Maquiavel e a fundação da ciência política moderna

May 18, 2017 | Autor: Mauricio Tonetto | Categoria: Ciencia Politica, Maquiavel, O Príncipe
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MAQUIAVEL E A FUNDAÇÃO DA CIÊNCIA POLÍTICA MODERNA Mauricio Tonetto1

Devemos saber que existem dois modos de combater: um, com as leis; o outro, com a força. O primeiro modo é o próprio do homem; o segundo, dos animais. Porém, como o primeiro muitas vezes mostra-se insuficiente, impõe-se um recurso ao segundo. Por conseguinte, a um príncipe é necessário saber valer-se dos seus atributos de animal e de homem.

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Escrito em 1513 e publicado em 1532, O Príncipe, do historiador, poeta e diplomata renascentista italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), é uma obra fundamental na construção do conceito de Estado e na reformulação da estrutura governamental da modernidade. O tratado, desenvolvido a partir de reflexões sobre experiências vividas por Maquiavel e o passado político da Europa, reúne conselhos e sugestões endereçados à família Médici – dinastia que governou Florença nos séculos 15 e 16 – e estabelece os fundamentos para a criação e manutenção de um poder capaz de sustentar a ordem, a estabilidade e a paz. No Príncipe, há o desprendimento de dogmas religiosos e o direcionamento às condutas e atos dos governantes. Maquiavel discorreu sobre o Estado e o governo como realmente eram, e não de forma idealizada ou eclesiástica. Por isso, foi reconhecido posteriormente como fundador do pensamento e da ciência política moderna. Para melhor compreender o tratado, é necessário trazer o contexto da turbulenta época. O escritor viveu a juventude na República Florentina, durante o governo de Lourenço de Médici, e viu a decadência do modelo feudal frente à emergência da burguesia e do capitalismo. Entrou para a política aos 29 anos como secretário da Segunda Chancelaria e pode observar o comportamento dos personagens políticos de perto, examinando-os à luz de autores da Antiguidade clássica – uma de suas principais influências foi Tito Lívio3, de quem tomou os conceitos de fortuna e virtú, centrais no Príncipe.

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Graduado em Jornalismo pela PUCRS. Especialista em Jornalismo, Gestão e Novas Mídias pela ESPMSul. Aluno de Mestrado em Comunicação Social na PUCRS. E-mail: [email protected] 2 O Príncipe, página 85. Para esta resenha, foi utilizada a edição de 2016 da L&PM. 3 Um dos principais historiadores romanos. Nasceu em 59 a.C., em Patavium, atual Pádua, na Itália.

No século 15, as cinco principais potências da fragmentada península itálica eram o Ducado de Milão, a República de Veneza, a República de Florença, o Reino de Nápoles e os Estados Pontifícios. Incapazes de uma aliança para o bem comum, as regiões viviam em guerra e eram frequentemente invadidas por exércitos mercenários, chamados condottieri. Por suas riquezas e vulnerabilidades, tornaram-se alvos da Espanha e principalmente da França, que tinha a monarquia mais forte do Ocidente. Florença, sob o comando de Lourenço de Médici, havia resistido às investidas. Mas, após a morte deste príncipe, em 1492, sucumbiu ao rei francês Carlos VIII até 1512, data em que João de Médici (mais tarde Papa Leão X) retoma a autoridade, ocasionando novos confrontos nos anos subsequentes pelo domínio da região. Na Segunda Chancelaria, Maquiavel encarregou-se de tarefas burocráticas, assessoria política e diplomacia, chegando a ser enviado para missões importantes, como um encontro com o rei francês Luís XII – sucessor de Carlos VIII – para convencê-lo a apoiar a República de Florença em uma guerra contra a República de Pisa. O Príncipe foi dedicado por Maquiavel aos Médici como uma forma de recuperar a imagem danificada após a morte de Lourenço, já que a família entendia que ele havia conspirado contra o governo – o historiador acabou exilado de sua cidade natal. Em meio a estas vivências, ele registrou com lucidez suas impressões sobre as ações e características dos governantes, bem como sobre as consequências dos atos tomados por eles na defesa de seus territórios e na invasão das terras estrangeiras. Maquiavel acompanhou as tramas e alianças que ergueram e derrubaram líderes e estudou as posturas dos homens do passado e do presente, cunhando uma concepção própria de política com realismo e um rigor quase científico. Para ele,

