausência de normas e falta de referência a regras práticas de vida em sociedade. A teoria da anomia procura apontar as tensões socialmente estruturadas que induzem a ocorrência do crime e a consequente adopção de soluções desviantes. Procura assim descobrir como é que o sistema social produz o crime e o faz como resultado normal – esperado e funcional – do seu próprio funcionamento. O conceito de anomia tem sido usado para fins extremamente diversificados e numa ampla variedade de contextos. Trata-se de uma conceito que assume uma grande importância na linha das teorias sociológicas funcionalistas, nomeadamente no trabalho de Robert Merton (1938) e de Talcott Parsons (1951, 1982). A teoria da anomia foi fundada por Émile Durkheim e desde então tornou-se uma das mais prestigiadas abordagens explicativas do crime, tanto na Sociologia, como na Psiquiatria e nos estudos religiosos e de participação política. Começou por ser usada por Durkheim como uma hipótese explicativa da ocorrência de uma forma específica de suicídio – o “suicídio anómico” – que segundo o autor se deve ao carácter anómico dos processos de regulação social da actividade económica nos mundos industrial e comercial das sociedades modernas. Contudo, o conceito de anomia acabou por adoptar o estatuto de teoria geral da criminalidade e das formas mais variadas de comportamento desviante: alcoolismo, consumo de

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estupefacientes, doença mental, heterodoxia religiosa e alienação em relação à vida pública. Convém precisar que em Durkheim este conceito assume um carácter macrossociológico, sendo a anomia entendida como a propriedade de um sistema social e não um «estado de espírito» deste ou daquele indivíduo dentro do sistema. O conceito de anomia assume dois sentidos diferentes na obra de Durkheim: por um lado, em Le Suicide (1897) o autor apresenta uma visão pessimista da anomia, entendendo-a como uma situação generalizada de desregramento do sistema, manifestada numa sociedade carecida de ordem normativa para controlar a força desintegradora dos instintos, dos interesses e das ambições individuais. Em De la division du travail social (1895), a anomia é uma manifestação «anormal ou patológica» do sistema social, que traduz no essencial desajustamentos entre órgãos sociais e normas associadas a determinados papéis ocupacionais. Deste modo, a concepção de anomia no quadro da abordagem que o autor faz da evolução das sociedades não assumirá tanto uma função desintegradora, como acontece no estudo sobre o suicídio. Na realidade, Durkheim afirma que o normal será que a divisão do trabalho crie solidariedade social. Só que poderão ocorrer o que chama de perturbações anormais ou patológicas do sistema, decorrentes de conflitos entre o trabalho e o capital. Assim sendo, a anomia, e mais especificamente o crime, assumirá o papel de sintoma da perda de legitimidade das regras que antes comandavam as condutas, revelando a necessidade de renovação do sistema. A anomia é apontada como a causa social do desvio, da não aplicação da norma social (ou legal) por parte de indivíduos socializados como desviantes. Neste sentido, a anomia é entendida como um problema de desadaptação das populações, em particular dos desviantes ou criminosos, às turbulências da vida moderna (Dores, 2004: 16). Trata-se assim de procurar descortinar como certas estruturas sociais exercem tensões sobre algumas pessoas da sociedade, no sentido de se envolverem em actividades criminosas ou desviantes.

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Mas Durkheim concebe também o crime como o resultado normal do funcionamento do sistema social e da imperiosa necessidade de actualização da força normativa dos seus valores. De facto, afirma Durkheim, que o crime é útil, não só por expressar a autoridade limitada da consciência colectiva, como por poder constituir um factor de mudança moral. No entanto, acima de tudo Durkheim reconhece a utilidade do crime como factor de reafirmação da solidariedade colectiva, expressa na condenação ritual do criminoso. Ao afirmar que os criminosos sempre existirão em qualquer sociedade e que o seu comportamento desempenha funções sociais de criatividade e de inovação do sistema, por provarem a falta de legitimidade e actualidade das regras de conduta, Durkheim está a afirmar que nem todo o crime é anómico: só o é quando o crime corresponde a uma crise de coesão social, em que as taxas de criminalidade se situam em valores acima do socialmente esperado e tolerável. Nesse caso, o crime atingirá formas anormais ou mórbidas, incompatíveis com a vida social. O autor apresenta uma abordagem do crime que se afasta do modelo médico e antropológico do estudo do criminoso e da criminalidade, dominante no séc. XIX, por dois motivos: (i) pela ênfase que coloca nas estruturas sociais para explicar a ocorrência do crime, pondo de lado as causas do crime provocadas por factores individuais; (ii) por excluir qualquer ideia de diferença ou anomalia, na medida em que a sua tese principal é a de que o crime é o resultado do normal funcionamento do sistema e da actualização da força normativa dos seus valores.

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5.7. ACTIVIDADE FORMATIVA 8 Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. É corrente a assumpção de que nos dias de hoje assistimos a um exponencial da criminalidade urbana, clamando-se a necessidade urgente de reformar o sistema penal e de dotar as autoridades de novas regras de actuação. Comentem esta ideia, à luz da teoria de Durkheim sobre a utilidade do crime.

5.8. SÍNTESE Este módulo de aprendizagem enuncia as principais teorias sociológicas do crime e discute em particular os contributos dos Clássicos da Sociologia para o estudo do crime, em particular a obra de Karl Marx e Émile Durkheim. Apresentam-se ainda, as principais coordenadas de diferenciação das diversas teorias sociológicas do crime, a saber: (i) a distinção entre teorias etiológico-explicativas e teorias da reacção social; (ii) a demarcação entre teorias do consenso e do conflito. 5.9. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem. 1. O que distingue as teorias etiológico-explicativas do crime, da denominada nova criminologia? Qual a questão fundamental dirigida ao crime, que é formulada por estas diferentes correntes teóricometodológicas? 2. O que distingue o modelo do conflito do modelo do consenso, aplicados à abordagem do crime? Quem são os autores fundadores de cada um destes modelos teóricos? 3. Em que dimensão da sociedade centra Karl Marx a sua análise do crime? 4. De que modo é que Karl Marx considera que o crime poderá ser erradicado da sociedade? 105

5. Em que consiste o carácter classista das leis, na perspectiva de Karl Marx? 6. Exponha as principais características da teoria crítica do crime, desenvolvida pela corrente marxista radical, a partir dos anos sessenta do séc. XX. 7. Diferencie os dois sentidos do conceito de anomia desenvolvidos por Émile Durkheim. 8. Explique por que motivo Émile Durkheim considera que o crime pode ser útil numa sociedade (tese da funcionalidade do crime). 9. Apresente exemplos do papel de actualização da força normativa que o crime pode desempenhar. 10. Exponha os motivos pelos quais se considera que a abordagem do crime apresentada por Émile Durkheim se afasta radicalmente do modelo médico da criminalidade, em vigor no século XIX.

5.10. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR Leituras básicas recomendadas: Carvalho Ferreira, J. M. et al. (1995), Sociologia, Lisboa, McGrawhill: 155-165; 431-436. Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora: 330; 311-320. Dores, António Pedro (2004), “Anomia em Durkheim – entre a sociologia e psicologia prisionais”, Comunicação apresentada às Jornadas de Estudos Penitenciários, Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa, 7 e 8 de Maio de 2004. Durkheim, Émile (1970) [1895], A divisão do trabalho social (1.º vol.), Lisboa, Presença: 67-116; 145-167. Pearce, F. (1977) O marxismo e o crime, Lisboa, Iniciativas Editoriais.

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Leituras de aprofundamento: Bemburg, Jón Gunnar (2002), “Anomie, social change and crime. A theoretical examination of institutional-anomie theory”, The British Journal of Criminology, n.º 2: 729-72. Santos, Boaventura de Sousa (1977), “The law of the oppressed: the construction and reproduction of legality in Parsagada law”, Law and Society Review, 12: 5126. Spitzer, Steven (1975), “Toward a Marxian theory of deviance”, Social Problems, vol. 22, n.º5: 638-651. Taylor Ian et al. (1973) The new criminology: for a social theory of deviance, Londres e Kegan Paul. Vold, George et al. (2002) Theorethical criminology, Nova Iorque, Oxford University Press. 5.11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Berger Peter; Luckmann, Thomas (1999) A construção social da realidade: um livro sobre sociologia do conhecimento, Lisboa, Dina Livro. Chambliss, William (1999), Power, politics and crime, Oxford, Westview Press. Chambliss, William; Mankoff, M. (1976), Whose law, what order? A conflict approach to criminology, Nova Iorque, Jonh Wiley and Sons. Chambliss, William; Seidman, Robert (1971), Law, order and power, Reading, Mass. Dahrendorf, Ralf (1974), Las clases socials y su conflito en la sociedade industrial, Madrid, Rialp. Dores, António Pedro (2004), “Anomia em Durkheim – entre a sociologia e psicologia prisionais”, Comunicação apresentada às Jornadas de Estudos Penitenciários, Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa, 7 e 8 de Maio de 2004. Durkheim, Émile (1970) [1895], A divisão do trabalho social (1.º vol.), Lisboa, Presença. Durkheim, Émile (1992) [1897], O suicídio, Lisboa, Presença. Foucault, Michel (1997), Vigiar e punir : nascimento da prisão, Petrópolis, Vozes. 107

Merton, Robert (1938), “Social structure and anomie”, American Sociological Review, n.º 3: 672-682. Parsons, Talcott (1951) Towards a general theory of action, Harvard, Harvard University Press. Parsons, Talcott (1982), El sistema social, Madrid, Alianza Editorial. Quinney, Richard (1977), Class, state and crime, Nova Iorque, McKay. Quinney, Richard 2001), Critique of legal order. Crime control in capitalist society, New Brunswick, NJ : Transaction Publishers. Reiman, Jeffrey (1998), The rich get richer and the poor get prison, Allyn and Bacon, Boston. Santos, Boaventura de Sousa (1977), “The law of the oppressed: the construction and reproduction of legality in Parsagada law”, Law and Society Review, 12: 5126. Scott, Robert (1972), “A proposed framework for analysing deviance as a property of social order” in Robert Scott, Jack Douglas, Theoretical perspectives on deviance, Nova Iorque, Basic Books: p. 9. Taylor Ian et al. (1973) The new criminology: for a social theory of deviance, Londres e Kegan Paul. Turk, Austin (1969), Criminality and legal order, Chicago, Rand McNally. Vold, George (1958) Theorethical criminology, Nova Iorque, Oxford University Press.

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CAPÍTULO 6 – TEORIA DA ANOMIA DE MERTON E DA ESTRUTURA DAS OPORTUNIDADES ILEGÍTIMAS DE CLOWARD E OHLIN

SUMÁRIO: 6.1. Resultados esperados de aprendizagem 6.2. A teoria da anomia e das formas de adaptação à sociedade segundo Robert Merton 6.3. Actividade formativa 9 6.4. As sub-culturas delinquentes e a estrutura de oportunidades ilegítimas, segundo Cloward e Ohlin 6.5. Actividade formativa 10 6.6. Síntese 6.7. Teste formativo 6.8. Leituras e informação complementar 6.9. Referências bibliográficas

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6.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a:  definir o conceito de anomia proposto por Robert Merton;  distinguir entre estrutura social e estrutura cultural, explicando como é que o desfasamento entre ambas pode provocar a ocorrência do crime;  identificar os principais traços da estrutura ideológica meritocrática, patente na sociedade norte-americana;  explicar de que modo uma sociedade democrática e culturalmente igualitária, mas socialmente diferenciada, cria tensões que induzem à frustração e a sentimentos de injustiça;  explanar as distintas formas de adaptação à sociedade preconizadas por Robert Merton;  apontar a existência de uma estrutura social de oportunidades ilegítimas, a par da estrutura social de oportunidades ilegítimas;  perceber de que modo as instituições de socialização podem potenciar níveis de frustração nos jovens, conducentes a práticas delinquentes;  caracterizar os diferentes tipos de subcultura delinquente desenvolvidos por Cloward e Ohlin.

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6.2. A TEORIA DA ANOMIA E DAS FORMAS DE ADAPTAÇÃO À SOCIEDADE SEGUNDO ROBERT MERTON A criminologia Americana conheceu rapidamente uma alargada expansão, desde o início do século XX, tendo sido no E.U.A. que se iniciou a prática da criminologia como profissão, em contexto universitário (Radzinowicz, 1973). Isto, num contexto social e económico marcado pela elevada criminalidade, que cresceu com a expansão do bem estar material e ritmo acelerado de transformações sociais. De facto, a sociedade norte-americana é, ainda hoje, uma sociedade em “permanente mobilização e guerra contra o crime, à custa de incalculáveis recursos materiais. E isto a par de uma ideologia de pendor reformista e optimista, que sente a necessidade de localizar as causas do crime em algo que será possível transformar através de adequado social engineering.” (Dias e Andrade, 1997: 33). Um dos mais expressivos e reputados estudiosos do crime norte-americanos do século XX é Robert Merton, que desenvolveu e reformulou a teoria da anomia de Émile Durkheim, tendo apresentado pela primeira vez o conceito, aplicando-o aos comportamentos desviante (entre os quais o crime), num artigo intitulado “Social Structure and Anomie”, publicado em 1938 na American Sociological Review (Merton, 1938). O conceito de anomia de Merton aproxima-se expressamente da ideia durkheimiana de ausência de normas, acentuando a ideia de insegurança e incerteza nas relações sociais ou ruptura da estrutura cultural: “O grau de anomia de um sistema social mede-se pela extensão em que há ausência de consenso sobre as normas julgadas legítimas, com a consequente insegurança e incerteza nas relações sociais (…) as pessoas são confrontadas pela anomia substancial quando, como um dado de facto, não podem esperar com elevada probabilidade que o comportamento dos outros se conforme com os padrões que comummente consideram legítimos.” (apud Dias e Andrade, 1997: 322). Este autor vai reformular a teoria da anomia de Durkheim, elaborando a sua própria teoria – a teoria da “tensão” (strain theory) – pela qual explica o crime pelo

112

desfasamento entre a estrutura cultural (objectivos, valores, interesses, fins) e a estrutura social (conjunto organizado das relações sociais). Na sua perspectiva, a estrutura cultural impõe a todos os cidadãos a prossecução dos mesmos fins e prescreve para todos os mesmos meios legítimos, enquanto que a estrutura social forma o contexto real e diferenciado que condiciona a possibilidade dos membros da sociedade se orientarem para os objectivos culturais, respeitando as normas institucionalizadas. O homem comum americano ambiciona atingir o sucesso profissional e económico, mas nem todos têm a possibilidade real de atingir esses objectivos. Quando os indivíduos não conseguem atingir os objectivos apresentados e incutidos pela estrutura cultural (nomeadamente pela escola, família e local de trabalho), ou reformulam os objectivos, ou baixam o nível de aspirações. Os indivíduos que irão reformular esses objectivos ou a atenuá-los serão os que ocupam as posições sociais mais desfavorecidas. Deste modo, a estrutura social reparte desigualmente as possibilidades de atingir os objectivos culturais generalizados e induz, por isso, o recurso a meios ilegítimos para aceder aos recursos que a generalidade dos indivíduos ambicionam alcançar. O modelo teórico de Merton ancora-se na percepção que o autor projecta do american dream, postulando que os Estados Unidos apresentam uma estrutura cultural igualitária, em boa medida baseada no arquétipo do self made man, que pode alcançar o sucesso monetário e a mobilidade social, desde que tenha as virtudes adequadas; e uma estrutura social profundamente desigualitária, que penaliza e estigmatiza quem não consegue subir na vida. A ocorrência do crime e do desvio explica-se deste modo pela existência de um desfasamento entre as estruturas sociais e os padrões culturais, que potencia uma vulnerabilidade diferencial às forças anómicas. Afirma Merton que “Quando a estrutura cultural e social estão mal integradas, a primeira exigindo um comportamento que a outra dificulta, há uma tensão para o rompimento das normas ou para o seu completo desprezo.” (apud Dias e Andrade, 1997: 324). Com base na teoria da tensão criada pelo desfasamento existente entre as normas institucionalizadas e as oportunidades reais de mobilidade social, fala de cinco formas de adaptação à sociedade, abstractas e típicas, através das quais se 113

procura dar resposta aos potenciais de frustração socialmente induzidos. Esta tipologia é apresentada na obra Sociologia – Teoria e Estrutura (Merton, 1970) e estabelece uma diferenciação entre comportamentos “conformistas” e “não conformistas” (ou desviantes). O autor construiu a seguinte tipologia de modos de adaptação à sociedade: Comportamento conformista: trata-se de uma modalidade estável e consensual de adaptação à sociedade. Nesta situação, os objectivos culturais (expectativas, aspirações, desejos culturalmente interiorizados) são satisfeitos pelos

meios

legítimos

(em

conformidade

com

a

ordem

social).

