Maçonaria: um segredo bem guardado

July 7, 2017 | Autor: Henrique Monteiro | Categoria: Maçonaria
Share Embed


Descrição do Produto

Maçonaria: um segredo bem guardado

Vamos partir de um conceito que formatámos previamente, daquilo que
comummente se chama um preconceito: a verdadeira ambição do Benfica é tomar
o poder em Portugal e dominar o país. Para tal, mascara-se ardilosamente
sob a capa de um clube de futebol que parece querer ganhar campeonatos.

Que diremos disto, descontando o nonsense? Que o plano tem falhado, uma vez
que o Benfica não parece governar o país. Além disso, sempre que há
discórdias políticas acesas no país, os benfiquistas dividem-se. Uns para
um lado e outros para o outro. Uns são republicanos, outros monárquicos;
uns de esquerda, outros de direita; uns são profundamente crentes e os
outros afirmativamente ateus.

Poderemos, posto isto, concluir que talvez o objetivo do Benfica seja mesmo
ganhar campeonatos e não obter o poder, ainda que haja benfiquistas para
quem o poder é mais importante do que os campeonatos? Parece que sim, que
feito o teste, o preconceito não tem sentido.

Acontece que é este o tipo de preconceito que se encontra cada vez que
alguém que não sabe o que é a maçonaria escreve ou fala sobre maçonaria. Ao
contrário do Benfica, que quer ganhar campeonatos, a maçonaria não pretende
nada em termos coletivos, salvo a ideia vaga de melhorar o mundo como
resultado do aperfeiçoamento espiritual de cada indivíduo, estabelecendo a
fraternidade universal. Por isso, no final de cada sessão de Loja, o seu
presidente (ou Venerável Mestre, como é chamado), afirma esperar que os
trabalhos inspirem a ação de cada um "no mundo profano".

Hesitei muito antes de escrever este texto. Na realidade eu sou maçom do
Grande Oriente Lusitano e sou jornalista, mas não me revejo na maioria das
coisas que os jornais dizem da maçonaria (sobre a qual escrevo pela
primeira vez). O livro do jornalista António José Vilela, que acabei de
ler, motivou estas linhas. Não porque o queira acusar de falsidades ou de
algo menos simpático, mas porque quero, serenamente, dizer que também muito
do que ele escreve parte de preconceitos, alguns difíceis de desmontar.

Como, por exemplo, estes: a maçonaria seria uma espécie de religião; ou a
maçonaria dará ordens ou orientações aos seus membros; ou a maçonaria
decide apoiar candidatos na política e nas instituições; ou os maçons
protegem-se e defendem-se uns aos outros, sem cuidar de princípios éticos,
de normas de decência ou nem sequer da lei. Ora nada disto é a maçonaria,
mas quase toda a gente que escreve e que fala sem saber dá coisas destas
por adquiridas. Repare-se que eu não digo (e menos ainda juro) que não há
lojas onde coisas assim (e piores) podem acontecer, mas isso é como
confundir ações criminosas de uma claque (ou parte dela) com o que é o
benfiquismo.

Na minha vida profissional já fiz publicamente várias críticas políticas (e
éticas) a outros membros da maçonaria (alguns que sabia serem e outros que,
na altura, não sabia). Jamais alguém me chamou a atenção para isso (nem eu
admitiria que o fizesse). A maçonaria diz-me que a minha probidade deve
estar acima de outros conceitos e indica, em todos os seus regulamentos e
rituais, que o país, a família e o trabalho são os primeiros deveres de
cada um de nós. Outro dado: alguém conhece uma obra ou um sítio da internet
onde ex-membros da maçonaria se queixem de terem sido, de algum modo,
manietados ou obrigados a violar a sua consciência? Não conhecem, pois não?
Talvez seja porque não existem. O que não deixa de ser notícia.

Permitam-me indicar o tipo de preconceitos de que Vilela parte. Por
exemplo, a de que cada coisa, cada símbolo, cada gesto, cada ritual na
maçonaria tem apenas uma explicação. Isso faria da ordem maçónica, não o
que ela é — uma associação de homens livres, não dogmáticos, que buscam o
aperfeiçoamento espiritual — mas algo de partidário, religioso ou sectário.
Vilela escreve que "historicamente, na maçonaria, a questão do segredo tem
estado sempre associada às perseguições sofridas pelos pedreiros-livres,
mas também à luta pelo poder e ao permanente clima de conspiração que se
vive nas lojas". Reparem como há as perseguições que sofremos e, ao mesmo
tempo, as lutas pelo poder e ainda o clima conspiratório. Pois bem, meu
caro camarada Vilela, não sei onde foi buscar essa informação, mas o
segredo na maçonaria nada tem a ver com isso, mas com o facto de sermos uma
ordem iniciática, naturalmente espiritual e metafísica. Nenhuma ordem deste
tipo vive sem segredo ou mistério. Tal decorre da sua essência
transcendente, independentemente de haver — e há! — quem no seu seio o
possa aproveitar para conspirar. O segredo na maçonaria, no entanto, não
serve para esses fins. Afirmá-lo é o mesmo que dizer que os sócios do
Benfica aproveitam o Estádio da Luz para combinar lugares nas listas de
deputados ou para fechar negócios nos camarotes das empresas. Também isto
se passa nos estádios, mas o essencial é mesmo o jogo de futebol.