[...] o príncipe deve ser ponderoso em seus julgamentos e em suas ações, sem temer o seu próprio poder, e proceder de um modo equilibrado, com prudência e benevolência, de sorte que a larga confiança (que nos outros deposita) não faça dele um incauto e que a sua excessiva desconfiança não o torne intolerável. Nasce daí o debate: se é melhor ser amado que temido ou o inverso. Dizem que o ideal seria viver-se em ambas as condições, mas, visto que é difícil acordá-las entre si, muito mais seguro é fazer-se temido que amado, quando se tem de renunciar a uma das duas. (2016, p. 82)

No Príncipe, Maquiavel defende que somente um Estado unificado, com leis e exércitos próprios, é capaz de manter a paz e o controle social. Para tanto, é fundamental a centralização na figura de um governante (o príncipe) dotado de qualidades necessárias para não ser surpreendido pelas circunstâncias e pelos inimigos. Ele tem de domar a fortuna (sorte ou destino) com energia, inteligência e flexibilidade, e traçar planos de ação eficazes (a virtú), com o objetivo final de preservar o Estado. Isso porque o autor enxergava o homem como um ser naturalmente egoísta, mesquinho e cruel, ao contrário das teorias clássicas, que se apoiavam na idealização do homem como bom e sociável por essência. Maquiavel acreditava que o príncipe tinha o dever de saber lidar com a contingência, a contradição e o conflito nas relações de poder, tendo, muitas vezes, de agir em total desacordo com o que pensa ser ético, em nome da manutenção da paz e da unidade do Estado. Caso contrário, a consequência pode ser a guerra civil e a destruição:

[...] tu, conquanto aparentes ser o que és – piedoso, fiel, humano, íntegro e religioso –, deves estar preparado e apto para, em caso de necessidade, demudar-te no teu contrário. E há que compreender-se que um príncipe, e mais ainda um novo príncipe, não poderá observar todas aquelas condições pelas quais os homens são tidos por bons, porquanto frequentemente, para conservar-se no poder, terá de agir contra a sua palavra e contra os preceitos da caridade, contra os da humanidade e contra os da religião. Por isso, é preciso que ele possua uma natural disposição para transmudar-se segundo o exijam os cambiantes ventos da fortuna e das circunstâncias. (p. 87)

Maquiavel achava que o príncipe, quando exigido, não poderia hesitar em aplicar o mal de uma só vez. Ao mesmo tempo, deveria ter a sagacidade de conceder o bem em diversas etapas – conselhos que ajudaram a cunhar a expressão maquiavélico para o governante sem escrúpulos.

Aquele que proceder diversamente, seja por temor, seja por imprudência, precisará sempre trazer uma faca em punho, e jamais poderá fiar-se no apoio dos seus súditos, que tampouco poderão fiar-se nele, em face dos reiterados e constantes abusos. O mal, portanto, deve-se fazê-lo de um jacto, de modo a que a fugacidade do seu acre sabor faça fugaz a dor que ele traz. O bem, ao contrário, deve-se concedê-lo pouco a pouco, para que seja melhor apreciado o seu gosto. (p. 46)

Quase um século e meio depois, o inglês Thomas Hobbes aprofundou no Leviatã4 os estudos sobre a natureza perversa do homem, explicitados por Maquiavel, e apresentou o absolutismo como único meio para conter o chamado estado de natureza, que, no entendimento dele, era de guerra e destruição. Hobbes, porém, não acreditava que poderia existir um príncipe capaz de fornecer o equilíbrio vital à ordem. Por isso, de acordo com ele, o povo deveria se submeter, através de um contrato, ao controle absoluto do monarca, pois

[...] a única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de os defender das invasões dos estrangeiros e dos danos uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante o seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir todas as suas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. [...] Todos submetendo desse modo as suas vontades à vontade dele, e as suas decisões à sua decisão. (p. 147)

A atemporalidade de O Príncipe elevou-o a um clássico, uma espécie de manual político para governantes. Ao mergulhar na própria experiência em perspectiva histórica, Maquiavel deixou uma obra original e revolucionária e influenciou gerações de pensadores, caso de Thomas Hobbes. Desde O Príncipe, a legitimação do poder desceu do divino para o humano, onde as disputas são permeadas de traições, intrigas, vinganças e crueldade. Sem nunca dizer que os fins justificam os meios, Maquiavel deixou subentendido que o homem é capaz de tudo quando busca o poder e que, por isso, pode se valer do mal para chegar a um objetivo pretensamente bom. 4

Para esta resenha, foi utilizada a edição de 2003, da Martins Fontes.

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