Os

comportamentos identificam-se com as normas dominantes e assiste-se a um fortalecimento da coesão social (da estabilidade e continuidade da sociedade). Comportamento desviante – “inovação”: os objectivos culturais são atingidos pela transgressão dos meios institucionais, através de acções competitivas, dinâmicas, traduzidas em lutas pelo sucesso e poder sem olhar a meios. O exemplo mais cabal deste tipo de comportamento desviante será a fraude económica. Considera ainda que este comportamento criativo e inovador potencia a mudança social, por apresentar alternativas ao cumprimento das regras sociais. Logo, embora numa primeira fase constitua um comportamento não-conformista, ao chamar a atenção para a necessidade de alteração das normas sociais, apresenta posteriormente a possibilidade de estabilidade social. Comportamento desviante – “ritualismo”: trata-se de um comportamento não-conformista porque desde que algumas aspirações básicas sejam satisfeitas, os indivíduos «prescindem» dos objectivos de sucesso monetário e de ascensão social incutidos pela estrutura cultural da sociedade americana. Representa a demissão de parte das aspirações culturalmente definidas e traduz-se no cumprimento escrupuloso das normas e dos papéis socialmente prescritos. Esta forma de adaptação à sociedade gera personalidades submissas e conformistas que podem provocar situações de patologia social e de rigidez psicológica. Induz ainda estratégias de superação da ansiedade e frustração pela redução do nível da ambição e pela adopção da filosofia «não subas alto para não caíres baixo». É o comportamento típico do funcionário público, do “virtuoso burocrático”, que se

114

limita a ir de casa para o trabalho, nada mais ambicionando do que a segurança no trabalho e o ordenado ao fim do mês. Comportamento desviante – “retraimento” ou “evasão”: esta modalidade de adaptação à sociedade representa uma dupla renúncia, tanto aos objectivos culturais, como ao cumprimento das normas e dos papéis definidos institucionalmente. Decorre da crise moral da sociedade e da condição socioeconómica e cultural negativa de certos grupos sociais mais desfavorecidos, sendo o comportamento não conformista típico dos vadios, drogados, alcoólicos e doentes mentais. Comportamento desviante – “rebelião”: nesta forma de adaptação à sociedade os indivíduos posicionam-se à margem da estrutura social e em oposição aos padrões culturais dominantes. Ocorre uma luta deliberada contra os valores, as normas, a ideologia e a moral que servem de modelo aos objectivos culturais e aos meios institucionais, provocando situações de conflito em que se exige a mudança da sociedade (por exemplos, manifestações sociais mais ou menos violentas, terrorismo, ameaças à paz e ordem pública, práticas políticas que aspiram a uma transformação revolucionária da sociedade). O desemprego, a miséria e a exclusão social fomentam este comportamento. Todos os comportamentos desviantes ou não conformistas analisados por Merton produzem a anomia, potenciando a desorganização social. Para que a integração e controlo social possam funcionar e a prevenção da ocorrência do crime se possa concretizar, o autor acredita que é necessário aproximar os objectivos culturais dos meios e respostas institucionais. O seguinte quadro sintetiza a relação entre os objectivos culturais e a estrutura social, na produção dos distintos modos de adaptação à sociedade.

115

Quadro 2 – Cinco Formas de adaptação à Sociedade (Merton) Objectivos culturais

Normas ou meios legítimos

Conformismo

+

+

Inovação

+

-

Ritualismo

-

+

Evasão

-

-

Rebelião

±

±

Modos de adaptação

Nota: o sinal (+) significa interiorização, o sinal (-) rejeição e o duplo sinal (±) rejeição e substituição por novos valores. Fonte: Dias e Andrade, 1997: 325.

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6.3. ACTIVIDADE FORMATIVA 9 Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4 : 1. Listem as três principais ambições e objectivos de vida que têm os diferentes elementos do grupo. Comparem os diferentes posicionamentos. 2. Discutam que meios vão usar para atingir esses fins.

6.4. AS SUB-CULTURAS DELINQUENTES E A ESTRUTURA OPORTUNIDADES ILEGÍTIMAS, SEGUNDO CLOWARD E OHLIN

DE

Richard Cloward e Lloyd Ohlin apresentam uma perspectiva do crime que se situa na intersecção entre a teoria da anomia representada nos trabalhos de Émile Durkheim e Robert Merton e as teorias culturalistas do crime, nomeadamente da subcultura delinquente de Albert Cohen, que apresentaremos noutra parte deste relatório. Estes autores focalizam o estudo do crime no comportamento desviante dos jovens masculinos provenientes de classes sociais desfavorecidas, aplicando a teoria do desfasamento entre o que os jovens são levados a querer (pela estrutura cultural) e o que lhes é efectivamente acessível (pela estrutura social). Afirmam os autores que “os adolescentes que formam as subculturas delinquentes interiorizam uma grande ênfase nos objectivos convencionais. Confrontados com as limitações das vias legítimas de acesso àqueles objectivos e incapazes de reduzir o teor das suas aspirações, experimentam uma intensa frustração. O resultado poderá ser a exploração de alternativas não conformistas.” (Cloward e Ohlin, 1960: 86). Tal como Merton, estes autores partem do pressuposto básico de que há uma universalização da ética do sucesso, na sociedade americana. E que esta é uma sociedade ideologicamente igualitária, mas realmente desigual. Nesse contexto, a estrutura das oportunidades legítimas (particularmente a que é consolidada pela escola) bloqueia sistematicamente o acesso (legítimo) aos recursos e posições sociais desejadas dos jovens mais desfavorecidos. Esta

117

situação gera um elevado potencial de frustração que se poderá converter em criminalidade. Nesta abordagem do desfasamento entre a estrutura cultural e a estrutura social, Cloward e Ohlin introduzem o conceito de oportunidades ilegítimas, que contempla dois tipos de elementos sociais: (i) um ambiente propício à aprendizagem

de

valores

e

técnicas

adequadas

ao

desempenho

de

comportamentos desviantes e criminosos; (ii) os recursos efectivos para o desempenho do desvio e do crime, contando com o apoio de um universo subcultural criminoso. A frustração criada no contexto das oportunidades legítimas abre a possibilidade de conversão à delinquência. Mas a concretização da prática de delinquência vai depender da posição ocupada na estrutura das oportunidades ilegítimas. Estando as oportunidades ilegítimas desigualmente distribuídas e sendo escassas (tal como as oportunidades legítimas) vão-se criar tipos diferenciados de subculturas delinquentes, que traduzem um sentimento de injustiça que conduz à alienação e negação das normas sociais dominantes. A estrutura diferenciada das oportunidades ilegítimas vai assim criar três tipos principais de subculturas delinquentes: A subcultura criminal: encontra-se no topo da hierarquia da estrutura das oportunidades ilegítimas e só se desenvolve em áreas de criminalidade organizada e estável, controladas por criminosos adultos. O ambiente aí criado apoia as actividades ilícitas disciplinadas e racionais, que procuram atingir o sucesso económico (por exemplo, pelo furto, pelo roubo e pela extorsão). Muitas vezes, há vínculos com o mundo convencional e legítimo e oferecem-se oportunidades de aprendizagem, reprodução de tradição e carreiras aos jovens delinquentes mais talentosos. Há uma adesão aos valores legítimos, mas um recurso a meios ilegítimos para os alcançar. A subcultura de conflito: simboliza a revolta contra a ordem social vigente e expressa-se na violência de rua. É particularmente visível nas áreas de criminalidade mais pobres e desorganizadas. Não existem ofertas de carreira delinquente estáveis. Há assim uma dupla exclusão social, no acesso tanto às oportunidades legítimas como às oportunidades ilegítimas. 118

A subcultura de evasão: muitas vezes presente na delinquência, expressa-se pelo consumo de drogas. Constitui uma espécie de refúgio, que pretende proporcionar experiências novas e prazer imediato. Há assim uma dupla exclusão social, no acesso tanto às oportunidades legítimas como às oportunidades ilegítimas.

Quadro 3 – Tipologia das subculturas delinquentes (Cloward e Ohlin) Subculturas

Objectivos culturais

Normas ou meios legítimos

Criminal

+

-

Conflito

±

±

Evasão

±

±

Nota: o sinal (+) significa interiorização, o sinal (-) rejeição e o duplo sinal (±) rejeição e substituição por novos valores. Fonte: Dias e Andrade, 1997: 332-328.

119

6.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 10 Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. As estatísticas da criminalidade em Portugal apresentam uma distribuição diferencial do crime, revelando, por exemplo, um elevado número de ocorrências relativamente a furtos e roubos e um reduzido número de ocorrências de crimes de natureza financeira. Expliquem esse facto atendendo ao seguinte: a) acesso desigual às oportunidades e recursos para a prática de crime; b) selecção social dos crimes que chegam ao conhecimento das autoridades,

2. Procurem identificar distintas formas de subcultura delinquente (Cloward e Ohlin) e as formas desviantes de adaptação à sociedade (Merton) a partir dos crimes identificado nas estatísticas criminais.

120

6.6. SÍNTESE Este módulo de aprendizagem centrou-se na teoria da anomia e nas modalidades de adaptação à sociedade, desenvolvidas por Robert Merton. A contradição entre a estrutura cultural e a estrutura social é apresentada como o factor desencadeador de comportamentos desviantes, nomeadamente do crime. Autores como Cloward e Ohlin conferem continuidade a essa perspectiva, apontando os factores que diferenciam a posição dos indivíduos no contexto das subculturas delinquentes, nomeadamente a existência de uma estrutura social de oportunidades ilegítimas, produtora de desigualdades sociais, tal como ocorre na estrutura social legítima.

6.7. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem.

1. Como é que Robert Merton considera que pode ser avaliado o estado anómico de uma sociedade? 2. Distinga entre “estrutura cultural” e “estrutura social”. 3. Quais os principais valores e objectivos incutidos nos indivíduos, no contexto do ideário do chamado American Dream? 4. Quais os principais veículos de promoção e inculcação da ideologia meritocrática? 5. Quem são os grupos sociais mais vulneráveis às forças anómicas e porquê? 6. Que tensões podem surgir pelo desfasamento existente entre as normas institucionalizadas e as reais oportunidades de mobilidade social? 7. Quais as cinco formas de adaptação à sociedade preconizadas por Merton? 8. Explique de que modo as formas de adaptação podem dar resposta aos potenciais de frustração socialmente induzidos. 9. De que forma Cloward e Ohlin explicam a existência de elevados níveis potenciais de frustração entre os jovens masculinos das classes sociais desfavorecidas? 121

10. Caracterize os três tipos de subculturas delinquentes propostos por Cloward e Ohlin existente na estrutura diferenciada das oportunidades ilegítimas. 6.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR Leituras básicas recomendadas: Carvalho Ferreira, J. M. et al. (1995), Sociologia, Lisboa, McGrawhill: 441-444. Costa, Faria (1976), “As teorias da anomia e da subcultura”, Ciências criminais, Coimbra, João Abrantes: 40 e segs. Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora: 321-338. Merton, Robert (1970), “Estrutura social e anomia”, Sociologia, Teoria e Estrutura, S. Paulo, Ed. Mestre Jov: 203-270.

Leituras de aprofundamento: Azevedo, Maria (1990), Delinquência juvenil: alguns aspectos sociopsicológicos, Escola da Polícia Judiciária, Barro, Loures. Barra da Costa, Joana; Araújo, Sérgio (2002), O gang e a escola (agressão e contra-agressão nas margens de Lisboa), Lisboa, Colibri. Cloward Richard ; Ohlin, Loyd (1960), Delinquecy and Opportunity. A Theory of delinquent Gangs, Nova Iorque, Free Press. Ferreira, Pedro et al. (1993), “Delinquência e criminalidade recenseada dos jovens em Portugal”, Cadernos do Instituto de Ciências sociais, 5.ª série, n.º4. 6.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Cloward Richard; Ohlin, Loyd (1960), Delinquecy and Opportunity. A Theory of delinquent Gangs, Nova Iorque, Free Press. Costa, Faria (1976), “As teorias da anomia e da subcultura”, Ciências criminais, Coimbra, João Abrantes: 40 e segs. Merton, Robert (1938), “Social structure and anomie”, American Sociological Review, n.º 3: 672-682. Merton, Robert (1970), Sociologia, Teoria e Estrutura, São Paulo, E. Mestre Jov. 122

Radzinowicz, Léon (1973), Òu en est la criminologie?, Paris, Cujas.

