Manuel de Pontes Câmara (1815-1882): exemplo de um emigrante português que não quis voltar “brasileiro”

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3º Festival de História • Diálogos Oceânicos – Braga, Portugal – 20 a 23 de maio, 2015

Manuel de Pontes Câmara (1815-1882): exemplo de um emigrante português que não quis voltar “brasileiro”

Os portugueses e o Brasil O século XIX português, especialmente a sua segunda metade – como ainda as três ou quatro primeiras décadas da vigésima centúria – foi indelevelmente marcado pela presença de uma espécie de figura romanesca que a voz do povo batizou como “brasileiros”, umas vezes por extrema admiração, outras por sentimentos adversos a esta1. Referia-se essa vox populi, secundada na admiração ou na afronta por jornalistas, políticos ou escritores, a um conjunto de homens que, tendo emigrado para a outra margem do Atlântico, para a antiga América portuguesa, à procura do seu El Dorado, ali enriqueceu. Senhores de grandes fortunas, voltaram à pátria-mãe em busca de um estatuto que não levavam consigo à partida e de um reconhecimento que não raramente alcançaram. A região noroeste de Portugal, numa área que costuma ser balizada como o “entre Vouga e Minho”, foi o território de onde essas partidas mais aconteceram2. Estes homens, um pequeno grupo que no início do último quartel de oitocentos era composto por cerca de 5% do total das centenas de milhar que haviam partido 3, 1

A presença maciça de portugueses em Terras de Vera Cruz iniciou-se poucas décadas após a chegada ao território de Pedro Álvares Cabral, em 1500. Desde então, os que ali enriqueciam e ricos voltavam ao continente, transformaramse em grandes benfeitores das comunidades de onde eram oriundos, passando, após o seu regresso, a ser apelidados de “brasileiros”. Para um melhor conhecimentos dos atos de caridade deste grupo de indivíduos durante o período moderno pode ler-se Araújo, Maria Marta Lobo de, “Os brasileiros nas Misericórdias do Minho (séculos XVII-XVIII)”, in Araújo, Maria Marta Lobo de (org.), As Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal-Brasil (séculos XVXX), Cuiabá, Carlino & Canioto, 2009, pp. 229-260. 2 Veja-se Alves, Jorge Fernandes, Emigração e Retorno do Porto Oitocentista, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1993; Cruz, Maria Antonieta, “Agruras dos Emigrantes Portugueses no Brasil. Contribuição para o estudo da emigração portuguesa na segunda metade do século XIX”, Revista de História: Instituto Nacional de Investigação Científica (vol. 7), Porto, Universidade do Porto, 1986-1987, p. 16. 3 Segundo um estudo de Fernando de Sousa e Isilda Monteiro, a emigração portuguesa para o Brasil atingiu, entre 1876 e 1974, o número de 1.588.346 de cidadãos, que partiram quer do continente quer das ilhas. Estes investigadores recordam que a população portuguesa era, nos anos sessenta do século XIX de apenas 4 milhões de indivíduos, e de 6 milhões em 1921. Cf. Sousa, Fernando de, Monteiro, Isilda, “A Emigração Portuguesa e Italiana para o Brasil – Uma

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impuseram-se socialmente quando voltaram às suas pequenas aldeias e vilas de origem, ou às cidades maiores onde, após o regresso, decidiram fixar-se, comprando ou mandado erigir magníficos palacetes, adotando modos de vida social que antes só tinham paralelo nos palácios da fidalguia ou nas casas das burguesias citadinas e distribuindo “liberalidades” às mãos-cheias àqueles que delas precisavam e às terras de onde haviam abalado, quase sempre quando crianças de doze para catorze anos. Às suas terras de origem ofereceram estradas, igrejas e capelas, casas de espetáculos, escolas, asilos ou hospitais, conquistando, através desses atos de benemerência, não apenas a admiração das comunidades bafejadas pelos seus atos filantrópicos, como o reconhecimento oficial, tantas vezes traduzido na atribuição de uma comenda, religiosa ou civil, quando não na elevação ao baronato ou ao viscondado, títulos cujos símbolos usavam com garbo e às vezes até com exagerada vaidade, ajudando, com o pagamento dos direitos de mercê de tais honrarias, as finanças públicas nacionais4. É certo que, em determinados meios e situações também foram destratados. Jornalistas, poetas e romancistas ridicularizaramnos nos seus escritos e a designação de “brasileiro” foi muitas vezes sinónimo de “pacóvio”, “agiota”, “imbecil” ou “analfabeto”. Mas o tempo, que para a historiografia é material imprescindível ao bom julgamento de pessoas a atos, acabou por desconstruir essa imagem e hoje, quando falamos de “brasileiros”, referimo-nos, em geral, a um grupo de indivíduos, homens e mulheres, que se constituíram como portugueses admiráveis, dados a enormes gestos de filantropia, senhores e senhoras de bons modos e, na sua grande maioria, cultos muito acima da média do seu tempo5. Nesta comunicação não nos iremos debruçar sobre a obra incomparável que estes antigos emigrantes realizaram em Portugal após o seu regresso, quer no foro das obras civis e religiosas, quer no campo assistencial. Sobre o tema podem ler-se os muitos análise comparativa (1876-1974)”, in Sousa, Fernando de, et (coord.), Um Passaporte Para a Terra Prometida, Porto, CEPESE/Fronteira do Caos Editora, 2011, p. 521. Outra informação preciosa é a do então governador civil do Porto, Tabner de Morais, citado por Jorge Fernandes Alves, que estimava, num inquérito parlamentar datado de 1873, que ao terminar o terceiro quartel do século XIX apenas 40% a 50% dos que tinham partido regressavam à pátria; que, destes, cerca de 20% regressavam pobres, tão ou mais pobres do que quando partiram, enquanto cerca de 15% vinham com capitais que lhes permitiam, cá chegados, comprar alguns terrenos ou dedicar-se ao pequeno comércio, assim garantindo o seu sustento e o da família. Ainda segundo a mesma fonte, do total dos que haviam partido prenhes de sonhos, apenas cerca de 5% regressavam ricos ou mesmo muito ricos. Eram estes últimos os considerados realmente “brasileiros”, porque os que regressavam com pouco capital apenas mereciam a classificação de “abrasileirados”. Cf. Alves, Jorge Fernandes, “Prefácio”, in Araújo, Maria Marta Lobo de; Esteves, Alexandra, Coelho, José Abílio; Franco, Renato (coords.), Os brasileiros enquanto agentes de mudança: poder e assistência, Braga/Rio de Janeiro, CITCEM/Fundação Getúlio Vargas, 2013, pp. 9-15. 4 Alves, Jorge Fernandes, “De Relance – O Barão de Trovisqueira”, Catálogo da Exposição ‘Barão da Trovisqueira – Reencontro’, Vila Nova de Famalicão, Museu Bernardino Machado, 2001, disponível em http://ler.letras.up.pt/ uploads/ficheiros/artigo11191.pdf [acesso em 07.04.2015] 5 Coelho, José Abílio, “Saraus, visitas, merendas, passeios e viagens: a vida social dos ‘brasileiros’ nos finais do século XIX e na primeira metade do século XX”, in Araújo, Maria Marta Lobo de; Esteves, Alexandra; Silva, Ricardo, Coelho, José Abílio (coords.), Sociabilidades na Vida e na Morte (Séculos XVI-XX), Braga, CITCEM, 2014, pp. 359-373.