Do mesmo modo, Vilela afirma que os nomes simbólicos utilizados pelos
maçons visam preservar o sigilo, por motivos de segurança. Talvez. Respondo
talvez porque na maçonaria cada coisa pode ter dez ou cem explicações. Não
é uma religião, não é um clube, não é uma associação. É algo único. Assim,
se Vilela pode ter encontrado essa explicação eu dou-lhe outra: os
pedreiros que construíram as catedrais (onde nós vamos buscar a nossa
filiação) deixavam uma marca em cada pedra que colocavam. Essa marca era o
seu logos, o seu símbolo. O nome simbólico (e não pseudónimo, veja-se a
diferença), representa essa marca. E, já agora, uma revelação sobre os
mistérios em que Vilela não entra: nos altos graus, ou seja a partir do 4º
(que na teoria da conspiração seriam os mandões) nem sequer existem nomes
simbólicos.

Depois, há erros de palmatória. Como a confusão entre maçonaria e
carbonária. A carbonária é uma organização que nasceu em Itália e
caracterizou-se por um 'putchismo' (aproveitado por alguns radicais
republicanos portugueses e condenado por outros) a que a maçonaria não só é
totalmente alheia, como manifestamente crítica. Nos ágapes (jantares)
rituais da maçonaria começa-se por saudar o chefe do Estado (rei ou
presidente) que permite aos maçons reunirem-se livremente (isto é, sem
perseguições policiais, como é o caso português e, de um modo geral,
europeu). Isto, além de provar que até a saúde de Cavaco Silva é
regularmente brindada pela maçonaria, diz bem do respeito institucional da
Ordem quando não é vítima de perseguições. Além disso, a maçonaria
caracteriza-se como uma organização progressiva (no sentido em que se chega
ao conhecimento gradualmente), palavra por vezes confundida com outra:
progressista. Do mesmo modo que a expressão res publica, muito usada como
sinónimo do cuidado com o bem público res publica significa coisa pública),
é confundida com República como regime oposto ao monárquico. Claro que a
maioria dos maçons portugueses deve ser, como a maioria dos portugueses,
republicana, mas eu, pelo menos, que venho de uma tradição totalmente
republicana, convivi com mais monárquicos dentro da maçonaria do que fora
dela. Para não falar da pujança da maçonaria em regimes monárquicos, como o
Reino Unido, a Suécia ou a Bélgica.

Do mesmo modo, na maçonaria há crentes e há não crentes. Isso é algo
irrelevante. A ordem maçónica moderna foi criada justamente (em 1717) para
promover o convívio espiritual entre as diversas fações religiosas e
políticas e proíbe explicitamente quaisquer discussões sobre esses temas.
Assume-se como uma escola em que se ensina a respeitar e a ouvir os outros,
a ver nos outros a razão que eles podem ter. É um espaço de ampla
tolerância, mas não é relativista, no sentido em que crê que a Luz, Verdade
ou a Justiça existem em si mesmo, exteriores ao homem, embora a aproximação
a essas realidades não seja feita por todos e cada um necessariamente pelo
mesmo caminho. Na maçonaria não há revelação, nem epifanias, mas há
espiritualidade.

Um cristão poderia, para caracterizar a maçonaria, utilizar a frase com que
Jesus é citado: "Há muitas moradas na casa de meu Pai."

De resto, o livro conta uma série de histórias cujo interesse é quase nulo,
se excetuarmos o facto de serem presuntivamente secretas. Não é por acaso
que o autor escreve sempre "nas reuniões secretas" como se houvesse
reuniões mais secretas do que outras. Entendamo-nos, as reuniões da
maçonaria são, por definição ritualística, em "local oculto". Em Lisboa, a
maioria delas, como o autor bem sabe, são no Palácio do Grande Oriente
Lusitano, na rua do Grémio Lusitano, nº 25, onde é também o Museu da
Maçonaria, nada de muito oculto, portanto. Para quem, como eu, já fiz
reuniões verdadeiramente secretas (nas organizações estudantis) devo dizer
que não há qualquer clandestinidade na maçonaria. O oculto decorre do facto
de ser o que é: uma ordem iniciática, em que o segredo é indizível porque
mora no interior de cada ser humano. O ritual, que visto de fora é tão
ridículo como pode parecer, a uma pessoa que nunca tenha visto futebol, 22
homens a correr atrás de uma bola e 50 mil a vibrar de emoção com isso, o
ritual, dizia, leva exatamente cada presente a aprender de cor — no sentido
etimológico, de aprender com o coração — o significado profundo e
misterioso da iniciação maçónica, que aliás, por ser inexpressável, jamais
foi traído.