123

CAPÍTULO 7 - A ESCOLHA DE CHICAGO: ESPAÇO URBANO, ECOLOGIA CRIMINAL E DESORGANIZAÇÃO SOCIAL

SUMÁRIO: 7.1. Resultados esperados de aprendizagem 7.2. Contexto sócio-histórico do desenvolvimento da Escola de Chicago 7.3. A teoria da Ecologia Humana 7.4. A teoria das zonas concêntricas 7.5. Actividade formativa 11 7.6. Síntese 7.7. Teste formativo 7.8. Leituras e informação complementar 7.9. Referências bibliográficas

125

7.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a:  delinear

o

contexto

sócio-histórico

do

surgimento

da

abordagem

criminológica da Escola de Chicago;  explicar a ideia do crime como um produto da urbanização;  identificar os principais vectores que caracterizam a abordagem da Escola de Chicago;  explanar a teoria da ecologia humana e das zonas concêntricas;  aplicar a teoria das zonas concêntricas à realidade empírica;  apontar a tipificação do modo de vida urbano;  reconhecer os processos de fragilização do controlo social primário;  delinear as modalidades de controlo secundário, de âmbito comunitário;  apresentar críticas às principais perspectivas desenvolvidas pela Escola de Chicago.

126

7.2. CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA DE CHICAGO A denominada “primeira Escola de Chicago” vigorou nos anos 20 e 30 do século XX e trouxe contribuições importantes à criminologia, destacando-se as teorias da Ecologia Humana (de Robert Park) e das Zonas Concêntricas (de Ernest Burgess). O contexto sócio-histórico que envolveu o desenvolvimento desta corrente de pensamento sobre o crime radica na expansão das cidades, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Neste período e sob o efeito da industrialização, tornam-se visíveis novos fenómenos sociais, de ordem económica, demográfica e espacial, que se reflectem nas grandes cidades e são acompanhados por alterações de valores, costumes e novas formas de interacção e controlo social. Assiste-se a uma crescente complexidade dos processos de mobilidade e estratificação social, à diversificação cultural e, sobretudo, à predominância das relações sociais secundárias e consequente quebra da solidariedade e coesão social tradicional. A alteração das formas tradicionais de controlo social é particularmente acutilante nas cidades. A família, a igreja, a escola vêem fragilizados ou profundamente alterados os seus mecanismos de controlo social, cedendo espaço para um controlo público, no qual é imprescindível o papel da lei. É desse turbilhão que emerge um novo ambiente – o ambiente das grandes metrópoles – marcado por crescentes desigualdades sociais e espaciais, que se apresenta propício ao surgimento de condutas desviantes e de crime. Chicago foi uma das três grandes cidades americanas – juntamente com Nova Iorque e Filadélfia – que, na segunda metade do século XIX, sofreu mais o processo de urbanização acelerada e foi a que mais recebeu imigrantes, avultando-se a sua importância económica graças ao seu vasto centro industrial e comercial. Paralelamente a esta expansão económica e demográfica, cresceu significativamente a criminalidade, suscitando uma política de repressão policial (Freitas, 2002). A Universidade de Chicago foi criada neste contexto de crescimento urbano e torna-se a primeira universidade americana a ter um departamento de

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Sociologia (criado em 1892). A obra da Escola de Chicago tornou-se respeitada e conhecida em virtude dos trabalhos que estabeleceram a relação entre a organização do espaço e a criminalidade. A partir daí, o crime começou a ser entendido como um produto da urbanização, configurando-se um novo enfoque de análise ao nível da Sociologia do Crime, que aos olhos dos sociólogos da Escola de Chicago converteu a cidade num “laboratório social”. Pode-se sintetizar do seguinte modo as três principais vertentes dos estudos levados a cabo pelos sociólogos da Escola de Chicago: (i) o trabalho de campo e forte empiricismo; (ii) o estudo da cidade, em particular problemas relacionados com a imigração, o crime e o desvio; (iii) uma forma característica de psicologia social, oriunda, principalmente, do trabalho de George Herbert Mead e que veio a ser denominada interaccionismo simbólico (Freitas, 2000: 52). Particularmente

marcante

para

o

reconhecimento

dos

estudos

desenvolvidos pela Escola de Chicago foi o pendor extremamente pragmático que caracterizou esta corrente de pensamento, sendo de salientar o desenvolvimento do “Projecto Área de Chicago” que teve o intuito de criar vínculos entre os jovens e os elementos da comunidade em que residem. O objectivo principal deste projecto de intervenção social integrado na Escola de Chicago era reduzir a criminalidade, que se acreditava ter origem na desorganização social – entendida como a impossibilidade de definir e impor modelos de acção colectiva – que afectaria principalmente as áreas da cidade mais pobres e degradadas. 7.3. A TEORIA DA ECOLOGIA HUMANA Robert Park (1864-1944) foi fundador da Escola de Chicago e criador da teoria da Ecologia Humana e do método da observação participante em contexto urbano e industrial. A teoria da Ecologia Humana entende o crime como algo não determinado pelas pessoas, mas sim pelo grupo a que pertencem, pressupondo que o comportamento humano é modelado e limitado pelas condições sociais presentes no meio físico e social. Park propõe uma analogia entre a organização da vida animal e da vida humana em sociedade e a teoria da Ecologia Humana fundamenta-se em dois 128

conceitos das ciências naturais: (i) simbiose; (ii) invasão, dominação e sucessão, baseando-se na perspectiva de vida colectiva como um processo adaptativo constante baseado na interacção entre meio-ambiente, população e organização. O crime é assim estudado como um fenómeno ambiental, que comporta aspectos físicos, sociais e culturais. Como reconhecia a importância de um determinismo ambiental, Park via nas políticas repressivas, nomeadamente a aplicação de penas, uma imposição do meio físico e social. Nesse sentido, defendia que somente a intervenção por via de políticas públicas preventivas poderia diminuir a criminalidade, mediante a consolidação do controlo social nas áreas ecológicas mais pobres e degradadas (Park, 1967, 1990). Robert Park aponta como causa principal da ocorrência de crime, a quebra dos processos de socialização primária, sob influência do ambiente urbano, sugerindo como solução para a prevenção da criminalidade o desenvolvimento de acções organizadas de tipo comunicacional, criadas pelo controlo público e formando “regiões morais”. Elabora assim o conceito de playground, que concebe como áreas de lazer, monitorizadas e controladas pelas instâncias de socialização secundária de tipo local, nomeadamente associações permanentes ligadas à escola, igreja e outras instituições comunitárias, especialmente dirigidas a crianças e a jovens, e que conseguissem criar vínculos entre as pessoas desde a infância, como forma de preencher o espaço formador que antes era ocupado pela família. Esta intervenção justificava-se num quadro em que as condições de vida urbana fizeram com que muitos lares fossem transformados em meros dormitórios. 7.4. A TEORIA DAS ZONAS CONCÊNTRICAS A teoria das zonas concêntricas elaborada por Ernest Burgess e apresentada pela primeira vez em 1925, na obra The City, em co-autoria com Robert Park e Roderick Mackenzie (Park et al., 1968), retoma os princípios da ecologia humana desenvolvidos por Park e conceptualiza uma divisão da cidade de Chicago em cinco zonas concêntricas, que se expandem a partir do centro,

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todas detendo características próprias e constante mobilidade, avançando no território das outras por meio de processos de invasão, dominação e sucessão. Estas zonas concêntricas formam “áreas naturais” (do ponto de vista físico, mas também étnico e cultural), constantemente sujeitas a processos de “desorganização social” traduzidos na impossibilidade de definir e impor modelos colectivos de acção e que formam processos de segregação espacial, com base nos seguintes princípios: (i) a diferenciação e segregação espaciais obedece a constrangimentos da competição económica e da mobilidade social; (ii) a segregação pode revelar-se benéfica, na medida em que grupos semelhantes podem formar nichos de identidade comunicacional, profissional e cultural (Dias e Andrade, 1997: 273); (iii) o crime e desvio resultam da expansão e diferenciação dos processos de socialização dos indivíduos e grupos que habitam a cidade, principalmente por via da pressão da mobilidade.

Figura 1 – Teoria das Zonas Concêntricas Zona comercial e administrativa central Zona intersticial e de transição (sujeita à invasão e degradação – ghettos) Zona residencial de imigrantes de 2:ª geração

Zona residencial da classe média Zona residencial das classes abastadas

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A segunda zona (a mais próxima do centro da cidade) constituiu o principal foco de análise dos sociólogos de Chicago, por aí se concentrar o crime e a delinquência, sendo as taxas de criminalidade mais elevadas em espaços de degradação física e social. É nesta zona que a mobilidade é maior, e por consequência, converte-se na zona de deterioração da cidade moderna, na qual os controlos primários se desintegram completamente, formando regiões de desmoralização, de promiscuidade e de vício. Vários autores da Escola de Chicago dão continuidade à teoria das zonas concêntricas, destacando-se os trabalhos de Louis Wirth, Clifford Shaw e Henry McKay. Louis Wirth (1928, 1990) dedica-se a caracterizar os principais aspectos do modo de vida urbano, considerando que o modo de funcionamento da cidade moderna deve ser analisado com base nos princípios da dimensão, da densidade e da heterogeneidade populacional. Partindo do pressuposto básico de que a segregação social funciona como expressão de identidade e de integração social, tanto para ricos como para pobres, criminosos e não criminosos, acrescenta que, no entanto, a pressão para a mobilidade fragiliza a função controladora das normas e valores, fomentando a competição e a concorrência, que geram a diferenciação e especialização social. Neste contexto, entende que a cidade apenas consegue controlar e integrar uma pequena parte da personalidade dos indivíduos e que os contactos humanos em meio urbano se tornam superficiais, efémeros e segmentários, gerando personalidades frias, anónimas e calculistas. O autor considera ainda que a fragilidade crescente das relações comunitárias directas conduz à necessidade do controlo social de tipo secundário, já idealizada por Robert Park. Clifford Shaw e Henry McKay testaram a teoria das zonas concêntricas no estudo de 1940, Juvenile delinquency and urban areas (Shaw e McKay, 1969). Procurando perceber porque é que há distribuição diferencial da delinquência juvenil pelas diferentes áreas da cidade, levaram a cabo um estudo das estatísticas oficiais, elaborando mapas de criminalidade, tendo verificado uma concentração do crime na segunda zona concêntrica. Com base nessa constatação elaboraram uma caracterização do que denominaram por “áreas de 131

delinquência”, definindo-as como marcadas pela degradação física, doença e segregação económica. Constataram ainda que as áreas de delinquência permanecem, não obstante a renovação cíclica dos seus ocupantes, devido à estrutura da vida comunitária que fomenta a tradição delinquente. Não obstante a popularidade alcançada pelos estudos da Escola de Chicago, as assumpções desenvolvidas pelos seus teóricos foram sendo progressivamente objecto de críticas, nomeadamente: (i) a constatação de que as taxas de criminalidade poderão ser baixas no seio de uma comunidade estável, mesmo que haja degradação do espaço físico, pobreza e proximidade ao centro da cidade, sendo o inverso também plausível; (ii) são retiradas ilações puramente negativas do conceito de “desorganização social”; (iii) propagam a ideia de uma cultura unificada, não diferenciadora dos habitantes de uma cidade fragmentada em classes, etnia e género (iv) não se explica a criminalidade produzida fora das áreas consideradas delinquentes e nem as condutas não desviantes que ocorrem nessas áreas; (v) a análise realizada das estatísticas oficiais não considerou a criminalidade oculta; (vi) existe a necessidade de alargamento do âmbito teóricoexplicativo, em vez da explicação centrada na pequena comunidade ecológica ou área de delinquência. 7.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 11 Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. Considerem a organização espacial da cidade em que vivem e identifiquem as zonas de maior criminalidade. Avaliem se a localização dessas áreas correspondem à teoria das zonas concêntricas. 2. Avaliem os prós e os contras das acções de prevenção da criminalidade dirigidas a crianças e a jovens na perspectiva da pequena comunidade local.

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7.6. SÍNTESE Nesta unidade de aprendizagem expõem-se as principais coordenadas filosóficas, teóricas e metodológicas da abordagem do crime desenvolvida pela Escola de Chicago. Apresenta-se a visão da cidade desenvolvida pelos vários autores e os desenvolvimentos conferidos, em particular, à teoria da ecologia humana e das zonas concêntricas. Referem-se ainda as principais críticas a apontar a esta corrente de pensamento. 7.7. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem. 1. Contextualize as preocupações evidenciadas pelos teóricos da Escola de Chicago no contexto do desenvolvimento dos processos de urbanização verificados a partir da segunda metade do séc. XIX. 2. Porque razão a cidade surge como centro da análise da criminalidade? 3. Quais os três principais vectores do estudos da Escola de Chicago? 4. Quais os princípios subjacentes à teoria da ecologia humana? 5. Em que conceitos das ciências naturais se baseia a teoria da ecologia humana? 6. O que significa área natural e desorganização social? 7. Como ocorrem os processos de fragilização da socialização primária? 8. Que alternativas de controlo social propõem os autores da Escola de Chicago? 9. Como é caracterizado o modo de vida urbano? 10. Explique a teoria das zonas concêntricas, identificando cada uma delas e explicando como se formam. 11. Quais as principais críticas que podemos apontar à abordagem do crime realizada pela Escola de Chicago?

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7.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR Leituras básicas recomendadas: Carvalho Ferreira, J. M. et al. (1995), Sociologia, Lisboa, McGrawhill: 289-303; 436-441. Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora: 3133; 268-288. Park, Robert (1990), “La ville” in Y. Grafmeyer e I. Joseph (eds.), L’École de Chicago, Paris, Aubier : 83-130. Wirth, Louis (1990), “le phénomène urbain comme mode de vie” in Y. Grafmeyer e I. Joseph (eds.), L’École de Chicago, Paris, Aubier : 255-280. Leituras de aprofundamento: Freitas, Wagner (2000), Espaço urbano e criminalidade: lições da escola de Chicago, São Paulo, IBCCRIM. Park, Robert (1967), On social control and collective behavior, Chicago, The University of Chicago Press. Park, Robert et al. (1968), The city, Chicago, The University of Chicago Press. Shaw, Clifford; McKay, Henry (1969), Juvenile delinquency and urban areas: a study of rates of delinquency in relation to differential characteristics of local communities in American cities, Chicago, The University of Chicago Press. Wirth, Louis (1928), The ghetto, Chicago, The University of Chicago Press. 7.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Freitas, Wagner (2000), Espaço urbano e criminalidade: lições da escola de Chicago, São Paulo, IBCCRIM. Park, Robert (1967), On social control and collective behavior, Chicago, The University of Chicago Press. Park, Robert (1990), “La ville” in Y. Grafmeyer e I. Joseph (eds.), L’École de Chicago, Paris, Aubier : 83-130. Park, Robert et al. (1968), The city, Chicago, The University of Chicago Press. 134

Shaw, Clifford; McKay, Henry (1969), Juvenile delinquency and urban areas: a study of rates of delinquency in relation to differential characteristics of local communities in American cities, Chicago, The University of Chicago Press. Wirth, Louis (1928), The ghetto, Chicago, The University of Chicago Press. Wirth, Louis (1990), “le phénomène urbain comme mode de vie” in Y. Grafmeyer e I. Joseph (eds.), L’École de Chicago, Paris, Aubier : 255-280.