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trabalhos que de há décadas a esta parte vêm sendo publicados. Vamos, antes, abordar, ainda que ao de leve dada a exiguidade de tempo disponível, a vida de um desses emigrantes que, embora mantendo até à morte a nacionalidade portuguesa, que sempre se honrou de ser, escolheu o Brasil para residir, trabalhar e enriquecer sem jamais pensar em regressar definitivamente à pátria, ali investindo quase tudo quanto foi conseguindo amealhar. E tendo a “boa moral” como candeia com que alumiou os seus caminhos. Este é, aliás, em nossa opinião, um aspeto da emigração portuguesa no Brasil ainda longe se encontrar devidamente estudado, pois que o papel benemerente destes homens não aconteceu apenas em Portugal, após o regresso, deixando os mesmos, na terra que os recebeu, importantes marcas da sua estada. Dos Asilos de Inválidos às Sociedades Beneficentes, dos Liceus Portugueses aos Reais Gabinetes de Leitura, dos Grémios Literários aos Hospitais Portugueses de Beneficência ou às Santas Casas da Misericórdia espalhadas um pouco por todo aquele imenso país, muitas são as marcas da doação destes emigrantes que, enquanto tal, construíram ou ajudaram a fundar e cujo funcionamento garantiram, tendo inclusive, muitos deles, ao elaborarem os seus testamentos em Portugal, doado a essas casas a que estiveram ligados boas somas de dinheiro, prédios e outros bens de raiz que por lá haviam mantido em sua posse. Recorde-se, entre muitos e muitos outros e apenas como pálido exemplo do que dissemos, os casos do mercador Manuel Neto da Silva Castelo, natural de Paços de Ferreira e estabelecido em Belém, que, quando foi preciso comprar sede para a recém-criada Academia de Direito do Pará, garantiu o empréstimo, sem dele cobrar qualquer juro, dos 50 contos de réis que custou o edifício para instalar tão importante instituição6; do viseense José Marques Merino, homem que tendo partido de Portugal como simples ferreiro, na então capital do império se transformou em fabricante de instrumentos cirúrgicos e que, quando o Rio de Janeiro se viu atacado, na década de 1870, por mais uma malfadada epidemia de varíola, dotou os Hospitais da Caixa de Socorros D. Pedro V de todo o material necessário para o bom funcionamento das suas enfermarias, vindo, por esse gesto de elevada doação à cidade, a ser condecorado com a Cruz Humanitária, à época a mais alta distinção dada aos que lutavam em favor da saúde pública7; ou o de António Ferreira Lopes, nascido na Póvoa de Lanhoso e que no Brasil trabalhou durante cerca de três décadas, o qual, mesmo já fisicamente afastado do Brasil há muito perto de quarenta anos, legou, quando em Portugal mandou lavrar o seu testamento, em 1927, importantes verbas à Santa Casa da 6 7

Album Photo-Biografico Portuguezes no Brazil, Porto, ano 1, nº 2, s/d, p. 6. Album Photo-Biografico Portuguezes no Brazil, Porto, ano 1, nº 6, s/d, p. 5.

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Misericórdia do Rio de Janeiro e ao Hospital da Beneficência Portuguesa, razão pela qual o seu retrato, de corpo inteiro e dimensão natural, se encontra ainda hoje entre os dos grandes beneméritos de ambas as instituições8. Para além do mais, muitos destes “brasileiros”, antes de regressarem a Portugal para, no torrão natal, gastarem nos restos das suas vidas os bons cabedais no Brasil conquistados, foram, do lado de lá do mar Oceano, dirigentes e contribuintes ativos em todas essas obras de bem-fazer, tendo alguns deles o hábito de custearem por longos períodos, que chegavam a atingir um mês por ano, tantas vezes durante vários anos, as “dietas” dos internados de todo um hospital ou os custos de ensino dos muitos alunos de um liceu português, encontrando-se também ligados às mais variadas irmandades e confrarias religiosas que ajudaram a sustentar com largueza. É essa história do importante papel dos portugueses no Brasil, “brasileiros” após o regresso à pátria de origem, que ainda se encontra quase integralmente por fazer e da qual não nos devemos esquecer, certos de que o cabal conhecimento da sua doação ao país que os recebeu de braços abertos e lhes permitiu o caminho de muitos sucessos, fará deles seres ainda mais dignos de grande admiração não só em Portugal, que essa já a conquistaram fruto da investigação que nas últimas décadas tem sido produzida e divulgada, mas também do lado de lá, onde, infelizmente, hoje como no século XIX, há quem os continue a estigmatizar como “usurários”, “sovinas”, “oportunistas” e “exploradores”9. Na presente comunicação pretendemos dar a conhecer um desses portugueses que, tendo, como a maioria dos demais compatriotas emigrantes, partido da terra de nascimento, a ilha da Madeira, quando era ainda menino, viria a conseguir no Rio de Janeiro, à força de muito trabalho, edificar um verdadeiro império, sem jamais ter pensado em voltar definitivamente a Portugal. O seu nome, Manuel de Pontes Câmara, bem como a marca de cafés por si criada e que ficou conhecida pelo seu apelido – “Cafés Câmara” – são, ainda hoje, um padrão sinalizador da sua estada naquele território.

