Manuel de Azevedo Fortes, um Cartesiano Convicto

May 27, 2017 | Autor: Luís Manuel Bernardo | Categoria: History of Science and Technology, Cartesianism, History Of Modern Philosophy, Portuguese Enlightnement
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LUÍS ANTÓNIO VERNEY E A CULTURA LUSO-BRASILEIRA DO SEU TEMPO Coordenação de:

António Braz Teixeira Octávio dos Santos Renato Epifânio

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Luís Manuel A.V. Bernardo | MANUEL DE AZEVEDO FORTES, UM CARTESIANO CONVICTO Como acontecia por toda a Europa setecentista, o movimento português das Luzes, após um período de aproximadamente três décadas, em que «a facção favorável ao cartesianismo foi ganhando terreno»1, não escapava ao fascínio pela filosofia do conhecimento e da educação de John Locke e pelo modo como esta se articulava com a física de Isaac Newton, a qual, por sua vez, à medida que o século avançava, ia associando cada vez mais adeptos. Como resume Ana Cristina Araújo: «se a corrente de inspiração cartesiana foi ganhando adeptos em sectores ligados ao exército, à tecnoestrutura burocrática do Estado, ao meio médico e eclesiástico, também a linha programática do experimentalismo inglês encontrou intérpretes à altura e motivos não menos plausíveis de aceitação» (Idem, Ibidem). Deste interesse, a proposta reformista de Luís António Verney constituí, como é sabido, um exemplo acabado, mas de modo algum único. No reinado de D. João V, lembramos, entre outras, a reputada obra pedagógica de Martinho de Mendonça, Apontamentos para a Educação de um Menino Nobre, cuja relação estreita com a do britânico, Some Thoughts concerning Education, aparecia imediatamente declarada2, ou o percurso de D. Francisco Xavier de Menezes, patrono institucional da Ilustração pátria, que, após um manifesto interesse pelo sistema cartesiano, acabou por escolher definitivamente o newtonismo, na década de 30, fazendo-se, entretanto, sócio da Royal Society3. Todavia, uma figura de proa do grupo dos «modernos», Manuel de Azevedo Fortes (Lisboa, 1660 – Lisboa, 1749), Engenheiro-Mor do Reino, nunca sentiu a necessidade de abjurar o cartesianismo que sempre perfilhou e do qual procurou transmitir uma versão cuja consistência assumia a dimensão de um verdadeiro projecto reformador4. Sem que desprezasse alguns dos contributos dos dois ingleses - como a crítica de Locke ao inatismo actual dos princípios5 ou a concepção corpuscular, de cariz 1

Ana Cristina Araújo, A Cultura das Luzes em Portugal: Temas e Problemas, Lisboa, Livros Horizonte, 2003, p. 39.

2 Cf. Luís Manuel A. V. Bernardo, «Martinho de Mendonça: un représentant des Lumières portugaises», Armelle St. Martin/Sante Viselli (dir.), Les Lumières au-delà des Alpes et des Pyrénées – communications, transferts et échanges, Paris, Hermann, 2013, p. 123-150. 3

Norberto Cunha, Elites e Académicos na Cultura Portuguesa Setecentista, Lisboa, INCM, 2001.

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Cf. Luís Manuel A. V. Bernardo, O Projecto Cultural de Manuel de Azevedo Fortes: um caso de recepção do cartesianismo na Ilustração portuguesa, Lisboa, INCM, 2005.

5

Manuel de Azevedo Fortes, Lógica Racional, Lisboa, INCM, 2002, p. 128-129 (doravante, designada LR). 243

atomista, da estrutura dos corpos que aquele partilhava com Gassendi (LR, p. 115) (de quem, do mesmo modo, só reterá este aspecto, uma vez que considera que «a doutrina deste filósofo, tomada geralmente e confundindo as ideias intelectuais com as sensíveis e sentimentos da nossa alma […] parece fazer o homem inteiramente corpóreo») (LR, p. 86), ou certas virtudes da física newtoniana (LR, p. 219), sobretudo para a explicação dos fenómenos da luz e das cores, tinha sérias reservas sobre algumas das respectivas teses filosóficas, nomeadamente no que respeitava à articulação entre fé e razão no conhecimento da liberdade (LR, p. 107), que o levaram a declarar que «as suas filosofias são pouco seguras na nossa Santa Fé» (LR, p. 219). Por isso, preferiu integrar o que deles julgou recomendável na mesma matriz cartesiana, como o fez, aliás, com vários outros pensadores. É assim que, por exemplo, o entendimento da configuração interna dos corpos resultante da «mistura que se pode fazer de muitos corpos grosseiros» (LR, p. 116), se bem que apresentado, seguindo o posicionamento epistemológico de Locke, como conjectura sem fundamento científico suficiente, aparece acoplado à crítica da noção escolástica de forma substancial, tida por mero «nome substantivo abstracto» (LR, p. 115), e à consequente valorização da definição cartesiana da substância, que resultava na distinção entre res cogitans e res extensa, aqui reconduzida à mais usual entre corpo e espírito. Ora, é com base numa tal separação, que admite um tratamento próprio do corpóreo, que, para Fortes, a teoria corpuscular se torna pensável, o que, ao invés de questionar o valor da matriz, acaba por reforçá-lo. Será, por conseguinte, de supor que o autor terá assumido que uma determinada orientação no domínio da física não feria a consistência metafísica dum sistema, mas requeria tão só a realização dos devidos ajustamentos, uma vez que a lógica dos fundamentos, como Descartes defendia nas Meditações de Filosofia Primeira, deveria prevalecer sobre todos os outros níveis de conhecimento, incluindo o experimental. Este artigo pretende evidenciar alguns traços de uma tal coerência teórica, buscada no cartesianismo, que confere a Manuel de Azevedo Fortes um lugar particular no panorama cultural da primeira metade do século XVIII português. Não se tratará aqui, portanto, da sua actividade profissional, em sentido estrito, como engenheiro e arquitecto militar, marcante em Portugal e no Brasil, de que nos ficaram vários exemplos, desde a Carta topográfica do termo de Lisboa athe a villa de Mafra e de todos os caminhos que ha para a mesma villa às propostas sobre a Praça-Forte de Almeida e respectiva intervenção, ou como renovador do ensino profissional, enquanto director e docente da Academia Militar da Corte, mas tão só do desenho do seu pensamento teórico. À chegada a Portugal, de onde estivera ausente desde a idade de dez anos, Manuel de Azevedo Fortes trazia uma bagagem cultural inusitada: uma sólida formação escolástica, obtida em Espanha, no Colégio Imperial e na Universidade de Alcalá de Henares; um conhecimento não menos importante da filosofia e da matemática modernas, adquirido no parisiense Colégio de Plessis, no qual pre244