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CAPÍTULO 8 – TEORIAS DA SUBCULTURA DELINQUENTE

SUMÁRIO: 8.1. Resultados esperados de aprendizagem 8.2. O conceito de subcultura delinquente 8.3. As diferentes perspectivas da subcultura delinquente 8.4. Actividade formativa 12 8.5. Síntese 8.6. Teste formativo 8.7. Leituras e informação complementar 8.8. Referências bibliográficas

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8.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a:  definir o conceito de subcultura;  estabelecer as diferentes relações entre as subculturas e as culturas dominantes;  delimitar o conteúdo, génese e funções das subculturas delinquentes;  conhecer os processos de aprendizagem, socialização e motivação das subculturas delinquentes;  identificar os grupos de referência e as expectativas de mobilidade dos delinquentes;  enunciar as características das subculturas delinquentes, apontando as diversidades teóricas;  explicar os mecanismos que originam a construção de subculturas delinquentes.

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8.2. O CONCEITO DE SUBCULTURA DELINQUENTE No âmbito dos estudos da criminalidade assumem particular relevo os estudos sobre a criminalidade juvenil, sendo corrente a utilização do conceito de subcultura delinquente para abordar os comportamentos específicos dos jovens que cometem desvios e crimes. Têm sido várias e diversificadas as tentativas de explicação da delinquência, em particular da delinquência juvenil, com base no conceito de subcultura delinquente. Não existe consenso em torno da definição do conceito, da sua génese, funções e relações com a cultura dominante. O sociólogo americano Albert Cohen consagrou o conceito de subcultura delinquente na obra Delinquent boys: the culture of the gang (1963), definindo-o como “uma cultura dentro da cultura” (Dias e Andrade, 1997: 289). No entanto, esta definição apresenta o inconveniente de não permitir nem identificar os limites da subcultura nem as suas modalidades de intersecção ou de relação com a cultura dominante. Aceitando uma definição generalista de cultura, em termos sociológicos, podemos afirmar que esta é o conjunto de modelos colectivos de acção, identificáveis nas práticas e representações sociais dos indivíduos e que passam de geração em geração, apresentando uma certa durabilidade. Partindo dessa definição, podemos apresentar o conceito de subcultura delinquente como um conjunto de padrões normativos opostos ou divergentes em relação à cultura dominante, podendo emergir de uma situação de frustração ou conflito com a denominada cultura legítima e podendo provocar comportamentos desviantes e criminais. De acordo com as teorias da subcultura delinquente o crime resulta da interiorização e obediência a códigos normativos, culturais e morais próprios da subcultura delinquente. Ou seja, à semelhança do que acontece com os comportamentos ditos “normais”, os comportamentos delinquentes seguem crenças, regras e valores e resultam de processos de aprendizagem, socialização e motivação. Ao agir de acordo com as normas e valores criados no interior da subcultura, o delinquente está a orientar a sua acção de modo a corresponder às 139

expectativas dos outros que servem de seu grupo de referência e está a tentar alcançar estatuto social no seio do grupo, apresentando-se geralmente motivado para enveredar num processo de mobilidade social. Em suma, as teorias da subcultura delinquente acreditam que os delinquentes procuram atingir objectivos em tudo similares ao que acontece com as pessoas que não praticam crimes – por exemplo, alcançar sucesso monetário e profissional, ter o respeito dos outros etc. – mas que o fazem recorrendo a meios ilegítimos. 8.3. AS DIFERENTES PERSPECTIVAS DA SUBCULTURA DELINQUENTE O modo de definir o conteúdo da subcultura delinquente ou mesmo as suas características, funções, origem e relações com a cultura dominante tem sido variado no conjunto dos diferentes autores que podemos englobar nas chamadas teorias da subcultura delinquente. Daí que se torne importante distinguir algumas perspectivas teóricas diferentes – nomeadamente as apresentadas pelos sociólogos americanos Albert Cohen e Walter Miller –, sendo mais rigoroso falar de teorias das subculturas delinquentes do que formular o conceito no singular. Albert Cohen apresenta uma teoria “genética” da subcultura delinquente ao considerar que a esta se reporta aos jovens das classes sociais mais desfavorecidas e encara-a como uma espécie de resposta colectiva à frustração sentida pelas tentativas infrutíferas desenvolvidas pelos jovens para alcançar status no seio da cultura dominante. Partindo da ideia já expressa por Merton, Cloward e Ohlin, da democratização do denominado american dream e prevalência de uma sociedade inigualitária, o autor defende que todos os jovens aderem à ética do sucesso e empenham-se na conquista da mobilidade social. No entanto, os jovens das classes desfavorecidas apresentam claras desvantagens neste processo: não só pela escassez de recursos económicos e culturais, como pelas diferenças de tipo de socialização primária que apresentam em relação aos jovens das classes mais favorecidas. Cohen considera que enquanto os jovens das classes médias são socializados segundo valores que podem potenciar a ascensão social – como por exemplo, a transmissão da importância da responsabilidade, do trabalho, do 140

sacrifício e da perspectivação de compensações no médio e longo prazo – os jovens mais desfavorecidos são socializados no que o autor denomina de “ética da reciprocidade”, baseada na permissividade, no recurso à violência, na crença do papel da sorte e do destino e na procura de gratificações imediatas. Por fim, Albert Cohen considera que é na escola que se tornam mais reveladores e evidentes esses diferentes modos de socialização no seio da família. De facto, o sistema de ensino apresenta-se como sendo democrático e meritocrático, mas acaba por reproduzir e consolidar as desigualdades sociais, penalizando os jovens para quem a escola representa não uma continuidade dos valores e regras recebidos pela família, mas uma cultura estranha e distante, à qual denotam dificuldade em adaptar-se. A escola reforça a adesão à procura do sucesso e de mobilidade social. Estes objectivos estarão presentes tanto nos jovens das classes médias como nos jovens das classes desfavorecidas, com a diferença de que estes últimos terão que procurar alcançar o sucesso de acordo com os recursos e critérios ao seu alcance. Isto faz com que os jovens de classes desfavorecidas enveredem muitas vezes por comportamentos delinquentes, em resposta a situações de frustração e sentimentos de injustiça desencadeados pela percepção da real impossibilidade de corresponder às exigências e expectativas da cultura dominante. A abordagem que Cohen apresenta da subcultura delinquente é negativística na medida em que a define como a subversão e inversão das normas e valores da cultura dominante (por exemplo, pelo gosto pela violência, procura da gratificação imediata e desprezo pela propriedade), acrescentando ainda que esta assenta no prazer em transgredir as regras sociais e que é não-utilitarista, na medida em que a prática do crime não segue muitas vezes uma finalidade racional (por exemplo, rouba-se por roubar).

Walter Miller desenvolve de igual modo uma teoria da subcultura delinquente (1958), estudando os jovens integrados em bandos de rua. Encara a delinquência como o resultado normal de um processo psico-sociológico de procura de soluções conformistas, segundo um dado quadro cultural facultado pelos modelos de subcultura que o jovem encontra na sua comunidade de inserção.

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O autor procura caracterizar a cultura “própria” dos jovens delinquentes, que considera ser específica das classes sociais mais desfavorecidas, e por isso mesmo, aborda-a como o resultado de um processo histórico de evolução e de estratificação social. Considera que esta cultura específica das classes mais baixas é radicalmente diferente da cultura dominante, entrando em conflito com esta ou subvertendo-a e aponta como características principais da subcultura das classes mais desfavorecidas o facto de valorizar a violência, a rudeza, a esperteza, a sorte e o destino e ainda de denotar uma procura de status pela exibição da força física, conflito com autoridades e violência sobre homossexuais. A subcultura delinquente nasce sobretudo no seio de comunidades em que os lares são matriarcais, na medida em que o homem está ausente ou se demite do papel de chefe de família. Neste sentido, o conjunto de padrões normativos desenvolvidos pela subcultura delinquente expressa uma obsessão por valores exacerbados de masculinidade, que produz experiências maritais excepcionais e transitórias, faz com que os grupos de rua sejam quase que exclusivamente masculinos e os seus membros revelam muitas vezes problemas de identidade sexual. Várias críticas foram apontadas a Walter Miller, acusado de apresentar uma visão etnocentrista da subcultura delinquente. No entanto, os estudos sobre bandos de delinquentes ainda hoje partem do modelo de masculinidade exacerbada para caracterizar as relações sociais desenvolvidas no seio dos grupos de jovens que enveredam pelo crime e desvio. Além da aplicação do conceito de subcultura delinquente aos jovens delinquentes, sobretudo masculinos, vários estudos de criminalidade socorrem-se do conceito para estudar as práticas de criminalidade levadas a cabo por grupos minoritários, como é o caso dos imigrantes. Estas investigações baseiam-se em larga medida na ideia de conflito de culturas, pela qual as subculturas se oporiam ou subverteriam os princípios fundamentais da cultura dominante.

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8.4. ACTIVIDADE FORMATIVA 12 Pais, José Machado (2003), Ganchos, tachos e biscates, Porto, Âmbar.

Analisem à luz das teorias da subcultura os seguintes excertos de uma entrevista realizada a um jovem delinquente, expondo a) as “causas” da adesão a uma subcultura delinquente; b) as características da subcultura delinquente

“Fiz o primeiro ano do ciclo preparatório e entretanto cheguei à conclusão que não estava a fazer nada na escola. Isto tinha sensivelmente doze anos…Prontos, eu era uma pessoa um bocado rebelde, predispunha-me para tudo menos para estudar… Na altura não tinha grandes aptidões para a escola, optei por faltar… na altura já comecei logo por fazer pequenos delitos, ou seja, pequenos furtos. Lembro-me que havia lá um Pão de Açúcar ao pé da minha escola e comecei, eu mais outros jovens como eu, a roubar aquelas caixas de pastilhas, aquelas bolas p’ra jogarmos à bola. Entretanto, começaram a chegar aquelas informações do Conselho Directivo a casa… o meu pai optou por me tirar da escola, porque eu dava mais problemas do que outra coisa (…) chumbava por faltas. No final do primeiro período já estava completamente tapado nas disciplinas todas… Aliás eu não estava muito com vontade de continuar a estudar e, pronto, comecei a dedicar-me à delinquência logo desde muito novo; o reflexo disso, prontos, veiose a confirmar hoje. Entretanto, o meu pai disse-me, prontos: ‘Já que não queres estudar, então vais ter que trabalhar’”. (Pais, 2003: 345-346).

“O meu primeiro emprego, tinha eu treze anos, fui empregado de balcão numa pastelaria, sensivelmente durante um ano; depois, como já tinha aquela delinquência e aquela vontade de ter aquilo que não era meu… comecei a fumar muito cedo, entretanto comecei a roubar tabaco… e depois veio aquele vício das máquinas, de jogar às máquinas, nas salas de jogos. Comecei por tirar algum dinheiro da caixa (da pastelaria onde trabalhava) (…) Com catorze anos, tentei outra área, fui dar serventia p’ras obras, e fui servente de estuque (…) entretanto saio daí e começo no consumo de haxixe… Na altura a droga que estava muito em voga eram as anfetaminas, eram os comprimidos, comecei também a ter alguns contactos com essas drogas e prontos, depois as coisas foram deteriorando cada vez mais (…) Entretanto, saio dessas obras com 16, 17 anos … vou trabalhar para uma padaria…” (Pais, 2003: 347). “Então optei por passar para o lado das pessoas onde eu sabia que era aceite, ou seja, pessoas que se drogavam” (Pais, 2003: 352).

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“Quando se entra nesses ditos grupos, há sempre uma prova por que a gente tem de passar, pode parecer um bocado assim aquilo que a gente vê na televisão, mas a realidade é mesmo essa. Porque é assim: eles têm um esquema de trabalho, trabalham de uma forma, e sempre que há a entrada de uma pessoa nova há que conhecer a pessoa e saber daquilo que a pessoa é capaz, e penso que a segunda fase é testar um bocado a pessoa e então eu acho que fui um pouco posto à prova (…) Lembro-me que a primeira prova que eles me deram foi furtar uma ourivesaria (…) Eu acho que aquilo correu bem, sempre fui uma pessoa muito fria… e nesse tipo de situações sou muito calculista (…) eu fazia aquilo mesmo com gosto, sei que era uma coisa que eu conseguia fazer bem.” (Pais, 2003: 352-353).

“Primeiro, tenho que provar a mim mesmo que sou capaz de ser outra pessoa. Porque hoje reconheço que não consegui ser um doutor, tudo bem, mas pronto, sou um bom electricista (…) a minha adolescência foi um bocado limitada, eu acho que a escola, no arranque da nossa vida, eu acho que depois tem um reflexo significativo mais tarde (…) Não tinha aptidão para a escola (…) sentia-me um bocado frustrado.” (Pais, 2003: 364).

“Vão aparecer muitas dificuldades, porque é preso, porque esteve preso, e vou ter que começar do zero, vou ter que construir a minha vida toda do princípio. O meu projecto de futuro é ter uma família, ter uma mulher, ter um filho, ter uma casa e ter uma vida assim... viver do meu trabalho e conseguir ir tendo uma coisa de cada vez” (Pais, 2003: 365).

8.5. SÍNTESE Nesta unidade de aprendizagem apresentaram-se algumas perspectivas sobre o conceito de subcultura delinquente, tendo-se procurado definir o conceito, percebendo o seu conteúdo, génese, funções e tipo de relações desenvolvidas com a cultura dominante.

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8.6. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem.

1. Como é que define cultura em termos sociológicos? 2. Como é que define subcultura delinquente? 3. Como é que as teorias da subcultura delinquente explicam a ocorrência do crime? 4. O que significa afirmar que a subcultura delinquente apresenta valores, regras e objectivos similares aos da cultura dominante? 5. De que modo o sistema de ensino potencia os comportamentos delinquentes? 6. Qual é a importância dos processos primários de socialização na construção de uma carreira delinquente? 7. Que características detém a subcultura delinquente, na perspectiva de Albert Cohen, por um lado, e de Walter Miller, por outro lado?