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Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Lanhoso (doravante ASCMPL), Testamento de António Ferreira Lopes, Caixa dos testamentos, s/paginação. 9 No Brasil, o emigrante português também teve, entre literatos e cronistas, os seus detratores, que ora os tratavam como “comerciante rico, explorador e usurário”, ora como “burro de carga que, ao aceitar (estupidamente) condições de trabalho que o brasileiro (esperto e malandro) recusaria, praticava uma concorrência desleal no mercado de trabalho”. Cf. Rowland, Robert, “Manuéis e Joaquins: A cultura brasileira e os portugueses”, Etnográfica, vol. V (1), 2001, pp. 157-172; Maria Antonieta Cruz, ao descrever a lusofobia que se gerou no Brasil na segunda metade do século XIX, manifestada em regiões como Porto Alegre, Pernambuco, Ceará, Baía, Pará, S. Paulo, etc., recorda que os portugueses eram apelidados, entre outras designações menos próprias, de “negros brancos”, “marinheiros safados” ou, já no século XX, “tamanqueiros”, “pés-de-chumbo”, “galegos”, “burros sem rabo”, etc.. Cf. Cruz, Maria Antonieta, “Agruras dos Emigrantes Portugueses no Brasil. Contribuição para o estudo da emigração portuguesa na segunda metade do século XIX”, disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6489.pdf. [Acesso em 05.10.2013].

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Manuel de Pontes Câmara: apontamento biográfico Quando Manuel de Pontes Câmara10 nasceu na freguesia das Achadas da Cruz, ilha da Madeira, aos dezasseis dias do primeiro mês de 1815, já a Corte portuguesa se havia transferido para o Rio de Janeiro, em resultado da primeira invasão napoleónica, em novembro de 1807. A instalação da família real levou a que os portos do Brasil se tenham escancarado ao comércio e à navegação internacionais e que, em 1810, fossem assinados com a Inglaterra dois acordos, um comercial e outro político: o primeiro, tempos depois apelidado de “ominoso”, cumpria inicialmente a missão de permitir a importação, a partir da “Europa amiga”, dos géneros e manufaturas de que a terra não dispunha, mas também a de escoar, para o continente europeu, a produção agrícola e natural do Brasil. O segundo, atualizando a “secular aliança luso-britânica”, tinha por objetivo “garantir a integridade de um reino que o rei abandonara à frágil autoridade de uma regência”, colocando, na realidade, o continente sob o domínio de estranhos. Com a chegada da “paz geral”, em 1814, resultante da derrota de Napoleão, os continentais portugueses esperavam que o jugo político-militar inglês pudesse ser afastado, do mesmo modo que ansiavam a recuperação do monopólio do mercado brasileiro para a metrópole. Nada disso aconteceu e Portugal continental, remetido desde a partida da família real, na prática, à situação de “colónia”, vivia um penoso período económico-financeiro, quer dado as receitas antes resultantes do comércio externo terem sofrido acentuadíssima quebra, quer devido ao pagamento de uma enormíssima dívida pública, para a qual todos eram obrigados a contribuir11. Filho de um casal de remediadas posses, em 1821, com seis anos de idade, Manuel de Pontes Câmara entrou como interno num colégio madeirense onde se manteve até aos onze, apesar de, entretanto, ter ficado órfão de pai e de sua mãe ter contraído um segundo matrimónio. Por sua vontade, viria a afirmar o próprio num manuscrito redigido muitas décadas depois, e dando deste logo indicações de que iria ser pela vida fora um self-made

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Câmara é um dos mais antigos apelidos utilizados na Madeira, tendo sido seu primeiro utilizador João Gonçalves da Câmara, filho primogénito do descobridor e primeiro capitão donatário do Funchal, João Gonçalves Zarco. Resultaria da carta régia de 4 de Julho de 1460, através da qual lhe era conferido título de nobreza e concedido o respetivo brasão de armas. O apelido manteve-se na ilha até à atualidade, tendo ao longo dos séculos sido utilizado por algumas das mais distintas famílias da região. Cf. Silva, Pe. Fernando Augusto da; Menezes, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense, vol. 1, A-E, edição dos Autores, 1921, pp. 384-387. 11 Bonifácio, Maria da Fátima, A Monarquia Constitucional. 1807-1910, Lisboa, Texto Editores, 2010, pp. 19-23.

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man, o rapazinho decidiu abandonar os estudos para se empregar como marçano, na vila de Porto Moniz, aí fazendo o seu tirocínio comercial. Portugal, descontente com a ausência da família real e sobretudo com o estado de penúria que no continente se vivia, tinha feito implantar, em 1820, à revelia da Coroa, um novo regime: o Liberalismo12. Não obstante essa mudança política, que se em muitos portugueses renovou o sonho do regresso do rei ao continente e a reconquista do estatuto de sede de negócios do reino para Lisboa, mas também o retorno do Brasil ao modelo que vigorara anteriormente a 1808, não matou noutros o espírito aventureiro, a mesma sina que desde havia vários séculos levara tantos a partir, fazia-os agora sonhar com a travessia do Atlântico em busca da riqueza que a própria terra de nascimento lhes negava. Como se disse, se os anos que se seguiram à partida da Coroa foram de extrema dificuldade, o dealbar do primeiro liberalismo, em 1820, trazendo profundas transformações não melhorou a situação. Entre as radicais mudanças que afetaram Portugal, pelo significado que teve na vida destes homens que viam na então América portuguesa a sua “terra da promissão”, relembramos a perda definitiva do Brasil em 7 de setembro de 182213. Sete anos depois do Grito do Ipiranga, Manuel de Pontes Câmara quis, ainda, seguir o rumo dos antigos colonos, agora como emigrante, embarcando para o Rio de Janeiro em finais de 1829, quando contava apenas 14 anos de idade14. Na cidade maravilhosa empregou-se de imediato no comércio de fazendas, onde amealhou algum pecúlio. Pouco mais de um ano depois de ali se encontrar, isto é, quando em abril de 1831 ocorreram os levantamentos que levaram D. Pedro I a renunciar à coroa imperial brasileira e dado o “clima de mal-estar” que contra os defensores portugueses do imperador se viveu na cidade15, Pontes Câmara decidiu mais uma vez fazer-se ao mar, desta vez com destino à África portuguesa. Durante um ano percorreu os portos marítimos de Benguela, Novo Redondo e Luanda e quando, menos de um ano volvido e aproveitando os ânimos mais calmos na capital do novo Império decidiu regressar ao Rio,

12 Sobre a implantação do Liberalismo em Portugal ler entre outros Sá, Victor,

Instauração do Liberalismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1987. 13 Sobre a independência do Brasil e seus efeitos em Portugal, pode ler-se Proença, Maria Cândida, A Independência do Brasil, Lisboa, Edições Colibri, 1999. 14 Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara, datilografado, s/paginação. Agradeço à Dr.ª Lucia Sanson, neta em quarto grau de Manuel de Pontes Câmara e residente no Rio de Janeiro, a cedência de uma cópia deste documento. 15 Sobre a renúncia de D. Pedro I e as divergências entre portugueses e brasileiros, pode ler-se Pandolfi, Fernanda Cláudia, A abdicação de D. Pedro I: espaço público da política e opinião pública no final do Primeiro Reinado, Assis, 2007, dis. de doutoramento policopiada, pp. 24-64.