Traído, sim, foi o jornalista António José Vilela por quem lhe deu e dá as
informações. Por uma razão tão simples como esta: quem as fornece (algumas
detalhadas e certas, outras confusas e erradas), são pessoas que não sabem,
não aprenderam o que é a maçonaria. Porque ser maçom não é apenas pertencer
ao GOL ou a uma loja maçónica. Ser maçom é ser reconhecido pelos outros
maçons e não autoproclamar-se maçom. É, ritualisticamente, um privilégio
concedido, não é uma adesão ou uma mera decisão pessoal. Por isso não sei
se a minha construção intelectual sobre a maçonaria agrada a todos os
maçons. Provavelmente, não agrada. Eu sei que é difícil entender isto,
estando de fora, mas é esta a verdade.

É claro que o livro tem muita informação de bastidores. No que me diz
respeito — sou referido três vezes — duas referências estão certas e uma
está errada (o que não é um mau score). Mas cai num erro frequente: cita
opiniões pessoais como sendo opiniões da maçonaria. Ora a maçonaria não tem
opinião, salvo em casos e assuntos muito graves, específicos e raros e, no
caso do GOL, essa opinião deve ser expressa pelo grão-mestre, única pessoa
que fala pelo conjunto. Mas não lidera, nem determina, nem decide, ao
contrário do que se depreende muitas vezes do que aí se escreve. A
maçonaria assenta em "maçons livres em lojas livres" que se organizam em
rede, muito antes (no caso do GOL, há 210 anos) de a sociedade falar nisso.
Não tem líderes espirituais, chefes, hierarcas ou patriarcas. É por isso
que este artigo não representa mais do que a minha opinião. Uma opinião
comprometida, de dentro, mas não mais do que isso. Há, seguramente, dentro
da maçonaria quem pense de forma muito diferente.

Aliás, basta imaginar se faria sentido as minhas opiniões (faço nove
crónicas por semana) representarem a opinião do GOL...! Digo isto porque
dentro da maçonaria, havendo graus (33 no rito escocês e sete no francês)
não há chefes, no sentido em que a opinião de um Venerável Mestre seja de
maior valor do que a de um obreiro qualquer. Assim, a ideia de citar alguém
para sustentar que essa é a opinião da maçonaria não é lícita. Será como
arranjar um benfiquista que afirme "todos os lagartos devem ser presos"
para concluir que essa é a opinião do Benfica.

Ao longo da minha já longa vida maçónica conheci excelentes pessoas, tanto
no GOL como noutras obediências, portuguesas e estrangeiras. De profissões,
proveniências e atividades com as quais não me seria fácil cruzar. É este
cosmopolitismo e esta diversidade que fazem a força da maçonaria. Mas
também conheci alguns trastes, gente que não merece lá estar, ou que me
entristece que lá esteja. Espiões sem ética, golpistas, alguns
provavelmente corruptos, outros que apenas querem poleiro. Rio-me quando
leio que a maçonaria infiltra os partidos... perguntem a qualquer maçom
sério se não será o contrário, devido a essa vontade tão política de tudo
controlar.

Mas isto é a vida. Também sou sócio... do Sporting (e não do Benfica) e o
mesmo posso dizer de outros sócios, como de quem andou comigo no colégio ou
na Universidade. A vida é assim. É bem mais simples do que alguns querem
fazer crer e a maçonaria faz parte da vida com uma ideia que, sendo antiga,
é ainda muito revolucionária: é possível conhecermo-nos a nós próprios,
porque só conhecendo-nos a nós próprios conheceremos o mundo. Os nossos
maiores inimigos somos nós. É por cada um que temos de começar a construir
o templo simbólico que é o nosso trabalho como pedreiros. E, no fundo, o
que os maçons querem é, como se lê nos rituais, aperfeiçoarem-se
espiritualmente e "cavar masmorras ao vício, combatendo a tirania, a
ignorância, os preconceitos e os erros, e elevar templos à virtude,
glorificando a justiça, a verdade e a razão".

Mais simples do que isto, de facto, não há. [
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.