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8.7. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR Leituras básicas recomendadas: Carvalho, Maria João (2003), “Entre as malhas do desvio: delimitação da problemática e modo de investigação”, Entre as malhas do desvio. Jovens, espaços, trajectórias e delinquências: 15-30. Costa, Faria (1976), “As teorias da anomia e da subcultura”, Ciências criminais, Coimbra, João Abrantes: 40 e segs. Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora: 288-311. Ferreira, Pedro et al. (1993), “Delinquência e criminalidade recenseada dos jovens em Portugal”, Cadernos do Instituto de Ciências sociais, 5.ª série, n.º4. Leituras de aprofundamento: Azevedo, Maria (1990), Delinquência juvenil: alguns aspectos sociopsicológicos, Escola da Polícia Judiciária, Barro Loures. Barra da Costa, Joana; Araújo, Sérgio (2002), O gang e a escola (agressão e contra-agressão nas margens de Lisboa), Lisboa, Colibri. Braga da Cruz, Manuel e Luísa Reis (1983), Criminalidade juvenil em Portugal, Estudos e Documentos, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa. Cohen, Albert (1963), Delinquent boys: the culture of the gang, Glencoe, Free Press. Cohen, Albert (1966), Deviance and control, New Jersey, Prentice-Hall. Miller, Walter (1958), “Lower-class culture as a generating millieu of gang delinquency”, Journal of Social issues, Ann Arbor, Quaterly: 5 e segs. 8.8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Cohen, Albert (1963), Delinquent boys: the culture of the gang, Glencoe, Free Press. Miller, Walter (1958), “Lower-class culture as a generating millieu of gang delinquency”, Journal of Social issues, Ann Arbor, Quaterly: 5 e segs.

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CAPÍTULO 9 – TEORIA DA ROTULAGEM

SUMÁRIO: 91. Resultados esperados de aprendizagem 9.2. O desvio como o resultado de uma acção colectiva 9.3. Alguns autores da teoria da rotulagem 9.4. Conceitos fundamentais da teoria da rotulagem 9.5. Actividade formativa 13 9.6. Síntese 9.7. Teste formativo 9.8. Leituras e informação complementar 9.9. Referências bibliográficas

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9.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a:  reconhecer os diferentes elementos que compõem a construção social do desvio como o resultado de uma acção colectiva;  identificar o desvio como sendo uma classificação desenvolvida pela sociedade e não uma característica individual;  distinguir entre o plano da acção dos desviantes e o plano da reacção social;  caracterizar os diferentes componentes da interacção social que produzem processos de rotulagem dos desviantes;  explicar o pressuposto de que a sociedade «tem os criminosos que quer»;  conceber o controlo social mais como um elemento de desorganização social do que como um elemento de socialização e coesão social;  apontar as modalidades de integração social, motivação e socialização presentes nos comportamentos desviantes;  descrever as teorias interaccionistas como estando ancoradas num modelo teórico dinâmico, assente no pluralismo axiológico, relativismo e conflito

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9.2. O DESVIO COMO O RESULTADO DE UMA ACÇÃO COLECTIVA No início da década de 60, desenvolveu-se a denominada “2.ª Escola de Chicago (new chicagoons)” com autores que se enquadravam no interaccionismo simbólico – Howard Becker, Edwin Lemert e Erving Goffman, entre outros – e que dedicaram parte do seu trabalho ao estudo do desvio, criando a denominada Teoria da Rotulagem. A abordagem interaccionista do desvio transformou radicalmente os modelos de explicação anteriores sobre o desvio, crime e controlo social, substituindo o que denominámos por vertente etiológico-explicativa (cf. capítulos 2 e 5). Enquanto que a abordagem tradicional remete o foco de análise exclusivamente para o acto desviante, procurando explicar porque é que determinados indivíduos ou grupos sociais cometem crimes e desvios e outros não; a teoria da rotulagem vai procurar perceber porque é que determinados indivíduos são classificados como criminosos e outros não, no contexto de um processo social interactivo, no qual se relacionam desviantes e não desviantes. A concepção do processo social interactivo que cria a construção social do desvio remete para um modelo de análise dinâmico e conflitual, no contexto do qual assume particular importância a capacidade que os indivíduos têm de codificar e de descodificar as suas acções, participando na própria construção da realidade social desviante. Se por um lado, os aparelhos de controlo social rotulam os indivíduos, pela atribuição de sentido e significado; os alvos deste processo de estigmatização reagem à pressão do controlo social, acabando por assumir uma identidade desviante. A abordagem teórico-metodológica desenvolvida pela teoria da rotulagem desloca a focagem do plano da acção desviante (bad actors) para o plano da reacção social (powerful reactors). Enquanto que as teorias anteriores consideravam que o desvio consistia numa transgressão às normas e papéis definidos pela cultura dominante e sancionados pelo aparelho de controlo social, a teoria da rotulagem considera que o que os desviantes têm em comum é a resposta das instâncias de controlo, de produção normativa e as respectivas audiências de reacção.

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No contexto da abordagem interaccionista, o direito criminal é um instrumento nas mãos dos moral entrepreneurs, ao serviço dos detentores de poder, aproximando-se neste pressuposto das teorias marxistas do crime. Deste modo, o desvio assume um carácter relativo, por resultar de uma criação social: pode ser ou não a infracção das regras criadas pelos detentores de poder, já que a avaliação do acto desviante e a sua constituição como tal vai depender da reacção da audiência. Ou seja, tanto se pode cometer um desvio aos olhos do aparelho de controlo social da cultura dominante, como cometer desvio aos olhos de um grupo de delinquentes. O desviante é aquele a quem essa classificação foi aplicada com sucesso e o desvio é construído pelas reacções das pessoas a determinado acto individual. A classificação de comportamento desviante é deste modo intersubjectiva e nesse sentido varia segundo as características da pessoa que comete o acto (por exemplo, um branco que mate outro branco é mais facilmente condenado do que um negro que mate outro negro). O interaccionismo concentra a atenção sobre esse jogo complexo que envolve desígnios morais, rotulagens, controlos sociais e acções colectivas. Aplicada ao fenómeno do desvio, esta perspectiva não está apenas atenta aos actores sociais rotulados de desviantes, mas também, e sobretudo, àqueles que em geral são esquecidos na análise do desvio: os fazedores de leis, os magistrados, os polícias, os pais, os professores e todos aqueles que asseguram a eficácia do controlo social. 9.3. ALGUNS AUTORES DA TEORIA DA ROTULAGEM Howard Becker foi um dos autores que trouxe mais contributos importantes para a teoria da rotulagem. Partindo das orientações conferidas à Escola de Chicago desde os seus fundadores, Becker enveredou pela análise de fenómenos sociais directamente no terreno, tendo observado minuciosamente a actividade de músicos de jazz e de fumadores de marijuana, retratados na obra Outsiders (Becker, 1963). Nesse estudo, o autor afirma explicitamente que não é suficiente a definição de desvio como uma transgressão de uma norma aceite por comum acordo, já 151

que essa perspectiva pressupõe que aqueles que transgrediram uma norma constituem uma categoria homogénea, porque cometeram o mesmo acto desviante. Ora, a classificação de acto desviante vai depender de quem avalia o desvio e aplica essa classificação. Os grupos sociais criam o desvio instituindo normas cuja transgressão constitui o desvio, aplicando essas normas a certos indivíduos e rotulando-os como desviantes. Nas palavras de Becker, “o desvio não é uma qualidade do acto cometido por uma pessoa, mas antes a consequência da aplicação, pelos outros, de normas e de sanções a um «transgressor». O desviante é aquele ao qual este rótulo foi aplicado com sucesso e o comportamento desviante é aquele ao qual a colectividade atribui esse rótulo.” (Becker, 1963:9). Em suma, na perspectiva de Howard Becker o desvio é sobretudo uma consequência das reacções dos outros ao acto de uma pessoa. Os investigadores não podem pressupor que o desvio se trata de uma categoria homogénea, pois o processo de designação não é necessariamente infalível: pode haver indivíduos designados como desviantes sem terem transgredido normas e indivíduos que transgridem mas que não recebem o rótulo de desviantes. Sintetiza o autor o conceito de desvio do seguinte modo: “O desvio é uma propriedade, não do próprio comportamento, mas da interacção entre a pessoa que comete o acto e as que reagem a esse acto.” (ibidem). Outro autor de referência no âmbito da teoria da rotulagem aplicada ao desvio é Edwin Lemert, nomeadamente pela abordagem apresentada nas obras Social pathology (1951) e Human deviance, social problems and social control (1967). Distingue entre o desvio primário (causado por factores sociais, culturais, físicos e psicológicos) e o desvio secundário (que considera ser a resposta de defesa, ataque e adaptação aos problemas manifestos e latentes criados pela reacção social ao desvio, e que vai assumir o estatuto de evento central da existência do delinquente, alterando a sua estrutura psíquica e identidade). O desvio social secundário ocorre quando há uma reacção social organizada que produz uma operação de rotulagem, que estigmatiza os indivíduos. Ocorrendo este processo desviante, os desviantes tornam-se parte activa da acção social organizada que define o desvio, pela formação de subculturas 152

específicas, que funcionam como modalidades de resposta à operação de rotulagem e que condicionarão duravelmente todo o comportamento posterior do indivíduo, criando impactos na sua identidade individual e colectiva. Erving Goffman foi outro dos autores que contribuiu mais decisivamente para a teoria da rotulagem, ao proceder à observação microssociológica de instituições de tipo totalitário (1991, 1999) e de interacções sociais que envolvem indivíduos estigmatizados e “normais” (1975). Tendo realizado observação num hospital psiquiátrico (1991) nos anos cinquenta, comprovou que o controlo social exercido por este tipo de instituição totalitária gera formas de desvio estereotipadas. As instituições psiquiátricas em vez de reabilitarem e recuperarem os doentes mentais, produzem e reforçam a doença mental, justificando desse modo a sua própria existência e legitimidade. No processo de interacção simbólica entre doentes, médicos e outros actores sociais do espaço psiquiátrico o desvio é criado pelas relações de força, de cumplicidade e pelos ajustamentos que se estabelecem entre controladores e controlados. A análise do estigma desenvolvida por Goffman vai de igual modo ao encontro dos pressupostos básicos da teoria da rotulagem. Definindo o estigma como uma característica física, comportamental ou tribal que não se coaduna com o quadro de expectativas sociais – com as categorias consideradas naturais e normais – o autor analisa as interacções sociais estabelecidas entre estigmatizados e “normais”, mostrando como os primeiros ou procuram encobrir o seu estigma ou envolvem-se num jogo interactivo pelo qual procuram corresponder às expectativas dos outros, exagerando as suas características “anormais” e fazendo com que toda a interacção e auto-imagem se desenvolva em torno do desempenho desse papel. 9.4. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DA ROTULAGEM Apresenta-se de seguida alguns conceitos básicos da teoria da rotulagem, destinados a uma melhor explicitação das orientações gerais desta corrente de pensamento:

153

Estereótipo: representação de um objecto, pessoa ou ideia mais ou menos desligado da sua realidade objectiva e que é partilhado pelos membros de um grupo social. Essa representação pode ser inconsciente, é dotada de durabilidade e orienta a acção na vida quotidiana (ensinando-nos a conhecer o mundo antes de o vermos). O estereótipo funciona como alicerce dos mecanismos de selecção, ao nível do desvio. Interpretação retrospectiva (ou reconstrução biográfica): processo pelo qual o delinquente assume uma identidade nova, à luz da ideia de que com o acto criminoso ele revelou o que “sempre foi”. Apresenta-se como um mecanismo de interpretação do acto desviante com base na biografia do indivíduo. A interpretação retrospectiva é claramente potenciada nos sistemas de controlo (por exemplo, em tribunais, prisões e hospitais psiquiátricos).

Negociação: a construção do desvio resulta sempre de uma relação de poder, que implica margens de manobra, tanto da parte do desviante como de quem reage ao desvio. Cerimónias degradantes (status-degradation ceremony): processo ritualizado pelo qual o indivíduo é despojado da sua identidade e recebe uma nova (degradante). O julgamento criminal é a mais expressiva das cerimónias degradantes, assim como o momento de chegada e de “recepção” a uma prisão ou a um hospital psiquiátrico.

Role-engulfment: papel que o delinquente passa a assumir quando recebe o rótulo e desenvolve uma carreira desviante. Toda a interacção e auto-imagem centra-se em torno deste papel que lhe foi socialmente atribuído.

Instituição total: lugares de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos em igual situação, isolados da sociedade por um período apreciável de tempo, compartilham na sua reclusão uma rotina diária, administrada formalmente. Nestes espaços existe um hiato com o exterior e as identidades e 154

práticas desviantes reforçam-se: em vez de recuperarem os indivíduos, as instituições totais tornam-nos mais desadaptados e desviantes.

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9.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 13 Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. Estudos sociológicos indicam que os estrangeiros são mais facilmente condenados do que os nacionais pela prática de crime e a penas de prisão mais longas. Avaliem esta situação à luz dos pressupostos da teoria da rotulagem. 2. Identifiquem os grupos sociais que são mais facilmente rotulados como potencialmente criminosos. Justifiquem a vossa opção, apontando os estereótipos que estiveram na base dessa selecção.

9.6. SÍNTESE Este módulo de aprendizagem centrou-se na teoria da rotulagem. Apresentaram-se os pressupostos gerais da abordagem do desvio que mostram como o resultado de um processo social interactivo; explicitaram-se os contributos específicos de alguns teóricos mais representativos desta corrente de pensamento e sintetizaram-se os principais conceitos utilizados pelas teorias interaccionistas do desvio.

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9.7. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem.

1. Diga qual é a questão fundamental colocada ao crime pelas teorias etiológicoexplicativas, por um lado, e pela teoria da rotulagem, por outro lado. 2. Qual a importância da reacção social ao crime? 3. Quem são os moral entrepeneurs? 4. O que significa afirmar que o desvio é algo relativo? 5. Porque é que o investigador não pode encarar o desvio como uma categoria homogénea? 6. Qual a importância do sucesso ou insucesso na aplicação do rótulo de desviante? 7. Qual o papel do desviante na construção do desvio? 8. Por que razão o desvio não deve ser encarado como uma propriedade individual? 9. Distinga desvio primário de desvio secundário na perspectiva de Edwin Lemert. 10. Explique a articulação do conceito de estigma desenvolvido por Goffman com a teoria da rotulagem. 11. Defina os principais conceitos utilizados pela teoria da rotulagem.

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9.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR Leituras básicas recomendadas: Becker, Howard (1963), Outsiders – studies in the sociology of deviance, Nova Iorque, Free Press. Campenhoudt, Luc Van (2003), Introdução à análise dos fenómenos sociais, Lisboa, Gradiva: 77-97. Carvalho Ferreira, J. M. et al. (1995), Sociologia, Lisboa, McGrawhill: 444-446. Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora: 342-361.