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levava consigo “alguns centos de milhares de réis”, reunidos em negócios feitos durante a viagem16. Contava então apenas 17 anos de idade, mas pensava e agia já como um comerciante de larga experiência. Vejamos, como o próprio anotou ao referir-se aos “centos de milhares de réis” que tinha conseguido angariar na sua passagem pela África, a garra que levava consigo: “Precisando fazer produzir estes fracos cobres, tomei logo o expediente de ir comprar alguns cereais nos subúrbios da cidade para ir vendê-los na Corte. Neste pequeno comércio obtive regular interesse, mas como não era negócio estável, estabeleci no mesmo ano de 1832 um negócio de louça que produzia regular resultado, mas que pouco me aproveitou, porque os emigrados portugueses que aqui se achavam e que na máxima parte não queriam trabalhar, comiam sob o pretexto de benefício patriótico não só o pouco que eu ganhava, mas até o pequeno capital de que dispunha”17.

Esta sua primeira experiência fê-lo relutar em relação aos compatriotas, que durante muitos anos deixou mesmo de empregar, afirmando que, desse modo, começou a tirar bons resultados do seu trabalho. Descontente também com o pouco lucro do negócio dos cereais, encetou, no ano seguinte de 1832, uma parceria comercial com Vicente Estácio, em que ambos entraram “com algum capital” para se dedicarem à venda de louças, o que resultou em alguns lucros. Passou a viajar para outras cidades brasileiras, comprando e vendendo, sempre em busca de bons e lucrativos negócios. Não era um “mascate”, um “vendedor ambulante de miudezas”, para usarmos palavras de Gilberto Freyre18, antes um negociante de visão larga e algum investimento, o que lhe trouxe não só significativos lucros mas lhe granjeou também grandes amizades, capazes de lhe garantirem crédito e bom nome. Entre estas amizades, que continuará a cultivar pela vida fora, encontrava-se o padre António Ferreira Viçoso, depois bispo de Mariana, que em 1835 conheceu em Ilha Grande e se transformou numa referência para toda a sua vida19. Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 18 Cf. Freyre, Gilberto, Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX…, p. 81. 19 D. António Ferreira Viçoso, religioso Vicentino, nasceu em Portugal a 13 de maio de 1787. Ordenado sacerdote em 1818, foi professor em Évora antes de embarcar para o Brasil, aos 32 anos. Em 1843 foi nomeado bispo de Mariana, tendo, enquanto tal, promovido uma profunda reforma do clero e fundado várias obras de caridade e educação, entre as quais o primeiro colégio feminino de Minas Gerais. Reconhecido humanista e lutador contra a escravatura, escreveu, em 1840, um livro intitulado A escravatura ofendida e defendida. Foi um dos principais mentores da luta desenvolvida contra o liberalismo dos Imperadores na chamada questão religiosa. Morreu em 1875. Pelas suas virtudes, foi em julho 16 17

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Figura 1 Pontes Câmara com a esposa e as duas filhas mais velhas, Elisa e Elvira

Fonte: Coleção do autor

No mesmo ano viajou para Porto Alegre, de onde regressou um ano volvido, numa viagem de que tirou bons lucros. Em 1850, na qualidade de administrador de uma massa falida, Pontes Câmara deslocou-se a Santa Catarina. Dois meses volvidos retornava à capital “com bom resultado” da sua missão. Antes e depois desta data, continuou a dedicar-se ao comércio, fazendo sociedades várias que abarcavam negócios de louça e miudezas, de peixe fresco, carnes verdes, cereais, fabrico de cal, casas de pasto, trapiche, negócios de tapioca, refinação de açúcar, fabrico de chapéus, cultivo de café, botequins ou negócios de carvão em pedra. Mas os negócios que lhe deram grande fama e maior proveito foram, sem sombra de dúvidas, o das “comissões” e o dos cafés.

de 2014 declarado beato pelo Papa Francisco. Cf. Padres Vicentinos, disponível em http://padresvicentinos.org/pt/dantonio-ferreira-vicoso/ [Acesso em 28.09.2014]

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A sua vida de comerciante mante-se durante mais de cinco décadas, umas vezes com lucros, outras com prejuízos. Para podermos fazer uma ideia do seu percurso enquanto negociante, vejamos o resumo da atividade desenvolvida, que o próprio deixou anotada (ver quadro 1). Quadro 1 – Negócios em que Pontes Câmara teve sociedade, 1832-1878 Início 1832 1832 1833 1833 1834 1836

1836 1839 1843 1844 1848 1848 1849 1850 1851 1853 1853 1858 1858 1858 1858 1860 1863 1860 1864 1867 1868 1868 1872 1872 1878

1878

Sócios Joaquim Alves da Silva João de Deus José Francisco Pedro Vicente Estácio da Silva José Pedro da Silva José Joaquim Leite Bastos, José Cândido Pereira Salgado Canuto Maria Pereira de Macedo João Dias Vilares José Dias Pinto Aleixo Tomás Pereira da Rosa António Moreira Betencourt Joaquim José de Oliveira Bastos José da Silva Gajeiro José Domingos da Costa Manuel Alves Oliveira Queiroz João António Ferreira Guimarães Francisco Mazar Agostinho Sommer Francisco da Silva Betencourt Joaquim José Simões António Alves Carreira José Neves Pinto Tomás Alves de Oliveira José Pinto de Figueiredo Vilhena Joaquim Domingos da Costa Rafael José Lopes de Andrade José Alves Pereira Domingos Lopes Quintas Francisco Joaquim Gomes Joaquim Fernandes Moura Vicente Cavalcante de Orem José Rodrigues da Silva Joaquim Matos Vieira António Ferreira Lopes António Rodrigues da Silva Mascarenhas António Coelho Fortes Belmiro António Rodrigues Manuel Ribeiro Justino Albano Joaquim