dominava o cartesianismo na versão de Port-Royal; uma experiência de seis anos de ensino da filosofia na Universidade de Siena, um dos focos de acolhimento da concepção cartesiana que, consequentemente terá podido discutir e aprofundar, nomeadamente pela expansão das leituras iniciais. Azevedo Fortes integrava-se, assim, com plena consciência, em duas complexas redes, a dos estrangeirados, apostados em fazer circular as perspectivas consideradas modernas e progressistas na cultura nacional,6 e a da disseminação do ideário cartesiano no qual encontrava, simultaneamente, um sistema explicativo satisfatório, um modelo para o seu projecto reformista e um esquema de modernização dos saberes pátrios susceptível de lançar o país na rota das Luzes europeias7. A peculiaridade deste quadro no panorama nacional, do qual cabe destacar o facto de ter sido um dos poucos que não chegou à filosofia coeva por via do autodidactismo, ao contrário, por exemplo, de Martinho de Mendonça, bem como a coerência firmada de uma matriz de pensamento, a do cartesianismo, em contraste com o pendor prevalecente entre os partidários da Ilustração para um eclectismo dispersivo, terá sido, provavelmente, um dos motivos determinantes do crescente sucesso que marcou a sua carreira, primeiro, como substituto da cadeira de Matemática na Academia da Fortificação, por decisão de D. Pedro II, em 1706, depois, a partir de 1719, como Engenheiro-Mor do Reino, por nomeação de D. João V. Se é verdade que, após «mais de três décadas de incorporação do cartesianismo em Portugal»8, as elites intelectuais estavam abertas à novidade cartesiana – prova-o, por exemplo, o interesse do próprio monarca que a oferta de uma resenha das principais teses do sistema de Descartes lavrada por João Baptista Capasso procurava satisfazer, ou as tentativas de alguns Jesuítas para integrarem a respectiva discussão no cursus conimbricensis ou no currículo dos colégios -, tomando-a por referência obrigatória dos debates sobre o pensamento moderno9, não o é menos que nenhum outro autor revelava uma apropriação sistemática tanto das teses de índole cartesiana, quanto do conjunto de posições doutrinárias, dos gestos orientados para a sua circulação e reprodução, e dos valores que configuravam a pertença ao que cabe designar como a «cultura cartesiana», de modo mais particular, na vertente jansenista. Mais tarde, o próprio Verney, por exemplo, seguirá as ideias cartesianas da Gramática de Port-Royal10, ou adoptará o fundo cartesiano do pensamento de Fénelon ao apropriar-se do essencial do Traité de l’éducation des filles, 6

Maria Paula Diogo, Ana Carneiro, Ana Simões, “Enlightenment Science in Portugal: The Estrangeirados and their Communication Networks”, Social Studies of Science, 30: 4, 2000, pp. 591-619. 7

Cf. António Banha de Andrade, Contributos para a História da Mentalidade Pedagógica Portuguesa, Lisboa, INCM, 1982, p. 191-226.

8

José Esteves Pereira, Percursos de História das Ideias, Lisboa, INCM, 2004, p. 34.

9

Amândio Coxito, Estudos sobre Filosofia em Portugal na Época do Iluminismo, Lisboa, INCM, 2006, p.15-42;Henrique Leitão (coord.), Sphaera Mundi: A Ciência na Aula da Esfera, Lisboa, BNP, 2008.

10 Luís António Verney, Verdadeiro Método de Estudar, vol. I, Lisboa, Sá da Costa, 1950 (doravante, VME).

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no «Apêndice sobre o Estudo das Mulheres» (VME, vol. V, pp. 123-149), mas o seu interesse pelo cartesianismo ficava circunscrito determinados campos, sem chegar a originar a base dum sistema integral. A partilha dessa configuração cultural, por parte de Azevedo Fortes, não deve ser confundida com uma fidelidade pura e directa às teses do filósofo francês, verificável pela literalidade da respectiva restituição ou por um rigor hermenêutico que, na verdade, só passou a ser valorizado a partir do positivismo oitocentista. Antes, o que está em causa, sem prejuízo da respectiva proximidade no travejamento conceptual, é a prática dos modos típicos de recepção de Descartes na época, e, mais particularmente, das orientações que esta seguiu no seio do pietismo jansenista, que já se apropriara da teoria do filósofo, segundo um leitura própria, como um corpo doutrinário de referência, ao qual apôs novos problemas e do qual extraiu sentidos que o autor não previra ou, em certos casos, recusara, como fossem, por exemplo: a valorização das obras póstumas que o autor deixara não só por publicar, mas, também, por acabar (Regulae ad directionem ingenii, Du monde, De l’homme, De la recherche de la vérité par la lumière naturelle); a utilização genérica da dúvida, mais próxima da versão barroca do cepticismo face à pluralidade de sistemas filosóficos e científicos, que do alcance filosófico que Descartes lhe atribuíra; a reposição da centralidade da questão antropológica, na dupla vertente física e espiritual, com a consequente redefinição da substância pensante a partir do modelo agostiniano, e a revitalização do problema da união da alma e do corpo, que, não obstante o Tratado das Paixões da Alma, acabara por ficar marginal e indecisa; o estreitamento da relação entre religião, filosofia e ciência, de que a discussão, de teor malebranchista, sobre a causalidade ocasional ou a noção da visão em Deus constituem duas consequências. Por sua vez, importa não esquecer que o cartesianismo, no seu aspecto doutrinário, não se esgota no domínio estrito da filosofia, mas estende-se ao campo da ciência, onde intervém com conceitos, problemas, soluções e práticas, pelo que a pertença à cultura cartesiana passa, igualmente, por uma certa concepção do que cabe entender por ciência e pelas melhores formas de a concretizar, assente na redução da física à geometria, dos corpos à extensão, dos movimentos ao movimento local e das funções orgânicas ao mecanismo. Ora, tal como na filosofia, os percursos efectuados no interior desta grelha foram plurais. Assim, há que reconhecer que é nesse jogo de fidelidades e infidelidades que se gera o intervalo para a emergência das especificidades autorais dos seguidores de Descartes. A obra de Azevedo Fortes enquadra-se plenamente em tal dinâmica de apropriação e demarcação. Ao rescrever, de acordo com uma lógica mais científica, a frase com que o cartesiano Michelangelo Fardella combinava a convencional recuperação de uma passagem do «Livro da Sabedoria» (XI, 20) para dar fundamento metafísico ao cultivo da Ciência, com o tríade das disciplinas matemáticas da época, defendendo, portanto, que «o Autor da natureza criou em número, peso e medida, a saber, segundo as leis da geometria, da aritmética e da estática» (LR, p. 246

45), será que o nosso autor não assinalava, também, a partilha do gesto do italiano, cuja lealdade à matriz cartesiana não o impediu de introduzir variações apreciáveis11? No seu caso, tratava-se de reorientar as linhas principais do cartesianismo, tal como o compreendia, para uma versão mais realista, que antepunha à ideação o concreto dos entes, e, dessa feita, procurava estar mais ajustada à metafísica ontológica que sustentava a ortodoxia teológica, bem como para pô-las a dialogar com problemáticas e perspectivas alternativas, ou para lhes conferir um cunho assumidamente pragmático, vocacionado para a prática profissional. Assim, por exemplo, se aderia em geral ao conceito da substância extensa, compreendia-a segundo o modelo prévio da ciência da ordem e da dimensão, sujeitando-o à exigência de corresponder a um mínimo ontológico e acabando por reconduzi-lo às ideias mais concretas de espaço e de corpo, entendido, por sua vez, como massa. Consequentemente, preferia ao carácter metafísico que Descartes atribuíra à extensão nas Meditações Metafísicas, a sua primeira versão no Tratado do Mundo, na qual a representação imaginativa era requerida a par do esforço abstractivo do entendimento. Do mesmo modo, valorizava a distinção entre o que cabia ao corpo e o que pertencia ao espírito, possibilitada pelo dualismo das substâncias que Descartes firmara, da qual retirava, igualmente, consequências teológicas, mas não deixava de concebê-la a partir da sua união concreta no homem que, dessa feita, definia, na linha do tratado cartesiano sobre o Homem, como «uma substância cogitante e inteligente, unida a um corpo orgânico, disposto e ordenado em todas as suas partes, para as funções que lhe são próprias» (LR, p. 137). Ainda, se reconhecia a importância da dúvida no acesso à verdade, não só a entendia de modo genérico, como descartava as figuras extremas do «deus enganador» e do «génio maligno», fulcrais no percurso meditativo de Descartes, em nome da necessária confiança plena na bondade divina, a favor de uma outra, de inspiração agostiniana, «a de um amigo interlocutor», tido por critério objectivo da clareza das ideias suposta pelo eu12. Por fim, apesar da grande conta em que tinha a especulação filosófica e científica, investia, antes, num nível médio de conhecimento, susceptível de melhor harmonizar abstracção e figuração, entendimento e imaginação, teoria e prática. A sua recepção da matriz cultural cartesiana, por próxima que se mantivesse do modelo, não seguiu, por conseguinte, a linha da reprodução, mais ou menos literal ou em maior ou menor quantidade, de sequências textuais buscadas nas obras dos autores de referência, mas preferiu-lhe a recriação teórico-prática do que definia o essencial de uma tal cultura, e que, por isso mesmo, se assumia como transversal aos diferentes meios e locais onde se exercia. Dessa feita, podia capitalizar os vários aspectos desse seu cartesianismo para idealizar um projecto consistente de modernização da cultura nacional, resoluto, ainda que sem prever 11