Leituras de aprofundamento: Gove, Walter (1980) (ed.), The labelling of deviance: evaluating a perspective, Beverly Hills, California. Rock, Paul; McIntosh, Mary (1974) (eds.), Deviance and social control, Londres, Tavistock Publications. Rubington, Earl (1968), Deviance, the interactionist perspective; text and readings in the sociology of deviance, Nova Iorque, Macmillan. 9.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Becker, Howard (1963), Outsiders – studies in the sociology of deviance, Nova Iorque, Free Press. Goffman, Erving (1975), Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, Rio de Janeiro, Zahar Editores. Goffman, Erving (1991), Asylums. Essays on the social situation of mental patients and other inmates, Londres, Penguin Books. Goffman, Erving (1999), Manicômios, prisões e conventos, Rio de Janeiro, Perspectiva. Lemert, Edwin (1951), Social pathology, Nova Iorque, McGraw-Hill. Lemert, Edwin (1967), Human deviance, social problems and social control, Englewood Cliffs, Prentice-Hall.

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CAPÍTULO 10 – GÉNERO E CRIME

SUMÁRIO: 10.1. Resultados esperados de aprendizagem 10.2. Temas e debates da criminologia feminista 10.3. As diferentes correntes das teorias feministas do crime 10.4. Os impactos do género no crime 10.5. Actividade formativa 13 10.6. Síntese 10.7. Teste formativo 10.8. Leituras e informação complementar 10.9. Referências bibliográficas

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10.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM  reconhecer a «invisibilidade» das mulheres na Criminologia tradicional;  debater a necessidade de uma abordagem generizada do crime e do criminoso;  questionar os motivos sociais pelos quais as mulheres cometem menos crimes de que os homens;  identificar a importância da variável «género» e respectivas articulações com outras variáveis, tais como a idade, a classe social, a raça, a etnia, a escolaridade e posição económica;  conhecer as diferentes variantes da denominada «Criminologia Feminista».

161

10.2. TEMAS E DEBATES DA CRIMINOLOGIA FEMINISTA O género é a variável de diferenciação mais consistente na análise do fenómeno criminal: os homens praticam mais crime, as mulheres são mais vítimas de crime. Os motivos pelos quais isto acontece não são ainda hoje muito claros e as possíveis respostas não reúnem consenso. Além disso, só recentemente o impacto das diferenças de género abordagem do crime começou a despertar o interesse dos investigadores e profissionais da área do crime, justiça e reinserção social. Reconhecer a importância da variável género na vida em sociedade, nomeadamente em relação à questão do crime, equivale a salientar as dimensões políticas, sexuais e culturais associadas às diferenças biológicas entre mulheres e homens. A criminologia tradicional ignorou a especificidade das mulheres ao nível da criminalidade e do sistema de justiça criminal, produzindo uma teoria generalista, supostamente aplicável aos dois sexos, ou então distorcendo a análise por não considerarem as possíveis especificidades das mulheres (Smart, 1976). A irrelevância estatística da prática de crime da parte das mulheres e a diminuta taxa de reincidência criminal contribuíram para que, durante muito tempo, a prática do crime da parte das mulheres fosse negligenciada. Ainda hoje, a abordagem teórica e empírica do crime parte essencialmente da análise do comportamento dos homens, por serem estes a grande maioria dos autores do crime. Na perspectiva de muitas feministas, a criminologia revela um carácter androcêntrico, que pode enviesar a investigação e os instrumentos analíticos pode ser inadequados para o estudo do crime no mundo feminino. O desenvolvimento das teorias feministas, a partir da década de setenta do século XX, começou por questionar essa postura da criminologia tradicional, de distanciamento face aos processos sociais de diferenciação e de desigualdade de género. Dois livros publicados em 1975, sobre a criminalidade feminina, foram um contributo inestimável para o desenvolvimento dos estudos sobre o crime e as mulheres: Sisters in crime: the rise of the new female criminal, da autoria de Freda Adler e Women and crime, de Rita Simon. Embora defendendo teorias diferentes, 162

ambas as autoras evidenciaram as progressivas alterações no comportamento das mulheres e crescente ruptura dos papéis tradicionais femininos. A obra de Freda Adler argumentava que as mulheres estão cada vez mais a adoptar

comportamentos

tipicamente

masculinos,

à

medida

que

vão

abandonando a esfera privada e entrando no mercado de trabalho: estão a tornarse mais agressivas e competitivas. Por sua vez, Rita Simon debruçou-se de igual modo sobre o crescente aumento da criminalidade da parte das mulheres, mas explicando essa tendência pelo facto da entrada das mulheres na esfera pública oferecer mais oportunidades para a prática do crime, nomeadamente de natureza económica (Vold et al., 2002: 269-270). Ambos os trabalhos vieram a ser criticados por autoras feministas, que apontavam o facto de ambas as teorias negligenciarem as forças materiais e estruturais que moldam as vidas e as experiências das mulheres (Simpson, 1989; Daly e Chesney-Lind, 1988). Tornou-se tema de debate académico a necessidade de produzir uma abordagem capaz de captar as relações sociais de género presentes na criminalidade e nos modos como as instituições tipificam e lidam com os criminosos. Não só os homens são mais frequentemente os autores dos crimes, como o sistema de justiça criminal produz tratamentos diferenciados para homens e mulheres – por exemplo, verifica-se uma tendência para condenar com penas mais severas as mulheres quando se trata de crime sexuais, mas geralmente as penas são mais suaves para o género feminino quando ocorrem crimes violentos, como homicídios (Feinman, 1986). A variação das sentenças em função do género do arguido parece depender das expectativas culturais dominantes, ou seja, quanto mais a prática do crime se revela distante do socialmente esperado, maior será a severidade da pena atribuída. Este facto vem explicar que, por exemplo, as sentenças dirigidas às mulheres tendam também a variar de acordo a diversidade das situações familiares,

na

medida

em

que

os

papéis

sociais

femininos

estão

predominantemente associados à esfera privada. O sistema jurídico-penal confirma o carácter «político» da esfera privada, reafirmando a distribuição de papéis. Assim, as mulheres que são mães e que têm filhos menores a cargo 163

tendem a receber penas menos pesadas do que as mulheres sem filhos (Eaton, 1986). 10.3. AS DIFENTES CORRENTES DAS TEORIAS FEMINISTAS DO CRIME A teoria feminista representa um conjunto de pressupostos teóricos gerais sobre a vida social, centrada na perspectiva sobre e das mulheres. Dentro das teorias feministas, podemos encontrar correntes de pensamento muito distintas, mas seguindo a sistematização por Lengermann e Niebrugge (1996), pode-se afirmar que a teoria feminista se centra nas mulheres pelo objecto de estudo (as experiências e situações sociais das mulheres na sociedade); pelo sujeito de estudo no processo de investigação (estuda-se o mundo social a partir do ponto de vista das mulheres); pela perspectiva crítica e emancipatória (propõe-se contribuir para o bem-estar das mulheres). Os primeiros estudos feministas do crime pouco se distanciavam da criminologia tradicional. Como referem Vold e outros (Vold et al., 2002: 270), os trabalhos iniciais da criminologia feminista procuravam apenas preencher as lacunas da criminologia tradicional, sem desenvolverem uma operação de ruptura com os instrumentos analíticos e conceptuais do passado. Estes primeiros estudos inscreviam-se no denominado feminismo liberal, que é uma corrente de pensamento que postula a defesa dos direitos das mulheres, a extensão das oportunidades e a transformação dos papéis tradicionais, mas operando no quadro das estruturas sociais existentes. Abordagens feministas críticas vieram a desenvolveram-se no âmbito da sociologia do crime, empreendendo uma crítica e desconstrução dos sistemas de pensamento e conhecimento instituídos e dominantes (ideologia), por considerar que as estruturas sociais reproduzem sobretudo a visão masculina do mundo. Neste contexto, destacam-se as abordagens do crime desenvolvidas pelo feminismo marxista. Esta corrente do feminismo considera que a principal e fundamental causa das desigualdades de género reside no sistema capitalista, que promove e sustenta a divisão sexual do trabalho. As acções que ameaçam o modo de funcionamento do sistema capitalista são tipificadas como crime. Assim, as acções das mulheres que ameaçam a dominação económica dos homens são 164

classificadas como crimes de propriedade, enquanto que as práticas femininas que ameaçam o controlo masculino da sexualidade e corpos femininos são classificadas como crimes sexuais (Radosh, 1990). A visão do crime e do sistema de justiça criminal preconizado pelo feminismo marxista tanto adopta uma visão instrumental do direito criminal – pela assumpção de que a lei é um instrumento de carácter masculino, de opressão das mulheres – como uma abordagem de carácter estrutural, pela qual a lei destina-se a manter em vigor o sistema de patriarcado. Por sua vez, o feminismo socialista caracteriza-se por articular a análise dos papéis sociais de género com o sistema económico, distanciando-se deste modo do pendor excessivamente materialista do marxismo ortodoxo. O principal argumento consiste em defender que a causa das desigualdades reside no sistema capitalista, que promove e sustenta a divisão sexual do trabalho. As diferenças biológicas entre homem e mulher servem para consolidar a divisão entre o público e o privado, reforçando a opressão e subjugação das mulheres. Deste modo, a chave para a igualdade residirá na possibilidade das mulheres conseguirem ter o controlo da sexualidade, da reprodução e dos seus corpos (Firestone, 1970). O feminismo de terceira vaga ou pós-moderno, que se desenvolveu a partir da década de oitenta do século XX, preocupa-se com a análise das vivências e narrativas das mulheres. No contexto da abordagem sociológica do crime, a preocupação será a análise dos discursos e da linguagem e o modo como são produzidas as identidades das criminosas e da diferença e os conceitos de «verdade», nomeadamente por acção do sistema de justiça penal (Smart, 1989; Wonders, 1998). Abordagens feministas recentes valorizam a multiculturalidade, acentuando as diferenças entre as mulheres, em termos de classe, de raça, de etnia, ao nível das experiências com o crime, a vitimização e o sistema de justiça (Walby, 1990). Sumariamente, pode-se afirmar que a criminologia feminista veio acentuar a necessidade dos estudos do crime tomarem em consideração as mulheres, nos seguintes aspectos: os estudos do crime não podem continuar a negligenciar as vivências, práticas e experiências femininas relativas ao mundo do crime; as 165

relações das mulheres com a criminalidade surgem sob diversas formas, como praticantes do crime e como vítimas; o crime é uma actividade dominantemente masculina, em virtude de diferenças de género. Salienta-se que pode ser mais profícua uma análise do crime que contemple os impactos criados pela variável do «género», do que propriamente o desenvolvimento de uma área de investigação que se dedique exclusivamente a estudar as relações das mulheres com o crime. A adopção desta última vertente pode ajudar a perpetuar a marginalização das mulheres, pelo que será mais defensável uma posição que defenda a pesquisa género no seio da Sociologia do Crime, o que passará por estudar tanto as mulheres como os homens. 10.4. OS IMPACTOS DO GÉNERO NO CRIME A discussão da importância de se considerar os impactos do género na abordagem do crime é usualmente feita a dois níveis: a questão da generalização e a diferença da criminalidade feminina e masculino (Vold et al., 2002: 273). A questão da generalização remete para a reflexão sobre a adequação dos conceitos e dos instrumentos de análise, geralmente formulados para abordar a realidade masculina. O facto de os homens tenderem a demonstrar uma maior tendência para a prática do crime é um dos outros aspectos de debate. Várias feministas defendem que a tendência para a generalização é de evitar, na medida em que a análise ancora-se nas experiências masculinas, sem atender à especificidade do mundo feminino. Uma das formas de tomar em consideração a particularidade das vivências das mulheres no mundo do crime, passará pela utilização de métodos qualitativos de pesquisa, nomeadamente estudos de caso e histórias de vida (Daly e Chesney-Lind, 1988: 518), já que a utilização de estatísticas, tão frequente na criminologia, torna invisíveis as relações sociais de género. Estatisticamente, a condenação de mulheres pela prática de crime é diminuta em relação ao mesmo fenómeno para os homens: segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, em Portugal, em 2001, de um total de 60.480 indivíduos pela prática de crime em tribunais de 1.ª instância, apenas 8% eram mulheres. A menor incidência de condenações de mulheres pela prática de crime 166

parece ser comum a outros países – por exemplo, no Reino Unido, em 2000, a percentagem de réus no total de condenações por prática de crime era de 81% (Home Office, 2001). A criminologia tradicional explicava as diferenças de comportamento entre homens e mulheres em relação ao crime, com base em diferenças biológicas, sendo célebre o trabalho de Lombroso sobre “a mulher criminosa, a prostituta e a mulher normal” (Lombroso, 1893), na qual retoma o conceito de atavismo (reaparição de características que foram apresentadas somente em ascendentes distantes), para explicar que a mulher comete menos crimes do que o homem por apresentar com menos frequência uma predisposição genética para a prática do desvio. Durante muito tempo, as explicações da criminalidade feminina centravamse na análise de patologias individuais, muitas vezes associadas a distúrbios psicofisiológicos do aparelho reprodutivo ou à pressão exercida pelos companheiros masculinos (Giordano e Cernkovich, 1997). As diferenças de comportamento entre mulheres e homens em relação ao crime são actualmente explicadas em termos de um sistema de patriarcado, que institui uma divisão generizada de papéis sociais e de hierarquias, pela qual os comportamentos são codificados como masculinos e femininos, funcionando como tal no sistema prevalecente das relações de poder entre os sexos. Nesse sistema social vigente, os homens são percepcionados como mais sujeitos a desenvolver comportamentos violentos e, por inerência, «criminosos»; e as mulheres vistas como mais passíveis de serem frágeis e indefesas (logo, «vítimas») (Renzetti e Curran, 1993; Beleza, 1993, 2002). As diferenças de socialização em termos de género tendem a predispor as mulheres para uma maior conformidade e distanciamento em relação a comportamentos de risco. De igual modo, as mulheres parecem estar mais sujeitas a processos de controlo social e de vigilância, que as parecem afastar com mais frequências de comportamentos desviantes (Vold et al., 2002: 276).

167

10.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 13 Desenvolvam a seguinte actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. Debatam de que forma os seguintes crimes são particularmente reveladores das relações de género dominantes na nossa sociedade: a.

Aborto

b.

Violação

c.

Violência doméstica

d.

Assédio sexual

e.

Pornografia

10.6. SÍNTESE Este módulo de aprendizagem centrou-se na abordagem feminista da criminalidade. Aponta-se a necessidade de considerar as relações sociais de género na abordagem da criminalidade e do sistema de justiça criminal. Explicitam-se os contributos específicos para a Sociologia do crime produzidos pelas distintas correntes feministas e apontam-se pistas de análise para a explicação das diferenças entre homens e mulheres nas relações estabelecidas com o crime.

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10.7. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem.