Produtos Louças e miudezas Peixe fresco Carnes verdes Louças e outros Cereais Fábrica de cal

Resultado Lucros Lucros Prejuízo Lucros Prejuízo Lucros

Louças e miudezas Especulação de contas Cereais Casa de pasto Cereais Casa de pasto Cereais e especulação Trapiches e comissões Tapioca Refinaria de açúcar

Lucros Muito lucro Lucros Lucros Lucros Prejuízo Prejuízo Lucros Prejuízo Prejuízo

Cereais

Muito lucro

Fábrica de chapéus Cereais Cereais Especulação

Prejuízo Prejuízo Prejuízo Prejuízo

Trapiche e comissões Fazenda de café Botequim Café e cereais Café Cereais Cereais Café e cereais Cereais Carvão em pedra

Muito lucro Muito lucro Lucros Muito lucro Lucros Lucros Prejuízo Lucros Lucros Lucros

Café

Lucros

Fonte: Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação.

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Como se pode observar pelo quadro apresentado, Pontes Câmara teve quatro dezenas de sócios ao longo da sua vida comercial. “Com uns tive lucros e com outros prejuízos”, escreveu o próprio em 1880, “mas com nenhuns deles tive dúvidas em contas, tendo-me separado de todos na melhor harmonia achando-me de contas saldadas com todos”20. Entre estes sócios, encontravam-se pelo menos três dos seus futuros genros: António Ferreira Lopes, Francisco Joaquim Gomes e António Coelho Fortes. No dia 24 de dezembro de 1851, aos 36 anos e já abastado negociante, Manuel de Pontes Câmara casou-se com Guilhermina de Matos Vieira, de apenas 15 anos de idade, natural do Rio Grande do Sul21. Volvido pouco mais de um ano sobre o casamento, isto é, a 14 de abril de 1953, nascia a primeira filha do casal, Elisa22. A 10 de abril de 1856 o emigrante português embarcou para a Europa com a mulher, grávida de quatro meses, e a filha, de tenra idade. Instalada a família na cidade do Porto, na rua 23 de julho da freguesia de Santo Ildefonso, partiu o comerciante para França, no Porto nascendo, na sua ausência23, a segunda filha, Elvira de Pontes Câmara24. O casal Câmara permaneceu na capital do norte de Portugal até ao dia 2 de junho de 1860, data em que, na companhia da esposa e das filhas, embarcou de regresso ao Rio de Janeiro. As viagens eram demoradas, chegando a gastar-se, para cada travessia do Atlântico, entre um a dois meses. O que justificava que quando estes homens viajavam prolongassem as estadas no exterior. De regresso à capital do império do Brasil, Pontes Câmara encontrou a casa comercial, que deixara em franco crescimento quatro anos antes, em situação de falência. “Achei-a Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. Curiosa confidência é feita por Pontes Câmara no seu manuscrito Factos mais notáveis…: “No dia 24 de Junho de 1836, decidi terminar, por carta, algumas ideias de casamento que tivera com uma respeitável moça, participando-lhe que com atenção à minha posição e estado não estava resolvido a tomar estado. É nesse mesmo dia de Junho que o calendário religioso dedica a São João Baptista que, na cidade capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre e por uma coincidência que se não pode explicar, nasceu aquela que mais tarde veio a ser minha mulher”. Cf. Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 22 Viria a casar-se em 10 de Setembro de 1867, com 15 anos incompletos, com Francisco Joaquim Gomes, desde 1864 sócio do sogro na casa “Câmara & Gomes”. Este casal não deixou descendência. Uma segunda filha de Guilhermina e Manuel de Pontes Câmara, cujo nome se não conhece, morreu com apenas uma semana de vida. Nasceu a 30 de Março de 1855, no Bairro das Laranjeiras, onde o casal habitava, e faleceu a 7 de Abril, tendo sido batizada em casa para que não morresse sem sacramentar. 23 No seu manuscrito Manuel de Pontes Câmara refere: “É esta a única filha a cujo nascimento não assisti”. Embora o não afirme claramente, Pontes Câmara estaria envolvido amorosamente com uma francesa (e note-se que são constantes, ao longo da sua vida as viagens à Europa e especialmente a França), pois indica que a 13 de Novembro desse ano de 1856, nasceu em Paris, pelas “seis horas e quatro minutos da tarde, outra minha filha”. Esta criança foi também batizada na igreja de Santo Ildefonso, na cidade do Porto, aos 28 dias do mês de Julho de 1859, com o nome de Emma Edouina Rita Emmuella, sendo padrinhos José Cardozo Pinto Montenegro e D. Rita Acácia Lopes. Faleceu a 18 de Fevereiro de 1867. Cf. Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 24 Arquivo Distrital do Porto, Livro de assentos da paróquia de Santo Ildefonso, 1856, fl. 44. 20 21