Franco Meschini, “Fardella, Michelangelo», Dizionario Biografico degli Italiana, vol. 44, 1994 (consultado on-line).

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“Discurso Filosófico sobre o Método com que se hão-de Aprender as Ciências”, § 31, in LR, p. 235. 247

rupturas excessivas, porque pensado especificamente para se aplicar ao quadro mental português, e progressivo, já que ensaiado, numa primeira etapa, ao nível da formação dos Engenheiros militares, assim alçados ao estatuto de cidadão padrão, para vir a estender-se a grupos sociais mais alargados, de que nem as senhoras constituiriam excepção. Por esse motivo se explica que tenha escrito todas as obras em Português, diferentemente de Verney que reservou a língua de Camões para os escritos de alcance social e político e continuou a escrever na de Cícero os seus tratados de âmbito mais estritamente filosófico. O carácter propositado do faseamento que gizou pôde logo ser constatado na Representação feita a S. Magestade, publicada um ano depois do início das funções de Engenheiro-Mor. Neste opúsculo, que constituía uma espécie de lembrete público do plano de reforma discutido com o Monarca, Fortes, claramente influenciado pela espírito racionalista de Sébastien de Vauban, Engenheiro Militar de Luís XIV, antecipava o modelo corporativo e profissionalizante que julgava mais adequado para dignificar a Engenharia militar pátria, o qual viria a obter completa justificação teórica com a edição de O Engenheiro Português (1728), em dois volumes, o primeiro desenvolvendo cada ponto do panfleto, o segundo versando o tema da Arquitectura Militar, entendida como estratégia defensiva, ao qual apôs, tendo em conta a vertente ofensiva, um «Apêndice sobre as Armas de Guerra». Apresentando, as características de um manual, o livro dá-nos, igualmente, uma imagem do ensino praticado na Academia Militar que Fortes dirigiu. Mostrando estar a par das concepções mais actualizadas no domínio em causa, empenhado em reduzir uma situação que diagnosticara caótica de acordo com uma matriz metodológica de racionalização, Azevedo Fortes traçava, desse modo, um imponente programa que passava pela construção de um modelo de ensino-aprendizagem de acordo com o ideal científico da mathesis universalis, o saber assente nos princípios axiais da ordem e da medida, combinando a transmissão dos elementos basilares da matemática, da física e da filosofia e a dos procedimentos mais específicos da arquitectura militar. O intuito metodológico, segundo os preceitos cartesianos da simplicidade, da análise, da enumeração e da revisão, expostos pelo filósofo francês na segunda parte do Discurso do Método, está patente desde a organização do índice (da geometria prática, incluindo, a longimetria, a planimetria, a estereometria e a trigonometria, à fortificação regular e irregular, ofensiva e defensiva) até aos recursos didácticos, onde avultam, esquemas, desenhos, exemplos, etc., passando pela objectividade no tratamento dos conteúdos, com muito poucas derivas especulativas ou questões avulsas. Azevedo Fortes dava, deste modo, corpo à aproximação, preconizada por Descartes, já na oitava das Regras para a Direcção do Espírito, entre a particularidade do seu método e a especificidade da prática das artes mecânicas. Como se depreende do título, a obra cumpria, ainda, uma assumida função de propaganda ao estear a ideia de uma especificidade nacional, que consistiria numa 248

atitude de contenção perante os excessos da erudição, a favor do aprofundamento dos domínios ético e religioso, em contraposição ao seu congénere francês, tido como predominantemente especulativo. Por conseguinte, a formação do engenheiro português ficava pelo plano do saber-fazer, e, sobretudo, pelo desenvolvimento de uma postura de moderação que submetesse os desígnios da profissão à dimensão antropológica, fazendo depender a imagem do Homem-engenheiro, para o qual pretendia um perfil de grande competência, garantido pelo conhecimento técnico-científico, da formação do Engenheiro-homem, que a ponderação dos melhores sistemas filosóficos e a ortodoxia religiosa deveria converter no sage moderno, a meio caminho da sagacidade e da sabedoria, da prática e da reflexão, ou, ainda, recorrendo à distinção de Pascal, que não usa, mas, cremos, que bem traduz o seu objectivo, entre «o espírito de geometria e o espírito de finura». Um tal delineamento não fora, como se imagina, consensual. O desafio surgiria nas sucessivas edições das Memórias Militares, publicadas em Amsterdão pelo Capitão António Novaes Ferrão, que visava o fundo cartesiano, a doutrina militar, a imagem veiculada do estado da Engenharia portuguesa e a estrangeirice das soluções avançadas. A bateria acertava em aspectos tão importantes da proposta que, sob o duvidoso expediente de uma falsa autoria, mas exibindo os sólidos conhecimentos que adquirira no âmbito da Retórica e fazendo alarde da sua competência em questões particulares da estratégia militar, Azevedo Fortes ripostou, com detalhe, através de uma publicação intitulada Evidência Apologética e Crítica sobre o Primeiro, e Segundo Tomo das Memórias Militares, pelos Praticantes da Academia Militar desta Corte (1733). Significativamente, nessa estratégia defensiva, escusou-se ao ponto mais sulfuroso, o das teses cartesianas relativamente ao corpo e à sua relação com o espírito, pondo, assim, o essencial da sua originalidade autoral ao abrigo da polémica. Todavia, se recusou debater a visão mecanicista, não deixou de usar, nas alegações finais, o cavername metodológico recolhido no Discurso do Mé‑ todo de Descartes, com o objectivo de sustentar que a complexidade da profissão de engenheiro, se não se enquadra nas ciências abstractas puras, também não tem cabimento no que designa como «ciências da memória», antes faz parte do campo das «ciências do juízo e da reflexão», as quais devem ser orientadas, ao mesmo tempo, pela perícia técnica, pela racionalidade científica e pela compreensão ética. Ficava, uma vez mais, assente o seu entendimento ético da racionalidade como mediadora da experiência, do saber e da consciência, de modo a evitar o tacteio da primeira, a arrogância do segundo e o pendor efabulatório da terceira. Azevedo Fortes reiterava, assim, uma sua convicção fundamental, já claramente enunciada na sua primeira obra de grande fôlego, precursora da cartografia moderna em Portugal, o Tratado do Modo o mais Fácil e o mais Exacto de Fazer as Cartas Geográficas (1722). Fruto da relevância que reconheceu na tarefa de cartografar o território nacional, que lhe coube, enquanto membro fundador da Academia Real de História Portuguesa, e que no Engenheiro Português viria a considerar