1. O que significa dizer que enquanto que o sexo é biológico, o género é social e cultural? 2. O que significa a afirmação de que o género é a variável de diferenciação mais consistente na análise do fenómeno criminal? 3. De que forma a abordagem tradicional do crime pode não se adequar aos estudos das relações das mulheres com o crime? 4. Como é que as sentenças podem ser diferentes para mulheres e homens, de acordo com expectativas culturais dominantes, que tipificam o que é masculino e feminino? 5. De que forma as estruturas sociais e as ideologias dominantes categorizam mais facilmente o homem como criminoso e a mulher como vítima? 6. Quais as vantagens e as desvantagens de adoptar uma postura de «generalização» das teorias e dos instrumentos de análise no estudo do crime? 7. De que modo o sistema de patriarcado pode ajudar a explicar as diferenças de comportamentos entre mulheres e homens no que diz respeito ao crime?

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10.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR Leituras básicas recomendadas: Beleza, Teresa Pizarro (1993), Mulheres, direito, crime ou a perplexidade de Cassandra, Lisboa, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito de Lisboa. Daly, Kathleen; Chesney-Lind, Meda (1988), “Feminism and criminology”, Justice Quarterly, 5 (4): 497-538. Walklate, Sandra (2003), “Gendering the criminal”, Understanding Criminology. Current theoretical debates, Open University Press: 73-94. Vold, George et al. (2002), “Gender and crime”, Theoretical criminology, Nova Iorque, Oxford University Press: 267-282. Leituras de aprofundamento: Carlen, Pat; Worrall, Anne (1987), Gender, crime and justice, Philadelphia, Milton Keynes, Open University. Datesman, Susan; Scarpitti, Frank (org.), Women, crime and justice, Nova Iorque, Oxford University Press. Feinman, Clarice (1986), Women in the criminal justice system, Praeger, Nova Iorque. Smart, Carol (1976), Women, crime and criminology: a feminist critique, Routledge, Kegan Paul, Boston. Smart, Carol (1995), Law, crime and sexuality: essays in feminism, Londres, Sage. 10.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Beleza, Teresa Pizarro (1993), Mulheres, direito, crime ou a perplexidade de Cassandra, Lisboa, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito de Lisboa. Beleza, Teresa Pizarro (2002), “Antígona no reino de Creonte: o impacte dos estudos feministas no direito”, ex aequo, nº 6: 77-89. Daly, Kathleen; Chesney-Lind, Meda (1988), “Feminism and criminology”, Justice Quarterly, 5 (4): 497-538.

170

Eaton, Mary (1986), Justice for women? Family, court and social control, Milton Keynes, Open University Press. Feinman, Clarice (1986), Women in the criminal justice system, Praeger, Nova Iorque. Firestone, Shulamith (1970), The dialectics of sex. The case for feminist revolution, William Morrow, Nova Iorque. Giordano, Penny; Cernkovich, Stephen (1997), “Gender and antisocial behavior” in David Staff et al. (eds.), Handbook of antisocial behavior, John Wiley, Nova Iorque. Home Office (2001), Statistics on women and criminal justice, Section 95 of the Criminal Justice Act, 1991, Londres. Lengermann, Patrícia; Niebrugge, Jill (1996), “Contemporary feminist theory” in Ritzer, George (ed.), Sociological Theory, Singapore, McGraw-Hill International Editions: 436-486. Lombroso, Cesare (1893), La donna delinquente, la prostituta e la donna normale,Torino. Radosh, Polly (1990), “Woman and crime in the United States: a Marxian explanation”, Sociological Spectrum, 10: 105-131. Renzetti, Clare; Curran, Dan (1993), Women, men and society, Allyn and Bacon, Boston. Simpson, Sally (1989), “Feminist theory, crime and justice”, Criminology, 27 (4): 605-631. Smart, Carol (1976), Women, crime and criminology: a feminist critique, Routledge, Kegan Paul, Boston. Smart, Carol (1989), Feminism and the power of law, Routledge, Londres. Vold George et al. (2002), Theoretical criminology, Nova Iorque, Oxford University Press. Walby, Sylivia (1990), Theorizing patriarchy, Basil Blackwell, Cambridge, MA. Wonders, Nancy (1998), “Postmodern feminism and social justice” in Bruce Arrigo, Social justice, criminal justice, West/Wadsworth, Belmont, CA.

171

III. – PROBLEMÁTICAS, ORIENTAÇÕES E DEBATES ACTUAIS SOBRE O CRIME

CAPÍTULO 11 – TENDÊNCIAS DA CRIMINALIDADE, SISTEMA PRISIONAL E POLÍTICAS CRIMINAIS

SUMÁRIO: 11.1. Resultados esperados de aprendizagem 11.2. Estratégia pedagógica na abordagem das actuais problemáticas, orientações e debates sobre o crime 11.3. Guião de auto-aprendizagem para «tendências da criminalidade» 11.3.1. Notas introdutórias 11.3.2. Actividade formativa 14 11.3.3. Leituras e fontes de informação 11.4. Guião de auto-aprendizagem para «sistema prisional» 11.4.1. Notas introdutórias 11.4.2. Actividade formativa 15 11.4.3. Leituras e fontes de informação 11.5. Guião de auto-aprendizagem para «políticas criminais» 11.5.1. Notas introdutórias 11.5.2. Actividade formativa 16 11.5.3. Leituras e fontes de informação 11.6. Síntese 11.7. Teste formativo

174

11.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a:  identificar as principais problemáticas, orientações e debates actuais sobre o crime, em meio científico-académico e na esfera pública.  localizar, organizar e caracterizar a informação disponível relativa às tendências evolutivas da criminalidade e do sistema prisional, em Portugal e na Europa, numa perspectiva diacrónica e sincrónica;  explanar as principais abordagens teóricas e metodológicas patentes nos estudos prisionais;  conceber de modo autónomo um projecto de investigação a desenvolver em meio prisional, de acordo com as regras estabelecidas em Portugal, pela Direcção Geral dos Serviços Prisionais;  sintetizar as principais coordenadas teórico-metodológicas das diversas escolas

sociológicas

sobre

o

crime,

articulando-as

com

distintas

perspectivas de políticas criminais;  identificar a prevalência de determinado tipo de política criminal em contextos sociais diversificados;  expor de modo fundamentado opiniões e organizar de modo autónomo os materiais necessários para a preparação de um debate.

175

11.2. ESTRATÉGIA PEDAGÓGICA NA ABORDAGEM DAS ACTUAIS PROBLEMÁTICAS, ORIENTAÇÕES E DEBATES SOBRE O CRIME Nesta última unidade de aprendizagem a estratégia pedagógica assume contornos consideravelmente distintos dos que se foram levados a cabo nos momentos anteriores, prefigurando de modo particularmente evidente o modelo de aprendizagem centrado na autonomia do aluno. Propõe-se agora a realização de sessões de trabalho exclusivamente preenchidas com actividades formativas levadas a cabo pelos alunos, guiadas e supervisionadas pelo docente. Esta organização das últimas sessões de trabalho realizadas no âmbito da disciplina de Sociologia do Crime, vem substituir a planificação anteriormente assumida, assente na alternância entre sessões teóricas, predominantemente expositivas e centradas na exposição oral de conteúdos programáticos, da parte do docente (embora sem excluir a participação dos alunos); e sessões teórico-práticas centradas na consolidação de elementos de aprendizagem, pela realização de actividades formativas préestruturadas. O docente enuncia os temas a tratar – tendências da criminalidade, sistema prisional e rumos das políticas criminais – e apresenta aos alunos um guião de auto-aprendizagem, que reúne dois tipos de elementos: (i) uma breve introdução ao tema e descrição sumária dos principais aspectos da temática a analisar pelos alunos; (ii) fontes de informação e materiais bibliográficos. Após a realização da actividade formativa proposta, cada grupo apresenta oralmente as conclusões do seu trabalho e produz um relatório escrito. Apresentam-se de seguida os guiões de auto-aprendizagem facultados aos alunos para cada um dos sub-temas a desenvolver. 11.3. GUIÃO DE AUTO-APRENDIZAGEM CRIMINALIDADE»

PARA

«TENDÊNCIAS

DA

11.3.1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

Verifica-se nos dias de hoje um considerável alarmismo social em torno do crime e da insegurança, em larga medida baseado em noções de que o crime está a aumentar (sobretudo o crime violento) e, consequentemente, aumenta a 176

insegurança e os riscos para os cidadãos. Esta visão do mundo é alimentada por políticos e pelos meios de comunicação social, sendo importante para os sociólogos analisar e debater os contornos reais da evolução da criminalidade, de modo a desconstruir criticamente o imaginário da criminalidade que é projectado para a sociedade em geral. Vários autores têm salientado o acréscimo das taxas de crime nas últimas décadas, situando o início dessa escalada na década de 60 ou 70 do século XX. Este panorama seria extensível à generalidade dos países e caracterizar-se-ia, de igual modo, por um aumento da criminalidade violenta (Van Dijk e Mayhew, 1993; Cusson, 1990). Outros autores, porém, rebatem em parte esta imagem da evolução da criminalidade, referindo, por exemplo, que tem havido no decurso do último século uma regressão considerável da violência criminal, nomeadamente da violência interpessoal na Europa. Afirma Chenais que as taxas de homicídio na Europa são hoje claramente mais baixas do que em meados do século XIX (Chenais, 1981: 39). Lourenço e Lisboa confirmam esta tese, chamando a atenção para o recuo da taxa de homicídio na Europa, sendo sobretudo os crimes contra a propriedade que têm aumentado (Lourenço e Lisboa, 1998). Estudos sobre a criminalidade em Portugal mostram que hoje os níveis de criminalidade no nosso país aproximam-se da média Europeia, embora determinadas regiões do país, como Lisboa e Porto, apresentem taxas de criminalidade patrimonial superiores às médias da União Europeia (Ferreira, 1988; Lourenço e Lisboa, 1998). Há assim que distinguir dois níveis de análise: a visão de longa duração, que nos revela a macroevolução da criminalidade; e a visão de curta duração, que incide nas variações da criminalidade registadas num período de tempo muito circunscrito, por exemplo, de ano para ano, ou de década para década. A visão histórica mostra que a sociedade de hoje tem menos criminalidade violenta que a sociedade do século XVIII ou XIX, que era mais permissiva em relação à violência e adepta dos códigos de «honra e sangue». No entanto, a perspectiva da evolução secular mostra de igual modo, que a partir da segunda metade do século XX, ocorreu uma estabilização dos crimes contra as pessoas e verificou-se um aumento da incidência dos crimes contra a propriedade. 177

A análise das microvariações da criminalidade oferece mais dúvidas, por nos poder conduzir a sobrevalorizar oscilações de carácter pontual (Machado, 2004: 27). 11.3.2. ACTIVIDADE FORMATIVA 14

Com base na bibliografia facultada e nas estatísticas da criminalidade de carácter nacional e internacional, reúnam informação que permita saber o seguinte: 1. Evolução da criminalidade na Europa, ao longo do século XX; 2. Evolução da criminalidade na Europa, por tipo de crime e país, na última década; 3. Posicionamento da criminalidade em Portugal, no contexto da União Europeia, na última década, por tipo de crime.

178

11.3.3. LEITURAS E FONTES DE INFORMAÇÃO

Bibliografia aconselhada: Ferreira, Eduardo Viegas (1988), Crime e insegurança em Portugal. Padrões e tendências, 1985-1996, Lisboa, Celta. Ferreira, Eduardo Viegas (2001), “Criminalidade e insegurança urbana. Reconstrução de identidades e de solidariedades colectivas” in Magda Pinheiro et al., Cidade e Metrópole. Centralidades e marginalidades, Oeiras, Celta: 8594. Lourenço, Nelson; Lisboa, Manuel (1998), Dez anos de crime em Portugal. Análise longitudinal da criminalidade participada às polícias, 1984-1993, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários. Machado, Carla (2004), Crime e insegurança: discursos do medo, imagens do outro, Lisboa, Editorial Notícias: 15-36. Vaz, M. J. (1998), Crime e sociedade. Portugal na segunda metade do século XIX, Oeiras, Celta. Fontes de informação estatística: International Crime Survey, OCDE (1988, 1992, 1996), http://ruljis.leidenuniv.nl/group/jfcr/www/icvs/. Estatísticas criminais, Ministério da Justiça (2001/2002) http://www.gplp.mj.pt/estjustica/CD2002/Anuário%20Estatístico%20da%20Just iça%20CDROM/Dados%20Estatísticos/epolícias.htm Referências bibliográficas: Cusson, M. (1990), Croissance et décroissance du crime, Paris, PUF. Chenais, J. (1981), Histoire de la violence, Paris, Robert Laffont. Ferreira, Eduardo Viegas (1988), Crime e insegurança em Portugal. Padrões e tendências, 1985-1996, Lisboa, Celta. Lourenço, Nelson; Lisboa, Manuel (1998), Dez anos de crime em Portugal. Análise longitudinal da criminalidade participada às polícias, 1984-1993, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários. Machado, Carla (2004), Crime e insegurança: discursos do medo, imagens do outro, Lisboa, Editorial Notícias.

179

Van Dijk, J.J.M.; Mayhew, P. (1993). Criminal victimisation in the industrialized world: key findings of the 1989 and 1992 international crime surveys, Amsterdão, Directorate for Crime Prevention, Ministry of Justice.