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envolvida de tal forma que não só supus a minha fortuna perdida, mas em risco de não pagar por inteiro aos credores. Mas conseguindo separar a Sociedade, mediante a responsabilidade de mil e alguns contos de réis, consegui pagar por inteiro e apesar de perder na liquidação cerca de quatrocentos contos ainda me ficou alguma fortuna que manejada com critério me colocou ainda em posição desassombrada pelo que resta dar graças a Deus”25. Não obstante “as amargas provações” de que diz ter sido vítima, este homem, que aos 14 anos de idade, sem resguardo algum se fez ao mundo e foi capaz de, como era seu desejo ao partir da ilha natal, “fazer fortuna” por si mesmo, a tudo resistiu, fruto da sua inteligência, da sua capacidade para os negócios e dos seus rígidos princípios morais, como adiante veremos. Recuperada a posição, à custa de muito dinheiro perdido, reaplicou-se na gestão das suas empresas e, muito rapidamente, viu a sua posição não só recuperada, mas fortalecida. Adquiriu então um palacete, com capela, na rua Olinda, onde passou a habitar com a esposa e as filhas Elisa e Elvira. Ali nasceram e cresceram os restantes filhos do casal26. No dia 24 de agosto de 1874, aos 38 anos de idade e após vinte e dois de casamento, Guilhermina de Matos Vieira faleceu no Rio de Janeiro, deixando Manuel de Pontes Câmara, que contava então 59 anos de idade, viúvo. Empreendeu, após da morte da mulher, mais algumas viagens à Europa, onde três dos seus filhos estudavam, tendo a última dessas viagens ocorrido março de 1882. Vindo do Rio de Janeiro, permaneceu alguns dias em Lisboa, acompanhando uma filha e um genro português que ali se instalaram numa espécie de lua-de-mel tardia. Até que, no dia 31 desse mesmo mês, embarcou sozinho no vapor Douro, da Mala Real Inglesa. O seu destino era a cidade inglesa de Southampton, de onde, após visitar uma das filhas mais novas que na Grã-Bretanha estudava, retornaria ao Brasil para retomar a condução dos seus negócios. Mas, desta vez, a “fortuna” que Manuel Pontes Câmara tantas vezes invocava como sinónimo de sorte e felicidade, não o acompanhava. Pelas onze da noite, Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. A 23 de julho de 1861, nasceu Edeltrudes, que em 16 de Janeiro de 1878 casou com António Rodrigues da Silva Júnior; a 13 de agosto de 1863, Ernestina, que virá a casar, na capela do colégio das Irmãs da Caridade, em 9 de julho de 1879, com António Coelho Fortes, casamento do qual nasceram duas filhas; a 11 de novembro de 1866, nasceu Maria Estefânia, que viria a casar-se, já depois da morte dos pais, com José Mendes de Oliveira Castro, 2º Barão de Oliveira Castro e sócio de seu sogro desde antes do casamento; a 22 de janeiro de 1869, nasceu Guilhermina, na cidade de Petrópolis. Viria a falecer aos dez anos de idade, em 28 de março de 1879, sendo sepultada no cemitério de S. João Baptista; por último, em 21 de agosto de 1870, nasceu, na rua Olinda, Manuel, o único filho e “tanto desejado” varão do casal. Por ser o único rapaz e ter ficado órfão muito jovem, teve uma vida de aventureiro. Casou muito cedo, teve um filho, e viveu viajando. A história da família refere que atravessou o Atlântico trinta e oito vezes, “a última das quais, morto, para ser sepultado no Brasil”. Cf. Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 25 26

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navegando o Douro ao largo do cabo Finisterra, na Galiza, levando nos seus porões 75.000 libras que trouxera do Brasil e mais 25.000 carregadas em Lisboa, para além de outra carga pesada entre a qual 15.600 sacos de café, foi violentamente abalroado pelo vapor espanhol Yrurac-Bat, que, da Corunha, seguia rumo a La Habana27. A noite estava escura e as ondas tumultuosas. O desastre levou o Douro para o fundo do oceano em pouco mais de meia hora. Mesmo assim, muitos dos passageiros de ambas as embarcações conseguiram salvar-se, dada a rápida intervenção de outro barco que à mesma hora passava por perto. Não foi o caso de 57 passageiros de ambas as embarcações, entre as quais Manuel de Pontes Câmara, um dos três passageiros da primeira classe do Douro que, aos 67 anos de idade, encontrou eterna sepultura no fundo do Atlântico28. O seu corpo jamais foi recuperado. No dia 14 de abril de 1882, isto é, duas semanas após o desastre, a pedido da família ou por imposição da companhia seguradora do vapor em que viajava, era publicado no jornal Faro de Vigo um anúncio nos seguintes termos: “Por la localización de un cadáver. El consignatario en esta ciudad de la Compañía Mala Real Inglesa, señor don Estanislao Durán, ofrece una buena gratificación al que encuentre o dé noticia del cadáver del comendador Dn. Manuel de Pontes Cámara, el cual ha sido víctima en el naufragio del vapor Douro. Las señas del finado son las siguientes: estatura regular, delgado, edad 67 años, usaba toda la barba. Vestía pantalones, chaleco y gabán todo de paño negro, sombrero de coco y botinas cortas con elástico. Debe tener en el bolsillo del gabán una cartera con documentos donde consta su nombre así como tarjetas de visita. La ropa blanca que vestía tiene las iniciales M. P. C.”29.

Na memória oral familiar ficou a notícia, talvez fantasiosa, talvez não, de que Manuel de Pontes Câmara terá dado o seu lugar no bote a que os passageiros de primeira classe tinham direito, a uma pobre mulher que viajava em classe económica com um filho de tenra idade30.

“Muerte en el mar de Finisterre”, disponível em http://www.farodevigo.es/gran-vigo/2012/04/05/muerte-marfinisterre/638250.html [acesso em 11.04.2015] 28 Cf. Calvo-Sotelo, Juan Campos, Náufragos de Antaño. Los grandes naufragios en la Costa de la Muerte en el siglo XIX, Barcelona, Editorial Juventud, 2002, pp. 205-222. 29 Cf. Jornal Faro de Vigo, disponível em http://www.farodevigo.es/opinion/2012/04/14/hemeroteca-decano /640438. html [acesso em 11.04.2015]. 30 Informação prestada pela Dr.ª Lucia Sanson, trineta de Pontes Câmara, residente no Rio de Janeiro. 27

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A criação de um colosso comercial Após a viagem por terras africanas que lhe permitiu regressar ao Brasil com “alguns centos de milhares de réis”, tinha então apenas 17 anos de idade, Manuel de Pontes Câmara iniciou uma vida comercial de sucesso que, como já vimos, lhe garantiu ligação a mais de uma trintena de negócios, umas vezes como sócio solidário, outras como comanditário. O Brasil, que nos anos que se seguiram à independência teve que se adaptar a novas circunstâncias, não apenas à reorganização de todos os serviços públicos do novo império mas também aos efeitos negativos que esse facto acarretou, que fez crescer muito os compromissos económicos para com o exterior, viveu um período algo conturbado e difícil. Não obstante, a riqueza dos seus solos e a vontade de levantar uma nova nação levaram a que, sobretudo a partir de meados do século XIX, o país entrasse numa fase de enorme crescimento, organizando-se modernamente com grandes empresas comerciais, financeiras e industriais. As indicações desse crescimento eram já notórias na primeira metade da centúria de oitocentos, mas, ao longo da sua segunda metade, mudou radicalmente para melhor, sobretudo com “a verdadeira revolução que se operava na distribuição das suas atividades produtivas”, decaindo as lavouras tradicionais como a da cana-de-açúcar, algodão ou tabaco e ressurgindo, apoteoticamente, outras produções que anteriormente eram de pequena importância. Dentre estas últimas, destacar-se-ia o café, que “acabará por figurar quase isolado na balança económica brasileira”31. E foi exatamente neste setor, o do café, que a partir da década de sessenta Manuel de Pontes Câmara irá jogar toda a sua experiência, o saber alicerçado num trilho com já quase três décadas ligado a negócios vários, ao fundar, em 2 de janeiro de 1864, sob a designação de Câmara & Gomes, um empório comercial que o tinha como sócio maioritário e como minoritários um genro, Francisco Joaquim Gomes e um cunhado, o barão de Matos Vieira32. Dedicando-se também aos negócios dos couros e dos cereais, era contudo no café que a Câmara & Gomes tinha o seu principal mercado. A sociedade deve ter sucedido a um negócio mais pequeno, talvez do mesmo ramo, que Manuel de Pontes Câmara possuía na rua de S. Bento, já que o seu nome surgia individualmente