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como a primeira função do engenheiro militar, também aqui revelava o propósito didáctico que assistiu a todas as suas obras, ao julgar indispensável a existência de um manual que apoiasse a formação e a prática do grupo de engenheiros destacado para a empreitada. A ordem sequencial dos assuntos indicia a aplicação dos princípios cartesianos de clareza e de distinção, que será uma constante nos seus trabalhos: às questões gerais de topografia e de trigonometria, seguem-se problemas, divididos de acordo com o método de solução, consoante dependam ou não de instrumentos. Um conhecimento claro e incisivo do aparato conceptual, dos instrumentos e das técnicas da disciplina, secundado pelo recurso a uma retórica expositiva parca em ornamentos desnecessários, bem como pelo domínio crítico das principais autoridades, nomeadamente, Jacques Ozanam, permitia-lhe introduzir noções essenciais e, em certos casos, inéditas no contexto científico nacional, todas elas adstritas ao ideal da mathesis universalis: ideia de um petipé uniforme e universal; sugestão de um sistema decimal; método das triangulações com uso da prancheta; sinalização específica e diferenciada para as cartas geográficas, corográficas e marítimas; aplicação da perspectiva ao desenho topográfico. Como o confirmava a apologia, de índole cartesiana, do primado da geografia sobre a história, pelo que na primeira relevava a continuidade do espaço e constituía, desse modo, uma materialização privilegiada da matemática universal, susceptível de pura representação geométrica, em contraposição à variabilidade e efemeridade dos fenómenos que cabiam à segunda, patenteava, nesse Tratado, uma compreensão profunda do papel uniformizador da diversidade de representações e de sustentação de consensos que cabia à medida-padrão, tanto nas ciências da natureza, quanto naquelas que diziam respeito à sociabilidade humana. Em suma, na matriz epistemológica da ciência da ordem e da medida, encontrava, igualmente, a condição moderna para a prática da moderação, uma vez que, por um lado, restituía uma representação mais correcta do mundo, ao descobrir a escrita geométrica de Deus, que Descartes intentara restituir, uma primeira vez, no Tratado do Mundo, e, por outro, favorecia o exercício unificado do espírito, requerendo a combinação da imaginação e do entendimento, em linha com o que o filósofo francês enunciara nas Regras para a Direcção do Espírito. Por sua vez, a utilização do fundo doutrinário destas duas obras, publicadas postumamente, mas destinadas a um imediato sucesso nos círculos cartesianos, que não se confina, naturalmente, a um dos seus livros, mas está presente em todos, mostra, por si só, o grau de intimidade de Fortes relativamente às orientações mais recentes do cartesianismo. Para além do mais, Azevedo Fortes compreendeu bem a forma como a consideração desta «ciência universal dos rudimentos», que configurava a existência de um denominador comum, simples e unitário, para o conjunto de fenómenos da natureza, obrigava a repensar a situação do homem no mundo, em virtude do contraste entre o pessimismo antropológico, que fazia depender o erro do pecado original, e um inevitável optimismo histórico, derivado das potencialidades tecnológicas e libertadoras que a nova ciência continha. Esta percepção 250

constitui, decerto, um exemplo de como estava imbuído dos problemas oriundos da apropriação jansenista do legado cartesiano, partilhando idêntica vontade de conciliar ciência moderna e metafísica teológica. Que Verney sustente uma perspectiva semelhante nas páginas introdutórias, sobre «a Verdade e o Erro», ao seu «Plano duma Lógica Moderna» (VME, vol. III, Carta Oitava, p. 79), no qual porém seguirá a filosofia do conhecimento de Locke, mostra que ela se houvera entretanto firmado como uma resposta «moderna» ao requisito da Ilustração nacional de ver harmonizadas fé e razão . Fortes teve o ensejo de defender essa tripla dimensão, metafísica, moral e antropológica, que atribuía à Matemática e aos saberes que nela se fundavam, na Oração que proferiu no Paço, na sua qualidade de Académico, por ocasião do quinquagésimo aniversário do Rei, a 22 de Outubro de 1739. Para dar fundamento suficiente às críticas que dirigia à demora do monarca em ordenar a cartografia do território nacional, que, aliás, não foi iniciada em vida de nenhum dos dois, estruturava a sua apologia das ciências matemáticas com base em dois argumentos principais: por um lado, estabelecia uma relação directa entre o cultivo das matemáticas e os períodos de florescimento do reino, mormente verificável no período das Descobertas, assim sugerindo que, na ausência de um tal entrosamento, o movimento de modernização em curso estaria comprometido; por outro, mostrava como o conhecimento científico constituía, não só uma condição necessária para a ilustração dos indivíduos e dos Estados, mas, igualmente, uma das vias previstas no plano divino para o cumprimento da destinação do Homem, não havendo lugar, portanto, para supô-lo acessório. Pretendia comprová-lo mediante cinco razões: o contributo das matemáticas para o progresso material da humanidade; o modo como a sua prática, na medida em que vai permitindo desvelar o segredo da realidade, incrementa o encontro entre as ordens, divina, natural e humana; a serenidade que o acesso a um plano de estabilidade e de perfeição confere; o potencial contemplativo que certas ideias matemáticas encerram, em particular, a de infinito, que concebia à maneira das naturezas simples cartesianas, recusando confundi-la, à maneira dos empiristas, com uma adição continuada de unidades (LR, p. 121), mas cujo efeito mobilizador da ascese, «do tempo à eternidade: do ponto ao infinito: do nada ao todo, e de si mesmo ao seu Autor»13, descrevia, com uma tonalidade pascaliana; a existência, por conseguinte, de ideias inatas de Número, Figura e Movimento, tal como da capacidade de intuí-las com toda a clareza que estariam compreendidas na marca de Deus no homem, como uma imagem do conhecimento divino (Ibidem). Nesta passagem, que combina a ideia cartesiana de um Deus matemático, na origem do conhecimento privilegiado que temos da geometria, cuja evidência beneficia, por sua vez, da luz natural da razão, com a temática agostiniana da imago dei e do mestre interior, a defesa de um inatismo actual, desde logo da própria 13

“Oração Académica…”, in Luís Bernardo, O Projecto Cultural de Manuel de Azevedo Fortes, p. 242. 251