180

11.4. GUIÃO DE AUTO-APRENDIZAGEM PARA «SISTEMA PRISIONAL» 11.4.1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

A criação e manutenção dos sistemas penitenciários, nomeadamente das prisões e das esquadras policiais, dependem largamente dos recursos económicos disponíveis, mas também da legitimação do aparelho de Estado e da ideologia e cultura prevalecentes numa determinada sociedade. Deste modo, as prisões são um espelho da sociedade que as cria e as mantém. A criação e organização do sistema prisional pode assim reflectir as seguintes dimensões da vida em sociedade: (i) hábitos sociais herdados e transmitidos; (ii) sistemas jurídicos, políticos, cívicos e mediáticos; (iii) intenções políticas organizadas (Dores, 2004: 2). Só assim se pode explicar que, por exemplo, os EUA tenham uma taxa de encarceramento oito vezes a europeia. Alguns autores explicam a elevada incidência do número de reclusos nos EUA (uma das sociedades mais penitenciárias do mundo) pelo facto de existir uma cultura histórica de violência, acompanhada, desde pelo menos a década de setenta do século XX, por um capitalismo agressivo, que não só criou amplas malhas de exclusão e desemprego, como converteu o sistema penitenciário numa indústria (Christie, 2000; Wacquant, 2000). Em termos europeus, dará igualmente que pensar as diferenças registadas em termos de número de reclusos por 100.000 habitantes: enquanto que Portugal apresenta um valor de taxa de encarceramento (131) claramente acima da média europeia (92), perfilando-se no conjunto dos países europeus mais penitenciários – Inglaterra e País de Gales (134) e Espanha (126) –; países como a Suécia (73), a Finlândia (67) e a Dinamarca (63) representam os contextos nacionais menos penitenciários. Este perfil comum aos países escandinavos deve-se provavelmente a afinidades culturais, civilizacionais e étnicas que tendem a rejeitar o encarceramento. Acrescente-se ainda que, tanto Portugal como Espanha são actualmente os países com maior percentagem de mulheres reclusas: em ambos os países, no ano de 2002, as mulheres correspondiam a cerca de 8% da população prisional;

181

quando a média europeia, para o mesmo ano, era de 5% de população reclusa feminina. Verifica-se uma sobrelotação das prisões de todo o mundo (em Portugal, na ordem dos 120% em 2002), na sequência da penalização do tráfico e consumo de drogas, que é de longe o crime que mais manda pessoas para a prisão, juntamente com os crimes contra o património. Os estudos sociológicos da prisão têm-se desenvolvido intensivamente, face à evidência social e política do crescimento das prisões. É possível distinguir as principais temáticas abordadas ao nível dos estudos prisionais realizados no contexto da Sociologia: (i) as relações prisionais, nomeadamente, as interacções nos grupos de reclusos e dos reclusos com outros actores sociais inseridos em contexto prisional, (ii) as identidades e as práticas dos reclusos, nomeadamente as transformações dos processos identitários e relações com o crime, durante a estadia na prisão; (iii) relações com o mundo exterior, nomeadamente, com instâncias de regulação superiores, parceiros dos estabelecimentos prisionais e fluxos de comunicação, de bens e de serviços entre o interior e o exterior da prisão. Os estudos clássicos da prisão, levados a cabo por autores como Clemmer (1940), Foucault (1999) e Goffman (1999) projectam o meio prisional como um «mundo à parte» como se as relações sociais prisionais fossem apenas produzidas localmente. Neste sentido, estes autores focalizaram essencialmente as relações prisionais e os processos identitários e práticas criados no contexto da prisão, vista como um hiato social e temporal. No âmbito das relações desenvolvidas no interior da prisão e subsequentes transformações nas práticas e identidades dos indivíduos, Clemmer (1940) desenvolveu o termo “prisionização”, definindo-o como uma “adopção em maior ou menor grau, dos usos e costumes, e em geral da cultura da prisão” (Clemmer, 1940 apud Gonçalves, 2000: 52). Este é um processo lento e gradual que começa por uma conversão ao anonimato. O autor considera que o próprio processo de ingresso na prisão irá acentuar a criminalização, por criar condições para a aprendizagem ou eventual fortalecimento das competências para a actividade criminosa, que ocorrem após estada na prisão. 182

Por sua vez, Foucault (1999) encara a prisão como um dos vectores de tecnologia política do corpo, por processos de vigilância e delimitação rigorosa dos corpos no espaço e no tempo, considerando que a prisão é uma “escola do crime”, surgindo, assim, um verdadeiro dilema: a prisão serve para punir o preso e preparar a sua reintegração social e, ao mesmo tempo, fomenta ainda mais o crime e o criminoso. Deste modo, Foucault considera que ao invés de ser ressocializado para a vida em liberdade, o indivíduo é socializado para viver na prisão. A abordagem autárcica da prisão é continuada por Goffman (1999), quando este apresenta o meio prisional como uma instituição total, onde um conjunto de indivíduos, separados da sociedade e por um período de tempo considerável, levam em conjunto uma vida fechada e formalmente administrada. Segundo Goffman, o carácter totalitário da prisão surge no momento em que se estabelecem barreiras às trocas e transacções com o exterior, sejam estas barreiras físicas, culturais e simbólicas, que demarcam as fronteiras entre o interior e o exterior da prisão. Salienta ainda as características principais deste tipo de instituições, considerando-as como totais, segregativas, homogeneizantes, normalizantes e estigmatizantes. Estudos prisionais mais recentes encaram a prisão como uma realidade translocal, tornando explícita a ideia de que é necessário colocar o interior e o exterior em continuidade analítica (Cunha, 2002), seja por via da análise das relações sociais extracarcerais (ibidem), seja por articulação das prisões com contextos económicos, políticos e financeiros de carácter global e internacional (Wacquant, 2000; Dores, 2003).

183

11.4.2. ACTIVIDADE FORMATIVA 15

Com base na bibliografia facultada e nas estatísticas prisionais de carácter nacional e internacional, reúnam informação que permita saber o seguinte: 1. Taxa de reclusos e de presos preventivos, destacando o caso de Portugal e distinguindo entre países mais e menos penitenciários; 2. Tipo de crimes mais praticados pela população prisional, em termos nacionais e europeus; 3. Perfil sócio-económico da população reclusa em Portugal; 4. Comparação da duração das penas em Portugal com outros países europeus.

11.4.3. LEITURAS E FONTES DE INFORMAÇÃO

Bibliografia aconselhada: Amaral, Diogo (2005), Relatório da Comissão de estudo e debate da reforma do sistema prisional, Coimbra, Almedina. Cunha, Manuela Ivone (2002), Entre o bairro e a prisão: tráficos e trajectos, Fim de Século. Cunha, Manuela Ivone (2003), "O bairro e a prisão: a erosão de uma fronteira" in Freitas Branco, J. e Afonso, A.I., eds. Retóricas sem Fronteira: 1/Mobilidades , Lisboa, Celta: 101-109. Cunha, Manuela Ivone (2004), “As organizações enquanto unidades de observação e de análise: o caso da prisão”, Etnográfica, vol. VIII (1): 151-157. Dores, António Pedro (2003a), Prisões na Europa – um debate que apenas começa, Oeiras, Celta. Dores, António Pedro (2003b), “Prisons and imprisionment in Portugal”, http://www.prisonobservatory.org/prison%20in%20portugal20e.v..doc Fontes de informação: Estatísticas prisionais da direcção Geral dos Serviços Prisionais (1999-2006), http://www.dgsp.mj.pt/frameset_info.html

184

Relatório

sobre

o

sistema

Documentação,

prisional, 1996,

Provedor

da

Justiça,

Divisão

de

www.provedor-jus.pt/restrito/

pub_ficheiros/RelPrisoes1996.pdf Referências bibliográficas: Christie, Nils (2000), Crime control as industry, Routledge. Clemmer, Donald (1940), The prison community, Nova Iorque, Richard and Co. Cunha, Manuela Ivone (2002), Entre o bairro e a prisão: tráficos e trajectos, Fim de Século. Foucault, Michel (1999), Vigiar e punir: nascimento da prisão, Petrópolis, Vozes. Goffman, Erving (1999), Manicômios, prisões e conventos, Rio de Janeiro, Perspectiva. Gonçalves, Rui Abrunhosa (2000), Delinquência, crime e adaptação à prisão, Coimbra, Quarteto. Wacquant, Loïc (2000), As prisões da miséria, Oeiras, Celta.

185

11.5. GUIÃO DE AUTO-APRENDIZAGEM PARA «POLÍTICAS CRIMINAIS» 11.5.1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

A lei criminal e as práticas e ideários desenvolvidos pelo aparelho de controlo social constituem os operadores primários de controlo e selecção da criminalidade. Em sentido restrito a política criminal consiste no programa de objectivos, de métodos de procedimento e de resultados que o Ministério Público e as autoridades de polícia criminal prosseguem na prevenção e repressão da criminalidade. A política criminal tem assim o pilar preventivo e o repressivo. A prevenção da criminalidade é mais económica e mais eficaz como instrumento de combate à reincidência do que qualquer política repressiva, como sistematicamente têm apontado estudos internacionais neste domínio. Saliente-se, neste âmbito as recomendações do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que desde 1983 têm insistido na necessidade de uma política de prevenção criminal (Albuquerque, 2004), apelando à selecção dos campos de intervenção e à necessidade de colaboração da sociedade civil na tarefa de prevenção criminal. A política criminal repressiva exerce-se por via da actuação e autoridade do Ministério Público, polícia, tribunais e sistema prisional, surgindo objectivamente pela aplicação de penas aos criminosos. Ao nível das políticas criminais, têm-se acentuado o debate em torno dos processos de descriminalização e de neocriminalização. Por descriminalização entende-se a desqualificação de uma conduta como crime, podendo dar origem a dois modelos de actuação do estado: (i) o Estado renúncia ao controlo da conduta e alarga as margens de tolerância (por exemplo, em relação ao consumo de certos estupefacientes ou em relação a certas práticas sexuais); (ii) o Estado procura formas de controlo mais eficazes e menos onerosas do que as oferecidas pelo sistema penal, como por exemplo a aplicação de substitutivos penais ou de terapêuticas, quer ao criminoso, quer à vítima. A

neocriminalização

significa

criminalizar

actos

anteriormente

não

classificados como crime, em virtude de mutações históricas e sociais. É o caso dos crimes informáticos, crimes ambientais e crimes sexuais.

186

As diferentes teorias sociológicas abordadas ao longo da disciplina de Sociologia do Crime desenvolveram pressupostos científicos que, de modo mais ou menos explícito sugerem orientações político-criminais, que importa agora sistematizar: ● A Escola de Chicago preconiza por excelência uma política criminal preventiva, tendo sido numerosas nos Estados Unidos as reformas legislativas e os programas de intervenção social baseados nos princípios teóricos da ecologia criminal. Esta corrente de pensamento preconiza a política criminal ao nível da pequena comunidade local de vizinhança em que os delinquentes se inserem, recusando as perspectivas de tratamento e abordagem individual e procurando envolver os residentes locais com prestígio e aceitação social para intervirem como agentes promotores voluntários da solidariedade social. ● A teoria funcionalista de Merton e da subcultura delinquentes de Cloward e Ohlin sugerem uma política-criminal orientada para dois níveis distintos: por um lado, para as variáveis estruturais do sistema social; e por outro lado, para o sistema de controlo associado à estrutura cultural. Tendo em consideração que este grupo de autores consideram que o crime e o desvio radicam no desequilíbrio entre as aspirações culturalmente incutidas e os meios ou as oportunidades disponíveis, a prevenção da criminalidade pode fazer-se de dois modos: (i) pela redução do nível de aspirações (estrutura cultural), concedendo prestígio a essas alternativas mais realistas face a recursos económicos e educativos escassos, que se converterão no desempenho de funções

(a

valorizar

socialmente)

associadas

às

classes

sociais

mais

desfavorecidas; (ii) alargamento das oportunidades (estrutura social), privilegiando acções no domínio da educação, formação e emprego junto das comunidades mais desfavorecidas. ● As teorias da subcultura partem do princípio do conflito de culturas, falando por isso, por exemplo, das culturas delinquentes juvenis e das culturas marginais dos imigrantes. Esta corrente de pensamento perspectiva uma política 187

criminal assente na ideia de que a intervenção e prevenção da criminalidade tem de ser feita ao nível do universo cultural. Neste sentido, pretende-se que a prevenção da criminalidade opere por acções dirigidas aos elementos de grupos culturais mais isolados e contrários aos valores da cultura convencional, potenciando deste modo a conversão das classes mais desfavorecidas aos valores da cultura dominante. ● O legado político-criminal das teorias interaccionistas ancora na defesa do pluralismo cultural e relativismo moral, pelo que a direcção das políticas criminais será proposta tendo como alvo privilegiado as instâncias de controlo, começando pela própria lei. Daí que a descriminalização e a não-intervenção radical (suscitando a necessidade de repensar o ordenamento penal no contexto de uma sociedade aberta e plural e alimentando a crença no alargamento das margens de tolerância) se configurem como tópicos dominantes da política criminal de obediência interaccionista.

188

11.5.2. ACTIVIDADE FORMATIVA 16

Desenvolvam as seguintes actividades em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. Considerem as possíveis modalidades de política criminal, tomando como referência

bairros

sociais

fisicamente

degradados,

habitados

maioritariamente por minorias étnicas e nos quais prevalece a criminalidade, violência de rua, abandono escolar e desemprego. Várias vezes ocorrem práticas criminais de grupos de jovens delinquentes, ocasionando preocupação e violência. 2. Ponderem a possibilidade de a) reforço do policiamento e alargamento das possibilidades de intervenção policial pela via das armas; b) realojamento da população residente; c) acções de formação e ocupação dos tempos livres de jovens e crianças. 3. Enunciem as vantagens e desvantagens/obstáculos destas possíveis medidas de intervenção ao nível do controlo e prevenção da criminalidade

189

11.5.3. LEITURAS E FONTES DE INFORMAÇÃO

Bibliografia aconselhada: Albuquerque, Paulo (2004), “O que é a política criminal, porque precisamos dela e como a podemos construir?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 14, Coimbra, Coimbra Editora: 435-452. Dias, Figueiredo Jorge; Andrade, Manuel da Costa (1997), Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora: 286-293; 306-311; 338-342; 358-361; 397-441. Fontes de informação: Relatórios de Segurança Interna: http://www.mai.gov.pt/data/006/index.php?x=rasi http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Governos/Governos_Constitucionais/GC15/ Ministerios/MAI/Comunicacao/Publicacoes/20030102_MAI_Doc_Rel_Seguranca_I nterna.htm

Referências bibliográficas: Albuquerque, Paulo (2004), O que é a política criminal, porque precisamos dela e como a podemos construir?, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 14, Coimbra, Coimbra Editora: 435-452.

190

11.6. SÍNTESE Esta unidade de aprendizagem privilegiou a componente de autoaprendizagem dos alunos, exigindo níveis e competências de autonomia na recolha e organização de informação, com vista à construção do conhecimento sobre as seguintes temáticas: (i) tendências evolutivas da criminalidade, em termos macro e micro; (ii) dimensões de análise privilegiadas nos estudos prisionais; (iii) diversidade de políticas criminais e articulação com os distintos legados científicos das teorias sociológicas do crime. 11.7. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem. 1. Exponha os principais elementos do imaginário da criminalidade actual, tal qual este é projectado na esfera pública; 2. Proceda a um esboço das principais tendências evolutivas da criminalidade, contrapondo o século XIX ao momento actual; 3. Aponte a principal incidência da criminalidade, por tipo de crimes, em Portugal, comparando com as médias europeias; 4. Explique as diferenças principais entre os estudos prisionais clássicos e os estudos sociológicos das prisões mais recentes; 5. Esboce as principais características da situação prisional em Portugal; 6. Explique os dois vectores principais das políticas criminais; 7. Distinga entre descriminalização e neocriminalização; 8. Exponha

os

significados

científico-criminais

sociológicas do crime que estudou.

191

das

diferentes

teorias

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