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Júnior, Caio Prado, História Económica do Brasil, acessível em http://minhateca.com.br/PalavraeTeologia/ LIVROS+DIVERSOS/Caio-Prado-Junior-Historia-Economica-Do-Brasil,30602957.pdf [acesso em 11.04.2015] 32 O Brasil, Rio de Janeiro, S.te de Publicité Sud-Americaine Monte Domec & Cie, vol. 1, 1919, pp. 51-56.

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cadastrado como “negociante estrangeiro” nas páginas do “Almanak da Corte e Provincia do Rio de Janeiro para o anno bissexto de 1864”33. A Câmara & Gomes atingiu, rapidamente, fruto da experiência do seu sócio maioritário e do esforço de todos os que com ele trabalhavam, o estatuto de grande casa comercial “da capital do Império”34. Poucos anos volvidos, já não comercializava apenas aos balcões da rua de S. Bento. Tinha-se envolvido em negócios de comissões, comércio de cereais, couros e outros produtos nacionais e importados, torrefação, moagem e ensaque de café, assegurando “operações que iam crescendo de vulto, irradiando a todo o país, do Norte a Sul e ao Estrangeiro”, exportando especialmente para a Europa35, onde, no ano de 1874, colocou 500 sacas de 60 quilos de café, situando-se entre os setenta primeiros exportadores de todo o Brasil, devendo referir-se que entre as primeiras cem empresas exportadoras a esmagadora maioria eram inglesas ou francesas36. O enorme crescimento da casa obrigou a que, mantendo o estabelecimento da rua de S. Bento, abrisse depósitos e balcões nas ruas dos Beneditinos, da Saúde, Frei Caneca e avenida Mem de Sá. O “Café Câmara” tornou-se famoso no Rio, existindo a marca, ainda hoje, noutras mãos. Nos inícios do século XX e já após a morte de Manuel de Pontes Câmara, a empresa, onde se mantinham como operacionais ou comanditários alguns dos seus genros, mandou construir um dos grandes edifícios da então recém-inaugurada avenida Central, mais tarde avenida de Rio Branco, possuindo, em 1919, o capital social de 1.250.000 réis e “girando” anualmente a soma de 120 mil contos de réis37.

Fortuna, riqueza e bem-fazer

Manuel de Pontes Câmara tinha alcançado a honorabilidade de comendador. Como tal o referem as várias notícias que dão conta da sua morte por afogamento. Desconhecemos, porque ainda não tivemos oportunidade de aceder a documentação elucidativa, em que data a alcançou e se a honraria lhe terá sido atribuída pelo Estado brasileiro, se pela Igreja, dadas as suas estreitas ligações a altos dignitários católicos, entre as quais se refere monsenhor D. Miguel Ferrini, bispo italiano que na década de 1870 foi representante de

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Almanak da Corte e Provincia do Rio de Janeiro para o anno bissexto de 1864 fundado por Eduardo von Laaemmerk…, Rio de Janeiro, Eduardo & Henrique Laemmert, 1864, p. 527. 34 O Brasil…, p. 51. 35 O Brasil…, p. 51-56. 36 Retrospecto Commercial de 1877, Revista do Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, Typographia Imperial e Constitucional de J, Villeneuve & C., 1878, pp. 31-32. 37 O Brasil…, p. 52.

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negócios da Santa Sé no Brasil e que, pela amizade que o prendia ao madeirense, presidiu ao casamente de uma das suas filhas38. Para além de D. Ferrini, Pontes Câmara foi amigo, desde muito jovem, do padre António Ferreira Viçoso, em 1843 nomeado bispo de Mariana e figura de proa da questão religiosa no Brasil pós independência 39. É também certo que o negociante português pertencia a um conjunto de irmandades religiosas das quais, logo desde muito jovens, fizeram também parte três das suas oito filhas: Elvira entrou para a Ordem de Nossa Senhora do Carmo aos 12 anos de idade; Edeltrudes para irmã da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo aos oito anos; Ernestina para irmã da Ordem de S. Francisco da Penitência aos sete; Maria Estefânia, que foi pelo casamento baronesa de Oliveira Castro, para a mesma Ordem de S. Francisco quando contava apenas três anos de idade. No ato de batismo delegou em santas da sua devoção a qualidade de madrinhas, ou protetoras, de alguns dos filhos: Eliza teve como madrinha Nossa Senhora de Santa Rita; Maria, Nossa Senhora da Conceição; e Manuel, dito Maneco, seu filho único e mais novo, Nossa Senhora das Dores. A filha Ernestina, que casou em 9 de julho de 1879 com Artur Coelho Fortes, teve a oficializar a cerimónia de casamento o então bispo diocesano do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda40. Desconhecemos o testamento integral deste português natural da ilha da Madeira, mas sabemos que, em vida, “praticou [no Brasil] atos da mais assinalada benemerência”, que mandou reerguer, numa das suas passagens pela ilha que lhe serviu de berço, a capela de Nossa Senhora das Achadas, que fez uma doação de cinco contos de réis à Misericórdia do Funchal e que “legou quase inteiramente a terça dos seus bens a casas de caridade, especialmente à Misericórdia da cidade do Rio de Janeiro, ficando os seus filhos com o remanescente da sua grande fortuna”41. Manuel de Pontes Câmara foi, como se viu, um riquíssimo e poderoso comerciante da praça do Rio de Janeiro. Falava pelo menos mais duas línguas para além do português,