ideia do Criador, é inequívoca e afigura-se-nos consistente com a sua visão do mundo, assente na convicção do carácter essencial do conhecimento científico, o qual requer um fundamento metafísico absoluto. Mais tarde, retomará essa mesma posição (LR, p. 93-97), para reforçá-la com o acréscimo das ideias da natureza da alma, da vida e da existência, que designa, explicitamente, como inatas, lembrando, em declarada oposição aos empiristas britânicos, que «as ideias dos sentimentos interiores da nossa alma, que é inteligível, e um acto que se sente, são inseparáveis de nós mesmos e são uma boa parte da nossa essência» (LR, 69). Esta orientação parecerá, eventualmente, incompatível com a crítica ao inatismo actual dos princípios, por nós mencionada no parágrafo introdutório. Todavia, uma leitura mais cerrada acabará por evidenciar que, entendidos os princípios como juízos, já pressupõem a actividade do espírito sobre e com as ideias, não havendo, por isso, lugar a verdadeira contradição. Assim, se todos os homens têm uma apercepção de si, como corpo e espírito, tal não implica que todos partilhem a mesma caracterização do que constitui cada um deles. Nesta divergência radica a diferença entre as principais visões do mundo, nomeadamente, aquela que se afigura estruturadora do pensamento moderno, entre Antigos e Modernos. É o que justifica, aliás, a exposição sequente dos axiomas que beneficiam, alegadamente, do consenso entre os modernos, onde avultam, mais uma vez, os princípios epistemológicos da ciência cartesiana, como o da correspondência entre a realidade formal da ideia clara e distinta e a sua realidade objectiva, o da impossibilidade de pensar o nada ou o do predomínio da inércia sobre o movimento, que, apesar de tidos por evidentes, requerem a aprendizagem da nova maneira de perspectivar a realidade. O último axioma, ao frisar a função legitimadora do consenso universal nas ideias «adventícias», decorrente da impossibilidade de um só homem vir a conhecê-las na sua totalidade, oferece uma chave para o seu posicionamento. O que, desse modo, deixava indicada era a diferença entre a função fundacional, ordenadora e reguladora das ideias inatas, que não deveriam, nem saberiam, substituir o conhecimento efectivo da natureza, para o qual é requerido o esforço colectivo e progressivo da ciência. Diagramas de todo o conhecimento a adquirir, esquemas do conhecimento verdadeiro, as ideias inatas assumem, por conseguinte, um papel generativo, formando um alicerce onto-teo-lógico para a multiplicidade e a diversidade dos intentos cognitivos da humanidade. Percebe-se que estes vários ensaios, não obstante a manifesta coerência programática a ligá-los, fruto, em grande parte, como temos vindo a apontar, da sua inscrição na mesma matriz de pensamento, pedissem uma apresentação global do respectivo esteio lógico, sem a qual a mudança de perspectiva preconizada em direcção a um nível de cientificidade superior, em consonância com a moderna concepção do mundo, careceria quer dum efectivo esclarecimento, quer da possibilidade de ser interiorizada. Após décadas de ponderação, surge, finalmente, em 1744, a sua obra-prima filosófica, destinada a coroar as outras componentes

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do seu projecto, a Lógica Racional, Geométrica e Analítica, cuja temática já aflorara numa oração sobre «a lógica comparada dos Antigos e dos Modernos», proferida na Academia Ericeirense, em 1719, e que tivera a pretensão de apresentar, de modo resumido, à Academia Real da História, seguindo um esboço que ficou incompleto sob o título de Discurso Filosófico sobre o Método com que se hão-de Aprender as Ciências. Num volume único, significativamente, dedicado ao Infante D. António, o qual se houvera declarado partidário do cartesianismo, graças ao que dele aprendera com o próprio Fortes, abarcava a arte de bem pensar e os dois principais domínios da matemática, essa gramática científica cujo conhecimento se tornava, progressivamente, indispensável para a formação do homem moderno. Para se pesar a importância cultural de tal publicação, importa ter em mente que constituiu a primeira lógica moderna editada em português, satisfazendo, desse modo uma expectativa dos partidários das Luzes, que Martinho de Mendonça formalizara dez anos antes, sem que houvesse, ele próprio, intentado preenchê-la, e que deveria manter-se como única, ainda durante alguns anos, uma vez que o que figura no Verdadeiro Método de Estudar como nova lógica redunda num epítome do Ensaio sobre o Entendimento Humano de Locke, não podendo, verdadeiramente, ser considerado como tal, enquanto o De Re Logica ad usum Lu‑ sitanorum Adolescentium, datado de 1751, conforma-se à tradição académica do uso do Latim em matérias substantivas. Quanto ao mérito intrínseco do tratado, não pode ser devidamente atribuído fora dessa sua inscrição no conjunto do plano reformador de Azevedo Fortes, visando uma didáctica da racionalidade científica moderna, introduzida nas suas condições mínimas, em regime de abreviatura, susceptíveis de serem compreendidas por uma sociedade ainda pouco à vontade com essa novidade, para que se lhe não peça o que ela nunca pretendeu proporcionar, uma lógica do mesmo tipo e ao mesmo nível daquelas que a Escola viera, secularmente, a apurar, e se não estranhe que, apesar de ter declarado que «não sigo neste opúsculo autor algum antigo, nem moderno» (LR, p. 47), não enverede por um mero sincretismo, mas opte por retomar grande parte da Logique ou l’art de penser, de Arnauld e Nicole, esse «excelente livro, escrito na língua francesa» (LR, p. 48), à cabeça do qual, os autores, para além da inequívoca filiação cartesiana, lida pela grelha do jansenismo, logo na primeira edição, reconheciam ter seguido, também eles, critérios pedagógicos, para operar os cortes drásticos que definem uma das marcas da sua modernidade14. Aliás, Fortes mostrava estar bem ciente deste exercício quando, ao criticar o número excessivo de regras para os silogismos, previsto pela lógica escolástica, que teria conseguido restringir a três, lembrava: «o autor da Arte de Pensar, bem celebrado pela alta reputação que o seu talento e letras lhe têm granjeado, reduziu a uma só regra as três que temos dado e muitas mais que se ensinam nas Escolas…» (LR, p. 175). Para além do mais, parece-nos que a escolha de uma lógica de cariz moderno, como como referência 14 Amândio Coxito, Estudos sobre Filosofia em Portugal na Época do Iluminismo, Lisboa, INCM, 2006, p. 82.

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de um projecto de modernização, só abona a favor do perfil de sensatez e pragmatismo que caracteriza o pensamento e a acção do nosso engenheiro. Podemos considerar, mais especificamente, que Azevedo Fortes encontrou na Logique quatro vantagens principais: a correspondência assumida entre ordem natural do pensamento, ordem natural da exposição e ordem natural da aprendizagem que o levava a afirmar que «quem seguisse esta ordem pontualmente, formaria por si mesmo a lógica artificial» (LR, p. 59); a possibilidade de uma mútua integração do formal e do concreto, que conferia uma dupla faceta à lógica, a um tempo, disciplina da faculdade de julgar e taxionomia das representações do mundo de modo a «que o [ao entendimento] vá dirigindo para a verdade, e, ao mesmo tempo, inclinando os actos da nossa vontade para o bem» (LR, p. 62); o jogo de apropriação e de distanciação relativamente ao sistema de Descartes, na medida em que «o pecado original, a teologia da concupiscência, da Natureza e da Graça funcionam como um fermento crítico»15, que facilitava a necessária recondução do ideário cartesiano à ortodoxia do catolicismo nacional, condição sine qua non da respectiva aceitação; a redução metodológica que, não só viabilizava a aplicação dos princípios de economia e simplicidade, mas, sobretudo, porque baseada no próprio processo do pensar, introduzia a ideia de uma funcionalidade generativa, isto é, de um sistema universal de regras antecipando as múltiplas possibilidades de ajuizar, que cumpriria para o domínio do pensamento o mesmo efeito da cartografia para os objectos físicos. A Lógica Racional, Geométrica e Analítica retomava, por conseguinte, da Logique de Port-Royal uma possibilidade, incita na filosofia cartesiana, ainda que não tenha sido privilegiada pelo próprio Descartes, de unir pensamento e espaço, filosofia e geografia, apresentando-se, por isso, com a característica de um mapa totius orbis, nas palavras de um dos censores, isto é, uma carta do judicatório, destinada a orientar, esquematicamente, o pensar tanto nos juízos de facto, quanto nos juízos de valor. A primeira definição da lógica estabelece, de imediato, como sua, esta dupla esfera de intervenção: «A verdadeira lógica artificial deve remover todos os impedimentos que o nosso entendimento tem para perceber, julgar e discorrer e é sem dúvida que os maiores impedimentos nascem das nossas paixões, pois é evidente que o homem apaixonado não julga o que é justo, mas sim o que a sua paixão lhe dita, e como os actos da nossa vontade estão sujeitos às nossas paixões, é evidente que a lógica, que os não dirige, não é verdadeira lógica» (LR, p. 38). Deste entendimento sobre a existência de uma vocação «terapêutica», intrínseca à própria lógica16, a par do objectivo didáctico, que não deixava, aliás, de seguir a orientação geral do modelo de Port-Royal, segundo o qual a lógica passava de instrumental a normativa, emergiam, contudo, as diferenças mais significativas. Para sustentar a objectividade dos juízos de facto, em congruência com o papel que sempre lhe atribuíra, associava à «arte que […] dirige e aperfeiçoa as opera15

Louis Marin, Logique ou l’art de penser, Paris, Flammarion, 1970, p. 14.

16

José Esteves Pereira, op. cit., p. 48. 254

ções do nosso entendimento» (LR, p. 61), que corresponde convencionalmente ao campo da lógica, o conhecimento da lógica matemática, justificando-o com o seguinte argumento: «Os filósofos que ignoram a matemática se privam dos mais úteis e mais conspícuos conhecimentos da vida; porque, além do que os antigos nos deixaram, é para admirar o muito que os modernos têm descoberto na fábrica do mundo por meio da matemática» (LR, p. 45). Ao consagrar a matemática como a língua da ciência moderna, para além de se manter fiel ao modelo da ma‑ thesis universalis e de, por conseguinte, abandonar, decididamente, a associação tradicional, resultante da polissemia do termo logos, entre pensamento racional e língua natural, a favor do que caberia designar como um tipo incipiente de lógica formal, inova relativamente à referência francesa que se manteve fiel à solidariedade original, procurando, dessa feita, superar a diferença que Pascal apontara entre lógica e geometria: «Todos procuram o método de não errar. Os lógicos proclamam que conduzem até lá, mas só os geómetras lá chegam»17. Assim, se não nega a relevância da linguagem que, como salientou Michel Foucault, é uma característica das lógicas modernas, é para a linguagem do conhecimento que pretende encaminhar os seus leitores, não para a da comunicação. Não tendo, portanto, nem na Logique, nem na Grammaire, de Port-Royal, interlocutor possível para este desígnio, vira-se, predominantemente, para os Eléments des mathématiques ou Traité de la grandeur en général, qui comprend l’arithmétique, l’algèbre, l’analyse et les principes de toutes les sciences qui ont la grandeur pour objet, do oratoriano Bernard Lamy, título que resume, por si só, a identidade dos respectivos programas, dando-lhes, porém, um cunho pessoal, em grande parte, de cariz didáctico. Como resume João Domingues, «este compêndio insere-se claramente numa tradição cartesiana (mais dos cartesianos do que do próprio Descartes) de promoção da mathesis universalis, ciência da grandeza em geral (quer contínua quer discreta), como introdução a todas as matemáticas; e de identificação desta ciência da grandeza em geral com a álgebra especiosa»18. Apesar dessa proximidade com a obra do reputado amigo de Nicolas Malebranche, confirmada pela existência de vários manuscritos na Biblioteca Nacional (Idem, ibidem), não deixa de lembrar a existência, para a lógica geométrica, dos «Elementos, que doutamente compôs e deu ao prelo o muito Reverendo Padre Manuel de Campos»19. Nesta opção, não terá, uma vez mais, pesado a obra de Michelangelo Fardella, com a qual se poderá ter cruzado em Itália, publicada num volume único, intitulado Utra‑ que dialectica rationalis et mathematica (1695), no qual reunia as duas, editadas, previamente, com os títulos de Universae philosopiae systema e Universae usualis 17

Blaise Pascal, O Espírito da Geometria – Da Arte de Persuadir, Lisboa, Didáctica Editora, 2000, p. 49.

18 João Domingues, “O Tratacto da Grandeza em Geral de B. Lamy: uma introdução cartesiana à matemática no ensino militar português”, Suplemento do Boletim da SPM 71, Dezembro 2014, pp. 37. 19

LR, p. 49. Trata-se de Elementos de Geometria Plana e sólida segundo a ordem de Euclides, Lisboa, Officina Rita Cassiana, 1735. 255

mathematicae (1691), formando «a base de uma filosofia “arquitectónica” dividida em duas partes, uma filosófica e outra matemática»20? Para conter os efeitos do fundo passional da natureza humana sobre os juízos de valor, de acordo com a convicção iluminista, de raiz cartesiana, de que entendimento e vontade são dois aspectos da mesma racionalidade, introduzia um capítulo sobre as paixões da alma (LR, p. 98-103), e as contrapostas virtudes, o qual também não se encontrava na obra de Arnauld e Nicole. Patenteava, deste modo, o seu conhecimento do tratado tardio do filósofo francês, bem como da distinção fundamental que aquele estabelecia entre movimento corpóreo, incluindo o dos espíritos animais no sangue, e sentimento, enquanto percepção da alma (LR, p. 102), do qual, uma vez mais, se apropriava com alguma individualidade, fosse pela exposição abreviada, que elidia toda a discussão inicial do tratado cartesiano sobre as relações entre corpo e alma e só retinha um certo número de paixões, definidas assertivamente, fosse pelo acento posto em algumas delas, com a inclusão na lista do valor militar, «aquela constância da alma com que sofre o perigo presente, que não pode evitar» (LR, p. 100), em detrimento da coragem, fosse, sobretudo, pelo sentido estritamente moral ao qual sujeita a problemática, ao arrepio da aproximação mais fisiológica e medicinal de Descartes, como se constata pelo parágrafo inicial: «as paixões da nossa alma são a causa mais principal dos nossos vícios, que não só nos impedem de bem julgar do verdadeiro e do falso, mas também do bem e do mal» (LR, p. 98). Percebe-se, então, que, para o autor luso, como para os de Port-Royal, não haja nenhum assunto que esteja fora do âmbito dessa disciplina das disciplinas, a Lógica, salvo, como declarava, os «que de nada podem servir para adiantar o nosso conhecimento» (LR, p. 211), nem a física, «para saber que cousa é o homem e as partes de que se compõe» (LR, p. 76), propósito que retomava aquele que Descartes enunciara como o do seu Tratado do Homem, nem a moral que, como esclarecia, constitui o seu objecto definitivo: «Não se diga que a moral é outra parte da filosofia e que se não deve tratar na lógica, pois tem diferente objecto: a que se responde que todas as ciências têm muitas cousas comuns e reciprocamente se ajudam umas às outras e não é nenhum atentado que aqui tratemos dos actos na nossa vontade, pela grande afinidade que tem com a lógica racional» (LR, p. 39). Esta característica reticular encontra-se explicitada na última definição da lógica racional: «A Lógica Racional ainda que de algum modo se possa dizer especulativa, enquanto examina nas suas quatro operações a origem e causa dos nossos erros, contudo mais propriamente se deve chamar prática; porque não contempla as operações do nosso entendimento como elas são em si mesmas, mas enquanto são dirigíveis e se podem aperfeiçoar com as suas regras e preceitos» (LR, p. 213). Ora, também, a partilha desse entendimento surge subtilmente modificada pelo efeito de um mesmo centralismo antropológico, ocupado com as consequências 20