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Monsenhor Miguel Ferrini morreu no Rio de Janeiro em 13 de fevereiro de 1875, vítima de febre-amarela, sendo sepultado no cemitério da Venerável Irmandade de S. Pedro, no Cajú, Rio de Janeiro. Italiano, doutor em Teologia e Direito Civil e Canónico foi internúncio e desde 6 de junho de 1874 Encarregado de Negócios da Santa Sé no Brasil. Apesar de ter falecido repentinamente de doença diagnosticada pelos médicos, o jornal O Apostolo, do Rio de Janeiro, aproveitando o mau ambiente vivido entre D. Pedro II e a Santa Sé, no âmbito do processo que ficou para a história como a questão religiosa brasileira, atribuiu a sua morte prematura a uma indisposição depois de ter sido recebido pelo imperador e pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros. O jornal considerou mesmo D. Ferrini como “mais uma victima da politica execranda da maçonaria Imperial”. Cf. O Apostolo, nº 35, de 16 de fevereiro de 1875, p. 1; Alves, José Luiz, “Noticia sobre os Nuncios, Internuncios e Delegados Apostolicos que desde o ano de 1808 até hoje representaram a Santa Sé no Brazil Reino Unido, no 1º e 2º Reinados e na Republica Federal”, Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brazileiro, Tomo II (I), Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1900, p. 268. 39 Ver nota número 19. 40 Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 41 Silva, Pe. Fernando Augusto da; Menezes, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense, vol. 1, A-E, edição dos Autores, 1921, p. 26.

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era leitor dos clássicos da época42, viajou dezenas de vezes para Portugal, França, Inglaterra, Bélgica e Holanda, foi um extraordinário benfeitor de instituições de caridade brasileiras, destacando-se o seu legado à Misericórdia do Rio de Janeiro43. Cabe, pois, aqui uma pergunta: terá sido Pontes Câmara, como tantas vezes se tentou fazer crer sobre estes antigos emigrantes portugueses, um “usurário”, um “sovina”, um “oportunistas”, um “explorador”44? Utilizemos, em jeito de resposta a esta nossa questão, um discurso, redigido pelo seu próprio punho em abril de 1875, para, nessa mesma data, ser por si lido aos seus sócios e empregados na casa comercial Câmara & Gomes. Nele começa por justificar a partida para uma viagem à Europa, com saída a 24 desse mesmo mês e ano, onde visitaria alguns dos seus filhos que em colégios europeus estudavam. Confessa-se cansado física e psicologicamente, já que acabara de ficar viúvo e com vários filhos para acabar de formar. Mas remete para a filosofia cristã que ensina o homem a lutar constantemente contra as contrariedades, a forma de encontrar forças para resistir. Depois de historiar alguns grandes problemas que os seus negócios viveram aquando de outras saídas ao estrangeiro, afirma confiar nos seus sócios e em todos aqueles que o servem como empregados. Traçalhes, seguidamente, uma lição sobre honradez, afirmando: “ (…) Se o crédito pessoal não representa por si só um capital representa sem duvida e pelo menos uma machina aperfeiçoada e quaseque infalível com aqual se pode adequirir muito d’esse capital ou riqueza sem grande dificuldade, sendo por isso que vulgarmente se diz que quem possue credito possue capital ou riqueza (…). Mas o credito moral é mais sublime. Este crédito alem de cooperar para essa acumulação de bens terrestres tão desejado pela maxima parte dos homens, acresce que elle é conveniente acquisição dos bens celestes, e que por um lado satisfazendo as necessidades do corpo satisfaz pelo outro as aspirações da alma. (…). O Crédito Material obtem-se e conserva-se quando se trabalha com assiduidade, dedicação e intelligencia, quando só se emprehendem os negocios que estão nos limites dos nossos meios e circumstancias, quando eles são contractados e concluídos com circumspção e prodencia (…).

Silva, Pe. Fernando Augusto da; Menezes, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense…, p. 26. Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 44 Conferir nota 29. 42 43

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O Credito Moral, tão raro na nossa época, é por isso mais apreciado e tanto quanto é difícil de conseguir-se bem como de conservar, mas como o querer é, segundo o proverbio poder, este crédito também se obtem com mais dificuldade quando se quer. Para ganhar-se (…) preciza-se antes de tudo que seja elle mesmo moralizado na sua vida publica e particular e que d’essa moral dê claros exemplos a sua família, a seus fâmulos, e ate aquelles com quem transigir ou conviver. (…). Que na concepção e realização de qualquer negocio comercial, civil, ou moral tenha como principio inalterável não entrar n’elle sem convencer-se primeiramente que o negócio é licito, legal e honesto”45.

Apesar de longo, não quisemos deixar de transcrever este trecho de um escrito de Manuel de Pontes Câmara. Através dele desejava aos que o escutavam – isto é, a alguns dos seus genros, sócios e empregados, sobre todos os quais afirma saber possuírem as boas qualidades que acabara de referir – que enriquecessem de bens terrenos, mas que, acima de tudo, deviam colocar sempre em primeiro lugar a seriedade e a boa moral46.

Considerações finais

Se ao longo de muitos séculos, quer como colonos quer, após a independência, como emigrantes, muitos portugueses enriqueceram no Brasil por processos pouco lícitos, e é provável que isso tenha acontecido no Brasil como, ao longo dos tempos, ocorreu em todos os quatro cantos do mundo, tivessem os infratores a nacionalidade que tivessem, a verdade é que, como diz o adágio, “a árvore não se pode confundir com a floresta”. A genuína honestidade de Manuel de Pontes Câmara enquanto negociante que foi durante mais de cinco décadas, como as benfeitorias em favor dos menos abastados a quem, através de instituições várias e em especial da Misericórdia do Rio de Janeiro, destinou parte da sua enorme fortuna, é apenas um exemplo pálido da contribuição e do empenho que a comunidade portuguesa residente no Brasil legou ao país. Mas, como dissemos, conhecer devidamente esse processo, o completo mecanismo do deve e do haver, é um caminho ainda longo a ser percorrido. Era pois utilíssimo, para a história de ambos os países, que algo fosse feito nesse sentido. E que as instituições se

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Arquivo de Lucia Sanson, Carta de Manuel de Pontes Câmara aos amigos e sócios da Camara & Gomes, Rio de Janeiro, 1875, documento datilografado, s/paginação. 46 Arquivo de Lucia Sanson, Carta de Manuel de Pontes Câmara aos amigos e sócios da Camara & Gomes…, /paginação.

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unissem no apoio a essa investigação, para que, como ocorreu já com grande parte do recheio do vapor Douro em cujo naufrágio Pontes Câmara pereceu há 133 anos, pudesse ser feita luz mais clara sobre muitas sombras que anatematizam, desde há muito perto de duas centúrias a esta parte, a vida destes emigrantes no além Atlântico.

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