Franco Meschini, art. cit.. 256

cognitivas e éticas do atributo propriamente humano, que supõe ser a liberdade. Todo o esforço de fidelidade à matriz inspiradora, bem como de sujeição à ideia de uma filosofia perene, em sintonia com os dogmas da fé, não conseguia estancar o efeito da consideração da liberdade como valor dos valores, de tal modo que se pode pensar que, em última análise, a Lógica carrega essa intenção de fundo de constituir, sobretudo, uma resposta a uma inquietação ético-pragmática, a da necessidade de reconfigurar o humano em função da nova ordem e dos problemas típicos que esta acarretava, aos quais consagrava os capítulos finais de cada parte: a polissemia, com o correspondente perigo da perda do sentido verdadeiro; a ideologia, com a concomitante idolatria; o substrato subjectivo da edificação do saber, dando novo corpo ao espectro do cepticismo; o travejamento jurídico da ordem social, que implicava o desvio da lógica especulativa para a lógica contenciosa, título, precisamente, do apêndice que fecha a obra. Ainda que convencional, quer como parte de um tratado de lógica, quer na sequência dos temas, esse anexo oferece, assim, uma chave para o sentido geral da obra que beneficia, por conseguinte, de uma segunda leitura retrospectiva. O exposto deve levar-nos a questionar o pendor puramente psicologista que se tem atribuído à Lógica Racional. Se é verdade que, como a sua congénere francesa, essa primeira fracção da obra se encontra dividida em quatro partes - perceber, julgar, discorrer e ordenar -, e retoma muitos dos temas característicos das lógicas centradas nas funções do entendimento - estatuto das ideias, modalidades do juízo, construção das inferências, dualismo das substâncias, em contraponto à unidade do cogito, crítica das formas substanciais, lugar central do erro - uma análise mais detalhada das opções, em particular, do significativo desnivelamento admitido entre entendimento e vontade, que sujeita o discurso ao vórtice da liberdade, bem como do manifesto trabalho de sobre depuração, o qual reflecte uma profunda confiança na ordem objectiva da natureza, levam-nos a pensar que Fortes tivesse interpretado a revolução coperniciana das «novas lógicas», não tanto como uma reorientação psicológica, que fechasse o conhecimento nos limites das capacidades mentais do sujeito cognoscente, quanto como uma viragem taxionómica de alcance universal que afectaria, por sua vez, a auto compreensão do homem. Este atributo objectivo pode ser verificado logo na classificação das ideias, que, em geral, segue, igualmente, o modelo francês, pois que o critério das muitas diferenciações que introduz - ideias singulares ou universais, unívocas ou equívocas, completas ou incompletas, precisas ou vagas, concretas ou abstractas, claras e distintas ou confusas, verdadeiras ou falsas, etc -, é sempre o da relação com o representado e não com a mente. Isso mesmo transparece no sentido que confere à distinção entre ideias simples e complexas, diverso, apesar da identidade terminológica, daquele de cariz mentalista, advogado por Locke e reproduzido, em termos semelhantes aos do britânico, por Verney (VME, vol. III, p. 82 e ss.): ao passo que, para estes, é a passividade ou a actividade do espírito que determina o carácter simples ou composto das ideias, para Fortes «quando o objecto, que a 257

alma representa, é simples, também é simples a ideia e é significada por uma só palavra. Porém, quando inclui diferentes ideias, representadas ao mesmo tempo, resulta uma ideia composta e se explica por muitas palavras. Por exemplo, a ideia de homem é simples; porém, se quero significar ao mesmo tempo a prudência de que é dotado, dizendo homem prudente, esta ideia é composta de homem e de prudência» (LR, p. 67). Poder-se-ia supor uma incompreensão do sistema do Inglês não fora a proximidade com a concepção substancialista da Logique, que julga as substâncias simples e susceptíveis de composição predicativa. Em suma, em virtude da sua filiação cartesiana, a Lógica de Azevedo Fortes, por não se oferecer essencialista, não abdica do horizonte meta lógico, inclusive na exigência de um fundamento último para a existência do sujeito de conhecimento. Por essa razão, expõe, ao lado dos aspectos relativos aos fundamentos da cogitação, uma concepção da realidade, que vai da política à teodiceia, passando pelos principais domínios da existência, não como mero exemplo ou acrescento díspar, mas como vinco substantivo do diagrama formal. Assim, a defesa de uma espécie de resistência passiva à eventual arbitrariedade do soberano, por exemplo, surgindo na elucidação do significado de dilema (LR, p. 169-170), ou o argumento a favor da existência de uma justiça divina emergindo do esclarecimento do que constituí a análise (LR, p. 191-193). Este procedimento queda bem manifesto nos capítulos em que, a propósito «da origem das nossas ideias» e «dos modos ou instrumentos do nosso saber», introduz algumas das teses da antropologia cartesiana. Com efeito, se, no primeiro, seria de esperar uma discussão do carácter inato ou adquirido das ideias, do contributo atribuível à experiência, assim como do processo de formação das ideias na mente, o que se nos depara é uma exposição do modo como as duas substâncias que Descartes dissociara, a res cogitans e a res extensa, aqui identificadas com o espírito e o corpo, se encontram unidas no homem. Assumindo, à partida, que as «ideias são a base e fundamento de todo o conhecimento humano, ou sejam inatas ou adquiridas por reflexão» (LR, p. 76), no que não cabe ler, apesar do uso do termo reflexão, qualquer influência de Locke, pois que, para o britânico, nenhuma ideia é inata e a reflexão é uma experiência interna, não um processo mental de constituição de ideias em geral, mas tão-só um esclarecimento sobre a actividade do espírito na formação das ideias designadas pelo francês como adventícias, Fortes encontra no argumento cartesiano da anterioridade do conhecimento do homem que conhece, relativamente aos conhecimentos que adquire, a justificação para o desvio. A resolução do problema do vínculo substancial era tanto mais premente quanto, por um lado, o autor não se demarcava do dualismo cartesiano, mantendo «a grande diferença que há entre a alma e o corpo, pois são tão opostas e diferentes as suas propriedades ou modos que não sabemos que haja substância criada que seja meio entre corpo e espírito» (LR, p. 79), e, por outro, recusava o papel que Descartes atribuía à glândula pineal, no Tratado das Paixões da Alma, ao escrever que «não devemos imaginar que esta

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união é alguma entidade real que medeie entre o espírito e o corpo, porque essa mesma entidade seria impedimento para se unirem estas duas substâncias, porque nunca duas tábuas tiveram mais separadas do que quando se unem com uma pouca cola, porque esta, em lugar de as unir, lhes impede a união» (LR, p. 80-81). Não se suponha, contudo, que este reparo, a favor da ideia de uma «mútua e recíproca dependência das operações destas duas substâncias unidas» (LR, p. 80), resultante de «um contínuo milagre» (LR, p. 80), implique um qualquer afastamento da matriz cartesiana. Bem pelo contrário, neste particular, Fortes exibe a sua pertença cabal ao cartesianismo, nomeadamente, ao discorrer sobre os processos de interacção entre corpo e espírito em termos próximos aos de Descartes, no Tratado do Homem, sustentando que «de certos movimentos do corpo resultam certos pensamentos da alma e de certos pensamentos da alma se seguem certos movimentos do corpo» (LR, p. 79-80), mas reservando à alma os pensamentos e as sensações, bem como uma função terapêutica sobre o corpo cujos modos são reduzidos a movimentos (LR, p. 80). O que, no fundo, aqui ressalta é o acolhimento da voz correctiva do cartesianismo de Port-Royal, em matérias menos ortodoxas do legado do filósofo francês, a qual já se fazia ouvir num parágrafo anterior, quando, após retomar a figura cartesiana da dúvida universal, extensível ao próprio corpo (LR, p. 78), firmava, em contrapartida, a evidência da existência do eu, enquanto substância pensante,21 numa mesma passagem do De Libero Arbitrio (L. II, cap. 3), de Santo Agostinho, que Arnauld aduzira, nas suas objecções às Meditações Metafísicas, como prova de falta de originalidade. Do mesmo modo, no outro capítulo em análise, começa por estabelecer que os modos ou instrumentos do saber que os lógicos «excogitaram são quatro, a saber, a Definição, a Divisão, a Argumentação e o Método» (LR, p. 133), para, de imediato, remeter o tratamento dos três últimos para outras partes da obra, cabendo a esta elucidar tão só o problema da definição. Considerando-a «uma oração anunciativa, que declara a natureza da cousa definida» (LR, p. 133), apesar de indicar que «também se fazem outras definições ou descrições pela causa, pela matéria, pela forma, pelo fim a que se dirigem, etc.» (LR, p. 134), segue, sumariamente, a doutrina escolástica convencional que requere a conformidade da definição com a essência do definido, por via da conjugação do género próximo e da diferença específica, e não a confunde com a descrição que só «nos dá algum conhecimento da cousa que se define pelos acidentes que lhe são próprios» (LR, p. 134), para passar à crítica da definição clássica do homem como animal racional, verdadeira preocupação substantiva deste capítulo. Embora reconheça que tal definição «está geralmente recebida de todos os filósofos, desde Aristóteles até aos nossos tempos» (LR, p. 134), considera que «animal não é género próximo do homem, nem racional a sua diferença» (LR, p. 135. Itálico do autor), pelo que propõe, em alternativa, a seguinte: «o homem é uma substância cogitante e inteligente, unida a 21

LR, p. 79. Fortes junta numa mesma frase várias sequências extraídas do parágrafo 20 do livro II da obra do autor medieval. 259

um corpo orgânico, disposto e ordenado em todas as suas partes, para as funções que lhe são próprias» (LR, p. 137. Itálico do autor). Ora, o alcance desta depende totalmente do sustentáculo da filosofia cartesiana, como a breve explicação que lhe é aposta confirmará: «substância cogitante ou inteligente é o seu género próximo, pelo qual convém com a inteligência de Deus e dos anjos; e por unida a um corpo orgânico se distingue de tudo o mais que não é homem e é a sua última diferença» (LR, p. 137. Itálico do autor). É que, na base da ideia de que o homem se encontra próximo das inteligências espirituais está tanto a noção cartesiana da substância pensante, como não corpórea, quanto a afirmação de Descartes, na segunda das Meditações Metafísicas, de que «eu sou, portanto, falando com propriedade, tão só uma coisa que pensa, quer dizer um espírito, um entendimento ou uma razão…»22. Por sua vez, a atribuição dum carácter orgânico ao corpo do homem assentava na distinção entre corpo mecânico, que os animais comungam com os autómatos, e corpo funcional, específico do ser humano, no qual «não há parte, por mais mínima que seja, que não tenha sua particular razão e uso» (LR, p. 78), que adjectivava, à maneira de Descartes, como «fábrica admirável do criador» (LR, p. 77). Por fim, apesar de insistir no aspecto essencial da unidade entre as duas substâncias, nela vendo «toda a razão formal do homem» (LR, p. 136), não deixa de sustentar, cartesianamente, que se trata da união de «duas substâncias inteiramente desproporcionadas» (LR, p. 136), só explicável, como vimos acima, por um constante milagre. Deste modo, enquanto inflectia a concepção de Descartes, aqui e ali, na direcção do que se lhe afigurava uma maior ortodoxia, mantinha a sua fidelidade ao cartesianismo, cujo teor conhecia com suficiente acuidade para poder combinar de modo sintético, no interior de um tratado de lógica, as respectivas metodologia, teoria do conhecimento, epistemologia, metafísica e antropologia. A concluir, esperamos ter conseguido mostrar ao longo da nossa exposição que o autor tinha plena consciência de que estavam a ocorrer mudanças estruturais que exigiam uma configuração mental e instrumentos de acção diversos, e que era para essa conjuntura que julgava o cartesianismo como o sistema mais adequado tanto para promover essas alterações, quanto para funcionar como matriz integradora de outras posições. Tudo nos leva a crer, portanto, que, no conjunto, Fortes idealizava um esquema de intervenção educativa, em conformidade com essa sua interpretação do sentido da Modernidade, que tinha como finalidade cardinal a aquisição generalizada de competências epistémicas fundamentais, como fossem a utilização criteriosa da lógica, o reconhecimento dos protocolos científicos de base, a prática das regras do método ou a assimilação dos elementos da matemática, enquanto nova língua universal. O resultado almejado traduzirse-ia numa reordenação do modo de conceber o real de acordo com o modelo da mathesis universalis, o qual, pela respectiva flexibilidade e abertura, supunha uma 22

DESCARTES, R., Œuvres philosophiques, II, p. 419. 260

ordenação integradora dos valores tradicionais e das novas ideias, tendo, sempre, como critério o ideal de uma humanidade cada vez mais liberta da condição para se poder concentrar na salvação. Ao cartesianismo, portanto, cabia servir de argamassa para consolidar um tal projecto, a meio caminho entre a formação profissional e o propósito cultural. O reconhecimento dessa potencialidade congregadora deveu-se ao facto de, ao contrário de outros defensores, ou conhecedores, de certas ideias cartesianas, em Portugal, Fortes ter sido o único a revelar um conhecimento sistematizado das teses de fundo do pensamento cartesiano, incluindo algumas que só mereceram destaque após a publicação das obras póstumas, uma consciência das variações que estas sofreram na linha jansenista para corresponderem às preocupações teológicas dos pensadores de Port-Royal, uma noção dos debates que suscitaram, na definição da orientação epistemológica da modernidade, em particular no embate entre essas duas «grandezas culturais» designadas com os termos «cartesianismo» e «newtonismo»23, bem como um domínio das estratégias, marginais relativamente ao circuito fechado do ensino universitário, de política cultural que sustentaram a divulgação e a sobrevivência da corrente cartesiana, apesar das sucessivas condenações de que foi alvo, ao que se impõe acrescer uma distância relativa, mas suficiente, para poder emendar o que chocasse os princípios do catolicismo ou se desviasse significativamente da suposta identidade nacional. Neste sentido, Manuel de Azevedo Fortes foi não só o mais consistente seguidor de Descartes no período joanino da Ilustração portuguesa, como o único detentor de uma «cultura cartesiana», que procurou incorporar na idiossincrasia nacional, graças à qual inovou nos domínios científico, tecnológico e pedagógico, consolidou a prática profissional da Engenharia e inaugurou a linhagem das lógicas modernas em português, em particular daquelas que se definiram como dedicadas ao cuidado de si, por via da «busca de uma “cura do entendimento”»24. Bibliografia FORTES, M., Representação feita a S. Magestade que Deos Guarde pelo Engenheyro mòr destes Reynos Manoel de Azevedo Fortes, Lisboa Occidental, na Officina de Mathias Pereyra da Sylva & João Antunes Pedrozo, 1720 (ed. moderna in BERNARDO, L., O Projecto Cultural de Manuel de Azevedo Fortes, Lisboa, INCM, 2005); Tratado do Modo o mais Fácil e o mais Exacto de Fazer as Cartas Geográficas, Lisboa Occidental, na Officina de Pascoal da Sylva, 1722; O Engenheiro Portuguez: dividido em dous tratados, Lisboa Occidental, na Officina de Manoel Fernandes da Costa, 1728 (ed. moderna, Lisboa, Direcção da Arma de Engenharia, 1993); Evidência Apolo‑ gética e Crítica sobre o Primeiro, e Segundo Tomo das Memórias Militares, Lisboa Occidental, na Officina de Miguel Rodrigues, 1733; Oração Académica que Pronunciou Manoel de Azevedo For‑ tes na Presença de Suas Magestades hindo a Academia ao Paço em 22 de Outubro de 1739, Lisboa 23 Simon Van Damme, Descartes, Paris, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 2002. 24

José Esteves Pereira, op. cit., p. 47. 261

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